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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(5):1147-1166, set-out, 2002

DEBATE DEBATE

Prevenção de agravos à saúde do trabalhador:replanejando o trabalho através das negociações cotidianas

Preventing damage to workers’ health: redesigning jobs through day-to-day negotiation

1 Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, Universidadede São Paulo.Av. Prof. Mello Moraes 1721,São Paulo, SP 05508-900, [email protected]

Leny Sato 1

Abstract This paper reflects on prevention of harm to workers’ health by redesigning jobs. As-suming redesign as the process of negotiating organizational choices, the author discusses thecharacteristics of routine negotiation at the workplace, illustrated by daily negotiations in workprocess organization at a Brazilian food-processing factory. Finally, the author discusses boththe range and limits of such negotiations in the prevention of harm to workers’ health.Key words Negotiating; Accident Prevention; Social Psychology; Occupational Psychology; Oc-cupational Health

Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre a prevenção de agravosà saúde do trabalhador através do replanejamento do trabalho. Compreendendo o replaneja-mento como processo de negociação de escolhas organizacionais, apresenta as característicasdas negociações cotidianas processadas no chão de fábrica e relata, a título de exemplo, um casode negociação cotidiana que toma por objeto a organização do processo de trabalho da produ-ção fabril de uma indústria de alimentos. Por fim, discute os alcances e os limites de tais nego-ciações à luz da prevenção de agravos à saúde do trabalhador.Palavras-chave Negociação; Prevenção de Acidentes; Psicologia Social; Psicologia do Trabalho;Saúde Ocupacional

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Introdução

O replanejamento do trabalho é um tema quese insere num conjunto de preocupações rela-cionadas à saúde do trabalhador. Insere-se, es-pecialmente, naquele conjunto de estratégiasque visam prevenir determinados problemasde saúde, como por exemplo, os de saúde men-tal e psicossomáticos, as lesões por esforços re-petitivos, os acidentes de trabalho, como mos-tram diversas evidências obtidas por pesquisasempreendidas com o apoio de referenciais teó-rico-metodológicos os mais diversos, e focandoas diferentes categorias de trabalhadores (Bor-ges, 1997; Dejours et al., 1994; Kalimo et al.,1987; Karasek et al., 1981; Kristensen, 1995; Se-ligmann-Silva, 1986, 1994; Seligmann-Silva etal., 1985, 1986; Silva Filho & Jardim, 1997; Vezi-na, 1998).

A depender da forma como o processo detrabalho é organizado, o cotidiano no local detrabalho é configurado por contextos nos quaisos modos de se trabalhar, de se relacionar, delidar com o tempo, com o espaço e com os equi-pamentos são sabidamente danosos à saúde. Aprevenção dos problemas de saúde que encon-traria maior grau de resolução seria o replane-jamento da organização do processo de traba-lho, conforme argumentado por Gardell (1982a)e Spink (1991b).

Alguns exemplos mostram-nos que os tra-balhadores criam formas para resistir à racio-nalidade imposta à organização do trabalho talqual planejada pelo corpo gerencial, denun-ciando que os trabalhadores buscam constan-temente melhorar a sintonia entre eles e oscontextos de trabalho. Eles o fazem individuale coletivamente. Denunciam, com essas práti-cas, que a divisão entre planejadores e execu-tores é, de fato, uma ideologia. Podemos obser-var diversas manifestações que mostram a exis-tência de outras racionalidades, outros modosde conceber e fazer o trabalho nos limites da-dos pela tecnologia empregada e pela divisãode poderes no local de trabalho. Estudo clássi-co de Frederico (1979), descreve as formas atra-vés das quais operários de uma indústria auto-mobilística na região do ABCD paulista resis-tiam ativamente às pressões da organização doprocesso de trabalho, demonstrando a concep-ção de distintos modos de se combinar a di-mensão técnica e social do trabalho de modo adiminuir o ritmo, tais como a “operação-zêlo”,a “operação-acidente”, a “operação-soluço”,dentre outras. Menos visíveis do que aquelas“operações”, os trabalhadores constroem “açõesadaptativas” as quais têm por finalidade ade-quar os contextos de trabalho, no limite do

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possível, às características pessoais e aos limi-tes subjetivos (Sato, 1993).

Evidências sobre a adoção de outras racio-nalidades para organizar o trabalho já foramdemonstradas também pela psicologia indus-trial, quando estudos da Escola de RelaçõesHumanas observaram, nos anos 20 do séculoXX (Brown, 1972), que as pessoas concebemoutras formas de se trabalhar, atribuindo ou-tros significados às prescrições e criando laçosentre si. Tais vínculos são sustentados e susten-tam a criação de regras próprias, e norteiam arealização do trabalho segundo modos distin-tos daquele concebido pelo grupo gerencial.Por serem vínculos criados à revelia da iniciati-va gerencial, foram denominados de “grupos in-formais”. Também Daniellou et al. (1989), atra-vés das noções de “trabalho prescrito” e “traba-lho real”, reconhecem a existência de distintasrealidades: distintas organizações. Não raro, otrabalho real conduz não apenas a um maiorconforto aos trabalhadores, mas à economia eao aperfeiçoamento do processo e, por isso, con-templam os interesses gerenciais e do capital.

Os exemplos acima reafirmam que, apesarde o corpo gerencial conceber a atividade deplanejamento e concepção como procedimen-to de natureza estritamente técnica e conduzi-da unilateralmente por ele, no “chão de fábri-ca”, as pessoas, através do conhecimento cons-truído na prática, o replanejam para então exe-cutá-lo, tanto com a finalidade precípua deamenizar os esforços do trabalho, como paramanifestar a resistência política ao poder econtrole gerenciais ou ainda, para tornar factí-vel aquilo que foi planejado por outrem. Issosignifica que a condução de assuntos cotidia-nos é norteada pela interpretação de regras,como mostra Clegg (1992) a respeito da “regrado mau tempo”, empregada por trabalhadoresda construção civil. Todas essas evidências rea-firmam que a vida cotidiana – o chão de fábri-ca – é criada e recriada, é o lugar onde as pes-soas dão sentido aos fazeres, orientados pormétodos práticos, aquilo que é denominado “ra-ciocínio sociológico prático” (Garfinkel, 1984).O conjunto de preceitos e técnicas denomina-do modelo japonês, reconheceu e tem utiliza-do as outras racionalidades que explicam a di-ferença entre o prescrito e o real, e construiutécnicas com o intuito de aproveitar o conheci-mento dos trabalhadores visando aprimorar osprocessos de trabalho. Assim, as técnicas dekaisen e muda, os CCQs, são expressões orien-tais desse reconhecimento, substituindo as ob-soletas caixinhas de sugestões. É também nes-se sentido que vemos a adoção dos programasde empowerment.

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Considerando-se então que existem formasde organização do trabalho reconhecidamentedanosas à saúde, e que há uma busca contínuaem adotar outros modos de combinar os siste-mas técnico e social, guiados por outras racio-nalidades, o replanejamento seria o modo atra-vés do qual o cotidiano no local de trabalhopode ser publicamente modificado. Para pen-sar-se em como fazê-lo, é necessário que sejatrazida à luz a concepção sobre o que é o localde trabalho: quais são seus elementos, comoele é construído, qual o papel das pessoas; ouseja, o que é uma organização. A depender daconcepção adotada, identificaremos distintasmaneiras de pensar, como planejar/replanejaro trabalho.

Como nos fala Spink (1991a:23-24), “duran-te muito tempo, pelo menos até a década de 30,organização, enquanto palavra descritora, foiassociada à necessidade de dar ou colocar or-dem (ordenar) nas diversas ações que forma-vam os empreendimentos industrial, comercialou o serviço público. A arte de administrar de-senvolveu-se em torno das atividades de plane-jar, organizar, liderar e controlar. Conseqüente-mente, a organização de atividades faz parte doempreendimento ou serviço, embora não sejasua característica principal”. Outra concepçãode organização é proveniente, como continuanos falando Spink (1991a:24), da antropologia,para a qual, a palavra organização é utilizadade maneira genérica, “para referir-se a proces-sos sociais em agregações humanas, suas reli-giões, seus ritos, sua estrutura familiar e seumodo de vida. Ninguém duvidava que essesprocessos sociais tinham seu lado simbólico”.Vale dizer que esses processos sociais são in-formados também por interesses de diversasordens: do capital e do trabalho, das pessoas ede seu grupo social (como por exemplo, os reli-giosos e éticos), das tarefas, dos cargos e dossetores de trabalho, conforme uma das metá-foras descritas por Morgan (1986), para com-preender as organizações.

Na década de 50, consolida-se a criação docampo profissional gerencial, o que exige umespaço delimitado para o exercício ideologica-mente legitimado da atividade gerencial. Issotraz a necessidade de se criar um objeto parase estudar. “A palavra organização tem seu sig-nificado alterado. Agora passa a ser um objeto aser estudado, uma espécie de baú, dentro doqual comportamentos podem ser observados,crescendo a discussão sobre suas característicase seu gerenciamento” (Spink, 1991a:24).

Diferentes formas de conceber o que é or-ganização privilegiam diferentes atores, legiti-mam uns e não outros como os que têm a prer-

rogativa para pensá-la, estudá-la, planejá-la ereplanejá-la; enfim, construi-la e conduzir seusprocessos. Assim, vinculada à concepção da or-ganização como baú, tem-se aquela que pensaas pessoas apenas como uma parte de uma en-grenagem ou, no máximo, quando se vê a di-mensão humana da organização, busca-se pre-ver e normatizar o comportamento das pes-soas nas situações de trabalho, o que se susten-ta em modelos simplistas de homem. Dessaforma, o taylorismo e o fordismo – concepçõesessas ainda fortemente presentes nos locais detrabalho – institui e legitima como prerrogativade alguns, o papel de e o poder para planejarcomo coisas deverão ser produzidas e serviçosprestados, combinando-se tecnologia, valoressociais, preferências pessoais, etc. Diga-se depassagem que, apesar de toda a série de mu-danças organizacionais adotadas no âmbito doque chamamos de reestruturação produtiva, osprincípios da mecânica para planejar o que ostrabalhadores farão ainda estão fortementepresentes.

A cada uma dessas concepções de organi-zação aliam-se aquelas relativas ao planeja-mento/replanejamento do trabalho. De Lanza-ra (1985), extraímos duas perspectivas. Na pri-meira, temos que planejar o que as pessoas fa-rão, quais, como e quando serão feitas as ativi-dades é um procedimento de natureza estrita-mente técnico-funcional. Para a segunda, pla-nejar é uma atividade dialógico-discursiva, ouseja, é um processo de interação onde as pes-soas argumentam e contra-argumentam, de-fendendo e atacando as diferentes possibilida-des de realizar-se o trabalho, procedendo-se, as-sim, a “escolhas organizacionais” (Kelly, 1978),conceito esse trazido pela escola sociotécnica.Ao considerar-se que o planejamento/replane-jamento é fruto de escolhas, afasta-se a hipóte-se de que há um melhor modo de fazer, afir-mando-nos que não há apenas um racional aser adotado. Tais escolhas dão-se em contextospolíticos, pois interesses diversos estão em jo-go e buscam ser contemplados – interesses daprodução, dos trabalhadores, da gerência, dosproprietários, do capital e do trabalho. Dessaforma, podemos definir os processos de plane-jamento/replanejamento como processos ne-gociados de escolhas: processos de negociação.A negociação é definida como “processos dis-cursivos através dos quais se barganha o contro-le sobre a organização do processo de trabalho”(Sato, 1997:27).

Como diz Lanzara (1985:60-61): “projetar econstruir uma casa, por exemplo, pode ser umprocesso puramente técnico ou pode ser umprocesso em grande parte ritual: a estrutura de

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planejamento nos dois casos é completamentediferente, os elementos componentes são dife-rentes, os critérios de seleção são diferentes, asregras para a composição dos elementos e os sig-nificados atribuídos às regras e às ações são di-ferentes (...) O resultado do planejamento – acasa – pode ser visto como o produto de um pro-cesso sustentado por uma estrutura decisional,ou como fruto de uma análise funcional, ou co-mo um universo de elementos simbólicos evoca-dos e produzidos, compatíveis mediante um ce-rimonial conduzido coletivamente”.

Apesar de existirem concepções que argu-mentam em favor de que as organizações nãosão baús e sim processos de interação socialem contextos políticos e, portanto, que o pla-nejamento/replanejamento da organização dotrabalho não é uma atividade meramente téc-nica mas constitui-se em uma atividade de in-teração comunicativa (negociação), a herançatecnicista concebeu e conduziu a que o plane-jamento do trabalho fosse realizado baseadona primeira concepção: a de uma atividade es-tritamente técnica, sustentada pela ideologiagerencial, que a engenharia, a administração, apsicologia, dentre várias outras disciplinas têmcontribuído para sustentá-la. Tal ideologia de-fende que a atividade de planejar é uma prer-rogativa de determinados grupos dentro doslocais de trabalho, concebendo-a como ativi-dade neutra e entendendo que essa neutralida-de é possível pois está baseada na ciência. Ve-ja-se, por exemplo, a ideologia profissional quesustenta a trajetória da psicologia do trabalhoe organizacional, criticada por Prilleltensky(1994), ao concluir que ela tradicionalmentecaminha no mundo do trabalho a partir deduas premissas: a de que o mundo do trabalhoé desprovido de conflitos e de que a psicologiaé ciência, e que a ciência é bom para todos, in-distintamente.

Bem, mas o ouvinte atento imediatamentelançaria a pergunta: mas como é possível con-ceber o planejamento/replanejamento comoprocesso negociado, como uma prática passí-vel de efetivação nas empresas privadas noBrasil, uma vez que há fortes evidências de quea assimetria de poder nesses locais de trabalhoé fator impeditivo para a democratização da fa-la? Ou, em outras palavras: como é possívelconceber a negociação quando o local de tra-balho é um espaço privado e, como tal, impedeque argumentos sejam validados por critériosde justiça, veracidade e sinceridade (Haber-mas, 1987a, 1987b) e não pela coação?

Essas questões nos conduzem à tematiza-ção sobre o que é entendido por negociação.Em geral, quando pensamos em negociação, a

primeira imagem que nos toma é a de repre-sentantes dos trabalhadores e dos patrões sen-tados à mesa, negociando. Em geral, é o mode-lo da negociação coletiva que temos em men-te. Nele temos os representantes claramentedefinidos (eleitos ou indicados), buscando che-gar a acordos válidos para uma empresa, parauma categoria profissional ou para diversas ca-tegorias filiadas a uma central sindical. Nessemodelo, teríamos condições de negociação ape-nas quando os trabalhadores conseguissem teruma organização política forte e os órgãos derepresentação tivessem, de fato, representati-vidade. No Brasil, sabemos, os processos nego-ciados de celebração de acordos é bastante res-trito, pois temos uma história de autoritarismopolítico e uma legislação trabalhista de fortecunho paternalista, onde tudo se resolve na Jus-tiça do Trabalho (Rodrigues, 1974; Simão, 1981).Sabemos também da dificuldade em construiras Organizações no Local de Trabalho (OLTs)(Rodrigues, 1991, 1994), bem como em fazer-mos das Comissões Internas de Prevenção deAcidentes (CIPAs) órgãos que, de fato, tenhamuma atuação que leve em conta os interessesdos trabalhadores. O próprio conceito de tra-balho está fortemente impregnado pela nossaherança escravagista. Como diz Ianni (1994:57-58), “os séculos de trabalho escravizado produ-ziram todo um universo de valores, padrões,idéias, doutrinas, modos de ser, pensar e agir”.Além disso, o nosso passado colonialista e suaversão recente, o imperialismo, estão presen-tes no nosso cotidiano.

Mas é também Otávio Ianni, quem reconhe-ce que o Brasil é um mapa arqueológico, ondeo passado, o presente e o futuro convivem semproblemas. “O presente capitalista, industriali-zado, urbanizado, convive com vários momen-tos pretéritos. Formas de vida e trabalho díspa-res aglutinam-se em um todo insólito. A circu-lação simples, a circulação mercantil e a capi-talista articulam-se em um todo no qual co-manda a reprodução ampliada do capital, emescala internacional” (Ianni, 1994:60-61). Veja-mos um exemplo desse mapa arqueológico,contado por Caldeira (1995): o Barão de Mauá,ainda no Brasil Império, onde o sistema de tra-balho escravo era a relação de trabalho em vo-ga, tivera em suas empresas trabalhadores li-vres e adotara o sistema de administração par-ticipativa e a distribuição de lucros, que hoje,no Brasil, vemos como objeto de debate entreos trabalhadores e empresários.

Ainda que não tenhamos uma história dotrabalho no Brasil, em que a interlocução dire-ta entre trabalhadores e patrões seja o modo dese relacionar, barganhar interesses e conquis-

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tar direitos, o reconhecimento desse mapa ar-queológico conduz-nos a olhar as condições depossibilidade para desenvolver-se processos denegociação a partir de outros olhos. São tam-bém com outros olhos que, advogamos, deve-mos ver o local de trabalho: olhos que conce-bam a existência de pessoas e, como tal, bus-cam dar sentido ao seu cotidiano, construin-do-o de modo conflituoso e cooperativo; pes-soas que articulam a vida fora do local de tra-balho com a vida no trabalho, lidam com asexigências postas pelas condições e pela orga-nização do trabalho, enfim, conduzem proces-sos sociais, constroem modos de vida. Assim,apesar de termos muitas vezes toda uma cate-goria profissional submetida a exigências co-muns em termos de organização do processode trabalho, quando nos aproximamos dos lo-cais onde trabalham vemos que cada local éum mundo singular, com seus problemas par-ticulares, com mecanismos que fazem com queuma mesma tecnologia influa diferentementepois são pessoas diferentes, são relações inter-pessoais desigualmente construídas, são dife-rentes regras que vigoram.

Astúcia e ambigüidade: característicasdas negociações cotidianas

É justamente na particularidade do universode cada local de trabalho que são conduzidasoutras formas de negociação qualificadas decotidianas (Sato, 1997). São micronegociações,praticamente invisíveis ao visitante esporádicoou menos atento. São práticas que visam o al-cance de acordos – apesar da reconhecida assi-metria de poder e controle – e que constroemoutros modos de se realizar o trabalho, configu-rando-se como processos de replanejamentonegociados. Elas ocorrem independente da açãopolítica coletiva que pressuponha uma estraté-gia articulada, e da existência de sindicatoscombativos ou de OLTs e CIPAs também com-bativas. São conduzidas por pessoas comuns.

Se observarmos atenta e pacientemente odia-a-dia dos locais de trabalho, veremos quehá uma série de imprevistos, de novidades queirrompem em meio ao seu funcionamento re-petitivo, mesmo naqueles processos onde asatividades também são repetitivas, realizadaspor trabalhadores fixos em seus postos de tra-balho, com ciclos extremamente curtos, como,por exemplo, as atividades de embalagem eempacotamento. Esse funcionamento expressaque, cotidianamente, uma série de “situaçõesproblemáticas” têm vez no local de trabalho edevem ser equacionadas e resolvidas. Essa de-

nominação – situações problemáticas – desig-na situações previstas ou não, que devem serresolvidas, pois implicam em problemas. Sãoproblemáticas porque afetam interesses de al-guma ordem e de alguém. Por exemplo: doen-ças do trabalho, esforço demasiado, afastamen-to de trabalhadores, perda de material, retra-balho, depreciação da qualidade do produto.Essas situações são acontecimentos que ape-nas ganham significado quando postos em re-lação a interesses. As doenças do trabalho sãofatos que ganham o status de situação proble-mática quando postas em relação aos interes-ses dos trabalhadores. Do mesmo modo, a per-da de material é um tipo de acontecimento quese torna uma situação problemática quandoposta em relação aos interesses dos proprietá-rios e acionistas.

A resolução negociada dessas situações dá-se mediante a construção de significados quepossibilitam, digamos assim, “iniciar a conver-sa” pois que a negociação só se torna possívelquando as partes em conflito conseguem mini-mamente vislumbrar a existência das diferen-ças; olhar, ainda que parcialmente, a perspec-tiva, os problemas e os interesses alheios. É es-sa possibilidade de “início de conversa” quedenominamos de “base simbólica” (Sato, 1997),ou seja, o requisito simbólico para que se inicieo processo de negociação. Certamente, alémdesse requisito para que a negociação se pro-cesse, há aquele de ordem política: o poder debarganha.

Foi através de situações problemáticas quepudemos acessar e caracterizar o requisitosimbólico para a negociação, assim definido: abase simbólica é o conjunto de significados po-lissêmicos, estruturados pelo conflito de inte-resses e dinamizado pelos processos de “com-fusão” de interesses e de “deslocamento” deposições. Explicando: o conflito de interesses érequisito necessário para que sejam observa-dos os processos de negociação, daí porque eleconstituir a estrutura do requisito simbólico.Isso porque em não havendo diferenças de in-teresses que, em relação, configuram uma si-tuação de conflito, não há motivo para nego-ciar. Por sua vez, os dois processos que dinami-zam a base simbólica demonstram como nodia-a-dia a relação de interesses é complexa.Em primeiro lugar porque há uma infinidadede interesses presentes. Em segundo porque,ainda que possamos ver e distinguir a plurali-dade de interesses, o mais comum é que eles seapresentem misturados, muitas vezes escamo-teados, mimetizados, daí porque denomina-mos um dos processos de “com-fusão” de inte-resses, pois um mesmo acontecimento pode,

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simultaneamente, ser uma situação problemá-tica para a gerência, para os acionistas, para osconsumidores e para os trabalhadores. Esseprocesso separa interesses que deveriam estarjuntos (como os dos trabalhadores) e funde in-teresses que deveriam estar separados (comoos dos trabalhadores e os da gerência). Vejamosum exemplo: a fabricação de produtos fora dasespecificações pode atingir os interesses daprodução, mas pode significar, simultaneamen-te, maior volume de trabalho para os operado-res pois deverão acertar o funcionamento damáquina. De outro lado, a alta prevalência dedoenças do trabalho representa, para os traba-lhadores, o prejuízo para a saúde e para a ca-pacidade de trabalho, mas pode, simultanea-mente, representar para a gerência e para osproprietários, o comprometimento da produti-vidade e da qualidade.

O segundo processo – “deslocamento” deposições – demonstra que, apesar de existiremposições definidas no local de trabalho, posi-ções essas que expressam e defendem os inte-resses, constantemente as pessoas mudam deposição. As posições são dadas e assumidas pe-los papéis de trabalho, são dadas pela divisãode diferentes setores e, também, por posicio-namentos pessoais e de classe social. E essamudança é possibilitada também pela própriaorganização do processo de trabalho, que criapostos e tarefas nos quais interesses estão em-butidos. Esse “deslocamento” possibilita que aspessoas se aproximem do lugar ocupado pelasoutras e, assim, possam vislumbrar interessesdiferentes e opostos. Esse processo cria condi-ções para que observemos situações inusitadaspois, se num primeiro momento uma determi-nada pessoa, assumindo um determinado pa-pel de trabalho defende um interesse, em ou-tro, por mudar de posição, passa a atacar essemesmo interesse.

A ambigüidade da base simbólica criadapor esses dois processos explica avaliações deque há pessoas que têm duas caras. Como nosfala Chaui (1993:121), a ambigüidade, a qualdefine que algo é “isto e aquilo ao mesmo tem-po”, possibilita tematizar o atraso e a emanci-pação, a capacidade de se conformar ao resistire de resistir ao se conformar. Por isso, o caráterambíguo da base simbólica remete tanto àspossibilidades de negociação como ao acirra-mento dos conflitos.

Se de um lado essa ambigüidade é um ele-mento que dificulta a clara conformação de in-teresses e, portanto, do claro posicionamentodas pessoas, por outro, é ela que possibilitaprocessar negociações no local de trabalho emcontextos de poder e controle assimétricos.

Como dissemos anteriormente, as negocia-ções cotidianas são quase invisíveis, observa-das e reconhecidas quando o olhar atento con-segue ver que os acontecimentos no local detrabalho têm significados e que as pessoas bus-cam lidar com as situações que se apresentamcomo problemáticas. Esses processos de nego-ciação foram qualificados como astuciosos poradotarem estratégias e táticas de modo a que ofraco possa existir frente ao forte; por exemplo,reconhecendo a existência de um discurso ge-rencial, e aproveitando-se dele. Criam-se meca-nismos de resistência no seio do conformismo(Chaui, 1993) ou, como nos fala Certeau (1994),criam-se táticas de modo que o colonizado es-cape ao poder do colonizador sem, no entanto,deixá-lo.

A astúcia reside na capacidade de aprovei-tar-se da ambigüidade das situações proble-máticas, da “com-fusão” de interesses e do co-nhecimento possibilitado pelo “deslocamento”de posições. É através desse deslocamento quesão extraídos argumentos utilizando-se da lin-guagem permitida pois, como disse um traba-lhador, “aqui todo mundo tem que falar a mes-ma língua”. A astúcia leva alguns trabalhadoresa esconderem suas reivindicações em “suges-tões de melhoria”, um claro eufemismo, mas quesó assim interesses opostos aos da gerência edo capital podem ter passagem, serem expres-sos e ouvidos. Só através do controle da expres-são do mundo subjetivo (vivências e sentimen-tos), interesses pessoais ou do grupo de operá-rios podem ser apresentados (Goffman, 1985).A apresentação pública, verbal e não-verbal,dá-se de modo a esconder a existência de con-flitos de interesse.

Um exemplo desses mecanismos astucio-sos é o uso do discurso da “qualidade”. Uma pri-meira aproximação com os discursos sobre a“qualidade” veiculados na fábrica, dá-nos a im-pressão de que a ideologia gerencial é total-mente eficaz. A princípio, todos, indistintamen-te, referem-se à necessidade de se trabalharcom qualidade. Uma primeira conclusão a quesomos levados é a de que os trabalhadores es-tão em comunhão com os interesses da gerên-cia, dos proprietários e dos consumidores. Po-rém, ao nos afastarmos desse núcleo vemos apolissemia que a noção de “qualidade” conser-va. Ela possibilita que diversos argumentos se-jam ancorados nesse núcleo, levando a defen-der interesses os mais diversos e até mesmoopostos. Assim, para alguns, trabalhar com qua-lidade implica na economia de tempo, de pes-soas e de matérias-primas, enquanto para ou-tros significa diminuir o ritmo de funciona-mento das máquinas.

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A linha de cima e a linha de baixo: um caso de negociação cotidiana

Um exemplo de como se processam essas ne-gociações cotidianas, sustentadas pela astúciadas táticas e pela ambigüidade do significadodos acontecimentos, nos vem de uma fábricade produtos alimentícios. Trata-se de um casoenvolvendo duas linhas de produção: (1) a depreparação de embalagens (impressão a jatode tinta) e (2) a de envasamento de produto. Aprimeira linha alimenta a segunda. Espacial-mente, as linhas não estão contíguas; a primei-ra está alocada no subsolo (a linha de baixo) ea segunda no térreo (a linha de cima). Os potesseparados e já impressos, são transportadospor elevador e distribuídos pelas diversas li-nhas de envasamento de produtos. O transpor-te é feito pelos operários que trabalham na li-nha de impressão. No subsolo são realizadastodas as tarefas de preparação de embalagense no térreo estão as linhas que dão identidadeà fábrica e ao produto.

O caso de negociação cotidiana tem iníciocom a insatisfação dos operários da linha depreparação de embalagens, e levou ao questio-namento da delimitação de papéis e de frontei-ras entre as duas linhas de produção. A primei-ra linha, a linha de baixo, operada pelos meni-nos (operários não qualificados) imprime a da-ta de validade nos potes a serem envasados pe-la segunda linha, a linha de cima, onde o pro-duto ganha a sua identidade pois recebe a em-balagem e os rótulos com os símbolos da em-presa. É na linha de cima que estão os traba-lhadores qualificados, os operadores de má-quina, que controlam o ritmo das máquinas, aqualidade do produto e coordenam o trabalhode vários operários não qualificados, em geralmulheres que envasam, embalam e empaco-tam os produtos. Diga-se de passagem que as“linhas de cima” estão situadas no local ondeas visitas são levadas à fábrica, pois é lá que osprodutos ganham a sua identidade, o rótulocom o nome e o logotipo da empresa. É lá quese reconhecem os produtos da empresa vendi-dos ao consumidor e que a empresa se reco-nhece nos produtos fabricados.

Tudo tem início com o seguinte fato: parafins de segurança e controle, deve haver sincro-nia entre o horário de envasamento dos produ-tos e aquele impresso nos vasilhames (horário,data, número de lote e de unidade fabril).Quando isso não ocorre, os dados já impressosdevem ser apagados a fim de reaproveitar asembalagens de plástico. Trata-se de um traba-lho manual, onde os dados são apagados, vasi-lhame por vasilhame. E esse retrabalho era fei-

to pelos meninos. Um desses meninos, Josildo,descontente com esse procedimento – pois is-so significava maior volume de trabalho e deuma atividade considerada ruim – disse: “eusou contratado para carimbar e não para apa-gar!” Essa frase denuncia que a resolução dadapara resolver a situação problemática para agerência e para os operadores (falta de sincro-nia entre horário de envasamento e aquele im-presso no pote), conduziu a uma situação pro-blemática para os meninos (apagar a impres-são dos potes). Essa frase foi o primeiro argu-mento que levou Josildo e seus colegas de linhaa buscarem mecanismos para equacionar e re-solver essa situação de um modo diferente, afim de levar a outras “escolhas organizacio-nais” (Kelly, 1978).

O primeiro passo adotado pelos meninosfoi conhecer o processo de trabalho, visandoidentificar como aquela situação problemáticapoderia ser assim também configurada para osoperários da linha de cima. Aqui operou-se oprocesso de “deslocamento” de posições, poisassim puderam colocar-se no lugar dos opera-dores de máquina e dos embaladores e emba-ladoras. Observaram então que, em não haven-do coincidência entre o horário carimbado nospotes e o que efetivamente o produto fora fa-bricado, os operadores deveriam preencherum relatório acusando esse fato, o que poderiadepor contra eles, uma vez que esse procedi-mento poderia ser interpretado como falta decompetência ou de esforço por parte deles. Poroutro lado, quando as máquinas da linha de ci-ma paravam, as embaladoras – as mulheres –ficavam sem atividade temporariamente, à es-pera da reativação da máquina. Na avaliaçãodos meninos as “mulheres ficam de braços cru-zados”. Observaram ainda que o risco de degra-dação da qualidade do produto aumentavaquando era envasado em vasilhames excessiva-mente manuseados (carimbados e apagados),aumentando a probabilidade de ocorrência daperda de material ou de retrabalho, o que nãoseria bom nem para os operadores, nem para ossupervisores, líderes e gerente de produção.

Com essas informações, angariadas atravésdo processo de “deslocamento” de posições, osmeninos trataram de construir argumentos efazer com que essa situação – apagar o carim-bo dos vasilhames – fosse problemática tam-bém para outras pessoas envolvidas na situa-ção (supervisores, líderes, operadores e para as“mulheres”). Tratou-se, para isso, de construirmecanismos para que outros interesses fossemtambém atingidos, criando e aproveitando-seda “com-fusão” de interesses. Com essas infor-mações, os meninos começaram a se recusar a

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apagar o carimbo dos vasilhames ou, quandoapagar era inevitável, começaram a convocaras “mulheres” que ficavam de “braços cruza-dos” a também fazê-lo. Recorreram ao supervi-sor de produção para exigir respeito pela ativi-dade deles, sugerindo sua intermediação paranegociar regras de trabalho com os operadoresde máquinas. Os meninos requeriam um pro-cedimento aparentemente simples: o de quefossem avisados quando a máquina da linha decima fosse parada. Apenas aparentemente ésimples porque, na verdade, essa alteração deprocedimento demandou a mudança de statusda linha de cima em relação à linha de baixo e,também, mudança de status dos meninos emrelação aos operadores de máquina. Os meni-nos, na verdade, reclamavam que a linha debaixo fosse considerada em sua singularidade– diferente da linha de cima, com pessoas dife-rentes que têm interesses próprios – procuran-do desfazer a imagem de que a linha de baixo éapenas um prolongamento da linha de cima ede que, portanto, os interesses são idênticos.Ao final desse processo, a mudança observadanão exigiu a adoção ou criação de tecnologiassofisticadas, mas apenas a preocupação dosoperadores em avisar os meninos sobre o an-damento da linha de cima, através de um tele-fonema ou de um grito pelo elevador de trans-porte de embalagens. Delimitaram-se frontei-ras entre linhas, evitando-se o desconforto deterem interesses diferentes em “com-fusão”.

Refletindo sobre a prevenção em saúde do trabalhador

Esse processo de replanejamento negociado –micronegociação – questionou uma escolhaorganizacional até então adotada que estavabaseada em regras, valores, preceitos e precon-ceitos que alocavam, meninos, mulheres, ope-radores, linha de cima e linha de baixo, em re-giões distintas, hierárquicas, no grande mapasimbólico da fábrica, mostrando-nos que o sim-bólico não se constitui em um mero acessóriona organização material das pessoas e coisasno trabalho, mas é a própria realidade. Tal pro-cesso questionou também a ideologia geren-cial, desafiando os lugares de competência tra-dicionalmente atribuídos aos gerentes, técni-cos, supervisores, operários denominados de“qualificados” e de “não qualificados” (Attewell,1990). Demonstrou o desenvolvimento de umaatividade de pesquisa aplicada realizada pelosmeninos, onde as alternativas para a mudançalevaram em consideração as exigências técni-cas e as sociais.

Cabe lembrar que esse processo foi condu-zido sem que houvesse a concorrência de téc-nicos, pesquisadores ou assessores especialis-tas em organização do processo de trabalho,em mudança organizacional ou em saúde dotrabalhador.

Essa negociação cotidiana representou umamudança qualitativa em termos de aumentode controle dos trabalhadores da linha de ca-rimbo de vasilhames, ainda que, para o estran-geiro, nenhuma mudança visível, palpável edigna de nota pusesse ser vista. Apesar da invi-sibilidade para o estrangeiro, essa mudançaobrigou a que se reconhecesse que linhas dife-rentes têm interesses e ritmos diferentes, quepessoas diferentes vêem as situações de modosdiferentes e que têm interesses pessoais, so-ciais e de trabalho também diferentes. Com es-sa mudança que levou à diminuição do volumede trabalho, os meninos puderam distribuir ebalancear o volume de atividades de modomais adequado aos seus interesses e limites,extinguindo a tarefa de apagar carimbos e ten-do maior possibilidade de programar o traba-lho em função do funcionamento real da linhade cima. Com isso, aumentou-se a possibilida-de de ter-se intervalos maiores para o almoçoou para o lanche, criando-se, ao mesmo tempo,condições para negociação intralinha (quandofazer pausas, quando imprimir, possibilitadapelo fato de a linha de baixo ser acionada pelosoperários). Muitas outras negociações cotidia-nas ocorrem no local de trabalho e, assim co-mo essa, são pouco evidentes pois poucas alte-rações trazem para a feição das linhas. Porém,se perguntarmos aos meninos se isso represen-tou uma mudança significativa em suas condi-ções de trabalho, veremos que sim. Também de-vemos referir que existem tentativas frustradasde replanejamento negociado, e que há muitasimposições de mudança por parte da gerência,expressão do mapa arqueológico (Ianni, 1994).

Esse caso de replanejamento negociado dotrabalho, conduzido pelos operários das duaslinhas nos faz pensar algumas coisas sobre pla-nejamento/replanejamento, sobre negociaçãoe organizações.

Muitas vezes pensamos que mudanças naorganização do processo de trabalho – quer es-tejam elas voltadas para a prevenção de pro-blemas de saúde ou melhoria da produtividadee qualidade – é um processo que mudará a or-ganização como um todo. Esse caso nos mostrajustamente o contrário. O replanejamento ne-gociado do trabalho deu-se numa parte (Spink,1991a), entre duas linhas, envolvendo algumaspessoas, o que corrobora a concepção de queplanejamento/replanejamento do trabalho é

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também um processo de interação social e nãoapenas aplicação de técnicas (P. Spink, comu-nicação pessoal).

Devemos ter em mente que muitos dos pro-cessos de replanejamento do trabalho que vi-sam melhorar as condições de saúde, podem,simultaneamente, melhorar a qualidade do pro-cesso (evitar retrabalho e perda de material) ea qualidade do produto, graças à polissemiadas situações problemáticas, devido, principal-mente, ao processo de “com-fusão” de interes-ses. Nesse sentido, consideramos importantereconhecer que, apesar de termos, no local detrabalho, interesses opostos e contraditórios,eles também se relacionam de maneira surpre-endente e imprevisível, nos deixando confusos.

Apesar de o poder e o controle estarem, nolocal de trabalho, claramente em favor do cor-po gerencial e do capital, astuciosamente, ostrabalhadores criam mecanismos para que seprocessem negociações. Nesse sentido, muitoembora não seja observada uma realidade naqual a ação comunicativa se dê, pois que nãose encontra um contexto político de democra-cia radical (Habermas, 1987a, 1987b), argu-mentos que levem em conta o mundo das coi-sas, o das normas e o mundo subjetivo, encon-tram espaço de expressão através da ação dra-matúrgica (Habermas, 1987a, 1987b). Assim, o“espaço público”, igualmente defendido porDejours (1998) como aquele em que, tambémno local de trabalho, as diversas opiniões po-dem ser confrontadas, é arrancado à força do“espaço privado” da fábrica. Claro deve estarque por esses motivos, há limites no alcancedessas negociações. São os acordos possíveis,mas reconhecemos também que elas têm al-cances consideráveis, caso tomemos como re-ferência o ponto de vista de quem está no localde trabalho e não o nosso, que estamos de fora,como espectadores críticos, no mais das vezesesperando grandes mudanças – no todo – pron-tamente visíveis. Consideramos que não pode-mos ter nem um olhar ingênuo – que conside-ra resolvido o problema do planejamento/re-planejamento da organização do processo detrabalho e da prevenção em saúde do trabalha-dor através dessas negociações cotidianas – enem um olhar arrogante – que apenas vê comomudanças aquelas que assim consideremos.

Entendemos, seguindo Gardell (1982b), queo replanejamento do trabalho visando a pro-moção da saúde, deverá ser conduzido em múl-tiplos níveis – o das centrais sindicais, dos sin-dicatos, das OLTs e CIPAs e dos trabalhadorescomuns – aproveitando-se da força que cadaum deles tem. Como diz Myiamoto (1992:53-54), um samurai heterodoxo que viveu no sé-

culo XVII: “o fogo pode ser grande ou pequeno,mas possui sempre extraordinária força detransformação. O mesmo se sucede com as ba-talhas, cujos mandamentos são iguais tanto nocombate de um contra um como nos confrontosde exércitos de dez mil homens de cada lado.Qualquer situação precisa ser considerada tan-to sob a ótica do conjunto (o grande) quanto dospormenores (o pequeno). Apreende-se o conjun-to facilmente, enquanto os detalhes só podemser percebidos por um olho muito atento”.

São, as organizações, processos de intera-ção social onde pessoas, também investidas depapéis de trabalho, procuram fazer valer seusinteresses, seus valores e crenças; onde, paradecifrá-la, devemos ter, sobretudo, a certeza deque no local de trabalho, apesar de o corpo ge-rencial e o capital buscarem “recursos huma-nos”, as pessoas continuam sendo pessoas,apesar das exigências das condições de traba-lho e de processos de trabalho organizados pa-ra aqueles “recursos”.

No que se refere especificamente à saúdedo trabalhador, reconhecer a existência dasmicronegociações pode ser relevante no senti-do de que, para além de os trabalhadores se-rem portadores do conhecimento/subjetivida-de operária, conforme tematizado por Oddoneet al. (1986), garantindo-lhes o papel de sujei-tos na definição do que deve ser objeto da me-lhoria das condições de trabalho e saúde, elessão atores que conduzem mudanças, no limitedo possível, visando a preservação da saúde. Oconhecimento/subjetividade operária e as mi-cronegociações são fenômenos da mesma or-dem: os trabalhadores são construtores de co-nhecimento, articulam-se de modo conflituosoe cooperativo, e criam modos de vida singula-res nos locais de trabalho. A construção do co-nhecimento prático e condução das microne-gociações são empreendidos mediante pesqui-sas aplicadas, realizadas pelos trabalhadores.Em nosso entender, a riqueza desses fenôme-nos para a área da saúde do trabalhador resideno fato de que a prática dos profissionais quenela atuam, será a de interlocutores que ve-nham a facilitar o processamento do planeja-mento/replanejamento do trabalho, concebidacomo atividade dialógico-discursiva (Lanzara,1985), potencializando e ampliando as mudan-ças de organização do processo de trabalho,conduzidas sempre, a partir do grupo primáriode trabalho.

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FilhoSaúde do trabalhador como liberdade

Com freqüência as descrições de intervençõesna área de saúde do trabalhador e as análisesdas relações trabalho-saúde, restringem o en-caminhamento de soluções dos agravos à saú-de relacionados ao trabalho, à negociação co-letiva, envolvendo trabalhadores, empresáriose eventualmente representantes governamen-tais. Por suposto, na instância da negociaçãocoletiva os riscos ocupacionais são equaciona-dos no seu conjunto traduzindo-se num maiorimpacto sobre a saúde. A discussão das nego-ciações cotidianas no trabalho, tema pautadopor Leny Sato, é oportuna por propor um outrofoco de atenção para os profissionais envolvi-dos nesta área. É, também, uma reflexão emtempo frente às mudanças que estão ocorren-do nas relações de trabalho contemporâneas.

As negociações cotidianas colocam-se nadimensão das liberdades individuais, que pro-porcionam a contínua definição e redefiniçãode múltiplos coletivos, particulares, nos espa-ços de trabalho. A concepção de replanejamen-to do trabalho, como apresentada pela autora,significa os empregados exercerem maior con-trole e autonomia sobre sua vida no exercíciode seu ofício, com o objetivo de preservar seubem-estar e sua saúde. Como conseqüência,essa atitude também estimularia a produtivi-dade pelo aperfeiçoamento dos processos detrabalho e redução de custos.

Leny Sato fundamenta teoricamente os ele-mentos que regem as negociações cotidianas,e fixa sua análise no contraste de interessesconflitantes entre trabalhadores e gerênciaempresarial, e apresenta um exemplo de apli-cação de relações cotidianas pelos trabalhado-res de uma indústria de alimentos. É uma des-crição bastante ilustrativa do potencial criativogerado pelo exercício da liberdade, levando àracionalização do trabalho e maior segurançapara os trabalhadores. Embora algumas teoriasrecentes das relações de trabalho incorporemna sua formulação a criatividade latente dasnegociações cotidianas, entre os empresáriosnão é unânime a aceitação de que esta formade liberdade deva ser estimulada a se manifes-tar e de que seja benéfica para a produção. É,habitualmente, refutada por um raciocínio con-

Debate sobre o artigo de Leny SatoDebate on the paper by Leny Sato

Departamento de Epidemiologia,Faculdade de SaúdePública, Universidade de São Paulo,São Paulo, Brasil

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trário, o papel desagregador que poderia vir aexercer.

A liberdade individual é indispensável pa-ra que os indivíduos tenham livre expressão epossam agir de forma mais criativa. AmartyaSen (2000), refere-se a um conceito de liberda-de muito elementar e com expressivo significa-do para a saúde do trabalhador: a capacidadede sobreviver em vez de sucumbir à morte pre-matura. Salienta aquele autor que esta é obvia-mente uma forma de liberdade substancial,embora assinale que o leque de liberdades re-levantes para o indivíduo pode ser muito am-plo, a exemplo da liberdade de escolha do em-prego. A questão de fato é a dificuldade de tra-tar a liberdade individual como um modelo“operacional” para equacionar os problemasde saúde nos ambientes de trabalho, cuja lógi-ca de organização encontra-se definida pelosdeterminantes da produção capitalista. Mas sea negociação coletiva permite estabelecer pla-nos gerais de proteção à saúde, é o exercício co-tidiano da liberdade que permitirá ao trabalha-dor construir o seu modo de vida no trabalho.

Nas palavras de Leny Sato, as negociaçõescotidianas são virtualmente invisíveis para oobservador apressado. É uma classificação quecomporta grande parte dos profissionais liga-dos à saúde do trabalhador (mas, certamente,não o corpo gerencial das empresas), dadas àintensa demanda aportada nos serviços, atua-ções com ênfase em abordagens de cunho co-letivo e, sobretudo, a característica de visitan-tes esporádicos aos locais de trabalho. Essasintervenções mais abrangentes, fundamentais,estarão sempre submetidas às particularidadesdo trabalho como exercido na rotina diária, nocontexto da política empresarial e de interaçãosocial dos trabalhadores entre si e destes com agerência. Essas pequenas intervenções que sematerializam na microfísica do trabalho, cria-tivas na estratégia de sobrevivência, estão forado controle dos técnicos.

A liberdade participativa no mundo do tra-balho requer um grau básico de instrução e oconhecimento sobre organização e processosde produção. Portanto, uma trajetória contínuaé distinguível na obtenção da saúde e bem-es-tar no trabalho, e no seu curso, conflitos serãogerados, devendo-se considerar aqui a especi-ficidade do fenômeno que a autora denomina“deslocamento de posições”. Muitas vezes ostrabalhadores impõem mudanças à dinâmicaplanejada pela gerência, embora isso possa serinterpretado pelos empresários como umaameaça à ordem empresarial. Por outro lado,os trabalhadores podem opor resistência aos“especialistas em saúde ocupacional”, simples-

mente porque avaliam que seguir suas orienta-ções, em princípio favoráveis à sua saúde, emdeterminadas conjunturas de política nacionalou da própria empresa pode significar a perdado emprego fato que, com lucidez, julgam maisgrave do que o risco de doenças ou acidentesenquanto evento competitivo para a sua sobre-vivência e de sua família. Deduz-se, portanto,que a conquista da saúde nos locais de traba-lho não se dará por meio de tecnicalidades im-postas interna ou externamente. Agir dentrodas regras democráticas, ouvindo, orientando,esclarecendo e negociando com os trabalhado-res é parte crucial do processo.

A tendência às economias e sociedades aber-tas como efeito da globalização traz, ao lado denovas oportunidades de negócios e benefíciospara os consumidores, numerosos problemaspara o trabalho, cuja regulamentação torna-secrescentemente precária. Os empregos infor-mais, em geral, são menos seguros e incorpo-ram menos vantagens sociais, aumentando asensação de insegurança dos trabalhadores(Somavia, 1999). Nesse contexto, a preservaçãoda saúde dos trabalhadores torna-se um objetomais distante de abordagem pelos “especialis-tas em saúde ocupacional”. A prevenção deagravos à saúde do trabalhador por meio do re-planejamento do trabalho, via negociações co-tidianas, reconduz ao trabalhador a gerênciade sua saúde. A questão da discussão sobresaúde do trabalhador e participação social écentral para a elaboração de políticas em estru-turas democráticas. Em uma perspectiva orien-tada para a liberdade, as liberdades participati-vas devem, necessariamente, ser parte dasanálises de políticas em saúde do trabalhador.É esta a essência da argumentação de Leny Sa-to. Pelo menos, é esta a minha leitura de suasidéias.

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Departamento de Saúde Comunitária,Faculdade de Medicina,Universidade Federal doCeará, Fortaleza, Brasil

Raquel Rigotto Um outro trabalho é possível !

Muitas vezes as análises dos macroprocessosda Globalização e da Reestruturação Produti-va, em seus impactos sobre o mundo do traba-lho, nos conduzem – com razão – ao reconhe-cimento da enorme concentração de capital ede poder em curso no sistema mundial de acu-mulação, da fragmentação da classe trabalha-dora e do enfraquecimento do movimento sin-dical, da dificuldade em alimentar os laços desolidariedade, e apontam como perspectiva aemergência e o vigor de movimentos da socie-dade civil também mundializados.

Sem perder de vista esse contexto, Leny Sa-to mergulha no cotidiano dos processos de tra-balho e nos brinda com o registro de fendas,brechas, fissuras e nuances, identificadas a par-tir de um olhar atento e sensível no plano daempiria. (Como é bom quando alguém vem nosmostrar que não “está tudo dominado”, que aspessoas continuam querendo dar sentido aoseu trabalho cotidiano e à sua existência!). Umolhar coerentemente articulado às construçõesteóricas em seu campo de saber, e também en-riquecido por uma visão de mundo que incor-pora as ciências sociais e políticas, a antropo-logia, entre outras disciplinas, numa trajetóriacomplexa movida pelo desejo de contribuirnum problema também complexo: a saúde dostrabalhadores.

Conduzida por seu olhar sobre as negocia-ções cotidianas, pude revisitar depoimentoscolhidos de trabalhadores nas indústrias re-cém-migradas para o Ceará, e verificar que elastambém ocorrem aqui: “Quando eu abria ostambores de químico eu sentia aquele cheiroforte, inalava tudo. Aquilo é prejudicial à saú-de, medo eu tinha... A gente procurava evitar,sabia que podia dar câncer... Nós combináva-mos revezar entre a gente mesmo, cada dia qua-tro fazia uma coisa, senão viciava. Se eu ficassesó no solvente, acostumava com aquilo e nãoqueria mais sair dali. Quando eu trabalhava lá,sentia que a minha vida estava diminuindo,por causa dos químicos...” (Trabalhador da in-dústria têxtil em Horizonte, Ceará) (I. Rosa & R.Rigotto, comunicação pessoal).

A aproximação da dimensão simbólica danegociação é particularmente instigante. Se aorganização do trabalho é, de fato, uma ideolo-gia – “sentido a serviço do poder”, como pro-põe Thompson (1995) – ela precisa ser com-preendida na intimidade do contexto social es-pecífico em que é construída e aplicada. Alémdisso, as formas simbólicas produzidas e im-

postas não são simples e passivamente absor-vidas, mas passam por um processo contínuode compreensão e interpretação, de discussão,apreciação – quando podem ser desafiadas,criticadas, contestadas e destruídas.

Tento compreender o imaginário que Josil-do trazia consigo e a dinâmica por que passouao longo do processo de negociação descritopor Leny Sato. A regra de ter de apagar as gra-vações – deletar o próprio trabalho?, trabalharmais?, trabalhar de novo? Cansaço, raiva, in-dignação? O que fazer com esses sentimentos?Engolir, negar, afogar num porre, descarregarfora do trabalho? Negar-se à tarefa, resistir, bri-gar? E os tantos medos? Josildo parece ter assu-mido o desejo de que o trabalho – ou pelo me-nos esta regra – fosse diferente, a despeito daapregoada racionalidade técnica. Haveria umjeito de fazer diferente! E que seria possível im-plantar mudanças – ainda que num contextoassimétrico de forças. Se é que algo semelhan-te aconteceu no imaginário de Josildo e de seuscompanheiros, compreender a dinâmica des-tes dois momentos – assumir o desejo de mu-dança e acreditar na possibilidade dela – pare-ce-me muito importante, por serem movimen-tos-chave para a ruptura com as representaçõesinstituídas e para a instituição de novas. Co-nhecer os processos facilitadores destas trans-formações do imaginário pode, por exemplo,iluminar conteúdos e metodologias adequadospara as práticas educativas desenvolvidas porentidades sindicais, voltadas para a organiza-ção dos trabalhadores.

Em seguida (será que há uma seqüência tãológica?!) vem a astúcia do grupo, como bem re-gistra Sato: uma verdadeira e complexa análiseestratégica de atores e da ação, onde os traba-lhadores partilham, no plano coletivo, a insa-tisfação, o desejo e a crença na mudança; ante-cipam dificuldades e identificam possibilida-des de alianças – quando se “deslocam” para olugar dos outros atores e percebem a “com-fu-são” de interesses em pontos específicos; dãovisibilidade ao problema, negando-se à tarefaou convocando as “mulheres da linha de cima”para ajudar nela; e vão ao supervisor de produ-ção munidos de argumentos e propostas.

Saíram vitoriosos! E a vitória também temuma dimensão simbólica, apontada por LenySato, que constitui-se certamente em um outrotipo de ganho para os trabalhadores. Acreditoque, no processo de constituição desses sujei-tos – e dos que acompanharam a história a par-tir de outras “linhas” –, ter conseguido mudar oque é dado como imutável, racional, poderoso,será uma experiência indelével – ao contráriodos seus carimbos nos frascos!

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Departamento de Medicina Preventivae Social, Faculdade deMedicina, UniversidadeFederal de Minas Gerais,Belo Horizonte, Brasil

Elizabeth CostaDias

Terminei a leitura do artigo da Dra. Leny Satocom um sentimento bom de esperança – tão embaixa nesses tempos de reestruturação produti-va, globalização de mercado, e precarização dotrabalho –, quanto às possibilidades de mudan-ça das condições de trabalho, na direção da saú-de dos trabalhadores. Saúde como a “condiçãoem que um indivíduo ou grupo de indivíduos écapaz de realizar suas aspirações, satisfazer suasnecessidades e mudar ou enfrentar o ambiente”(Rey, 1999:687). Saúde como um recurso para a vi-da diária e não um objetivo de vida. Um conceitopositivo que considera e enfatiza os recursos so-ciais e pessoais, tanto quanto as condições físicas.

A percepção da saúde como recurso para avida diária – o cotidiano – ganha concretude naexperiência desses trabalhadores de uma in-dústria de alimentos. Ao organizarem seu tra-balho segundo uma racionalidade distinta da-quela proposta pelo corpo gerencial da empre-sa, através de um processo negociado, fazem a“recomposição dos processos de trabalho sobreos escombros dos sistemas de produção indus-triais do início do século XX” (Guattari, 1990:48).Nas palavras de Guattari, produzindo “umasubjetividade criacionista, tanto no plano indi-vidual quanto no plano coletivo”.

No texto, a autora detalha o processo dessereplanejamento do trabalho de forma clara ebem sistematizada, permitindo que, mesmoaqueles pouco familiarizados com a teoria, pos-sam entender o fenômeno, observado em múl-tiplas formas, no cotidiano do trabalho.

A rigor, a busca de “outras racionalidades”para organizar o trabalho, sempre esteve pre-sente no denominado “chão de fábrica”, comodemonstrado por Danilellou et al. (1989), apartir das diferenças observadas entre o traba-lho prescrito e o trabalho real. Os trabalhado-res, individualmente ou em grupo, a partir deum “saber fazer” aprendido no trabalho, de-senvolvem estratégias com a finalidade de faci-

Quiçá os profissionais da área de saúde dotrabalhador possamos revisitar agora nossasrepresentações sobre os trabalhadores e, a par-tir do reconhecimento de seu saber e capaci-dade de ação em defesa da saúde, resituar nos-so papel e nossas práticas...

THOMPSON, J. B., 1995. Ideologia e Cultura Moder-na: Teoria Social Crítica na Era dos Meios de Co-municação de Massa. Petrópolis: Editora Vozes.

litar a tarefa, poupar esforço ou energia, mani-festar sua autonomia e ou resistência aos me-canismos de controle, ou ainda, como formasde suporte social no trabalho, na concepção deJohnson (1989), reconhecidamente importan-tes para a preservação da saúde.

Há cerca de dois anos, tivemos a oportuni-dade de acompanhar o estudo de um grupo detrabalhadores da limpeza urbana de Belo Hori-zonte, que resultou na monografia de conclu-são da Residência em Medicina Social/Medici-na do Trabalho, da Dra. Ciwannyr Assumpção(2000). A questão que o norteou foi a de enten-der como um grupo de trabalhadoras de meiaidade e portadoras de queixas osteo-muscula-res, permaneciam, por opção, trabalhando ematividades de varrição e limpeza de vias públi-cas. A análise do trabalho e as entrevistas comos trabalhadores mostraram que isso somentefoi possível, devido a um rearranjo do trabalho,desenvolvido pelas equipes responsáveis pelastarefas, com uma certa cumplicidade dos su-pervisores das turmas. Abandonando a rigidezdas prescrições da organização e os papéis tra-dicionais, os trabalhadores organizaram as ati-vidades de modo tal, que aquelas que deman-davam maior esforço físico e agilidade, eramdesempenhadas pelos indivíduos mais jovense com mais força física de cada equipe, permi-tindo que a tarefa do dia fosse completada comsucesso e em menor tempo, com uma reduçãoreal da jornada de trabalho e a manutenção notrabalho de trabalhadoras com limitações, im-postas pela idade e pelos problemas osteo-mus-culares, mas que queriam continuar trabalhan-do, e não poderiam fazê-lo no sistema tradicio-nal. De modo distinto do estudo conduzido pe-la Dra. Leny Sato, eram trabalhadores com pou-ca ou nenhuma escolaridade, de uma empresapública do setor de serviços, com predomíniode mulheres, mas que se organizaram para tra-balhar menos tempo e apoiarem-se.

Observação semelhante foi feita por Assun-ção (1998), estudando trabalhadores de um res-taurante universitário. O reconhecimento daimportância da experiência e da competênciaprofissional de um grupo de trabalhadoras maisidosas para o sucesso ou o alcance dos objeti-vos do processo produtivo, foi o ponto de parti-da para a decisão da equipe de trabalho de de-senvolver estratégias, de modo a aproveitar o“savoir faire” dessas trabalhadoras e permitirsua permanência no trabalho, a despeito das li-mitações impostas pela idade e pela doença.

Reforçando a importância dessa questão, éimportante registrar que, ganha força entre osprofissionais que se dedicam ao campo da Saú-de do Trabalhador, a idéia de que nem sempre

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a melhor alternativa para o trabalhador queadoece no trabalho é o seu afastamento da ati-vidade. Quase sempre, o ideal é mudar a con-dição de trabalho permitindo que ele ou elacontinue trabalhando.

Poder-se-ia perguntar quem, ao final, ganhacom esses rearranjos? A resposta parece sim-ples: ganham todos. Sem dúvida o sistema e osorganizadores da produção ganham. Particular-mente, se considerarmos as exigências cres-centes de produtividade, diversidade e quali-dade dos produtos, nos mercados globaliza-dos. Mas os trabalhadores, também ganham. Acurto prazo, conquistam algum tempo livre oua possibilidade de dispender menos esforço notrabalho. Em uma perspectiva mais ampliada,ganham força, reforçam a auto-estima, aumen-tam a resiliência, palavra emprestada da ecolo-gia para indicar a capacidade de resistir aostraumas e pressões e o poder de gerenciar suasvidas. É uma expressão do empoderamento (apalavra é feia, mas a idéia é bonita) propostopela estratégia da promoção da saúde no traba-lho. Devemos saudá-los como sinal da possibi-lidade de tempos melhores e de ter esperança.

ASSUMPÇÃO, C. M., 2000. Estudo das Atividades deVarrição, Carrinheiro e Coleta na SLU, como Con-tribuição para as Práticas do Serviço de Medicinado Trabalho. Monografia, Belo Horizonte: Facul-dade de Medicina, Universidade Federal de Mi-nas Gerais.

ASSUNÇÃO, A. A., 1998. De la Déficience à la GestionCollective du Travail: Les Troubles Musculo-Sque-lettiques dans la Restauration Collective. Thèse deDoctorat, Paris: École des Hautes Études, Minis-tére de l’Education Nationale, de la Recherche etde la Technologie.

DANIELLOU, F.; LAVILLE, A. & TEIGER, C., 1989. Fic-ção e realidade do trabalho operário. Revista Bra-sileira de Saúde Ocupacional, 17:7-13.

GUATTARI, F., 1990. As Três Ecologias. Campinas: Pa-pirus.

JOHNSON, J. V., 1989. Collective control: Strategiesfor survival in the workplace. International Jour-nal of Health Services, 19:540-545.

REY, L., 1999. Dicionário de Termos Técnicos de Medi-cina e Saúde. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

Centro de Estudos emSaúde do Trabalhador e Ecologia Humana,Escola Nacional de Saúde Pública,Fundação Oswaldo Cruz,Rio de Janeiro, Brasil

Carlos Machado de Freitas

Dos limites e das possibilidades das micronegociações para o replanejamento do trabalho

Para debater o artigo de Leny Sato, tomo comoreferência inicial as palavras do samurai Myia-moto, para quem o fogo, grande ou pequeno,possui sempre a extraordinária força de trans-formação. Atualizando para nossos dias seuenunciado cunhado no século XVII, e tendo co-mo metáfora um dos grandes problemas atuais,os perigos associados à queima de resíduosquímicos, podemos considerar que embora ofogo possua sempre a capacidade de transfor-mação, seus subprodutos podem, dependendoda combinação que envolve as característicasdos produtos em questão e o grau da tempera-tura do fogo empregado, ser tão ou mais peri-gosos do que aqueles que se pretendia elimi-nar, com conseqüências que se estenderão noespaço e no tempo.

Nos dias atuais, de quebra da Consolidaçãodas Leis do Trabalho e em que a palavra chaveé negociação, cabe trazer mais elementos paraa reflexão de situações como as descritas no ar-tigo em questão. Nestes dias, no âmbito maisglobal, verifica-se uma contração da classe tra-balhadora e industrial, com sua conseqüentefragmentação, havendo o declínio de sindica-tos de categorias inteiras, assim como das ne-gociações centralizadas. O resultado disso éuma ampliação das negociações localizadasnas fábricas, com uma força de trabalho dividi-da entre trabalhadores do núcleo e periferia,sem o compromisso da luta corporativa e o con-seqüente esfacelamento dos benefícios sociaispadronizados (Kumar, 1997).

Neste cenário global ocorrem múltiplas ecomplexas interações, visíveis e invisíveis, quese manifestam no dia-a-dia dos locais de tra-balho, nos obrigando sempre a olhar e pergun-tar sobre as possibilidades e os limites das ne-gociações que aí possam ocorrer. Negociaçõesque envolvem uma multiplicidade de formas,entre estas, aquelas que nas palavras de Sato,são “...micronegociações (...) [conduzidas porpessoas comuns] configurando-se como proces-sos de replanejamento negociados (...), [que]ocorrem independente da ação política coletivaque pressupunha uma estratégia articulada...”.

Essas micronegociações, podem simples-mente manifestar a continuidade de tantas ou-tras que sempre ocorreram nos locais de traba-lho, desde os primórdios da industrialização,mas que nenhuma ou pouca atenção recebe-ram dos pesquisadores da área. Podem tam-

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bém manifestar uma tendência crescente para“novas formas de negociação”, que resultammenos de ganhos dos trabalhadores, mas deperdas, dado o cenário de fragmentação e de-clínio de sindicatos e de outras estratégias arti-culadas. Nesse caso, e adotando essa perspec-tiva, essas micronegociações podem estar sim-plesmente manifestando a tendência atual detransformar as necessidades coletivas em atosindividuais ou mesmo de pequenos grupos.Fragmentam-se ainda mais as ações coletivas earticuladas, como as tradicionalmente condu-zidas por sindicatos representantes de todauma categoria e, considerando a perspectivade Bauman (1999), para quem o mercado abo-mina a autogestão e a autonomia, só se aceitamas reivindicações que beneficiem a lógica domercado. Nas palavras de Bauman (1999:291),se “...os padrões de mercado não são atingidos,o melhor que se pode esperar é a indiferença domercado. Na pior das hipóteses, deve-se contarcom a hostilidade do mercado...”. Nesses cená-rios, a ampliação das micronegociações repre-sentaria muito mais perdas para os trabalha-dores do que ganhos, já que replanejamentosseriam aceitos, desde que, na lógica do merca-do, possam representar aspectos como maiorlucro, melhoria do produto, redução do tempode produção, sem que isso represente maiorcusto em termos de redução da jornada, prote-ções coletivas e individuais, maior autonomiados trabalhadores para decidir sobre suas ati-vidades, proteção social, etc.

Por outro lado, essas micronegociações po-dem representar o aparecimento ou mesmoampliação de formas de ação política diferen-tes daquelas que tradicionalmente concebe-mos. Trata-se da subpolítica que, de acordocom Beck (1997:35), distingui-se da política“...porque (...) permite que os agentes externosao sistema político ou corporativo apareçam nocenário do planejamento social (este grupo in-clui os grupos profissionais e ocupacionais, aintelligentsia técnica das fábricas, as institui-ções e o gerenciamento de pesquisa, trabalhado-res especializados, iniciativas dos cidadãos, aesfera pública e assim por diante), e, em segun-do porque não somente os agentes sociais e cole-tivos, mas também os indivíduos, competemcom este último e um com o outro pelo poder deconformação emergente do político”. Para Beck(1997), a subpolítica não pode ser vista comorepresentando somente a perda de poder denegociação ou minimização da política. Maisdo que isso, significa moldar a sociedade de bai-xo para cima, oferecendo oportunidades cres-centes de que grupos até então não envolvidosna tecnificação essencial no processo indus-

trial, entre estes, os trabalhadores no local detrabalho, tenham uma voz e uma participaçãono arranjo da sociedade. Nessa perspectiva, amicronegociação pode representar a constitui-ção de formas alternativas de ação política dostrabalhadores, tendo implicações não só nosseus locais de trabalho, mas na sociedade comoum todo, ainda que de forma diferente da queconcebemos até então. Se é isso, cabem algu-mas perguntas que o próprio Beck (1997), for-mula e que devem fazer parte dos debates so-bre micronegociações e replanejamento dotrabalho, entendidos como inseridos na sub-política. Entre essas: Quais são suas fontes depoder, suas possibilidades de resistência e seupotencial para a ação estratégica? Estão emer-gindo novas formas e fóruns organizacionaisde debate negociação? Implicam em conflitoscom relação às formas tradicionais de se fazerpolítica, como os sindicatos, por exemplo? Qualo nível e a qualidade de organização possuemos grupos envolvidos nessas micronegociações?

BAUMAN, Z., 1998. Globalização: As ConseqüênciasHumanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

BECK, U., 1997. A reinvenção da política: Rumo auma Teoria da Modernização Reflexiva. In: Moder-nização Reflexiva – Política, Tradição e Estética naOrdem Social Moderna (U. Beck, A. Giddens & S.Lash, org.), pp. 11-71, São Paulo: Editora Unesp.

KUMAR, K., 1997. Da Sociedade Pós-Industrial à So-ciedade Pós-Moderna – Novas Teorias Sobre o Mun-do Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor.

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade deMedicina, UniversidadeFederal de Minas Gerais,Belo Horizonte, Brasil

René Mendes Tendo sido incluído entre aqueles que tiveramo privilégio especial de conhecer o excelentetrabalho de Leny Sato, antes de sua publicação,em função da interessante metodologia intro-duzida pelos editores de Cadernos de Saúde Pú-blica, imagino que o exercício de analisar estetrabalho e de identificar ângulos para o debatepossa ser tão rico e diverso, de modo tal que,dificilmente, os colegas que receberam idênti-ca tarefa à minha, irão se repetir. Isto porque otrabalho da Professora Sato, abre, de fato, umleque interminável de “ganchos” para um pro-fícuo debate no meio acadêmico e profissionalvinculado às questões de Saúde Pública e Saú-de do Trabalhador, em torno de questões extre-mamente avançadas e atuais.

Dos muitos e diversos ângulos de análisepossíveis, gostaríamos de enfocar aqui, apenaso que se refere diretamente a nós, profissionais

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comprometidos com a Saúde do Trabalhador,tomando, para tanto, a última parte deste inte-ressante trabalho.

Assim, entre muitas coisas lindas e extre-mamente oportunas de serem ditas, a autoranos convida a refletir sobre o nosso papel, en-tendendo que “a prática dos profissionais quenela [área de saúde do trabalhador] atuam seráa de interlocutores que venham a facilitar oprocessamento do planejamento/replanejamen-to do trabalho concebida como atividade dialó-gico-discursiva (...), potencializando e amplian-do as mudanças de organização do processo detrabalho, conduzidas sempre, a partir do grupoprimário de trabalho” (grifo introduzido).

Esse conceito expressado pela autora, pin-çado dentre outros muito bem enunciados, nosobriga – “profissionais” e “técnicos” atuantesno campo da Saúde Pública – a refletir sobre oas dimensões deste papel de “interlocutores”,bem como os requisitos para o exercer, comcompetência. O modo como os dicionários de-finem o termo interlocutor – “aquele que falacom outro; aquele que fala em nome de outro” –já nos chama a atenção à complexidade dessatarefa, para não dizer a enorme responsabili-dade que pesa sobre os ombros do que fala,principalmente se fala em nome de outro... Res-ponsabilidade pesada, vista por um lado; privi-légio e desafios ímpares, visto por outro.

É requisito primitivo do desenvolvimentodo ser humano, que para falar é preciso ouvir –assim as crianças aprenderam a falar, e por is-so os “surdos” congênitos se tornam “mudos” –e para falar em nome de outro é preciso ouvir,muito mais!

Eis aqui uma das mais impressionantes di-ficuldades dos “profissionais” de saúde: saberouvir, antes de falar... Particularmente essen-cial no campo da saúde dos trabalhadores, on-de não necessariamente os que falam são “pa-cientes”, e sim cidadãos ativos e, como bem de-monstrou a autora, capazes de planejar ou re-planejar o trabalho, mesmo sendo apenas “me-ninos”, “mulheres” ou apenas “os de baixo”...

Nesse sentido, a autora corretamente des-taca, em outra parte de seu trabalho, o precon-ceito e o viés do “olhar arrogante, que apenasvê como mudança aquelas que assim conside-remos...”

Outrossim, espera-se, de acordo com a ex-pectativa da autora, que esses interlocutores“venham a facilitar o processo do planejamen-to/replanejamento do trabalho (...) potenciali-zando e ampliando as mudanças de organiza-ção do processo de trabalho, conduzidas sem-pre, a partir do grupo primário de trabalho”(grifos introduzidos).

Sem reduzir a riqueza do trabalho da Profes-sora Leny Sato ao ângulo que escolhemos ana-lisar, as inúmeras reflexões desencadeadas porseu trabalho incluem a detecção de um verda-deiro chamamento e quase uma provocação atodos nós que militamos na Saúde Pública/Saúde do Trabalhador, no sentido de nos (re)avaliarmos frente a esses requisitos colocadospela autora.

Referimo-nos, sem ordem hierárquica, acompetências como saber ouvir, saber falar, sa-ber falar com o outro, saber falar pelo outro, sa-ber facilitar (o processo de planejamento/re-planejamento do trabalho), ser capaz de poten-cializar, de ampliar as mudanças... Enfim, a ca-pacidade de encontrar o nosso espaço de com-petência, que deveria estar eqüidistante (e quedistante...), de um lado, do “olhar ingênuo” –que considera (à luz das experiências e vivên-cias observadas no cotidiano) resolvido o pro-blema do planejamento/replanejamento da or-ganização do processo de trabalho e da preven-ção em saúde do trabalhador – e, no outro ex-tremo, do “olhar arrogante”, que apenas vê co-mo mudança aquelas que assim consideremos.

Lendo este lindo trabalho e buscando deleextrair lições para a nossa vida, elegemos esteângulo de análise, para continuar refletindo. E,principalmente, para questionar condutas eposturas profissionais prevalentes, que, na ver-dade, mais se aproximam dos extremos, seja daingenuidade, seja da arrogância. Respostas sé-rias a este desafio, irão requerer importantesinvestimentos na construção de novas compe-tências, na reconstrução de outras e, certamen-te, na demolição (“desconstrução”?) de muitas.

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A vida cotidiana no trabalho: a ambigüidadepossibilitando múltiplas leituras

A oportunidade de ter leitores debatendo idéiase pontos de vista a partir de uma leitura da rea-lidade de saúde & trabalho por mim apresenta-da neste artigo, antecipa algumas reflexões eposicionamentos dentre tantos outros possí-veis que poderão se fazer presentes nas diver-sas leituras. Um texto sempre traz um sem-nú-mero de possibilidades de interpretação, comosabemos, e possibilita ancorar distintos racio-nais, quer para corroborar, quer para refutarsuas proposições, e essa multiplicidade é poten-cializada pelo fato de estarmos aqui situadosnum campo em que diversas disciplinas e pro-fissionais nele atuam: a Saúde do Trabalhador.

Da multiplicidade de temas levantados pe-los debatedores e que poderiam ser por mimeleitos para dar continuidade ao debate, tomoem especial aquele que parece ter assumidoespecial relevância: os significados e os refle-xos das negociações cotidianas para as rela-ções de trabalho (regulamentação, desregula-mentação) e para as condições de saúde e tra-balho. Para Victor Wünsch Filho, Raquel Rigot-to e Elizabeth Costa Dias, a leitura sobre a des-crição dos fenômenos suscitou avaliações esentimentos de esperança, possibilidade de al-cançar a liberdade e a conclusão de que nemtudo está dominado. Para Carlos Machado deFreitas, as negociações cotidianas, ao contrá-rio, estariam no âmbito da subpolítica e pode-riam vir ao encontro da intensificação da pre-carização das relações de trabalho, expresso,entre nós, por exemplo, na flexibilização da CLT;preocupação nesse mesmo sentido é tambémexpressa por Wünsch Filho, ao afirmar que odebate sobre as negociações cotidianas torna-se atual frente às mudanças das “relações detrabalho contemporâneas”.

O estudo das micronegociações situa-se noâmbito dos estudos sobre o cotidiano e, comotal, não focaliza aqueles processos desenvolvi-dos pelos sujeitos políticos instituídos, comoas negociações coletivas. Ao contrário, dirige aatenção para o dia-a-dia, no qual o trabalho, ostrabalhadores, as relações de poder, as resis-tências, as imposições hierárquicas e as nego-ciações se dão. Focaliza o comezinho, o não

A autora respondeThe author reply

Leny Sato

memorável, a vida comum de todo o homemno local de trabalho. Nesse âmbito, focalizam-se os processos nos quais, como afirma WünschFilho, “proporcionam a contínua definição e re-definição de múltiplos coletivos”, ao modo doque Thompson (1998), descreve como as nego-ciações desenvolvidas pelas “multidões”, asquais “têm todos os formatos e tamanhos”(Thompson, 1998:82), e é volátil. Conforme Te-desco (1999:23), o campo da sociologia do coti-diano tem o mérito de “o mesmo demonstrar apossibilidade de estabelecer ligações entre osgrandes dispositivos sociais e os que regulam avida cotidiana, bem como em resgatar o reapa-recimento do sujeito face às estruturas, aos sis-temas e ao instituído no vivido”. Assim, o cam-po de estudos do cotidiano abre a possibilida-de de se reconhecer as ambigüidades, a dinâ-mica conformismo e resistência (Chaui, 1993),e a da deferência e rebeldia (Thompson, 1998);enfim, fenômenos que são isto e aquilo ao mes-mo tempo (Chaui, 1993). Não é sem razão, en-tão, que a tematização das micronegociaçõessuscita tanto avaliações e reflexões de otimis-mo – em que a liberdade do homem comumparece ser possível – e aquelas que tomam a vi-da cotidiana como o espaço da impossibilida-de de escapar à estrutura social.

É próprio do estudo do cotidiano pesquisara relação entre o todo e a parte (Diehl, 1999),compreender as interações face-a-face, os pro-cessos grupais, e toda uma série de dinâmicasinterativas que constroem a tecitura dos luga-res, dando-lhe formas, conteúdos, corpo. Sen-do assim, se focalizei no estudo um âmbito darealidade social e simbólica, isso não significaque tenha tido a intenção de apresentar um “re-médio” ou um único caminho através do quala negociação, visando o replanejamento do tra-balho, deva dar-se. Procurei ilustrar, descrevere compreender um tipo de interação negocia-da que também redunda no replanejamentodo trabalho. Assim, longe de ter a intenção depropor que as negociações cotidianas venhama substituir as negociações em outros níveis,no artigo, afirmo: “Entendemos, seguindo Gar-dell (1982b), que o replanejamento do trabalhovisando a promoção da saúde, deverá ser con-duzida em múltiplos níveis – o das centrais sin-dicais, dos sindicatos, das OLTs e CIPAs e dostrabalhadores comuns – aproveitando-se daforça que cada um deles tem”, posição essaapreendida na leitura de Wünsch Filho. Preten-do, enfim, ilustrar que o cotidiano é também oespaço no qual o mundo acontece e que nele,as negociações ocorrem de um modo peculiar,onde homens e mulheres desinvestidos do pa-pel de representação, os quais, nos moldes da

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multidão descrita por Thompson (1998), im-põem o limite da exploração através de umaespécie de “sensibilidade irritável”, em que, nomomento estudado por ele, o início do séculoXVIII, “a subordinação está se tornando objetode negociação (embora entre partes gritante-mente desiguais” (Thompson, 1998:42). Assimsendo, se concordo com Freitas, em seu textode debate, que tais negociações são a continui-dade de “tantas outras que sempre ocorreramnos locais de trabalho, desde os primórdios daindustrialização”, não considero que descrevere tomar o cotidiano e as negociações que aíocorrem devam ser acompanhados do advér-bio simplesmente. Como afirma Freitas, embo-ra possam não ser novas, para nós assim serão,caso as ignoremos. E se isso ocorre, fenômenosque pretendemos estudar no campo da Saúdedo Trabalhador são deixados de lado, como sefossem de somenos importância. No entanto,se por ignorá-los eles não existem para nós, is-so não significa que não existam para outros,para os trabalhadores que cotidianamente sevêem na urgência de enfrentar, com a força e afraqueza que têm, o dia-a-dia. Trata-se, comodiz Certeau (1994), de encontrar formas de es-capar ao poder, sem deixá-lo.

Ao descrever esses fenômenos (e descrever,entendo, é já um trabalho de interpretação),não me propus – e nem teria o poder para tan-to – a incentivar ou prever que as micronego-ciações sejam uma “tendência atual de trans-formar as necessidades coletivas em atos indivi-duais ou mesmo de pequenos grupos”, comopontua Freitas. O mundo no chão de fábricatem uma dinâmica própria, existe para além donosso olhar! Ao contrário, como pesquisadora,a minha intenção é propor uma leitura possí-vel sobre o cotidiano de trabalho e, nele, sobrea saúde dos trabalhadores. Isso não significa,entretanto, que acredite ser possível alcançar a“neutralidade” científica, mas pus-me, ao ladodos trabalhadores, por cerca de oito meses,acompanhando o dia-a-dia, vendo e procuran-do compreender a visão que eles tinham sobre oseu trabalho, sobre sua saúde, sobre os proble-mas que enfrentavam e como lidavam com asconstrições, esforços e com o sofrimento. E nes-se processo, nem sempre vemos aquilo que des-cansa nossos olhos e acalma nossos sentimen-tos. Nesse sentido, aponto que as micronegocia-ções têm limites; que além delas, existem nego-ciações frustradas e imposições de mudanças apartir da gerência. De modo algum, trata-se deconsiderar que o problema de saúde do trabalha-dor esteja resolvido com essas micronegociações.

Entendo que no campo da Saúde do Traba-lhador, também o cotidiano é um dos focos pri-

vilegiados de atenção: o que fazemos quandodesenvolvemos os estudos empíricos sobre con-dições de trabalho e saúde? O que se faz quan-do se dirige para as atividades de vigilância noslocais de trabalho? Focaliza-se o cotidiano, ascondições de trabalho diariamente enfrenta-das pelos trabalhadores – a “microfísica do tra-balho” como disse Wünsch Filho em seu textode debate – afinal, são essas as condições coti-dianas, que entendo, se pretende conhecer emudar. Focalizar o cotidiano de trabalho, cer-tamente, não implica em abstrai-lo da estrutu-ra social (infra e superestrutura), mas tampou-co, deduzir o seu funcionamento a partir destaestrutura. Isso tudo nos mostra que a vida coti-diana não é simples, a não ser que o nosso olhara simplifique.

Retoma-se aqui, o debate, sempre em pau-ta sobre as grandes questões para as ciênciassociais e humanas: a relação indivíduo-socieda-de, individual-coletivo, mundo objetivo-mun-do subjetivo, realidade material-realidade sim-bólica.

Outra dimensão importante, levantada porRigotto, diz respeito aos significados possíveisde serem construídos e a experiência “indelé-vel” acerca da possibilidade, ainda que limita-da, de pensar de outro modo e de provocar oquestionando da ideologia gerencial, ainda quenão a desmonte, ainda que continue existindo– como também lembrou Dias em seu texto dedebate – o hiato entre o trabalho prescrito e otrabalho real. Sabem os trabalhadores que, da-da a assimetria de poder presente no espaçofabril, eles devem controlar a expressão domundo subjetivo, sabem que estão num palco– nos moldes descritos por Goffman (1985) – eque a invenção deve ser tática, aproveitando asoportunidades que se apresentam a conjuntu-ra (Certeau, 1994; Thompson, 1998).

Sobre a atuação dos profissionais da área desaúde do trabalhador, presentificada neste de-bate, por exemplo, em Rigotto e em Mendes,reafirmo que se atribuímos estatuto epistemo-lógico ao conhecimento/subjetividade operária(Boltanski, 1989; Moscovici, 1961; Oddone et al.,1986) e com ele dialogamos, parece-me ser umadecorrência lógica considerar que as microne-gociações têm estatuto político e que põem emprática o que esse conhecimento constrói. Se oprimeiro difere do conhecimento construídopelas diversas ciências, as segundas tambémdiferem das negociações em outros níveis. Re-conhecer e compreender esses fenômenos sem-pre será um bom ponto de partida para a cons-trução do diálogo com os trabalhadores e seusórgãos de representação, para a condução daspráticas profissionais em saúde do trabalhador.

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Referências

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THOMPSON, E. P., 1998. Costumes em Comum – Es-tudos sobre a Cultura Popular Tradicional. SãoPaulo: Companhia das Letras.

Recebido em 7 de março de 2001Versão final reapresentada em 16 de julho de 2001Aprovado em 6 de agosto de 2001