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PRIMEIRA PESSOA 82 4 DE MARÇO, 2020 JEFFERSON COPPOLA

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Page 1: PRIMEIR ESSOA - acbgbrasil.org · to grandes. De uns tempos para cá, meu filho me incenti - vou a interagir nas redes sociais. Tive certa relutância no começo, mas isso me ajudou

PRIMEIRA PESSOA

82 4 DE MARÇO, 2020

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Page 2: PRIMEIR ESSOA - acbgbrasil.org · to grandes. De uns tempos para cá, meu filho me incenti - vou a interagir nas redes sociais. Tive certa relutância no começo, mas isso me ajudou

4 DE MARÇO, 2020 83

O ÚLTIMO REGISTRO que tenho da minha voz é do ví-deo do meu casamento, em 2009. Exatamente um ano de-pois, comecei a perceber que algo não estava bem. Passei a sentir um desconforto na garganta, engasgava-me e tossia com frequência, sem motivo aparente. Minha voz sempre foi grave e rouca, mas nessa época a rouquidão aumentou muito. Como eu trabalhava com marketing, campanhas e vendas, fiquei apavorada. Como trabalharia sem voz? Fui aconselhada a procurar um especialista. Depois de algu-ma peregrinação recebi o diagnóstico real: câncer na la-ringe. Hoje sei que esse tipo de tumor poderia ser resolvi-do com uma cirurgia simples, com alta taxa de cura. Mas os médicos optaram por um protocolo que não funcionou. No início, fiz quimioterapia e radioterapia. Mas, em vez de o tumor diminuir, ele dobrou de tamanho, o que me obri-gou a retirar totalmente a laringe. E passei a ter um buraco permanente na traqueia. Isso significa, além de ter perdido a voz totalmente, precisar respirar por um buraco alterna-tivo para o resto da vida. Pensei em desistir de tudo, mas tive muito apoio do meu marido, filho e familiares.

Foram doze horas de cirurgia de alto risco. O pós-ope-ratório é difícil e doloroso. Por seis meses eu não consegui comer pela boca. Tive depressão, fiz uso de medicações e, sem poder me expressar, de fato foi muito terrível e exclu-dente. A gente não se dá conta de quão importante é a voz até perdê-la. Escrevia durante as consultas para ser com-preendida pelos médicos, e em casa os mais íntimos se es-forçavam para me entender por meio de sons. Depois da cirurgia, tive várias complicações que exigiram novas intervenções. Foi tudo muito penoso, do ponto de vista fí-sico e psicológico. Já não estava mais dando conta. De-morei mais de três anos para usar a laringe eletrônica, pois meu pescoço estava rígido demais, e eu não conse-guia utilizar o equipamento sem sentir dor. Com o tempo,

depois de muito treinamento, passei a articular melhor a boca e fazer uso do equipamento. Mas não utilizo esse aparelho todo o tempo. Ele me causa tosse, zumbido no ouvido e incômodo no pescoço.

Minha condição me limita em vários aspectos. Não posso estar em um local com muitas pessoas nem com ar condicionado por muito tempo porque estou mais vulne-rável a epidemias. Não posso entrar no mar nem na piscina. Para tomar banho, preciso usar uma proteção, senão a água entra dentro dos pulmões e eu morro afogada. Não posso comer alimentos muito secos nem em pedaços mui-to grandes. De uns tempos para cá, meu filho me incenti-vou a interagir nas redes sociais. Tive certa relutância no começo, mas isso me ajudou. Eu ainda tinha meu intelecto e a vontade de ajudar outras pessoas que passaram ou passariam por isso. Notei que, mesmo com a dor imensa, tinha certos privilégios. Era uma exceção em comparação com o restante da população. Tive apoio da família, aten-dimento em rede particular e acesso à laringe eletrônica e ao filtro de ar, equipamentos caros. Eu me juntei a outros pacientes e fundamos a Associação de Câncer de Boca e Garganta, com sede em Florianópolis, onde moro. Apren-di com eles que não sou melhor nem pior do que ninguém. Ainda tenho recaídas. Claro que não é fácil. Há poucos dias, achei umas fitas com a minha voz, em que cantava com minha irmã, e chorei muito, de saudade da minha verdadeira identidade. Mas, ao mesmo tempo que sinto falta, lembro de tudo o que passei e sofri para estar viva e agradeço a Deus a oportunidade de, mesmo sem voz, po-der ser a voz de tantas pessoas que são invisíveis à socie-dade. Sabe a famosa reviravolta na vida? Eu dei. E isso só acontece com muito esforço e determinação. ƒ

O CÂNCER ME TIROU A VOZA publicitária Melissa Medeiros, 48 anos, descreve as dificuldades de viver sem falar

Depoimento dado a Giulia Vidale