pressupostos do direito intertemporal no … · limites, notadamente no tocante à incidência do...

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1 ANDRÉ MATTOS SOARES PRESSUPOSTOS DO DIREITO INTERTEMPORAL NO PROCESSO CIVIL Mestrado em Direito PUC/São Paulo 2007

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ANDRÉ MATTOS SOARES

PRESSUPOSTOS DO DIREITO INTERTEMPORAL NO PROCESSO CIVIL

Mestrado em Direito

PUC/São Paulo

2007

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2

ANDRÉ MATTOS SOARES

PRESSUPOSTOS DO DIREITO INTERTEMPORAL NO PROCESSO CIVIL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título

de MESTRE em Direito (Direito das Relações

Sociais), sob a orientação do Prof. Doutor Nelson

Nery Junior.

PUC/São Paulo

2007

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3

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

________________________________________

________________________________________

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À Keila, esposa e companheira incondicionada de

jornada, e aos pequenos Gustavo e Leonardo; aos

meus pais, por me ensinarem que a vida transcende o

plano material.

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Agradeço ao meu orientador, Prof. Doutor Nelson Nery

Junior, pela confiança e valiosas sugestões

apresentadas.

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RESUMO

O fenômeno relativo ao conflito de leis no tempo, a reclamar a aplicação dos princípios e normas atinentes ao direito intertemporal, encontra-se diretamente relacionado aos institutos da vigência e da eficácia das leis, o primeiro necessário à verificação da época do fato, se pretérito, pendente ou futuro e o segundo respeitante à perquirição da norma cujos efeitos se aplicarão a certa situação fática. Porque inerente ao natural sentimento humano de inviolabilidade ao passado e considerando o atual estágio evolutivo do homem, a irretroatividade das leis e o respeito aos direitos adquiridos devem ser a regra nos ordenamentos jurídicos em geral. Assim o é, portanto, no sistema brasileiro, o qual, ademais, proscreve em sede constitucional a violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Malgrado o direito pátrio tenha sofrido as influências das doutrinas subjetiva e objetiva, das quais, respectivamente, sobressaem as figuras de Gabba e Roubier, e embora a noção de situação jurídica ultrapasse a dos direitos adquiridos, as correntes se equivalem em termos gerais, para fins de resultados práticos. Por outro lado, os modos de projeção das leis no tempo (retroatividade, eficácia imediata e ultratividade) devem ser compreendidos nos seus justos limites, notadamente no tocante à incidência do novel diploma sobre os efeitos futuros do ato precedente, circunstância a caracterizar mero efeito imediato da lei, do qual, todavia, se resguarda o direito adquirido. A Carta Magna, ainda, não veda a retrooperância da lei, para cujo efeito exige seja expressa lei nova, desde que se respeite o direito adquirido (que abrange os conceitos de ato jurídico perfeito e coisa julgada), limitação aplicável às leis de ordem pública e às emendas constitucionais. A violação excepcional ao direito adquirido somente é permitida se o exigir o princípio da dignidade da pessoa humana. A lei processual, a seu turno, submete-se ao regime geral de direito intertemporal previsto na Constituição e na Lei de Introdução, donde, em princípio, não detém efeito retroativo, não atingindo os atos processuais aperfeiçoados sob o regime anterior, possuindo, ao revés, imediata eficácia em relação aos processos pendentes. Não obstante a aplicabilidade do regramento geral, o processo é de complexidade tal que o efeito da lei nova ao feito em curso apresenta particularidades derivadas da necessária harmonia dos atos processuais, da obediência a princípios processuais, da peculiaridade de certos institutos processuais, conseqüências que podem postergar ou excluir a pronta eficácia do novel comando normativo.

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ABSTRACT

The phenomenon regarding law conflicts in time, claiming the application of principles and rules concerning intertemporal law, is directly related to validity and efficiency law institutes, the first necessary to the checking of the fact’s period, if past, during or future and the second concerning the investigation of the rule which effects will be applied to a certain factual situation. As it is inherent to natural human feelings of inviolability to the past and considering the actual evolutional stage of man, the non retroactivity of laws and the respects to acquired rights must be the rule in the juridical ordination in general. And thus it is in the Brazilian system, which, furthermore, proscribes in a constitutional headquarter the violation to acquired rights, to perfect juridical act and to a sentenced thing. In spite of the father law having suffered the influence of subjective and objective doctrines, from which, are respectively enhanced the figures of Gabba and Roubier, and although the notion of the juridical situation exceeds that of acquired rights, the flows are more or less equivalent in general terms, for means of practical results. On the other hand, the ways of law projection in time (retroactivity, immediate efficiency and ultra activity) must be understood in their right limits, especially as to incidence of novel diploma on the future effects of the precedent act, circumstance to characterize the simple immediate law effect, from which, however we protect the acquired law. The Magna Carta, yet, does not obstruct the retrooperancy of law, for which effect it demands the expression of a new law, once the acquired right is observed (which embraces the concepts of perfect juridical act and judged thing), limitation applied to public order and constitutional amendments. The exceptional violation to acquired rights is only allowed if required by the principle of dignity of the human being. On the other hand, the procedural law, is submitted to the general regime of intertemporal right mentioned in the Constitution and in the Introduction Law, from where, at first, it has no retroactive effect, not reaching the procedural acts improved under the previous regime, possessing, instead, immediate efficiency regarding the pending processes. In spite of the applicability of the general regulation, the process is of such complexity that the current new law effect presents particularities originated from the necessary harmony of the procedural acts, of the obedience to the procedural principles, of the peculiarity of certain procedural institutes consequences which might postpone or exclude the prompt efficiency of the normative novel command.

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ERRATA

1) Página 89: onde se lê “... serão excluídos tanto os efeitos retroativosquanto os imediatos...”, leia-se “... serão excluídos os efeitos imediatos...”.

2) Página 103: onde se lê “Forçoso convir, pois, que a regraconstitucional da irretroatividade...”, leia-se “Forçoso convir, pois, que a regraconstitucional-substancial da irretroatividade...”.

3) Página 107, nota 199 de rodapé, onde se lê “... se ocorridos, no caso,os pressupostos e restritos...”, leia-se “... se ocorridos, no caso, ospressupostos específicos e restritos...”.

4) Página 139, Capítulo 11, onde se lê “11. Síntese Histórica do DireitoBrasileiro no Intertemporal Processual”, leia-se “11. Síntese Histórica do DireitoBrasileiro no Campo Intertemporal Processual”.

5) Página 145, notas 272 e 273 de rodapé, onde se lê “Ibidem”, leia-se“Ibidem, p. 135” e “Ibidem, mesma página”, respectivamente.

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SUMÁRIO

PARTE I: PREMISSAS GERAIS

INTRODUÇÃO............................................................................... 12

1. A SOCIEDADE, O DIREITO E A LEI......................................... 17

1.1. Sociedade e Direito........................................................... 17

1.2. O Direito Como Objeto Cultural......................................... 19

1.3. A Lei Jurídica..................................................................... 20

2. DIREITO TRANSITÓRIO E DIREITO INTERTEMPORAL........ 30

3. PLANOS DE EXISTÊNCIA, VIGÊNCIA, VALIDADE E

EFICÁCIA DA LEI..........................................................................

34

3.1. A Relevância dos Conceitos.............................................. 34

3.2. Processo Legislativo.......................................................... 35

3.3. Existência Jurídica............................................................. 37

3.4. Validade............................................................................. 39

3.5. Vigência............................................................................. 44

3.6. Eficácia.............................................................................. 48

3.7. Eficácia/vigência e Direito Intertemporal........................... 51

4. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS................. 53

4.1. Breve Sinopse Histórica do Princípio da Irretroatividade.. 53

4.1.1. O direito hindu.......................................................... 54

4.1.2. O direito chinês......................................................... 55

4.1.3. O direito grego.......................................................... 55

4.1.4. O direito romano....................................................... 56

4.1.5. O direito canônico..................................................... 58

4.1.6. Da Revolução Francesa aos dias atuais.................. 59

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9

4.1.7. O Princípio da irretroatividade no direito brasileiro... 60

5. AS PRINCIPAIS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE

O DIREITO INTERTEMPORAL.....................................................

66

5.1. Savigny.............................................................................. 68

5.2. Gabba................................................................................ 70

5.3. Chironi………………………………………………………… 74

5.4. Affolter………………………………………………………… 75

5.5. Duguit e Jéze………………………………………………… 76

5.6. Roubier………………………………………………………... 77

6. RETROATIVIDADE, EFICÁCIA IMEDIATA E

ULTRATIVIDADE...........................................................................

82

6.1. Retroatividade e Eficácia Imediata.................................... 82

6.2. Pós-Atividade ou Ultratividade da Lei Velha..................... 86

7. FUNDAMENTOS DO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE E

DO RESPEITO AO DIREITO ADQUIRIDO...................................

89

8. A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL............. 96

8.1. A Relativização do Princípio da Irretroatividade das Leis. 96

8.2. O Poder Constituinte Derivado.......................................... 104

8.3. Leis de Ordem Pública...................................................... 106

8.4. O Caráter Relativo do Princípio do Respeito ao Direito

Adquirido........................................................................................

110

9. O CONCEITO DE DIREITO ADQUIRIDO, QUE

COMPREENDE O ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA

JULGADA.......................................................................................

114

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10

PARTE II: DIREITO INTERTEMPORAL PROCESSUAL CIVIL

10. POSIÇÃO E OBJETO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL.... 124

10.1. Posição do Direito Processual Civil................................. 124

10.2. Objeto do Direito Processual Civil................................... 130

11. SÍNTESE HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO NO

CAMPO INTERTEMPORAL PROCESSUAL.................................

137

12. O DIREITO INTERTEMPORAL E O PROCESSO CIVIL......... 142

12.1. Regras Gerais de Direito Intertemporal e o Processo

Civil.................................................................................................

142

12.2. O Efeito Imediato e as Normas Dispositivas................... 151

12.3. Direitos Adquiridos Processuais...................................... 152

12.4. O Efeito Imediato e os Institutos de Natureza Mista........ 154

12.5. O Efeito Imediato e os Princípios Processuais................ 173

12.6. As Teorias da Unidade, das Fases Processuais e do

Isolamento dos Atos Processuais...................................................

176

CONCLUSÃO................................................................................. 185

BIBLIOGRAFIA.............................................................................. 187

ANEXOS......................................................................................... 199

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PARTE I

PREMISSAS GERAIS

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12

INTRODUÇÃO

O direito intertemporal, definido como o conjunto de normas e

princípios jurídicos solucionadores dos conflitos decorrentes da sucessão de

duas leis no tempo, tem sido estudado há muito por juristas de escol e

rememorado especialmente em épocas nas quais sobrevém uma nova

legislação dispondo sobre o mesmo assunto disciplinado pela lei então em

vigor, oportunidade na qual se questiona sobre a preservação das relações

jurídicas iniciadas sob a vigência da norma revogada.

Quando uma lei entra em vigor, deparamo-nos com três tipos de

situações jurídicas, a saber: (a) situações jurídicas iniciadas e findas antes

da data de início de sua vigência (pretéritas); (b) situações jurídicas

originadas antes de sua vigência, mas cujos efeitos perduram após essa

data (pendentes); e (c) situações jurídicas iniciadas após a data de sua

vigência (futuras).

Ao direito intertemporal não interessam as situações passadas, as

quais produziram todas as conseqüências jurídicas sob o regime do diploma

revogado, tampouco as situações futuras, surgidas inteiramente após a lei

nova; aquelas serão regidas pela lei antiga e estas pela nova regra

normativa. O objeto do direito intertemporal consiste em determinar qual

será a lei aplicável às situações pendentes, isto é, iniciadas no pretérito e

que ainda geram efeitos no presente.

O tema, embora remoto e, inclusive, encontrando raízes no direito

natural, ainda provoca acalorados debates doutrinários, máxime em nossa

República, a considerar as inúmeras normas editadas diariamente pelas

autoridades representativas do Estado.

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É por essa constância na atividade legiferante e, por conseguinte,

ao inevitável entrechoque de diplomas legislativos sobre as mais variadas

situações fáticas, que o assunto não pode ser descurado do intérprete, pena

de se estabelecer verdadeira insegurança jurídica em tempos que reclamam

sua aplicação.

Nesta obra, não temos a pretensão de inovar a matéria,

considerando a existência, embora escassa, de judiciosos trabalhos

doutrinários já formulados a respeito, mas pretendemos, uma vez

sobremaneira técnica, trazer à baila as considerações que verdadeiramente

importam à compreensão do tema.

Para tanto, de um lado, compreenderemos os conceitos de

retroatividade, eficácia imediata e ultratividade da lei, sobre os quais os

jurisconsultos ainda dissentem. De outro, não menos imperativa será

assimilarmos, com base no sistema pátrio, a definição de direito adquirido e

os principais elementos que o compõem. Crítico da doutrina subjetiva

capitaneada por Gabba, Paul Roubier (1960) afirma que a noção de direito

adquirido é perceptível a todos, ninguém ignorando, por exemplo, que um

contrato se aperfeiçoe pelo acordo de vontades e que a herança se adquira

pela morte do de cujus.1 O conceito, porém, que pode resultar óbvio em

algumas hipóteses, em outras não o é, tanto que há muito se observa em

prestigiados doutrinadores grande e justificada preocupação em dissecar o

significado da expressão “direito adquirido” e sua distinção entre as meras

expectativas de direito.

Malgrado este intento não tenha acarretado, de fato, a solução

segura às agruras suscitadas pelo fenômeno da intertemporalidade jurídica,

não tendo, apesar das inúmeras propostas doutrinárias destinadas a este

fim, a ciência do direito intertemporal ainda logrado estabelecer um

1 ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 107.

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consenso nesta definição, nem por isso devemos desprezar tal esforço de

que se lançaram os jurisconsultos.

Nesse passo, Mauro de Medeiros Keller (1989) obtempera que

não é em razão das dificuldades em se precisar um fenômeno que se o

abandona. Do contrário, em ciências naturais, pelo simples fato de não se

poder definir, por exemplo, o que é a vida, deveriam os biólogos negar-se a

dizer que tal ou qual é ser vivo. A noção de direito adquirido não é uniforme,

adverte, porque não é estanque: admite certa evolução, fruto do estudo, do

exame mais detido das situações sobre as quais incide, do aprimoramento

técnico.2

O próprio apego dos tribunais brasileiros à noção de direito

adquirido, mesmo diante das modificações legislativas verificadas ao longo

de nossa história e através das quais foram sentidas as influências da

doutrina objetiva de Roubier (1960), confirma a importância deste estudo.

Sendo assim, faz-se imprescindível depreendermos a definição de

direito adquirido, bem como os modos pelos quais as leis arrojam sua

eficácia no tempo, a fim de que seja possível nos aprofundarmos no ramo da

ciência em comento.

Nesse sentido, no decorrer deste estudo serão delineados

aspectos gerais atinentes à matéria, aplicáveis a todos os ramos do direito,

disciplinados nos arts. 5º, XXXVI, da Constituição Federal e 6º da Lei de

Introdução ao Código Civil3, procedendo-se seqüencialmente à investigação

2 KELLER, Mauro de Medeiros. Pontes de Miranda e os fundamentos do princípio da

irretroatividade das leis. Revista de Direito Civil, nº 50, 1989, p. 73. O referido autor procura rebater as críticas aduzidas por Pontes de Miranda contra a teoria subjetiva (dos direitos adquiridos). 3 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código

Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p 10. O autor enfatiza que: “Na opinião de Venzi, invocada por Eduardo Espínola (4), o alcance da lei de Introdução é vasto. Não se cinge ao Código Civil, a despeito de vir a ele anexado, mas protrai seus efeitos a todos os códigos e todas disposições legislativas, seja qual for a natureza, pública ou privada, uma vez que a razão de sua

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dos desdobramentos do instituto quanto ao direito processual civil,

abordando as diversas teorias propostas pelos processualistas destinadas a

sistematizar o modo de incidência da lei processual tempo.

Cuidaremos de atrair a atenção do intérprete ao perigo que

representa a particularização do instituto. De fato, a adoção pura e simples

de determinada teoria aplicável à solução dos conflitos temporais das leis

processuais, a exemplo do sistema do isolamento dos atos processuais, não

pode implicar na negação da própria regra geral disciplinadora do direito

intertemporal. Sobre o assunto, Roubier apud Vicente Ráo (2005) já alertava

que:

(...) seja qual for a relação especialmente contemplada

sempre será preferível procurar-se a solução dos conflitos

nos princípios gerais que dominam o problema em seu

conjunto, atendendo-se a que a exposição particularizada

das conseqüências desses princípios não é suscetível de

proporcionar ao intérprete nenhum esclarecimento

suplementar: ao contrário, o caráter das disposições

legislativas o levaria a crer na inexistência de princípios

gerais, de tal arte que o hiatus verificado entre uma regra

particular e outra, se assim fosse, não poderia ser

preenchido com o reportar-se o intérprete ao espírito da lei.4

Nesta medida, exemplos serão expostos com vistas a ilustrar

como o enclausuramento de matérias especializadas pode conduzir a

conclusões equivocadas, dissociadas dos princípios gerais, nos quais, não

colocação adjeta ao código civil deve-se pura e simplesmente a ser este código considerado, dentre os demais, como a legislação mais importante”. 4 ROUBIER, Paul. Travaux de la commission de reforme du Code Civil (1948-1949), p. 263 e s., apud RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 396.

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raro, se encontrarão as soluções das questões intertemporais mais

complexas.5

O perigo que se anuncia não deverá, entretanto, acanhar o

intérprete no estudo das variantes peculiaridades que cercam o direito

intertemporal processual. Deveras, o enfrentamento do tema requer mais do

que o simples exame dos comandos normativos insculpidos na Constituição

e na Lei de Introdução, tal a complexidade do processo no seio do qual

inúmeras particularidades podem exsugir.

Desse modo, se as regras gerais de direito intertemporal deverão

nortear o intérprete quanto à fixação dos limites relativos à eficácia da nova

lei processual aos atos processuais em curso, não menos imprescindível

será o aprofundamento em peculiaridades do tema na seara processual civil.

Ao cabo deste ensaio, verificaremos que o direito intertemporal,

malgrado considerado um dos campos mais intrincados da ciência jurídica6,

não é assunto inacessível ao entendimento dos operadores do direito, não

obstante a dificuldade apresentada na solução prática das variadas espécies

de conflitos ocorrentes no plano fático.

A problemática do tema não prescinde, antes, da exposição de

certos pressupostos e conceitos fundamentais do Direito, tais como os de lei,

direito intertemporal e eficácia da lei, sem os quais não teremos a exata

compreensão do assunto ora proposto.

5 Antônio Jeová Santos (2004) alerta que: “Por vezes, é no óbvio que está a solução do caso que tanto agasta o cultor do Direito. Para achar o óbvio, já que o Direito não é ciência destinada a ‘inventores’, é imprescindível o estudo sistemático e acurado, de par com uma certa dose de coragem para emitir assertivas sobre temas candentes e cheios de artifícios enganadores como são aqueles ligados ao Direito Intertemporal”. In: SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo Código Civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13. 6 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 8.

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17

1. A SOCIEDADE, O DIREITO E A LEI

1.1. Sociedade e Direito

A fim de delimitar o campo de nosso estudo, no decorrer deste

item, verificaremos a questão da relação existente entre sociedade e direito,

para, em seguida, definirmos o conceito de lei.

É de Aristóteles apud José Afonso da Silva (1964), adepto da

origem natural da sociedade, a afirmação de que o homem é um animal

social, isto é, “o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e

outros animais que vivem juntos”7, o que nos demonstra a necessidade que

há de os seres humanos se relacionarem entre si.

Vicente Ráo (2005) discorre, nessa linha, dizendo que a atividade

do homem se exterioriza através de suas relações com seus semelhantes ou

de sua ação sobre os bens da vida, corpóreos ou não, que lhe proporcionam

meios de sobrevivência e desenvolvimento. O homem sempre se manifesta

por meio dessas relações e ações, sendo-lhe de sua natureza, assim, a

coexistência social.8

Pactua do mesmo entendimento Miguel Reale (1991) no sentido

de que o homem é um “animal político” ou um “ser social”, mas adverte que

não deve haver equívoco de pensarmos que estamos situados na sociedade

como peças sobre um tabuleiro, quando na realidade “somos a sociedade”,

ou a “sociedade é em nós”.9 Essa é a posição mais aceita, embora haja

defensores que acreditam que a sociedade originou-se de um acordo de

vontade entre seus integrantes e não de um impulso natural do homem.

7 POLITIQUE, p. 6, apud SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no

direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 3. 8 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 51. 9 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 691.

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Quanto ao direito10, é predominante o entendimento de que haja

despontado com o surgimento da própria organização social do homem, ou

seja, ubi societas ibi jus (não há sociedade sem direito).

Seria, porém, de indagarmos a razão pela qual o direito

pressupõe as relações dos seres humanos entre si. Porque o direito é um

sistema que por objetivo disciplinar as próprias condições de existência entre

os indivíduos dentro da sociedade na qual se inserem.

Com efeito, é para proteger a personalidade destes e disciplinar

suas atividades dentro do todo social de que fazem parte que o direito

procura estabelecer, entre os homens, uma proporção tendente a criar e a

manter a harmonia na sociedade.11

Noutro falar, o objeto do direito é disciplinar a sociedade; busca

harmonizar as relações intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização

dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e desgaste.12 O direito,

portanto, tem por condão regular a sociedade e o escopo de promover a

harmonia dos vários interesses humanos que nela se manifestam.13

Aliás, a sociedade tanto é condição do direito que este tem por

nota essencial a noção de bilateralidade atributiva, conceituada como a

“relação objetiva que, ligando entre si dois ou mais seres, lhes confere e

10 Como observa Miguel Reale (1991), o direito, nascido concomitante ao viver do homem em sociedade, foi vivido inicialmente “como um fato, e, ao mesmo tempo, como um fado a que o homem atribuía a força inexorável e misteriosa dos enlaces cósmicos, talvez inspirado inicialmente, como sugere Cassirer, pela visão dos astros, cuja ‘ordem’ terá sido a primeira a ser arrancada do caos das impressões, dos desejos e das vontades arbitrárias”. REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 500. 11 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53. 12 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 20-23. 13 Miguel Reale (1991), após afirmar que o direito se refere “ao homem enquanto ser que, agindo em sociedade, assume dadas posições perante os demais homens, suscetíveis de gerar pretensões recíprocas ou pelo menos correlatas”, sintetiza: “(...) podemos, em suma, reconhecer que, onde quer que exista Direito, há uma ação positiva ou omissão (ação negativa) do homem, algo de redutível ou de relacionável a uma modalidade de ação”. REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 377.

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garante, de maneira recíproca ou não, pretensões e competências”14, isto é,

o direito é bilateral ao ligar dois ou mais seres15 e atributivo, na medida em

que não se limita a obrigar, mas também faculta, atribuindo-lhes pretensões

e exigibilidades.

1.2. O Direito Como Objeto Cultural

Uma vez nascido das relações sociais, a fim de promover a

evolução da sociedade, o direito deve ser impregnado de valores (justiça,

certeza e progresso social) que lhe conferem seu verdadeiro sentido, do

mesmo modo que, segundo José Afonso da Silva (1964), “o valor do belo é

que dá essência à estátua, à escultura, à música e aos demais objetos

culturais artísticos”.16

O direito tutela certos valores que considera importantes e busca

impedir determinados atos, reputados negativos. Falamos no justo e no

injusto, no lícito e no ilícito, no legal e no ilegal, no permitido e no proibido.

Os valores representam, assim, o mundo do dever ser, as normas ideais que

orientam o homem a assumir posições no curso de sua vivência e ao longo

dos fatos que o cercam, aptas a conduzi-lo ao seu progresso espiritual. Todo

valor implica uma tomada de posição do homem, uma atitude positiva ou

negativa, da qual resulta a noção de dever (se algo vale, deve ser, se não

vale, não deve ser). Os valores não são, assim, simples objetos ideais que o

homem projeta como definitivo; ao revés, são algo que a experiência

humana vivencia e realiza no plano da História.17

14 REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 672 e 692. 15 Quando falamos em bilateralidade não devemos confundir com simples liame contratual entre os sujeitos, em que vigora entre eles reciprocidade. As relações também podem ser do tipo institucional. O direito é bilateral, porque é entrelaçante, demarcando posições socialmente relevantes dos sujeitos. Bilateralidade tem sentido, pois, de alteridade. 16 SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 7. 17 REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 509-510 e 539 e 561.

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20

Em vista de determinados valores perseguidos pelo direito é que

o agir humano recebe certa qualificação jurídica. O direito, assim como todo

objeto cultural18, se integra de três elementos fundamentais: matéria (fato,

conduta), valor e forma (norma).

Dizemos, então, que a norma representa a expressão de valores

concretizados em virtude da ocorrência dos fatos histórico-sociais, sendo

esses três elementos essenciais à vida do direito, que tem, portanto, uma

estrutura tridimensional, contando com um elemento normativo disciplinador

dos comportamentos humanos, pressupondo um fato, referido a certos

valores. Entretanto, não é qualquer norma que podemos classificar como

jurídica. A norma de direito, para ser considerada como tal, deve ser dotada

de certos pressupostos, que serão a seguir estudados.

1.3. A Lei Jurídica

Em sua acepção mais extensa, Montesquieu apud André Franco

Montoro (1994) nos ensina que as leis consistem nas relações necessárias

que derivam da natureza das coisas.19 Leis existem em todas as relações

havidas na natureza; são regidos por leis os homens, os animais, as plantas,

a gravidade, a física, a economia, a sociologia, a moral, o direito etc.

18 James Goldschmidt (1944, p. 18 e s.) apud José Afonso da Silva (1964) esclarece o que é cultura: “El derecho es un producto de la cultura. Se entiende por cultura el complexo de las obras humanas que se relacionan con valores, es decir, que están destinadas a crear valores y a valorarse ellas mismas. El derecho tiende a realizar el valor ético de la justicia y se somete, por consiguiente, a una valoración desde el punto de vista de ésta”. In: SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das

leis no direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 7. Na definição de Miguel Reale (1991), “cultura, no fundo, não é outra coisa senão o conjunto das posições do espírito, e de suas projeções, em face da natureza e da vida (...)”.REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 556. 19 MONTESQUIEU apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 318-320.

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21

Nesse conceito amplíssimo se inserem as leis físicas (ou naturais)

e as leis humanas (éticas, morais).20 As leis físicas se referem ao mundo

físico, sujeito a um determinismo rigoroso, enquanto as leis humanas dizem

respeito ao campo da atividade humana, na qual sobreleva o

comportamento livre e consciente do homem.

Distinguindo as duas espécies de leis, Goffredo Telles Júnior

(1966) anota que os movimentos, de que as leis são fórmulas, podem ser

movimentos livres, como os do comportamento voluntário do homem, ou não

livres, como os do comportamento da matéria inconsciente; os primeiros

consistem nos movimentos do mundo ético (mundo originado pela

inteligência humana) e, os segundos, nos movimentos do mundo físico

(mundo da natureza).21

De fato, os seres do mundo físico realizam de maneira automática

e inconsciente as leis de sua natureza: a pedra cai, a árvore cresce, os rios

correm, sem a existência de qualquer elemento volitivo, ao passo que na

atividade humana destaca-se o comportamento livre e consciente do

homem.22

A lei humana, a seu turno, subdivide-se em lei moral em sentido

estrito e lei jurídica (ou norma jurídica). É tradicional a asserção segundo a

qual as normas morais distinguem-se das jurídicas, porque aquelas se

referem ao aspecto interno (motivos ou intenções) do comportamento,

enquanto estas não se preocupam com o elemento psíquico ou volitivo do

agente.

20 As leis físicas e as leis humanas referem-se ao mundo “real”. No plano “ideal” ou formal podemos falar em leis matemáticas, lógicas ou estritamente formais. 21 TELLES JUNIOR, Goffredo. Filosofia do direito. 2º tomo. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 277. 22 Não devemos negar, porém, a existência de uma lei maior, uma ordem universal, a reger tanto as relações físicas quanto humanas. O universo, desde a primeira causa até o último fim, desde o infinito até o máximo dos seres, tudo quanto existe ou pode existir, é efeito de um Pensamento (Ibidem, p. 317).

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22

Tal distinção é obscura, pois olvida da constante preocupação do

direito com as intenções do agir humano, qual no campo penal, em que se

separam os crimes dolosos dos culposos com implicações na

reprovabilidade da conduta, e no direito civil, no qual nas declarações de

vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao

sentido literal da linguagem (Código Civil, art. 112).

Em verdade, precisa Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001) que a

diferença importante reside em que, enquanto a norma jurídica:

“(...) admite a separação entre a ação motivada e o motivo

da ação, o preceito moral sempre os considera

solidariamente. Isto é, o direito pode punir o ato

independentemente dos motivos – por exemplo, nos casos

de responsabilidade objetiva – mas isto não ocorre com a

moral, para a qual a motivação e ação motivada são

inseparáveis”.23

Ademais, as sanções morais, advindas da consciência, “nunca

são conteúdo de seus preceitos, ao passo que as normas jurídicas são

caracterizadas por prescreverem expressamente suas sanções”.24

Carlos Roberto Gonçalves (2002) acresce, ainda, que apesar de

as normas jurídicas e morais terem em comum a circunstância de

constituírem normas de comportamento, divergem essencialmente por dois

aspectos: primeiro, pela sanção, que no direito é imposta pelo poder público

com o fito de constranger os indivíduos à observância da norma e na moral

somente pela consciência do homem traduzida pelo remorso, pelo

arrependimento; segundo, pelo campo de ação, mais amplo na moral, sendo

23 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 352-353. 24 Ibidem, p. 352-353.

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23

célebre a comparação de Bentham que utilizou-se de dois círculos

concêntricos, dos quais a circunferência representativa da moral é maior.25

Posta a dissimilitude entre o direito e a moral, ao perquirirmos se

a moralidade, em sua estrita concepção, constitui requisito de existência da

norma jurídica, a resposta é negativa. Isso porque, a justiça representa um

valor a conferir sentido ao direito sendo, como tal, seu princípio regulativo,

mas não constitutivo, donde, embora o direito imoral seja destituído de

sentido, isto não quer dizer que ele não exista concretamente.

A imoralidade priva de sentido a norma jurídica, mas não a torna

inválida. O que constitui o direito e que lhe confere realidade é o

estabelecimento de relações hierárquicas de autoridade/sujeito. Nesse

sentido, o direito deve ser compreendido como uma organização de relações

de poder. Seu princípio regulativo, que lhe confere sentido, é a justiça,

enquanto que seu princípio constitutivo é a impositividade autoritária.26

De fato, embora seja a justiça o fim último do direito, isto é, seja o

direito uma experiência bem ou malsucedida de justiça, o que qualifica a

norma como jurídica é a interferência do poder, que opta, influenciado pelo

mundo da vida cotidiana, entre as diversas normas possíveis, àquela que lhe

25 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil – parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3-4. 26 Mas será que a norma jurídica pode ser dotada de qualquer conteúdo ou relato? Positivistas como Kelsen afirmam que os conteúdos são neutros, nem jurídicos nem antijurídicos, sendo o bastante, para a juridicidade da norma, a relação institucionalizada de autoridade/sujeito. Já os jusnaturalistas reclamam que o direito positivo deve respeitar os ditames da natureza humana, que seria o elemento material da norma, sem o qual jurídica não seria. De fato, como anota Tercio Sampaio, a norma não pode ter um relato qualquer e os limites desse relato cabem à ideologia. Se os valores, como a justiça, por si sós, são abstratos e relativos, as ideologias lhes conferem um mínimo de concretude, por serem rígidas e limitadas. A justiça pode ser liberal, comunista, fascista etc., incumbindo à ideologia fazer com que se opte, por exemplo, pela justiça contra a ordem ou pela ordem contra a liberdade, pela dignidade contra a vida. Assim, apenas pode constituir o conteúdo ou relato da norma jurídica o que pode ser generalizado socialmente, por força da ideologia predominante em dada comunidade. Dessa forma, “na cultura ocidental de base cristã, conteúdos normativos que desrespeitem o valor da pessoa humana (direitos fundamentais) serão rechaçados, como seria o caso da norma que admitisse a tortura como forma de obtenção de confissão para efeitos de processo de julgamento”. Não devemos olvidar, ainda, que a dicotomia direito natural (direito à vida, à saúde, à liberdade etc.) e positivo encontra-se, atualmente, enfraquecida, pela própria positivação na Constituição do direito natural. Ibidem, p. 111-112, 167-170 e 353.

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24

parecer adequada naquele momento histórico. Dizemos, então, que a norma

jurídica representa o momento conclusivo em que o fato passa pelo crivo do

poder, o qual, num ato de preferência de valores, escolhe a regra a ser

editada.27

Outra característica importante do direito, inexistente no mundo

estritamente moral, consiste na coercibilidade ou potencial coerção. Já se

consignou ser elemento essencial do direito a idéia de atributividade, através

da qual, aduz James Goldschmidt (2004), “se constituem direitos”.28 Ora, se

o direito, além de impor a uma parte o cumprimento da obrigação, atribui à

outra o direito de exigir esse cumprimento, daí resulta a idéia de

coercibilidade, ou seja, caso determinado preceito de conduta não seja

espontaneamente cumprido, uma das conseqüências será a possibilidade de

exigibilidade forçada em razão da regra infringida.

Pode-se definir, assim, coercibilidade, potencial coerção ou

possibilidade de coação, corolário da atributividade, como a possibilidade de

invocação de força em razão do descumprimento espontâneo da norma de

direito. Em outro dizer, coercibilidade é a coação em estado potencial,

latente. A norma jurídica se denota obrigatória, assim, não somente no

campo da consciência, mas em razão da possível invocação do uso da

força.

27 É o que nos ensina Miguel Reale (1991), para quem “Direito e Poder são termos inseparáveis”, seja este “estatal, costumeiro, jurisdicional ou negocial”. Sobre a questão da justiça, diz: “Dois extremos aqui devem ser evitados. De um lado põem-se aqueles que pretendem, a todo transe, atingir um conceito de Direito livre de qualquer nota axiológica, projetando a idéia de Justiça fora do processo de juridicidade positiva (Stammler e Del Vecchio); e, de outro, situam-se aqueles que identificam positividade jurídica e justiça, indivíduo e sociedade (Hegel, Gentile, Binder)”. In: REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 560-561 e 700. 28 Assevera o doutrinador: “Esta qualidade particular [caráter atributivo] do direito deriva, assim, da idéia de justiça, segundo a qual a cada um tem que se atribuir o que é seu (suum cuique), como de origem histórica de comportamento entre violência e consciência” In: GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 40.

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25

Dessa forma, se todas as leis humanas são, de certa maneira,

obrigatórias ou imperativas, ao imporem determinado comportamento,

apenas a norma de direito será atributiva, característica da qual a

coercibilidade é conseqüência.29

Contudo, sob a influência dos primeiros escritos de Kelsen, alguns

autores negam à norma jurídica a noção de regra imperativa de conduta.

Aludem que, por exemplo, os códigos penais nada mais fazem do que

descrever uma certa conduta como delituosa e imputar uma sanção a tal

conduta, inexistindo os ditos imperativos (“não matar”, “não roubar”). Esses

imperativos seriam algo anterior ao nascimento da lei.

Referidos autores argumentam a existência de um juízo hipotético

ou condicional (se isto ocorrer, então deverá ocorrer aquilo; se houver crime,

segue a pena; se A não votou, deve ser-lhe aplicada uma multa) e não

imperativo (faça isto, não faça aquilo) na norma jurídica.

Outros, como Carlos Cóssio apud Arnaldo Vasconcelos (2002),

igualmente adotam a tese da não-imperatividade, mas ao fundamento de

que as normas têm a estrutura de um juízo disjuntivo: dada certa conduta

deve ser a prestação ou dada conduta contrária deve ser a sanção (se A é

eleitor, deve votar, ou, se não votar, deve ser multado).30

29 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1994, p. 307. Sintetiza, por sua vez, Miguel Reale: “o Direito é coercível, porque é exigível, e é exigível porque é bilateral atributivo”. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 692. 30 Na arguta observação de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1980), “do ponto de vista lógico-formal implicação (se... então) e disjunção (ou... ou), são conectivos redutíveis um ao outro, sendo, na verdade, a mesma coisa dizer que ‘se o comportamento C ocorre, então segue a sanção S’, e ‘ou o comportamento C não ocorre ou segue-se a sanção S’. Numa linguagem simbólica: C ⇒ S = não C ou S”. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 60.

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26

A partir da segunda edição de sua obra Teoria pura do direito31,

Kelsen (1987), porém, passou a estabelecer a distinção entre a norma

jurídica e o seu enunciado. Antes, diferenciou norma jurídica e proposição

jurídica, caracterizando aquela como uma função da autoridade criadora do

direito e esta como uma função da ciência jurídica. A norma jurídica, editada

por um ato de vontade pela autoridade competente, prescreve a sanção

àqueles que infringem-na, ao passo que a proposição jurídica (juízo

hipotético ou condicional), provida da doutrina por um ato de conhecimento,

descreve a norma, dizendo que, dada a conduta inscrita na lei, deve incidir a

sanção nela estipulada. Enquanto o jurista dita proposições jurídicas (juízos

hipotéticos que afirmam que deverão sobrevir certas conseqüências no caso

de se verificarem certas condições previstas no ordenamento), somente as

autoridades constituídas estabelecem normas de direito.

Kelsen apud Fábio Ulhoa Coelho (2000) segue pontificando que

tanto a autoridade quanto o doutrinador externam a norma e a proposição

através de um enunciado. Com efeito, enquanto o legislador, no art. 121 do

Código Penal, enuncia que o homicídio deve ser punido com reclusão de

seis a vinte anos (norma jurídica), os professores enunciam que o homicídio

deve ser punido com reclusão de seis a vinte anos (proposição jurídica).32

De acordo com a teoria kelseniana, o enunciado ou a forma de

exteriorização da norma não é primordial; o que importa, deveras, é o seu

sentido. Assim é que, em si mesma considerada, a norma sempre tem o

sentido de uma disposição imperativa (“não matar”, “não roubar”, “faça isto”,

“não faça aquilo”), ainda que não o seja seu enunciado.

31 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 78-83. 32 In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 26.

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27

Os que repudiam a existência de um imperativo, ordem ou

prescrição na norma jurídica, confundem a norma em si com o seu

enunciado.33 Sobre o assunto, James Goldschmidt (2004) explica:

A teoria dos imperativos é corrente e não se rejeita

recorrendo a alguma das objeções que contra ela se

fizeram. As normas que por si mesmas não contêm um

imperativo, como as definições ou as normas derrogatórias,

carecem de independência. Os preceitos de caráter

permissivo ou concessivo podem sempre se reduzir à

afirmação ou à negação de um imperativo. Quem pretender

refutar a teoria dos imperativos invocando a estrutura de

muitas normas estará confundindo conteúdo e forma.34

De outra parte, se o direito é coercível, surge, então, o problema

da sanção. A doutrina não é uníssona se esta é elemento necessário da

estrutura da norma jurídica. Kelsen apud Fábio Ulhoa Coelho (2000)

responde a isso de modo afirmativo, ou seja, para o positivista, toda norma

jurídica compreende-se como a imposição de uma sanção à conduta nela

prevista, proibindo determinado comportamento. As normas no bojo das

quais não há previsão específica de sanção (exemplo: normas permissivas,

revogatórias, de competência ou meramente conceituais) sempre se ligam

intrinsecamente a outras de cunho sancionatório. Daí a distinção entre

normas dependentes (as que têm sanção em outra norma) e autônomas (as

que prevêem, nelas mesmas, a sanção). Segundo a teoria kelseniana, as

33 Do atributo relativo à imperatividade da norma jurídica advém a chamada função ordenadora do direito, segundo a qual o direito, pelo aspecto sociológico, é uma forma de controle social, na medida em que impõe modelos culturais, ideais coletivos e valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios. In: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 19. 34 GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 39.

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28

normas jurídicas não são tão-somente imperativos, mas imperativos

sancionadores.35

Contemporaneamente, todavia, predomina o entendimento

segundo o qual a sanção não é componente imprescindível da norma

jurídica. É bem verdade que, ao contrário da lei física ou natural em cujo

bojo inexiste sanção, pois as conseqüências por ela previstas decorrem

diretamente do fato, não se pode compreender as leis morais e jurídicas

desprovidas de sanção.36 A circunstância de serem sancionáveis não implica

dizer, contudo, que todas as suas normas, especificamente as jurídicas, são

dotadas de sanção. É o que salienta Norberto Bobbio (2006), para quem a

sanção é encontrada no ordenamento jurídico como um todo, mas não

necessariamente em cada norma jurídica.37

Além disso, há normas cuja violação não acarreta nem a nulidade

do ato nem qualquer outra penalidade. São as chamadas leis imperfeitas

(leges imperfecatae), de que são exemplos as seguintes disposições

programáticas previstas na Constituição Federal, in verbis:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e

da família, será promovida e incentivada com a colaboração

da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,

seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação

para o trabalho.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos

direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e

35 In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 35. 36 Miguel Reale, op. cit., p. 257. 37 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2006, p. 27-31. Ainda, no sentido do expendido, Luis Antonio Rizzatto Nunes (2003) disserta que a doutrina reconhece a existência de normas jurídicas sem sanção, de que são exemplos as definições de consumidor e fornecedor constantes da legislação consumerista. In: NUNES, Luis Antonio Rizzato. Manual de introdução ao

estudo do direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 189.

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29

apoiará e incentivará a valorização e a difusão das

manifestações culturais.

Superada a distinção entre as leis jurídicas e as demais leis

humanas, diz-se que a lei jurídica pode ser empregada: (a) em sentido

amplíssimo, que compreende todas as normas jurídicas, escritas e não

escritas, (b) em sentido menos amplo, referente às normas escritas oriundas

tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo, e (c) em sentido estrito e

próprio, indicando a elaborada apenas pelo Poder Legislativo, a caracterizar

o sentido puramente técnico de lei, da lei propriamente dita, distinguindo-a

dos decretos, regulamentos, portarias, instruções, medidas provisórias e

outras normas emanadas do Poder Público.

Porque dirigido à solução específica acerca do conflito temporal

de leis processuais, interessa ao desiderato deste trabalho o conceito de lei

jurídica stricto sensu, ou seja, o preceito jurídico escrito emanado do Poder

Legislativo38, conquanto o conflito intertemporal a esse campo não se

restrinja exclusivamente.39

Alertamos o leitor, porém, que no decorrer da obra utilizaremos

indistintamente os termos lei e norma como sinônimos de lei em sentido

38 De acordo com José Afonso da Silva (1964), a lei é definida, por alguns doutrinadores, considerando seu aspecto formal e, por outros, tendo em vista seu lado material. Pelo denominado conceito formal, a lei é concebida pelo modo de sua elaboração, de sorte a somente se considerar ato de legislação, em sentido estrito, o originado do órgão a que a Constituição confere competência típica para fazer leis. Para outros, tais como Emile Bouvier e Gaston Jéze, a lei deve ser definida segundo a função exercida e características das quais é dotada. Esse é o conceito material, para o qual lei significa o preceito jurídico, dotado de generalidade, obrigatoriedade, permanência. In: SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 15-16. 39 De fato, os atos normativos infralegais emanados do Poder Público, tais como os regulamentos, as instruções, os atos normativos e as decisões dos órgãos administrativos, submetem-se a iguais considerações referentes aos conflitos de leis no tempo. In: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 51. Deste entendimento comunga José Eduardo Martins Cardozo (1995), ao se expressar nestes termos: “Assim, se entendermos que integram o ordenamento normativo do Estado as denominadas ‘normas jurídicas individuais’ (contratos, sentenças, atos administrativos ‘stricto sensu’ etc.), o fenômeno da intertemporalidade também se fará presente”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 38.

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estrito. Outros atos jurídicos lato sensu, considerados pela ciência do direito

como normas (v.g., os negócios jurídicos), não serão abordados neste

estudo, exceto quando necessários ou pertencentes à seara processual.

2. DIREITO TRANSITÓRIO E DIREITO INTERTEMPORAL

Wilson de Souza Campos Batalha (1980) nos ensina que, para o

direito, o tempo é dividido em pedaços, cortando uma realidade duradoura,

que insta. A temporalidade jurídica não é um fluxo contínuo, não se revela

num desenrolar-se, uma vez que a dinâmica social impõe mudanças

constantes no mundo normativo. A realidade flui, enquanto as normas

nascem, vivem e morrem. Em virtude dos “cortes numa realidade que dura,

essas divisões numa vida social que flui e insta constituiriam flagrante

injustiça, ou constituiriam justiça a gerar inseguranças, surgiu, no seio do

conceito jurídico do tempo, a idéia da intertemporalidade”40.

Da noção de temporalidade advém a concepção de

intertemporalidade jurídica, entendida como o fenômeno decorrente da

sucessão de normas no tempo. A intertemporalidade jurídica, essa “situação

tipificada quando um norma sucede a outra no campo temporal”41, pode ser

apreendida tanto no plano exclusivo das normas, quanto na interação do

campo normativo com o dos fatos.

40 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 15. 41 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 33.

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31

No âmbito restrito do plano normativo, no qual se estudam os

institutos relativos às épocas de nascimento e morte das normas jurídicas,

não se cogita conflitos de leis. Não se indaga a respeito da primazia de

determinada norma à realidade de certa situação fática, porque, repita-se,

está-se ainda no plano privativamente abstrato das normas. Os problemas,

por ora, gravitam em torno da data em que a norma inicia sua vigência,

quando se tem-na por revogada, se a revogação é no todo (ab-rogação) ou

em parte (derrogação), a possibilidade de repristinação e outras questões

similares.

O legislador, antevendo justamente a possibilidade de conflito,

não raro edita as denominadas disposições transitórias, instituindo um

terceiro regime ou regime de transição, intermédio entre o velho e o novo

regramento. É o chamado direito transitório, destinado a perdurar

temporariamente até que se passe inteiramente do direito antigo ao novo.

Portanto, no exame estritamente normativo, a intertemporalidade

jurídica, decorrente da sucessão temporal de um regime a outro e, quiçá,

presente uma disciplina jurídica intermediária, não implica qualquer conflito

de leis. É o campo da intertemporalidade não-conflitual.

Porém, ao nos deslocarmos do plano normativo ao campo factual,

transpondo a abstração das normas à concretude dos fatos, apreciando de

maneira conjugada as searas normativa e fática, passamos a afigurar

possível o conflito de normas (duas ou mais concorrendo para reger fatos,

relações ou situações), ocasião em que reclama-se, então, a aplicação dos

princípios e normas atinentes ao direito intertemporal. Aqui o intérprete

deverá apurar se, à determinada realidade empírica, incidirá o direito velho

ou o novo, sendo que para tanto fará uso de normas e princípios, tais como

a retroatividade e irretroatividade das leis. Nesse caso, “encontramos o

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conflito de leis no tempo, a ser solucionado pela doutrina e pela

jurisprudência, o Direito Intertemporal, a intertemporalidade conflitual”.42

Resumidamente, enquanto o direito transitório, manifestado no

plano do movimento normativo, evita, o direito intertemporal43, resultante da

apreciação conjunta das normas aos fatos, resolve o conflito. Ao encontro do

desse entendimento, Maria Helena Diniz (2005) define o seguinte:

(a) as disposições transitórias (...) são elaboradas pelo

legislador, no próprio texto normativo, para conciliar a nova

norma com as relações já definidas pela anterior. São

disposições de vigência temporária, com o objetivo de

resolver em evitar os conflitos ou lesões que emergem da

nova lei em confronto com a antiga;

42 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 16. 43 Controverte-se a doutrina a respeito da expressão que representa com justeza o direito disciplinador do alcance de duas normas que se seguem reciprocamente no tempo. Propõem-se denominações como: Teoria dos Direitos Adquiridos, Teoria da Retroatividade das Leis, Direito Transitório, Conflito de Leis no Tempo e Direito Intertemporal. Endossada por Ferdinand Lassalle apud Carlos Maximiliano (1955), a expressão Teoria dos Direitos Adquiridos deve ser repelida, segundo alguns, porque implica uma tomada de posição em favor de certa corrente doutrinária. Já a denominação Direito Transitório é criticada por alguns doutrinadores, por sugerir a idéia de que as normas solucionadoras do conflito são em si mesmas, como induz a própria expressão, transitórias, passageiras, sabido que existem regras e princípios permanentes a respeito da matéria. A censura a fazer-se sobre referida expressão advém, ainda, da circunstância de que o Direito Transitório destina-se a evitar o conflito de leis no tempo e não a solucioná-lo, como o faz o Direito Intertemporal. Ambos institutos tratam do entretempo jurídico, mas o Direito Transitório insere-se no campo intertemporalidade não-conflitual, ao passo que da intertemporalidade conflitual cuida o Direito Intertemporal. Por outro lado, razão assiste a Roubier (1960) ao condenar complemente as denominações Teoria da Retroatividade das Leis e Teoria da Irretroatividade das Leis, porquanto denotam apenas uma parte do problema. Adotada por Fr. Affolter em 1897 (Geschichte des

intertemporalen privatrechts, Leipzig, 1902, apud Paul Roubier, 1960, p. 4), e preferida pela maioria dos autores brasileiros, tais como Carlos Maximiliano (1955) e Campos Batalha (1980), Direito Intertemporal é a denominação que expressa com exatidão o conjunto de regras jurídicas disciplinadoras do conflito de leis no tempo. A expressão Conflito de Leis no Tempo, uma das quais faz uso Paul Roubier (1960), também encontra receptividade na doutrina brasileira, a exemplo de José Eduardo Martins Cardozo (1995). Como o objeto de estudo, porém, não é o conflito em si, mas as regras que o solucionam, quer parecer mais adequada a denominação Direito Intertemporal. A distinção entre intertemporalidade e Direito Intertemporal é observada por José Eduardo Martins Cardozo (1995) da seguinte forma: “a ‘intertemporalidade’ não é ‘conjunto de soluções’. É apenas um fenômeno que se insere dentro da temporalidade jurídica, e que suscita uma série de problemas e questões passíveis de serem solucionados pelo Direito Intertemporal. Este sim nos fornece um ‘conjunto de soluções’”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 33.

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33

(b) o dos princípios da retroatividade e da irretroatividade

das normas, construções doutrinárias para solucionar

conflitos entre a norma mais recente e as relações jurídicas

definidas sob a égide da norma anterior, na ausência de

norma transitória.44

O primeiro tem como exemplos recentes, no direito positivo pátrio,

os arts. 2.028 a 2.046 do novo Código Civil, os quais compõem o

denominado “Livro Complementar – Das Disposições Finais e Transitórias”,

enquanto que do segundo se ocupam o art. 6º da Lei de Introdução ao

Código Civil e o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Contudo, apesar de verificarmos o conflito intertemporal tão-

somente, ao ingressarmos no plano ontológico, imprescindível se faz, antes,

a compreensão acerca da temporalidade abstrata das normas, vale

dizermos, a respeito da vigência, revogação e demais institutos afins.

44 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36-37. A regra, porém, segundo a qual os princípios e normas norteadores do direito intertemporal são aplicáveis somente em caso de lacuna ou inexistência de disposições transitórias não é absoluta. Deveras, nem sempre as disposições de caráter temporário arredam essa possibilidade. Ressalva Carlos Maximiliano (1955) que as disposições transitórias prevalecem até mesmo quando contrárias à teoria verdadeira sobre a aplicação da lei no tempo, “salvo em sendo constitucional o princípio da irretroatividade e havendo antinomia entre o mesmo e as referidas Disposições”. In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 14. No direito brasileiro, as disposições transitórias editadas em lei ordinária não poderão retroagir no sentido de ofender o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Aqui o critério de solução da antinomia anunciada é natureza hierárquica (“lex superior derogat legi inferiori”), baseada na superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre outra. Segundo os ensinamentos de Maria Helena Diniz (2005), em um conflito de normas de níveis diversos, a de nível mais alto, qualquer que seja a ordem cronológica, terá preferência sobre a de nível mais baixo. Para Hans Kelsen apud Maria Helena Diniz (2005), porém, não há, em normas de diferentes escalões, conflito, porque a norma inferior tem seu fundamento de validade na superior, de forma que só será válida a norma inferior se estiver em harmonia com a do escalão superior. In: DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 34. Quanto às disposições constitucionais transitórias, ver-se-á adiante, no tópico referente ao poder constituinte derivado.

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34

3. PLANOS DE EXISTÊNCIA, VIGÊNCIA, VALIDADE E

EFICÁCIA DA LEI

3.1. A Relevância dos Conceitos

Na ciência do direito, inexiste uniformidade doutrinária sobre os

conceitos de existência, vigência, validade e eficácia das leis. É improvável

encontrar-se imune a críticas qualquer tentativa na qual se proponha traçar

de modo concludente tais definições, porque se adentra em campo

tormentoso de penosa resolução.

De fato, a pretensão de se estabelecer noções dogmáticas

absolutas ou inflexíveis sobre tais esferas normativas inexoravelmente

implicará o aparecimento de antinomias insolúveis, pois podem ocorrer

situações aparentemente excêntricas, as quais, em verdade, apenas

revelam a dinâmica peculiar dos fenômenos jurídicos.45 Não obstante, é

sempre valiosa a intenção dos doutos que se enveredaram em tal

45 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, vigência, validade, eficácia e efetividade das normas jurídicas. Ciência Jurídica, v. 49, 1993, p. 27-46.

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empreitada, porquanto a redução das divergências não encontra outro

caminho senão o enfrentamento do tema.

Sem embargo das reais controvérsias acerca da matéria em

comento, é pertinente nesta seara a observação de Sampaio Dória apud

Luís Roberto Barroso (2006) de que “os homens dissentem mais em virtude

da equivocidade da linguagem que usem, do que pelas concepções que

tenham das realidades em si”.46

O estudo dos conceitos de que ora cuidamos não pode prescindir,

contudo, de breve síntese acerca do modo pelo qual as leis ingressam no

sistema jurídico, ou seja, do denominado processo de legislativo, que abaixo

se fará em linhas gerais, conferindo-se maior ênfase, porque relevantes ao

presente trabalho, aos aspectos relativos à promulgação e publicação das

leis.

3.2. Processo Legislativo

Entendida em sentido estrito e próprio, como regra de direito

geral, abstrata e permanente, proclamada pela vontade da autoridade

competente e expressa em fórmula escrita, a lei somente é considerada

como tal após seu respectivo projeto passar por um processo legislativo,

previsto constitucionalmente e composto das seguintes fases: introdutória

(referente à iniciativa da proposta), constitutiva (iniciando-se com a

deliberação nas comissões e plenário até a sanção ou veto) e a

complementar (pertinente à promulgação e publicação da lei).47

46 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 79. 47 Por ser amplo e completo, far-se-á breve escorço sobre o procedimento de elaboração de uma lei ordinária, não sendo proveitoso ao desenvolvimento deste trabalho a explanação específica atinente ao processo de formação de leis de natureza diversa.

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Iniciativa é a faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão

para apresentar projetos de lei ao Legislativo. Apresentado o projeto, advém

a chamada fase constitutiva, composta cronologicamente das deliberações

parlamentar e executiva. Na parlamentar, o projeto é encaminhado à Casa

Legislativa Iniciadora, na qual, submetido à Comissão de Constituição e

Justiça e às Comissões Temáticas pertinentes, recebe um parecer e segue

para votação48. O projeto é, então, remetido ao plenário da Casa respectiva,

quando será discutido e votado. Rejeitado, ocorrerá seu arquivamento.

Aprovado o projeto de lei pela Casa iniciadora, seguirá para a outra, a qual

exercerá o papel de Revisora, em que, igualmente, é analisado pelas

Comissões, discutido e votado.

Finda a deliberação parlamentar, tem início a deliberação

executiva, na qual o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional é

submetido à análise pelo Presidente da República, a quem compete a

sanção ou o veto. O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de

trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo o ser rejeitado pelo voto

da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto (CF,

art. 66, § 4º).

Sancionado o projeto pelo Presidente da República ou derrubado

o veto pelo Congresso Nacional, opera-se a conversão do projeto em lei,

sendo, após, encaminhado à promulgação, sobrevindo a derradeira fase

complementar. No dizer de Alexandre de Moraes (2001), promulgar:

(...) é atestar que a ordem jurídica foi inovada, declarando

que uma lei existe e, em conseqüência, deverá ser

cumprida. Assim, a promulgação incide sobre um ato

perfeito e acabado, ou seja, sobre a própria lei, constituindo-

48 Admite-se também seja o projeto votado na própria comissão temática pela qual tramita, podendo o resultado ser questionado perante o plenário através de recurso de 1/10 dos membros da Casa (CF, art. 58, 2º, I).

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se mera atestação da existência da lei e promulgação de

sua executoriedade.49

Como o art. 3º da Lei de Introdução disciplina que ninguém se

escusa de cumprir a lei, afirmando que não a conhece, à promulgação deve

seguir-se a publicação, através da qual leva-se ao conhecimento do povo,

destinatários da norma, a inovação no ordenamento jurídico, com o objetivo

de impedir a alegação de ignorância da lei.

Três teorias procuram justificar a sobredita regra: a da presunção,

a da ficção e a da necessidade social. A primeira presume que a lei, uma

vez publicada, torna-se conhecida de todos. A segunda pressupõe que a lei

publicada passa a ser conhecida por todos. As duas são criticadas por se

estribarem em inverdades. A mais aceita é a teoria da necessidade social,

segundo a qual a lei é obrigatória, devendo ser cumprida, não por

conhecimento presumido ou ficto, mas para garantir a convivência social e a

eficácia do ordenamento jurídico, que ficaria comprometido caso a alegação

de ignorância admitisse acolhida.50

Quem promulga deve determinar a publicação da lei em jornal

oficial. Exemplificando a distinção temporal entre promulgação e publicação,

citamos a Lei nº 8.069 (Estatuto da Criança e Adolescente). Ela foi

promulgada em 13.07.1990 e publicada em 16.07.1990 (DOU, seção I, p.

13.563).

Uma vez publicada, a lei entrará em vigor, no silêncio do texto,

quarenta e cinco dias em todo o País e nos Estados estrangeiros três meses

depois de publicada (LICC, art. 1º).51 A este intervalo de tempo entre a data

da publicação da lei e sua vigência dá-se o nome de vacatio legis. A

49 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 525. 50 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil – parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 20-21. 51 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. Op. cit., p. 526.

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obrigatoriedade da lei inicia-se com a vigência da norma, marco a partir do

qual passa a ser exigível o seu cumprimento.

3.3. Existência Jurídica

Feito breve resumo do processo legislativo, de indagarmos qual o

significado e em que momento se afigura a existência jurídica da norma de

direito. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006), já era de Pontes

de Miranda a assertiva de que a promulgação “constitui mera atestação da

existência da lei”.52 Efeito lógico deste ensinamento é de que a lei foi, antes,

criada, isto é, a promulgação certifica algo já existente.

É por ocasião, então, da sanção ou da rejeição do veto que o

projeto torna-se lei, configurando-se o nascimento da norma, tanto que

encerra a fase constitutiva do processo legislativo. A redação do art. 66, §

7º, da Constituição Federal, ao mencionar lei como o ato a ser promulgado,

é harmoniosa com o entendimento ora sufragado, que encontra vozes na

maioria dos doutrinadores pátrios, dentre os quais José Afonso da Silva

(1998)53, Michel Temer (2000)54, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006)55,

Celso Ribeiro Bastos (1996)56, entre outros. Em sentido contrário, para quem

a promulgação é o ato que transforma o projeto em lei, temos a opinião de

Nelson de Souza Sampaio apud Alexandre de Moraes (2001).57

Porém, o nascimento da norma, ao término da fase constitutiva,

implica sua existência meramente sob o aspecto substancial, sem que ainda

52 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 201. 53 Segundo o referido autor, a promulgação e a publicação da lei “não configuram atos de natureza legislativa. Rigorosamente, não integram o processo legislativo. Promulga-se e publica-se a lei, que já existe desde a sanção ou veto rejeitado. É errado falar em promulgação de projeto de lei”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 526. 54 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 142. 55 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional.Op. cit., p. 195. 56 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 336. 57 In: MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 525.

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seja possível cogitarmos de qualquer inovação no mundo jurídico. Isso

porque, para a existência jurídica da norma, vale dizermos, a sua

incorporação ao ordenamento jurídico, imprescindível a promulgação

respectiva. Como explica Celso Ribeiro Bastos (1996), entenda-se existir a

lei com a sanção ou derrubada do veto ou só com a promulgação:

(...) todos, porém, concordam num ponto: é através da

promulgação que a lei passa a existir no mundo jurídico e

está apta a produzir efeitos. A promulgação importa na

presunção de que o mundo jurídico foi inovado por uma lei

válida executória e obrigatória.58

Importa ao operador de direito a consideração da ocasião em que

se denota a existência jurídica da norma, momento a partir do qual ela passa

a adquirir relevância ao fazer parte do corpo do direito brasileiro, o que se

verifica, repita-se, com a promulgação.

Pelo discorrido, podemos afirmar que por existência jurídica

entende-se a integração da norma ao ordenamento jurídico, o que surge

com a promulgação e cessa com a revogação.

Exige-se, ainda, a fim de que se tenha por existente a norma de

direito, que haja emanado de fonte produtora admitida como tal pelo próprio

ordenamento; se o centro criador não é aceito como fonte de direito diz-se

ser a norma inexistente. É um vício tanto gravíssimo que a norma nem

sequer chega a entrar no sistema.59 Da mesma forma que a sentença

(norma jurídica individual) proferida por quem não ostenta a qualidade de

juiz é considerada inexistente, também o será a lei jurídica stricto sensu que

não provenha do Poder Legislativo, ou, nas palavras de Luis Roberto

58 O tema, contudo, não é de todo pacífico. Assim é que Miguel Maria de Serpa Lopes, ao tratar da sanção, discorre que “por força desse ato de aquiescência, a lei recebe sopro vital, começa a ter existência jurídica”. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de

Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 40. 59 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 213.

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Barroso (2006), é inexistente a lei que não seja “resultado de aprovação da

Casa Legislativa, por ausente a manifestação de vontade apta a fazê-la

ingressar no mundo jurídico”.60

3.4. Validade

O enfoque sobre a validade das normas jurídicas assume

diversas e complexas abordagens doutrinárias descabendo-nos, no estreito

âmbito deste trabalho, apreciá-las na sua inteireza. Mas por reputarmos de

especial importância, mencionaremos as visões de alguns jurisconsultos que

se dedicaram ao assunto.

Na investigação sobre a validade, Kelsen (1987) vê o

ordenamento como uma estrutura hierarquizada. Afirma que a validade de

uma norma repousa em outra superior, cuja validade encontra-se

determinada por outra e assim sucessivamente, até que se chegue à

Constituição. O direito positivo evidencia-se por uma estrutura normativa

escalonada na qual a Constituição detém suprema hierarquia. No ápice da

pirâmide jurídica situam-se, pois, as normas constitucionais, a conferirem

validade a todas as demais manifestações normativas do Estado.61

60 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 80. 61 Kelsen (1987), equipara as idéias de existência, validade e vigência, posição, hoje, difícil de se sustentar: “Com a palavra vigência designamos a existência específica da norma (...) Podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou não deve ser, deve ou não ser feita”. Outra visão kelseniana atualmente questionável refere-se à eficácia como condição de validade. Anota que, sem um mínimo de eficácia, a norma não pode ser válida. Confira-se: “Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é condição de sua vigência”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 10-16. Também é de se registrar o posicionamento de Alf Ross, para quem a validade da norma encontra-se condicionada à sua aplicação pelos Tribunais. Com relação às normas recém-promulgadas, ainda não aplicadas, Ross observa que a validade é analisada pela probabilidade de aplicação pelo julgador. Contra a concepção de Ross objeta Kelsen, ao afirmar que à ciência do direito cabe precisar se uma norma vale ou não vale e não que vale em certo grau de probabilidade In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 177-178. A colocação de Ross, ao encarar a validade coma a probabilidade de aplicação, deixou de abordar questões diferenciais entre validade, vigência e eficácia.

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41

Já Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001) recorre a uma explicação

de validade pragmática, área da semiótica que cuida dos efeitos

comportamentais da comunicação, isto é, das relações entre a linguagem e

seus usuários. As normas são entendidas como uma forma de comunicação

e, como tal, ocorre em dois níveis: o relato, que diz respeito à mensagem

transmitida pelo conteúdo da norma (v.g., não podem casar os ascendentes

com os descendentes, Código Civil, art. 1521, I) e, concomitantemente, o

cometimento (ordem), que corresponde a uma mensagem sobre como o

relato da norma deve ser entendido (proibido o casamento de ascendentes

com descendentes).

Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001) prossegue discorrendo que

a norma jurídica será valida se o seu cometimento ou ordem, que expressa

uma relação de autoridade, encontrar-se imune contra eventuais reações do

destinatário, através do relato de outra norma. No exemplo supracitado, o

editor da norma, no relato, diz “não podem casar os ascendentes com os

descendentes” porque o cometimento dessa norma (está proibido esse

casamento, isto é uma ordem, obedeçam) está imunizado contra qualquer

reação pelo relato de uma outra norma (no caso, a do art. 22, I, da CF, que

preceitua a competência privativa da União para legislar sobre direito civil).

Validade exprime uma relação de imunização, entre o cometimento de uma

norma e o relato de outra que a imuniza.62

Assim, para o referido autor, a norma (imunizada) será válida se a

imunizante lhe garante a relação de comunicação autoridade/sujeito,

imunizando o emissor (legislador, juiz, administrador etc.) contra

posicionamentos de indiferença, descrédito, reação, em suma, contra

desconfirmação pelo sujeito (destinatário). Em outras palavras, a lei será

62 Teoria da norma jurídica, p. 3-7, 48, 97, 105-108, 113 e s., apud DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, vigência, validade, eficácia e efetividade das normas jurídicas. Ciência Jurídica, v. 49, 1993, p. 37-44.

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válida quando a relação de autoridade por ela estabelecida encontrar-se

assegurada pelo conteúdo de uma lei que lhe é mais abrangente que

aquela.

Outro ponto em que se contrastam as opiniões diz respeito à lei

última, aquela a conferir validade às demais pertencentes ao sistema

jurídico. Nesse aspecto, sobre a indagação da validade da própria

Constituição, Kelsen apud Fábio Ulhoa Coelho (2000) criou a chamada

norma hipotética fundamental, fundamento último de validade das normas

jurídicas. De acordo com o positivista, tal norma evita uma regressão

hierárquica ao infinito, enclausurando o sistema jurídico. A norma hipotética

fundamental é uma norma não posta, mas suposta; devendo-se pressupor,

em um ordenamento jurídico, a existência de uma norma que imponha a

observância da Constituição e das demais normas por ela fundamentadas. A

norma fundamental não é, assim, positiva, mas hipotética, prescrevendo a

obediência à Constituição.63

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2001) igualmente partilha da

existência de uma norma fundamental, afirmando que, na relação de

imunização, na qual a norma imunizante é imunizada por outra e esta por

outra regressivamente, restará um ponto em que se chegará em uma norma

que é só imunizante. Para ele, todavia, a norma apenas imunizante,

fundamental ou norma-origem, é sempre uma norma posta e não suposta. É

uma norma efetiva, existente como tal e dotada de imperatividade. E as

regras responsáveis por sua força impositiva são regras estruturais do

sistema ou regras de calibração.64

63 Em sua obra póstuma, porém, Kelsen revê o caráter hipotético da norma fundamental. Diz tratar-se de uma ficção: contraria a realidade, porque não corresponde a nenhum ato concreto de vontade, não existindo enquanto norma e se contradiz internamente, pois descreve a outorga de um poder supremo, partindo de uma autoridade ainda superior. Conclui que a ficção, todavia, apesar de suas contradições, é instrumento do saber limitado. In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 28-29. 64 Exemplo, para Tercio Sampaio Ferreira Júnior (2001), de norma fundamental foi a criada pelo Tribunal de Nuremberg, em cujo Estatuto (art. 6, c) se tipificou o genocídio como crime contra a humanidade, o que permitiu a responsabilização dos criminosos nazistas, já que, até então, inexistia

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43

Difícil, realmente, é sustentar a existência de uma norma

fundamental pressuposta, como o fez Kelsen, que procurou abstrair o direito

dos valores que ditaram sua existência. O direito não pode ser

compreendido sem a análise dos valores (ou regras de calibração) que o

iluminaram ao longo da história. São eles que movem o homem à edição das

leis integrantes de um ordenamento, de sorte que a validação de uma

norma-origem não passa ao largo desses valores que justificaram sua

elaboração.65

Expostas duas respeitáveis posições a respeito da validade das

normas, importa adentrarmos, em verdade, considerando a espécie

normativa em cujo âmbito cinge-se esta obra, no conceito de validade em

sentido constitucional.

Nesse passo, entende-se que a validade de uma lei jurídica em

sentido estrito pressupõe a sua existência jurídica, advinda da

promulgação66, bem como a pertinência material e formal com a

Constituição.

regra a criminalizar o genocídio. E para escapar do princípio nullum crimen nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem prévia lei) e possibilitar a previsão do genocídio no Estatuto, invocou o Tribunal a existência de certas exigências fundamentais de vida na sociedade internacional que implicariam a responsabilidade individual dos mencionados criminosos. Essa regra, exigências fundamentais de vida na sociedade internacional, é uma regra de calibração que conferiu imperatividade à norma-origem constante do art. 6, c, do Estatuto. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 186-187. 65 Ao citar Radbruch, Miguel Reale (1991) diz o seguinte: “o jurista, por exemplo, que fundasse a validade de uma norma tão-somente em critérios técnico-formais, jamais poderia negar com bom fundamento a validez dos imperativos baixados por paranóico que por acaso viesse a ser rei” REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 522. 66 A validade da norma é iniciada pela promulgação, por ser o momento em que adquire existência jurídica. Nesse sentido esclarece Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 23), “mercê da promulgação atribui-se ao texto validade como lei no plano do ordenamento jurídico”. Por fim, conforme Carlos Alberto Bittar Filho (1992), a publicação não é requisito intrínseco de existência da lei. BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Da existência, validade, vigência e eficácia da lei no sistema

brasileiro atual. V. 683. Revista dos Tribunais, 1992, p. 33.

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44

De fato, a lei há de estar conforme as prescrições constitucionais.

Como averbam Gomes Canotilho e Vital Moreira apud Carraza (1991): “A

principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste

em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu

crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela”.67

A Constituição, bem de ver, estabelece condições formais e

materiais de validade das leis. São os chamados requisitos formais e

materiais de constitucionalidade das leis, empregados pela doutrina

constitucionalista. Os primeiros se referem à observância das normas

constitucionais de processo legislativo e os últimos à verificação substancial

da compatibilidade do objeto da lei com a Lei Maior.68

Diz-se inconstitucionalidade formal ou nomodinâmica se o vício

está na produção da norma, no processo de elaboração;

inconstitucionalidade material ou nomoestática se o vício refere-se ao

conteúdo da norma69, ou, ainda, vício de forma ou de conteúdo,

respectivamente.70

Portanto, em tema de validade das leis jurídicas em sentido

estrito, leis que desrespeitam formal ou substancialmente a Constituição são

inválidas ou inconstitucionais.71

3.5. Vigência

67 CARRAZA, Roque Antonio. ICMS. 3ª ed. São Paulo : Malheiros, 1997, p. 22. 68 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 559-560. 69 CHIMENTI, Ricardo Cunha. Apontamentos de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Paloma, 2001, p. 162. 70 Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001), disserta que são tidas como condições formais de validade da lei a observância das normas de competência (ex.: só o Congresso produz normas federais, só o Presidente as sanciona, etc.) e de determinação do momento (ex.: a Constituição não pode ser emendada durante o estado de sítio, art. 60, § 1º, etc.). Por sua vez, a observância da matéria compreende a validade material. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 194. 71 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 55.

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Alguns doutrinadores definem vigência como o período de

disponibilidade da lei, ou seja, com “o tempo em que ela atua”.72 Outros,

igualmente autorizados, encontram no conceito de vigência correspondência

com a denominada validade técnico-formal da norma de direito, a pressupor

o preenchimento das condições formais e materiais previstas para sua

produção.73

O conceito de vigência parece designar algo diverso dessas

respeitáveis posições, porém. No intento de atingir o grau satisfatório do

significado do instituto, adverte Hugo de Brito Machado (2003) que devemos

examinar a realidade do que acontece no sistema jurídico, isto é, temos de

conhecer o fato que ela designa para verificar se a designação é

adequada.74

Aqueles que encontram no conceito de vigência o período de

disponibilidade da lei parecem confundir a vigência com sua duração.75 Por

outro lado, uma lei cujo conteúdo e forma encontra amparo na Constituição

é, de fato, válida do ponto de vista técnico-jurídico. Mas não podemos dizê-

la, por si só, vigente, porque a vigência depende de norma que a estabeleça,

norma que pode ser veiculada pela própria lei. Já vimos anteriormente que,

salvo disposição em contrário, a lei entra em vigor quarenta e cinco dias em

todo o País e nos Estados estrangeiros três meses depois de publicada

(LICC, art. 1º). Eis a regra: ou a lei contém norma a dispor o momento em

que passa a viger ou aplica-se a norma do art. 1º da Lei de Introdução. A lei

pode, pois, ser válida e não necessariamente vigente, se depender da

72 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Da existência, validade, vigência e eficácia da lei no sistema

brasileiro atual. V. 683. Revista dos Tribunais, 1992, p. 32. 73 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 228. 74 MACHADO. Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista Forense, v. 313, 1991, p. 46. 75 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 93.

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verificação de vacância76, também chamada de cláusula de vigência77,

determinadora do momento em que a lei passa a vigorar.

Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior (1997) indicam

a existência de três critérios para a fixação da cláusula de vigência da lei, a

saber: (a) o estabelecimento de dia certo para a entrada em vigor, do que é

exemplo o Código de Processo Civil (Lei nº 5.869, de 11.01.1973) que

passou a vigorar em 1º de janeiro de 1974 (art. 1.220); (b) a fixação de data

levando-se em consideração o dia da publicação da lei (imediatamente ou a

partir de certo prazo); e (c) a fixação da vigência com base em outro

acontecimento.78

Por outro lado, a validade não é condição da vigência. De fato, a

lei pode contrariar o conteúdo da Constituição e, não obstante, ser vigente,

porque foi posta a incidir, pelo órgão competente segundo o sistema

jurídico.79

Vigência significa, portanto, aptidão para incidir, vale dizer, para

dar significação jurídica aos fatos. Para produzir efeitos jurídicos no plano

abstrato. Lei vigente pode incidir e, assim, dar a seu suporte fático um

significado jurídico. Se a lei é vigente e ocorre a situação nela prevista como

hipótese de incidência, inevitavelmente incide. A incidência é automática,

explica Hugo de Brito Machado (2003)80, acrescentando que a “incidência

não produz nenhum efeito no plano fático ou plano do ser”.81

76 DAL COL, Helder Martinez. Classificação das normas jurídicas e sua análise nos planos da

validade, existência e eficácia. Jurid Publicações Eletrônicas, doutrina nº 567, s/d. 77 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 53. 78 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e

legislação processual civil extravagante em vigor. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 1.076. (Nota ao art. 1.220). 79 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 93. 80 Ibidem, p. 94. 81 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista Forense, v. 313, 1991, p. 47.

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Afigura-se possível, do exposto, divisar os momentos iniciais de

existência jurídica e vigência da lei. A lei passará a existir no mundo jurídico

pela promulgação e a viger, caso silencie a respeito, após o período de

vacatio legis. Existência jurídica e vigência, portanto, não se confundem. A

vigência pressupõe não só a existência jurídica da norma como também o

esgotamento da fase complementar do processo legislativo, exaurido, ainda,

o período de vacatio legis.

Depreendido o conceito em tela, cabe perquirirmos o momento no

qual patenteia-se o termo final de vigência da norma. Preceitua o art. 2º da

Lei de Introdução do Código Civil, in verbis: “Art. 2º. Não se destinando à

vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”.

As leis, em regra, têm vigência até serem modificadas ou revogadas por

outras leis.82

A revogação da lei se considera havida no exato instante em que

a lei revogatória se torna obrigatória, isto é, com o início da vigência da lei

nova estabelece-se o limite divisório de sucessão das mesmas. Contundente

a observação, a respeito, de Oscar Tenório apud Wilson de Souza Campos

Batalha (1980), segundo a qual a revogação “de uma lei não é data da

82 “Os conceitos de derrogação ou ab-rogação somente se aplicam a normas de igual hierarquia e não a normas de planos diferentes”, sustenta Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 25). A nosso ver, porém, assiste razão à Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 96), ao afirmar que a revogação por incompatibilidade (a revogação pode decorrer: de expressa disposição na lei nova, da vigência de norma incompatível e da regência integral pela lei nova) pode acontecer pela superveniência de lei do mesmo grau hierárquico, portadora de disposição diferente da contida na lei velha, ou pela não-recepção desta em Constituição posterior a ela. No mesmo sentido, Carlos Alberto Bittar Filho (1992, p. 32) diz que devemos trazer à baila uma importante questão: “a lei incompatível com a Constituição deve ser declarada inconstitucional ou apenas considerada como revogada? Se a lei é posterior à Constituição, há inconstitucionalidade. Se é anterior, há revogação, por causa do princípio da continuidade das leis, segundo o qual a lei é revogada por outra hierarquicamente igual ou superior”. De toda sorte, entenda-se existir revogação ou não, não há divergência quanto ao fato de que a superveniência de norma constitucional incompatível com lei infraconstitucional então vigente retira a validade desta. De outro turno, é importante não confundirmos o fenômeno da revogação por não-recepção, verificáveis entre disposições de diferentes níveis hierárquicos (lei e Constituição), com o fato de que, como esclarece Carlos Maximiliano (1955, p. 27), haver possibilidade de conflito de leis no tempo somente entre duas normas positivas que se achem em pé de igualdade, ou seja, do mesmo nível hierárquico, não havendo que se cogitar, por exemplo, em conflito entre lei e regulamento.

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promulgação ou publicação da lei que a revoga, mas a data em que a lei

revogatória se torna obrigatória”.83

A fixação temporal da sucessão das leis, revogatória e revogada,

é de grande valia para a compreensão da distinção entre os fatos passados,

pendentes e futuros, considerando que ao direito intertemporal interessa o

exame das situações pendentes.

3.6. Eficácia

A eficácia refere-se à geração de efeitos jurídicos, potenciais ou

efetivos, no plano dos fatos. É considerada, respectivamente, em dois

sentidos: eficácia jurídica e eficácia social.

De acordo com Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1980), eficácia

significa “ter a norma possibilidade de ser aplicada, de exercer seus efeitos,

porque as condições para isto exigidas estão cumpridas”.84 Tal representa o

significado de eficácia jurídica, para a qual não se demonstra exigível que a

norma produza os efeitos que lhe são previstos, mas apenas que estejam

latentes, isto é, aptos a serem desencadeados.

A seu turno, a eficácia social, comumente chamada de efetividade

da norma, advém da circunstância de a lei ser efetivamente obedecida ou 83 In: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 33. Dissentimos de Roque Antonio Carrazza (1998, p. 212), para quem a prioridade de uma lei acerca de outra no tempo é determinada pela data da promulgação. A existência jurídica da norma pela promulgação não induz outro efeito senão atestar a inovação do ordenamento. A revogação prende-se ao conceito de vigência e não ao de existência jurídica. Ao encontro de nossa posição, Maria Helena Diniz (2005, p. 67) afirma: “Com a entrada em vigor da nova norma, a lei revogada não mais poderá pertencer ao ordenamento jurídico, perdendo sua vigência, mas a revogação poderá não eliminar sua eficácia, pois poderá suceder que seus efeitos permaneçam”. O mesmo é dito, em outras palavras, por Cândido Rangel Dinarmarco (2004, p. 95), para quem a lei processual torna-se vigente no momento em que ela própria indicar (p.ex., no dia da publicação ou tantos dias após esta) ou, à falta dessa indicação, quarenta e cinco dias após publicada na imprensa oficial (LICC, art. 1º). Até que chegue o dia assim estabelecido, a lei promulgada e publicada não produz efeito algum, seja quanto aos fatos pretéritos, seja em relação aos que nesse período ocorrerem. Ela é, até então, uma lei vacante e não vigente. 84 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 58.

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aplicada.85 A norma pode ser eficaz porque é espontaneamente observada

pelos destinatários ou porque é aplicada.86 A aplicação depende de ato da

autoridade competente, como do juiz que decide a lide, do administrador que

elabora o lançamento etc.

A eficácia respeita, assim, à possibilidade de aplicação, efetiva ou

potencial, da norma jurídica no campo fático.

85 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 65. 86 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista Forense, v. 313, 1991, p. 47.

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Tênue a distinção entre vigência e eficácia jurídica. Na primeira,

perquire-se se, no plano abstrato, a norma tem aptidão para incidir, ou seja,

para provocar a incidência normativa. Já na segunda verifica-se, no plano

fático87, se a norma tem possibilidade de ser aplicada aos casos concretos.

Em suma, a vigência pertence ao plano do dever ser e a eficácia ao plano do

ser.

Demais disso, vigência é qualidade que não admite gradação. A

lei está ou não vigente. Ao contrário, existem leis mais ou menos eficazes,

dependendo da potencial ou efetiva observância ou aplicação.88

Uma lei pode ser vigente, com capacidade abstrata para cumprir

seus objetivos, mas não ser dotada de eficácia. Será ineficaz, por exemplo,

a lei que determinar que entrará em vigência imediatamente, mas ainda

dependente de regulamentação (ineficácia sintática). É o caso de uma

norma determinar ser garantido o acesso a todos os cidadãos aos cargos

públicos, quando forem preenchidos os requisitos estabelecidos em lei. A

norma é vigente, mas tem a eficácia condicionada à lei que irá estabelecer

os requisitos exigidos. Também é ineficaz a lei que é inadequada à realidade

que almeja disciplinar, como a que impõe o uso de aparelho inexistente no

mercado.89

A recíproca também é verdadeira. A eficácia não pressupõe a

vigência, de sorte que uma norma pode ser eficaz, aplicando-se a

conseqüências futuras, a despeito de não mais vigente. Por exemplo, apesar

de sua revogação, a lei pode continuar eficaz e, portanto, aplicável a

determinadas relações jurídicas protegidas pelo ato jurídico perfeito, pelo

direito adquirido ou pela coisa julgada (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI;

87 “A eficácia da lei pode ser vista como a medida de sua real aplicação no campo dos fatos”. DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, vigência, validade, eficácia e efetividade das normas

jurídicas. Ciência Jurídica, vl. 49, 1993, p. 45. 88 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei.Op. cit., p. 47. 89 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 58.

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Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º).90 É a chamada pós-atividade ou

ultratividade da lei antiga.91

Outro exemplo de que a eficácia pode prescindir da vigência

refere-se aos casos da lei cuja vigência cessou, mas continua aplicável a

situações constituídas ao seu tempo, como o lançamento, que se reporta à

data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então

vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada (Código

Tributário Nacional, art. 144, “caput”) e as leis de vigência temporária (leis

excepcionais ou temporárias), aplicáveis aos fatos praticados durante a sua

vigência, mesmo depois da auto-revogação (Código Penal, art. 3º). Também

são chamadas de leis pós-ativas, mas impropriamente, pois a ultratividade

alude à aplicação da lei a fatos novos, ocorridos após a sua revogação. A

regência pela lei sobre fatos verificados durante o tempo em que

permaneceu em vigor é mero resultado da incidência normativa, ocorrida no

período de vigência. A propósito, salienta Hugo de Brito Machado (2003):

A lei, mesmo modificada ou revogada, pode ser aplicada

aos fatos ocorridos antes de sua revogação ou modificação,

pois continuam existindo tais fatos com o sentido jurídico

resultante da incidência da norma revogada, ou modificada.

90 Para Maria Helena Diniz (2005, p. 50), é o vigor normativo - e não a eficácia - que possibilita a aplicação da norma revogada (não vigente) ao fato albergado pelo ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. A nosso sentir, vigor e vigência são expressões sinônimas, tanto que o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 04.09.1942) estabelece, in verbis: “Art. 1 - Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. Parágrafo primeiro - Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada. Parágrafo segundo - A vigência das leis, que os Governos Estaduais elaborem por autorização do Governo Federal, depende da aprovação deste e começa no prazo que a legislação estadual fixar. Parágrafo terceiro - Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada à correção, o prazo deste artigo e dos parágrafos anteriores começará a correr da nova publicação. Parágrafo quarto - As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova”. No sentido de que vigência e vigor são sinônimos, expressa Paulo Barros de Carvalho(1999, p. 60-61): “A vigência também não se confunde com a eficácia. Uma norma pode estar em vigor e não ser eficaz, como ser eficaz sem estar vigorando”. 91 Alguns autores falam, ainda, em sobrevivência da lei antiga, o que tecnicamente não nos afigura correto, porque, nas hipóteses enunciadas, a lei não existe mais, já tendo cessado a vigência (e a validade) pela revogação.

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Em outras palavras, sobrevivem os efeitos jurídicos de sua

incidência, que se deu, automaticamente, sobre os fatos

ocorridos durante sua vigência, ou até anteriormente a

esta.92

Assim, a lei poderá ser aplicada pela autoridade competente ou

obedecida (eficaz), mesmo depois de sua revogação.

3.7. Eficácia/vigência e Direito Intertemporal

Expostas as distinções necessárias entre os planos de existência,

validade, vigência e eficácia da lei, bem de ver a importância dos institutos

da vigência e eficácia ao estudo do direito intertemporal, porquanto ao

intérprete incumbirá verificar a norma cujos efeitos se aplicarão à

determinada situação jurídica (caso concreto), se a lei sucessora (vigente)

ou a sucedida (revogada). Não por outra razão Limongi França (1998) é

incisivo ao afirmar:

(...) a técnica própria do Direito Intertemporal está ligada à

hermenêutica e à interpretação; entretanto, diz respeito,

sobretudo, à APLICAÇÃO das normas fundamentais do

sistema aos casos concretos, à face dos quais cumpre

saber se se aplica a lei nova ou a pretérita.93

92 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 94. Fernando Noronha (2005) igualmente discorda da existência de pós-atividade nesses casos, falando em prospectividade da lei. NORONHA, Fernando. Indispensável reequacionamento das questões

fundamentais de direito intertemporal. Revista dos Tribunais, v. 837, 2005, p. 62-63. 93 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 300.

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Da mesma forma, ressalta Helane Cabral que a questão da

aplicabilidade das normas jurídicas está “intimamente ligada à sua

eficácia”.94

Portanto, definido pelo intérprete, à luz do marco inicial de

vigência da lei sucessora, se o fato que se lhe apresenta é pretérito,

pendente ou futuro, incumbir-lhe-á, em seguida, perquirir a respeito da

norma cuja eficácia lançará efeitos a essa situação empírica.95

94CABRAL, Helane C. M. Validade, vigência, eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais

programáticas. A & C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, nº 3, s/d., p. 132. A eficácia da norma pode ser no tempo, objeto do direito intertemporal, quanto no espaço, regulado pelo direito internacional privado, como ensina Arnold Wald (1995, p. 91-108): “há assim, certo paralelismo entre o direito intertemporal, que resolve os conflitos de lei no tempo, e o Direito Internacional Privado, que resolve os conflitos de lei no espaço, podendo haver conflito entre normas de dois Estados soberanos ou mesmo dentro de um mesmo Estado soberano, entre diversos sistemas jurídicos”. Concluindo, a possibilidade de duas normas regularem a mesma situação jurídica pode implicar o conflito de leis no espaço ou no tempo. No espaço, se as normas positivas procederem de fontes diversas, vale dizer, de diferentes Estados soberanos, caso em que o conflito é objeto de estudo pelo Direito Internacional. No tempo, se o fenômeno for a sucessão dessas leis, surgindo o conflito entre o antigo e o novo regramento, assunto de que trata o Direito Intertemporal. 95 Na mesma linha, Cândido Rangel Dinamarco (2004) diz o seguinte: “O direito processual intertemporal tem por objeto, como se vê, a determinação dos momentos de início e fim da vigência da lei processual e também a regência da eficácia da lei velha ou da nova em relação aos processos pendentes e aos já extintos no momento de vigência desta”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 95.

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4. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS

4.1. Breve Sinopse Histórica do Princípio da Irretroatividade

A história evolutiva do direito intertemporal revela o desabrochar

do princípio da irretroatividade das leis em todos os povos cultos, cada qual

em seu tempo. Paulatinamente o natural sentimento humano de respeito ao

passado alçou reconhecimento legislativo nos países em geral, de que forma

que sociedade hodierna não tergiversa em contemplar o princípio em foco

como regra nos diversos sistemas jurídicos em vigor.

O estudo do instituto ao longo dos anos “revela sempre a

preocupação do problema da irretroatividade das leis, que parte, assim, de

uma intuição racional, de uma necessidade de garantia, aspiração que

constitui o seu próprio fundamento”.96 Assim é que Carlos Maximiliano

(1955) tem-no como verdadeiro “filho do progresso”, revelando, no seu

entender e com razão, “retrógrados” os que se insurgem contra ele.97

Sobre o assunto, segundo Lomanaco apud Vicente Ráo (2005):

(...) o princípio da irretroatividade das leis é tão antigo

quanto a própria civilização. Mesmo não querendo recorrer

aos monumentos legislativos, sempre o encontraremos

reconhecido por todos os povos, em todos os tempos,

Platão, no Teeteto, atribuiu-o a Sócrates. Cícero, em uma de

suas orações In Verrem, disse expressamente: ‘De jure civili

si quis novi quid instituit, is omnia quae ante facta sunt, rata

esse patitur’. Maquiavel escreveu em o Príncipe: ‘A lei não

96 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código

Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 236. 97 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 16.

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deve resolver as coisas passadas, mas prover as futuras’.

Nas fontes, encontramos uma Constituição do Imperador

Teodósio, do ano 400 (L. 7, Cod., de legibus et

constitutionibus Principium), que começou por estas

palavras: “Leges et constitutiones futuris certum este dare

formam negotiis”.98

De fato, as primeiras manifestações do princípio da

irretroatividade logo despontaram em nossa história, malgrado a maioria dos

ordenamentos jurídicos das antigas civilizações propugnasse a

retroatividade das leis como regra.99

4.1.1. O direito hindu

Na Índia, editadas no século XIII a.C., as Leis de Manu operavam

com retroatividade, inclusive em matéria penal. Refere Limongi França

(1998) que em tais normas se enxerga caráter irretroativo, especificamente

pelo disposto na regra nº 16 do L. VII, segundo a qual o soberano deve

considerar “o lugar e o tempo, os meios de punir e os preceitos da lei”.100

Porém, como observa Antonio Jeová Santos (2004), nada está a indicar

nesta regra qualquer vedação à retroatividade.101

98 In: RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 389. 99 Para Gaetano Pace apud José Eduardo Martins Cardozo (1995), antigamente, antes fase da retroatividade como regra, a história do direito intertemporal foi marcada pela chamada fase negativa, referindo-se à época dos primitivos ordenamentos jurídicos, constituídos de caráter teocrático ou consuetudinário, nos quais não existia conflito de leis. Os ordenamentos teocráticos, em virtude da inspiração divina de suas normas, caracterizavam-se como sistemas fechados, imunes a alterações substanciais. Nos consuetudinários, pela natural lentidão com que os costumes se arraigavam na sociedade, o problema da intertemporalidade jurídica também inexistia. In: CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 45. Acolha-se ou não esta tese, importa registrar que ela em nada conflita quanto à circunstância de estarem o princípio da irretroatividade e do respeito ao direito adquirido fundados no direito natural: a necessidade humana, sempre presente, de obediência ao passado somente precisou se externada, em atos normativos, quando a sociedade demonstrou imprescindível. 100 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 10-11. 101 SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 21.

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4.1.2. O direito chinês

À semelhança da Índia, a compilação dos Tsings, promulgada na

China pela dinastia Mandchu no século XVII, estendia ao passado o império

da lei nova, tanto em matéria civil quanto penal. Nela, se disciplinava que:

(...) todas as leis, caracterizadas como tais e destinadas a

serem fundamentais, terão efeito e total eficácia a partir do

dia da publicação e, toda transação será adjudicada de

acordo com as leis mais recentes, ainda que tal transação

tenha sido entabulada antes da promulgação dessas leis.102

Somente com a Proclamação da República, em 1912, veio

expresso, em novos códigos editados a partir de então, o princípio da

irretroatividade.103

4.1.3. O direito grego

Deu-se no direito grego o despertar da idéia da irretroatividade,

segundo Ferdinand Lassalle apud Carlos Maximiliano (1955)104, o que se

deve aos ensinamentos de Platão (427 a 347 a.C.), em passagem do

102 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 11-12. 103 Ibidem, p. 12. 104 In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 17. No que denomina de fase embrionária, Limongi França (1998, p. 9-10), também enxerga manifestações do direito adquirido nos Códigos de Hamurabi e Bocchoris. Para o civilista brasileiro, no Direito Egípcio, o Código de Bocchoris forneceu uma das primeiras manifestações de preservação do direito adquirido. Na tentativa de neutralizar a interferência da regras religiosas sobre as regras jurídicas, esse diploma suprimiu o juramento como causa de extinção das obrigações civis, no qual o devedor que, até então, se sentia extorquido, fazia um juramento aos deuses e livrava-se da obrigação contraída. A partir do Código, o devedor deveria rezar uma oração solene, estando impedido de apelar aos deuses. Com isso, se preservava o “Direito Adquirido do credor”. Por sua vez, o Código de Hamurabi, editado na civilização mesopotâmica e que vigorou de 2123 a 2081 a.C., apesar de seu escopo em suprimir o caráter patrimonial de utilização das terras, no art. 40 garantia o direito de venda do campo, do pomar ou da casa. Todavia, compartilhamos dos argumentos de José Eduardo Martins Cardozo (1995, p. 61), segundo o qual os Códigos de Bocchoris e Hamurabi não demonstram efetivo conhecimento do povo acerca do fenômeno de sucessão de leis no tempo. Haveria, quando muito, mera sucessão de normas no tempo. Não há, de fato, em tais codificações indícios de conhecimento sobre a necessidade de preservação do passado.

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“Teeteto”, do qual José Eduardo Martins Cardozo (1995) extrai o seguinte

excerto:

Há uma coisa que é mais fácil toda gente pôr-se de acordo:

‘a questão sobre a classe universal a que pertence o útil.

Ora, ela estende-se ao tempo que há de vir, porque, ao

legislarmos, fazemo-lo com a idéia de que nossas leis serão

úteis no tempo futuro e o nome de futuro é o que melhor

convém a esta utilidade’ (...) Mas a legislação e a utilidade

não têm elas por objeto o futuro?105

O trecho transcrito denota, à evidência, o conhecimento do povo

grego sobre o fenômeno de sucessão das leis no tempo e o principal, qual

seja, a idéia de inviolabilidade do passado, do qual o princípio da

irretroatividade e o respeito ao direito adquirido são manifestações.

Ferdinand Lassalle apud Carlos Maximiliano (1955) também

demonstra a consciência do povo grego sobre a impossibilidade de leis

projetarem-se ao passado em episódio ocorrido no arcontado de Euclides,

no qual uma lei teria sido em parte revogada em virtude dos efeitos

retroativos que nela se apresentavam.106

4.1.4. O direito romano

O direito romano engloba todas as normas que regeram a

sociedade romana durante treze séculos, desde 764 a.C. até 565 d.C., com

a morte do imperador Justiniano.

105 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 64-65. 106 In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 17. Ainda, segundo Maximiliano (1955), aplicava-se a referida norma às pessoas nascidas antes de sua promulgação, exagero este que foi eliminado.

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Superado o período da Realeza (754 a 510 a.C.), sob o regime da

República (510 a.C. a 27 d.C.) aportou como marco histórico fundamental de

Roma a Lei das XII Tábuas (451 a.C.), diploma que, não obstante, silenciou

a respeito do princípio da irretroatividade.107

A condenação à retroatividade somente despertou com as

Verrinas de Cícero (106 a 43 a.C.), em que o orador, em censura ao pretor

Verres por haver este firmado edito de efeito retroativo, proclamou: “No

tocante do Direito Civil, se alguém estabeleceu algo de novo, julgaria ter

destruído tudo o que fora feito antes?”.

Seqüencialmente, exemplos notáveis de alusão à irretroatividade

aportaram com as Regras Teodosianas. A Primeira Regra Teodosiana,

baixada por Teodósio I, no ano 393 d.C., fez consignar: “Todas as normas

não fazem calúnia aos fatos passados, mas regulamentam apenas os

futuros”.

Já sob a égide de Teodósio II, editou-se a Segunda Regra

Teodosiana (440 d.C.), na qual se afirmava: “É norma assentada a de que

as leis e Constituições regulam os negócios futuros e não atingem os fatos

passados, a não ser que tenham feito referência expressa, quer ao passado,

quer aos negócios pendentes”. Resumindo, a lei, em regra, aplicava-se aos

fatos futuros e apenas excepcionalmente, desde que expressamente, aos

fatos passados e pendentes. Arguta a observação de Wilson de Souza

Campos Batalha (1980) de que a “fórmula de Theodosius foi além da estrita

107 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 30. De acordo com o jurisconsulto francês: “On ne trouve pas de décision intéressante, pour le droit transitorie, ni dans la loi des XII Tables, ni même dans les lois postérieures de la République romanie”. Limongi França (1998, p. 14), porém, enxerga a manifestação do direito intertemporal na Lei das XII Tábuas, em cujo corpo continha os dizeres: “aquilo que o povo decidiu por último, seja o direito em vigor”. Em verdade, referido trecho somente demonstra o conhecimento do povo acerca do fenômeno de sucessão das leis no tempo, inexistindo qualquer referência à noção de irretroatividade.

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regra da irretroatividade, ou seja, criou obstáculo ao efeito imediato da lei

sobre as situações em curso”.108

Justiniano, ao ascender ao trono em 527 d.C., manteve os

princípios basilares da Segunda Regra Teodosiana, como se extrai da

Novela 22, Cap. 1: “Duas disposições preliminares precedem esta lei.

Primeiramente, as Constituições sancionadas por nossos antecessores

devem valer cada qual de acordo com seu tempo sem interferência da

presente lei: serão válidas e respeitadas nos casos respectivos, e os seus

efeitos se regularão pelas leis já promulgadas, e em nada pela presente”.

4.1.5. O direito canônico

Informa Gabba apud Limongi França (1998) que o direito

canônico repetiu o princípio geral do direito romano da não-retroatividade

das leis, sem acrescentar-lhe algo de essencial.109 De fato, a Decretal110 de

Gregório Magno (590 a 604), I, 2, 2, acolheu as idéias originais constantes

da Primeira Regra Teodosiana, o mesmo ocorrendo com a de Gregório IX

(1227 a 1241), I, 2, 13, em relação à Segunda Regra Teodosiana.111

No dizer de Limongi França (1998), a marca fundamental do

direito canônico se verifica quando o jurista Bendito Gaetani assumiu o

papado como Bonifácio VIII (1294 a 1303), em que pela primeira vez ao

108 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 61. 109 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 27. 110 As Decretais, que gozavam de força normativa, representavam resposta do Papa acerca das diretas consultas que se lhe formulavam a respeito de alguma questão relativa à disciplina monástica, ao matrimônio, à penitência etc. TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história e direito vigente). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 29. 111 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 27-28.

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longo da história utilizou-se da expressão jus acquisitum (direito

adquirido).112

4.1.6. Da Revolução Francesa aos dias atuais

Galgando em passos largos no tempo, despontou no campo

doutrinário do século XVIII a concepção jusnaturalista do princípio da

irretroatividade, a exemplo da obra Les Lois Civiles dans leur Ordre Naturel

do francês Domat, datada de 1756.113 A negação à retroatividade passou a

encontrar fundamento no direito natural, idéia sobremaneira propagada com

o advento da Revolução Francesa (1789), que universalizou o princípio da

irretroatividade das leis.

Na seara legislativa, a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão114, promulgada pela Assembléia Constituinte Francesa de 27 de

agosto de 1789, consagrou no art. 14 a irretroatividade em matéria penal.

Anos após, a Constituição de 5 fructidor ano III estendeu ao campo civil o

princípio em comento.115

Não obstante a universalização do princípio, a irretroatividade das

leis figura, atualmente, como preceito constitucional em poucos países

civilizados, a exemplo da Constituição dos Estados Unidos da América de

1787, art. 1º, seção 5ª, verbis: “O Congresso não poderá editar nenhuma lei

112 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. Op. cit., p. 28. Ainda, em 1296, Bonifácio VIII nomeou a comissão encarregada de “rever a legislação vigente e elaborar uma nova coleção com as decretais dos Papas que sucederam a Gregório IX” (Tucci e Azevedo, 2001, p. 57). 113 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 69. 114 Ao comentar sobre a Declaração de 1789, José Afonso da Silva (1998) anota que sua “visão universal dos direitos do homem constituiu uma de suas características marcantes, assinalada com o significado de seu mundialismo”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 165. 115 Sobre o assinto assevera Roubier (1960, p. 71-72): “L’Assemblée, instruite par l’expérience, vota plus tard um texte qui interdisait l’effet rétroactif aussi bien em matièrie civile qu’en matièrie pénale; l’articule 14 de la Déclaration des droits inscrite em tête de la Constitution du 5 fructidior an III, ést em effet ainsi conçu: ‘Aucune loi, ni criminelle, ni civile, ne peut avoir d’effet rétroactif’”.

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com efeito retroativo”; aos Estados também se aplica a mesma proibição

através da seção 10. Já a Constituição brasileira proscreve a violação ao

direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI).

De fato, na maioria dos ordenamentos jurídicos da atualidade a

irretroatividade expressa-se em texto de lei ordinária, através do

estabelecimento de regras gerais. Ora se veda literalmente a retroatividade,

ora se protege o direito adquirido, ora ambos. São exemplos: (a) art. 2º do

Código Civil Francês: “La loi ne dispose que pour l’avenir; elle n’a point

d’effet rétroactif”; (b) art. 2º do Código Civil Italiano de 1942: “La legge non

dispone che per l’avvenire: essa non ha effeito retroattivo”; (c) art. 3º do

Código Civil de 1869 da Argentina: “Las leyes disponen para lo futuro; no

tienen efecto retroactivo, ni pueden alterar los derechos ya adquiridos”; e (d)

art. 8º do Código Civil Português de 1867: “A lei não tem efeito retroativo.

Excetua-se a lei interpretativa, a qual é aplicada retroativamente, salvo se

dessa aplicação resultar ofensa de direito adquirido”.

Há, ainda, algumas codificações que estabelecem regras

específicas de aplicação do direito intertemporal a assuntos determinados,

como o Código Civil Alemão (arts. 153 a 218).116

4.1.7. O Princípio da irretroatividade no direito brasileiro

Dois anos após a proclamação da independência, apartando-se

da maioria das legislações alienígenas em que se propugnava a

irretroatividade das leis apenas no corpo de leis ordinárias, o Brasil, ao lado

das Constituições dos Estados Unidos (1787), de “5 fructidor do ano III” da

França (1795) e da Noruega (1814), instituiu o aludido princípio em âmbito

constitucional.

116 É o que informam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho (1999, p. 234-237). ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

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Assim disciplinou a Constituição Imperial de 1824, em seu art.

179, II e III, in verbis: “Nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública.

A sua disposição não terá efeito retroativo”.

A legislação infraconstitucional que se seguiu igualmente

proscrevia a retroatividade, a exemplo do afamado Regulamento nº 737, de

1850, que no art. 742 consignou-se:

As causas comerciais intentadas depois da execução do

Código, mas provenientes de títulos ou contratos anteriores

à execução do mesmo Código, serão regulados, quanto à

forma de processo pelas disposições deste Regulamento; e

quanto à matéria, serão decididas pela legislação que

anteriormente regia.

A Constituição Republicana de 1891, no art. 11, não alterou o

quadro vigente ao preceituar, nestes termos: “É vedado aos Estados como à

União: (...) IV. Prescrever leis retroativas”.

Embora as Constituições de 1824 e 1891 vedassem de forma

expressa a possibilidade de retroação da lei, a doutrina negava o caráter

absoluto do princípio encerrado em preceito constitucional.

Assim é que Rui Barbosa afirmava que não seria o retroagir da lei,

todo e qualquer retroagir, a retroatividade pela retroatividade, o que se quer

obstar; mas o retroagir lesivamente, isto é, a retroatividade atentatória dos

direitos adquiridos.117 Em idêntica linha de raciocínio, o civilista Reynaldo

Porchat (1909) afirmou:

117 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 118.

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Quando, ao executar-se uma lei nova qualquer, depara-se

um direito adquirido que possa ser lesado, a lei não tem

aplicação ao caso, porque a retroatividade seria injusta.

Quando não se encontra um direito adquirido, aplica-se a lei,

mesmo retroativamente, porque a retroatividade é justa.118

Inovação no cenário infraconstitucional deu-se em 1º de janeiro

de 1916, com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro e sua Lei de

Introdução119, marcada pela notória influência do anteprojeto de Código Civil

de Coelho Rodrigues.120

Acompanhando a orientação doutrinária de que o verdadeiro

limite à retroação das leis consistia unicamente no respeito aos direitos

adquiridos, dispôs o art 3º da Lei de Introdução, in verbis:

Art. 3º. A lei não prejudicará, em caso algum, o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito, ou a coisa julgada. § 1º -

Consideram-se adquiridos, assim os direitos que seu titular,

ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo

começo de exercício tenha termo prefixado, ou condição

preestabelecida, inalterável ao arbítrio de outrem. § 2º -

Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei

vigente ao tempo em que se efetuou. § 3º - Chama-se coisa

julgada, ou caso julgado, a decisão judicial, de que já não

caiba recurso.

118 PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp., 1909, p. 118. 119 A denominação conferida por Maria Helena Diniz (2005), qual seja Lei de Introdução às Leis, à LICC é induvidosamente mais adequada para exprimir esse diploma que não é parte integrante do Código Civil, mas uma lei preliminar aplicável a todo o ordenamento jurídico nacional. Constitui um superdireito, um direito coordenador de direito. Não rege as relações da vida, mas as normas. DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 3-4. 120 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 139-140.

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64

Erigindo à categoria de preceito constitucional o caput da Lei de

Introdução, a Constituição de 1934 alterou a fórmula genérica de proibição à

retroatividade e estabeleceu no art. 113, § 3º, que “a lei não prejudicará o

direito adquirido, o ato jurídico e a coisa julgada”.

Ao argumento do ditadorial governo da época no sentido de que

não deveria constituir obstáculo ao legislador, a Magna Carta de 1937

silenciou a respeito do problema da intertemporalidade conflitual, não

fazendo qualquer referência ao respeito aos direitos adquiridos ou ao

princípio da irretroatividade das leis, o qual subsistiu apenas no campo

penal.

Em vigor, somente a Lei de Introdução ao Código Civil, o que

permitiu ao legislador ordinário maior liberdade à promulgação de leis

retroativas, desde que o fizesse de modo expresso.

Essa omissão constitucional propiciou, de fato, a edição de leis

manifestamente ofensivas a direitos adquiridos, a exemplo do Decreto-lei

1907, de 26 de dezembro de 1939 que, atingindo as sucessões abertas

antes de sua entrada em vigor, reduziu a sucessão testamentária do sexto

ao segundo grau, na tentativa do Estado de apropriar-se de grandiosa

herança de determinada família do Rio de Janeiro. O episódio ficou

conhecido como o caso Deleuze.

Abandonando a fiel tradição de estabelecer em preceito a garantia

aos direitos adquiridos, em 4 de setembro de 1942, a Lei de Introdução de

1916 veio a ser revogada pelo Decreto nº 4.637, quando a nova Lei de

Introdução passou a regular a matéria, nestes termos: “Art. 6º. A lei em vigor

terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição em

contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do

ato jurídico perfeito”.

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A grande infelicidade do legislador ordinário foi, sem dúvida,

admitir expressamente a possibilidade ofensa às situações constituídas,

através da expressão “salvo disposição em contrário”, criando verdadeira

insegurança nas relações jurídicas. A reforma digna de louvor foi, por outro

lado, a introdução do “efeito imediato”, denotando o legislador a consciência

da diferença deste com o efeito retroativo. O efeito imediato passou, então, a

ser a regra, sendo a retroatividade exceção.

Salvo no tocante à previsão relativa ao “efeito imediato e geral”

que permaneceu em vigor, as demais modificações perpetradas pela Lei de

Introdução perduraram por apenas quatro anos, porquanto, readquirindo o

tema cunho constitucional, não foram recepcionadas pela Magna Carta de

18 de setembro de 1946, que no art. 141, § 3º, literalmente repetiu o teor art.

113, § 3º, da Constituição de 1934, retomando o hábito brasileiro de

proteção ao direito adquirido, in verbis: “A lei não prejudicará o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Harmonizando-se com o texto constitucional e compatibilizando a

regra de respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada

com a noção de efeito imediato, a Lei nº 3.238, de 1º de setembro de 1957,

alterou o art. 6º da Lei de Introdução, conferindo-lhe a seguinte redação:

Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral,

respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a

coisa julgada. § 1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já

consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se

efetuou. § 2º - Consideram-se adquiridos assim os direitos

que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como

aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixado, ou

condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. §

3º - Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão

judicial de que já não caiba recurso.

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Subseqüentemente, decorrente do golpe militar de 31 de março

de 1964, editou-se nova Constituição em 24 de janeiro de 1967, que não

produziu qualquer inovação para o direito intertemporal, ao repetir, em seu

art. 150, § 3º, o teor dos textos constitucionais de 1934 e 1946, nestes

modos: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a

coisa julgada”.

Igualmente, nada foi modificado pela Emenda Constitucional nº 1,

de 17 de outubro de 1969, a qual reproduziu o conteúdo das Cartas de 1934,

1946 e 1967, cujo teor do art. 153, § 3º, se transcreve: “A lei não prejudicará

o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Da mesma forma, a vigente Lei Fundamental, datada de 05 de

outubro de 1988, disciplina o assunto no art. 5º, XXXVI: “a lei não

prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. O

texto inspira-se, como se observa, nas Cartas Magnas de 1934, 1946, 1967

e na Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Apesar das controvérsias

doutrinárias emanadas de algumas disposições121, o Código Civil de 2002

não alterou o cenário brasileiro respeitante aos regramentos gerais do direito

intertemporal, apenas instituindo regras transitórias.

121 Acirrada divergência relacionada ao tema em foco gira em torno do art. 2.035 onde: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, mas seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”. Respeitado o entendimento daqueles que pensam o contrário, tais como Mário Luiz Delgado (2004, p. 82-90), parece clara a violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, inclusive para a própria teoria preconizada por Roubier (1960, p. 74-84), que ressalva a ultratividade da lei velha em tema de contratos privados.

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5. AS PRINCIPAIS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE

O DIREITO INTERTEMPORAL

Posta a história evolutiva do princípio da irretroatividade das leis,

a escorreita compreensão do direito intertemporal igualmente não prescinde

da exposição e entendimento acerca do que escreveram os doutos que se

debruçaram sobre o tema.

Inúmeras obras científicas destinadas à solução do fenômeno da

intertemporalidade jurídica foram publicadas, principalmente a partir do

século XIX, marcado pelo notável avanço doutrinário na seara em comento.

Dentre partidários da doutrina do direito adquirido, igualmente nomeada de

doutrina clássica, destacam-se autores como Merlin, Blondeau, Mailhet de

Chassat, Chabot de Lailler, Demolombe, Théodosiadès, Baudry-

Lacantinerie, Josserand, Savatier, na França; Windscheid, Dernburg,

Savigny, Lamele, Lassalle, Von Tuhr, no direito germânico; no direito

italiano, Faredo, Gianturco, Lomanaco, Pacifici-Mazzoni, Venzi, Faggella e,

sobretudo, Gabba, considerado o maior representante desta doutrina.

Como opositores da doutrina clássica, sobressaem as figuras do

italiano Chironi, adepto da teoria dos fatos realizados, o alemão Affolter, com

sua teoria da exclusividade e o francês Roubier, que sedimentou a teoria da

situação jurídica e figurou como o criador da mais notável obra a condenar a

doutrina clássica.

A generalidade dos autores prefere resumir em duas as diversas

correntes doutrinárias que estão a sistematizar o complexo campo do direito

intertemporal. De um lado, a doutrina subjetiva ou clássica, a apreciar os

efeitos produzidos pela lei em relação aos sujeitos, ou seja, gravita em torno

da concepção de direito adquirido. De outro, a doutrina objetiva, a

considerar, não as conseqüências jurídicas que se produzem relativamente

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aos sujeitos, mas o efeito da lei em geral ou a ação desenvolvida sobre os

fatos, o que abrangeria todas as demais concepções que não partem do

conceito de direito adquirido.

Ressaltemos, porém, como destaca José Eduardo Martins

Cardozo (1995), haver muito mais a idéia de predomínio de um direito sobre

o outro do que propriamente a exclusão recíproca, para fins de classificação

das correntes doutrinárias.122 A interpenetração é deveras inevitável, tanto

que entre as teorias subjetiva e objetiva há um campo comum, consistente

no princípio da não-retroatividade das leis e no respeito do que subjetivistas

denominam direito adquirido e os objetivistas como fatos acabados e

situações jurídicas, sendo “nominal” a diferença em “muitíssimas aplicações

práticas”.123

Igualmente, Carlos Maximiliano (1955) é peremptório no sentido

de que “na prática, o dissídio se reduz a proporções mínimas. Assim resulta,

porque, em verdade, o respeito pelas situações jurídicas definitivamente

constituídas importa em abstenção de aplicar os textos retroativamente”. O

referido autor aduz na seqüência que:

Cumpre assinalar, sem demora, que as expressões

adotadas pelas várias escolas de Direito Intertemporal

(teoria dos direitos adquiridos; da retroatividade das leis; dos

fatos jurídicos perfeitos, completados, consumados; das

situações jurídicas definitivamente constituídas) colimaram,

apenas, a precisão da linguagem; na essência, as várias

correntes se equivalem, tanto que as divergências

suscitadas na aplicação dos princípios basilares não se

ligam às diferenças de doutrina fundamental. Mais

dissentem, por exemplo, Faggella e Gabba, do que este a 122 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 110-111. 123 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 303-304.

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Roubier. Na verdade, quem atenta contra situação jurídica

definitiva, posterga direito adquirido, atribui ao texto recente

efeito retroativo.124

Ao encontro dessa orientação, temos Caio Mário da Silva Pereira

(1992), assim se expressando:

(...) as teorias subjetivistas e objetivistas não diferem

fundamentalmente nos resultados. Examinemos o princípio

da não-retroatividade partindo da noção de direito adquirido,

ou aplique-mo-lo em decorrência da situação jurídica

definitivamente constituída; em suas linhas gerais os efeitos

são os mesmos, pois uma disposição que tem eficácia

retrooperante, igualmente a ostenta na ofensa ao direito

adquirido ou no atentado à situação jurídica.125

Neste trabalho, nos propomos a discorrer somente as principais

correntes doutrinárias a respeito do tema e que, de algum modo, exerceram

influência no direito brasileiro, das quais avultam as figuras de Gabba e

Roubier.

5.1. Savigny

Na obra Sistema de Direito Romano Atual126, o doutrinador

alemão Savigny abordou o tema em debate que, no seu ensinar, se resolve

por meio de duas regras fundamentais: (a) as leis novas não têm efeito

retroativo; (b) as leis novas não devem atingir os direitos adquiridos.

124 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 9 e 13. 125 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 113. 126 In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao código

civil. Op. cit., p. 264-267.

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Quanto à primeira regra, Savigny nega qualquer ação da lei nova

sobre os efeitos, anteriores ou posteriores, dos fatos passados, isto é, não

admite nem mesmo o efeito imediato da lei. No tocante à segunda, o

doutrinador estabelece a diferença entre direito adquirido e expectativa de

direito. Por direitos adquiridos entendem-se as relações jurídicas de uma

pessoa determinada, ao passo que a expectativa estaria fundada em lei

anterior, mas destruída pela nova lei, como no caso de alguém herdar ab

instestato de outrem, que só venha a falecer sob o império da nova lei que

exclui a qualidade daquele de herdeiro.

As duas fórmulas, porém, explica Savigny, somente se aplicam às

leis relativas à aquisição dos direitos, isto é, àquelas que estabelecem um

vínculo que liga um direito a um indivíduo, através do qual este se torna

titular de um direito.

Para outra categoria de leis, referente à existência dos direitos, a

regra é a retroatividade. Nesta segunda espécie de leis, se incluem as que

reconhecem uma instituição em geral, antes de se cogitar de sua aplicação a

um indivíduo. Subdividem-se em: (a) leis concernentes à existência ou à

inexistência de um instituto jurídico (v.g., quando se reconheceu a

escravidão e depois se fez sua abolição, quando foram extintas as relações

nascidas sob a égide da lei anterior); (b) leis relativas ao modo de existência

de um instituto (isto é, suas transformações, como uma lei que retira a

reivindicatória como forma de proteção à propriedade, limitando-na às ações

possessórias).

Conclui Savigny, todavia, que, malgrado sejam irretroativas as leis

que tratam da aquisição dos direitos e retroativas as de existência dos

direitos, ambas podem estar submetidas a princípios intertemporais diversos

desde que o determine expressamente o legislador.

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Duras críticas foram endereçadas pelos doutos à concepção de

Savigny, notadamente pela dificuldade prática de se alinhar a diferença entre

uma e outra categoria de leis, em especial quando se cogita da modificação

de um instituto de direito. É o que inferem Eduardo Espínola e Eduardo

Espínola Filho (1943): “Embora se tenha reconhecido à doutrina de Savigny

valor científico, censura-lhe a insegurança do critério, por não haver, na

generalidade dos casos, uma separação nítida entre as duas categorias”.127

5.2. Gabba

Em seu tratado Teoria della Retroattività delle Leggi128, que aos

olhos de Miguel Maria de Serpa Lopes (1943) “sobrepujou todos os autores

que o precederam na matéria”129, Gabba assentou sua teoria no preceito

fundamental de que o limite da retroatividade das leis é o respeito aos

direitos adquiridos.

Após diferenciar os direitos consumados, onde a retroatividade

seria impossível, dos direitos adquiridos, ou seja, que ainda não foram

efetuados ou consumados, passou à conceituação de direito adquirido, que

no seu entender significa todo o direito que:

(a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em

virtude da lei do tempo em que o fato veio realizar, assim

como o momento de fazê-lo valer não se tenha apresentado

antes da vigência de uma nova lei relativa ao mesmo, e que

(b) nos termos da lei sob cujo império aconteceu o fato de

127 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo, 1943, p. 311. 128 In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código

Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 269-275. 129 Ibidem, p. 269.

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que se originou, passa a fazer parte imediatamente do

patrimônio de quem o adquiriu.130

A partir dessa definição, Gabba passou a dissecar os diversos

elementos que compõe-na: o conceito de direito, o direito como elemento do

patrimônio e os fatos aquisitivos.

No tocante ao primeiro, aduziu que a concreta existência de um

direito pressupõe: (a) a ocorrência de um fato, do qual ou em virtude do qual

admite-se seja oriundo o direito; (b) a existência de uma lei, que daquele fato

faça provir o direito”. Segundo o autor, não devemos admitir nenhum direito

concreto, que não tenha fundamento em uma lei ou norma jurídica vigente

ao tempo em que o direito se produz, isto é, que não provenha de um fato ao

qual uma norma jurídica positiva, do tempo em que o fato se verifica, atribuía

tal virtude.

Quanto ao aspecto referente ao direito como elemento do

patrimônio, afirmava não bastar que o direito seja concreto, isto é, verificado

relativamente ao indivíduo em virtude de um fato idôneo, sendo

indispensável que se tenha tornado elemento do patrimônio individual.

Esclareceu que os direitos concretos e adquiridos são apenas aqueles que,

dentro das balizas do poder assegurado pelas leis referentes a pessoas e

coisas, se dirigem a um determinado e vantajoso efeito e surgem nos

indivíduos ou em virtude da humana operosidade ou por virtude direita da

130 Citando as palavras de Giobanni Lomonaco, Wilson de Souza Campos Batalha (1980) discorre sobre as inúmeras definições já existentes na literatura jurídica acerca do direito adquirido: “são adquiridos os direitos que se tornaram propriedade daquele que os exerce e, portanto, deles pode gozar e dispor pelo modo mais absoluto” (Meyer); “são adquiridos os direitos nascidos de fatos postos a ser, por modo perfeito, antes da nova lei, mas cujos efeitos ainda não consumaram” (Reinhard); “são as conseqüências de fatos realizados sob o império da lei antiga” (Demolombe); “são os direitos que, tendo sua possibilidade abstrata na lei, se uniram a um sujeito e receberam, ao mesmo tempo, uma determinação concreta em virtude de algum fato idôneo pela lei para produzir tal resultado” (Christiansen); “adquirido é todo direito fundado em um fato jurídico verificado, mas que ainda não se fez valer”. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 106-107.

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própria lei, em seguida a fatos e circunstâncias e segundo modos e

condições preestabelecidos por ela.

Prosseguiu afirmando que nem todos os direitos podem ser

chamados de adquiridos, porque não integram o patrimônio do indivíduo,

representando apenas mera possibilidade de direitos individuais. Seriam

direitos anteriores a toda e qualquer operosidade, tais os direitos referentes

a simples circunstâncias físico-naturais, como a menoridade. As leis

elementares ou fundamentais (leis que regulam o estado e a condição

pessoal do indivíduo) são de aplicação imediata, não se podendo conceber

direitos adquiridos senão quanto aos positivos efeitos que já haviam sido

realizados.

Ainda, para Gabba, os direitos integrantes do patrimônio somente

podem ser adquiridos se constituírem uma verdadeira utilidade ao indivíduo,

seja por concernir à privada individualidade, seja por se identificarem à

própria dignidade da pessoa humana. Por essa razão, excluiu da noção de

direitos adquiridos a matéria relativa ao direito público, propugnando pela

aplicação imediata todas as leis novas desse gênero.

Segundo Carlos Maximiliano (1955), em seus ensinamentos

Gabba assumiu que: “O direito que se relaciona, de modo direito e precípuo,

com o interesse público ou político, aplica-se imediatamente, modifica-se e

muda ao sabor das leis”.131

Por fim, quanto aos fatos aquisitivos, após argumentar que devem

consistir em uma modalidade daquela situação em que cada um se encontre

pelo simples fato de ser homem e que é necessário que determinada seja a

pessoa contra a qual o direito seja afirmado, Gabba passou a traçar os

requisitos essenciais dos fatos aquisitivos, a saber: (a) que sejam realizados

131 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 43.

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por inteiro; (b) que sejam realizados em tempo idôneo, posteriormente ou

contemporaneamente à lei em que o direito se produz; (c) que aquele que

deste pretende utilizar-se tenha capacidade prescrita em lei; e (d) que

tenham sido observadas as formalidades legais, sob pena de nulidade.

Críticas não tardaram à doutrina dos direitos adquiridos, do qual

Gabba tornou-se o maior expoente, a começar pela própria expressão

direitos adquiridos, que Wilson de Souza Campos Batalha (1980) tem por

“vaga, fugidia”.132 Miguel Maria de Serpa Lopes (1943) vislumbra como uma

teoria em que “existe uma porcentagem de verdade, mas que é inadmissível

como um remédio integral, como uma classificação segura para todos os

casos de eficácia da lei no tempo”.133

Na voz de Vicente Ráo (2005), “dela se disse, justificadamente,

que sua definição do direito adquirido, restringindo-se aos direitos

patrimoniais, exclui sem razão os demais direitos, públicos ou privados, não

suscetíveis de apreciação econômica”.134

Não obstante a incapacidade de solucionar satisfatoriamente

todos os conflitos de leis no tempo, numerosos autores e legislações

modernas não deixam de basear-se constantemente em elementos da

doutrina ora em comento, propugnando expressamente a necessidade de

respeito aos direitos adquiridos.

No direito pátrio, influência do professor da Universidade de Pisa

é incontestável. Adeptos de sua teoria no Brasil não faltam, tais como

Reinaldo Porchat, Paulo de Lacerda e Limongi França. No âmbito legislativo,

revolvendo a evolução do direito intertemporal, se deduz que a expressão e 132 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 118. 133 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código

Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 279. 134 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 399.

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o conceito de direitos adquiridos encontram-se verdadeiramente

incorporados à nossa história, que apenas em raros momentos deixou-lhes

de fazer menção.

Nesse sentido, assinala Wilson de Souza Campos Batalha (1980)

que:

(...) a doutrina do respeito ao direito adquirido como

fundamento da teoria da irretroatividade das leis foi muito

prestigiada, principalmente tal como Gabba a formulou. A

Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro apartou-se

dessa teoria, procurando aproximar-se dos doutrinamentos

de Roubier135, mas a Constituição Federal de 1946 volveu

os passos para trás, retornando ao ponto de vista da antiga

Lei de Introdução ao Código Civil (...) As Constituições

posteriores mantiveram a mesma diretriz”.136

5.3. Chironi

Opositor da doutrina dos direitos adquiridos, o italiano Chironi137

parte da concepção de que a lei nova, a partir de sua entrada em vigor,

regula todos os atos subordinados às suas normas, não disciplinando,

porém, os atos constituídos, perfeitos e acabados sob a égide da lei anterior

135 Refere-se o autor à redação da Lei de Introdução imposta em 4 de setembro de 1942, pelo Decreto nº 4.637. 136 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 112. A doutrina subjetiva apresenta a diferença entre direito adquirido, expectativa de direito e faculdades. Segundo Reinaldo Porchat (1909), expectativa de direito é “a mesma esperança de um direito que, pela ordem natural das coisas, e de acordo com a legislação existente, entrará provavelmente para o patrimônio de um indivíduo, quando se realize um acontecimento previsto”. A expectativa “se verifica toda vez que um direito desponta, porém lhe falta algum requisito para se completar”, do que é exemplo a sucessão quando existe apenas o testamento, faltando ainda advir o óbito do disponente, diz Carlos Maximiliano (1955, p. 45-46), que acrescenta: “Cumpre, outrossim, distinguir entre expectativas e faculdades que, originando-se de lei ou de fato do homem, se ligam à precedente direito adquirido; granjeado o direito, adquiridas ficam as faculdades oriundas do mesmo. Assim, a lei nova não pode sujeitar a novas condições, bem como suprimir faculdade abstrata inerente a certo direito adquirido; admite-se uma e outra atuação da norma recente, no tocante a expectativas”. 137 In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código

Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 279-280.

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nem os efeitos já produzidos pelo texto primitivo, salvo se o legislador tiver

ordenado expressamente a retroatividade da lei nova.

Considera fato acabado aquele constituído definitivamente

relativamente ao ordenamento jurídico vigente, que lhe regulou inteiramente

a existência, ou seja, quando levado a efeito dá lugar à ação para sustentar

a sua existência ou nulidade, compreendendo todos os termos essenciais

que a lei ou as partes atribuírem à sua existência.

5.4. Affolter

Affolter138 pressupõe a existência de duas regras de direito

intertemporal: a primeira, anterior, segundo a qual os fatos e relações

jurídicas são regidos pela lei sob cujo império nasceram, ainda que

sobrevenha a revogação da norma (a eficácia da lei antiga prossegue, a

despeito de não mais vigorar); a segunda, posterior, permite que a nova lei

venha, preenchidas certas condições, excluir a aplicação da lei anterior, o

que ocorrerá se o sentimento jurídico ou a razão do legislador se tornarem

contrárias à norma antiga, que deixará de ser eficaz.

O jurisconsulto alemão propõe a substituição do termo

“retroatividade” por “exclusividade”, de modo que, no silêncio do legislador, o

novo ordenamento não exclui a aplicação do texto primitivo; a exclusão se

dá em quatro graus: (a) simples, quando a lei nova atinge apenas os novos

efeitos das relações anteriores; (b) agravada, se as conseqüências

anteriores são atingidas pela nova lei; (c) radical, quando as conseqüências

dos fatos anteriores são tratadas como se a lei nova já existisse ao tempo de

sua formação; e (d) restritiva, caso o novo texto afete as causae judicatae e

os negotia finita.

138 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 58-59.

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Assim, à lei nova incumbe, salvo disposição em contrário,

respeitar as relações jurídicas pendentes em todos os seus efeitos, inclusive

futuros.

5.5. Duguit e Jéze

No intento de superar as dificuldades encerradas pela doutrina do

direito adquirido, além das já mencionadas, novas concepções surgiram

como resposta à necessidade de se manterem invioladas certas situações

jurídicas constituídas na vigência da lei anterior.

Assim é que os franceses Léon Duguit e Gaston Jéze139 iniciam a

distinção entre situações jurídicas subjetivas e situações jurídicas objetivas.

Segundo Duguit, as situações jurídicas individuais ou subjetivas, derivadas

de manifestações individuais de vontade, não podem ser atingidas pela lei

nova, ao passo que as situações jurídicas objetivas, derivadas diretamente

da lei, ainda quando nasçam em seguida a um ato de vontade, seguem

todas as transformações da lei e uma lei nova modificará uma situação legal

nascida anteriormente sem que com isso produza efeito retroativo.

Ao seu turno, são apontadas por Jéze quatro diferenças entre as

duas espécies de situações, a saber: (a) a situação jurídica legal é geral,

impessoal (como por exemplo, a situação do proprietário, do marido etc); já

a situação jurídica individual é caracterizada por uma manifestação de

vontade especial (exemplo: adquire-se certo bem por determinado preço; se

é legatário de tal quantia); (b) a situação jurídica legal é permanente, de

forma que o poder jurídico que dela deriva pode exercido indefinidamente;

ao revés, a situação jurídica individual é temporária (exemplo: o adquirente

libera-se da obrigação ao pagar o preço; o vendedor quando entrega a

coisa); (c) a situação jurídica legal é modificável pela lei, ao contrário das

139 In: ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1.Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1943, p. 315.

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situações individuais cujo conteúdo não pode ser modificado pela lei, pois

esta só trata de fórmulas abstratas e gerais; e (d) a situação jurídica legal é

insuscetível de renúncia (v.g., não se pode renunciar ao se casar ou ao ser

proprietário); a situação jurídica individual é renunciável (o titular de um

crédito, por exemplo, pode renunciar a exigir do devedor).

A doutrina não deixa de parecer interessante à primeira vista,

mas, como argumentam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho (1943):

Nos pontos extremos, a distinção será simples; mas, não

raro, surge a dúvida se a situação, determinada por um ato

jurídico, tem esse ato como causa ou origem, ou se não

passa de uma condição de aplicação da lei. E isso,

principalmente, quando se considere que os efeitos dos atos

jurídicos resultam sempre, ainda que algumas vezes

indiretamente, do reconhecimento da lei.140

5.6. Roubier

Igualmente crítico da doutrina do direito adquirido, entendendo

que não confere solução exata ao problema da intertemporalidade,

sobreveio a doutrina das situações jurídicas de Roubier, aqui exposta de

modo resumido, encartada nas obras Les Conflits de Lois Dans Le Temps,

publicada em 1929, posteriormente apresentada em 1960 sob o título Le

Droit Transitoire.

Destaca Limongi França (1998) que, dentre os escritores

franceses que condenaram a doutrina dos direitos adquiridos, a obra de

Roubier “é mais erudita de quantas se escreveram nesse diapasão, como

ainda foi aquela que, tendo sedimentado em termos claros a noção de

140 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. Op. cit., p. 318.

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situação jurídica, exerceu maior influência na generalidade dos escritores

franceses como estrangeiros”.141

O jurista francês inicia pela distinção entre efeito retroativo e efeito

imediato da lei, estabelecendo, para tanto, três categorias de fatos: (a) facta

praeterita, (b) facta pendentia e (c) facta futura. O efeito retroativo, proibido

(somente admissível se o legislador o faz de modo expresso), representa a

aplicação da lei ao passado e o efeito imediato, que é a regra, ao presente.

Se a lei pretende se aplicar aos fatos realizados (facta praeterita),

ela é retroativa. Em relação às situações em curso (facta pendentia), cumpre

separar as partes anteriores à nova lei, sobre as quais a lei não incide pena

de retroatividade, e as posteriores, para as quais se aplicará a nova

legislação em razão de seu efeito imediato. Por fim, quanto aos fatos futuros

(facta futura), inexiste risco de retroatividade. 142

Paul Roubier (1960) detalha sua teoria baseando-se na noção de

situação jurídica, que ao seu ver seria mais ampla às concepções de direito

adquirido e relações jurídicas. À primeira seria superior, porque se aplica às

situações como a do menor, do interdito e do pródigo; à segunda, pois não

envolveria apenas relação direta entre duas pessoas.143

Referido autor também afirma que o ciclo de desenvolvimento de

uma situação jurídica compreende duas fases: (a) dinâmica, referente à

constituição (ou extinção) da situação jurídica, e (b) estática, relativa aos

efeitos da situação já constituída.

141 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 60. 142 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 177. 143 Ibidem, p. 181.

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Tratando-se de disciplinar a constituição (ou extinção) da situação

jurídica, a lei nova não pode, pena de retroatividade, atingir fatos anteriores

que determinaram a constituição (ou extinção) da situação jurídica.

Igualmente, fatos que não determinaram a constituição (ou extinção) de uma

situação jurídica pela lei vigorante ao tempo em que produzidos não podem

ser considerados pela lei nova aptos a fazê-lo.144

Cuidando-se de fixar os efeitos da situação jurídica, seria

retroativa a lei que atingisse os efeitos produzidos sob a égide da lei antiga;

em princípio, a lei nova aplica-se aos efeitos produzidos após sua entrada

em vigor, em razão do efeito imediato.145

Segue propugnando que, em certas matérias, nenhum efeito

(retroativo ou imediato) se aplica, como nos contratos anteriormente

constituídos, caso em que ocorre a sobrevivência da lei antiga.146

À semelhança da teoria de Gabba, a prestigiada doutrina das

situações jurídicas de Roubier não ficou estreme de dúvidas e críticas.

Wilson de Souza Campos Batalha (1980) assinala a possibilidade de

acarretar “graves inconvenientes de insegurança jurídica” na sua aplicação

prática.147

144 Ibidem, p. 182. 145 Ibidem, p. 183. Galeno Lacerda (1974), apoiando-se nas lições de Roubier, afirmou corretamente, por ocasião da entrada em vigor do CPC de 1973, o qual introduziu nova causa de extinção do processo sem julgamento do mérito (quando o processo ficar parado por mais de um ano por negligência das partes), que não poderia ser computado na contagem do prazo de paralisação período de tempo transcorrido sob a lei antiga, que não previa tal causa de extinção. LACERDA, Galeno. O

novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 30. 146 Wilson de Souza Campos Batalha (1980) discorre sobre o pensamento do doutrinador francês: “Paul Roubier firmava o princípio da aplicação imediata da lei: as leis novas que determinam os efeitos das situações jurídicas não-contratuais aplicam-se imediatamente às situações jurídicas criadas antes da sua entrada em vigor, ao passo que, em regra, as leis anteriores continuam a reger os efeitos dos contratos em curso”. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 190. 147 Ibidem, p. 157.

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Rebatendo a argumentação de Roubier quanto às imprecisões da

idéia de direito adquirido, Limongi França (1998) prega que “a noção de

situação jurídica é ainda mais fluida”.148

A despeito disso, tida por “admiravelmente arquitetada” para

Wilson de Souza Campos Batalha (1980)149, elogios não são economizados

à teoria de Roubier pelos tratadistas brasileiros.

Sobre o assunto, referem Eduardo Espínola e Eduardo Espínola

Filho (1943) que “a teoria de Roubier fornece preciosos subsídios para a

solução, muitas vezes delicada e cheia de sutilezas, dos conflitos legislativos

no tempo. Demonstram-no, de modo geral, as minuciosas considerações, a

que acabamos de nos referir”.150 A jurisprudência, inclusive do Supremo

Tribunal Federal151, também não deixa de alicerçar suas decisões nos

ensinamentos do doutrinador francês.

148 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 66. 149 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 190. 150 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/Freitas Bastos, 1943, p. 333-334. 151 “Recurso Extraordinário nº 219.434-0 - Distrito Federal - Primeira Turma Relator: Min. Moreira Alves - Recorrente: Caixa Econômica Federal – CEF Advogados: Hamilton Vieira Pinto e outros - Recorridos: Paulo Mourão Monteiro e outros - Advogados: Alcino Guedes Da Silva e outros - Advogados: Alde da Costa Santos Junior - Engenheiros Credenciados. Reconhecimento de relação de emprego. Alegação de acumulação vedada constitucionalmente. - A relação de emprego em causa foi reconhecida como existente antes do advento da Constituição de 1988, e, portanto, quando a Carta Magna anterior não exigia concurso público para o ingresso em emprego em empresa pública ou sociedade de economia mista, o que não fere o disposto no artigo 37, “caput” e inciso II, da atual Constituição, porque, se é certo que a Carta Magna tem aplicação imediata, e, portanto, e retroativa em grau mínimo (daí dizer-se que não há direito adquirido contra a Constituição), também é certo que, salvo quando ela expressamente o declara, não atinge ela, para desconstitui-los, fatos ocorridos no passado, como salienta Roubier ("Les Conflits de Lois dans le Temps", II, nº 122, p. 471, Recueil Sirey, Paris, 1933) ao observar que, "se, por exemplo, uma lei muda as condições do recrutamento de certas funções públicas, essa lei não terá efeito em face dos funcionários já nomeados, mas terá efeito imediato para todas as nomeações ulteriores". - Nesse sentido, já decidiu esta Primeira Turma, ao acentuar, no AGRRE 230.248, "ao tempo em que reconhecido o vínculo trabalhista entre as partes (fevereiro de 1982) as empresas públicas não se submetiam a regra constitucional do concurso publico". - Somente com relação a dois dos reclamantes não reconheceu o acórdão recorrido a ocorrência de acumulação de empregos vedada constitucionalmente, e isso porque, em última análise, não a teve como comprovada, não sendo cabível o recurso extraordinário para reexame de prova (súmula 271). Recurso extraordinário não conhecido” (RTJ nº 183). Conveniente, ainda, trazer à colação voto do mesmo Ministro Moreira Alves proferido na ADIn 493/0 - DF, julgada pelo Pleno do

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Majoritariamente a doutrina acolhe, ainda, a concepção de

Roubier segundo a qual a noção de situação jurídica ultrapassa a dos

direitos adquiridos, compreendendo até o quadro dos direitos

condicionais152, embora, repita-se, os resultados a que chegam as teorias se

equivalem na maioria dos casos.153

Assim como Gabba, Roubier exerceu inequívoca influência na

legislação pátria, tanto que a redação da Lei de Introdução de 1916,

emanada em 4 de setembro de 1942 do Decreto nº 4.637, aludiu às

expressões “efeito imediato” e “situações jurídicas”, certo que a primeira

consta da atual redação da aludida norma.

STF em 25 de junho de 1992, ementa de acórdão publicada no DJ de 04.09.1992, p. 14.089, do seguinte teor: “'Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal - de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente'... Roubier (ob. cit. nº 83, págs. 417 e segs.) - um dos clássicos da teoria do direito intertemporal - a critica veementemente. Depois de afirmar que 'essa teoria da retroatividade das leis de ordem pública, sob a forma por que se queira apresentar, deve ser pura e simplesmente rejeitada' (...), dá, para isso, três razões, das quais a primeira, que é a principal, é esta: 'A idéia de ordem pública não pode ser posta em oposição ao princípio da não-retroatividade da lei, pelo motivo decisivo de que, numa ordem jurídica fundada na lei, a não-retroatividade das leis é ela mesma uma das colunas de ordem pública. ... A lei retroativa é, em princípio, contrária à ordem pública; e, se excepcionalmente o legislador pode comunicar a uma lei a retroatividade, não conviria imaginar que, com isso, ele fortalece a ordem pública; ao contrário, é um fermento de anarquia que ele introduz na sociedade, razão por que não deve ser usada a retroatividade senão com a mais extrema reserva. (...)'. Se essas palavras são candentes de verdade em países aonde o princípio da irretroatividade é meramente legal, não o serão nos em que este princípio está inserto na Constituição, entre as garantias fundamentais?”. 152 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 362. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 191. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 305. 153 É de Carlos Maximiliano (1955): “Uma sobreleva à outra, quanto à propriedade das expressões; porém, na prática, o dissídio se reduz proporções mínimas”. MAXIMILIANO, Carlos. Direito

intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 9.

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6. RETROATIVIDADE, EFICÁCIA IMEDIATA E

ULTRATIVIDADE

6.1. Retroatividade e Eficácia Imediata

A retrooperância da lei é fenômeno ocorrente em qualquer campo

do direito (penal, civil, processual etc.). Urge, então, estabelecermos um

conceito único, aplicável a qualquer ramo da ciência jurídica, o que, porém,

não induz igualdade de tratamento no tocante à sua admissibilidade.

De fato, a conceituação de retroatividade não se confunde com a

verificação das hipóteses nas quais ela se afigura permitida pelo

ordenamento jurídico. Assim, em nada pode interferir no desvendar do

conceito, que é universal, o fato de, por exemplo, retroagir a lei penal para

beneficiar o réu (Constituição Federal, art. 5º, XL) ou, ainda, não ser lícito à

lei prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada

(Constituição Federal, art. 5º, XXXVI). Tais casos referem-se à

admissibilidade e não à definição do que se tenha por retroatividade.

Posta essa premissa, passamos à conceituação do instituto, não

sem antes registrar o dissenso doutrinário havido em torno do tema. Já

afirmamos ser objeto do direito intertemporal a regulação das situações

pendentes, iniciadas no pretérito e que continuam a gerar efeitos no

presente. A controvérsia doutrinária encontra-se justamente nos efeitos

futuros, ainda não verificados, do ato precedente. Alguns entendem que há

retroatividade se a lei atinge tais efeitos, enquanto outros afirmam que tal é

resultado do mero efeito imediato da lei.

Silvio Rodrigues (2005), por exemplo, é adepto da primeira

corrente, asseverando que “o problema se apresenta quando fatos, nascidos

sob o regime de uma lei, procedem em trânsito até serem apanhados por

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uma lei nova, que revoga a anterior. E a questão fundamental é a de saber

se a lei nova pode retroagir apanhando os efeitos daqueles fatos”, dizendo

ser “retroativa a lei que procura alcançar os efeitos” dos mesmos.154

Tal posição é inspirada nos ensinamentos de Gabba, que afirma

ser justa a retroatividade quando não se depara, na sua aplicação, qualquer

ofensa ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada; e

injusta, quando ocorre esta afronta.155

Os doutos que partilham dessa mesma posição apresentam,

ainda, distinção entre graus de retroatividade: máxima, média ou mínima.

Segundo José Carlos de Matos Peixoto (1960), dá-se:

(...) a retroatividade máxima, também chamada restitutória,

quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença

irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados. Está, nesse

caso, por exemplo, a lei canônica que aboliu a usura e

obrigava o credor solvável a restituir ao devedor, aos seus

herdeiros ou, na falta destes, aos pobres os juros já

recebidos. Também o era a lei francesa de 12 brumário do

ano II (3 nov. 1793), que admitia os filhos naturais à

sucessão paterna e materna, em igualdade de condições

com os filhos legítimos, desde 14 de julho de 1789, data em

que, segundo as idéias revolucionárias da época, “les droits

de la nature ont repris leur empire”. A retroatividade operava

radicalmente no passado até a data referida, refazendo

mesmo as partilhas definitivamente julgadas. A

retroatividade é média, quando a lei nova atinge os direitos

exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência.

Exemplo: uma lei que diminuísse a taxa de juros e se

aplicasse aos já vencidos, mas não pagos. Enfim, a

154 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 26-28. 155 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v. 1. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 31-32.

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retroatividade é mínima (também chamada temperada ou

mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos

fatos anteriores, verificados após a data em que a Lei entra

em vigor. Tal é a Constituição de Justiniano que limitou a

6% em geral, após a sua vigência, a taxa de juros dos

contratos anteriores. No mesmo caso está o Dec. 22.626, de

7 de abril de 1993 (Lei de Usura), que reduziu a 12% em

geral as taxas dos juros vencidos após a data de sua

obrigatoriedade.156

Em todos esses casos, esclarece Washington de Barros Monteiro

(1997) que a “retroatividade é injusta, porque com ela se verifica lesão,

maior ou menor, a diretos individuais”.157

Não nos parece seja essa a posição tecnicamente mais

adequada, “data venia”. Para a teoria geral do direito, retroagir significa “ter

ação sobre o que já foi feito ou sobre o passado”.158 É a atividade da lei para

trás, ou seja, a lei nova invade período de tempo anterior ao momento de

sua entrada em vigor, modificando a realidade jurídica então existente, da

qual adveio ou não direito adquirido.

Roubier (1960) foi quem nos ofereceu a escorreita distinção entre

efeitos retroativo e imediato da lei, afirmando que se a lei pretende se aplicar

aos fatos realizados (facta praeterita), ela é retroativa; em relação às

situações em curso (facta pendentia), cumpre separar as partes anteriores,

sobre as quais a lei nova não incide pena de retroatividade, e as posteriores,

nas quais incidirá a legislação atual em razão de seu efeito imediato. Por fim,

156 PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de direito romano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Haddad, 1960, p. 231-232. 157 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Op. cit., p. 32. 158 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 200.

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quanto aos fatos futuros (facta futura), diz não haver retroatividade

possível.159

Ora, fica claro, assim, que por efeito imediato entende-se a

aplicação da lei aos fatos futuros e às partes posteriores dos fatos

pendentes, inexistindo, nesta segunda hipótese, qualquer projeção da lei

sobre o pretérito.

Em relação aos graus de retroatividade, propostos pela primeira

corrente, Arnold Wald (1995) ressalta acertadamente que “a retroatividade

mínima”, que implica sujeitar à nova norma conseqüências posteriores de

atos jurídicos praticados na vigência da lei anterior, se “confunde com o

efeito imediato da lei”.160

Portanto, o atingir da lei nova sobre tudo quanto ocorra a partir do

momento em que entra em vigor, inclusive sobre efeitos não aperfeiçoados

de atos precedentes, é mera expressão da eficácia imediata da lei.

Tal conclusão não significa, de modo algum, que possa a lei nova

emanar eficácia sobre todos os efeitos futuros dos atos ou fatos passados,

questão a envolver a admissibilidade da retrooperância ou não da lei. Isso

porque, não poderá a lei nova projetar eficácia imediata sobre os efeitos não

produzidos de um direito adquirido, por força do que dispõe a Constituição

Federal.

Assim o é porque, dizem Eduardo Espínola e Eduardo Espínola

Filho (1943), segundo “Gabba, com apoio de autores e da jurisprudência, na

Itália, temos esta orientação: todas as conseqüências do direito adquirido

devem-se considerar-se, também, direitos adquiridos, quando sejam

159 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 177. 160 WALD, Arnold. Curso de direito civil brasileiro. Introdução e Parte Geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 91-108.

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verdadeiras e próprias conseqüências daquele direito”.161 Na mesma linha,

são as palavras de Carlos Maximiliano (1955):

A teoria clássica subordina os efeitos de um direito ao

império da lei sob o qual o mesmo foi adquirido, isto é, ao

domínio da norma vigorante na data em que se efetuou o

ato ou fato originador do direito referido. Trata-se de efeitos

legais do direito principal, isto é, já previstos pela norma

anterior, ou inseparáveis do direito referido e, participantes

da mesma natureza; não de efeitos ocasionais, não

previsíveis nem previstos, ou que possam derivar de fatos

eventuais.162

Portanto, o efeito imediato, que é a regra, caracteriza-se pela

aplicabilidade da lei, no exato momento em que passa a vigorar, às

situações jurídicas futuras e aos efeitos que se produzirem a partir de então

das situações nascidas no pretérito163; haverá indevida eficácia imediata (e

não retroatividade), porém, se aplicada aos efeitos futuros decorrentes de

uma situação jurídica definitivamente constituída no passado e da qual tenha

se originado um direito adquirido. As conseqüências não produzidas, então,

do direito adquirido (expressão na qual se inserem o ato jurídico perfeito e

coisa julgada, como se verá) são resguardadas da incidência da lei nova.

6.2. Pós-Atividade ou Ultratividade da Lei Velha

Pós-atividade ou ultratividade significa a aplicação da lei para

além do seu período de vigência, isto é, a lei revogada continua eficaz de

forma a aplicar-se aos efeitos futuros de um ato passado, isto é, produzidos

sob o império de uma nova lei. Por tal modo de projeção da lei no tempo

161 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 358-359. 162 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 34. 163 A máxima tempus regit actum resulta da regra do efeito imediato das leis.

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serão excluídos tanto os efeitos retroativos quanto os imediatos da lei nova,

a qual se tem por inaplicável, na hipótese, aos efeitos jurídicos de fatos

anteriores à sua entrada em vigor.

É verificável de dois casos: primeiro, quando o ordenamento

jurídico estabelece regras gerais de intangibilidade de situações jurídicas

constituídas no passado, à maneira do art. 5º, XXXVI, da Constituição da

República; segundo, quando a lei nova cria regramento específico para

tratamento de determinada matéria originada no pretérito, a exemplo do art.

192 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que regulou recuperação

judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária,

ao dispor no caput, in verbis: “Art. 192. Esta Lei não se aplica aos processos

de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua

vigência, que serão concluídos nos termos do Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de

junho de 1945”.164

Nem sempre, pois, a ultratividade é conseqüência da preservação

das situações jurídicas definitivamente constituídas no passado (v.g,

contratos privados), podendo sê-la, em algumas hipóteses, de decisão

legislativa por meio da qual se afigura conveniente o protraimento do

alcance da lei nova no tempo.

A pós-atividade, nesta segunda hipótese, pertence, a rigor, ao

campo do direito transitório, inexistindo propriamente conflito normativo no

tempo, porque estabelecida por determinada lei através das suas

disposições transitórias, nas quais o legislador entende por bem preservar a

eficácia do diploma revogado de modo a evitar a insegurança jurídica que

poderia advir caso a lei nova silenciasse a respeito, vale dizer, evita-se o

164 A existência da ultratividade é acolhida de há muito pelo direito brasileiro, ao contrário do que, “data venia”, sustenta Limongi França (1998), segundo o qual o instituto nada tem a ver com o nosso sistema vigente. Outro exemplo de ultratividade por opção do legislador foi disciplinado no art. 76 da Lei 8.245, de 18.10.91 (Lei de Locações), nestes termos: “Não se aplicam as disposições desta lei aos processos em curso”.

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surgimento de dúvidas a respeito da aplicabilidade ou não do novel comando

legislativo ao fato pendente.

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7. FUNDAMENTOS DO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE E

DO RESPEITO AO DIREITO ADQUIRIDO

Acertadamente diz Limongi França (1998) que os princípios da

irretroatividade das leis e da observância ao direito adquirido resultam de

“uma imposição da própria natureza das coisas”, registrando que na doutrina

do século XVIII já despontava esta concepção jusnaturalista, de que foi

destaque a obra Les lois civiles dans leur ordre naturel de Domat, datada de

1756.165

Vicente Ráo (2005), valendo-se dos ensinamentos de Portalis e

Lomonaco, igualmente assevera que a inviolabilidade do passado é princípio

que encontra fundamento na própria natureza do ser humano.166 Sem

dissentir, Miguel Maria de Serpa Lopes (1943) defende a idéia de que a

irretroatividade da lei parte de uma concepção natural, de um sentimento

profundo das necessidades humanas, sendo, por isso, indubitável que aos

romanos não haja escapado essa percepção, a despeito de inexistirem, nas

primeiras leis, dispositivos reguladores da matéria.167

Também para Lassalle apud Reynaldo Porchat (1909) o

“verdadeiro fundamento do respeito aos direitos adquiridos está, pois, na

inviolabilidade da personalidade humana, e na inseparabilidade do conceito

do direito e do de uma pessoa que pensa e quer viver livremente”.168

Entendimento contrário é sustentado por José Eduardo Martins

Cardozo (1995), para quem as regras de direito intertemporal não são

165 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 6-7 e 37. 166 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 389. 167 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 235. 168 In: PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp., 1909, p. 34.

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ditadas por uma razão natural, nem resultantes da luta pela justiça, mas sim

“produtos da história humana, das suas contradições, das suas

necessidades econômicas e sociais, sempre postas ao longo de um

contínuo processo de transformação”.169

O referido autor justifica seu posicionamento com a importante

constatação de que os dois grandes períodos de notável evolução do direito

intertemporal (séculos II a.C. e XIX) ocorreram em momentos históricos de

transformações econômico-sociais, nos quais a expansão das relações

comerciais adquiriu uma expressão até então inexistente, o que exigiu a

criação de regramentos com o fim de garantir previsibilidade aos negócios

jurídicos que se avolumaram e se tornaram mais complexos. O primeiro

período emerge da antiga Roma do século II a.C., em que o

desenvolvimento do comércio foi fruto de um processo de conquistas

militares, ao passo que o segundo período, século XIX, coincide ruptura da

velha ordem feudal e a consolidação do capitalismo, no qual o comércio e o

liberalismo se destacaram nessa nova realidade.

A bem da verdade, porém, a historicidade das regras de direito

intertemporal não rechaça a fundamentação estribada no direito natural, com

o devido respeito daqueles que pensam de modo diverso. O direito natural

não representa, enfatiza Miguel Reale (1991):

Nada de abstrato ou abstraído do processo histórico, pois é

por ocasião deste que se nos revela como condição

transcendental de possibilidade da vida do Direito. No fundo,

equivale ao conjunto das condições transcendental-

axiológicas que tornam a experiência jurídica possível.170

169 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 99. 170 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 591.

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As opiniões, portanto, se conciliam, pois inexiste

incompatibilidade, como se poderia supor, entre processo histórico e direito

natural. Lícito afirmar que as normas irretroativas e as que resguardaram

direitos adquiridos foram editadas ao longo da história porque os homens

sentiram a necessidade de externarem, em especial em períodos de grande

desenvolvimento das relações comerciais, o sentimento natural de

inviolabilidade ao passado e não por suportarem conviver com

imprevisibilidades e constantes ameaças de invasão aos bens legitimamente

conquistados.

Sobre o assunto, Alexandre de Moraes (1998), examinando as

diversas teorias que procuram explicar a base dos direitos humanos

fundamentais, entre os quais se insere o art. 5º, XXXVI, da Lei Maior,

reconhece a influência direito natural, ao afirmar:

(...) as teorias se completam, devendo coexistir, pois

somente a partir da formação de uma consciência social

(teoria de Perelman), baseada principalmente em valores

fixados na crença de uma ordem superior, universal e

imutável (teoria jusnaturalista) é que o legislador ou os

tribunais (esses principalmente nos países anglo-saxões)

encontram substrato político e social para reconhecerem a

existência de determinados direitos humanos fundamentais

como integrantes do ordenamento jurídico (teoria

positivista). O caminho inverso também é verdadeiro, pois o

legislador ou os tribunais necessitam fundamentar o

reconhecimento ou a própria criação de novos direitos

humanos a partir de uma evolução de consciência social,

baseada em fatores sociais, econômicos, políticos e

religiosos.171

171 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Altas, 1998, p. 35.

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Intangíveis, pois, o pretérito e os direitos conquistados através

dos tempos, que escapam ao império da lei nova, por necessidade do

homem, que deve ter preservada a sua dignidade.

Poderia soar supérflua firmarmos a proposição de que a

irretroatividade e o respeito ao direito adquirido fundam-se no direito natural.

Afinal, hodiernamente, encontra-se enfraquecida dicotomia direito

natural/direito positivo, em razão da própria positivação dos direitos naturais.

É o que leciona Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001), no sentido

de que uma das razões do enfraquecimento da dualidade pode ser

localizada na promulgação constitucional dos direitos fundamentais; “essa

promulgação, o estabelecimento do direito natural na forma de normas

postas na Constituição, de algum modo ‘positivou-o’”. E, depois, a

proliferação dos direitos fundamentais, a princípio, conjunto de supremos

direitos individuais e, posteriormente, de direitos sociais, políticos,

econômicos aos quais se acrescem hoje direitos ecológicos, direitos

especiais das crianças, das mulheres etc., provocou progressivamente sua

trivialização.172

Ressaltemos, contudo, que nem todos os direitos naturais

encontram-se formalmente plasmados na Constituição, como é o caso, na

maioria dos ordenamentos jurídicos, dos princípios da irretroatividade das

leis e do respeito ao direito adquirido.

Portanto, a premissa ora estabelecida é deveras relevante para

firmarmos a idéia de que a irretroatividade e a observância ao direito

adquirido devem ser consideradas como regras nos ordenamentos em geral,

ainda que o legislador não faça expressa menção a esse respeito.

172 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 168.

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Mas é de perquirirmos: por qual razão os princípios em foco

encontram alicerce na natureza do ser humano? Porque o homem precisa

de estabilidade e previsibilidade nas relações jurídicas travada com seus

semelhantes, o que se traduz no sinônimo de segurança, palavra

representativa do valor informativo da proibição à retroprojeção das leis e do

respeito ao direito adquirido.

Preciosos, nesse passo, são os ensinamentos de Miguel Reale

(1991), no sentido de que, embora não sejam imutáveis:

(...) o normal é que as regras jurídicas se destinem a durar,

satisfazendo um dos princípios basilares da vida jurídica que

é o da economia das formas. Os juristas somos, por sinal,

muitas vezes acusados de certo conservantismo, pelo

apego às leis prudentemente elaboradas, em torno das

quais já se constituiu todo um sistema de critérios éticos e

de categorias lógicas, aliando-se o fino lavor da doutrina à

diuturna experiência jurisdicional. As transformações

bruscas, assim como as mudanças incessantes não se

compadecem com o sentido ideal do Direito, que é o da

harmonia da justiça com a certeza e segurança.173

Aliás, o valor segurança, ordem ou certeza, é indissociável do

Direito, da própria experiência jurídica, sendo vivificado desde os filósofos

gregos e os jurisconsultos romanos até nossos dias.174 É, em outro tom,

elemento constitutivo do Estado de Direito, nas esclarecedoras lições de

José Joaquim Gomes Canotilho (1991), cuja transcrição se faz imperativa

como pressuposto necessário à compreensão do tema:

Partindo da idéia de que o homem necessita de uma certa

segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e

173 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 562-563. 174 Ibidem, p. 595.

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responsavelmente a sua vida, desde cedo se considerou

como elementos constitutivos do Estado de direito os dois

princípios seguintes: o princípio da segurança jurídica e o

princípio da confiança do cidadão.175

Segundo o mencionado autor:

Os princípios da proteção da confiança e de segurança

jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder

confiar em que aos actos ou às decisões públicas incidentes

sobre os seus direitos, posições e relações, praticados de

acordo com as normas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos

duradouros, previstos ou calculados com base nessas

mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente

para: (a) a proibição de leis retroactivas; (b) a

inalterabilidade do caso julgado, (c) a tendencial

irrevogabilidade de actos administrativos constitutivos de

direitos.176

Com a lei retrooperante, que representa para Lassalle apud

Carlos Maximiliano (1955) “a negação de toda a juridicidade”177, aniquila o

Estado a certeza que outrora ele próprio alimentara no homem, de viver

confiando nas leis vigentes ao tempo da consolidação das situações que

constituíra, além de descumprir sua função primordial consistente em “criar

condições que assegurem ao homem, em sociedade, evoluir, material e

espiritualmente, o que se dá através do desenvolvimento e da manutenção

dos direitos fundamentais”.178

175 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 375-378. 176 Ibidem, p. 375-378. 177 In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 24. 178 BRAGA, Sidney da Silva. Iniciativa probatória do juiz no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 11.

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Assim, por necessidade inerente à condição humana, o direito

veda, em regra, a edição de leis retroativas e lesivas a direitos adquiridos,

com vistas a proporcionar segurança e certeza nas relações jurídicas.179

179 José Eduardo Martins Cardozo (1995, p. 102) comenta que “os autores não têm logrado chegar a um consenso, embora nem sempre tornem explícitas estas divergências” quanto ao fundamento das regras de direito intertemporal, pois parte da doutrina tem-no na inviolabilidade da pessoa humana e outro segmento cogita da idéia de segurança jurídica. Com a devida vênia, inexiste divergência doutrinária. A segurança é apenas conseqüência da necessidade de inviolabilidade à pessoa humana.

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8. A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL

8.1. A Relativização do Princípio da Irretroatividade das Leis

Uma vez assentado que a irretroatividade deve ser a regra nos

ordenamentos jurídicos em cujos Estados sejam qualificados como de

Direito180, tal qual nossa República, não podemos agasalhar a posição

difundida por respeitável doutrinada no sentido de que o art. 5º, XXXVI, da

Constituição Federal tenha adotado o princípio da “retroatividade limitada”,

ou seja, desde que respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a

coisa julgada a “lei nova pode e deve retroagir”, sendo que “a retroatividade

é a regra e a irretroatividade a exceção”, em relação às leis civis.181

Superada tal questão, cumpre verificar se a irretroatividade no

sistema jurídico brasileiro é diretriz constante da Lei Maior ou se, ao revés,

tem status de lei ordinária. O debate não é meramente acadêmico, como se

poderia sugerir. Não o é, porém, pelo recorrente argumento doutrinário de

que o consectário lógico deste regramento no plano constitucional

constituiria em que o princípio da irretroatividade vincularia não somente o

intérprete, mas igualmente o legislador, a quem não seria lícito editar leis

cujos efeitos se projetem ao passado.

Ora, sendo regra inata ao Estado de Direito e fundada no direito

natural, temos que, esteja disciplinado em lei constitucional ou em lei

ordinária, a irretroatividade vinculará o juiz, a autoridade administrativa e o

legislador, permanecendo sempre como princípio científico do direito,

180 Sobre o conceito de Estado de Direito e Estado Democrático de Direito, discorre José Afonso da Silva na obra Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 116-126. 181 Tais são os dizeres, com os quais não se pactua, utilizados por Mário Luiz Delgado na obra Problemas de direito intertemporal no código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 30-38. Também para Silvio Rodrigues (2005) teríamos adotado o princípio da retroatividade da lei nova. RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 29). Exemplo de lei que deve retroagir é encontrada apenas no campo penal, quando benéfica ao réu: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (Constituição Federal, art. 5º, XL).

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“princípio orientador de legisladores e juízes”.182 Ainda que o princípio em

foco figurasse apenas em “lei comum e, pois, dirigindo-se formalmente

apenas ao juiz, nem por isso se suponha possa o legislador revolver o

passado e conferir, arbitrariamente, efeito retroativo a quaisquer normas

jurídicas. Violaria, se o fizesse, um ditame de direito natural”.183 De fato,

“embora não inscrito no código básico a irretroatividade é um princípio

fundamental de Direito; constitui ‘um preceito, para o legislador; uma

obrigação, para o juiz; uma garantia, para os cidadãos’”.184

Na realidade, a séria conseqüência prática está em que, figurando

o princípio na Constituição, qualquer reforma legislativa de cunho

retrooperante somente será considerada constitucional se encontrar guarida

em outro princípio também constitucional, de maior primazia, que justifique o

efeito pretérito, como o é o princípio da dignidade da pessoa humana. Do

contrário, não sendo inserido como norma constitucional, ao legislador

deferir-se-á maior liberdade, podendo promulgar normas retroativas desde

que sem arbitrariedade. Resumindo, o problema será de grau de vinculação

do legislador, maior no primeiro caso e menor no segundo.

Seria, de outra banda, de questionarmos: se a irretroatividade

encontra-se ínsita na idéia de Estado de Direito, não seria, por si só,

princípio constitucional? Aqui precisamos rememorar a essencial distinção

entre Constituição em sentido substancial e em sentido formal.

Em sentido substancial, Constituição significa o complexo de

normas e princípios fundamentais, escritos ou não, que estrutura e organiza

o Estado, ou seja, é:

182 João Franzen de Lima apud FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 189. 183 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 394. 184 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 50.

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(...) o conjunto de normas estruturais de uma dada

sociedade política. Pode-se, segundo esta acepção, saber

se uma dada norma jurídica é constitucional ou não,

examinando-se tão-somente o seu objeto. Se regular um

aspecto fundamental da comunidade política, indispensável

à sua concepção ou à sua permanência, se se tratar da

distribuição do poder dentro da sociedade, se versar, enfim,

algo que, alterado, abalaria as próprias vigas mestras do

ente político, será constitucional.185

Já em sentido formal, completa Celso Ribeiro Bastos (1996), a

Constituição é definida como o:

(...) conjunto de normas legislativas que se distinguem das

não-constitucionais em razão de serem produzidas por um

processo legislativo mais dificultoso, vale dizer, um processo

formativo mais árduo e mais solene. Assim, convém

observar que poderão verificar-se normas constitucionais

apenas sob o aspecto formal. Isto ocorre em todos aqueles

casos em que determinadas regras jurídicas, de natureza

não substancialmente constitucional, tenham sido inseridas

na Constituição em sentido formal.186

Sob o ângulo substancial, como integrante da estrutura do

Estado, pois decorrente da noção de segurança jurídica, é inarredável a

asserção de que o princípio da irretroatividade é de natureza constitucional.

Já a sua verificação como disposição formalmente constitucional

depende, à evidência, do exame da Constituição de cada Estado, bastando

investigar a existência ou não de dispositivo proibitivo da retroprojeção das

leis. Esta é a constatação que verdadeiramente importa ao intérprete,

185 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 40-41. 186 Ibidem, 40-42.

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porque a uma lei retroativa somente poderá impor-se a eiva de

inconstitucionalidade se o princípio da irretroatividade figurar como preceito

formal na Constituição.187

No direito brasileiro, as Constituições de 1824 e 1891, como já

afirmamos, consagraram expressamente a regra da irretroatividade. Já as

Constituições de 1934 – silente a de 1937 -, 1946, 1967 e 1988 não

proibiram literalmente a retroatividade, mas apenas a ofensa ao direito

adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.

Diante desse quadro, os autores se dividem. Majoritariamente se

sustenta que o princípio da irretroatividade das leis é previsto de modo

formal na Constituição. Assim leciona Limongi França (1998):

Com as Constituições de 1934, 1967 e 1988, embora

diversa tenha sido a fórmula adotada no preceito sobre a

matéria, sustentamos que o seu conteúdo continua o

mesmo. Os dispositivos dessas Leis Magnas, em suma,

vieram atender à regra implicitamente já contida nas de

1824 e 1891, qual seja a de que as leis não têm efeito

retroativo em princípio, podendo entretanto tê-lo, por

disposição expressa, se não ofenderem Direito Adquirido.188

Adiante, o autor finaliza seu pensar no sentido de que ser “de

caráter constitucional o princípio da irretroatividade das leis”.189

187 É bem por isso o enfatizar de José Joaquim Gomes Canotilho (1991, p. 381) de que “a simples qualificação de uma lei como retroativa nada diz acerca de sua legitimidade ou ilegitimidade constitucional”, salvo, é claro, repita-se, se a regra da irretroatividade vier a ser inserida formalmente na Constituição. Sobre o assunto, com propriedade registra José Eduardo Martins Cardozo (1995, p. 308) que se o legislador “optar pela fixação de uma regra, constitucional formal, estará, neste ponto, estabelecendo uma plena correspondência entre o que é juridicamente substancial e formal. Se não o fizer estará deixando de coadunar as duas situações, no que, aliás, ao menos no âmbito da estrita técnica jurídica, não haverá inconveniente algum”. 188 FRANÇA, Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 192. 189 Ibidem, p. 192 e 295.

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101

Esta também é a opinião de Maria Helena Diniz (2005), ao afirmar

que:

A irretroatividade das leis é um princípio constitucional,

apesar de não ser absoluto, já que nas normas poderão

retroagir, desde que não ofendam o ato jurídico perfeito, o

direito adquirido e a coisa julgada. O direito adquirido, o ato

jurídico perfeito e a coisa julgada marcam a segurança e a

certeza das relações que, na sociedade, os indivíduos, por

um imperativo da própria convivência social, estabelecem, e

que seriam mera ficção.190

De outro lado, alguns doutrinadores entendem não se encontrar o

princípio em foco disciplinado na Constituição de 1988. Segundo José

Eduardo Martins Cardozo (1995):

A atual Constituição brasileira, a exemplo das Constituições

brasileiras de 1934, 1946 e 1967, não consagra o princípio

da irretroatividade ou da retroatividade das leis. Ela limita-

se, no seu art. 5º, XXXVI, a estabelecer o princípio do

respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à

coisa julgada.191

A nosso ver, não consta da atual Lei Maior o aludido princípio.

Isso porque, como salienta Cardozo, da mesma forma que é possível existir

uma lei retroativa que não ofenda o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal

(bastando que não prejudique direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e a

coisa julgada), é possível existir uma lei não retroativa que ofenda este

dispositivo constitucional, o que ocorrerá quando a lei nova pretender atingir,

190 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 202. 191 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 337.

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com efeitos imediatos e futuros, tais realidades resguardadas pela

Constituição Federal, desrespeitando, desta forma, a imperativa ultratividade

da lei velha.192

É o entendimento nos afigura exato, considerando a distinção já

lançada neste trabalho entre efeitos retroativo e imediato da lei, certo que à

lei nova veda-se a produção de efeito imediato em relação aos efeitos atuais

das situações definitivamente constituídas no passado.

Forçoso convir, pois, que a regra constitucional da irretroatividade

das leis civis (materiais ou processuais) pode ser excepcionada pelo

legislador infraconstitucional, desde que, sem arbitrariedade, o faça de modo

expresso e sejam resguardados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a

coisa julgada.

Contraditória poderia soar, mas não o é, a idéia de que ao

legislador ordinário é admissível a promulgação de leis retroativas e,

simultaneamente, comungar-se da tese de que a irretroatividade deriva do

direito natural e do princípio da segurança jurídica, um dos pilares da

concepção do Direito.

Embora a história nem sempre assim se revele e apresente

contradições manifestas, ambos valores (relativos) contidos na concepção

de Direito, segurança jurídica e justiça devem caminhar conjuntamente e em

harmonia, de modo que a exigência do primeiro de mantença das árduas

conquistas sociais e a do segundo de constante modificação da realidade

existente sejam compatibilizadas, tudo a permitir o progresso da

humanidade.

192 Ibidem, p. 326.

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É Hauriou, citado por Miguel Reale (1991)193, quem demonstra a

problemática da correlação entre a justiça e a ordem, intimamente ligadas,

mas em conflito latente, por requerer o ideal de justiça o sentido de

insatisfação renovadora da realidade em vigor. Uma ordem estabelecida

representará sempre certa porção de justiça, mas também se encontra em

conflito potencial com uma nova dose de justiça ainda não alcançada. Em

suas palavras, remata Reale (1991):

A História do Direito revela-nos um ideal constante de

adequação entre a ordem normativa e as múltiplas e

cambiantes circunstâncias espaço-temporais, uma

experiência dominada ao mesmo tempo pela dinamicidade

do justo e pela estabilidade reclamada pela certeza e

segurança.194

Nesse diapasão, assenta José Joaquim Gomes Canotilho (1991)

que:

(...) uma absoluta proibição da retroactividade das leis

impediria o legislador de realizar novas exigências de justiça

e de concretizar as idéias de ordenação social,

positivamente plasmadas nas Constituição; daí a orientação

normativo-constitucional, segundo a qual uma lei retroactiva

é apenas, mas sempre, inconstitucional, quando uma norma

ou princípio constitucional (expresso ou implícito) conduzir a

este resultado.195

Compreendemos, desta feita, o motivo pelo qual a maior parte do

direito alienígena, especialmente o europeu, confere tratamento

infraconstitucional ao tema em foco, dado que a inserção, em âmbito

193 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 524-529. 194 Ibidem, p. 572. 195 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 379.

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constitucional, do princípio da irretroatividade traria dificuldades penosas de

progresso social.

Mas é plenamente justificável a norma do art. 5º, XXXVI, da Carta

Magna, pois o direito adquirido (como se verá) é princípio que somente deve

ser preterido em condições excepcionais. Além disso, nossa história sempre

foi marcada por freqüentes arbitrariedades e abusos de poder de nossos

representantes, os quais, não raro, violam direitos adquiridos (não

necessariamente por leis retroativas) em nome de uma suposta exigência

social, como se a lei nova fosse sempre melhor e mais avançada. É “a fome

desmedida, pantagruélica até, de vulnerar direitos adquiridos em nome de

uma suposta política econômica faria o gáudio de Presidentes da República

que se vergam ao capital estrangeiro”.196

Sintetizando, exigências de justiça podem impelir o legislador

ordinário a editar leis retrooperantes, que somente serão inconstitucionais se

malferidos normas ou princípios formalmente contidos na Constituição, tal

qual o art. 5º, XXXVI. E sendo a irretroatividade da lei nova a regra, qualquer

tentativa do legislador de lançar, em caráter excepcional e com as limitações

já expostas, efeitos pretéritos requer disposição expressa, embora sem a

exigência de palavras sacramentais.

O exame do princípio da irretroatividade traz à baila, ainda, dois

questionamentos sobre o tema. O primeiro consiste em saber se o legislador

constitucional também figura como destinatário da norma do art. 5º, XXXVI.

O segundo, se o dispositivo alberga as leis de ordem pública. O exame das

características e das peculiaridades das regras que cuidam da

intertemporalidade conflitual no direito pátrio revela a resposta positiva a

ambas indagações, o que veremos a seguir.

196 SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 55.

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8.2. O Poder Constituinte Derivado

O inciso XXXVI do art. 5º da Constituição figura entre as cláusulas

pétreas, constantes do art. 60, § 4º, vale dizer, o princípio do respeito ao

direito adquirido trata-se de direito individual, que não pode ser objeto de

emenda constitucional tendente a sua alteração ou abolição, donde a ilação

de que o poder constituinte reformador se verga ao princípio em foco.

Sobre o tema, é incisivo o comentário de Alexandre de Moraes

(1998) ao discorrer sobre:

(...) a impossibilidade de alegar-se direito adquirido em face

de norma constitucional originária, salvo se a própria nova

Constituição o consagra. O mesmo não ocorre em relação

às normas constitucionais derivadas, nascentes de emendas

constitucionais, cujo processo legislativo deve respeitar,

entre outras, as chamadas limitações materiais expressas,

conhecidas como cláusulas pétreas. Entre elas, a previsão

do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal (direitos e

garantias individuais), especificamente, o art. 5º, XXXVI

(direito adquirido).197

A moderna doutrina constitucional, de fato, encampa o

entendimento ora sufragado, senão vejamos:

“Não cabe invocação de direito adquirido em face do Poder

Constituinte Originário, conforme demonstra o art. 17 das

Disposições Transitórias da atual CF.198 Quanto ao Poder

Constituinte Derivado (poder de emenda constitucional), há

197 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Altas, 1998, p. 202. 198 “Art. 17. Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.

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de observar que o inciso XXXVI, ora analisado, está

inserido entre as cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV, da CF),

cláusulas que não estão sujeitas às emendas

constitucionais. Cremos, portanto, que a emenda

constitucional não pode excluir ou modificar o direito

adquirido. Nesse sentido: “Cláusula pétrea de respeito ao

direito adquirido. Invulnerabilidade pela superveniência de

emenda, provinda do poder constituinte derivado” (2ª Câm.

de Dir. Priv., ED 74.591-5 – São Paulo, rel. Alves

Bevilacqua, j. 17-8-1999)”.199

São contundentes, ainda, as lições de Caio Mário da Silva Pereira

(1992) no sentido de que, se é a própria Constituição que protege o direito

adquirido, “seria uma contradição consigo mesma se assentasse para todo o

ordenamento jurídico a idéia do respeito às situações jurídicas constituídas,

e simultaneamente atentasse contra esse conceito”.200

Aliado ao fato de cuidar-se de cláusula pétrea ou limitação

material expressa ou explícita, ou, ainda, núcleo imodificável, resta-nos

ressaltar a natureza analítica da Constituição Federal que, ao contrário das 199 CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio Fernando Elias; SANTOS, Marisa Ferreira. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 79-80. Também é de se registrar a seguinte observação de Galeno Lacerda (1974, p. 69), lançada a respeito do direito adquirido à interposição de recurso, ainda que diante da superveniência de norma constitucional: “Explicado o conceito de ‘dia da sentença’, resulta, desde logo, que os recursos interpostos pela lei antiga, e ainda não julgados, deverão sê-lo, consoante as regras desta, embora abolidos ou modificados pelo novo Código. A este respeito, não prevalece o argumento de autoridade, oriundo de inaceitável precedente criado pelo Supremo Tribunal Federal, quando da supressão do recurso ordinário em mandado de segurança e dos embargos infringentes perante aquela Corte. Como é notório, decidiu-se, então, pelo voto da maioria, não conhecer dos recursos já interpostos e legitimamente processados, salvo as hipóteses de conversão dos recursos ordinários em extraordinários, e dos embargos infringentes em embargos de divergência, se ocorridos, no caso, os pressupostos e restritos do recurso objeto da conversão, o que significa que a imensa maioria dos recursos pendentes foi sumariamente arquivada. Serviu de amparo a tal orientação o falso argumento de que a eliminação dos recursos decorrera de preceito com eficácia constitucional. Esqueceu-se, então, que o respeito aos direitos adquiridos constitui dogma mais alto, também de ordem constitucional, que deve iluminar, acima de quaisquer considerações, os eventos específicos de direito transitório, como os decorrentes da supressão de recursos”. Fica registrado, de todo modo, que o direito adquirido somente representa óbice à norma constitucional de natureza derivada e não originária, salvo se a nova Constituição o consagre. 200 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 117.

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Constituições sintéticas, não versa somente sobre matérias atinentes aos

princípios e normas gerais de organização e limitação dos poderes do

Estado, mas disciplina tudo quanto se entenda relevante à formação,

destinação e funcionamento do Estado.

Embora se exija procedimento mais rigoroso para sua alteração, a

extensa gama de assuntos disciplinados na Lei Maior faz o legislador editar

com freqüência inúmeras emendas destinadas à modificação do texto

constitucional. Ora, essa dinâmica na atividade legiferante derivada não se

compadece com a estabilidade jurídica esperada pelos cidadãos nas

relações jurídicas de que é participante. Melhor seria que assuntos não

estritamente relacionados à organização e limitação dos poderes do Estado

ficassem reservados à seara infraconstitucional, o que, sem dúvida,

representaria uma forma de se evitar eventuais violações aos direitos

assegurados no art. 5º, XXXVI, da Lei Maior.

8.3. Leis de Ordem Pública

Ao apontar as normas que considera de ordem pública, o jurista

argentino Raymundo M. Salvat apud Wilson de Souza Campos Batalha

(1980) exemplifica:

(a) todas as leis que constituem o direito público de um país

são de ordem pública (tais como as leis que estabelecem a

organização constitucional e administrativa, quer no campo

político, quer no econômico-financeiro); (b) entre as leis que

constituem o direito privado, há grande número que tem

caráter de ordem pública, tais como: (1º) as leis que fixam o

estado e a capacidade das pessoas; (2º) as leis que

organizam a família (matrimônio, poder marital, pátrio poder,

condição dos filhos naturais, filiação etc); (3º) as leis que

estabelecem o regime de bens, particularmente dos bens

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imóveis (sua natureza, direitos de que são suscetíveis, sua

aquisição e transmissão etc).201

De um modo geral, são consideradas, portanto, leis de ordem

pública as pertencentes ao ramo do direito público (direito constitucional,

administrativo, processual, penal, do trabalho e internacional) e as leis

cogentes, de observância obrigatória, inseridas no âmbito do direito privado,

composto pelos direitos civil e comercial (v.g, normas que estatuem sobre o

casamento, vocação hereditária etc).202

Fiquemos, por ora, com esta noção, malgrado nem todas as

normas de direito público sejam efetivamente de ordem pública, como se

verá na segunda parte desta dissertação.

Difundiram-se em parte da doutrina e da jurisprudência duas

equívocas concepções a respeito dessas leis nas quais prepondera o

interesse público.

A primeira concebe as normas de pública como de aplicabilidade

imediata, atingindo as situações pendentes; na realidade, todas as leis, de

ordem pública ou não, são dotadas de efeito imediato, mercê do caput do

art. 6º da Lei de Introdução (“A Lei em vigor terá efeito imediato”),

alcançando de pronto os fatos em curso, salvo quando presentes situações

201 In: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 129. 202 MONTEIRO, Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil. 35ª ed. São Paulo : Saraiva, 1997, vol. 1, p. 9-11. ). A classificação entre normas de ordem pública e normas de outra natureza não é, porém, imune de incertezas e objeções, considerando que na própria divisão entre direito público e privado há uma zona cinzenta nas fronteiras que os separam. Essa obscuridade não passou despercebida por Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 121-122), ao comentar a doutrina, da qual Simoncelli é partidário, que propugna a retroatividade das normas públicas e a irretroatividade das normas privadas: “É óbvio que essa doutrina encontraria infindáveis dificuldades de aplicação, uma vez que se baseia em conceitos fugidios e oscilantes. A própria distinção entre direito público e direito privado não pode ser, através dos séculos, fixada em categorias estanques, uma vez que até hoje persistem os debates em torno do assunto, havendo mesmo autores que negam a possibilidade de uma distinção nítida a respeito. Na realidade, cada vez mais se apagam e diluem os traços separadores do direito público e do direito privado, notadamente em face do fenômeno atualmente conhecido pela denominação de publicização do direito privado”. É a crescente intervenção estatal na ordem privada.

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protegidas constitucionalmente (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa

julgada).

A segunda adota a tese da inexistência de direito adquirido contra

leis de ordem pública. Expressam, nesse sentido, Eduardo Espínola e

Eduardo Espínola Filho (1943) que “se aos interesses privados é permitido

tirar proveito do estado, da coisa pública, como está regulado, não podem

tais interesses assumir, em tempo algum, a importância de direitos

adquiridos, ou reclamar a garantia que a lei confere a tais direitos”.203

Precisamos reconhecer, porém, a impropriedade do fundamento

que se baseia essa respeitável posição. A Constituição Federal, ao vedar a

infração ao direito adquirido, não distingue entre leis de ordem pública e leis

de outra natureza, de modo que não é dado ao intérprete fazê-lo. Admitir-se

tal possibilidade seria praticamente fazer letra morta do texto constitucional,

pois a maioria das leis que compõem um ordenamento jurídico é de ordem

pública. Sendo expresso o texto constitucional, não há espaço para outra

interpretação.

Em decisão proferida nos autos do RE 201.176-2-RS, sob a

relatoria do Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal acolheu a

tese de submissão das leis de ordem pública aos ditames inscritos no art. 5º,

XXXVI, da Lei Maior, nestes termos:

A possibilidade de intervenção do Estado no domínio

econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico

de respeitar os postulados que emergem do ordenamento

constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas

vezes configuram fundamentos políticos destinados a

justificar, pragmaticamente, ‘ex parte princips’, a inaceitável

203 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. 3ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 372.

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adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser

invocadas para viabilizar o descumprimento da própria

Constituição. As normas de ordem pública – que também se

sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta

Política (RTJ 143/724) – não podem frustrar a plena eficácia

da ordem constitucional, comprometendo-a em sua

integridade e desrespeitando-se a sua autoridade.204

Em outras oportunidades, o Supremo Tribunal Federal também se

manifestou no mesmo sentido, conforme se infere do voto proferido pelo

Ministro Costa Leite nos autos do Resp 38.518-0-SP, RT 715/277, verbis:

(...) nem mesmo lei de ordem pública pode prejudicar o

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. (...)

A Constituição, recorde-se, não proíbe que a lei tenha

efeitos retroativos, desde que não prejudique o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, que

restam assegurados sem que a norma constitucional abra

exceção às chamadas leis de ordem pública. Aliás, curioso é

observar que nenhuma lei é mais marcadamente de ordem

pública que a de natureza penal e, no entanto, a lei penal é

aquela tratada com maior rigor pela Constituição que impõe,

como regra, sua irretroatividade, ‘salvo para beneficiar o réu’

(art. 5º, XL).205

Esta, a nosso ver, é a melhor diretriz interpretativa do sistema

brasileiro, que insere em texto constitucional a proscrição à edição de leis

que desrespeitem os direitos adquiridos. Com isso, contudo, não se

pretende afirmar a impossibilidade de retroação da lei de ordem pública, a

qual, como qualquer outra lei, poderá ter cunho retrooperante, desde que

seja expressa, sejam observadas as situações já consolidadas no tempo

204 JSTF-Lex 223/249-250. 205 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. O código de defesa do consumidor e sua interpretação

jurisprudencial. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 319-321.

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com seus respectivos efeitos (direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa

julgada) e presente interesse social a justificá-la. A única diferença que pode

ser apontada é que, na prática, serão as leis de ordem pública que

normalmente terão eficácia retroativa, pois, em princípio, não se justifica a

adoção desse efeito às normas de cunho dispositivo.

8.4. O Caráter Relativo do Princípio do Respeito ao Direito Adquirido206

Além de não ser absoluto o princípio da irretroatividade das leis,

que não consta do nosso texto constitucional, também não o é do respeito

ao direito adquirido. Porém, a violação a este segundo princípio somente se

justifica em circunstâncias absolutamente excepcionais.

O art. 5º, XXXVI, da Lei Maior encontra-se inserido no Capítulo I

(Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), que, por sua vez, está

contido no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Trata-se,

assim, o princípio do respeito ao direito adquirido de direito fundamental do

homem.

Segundo José Afonso da Silva (1998), várias são as

denominações empregadas para designar esta categoria de direitos:

“direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais,

direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e

direitos fundamentais do homem”.207

Adota-se aqui a expressão direitos fundamentais do homem que,

no entender do sobredito autor, é a mais adequada, pois:

206 Sendo o ato jurídico perfeito e a coisa julgada fontes geradoras da aquisição de direitos e integrantes, pois, do conceito de direito adquirido (o que se verá adiante), neste tópico se mencionará apenas esta última expressão, inclusive para facilitar a compreensão da matéria. 207 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 179.

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112

(...) além de referir-se a princípios que resumem a

concepção do mundo e informam a ideologia política de

cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no

nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições

que ele concretiza em garantias de uma convivência digna,

livre e igual de todas as pessoas.208

Por sua vez, Alexandre de Moraes (1998) define direitos humanos

fundamentais como o:

(...) conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser

humano que tem por finalidade básica o respeito a sua

dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do

poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de

vida e o desenvolvimento da personalidade humana.209

É, pois, a dignidade da pessoa humana o valor máximo sobre o

qual se assentam todos os direitos fundamentais do homem. Nesse sentido,

enfatiza José Afonso da Silva (1998) que esse é:

(...) um valor supremo que atrai o conceito de todos os

direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.

‘Concebido como referência constitucional unificadora de

todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho

e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana

obriga a uma densificação valorativa, que tenha em conta o

seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma

qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-

se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos

pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos

pessoais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da

personalidade individual, ignorando-a quando se trate de 208 Ibidem., p. 182. 209 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Altas, 1998, p. 39.

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113

garantir bases da existência humana’. Daí decorre que a

ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos

existência digna (art. 170), a ordem social visará a

realização da justiça social (art. 193), a educação, o

desenvolvimento da pessoa e o seu preparo ao exercício da

cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados

formais, mas como indicadores do conteúdo normativo

eficaz da dignidade da pessoa humana.210

Fruto das aspirações da população mundial contra as malogradas

experiências das guerras mundiais e a existência de regimes totalitários, a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Assembléia

Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 e assinada pelo

Brasil na mesma data, reconhece a dignidade como inerente a todos os

membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e

da paz no mundo. Não por outra razão é considerada fundamento da

República Federativa do Brasil (Constituição Federal, art. 1º, III).211

Lícito sustentarmos, assim, a existência de um princípio superior,

a viga mestra da Constituição, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa

humana212, do qual o princípio do respeito ao direito adquirido é corolário.

Daí a manifesta constatação acerca do caráter relativo deste último, pois,

210 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 109. 211 “O eixo em torno do qual se desenvolve a história dos direitos humanos é a idéia de que os homens são essencialmente iguais, em sua comum dignidade de pessoas, isto é, como os únicos seres capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza”. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos humanos:

legislação e jurisprudência. v. 1. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000. (Direitos Humanos no Brasil: o passado e o futuro, p. 33-41). 212 José Joaquim Gomes Canotilho (1991, p. 367) é expresso nesse sentido: “Pela análise dos direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, deduz-se que a raiz antropológica se reconduz ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado”. Vicente Greco Filho (2003, p. 15-16) avança ao afirmar que “todas as consagrações constitucionais dos direitos individuais supõem a existência de alguns direitos básicos da pessoa humana, os quais pairam, inclusive, acima do Estado, porquanto este tem como um de seus fins principais a garantia desses direitos”, acrescendo, ainda, que “o valor da pessoa humana antecede o próprio direito positivo, condiciona-o e dá-lhe razão de existir”.

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114

caso conflite com o próprio princípio em que se baseia, jamais poderá ser

aplicado.213

De fato, a absoluta proscrição à violação a direitos adquiridos

pode conduzir a situações inaceitáveis, nas quais a própria dignidade

humana se verá ameaçada, impedindo o Estado-legislador de promover o

progresso moral e espiritual da humanidade, pois, afinal, sem proteção à

dignidade humana não há justiça.

Exemplo histórico de norma que, apesar de violar direito

adquirido, esteve consentânea com o princípio da dignidade da pessoa

humana foi a Lei Áurea (1888) que, ao abolir a escravidão, violou os direitos

adquiridos214 dos proprietários. Nesse caso, a ofensa a tais direitos se

demonstrou plenamente justificável em virtude da supremacia do princípio

da dignidade da pessoa humana.

Concluindo, uma lei ofensiva a direitos adquiridos será, em

princípio, inconstitucional, por malferir o teor do art. 5º, XXXVI, da Lei Maior,

salvo se interpretação contrária decorrer do valor dignidade da pessoa

humana.215

213 Acrescentemos que os direitos constitucionais não são ilimitados, encontrando seus limites nos demais direitos previstos na Constituição (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas), de sorte que, em caso de conflitos entre eles, deve o intérprete harmonizar os bens jurídicos em conflito, de modo a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros (princípio da concordância prática ou da harmonização). 214 Concordamos com Fernando Noronha (2005, p. 70) quando afirma que “tanto a Lei Áurea atingiu direitos adquiridos, que durante anos o movimento abolicionista havia sido entravado pela questão da indenização a que teriam direito os proprietários cujo Estado não tinha condições de satisfazer”. 215 Mais ou menos coincidente com a nossa é a posição de Fernando Noronha (2005, p. 78), ao dizer que “a regra do art. 5º, XXXVI, da Constituição há de ser aplicada sempre que não houver outros princípios constitucionais que devam prevalecer sobre os da segurança jurídica e da tutela da confiança (como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana)”.

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115

9. O CONCEITO DE DIREITO ADQUIRIDO, QUE

COMPREENDE O ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA

JULGADA

A vigente Lei de Introdução do Código Civil, Decreto-Lei nº 4.657,

de 4 de setembro de 1942, alterado pela Lei nº 3.238, de 1º de agosto de

1957, estabelece, respectivamente, as definições de ato jurídico perfeito,

direito adquirido e coisa julgada:

Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral,

respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a

coisa julgada.

§ 1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado

segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º - Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu

titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo

começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição

preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

§ 3º - Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão

judicial de que já não caiba recurso.

À luz deste conceito legal, extraímos a ilação que direito adquirido

é aquele em condições de exercício (“direitos que o seu titular, ou alguém,

por ele, possa exercer”), isto é, definitivamente incorporado ao patrimônio e

à personalidade de seu titular.

A limitação traçada por Gabba, que teria excluído da noção de

direito adquirido os direitos não apreciáveis economicamente, não vigora no

sistema brasileiro, para o qual requer-se apenas sejam passíveis de

exercício.

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116

O próprio Reynaldo Porchat (1909), notório defensor da teoria

subjetiva, já havia proposto acrescentar ao conceito de Gabba a seguinte

expressão: “ou constitui o adquirente na posse de um estado civil

definitivo”216, em clara referência aos aspectos não-materiais ínsitos na idéia

de direito adquirido.

Limongi França (1998) encampou tal crítica, propondo a extensão

da patrimonialidade aludida por Gabba, advertindo, ainda, acerca da

possibilidade de emanarem direitos diretamente da lei, através do seguinte

conceito que formula de direito adquirido: “É a conseqüência de uma lei, por

via direta ou por intermédio de um fato idôneo; conseqüência que, tendo

passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer

antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto”.217

A exigência, outrossim, de que seu titular (ou representante218)

encontre-se apto a exercê-lo delineia o limite entre o direito adquirido e a

expectativa de direito, ou seja, entre o direito incorporado ao

patrimônio/personalidade do sujeito e a simples esperança ou possibilidade

de sua aquisição, a depender da ocorrência de um evento futuro. No

primeiro, a incidência normativa da lei antiga se verifica plenamente219 pela

configuração de todo o suporte fático, o que não ocorre no segundo caso.

Por outro lado, se o direito adquirido é aquele em que o titular

pode exercê-lo, urge analisarmos a problemática referente aos direitos

sujeitos a termo ou a condição, que não podem ser exercidos enquanto não

implementados o termo e condição, respectivamente.

216 PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp., 1909, p. 15. 217 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 216. 218 Seria dispensável a referência da lei à figura do representante, que não se circunscreve ao direito intertemporal. 219 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 247.

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117

Discute-se, propriamente, a respeito do termo inicial (ou

suspensivo) e da condição suspensiva, pois o termo final e a condição

resolutiva não oferecem maiores dificuldades. A lei os considera adquiridos

(“como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição

preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”), donde advém a inevitável

indagação: como são adquiridos se ainda não lhes é facultado o respectivo

exercício?

Quanto ao termo, cláusula que subordina os efeitos do ato a um

acontecimento futuro e certo, o art. 131 do Código Civil soluciona o dilema

ao disciplinar que o termo inicial “suspende o exercício, mas não a aquisição

do direito”.

A propósito, Maria Helena Diniz (1998) esclarece que o “termo

inicial não suspende a aquisição do direito, que surge imediatamente, mas

só se torna exercitável com a superveniência do termo”220, que certamente

advirá. Assim, a despeito de sobrestado o exercício, o termo inicial não

obsta a que o direito se considere desde logo adquirido, já incorporado ao

patrimônio e à personalidade de seu titular. Incerteza doutrinária não há, à

luz dessas considerações, de se considerarem adquiridos os direitos

subordinados a termo.

Já no tocante à condição suspensiva, cláusula a protelar a

eficácia do ato a um acontecimento futuro e incerto, a dúvida acerca da

efetiva existência de direito adquirido poderia ser suscitada, pois o Código

Civil prevê que “subordinando-se a eficácia do ato à condição suspensiva,

enquanto esta não se verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa”

(art. 125), ou seja, perante o Diploma Civil, “pendente a condição suspensiva

220 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 138.

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118

não se terá adquirido o direito, mas expectativa de direito ou direito

eventual”.221

Nesse aspecto, demonstra-se evidente a contradição entre o

referido dispositivo e o art. 6º da Lei de Introdução, que considera adquirido

o direito condicional. O impasse resolve-se com a interpretação de que a Lei

de Introdução equiparou, somente para fins de direito intertemporal, a

condição suspensiva ao termo inicial, considerando adquirido o direito

dependente de condição inalterável ao arbítrio de outrem.222

Nas palavras de Clovis Bevilaqua (1956):

Acham-se no patrimônio os direitos que podem ser

exercidos, como, ainda, os dependentes de prazo ou de

condição preestabelecida, não alterável a arbítrio de outrem.

Trata-se aqui de termo e de condição suspensivos que

retardam o exercício do direito. Quanto ao prazo, é princípio

corrente que ele pressupõe a aquisição do direito e apenas

lhe demora o exercício. A condição suspensiva torna o

direito apenas esperado, mas ainda não realizado. Todavia,

com o seu advento, o direito se supõe ter existido, desde o

momento em que se deu o fato que o criou. Por isso, a lei o

protege, ainda nessa fase meramente possível, e é de

justiça que assim seja, porque embora dependente de um

acontecimento futuro e incerto, o direito condicional já é um

221 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. Op. cit., p. 135. 222 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 353-354.

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119

bem jurídico, tem valor econômico e social, constitui

elemento de patrimônio do titular.223

Portanto, uma vez assimilado serem adquiridos os direitos

exercitáveis, a termo ou condicionais, cumpre examinarmos os conceitos de

ato jurídico perfeito e coisa julgada.

O § 3º do art. 6º da Lei de Introdução reputa ato jurídico perfeito

“o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. O

legislador, bem se observa, confere especial relevância à formação do ato,

que se concebe perfeito desde que devidamente aperfeiçoado. Vejamos,

então, quais atos podem ser enquadrados nesta definição.

A doutrina civilista classifica os fatos jurídicos em sentido amplo

em fatos naturais (fatos jurídicos em sentido estrito, ordinários ou

extraordinários) e fatos humanos (atos jurídicos em sentido amplo); aqueles

decorrem da natureza e estes da atividade humana. Os fatos humanos ou

atos jurídicos em sentido amplo dividem-se em lícitos ou ilícitos; os primeiros

subdividem-se em ato jurídico em sentido estrito (ou meramente lícito),

negócio jurídico e ato-fato jurídico. Nos dois primeiros, exige-se uma

manifestação de vontade, com a diferença de que no ato jurídico em sentido

estrito o efeito da manifestação de vontade está predeterminado na lei (v.g.,

notificação que constitui em mora o devedor), ao passo que no negócio

jurídico (v.g., contrato de compra e venda) a vontade objetiva um fim

determinado, permitido em lei. Já no ato-fato jurídico a vontade é irrelevante,

223 BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1956, p. 76. O tema externa-se com as seguintes palavras de Mauro de Medeiros Keller (1989): “Com relação às condições, é inegável que o direito se adquire desde o ato em que se constitui o negócio. A partir daí, a parte contra quem o direito se adquire nada mais poderá fazer para impedir a sua eficácia. O implemento da condição representa, tão-somente, o termo inicial da eficácia daquilo que se pactuou . O art. 118 do CC deve ser interpretado como se declarasse que antes do implemento da condição o direito não se adquire completamente, com todos os elementos integrantes, i.e., faculdades, ações, prazos de duração, exceções, etc”. KELLER, Mauro de Medeiros. Pontes de Miranda e os fundamentos do princípio da irretroatividade das leis. Revista de Direito Civil, nº 50, 1989, p. 73.

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120

apenas se considerando o efeito do ato (v.g., o louco torna-se proprietário

pelo encontro do tesouro).224

De acordo com os ensinamentos de Pontes de Miranda (1971), na

categoria de ato jurídico perfeito se incluem o ato jurídico em sentido estrito

e o negócio jurídico, embora as demais categorias não se encontrem ao

desabrigo da lei. Expressa que ato jurídico perfeito é:

(...) negócio jurídico, ou ato jurídico strictu sensu; portanto,

assim as declarações unilaterais de vontade como os

negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos

com as reclamações, interpelações, a fixação de prazo para

a aceitação de doação, as cominações, a constituição de

domicílio, as notificações, o reconhecimento para

interromper a prescrição ou sua eficácia (atos jurídicos

strictu sensu). Os atos-fatos jurídicos têm, de regra

simultâneas, a existência e eficácia (especificação,

descobrimento de tesouro, composição de obra científica, ou

artística ou literária). Não são atos jurídicos, no sentido do

art. 153, § 3º, mas tais atos-fatos produzem direitos, ao

entrarem no mundo jurídico, e a 1ª parte do art. 153, § 3º,

protege-os contra a lei nova. Dá-se o mesmo, no seu tanto,

com os fatos-jurídicos strictu sensu.225

Claro está que o ato jurídico perfeito é apenas uma forma através

da qual originam-se direitos adquiridos, que não decorrem exclusivamente

daquele. Nesse aspecto, Limongi França (1998) aduz que os “fatos jurídicos

de que não participa a vontade humana, os quase-delitos, assim como a

224 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil – parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 98-102. 225 Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. 2ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1971, p. 102.

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121

própria lei, por via imediata, são outras causas eficientes do Direito

Adquirido”.226

Por outro lado, a coisa julgada é definida pela Lei de Introdução

como a “decisão judicial de que já não caiba recurso”. Espancando a

hesitação doutrinária havida em torno do tema, lecionam Rosa Maria de

Andrade Nery e Nelson Nery Junior (2006) que o dispositivo em foco não

protege a coisa julgada formal, ou seja, a inimpugnabilidade da sentença no

processo em que proferida e que se verifica nas hipóteses do art. 267 do

Código de Processo Civil, mas apenas a coisa julgada material, esta:

(...) entendida como a qualidade que torna imutável e

indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da

sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário e

extraordinário (CPC 467; LICC 6º, § 3º) nem à remessa

necessária do CPC 475 (STF 423; Barbosa Moreira, Temas

3º, 107). A coisa julgada formal (rectius: preclusão) não é

objeto da garantia constitucional sob comentário (v. Nery-

Nery, CPC Comentado, coment. CPC 467).227

Vale registrar, a respeito, que a ação rescisória não ofende o

preceito constitucional de inviolabilidade à coisa julgada. A Constituição veda

a superveniência de novo regramento legal que retroaja e altere, de algum

modo, o comando constante do dispositivo da sentença de mérito, mas não

226 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 221. 227 ANDRADE NERY, Rosa Maria de; NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal comentada e

legislação constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 133. A definitividade é, aliás, apontada pela doutrina como uma das características da jurisdição, ou seja, somente os atos jurisdicionais são suscetíveis de se tornar imutáveis, não podendo ser revistos ou modificados. Coisa julgada é imutabilidade dos efeitos da sentença, em virtude da qual nem as partes podem propor novamente a mesma demanda em juízo, nem o Judiciário pode voltar a decidir a respeito, nem o próprio legislador pode emitir preceitos que contrariem o que já ficou definitivamente julgado. No Estado de Direito só os atos jurisdicionais podem chegar a esse ponto de imutabilidade, não sucedendo o mesmo com os administrativos e legislativos.

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obsta a propositura de ação impugnativa destinada a desconstituir a

sentença eivada dos vícios aludidos no art. 485 do Código de Processo Civil.

A coisa julgada material, à maneira do ato jurídico perfeito, é

modo de geração de direitos adquiridos. Poder-se-ia objetar quanto às

sentenças declaratórias negativas ou mesmo de improcedência,

argumentando-se que estas não promovem a aquisição de direitos, de forma

que seria justificável a opção legislativa de se proteger expressamente o

referido instituto ao lado do direito adquirido.

Não devemos esquecer, todavia, que a proteção à retroatividade

é dispensada à coisa julgada e não à sentença propriamente dita, que com

aquela não se confunde. De fato, o que se resguarda é a qualidade que

torna imutável a sentença de mérito, independentemente de sua natureza

(declaratória, constitutiva ou condenatória) ou, ainda, do não-acolhimento da

pretensão. Como assinala Limongi França (1998):

(...) a res judicata já está protegida pelo respeito ao Direito

Adquirido, não porque este seja um efeito dela, mas por

força de um fundamento muito mais forte, qual seja o de

que, uma vez que se não atingem as conseqüências dos

fatos passados, com maior razão cumpre deixar intactas as

relações jurídicas já estabelecidas de maneira definitiva.228

Desse modo, lícito afirmarmos que a coisa julgada – e não da

sentença, repita-se – é causa geradora de direito adquirido, isto é, do direito

à sua manutenção e respeito.

Ora, se tanto o ato jurídico perfeito quanto a coisa julgada estão

contidos na noção de direito adquirido, prescindível seria a menção expressa

228 Ibidem, p. 223.

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pelo legislador a respeito desses institutos, conclusão esta, de resto, seguida

pela expressiva maioria dos doutrinadores brasileiros.

Assim já afirmava João Luís Alves apud Limongi França (1998)

que na “noção de direito adquirido se compreende a irretroatividade, em

relação ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, pois, aquele e esta, têm por

objeto direitos, cuja aquisição se verifica pela perfeição do ato jurídico

perfeito e da coisa julgada”.229

André Franco Montoro (1994) não discrepa, nos dizendo que:

“Como se vê, o ‘ato jurídico perfeito’ e a ‘coisa julgada’ são, a rigor, dois

casos especiais de direitos adquiridos; e, por isso, são geralmente

estudados pela doutrina sob essa última denominação”.230

Registremos, ainda, as posições de Wilson de Souza Campos

Batalha (1980), para quem o “ato jurídico perfeito (...) é um dos possíveis

elementos criadores de direitos adquiridos” e que a “referência à coisa

julgada (...) é totalmente desnecessária”231, e de outros tantos

doutrinadores.232

229 Ibidem., p. 219. 230 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 396. 231 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 195 e 197. 232 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código

Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 332. DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 187 e 198. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 288. Poderíamos avançar um pouco mais, como o faz Limongi França (1998, p. 222), para afirmar que a coisa julgada está inserida não só na idéia de direito adquirido, mas na própria noção de ato jurídico perfeito, um ato de natureza jurisdicional. A perfeição desse ato seria adquirida, insistamos, não pela prolação da sentença – que, obviamente, é passível recurso, donde não se pode cogitar de ato perfeito -, mas quando surgida a qualidade que a torna imutável e insusceptível de ulterior alteração legislativa e jurisdicional, salvo é claro, neste último caso, através da ação rescisória. De outro turno, a noção de que o ato jurídico perfeito insere-se na concepção de direito adquirido reforça o entendimento de que os efeitos do ato jurídico perfeito são invioláveis pela lei nova.

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PARTE II

DIREITO INTERTEMPORAL PROCESSUAL CIVIL

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10. POSIÇÃO E OBJETO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

10.1. Posição do Direito Processual Civil

O direito processual é ramo do direito público233, porque alude à

função jurisdicional do Estado, que é uma atividade tipicamente pública e

exercida por funcionários estatais.

Os órgãos do Poder Judiciário que decidem os conflitos são os

juízes e tribunais, chamados de órgãos principais. No desempenho da

função jurisdicional, tais órgãos recebem a colaboração de órgãos

secundários, denominados de auxiliares da justiça (escrivão, oficiais de

justiça, distribuidor, partidor, contador, peritos, intérprete etc.) que agem, não

em nome próprio, mas como órgãos do Estado.

A jurisdição, objeto de regulamentação pelo direito processual, é a

função soberana do Estado consistente em administrar a justiça. Através

desta o Estado se substitui234 à atividade das partes para, imparcialmente,

buscar a pacificação do conflito que as envolve, mediante a atuação da

vontade do direito objetivo, desempenhando tal função sempre através do

processo.235

233 “Dúvida alguma pode levantar-se no sentido de que o processo é um instrumento público e que o Direito Processual Civil – apesar de respeito devido às partes e ao princípio dispositivo – está inserido nos quadros do Direito Público”. ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 89. 234 Exercendo a jurisdição, o Estado substitui, com uma atividade sua, as atividades daqueles que estão envolvidos no conflito trazido à apreciação. Nenhuma das partes pode dizer definitivamente se a razão está com ela própria ou com a outra; nem pode, salvo em casos excepcionais, quem tem uma pretensão, invadir a esfera jurídica alheia para satisfazer-se. A única atividade permitida pela lei quando surge o conflito é a do Estado que substitui a das partes. 235 A finalidade pacificadora da jurisdição a distingue das demais funções do Estado (legislação e administração). A doutrina aponta três escopos do processo, por meio do qual é exercida a jurisdição: escopo social (pacificação social e educação dos jurisdicionados); escopo político (preservação da liberdade, do ordenamento jurídico e participação dos cidadãos nos destinos da nação); e escopo jurídico (atuação da vontade concreta do direito). Outras diferenças existem entre as funções do Estado. Enquanto a função legislativa preceitua normas gerais de conduta (generalidade), as funções administrativa e jurisdicional têm por objeto aplicação do direito no caso concreto (concretude), mas a

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Os interesses são tutelados pelas regras do direito material

(direito civil, comercial, administrativo etc.), que regulam direitos e

obrigações de uns para com os outros, quer sejam pessoas físicas ou

jurídicas, de direito privado ou público.236

A jurisdição237 consiste exatamente em fazer atuar a lei material

que regula os conflitos intersubjetivos, o que é feito por meio do processo,

ou seja, o direito processual compreende as atividades a serem

desenvolvidas pelo Estado-juiz e pelas partes, a fim de que se faça atuar o

direito material ao caso concreto.

Direito processual é, assim, o complexo de normas que regem o

exercício da jurisdição pelo Estado-juiz, da ação pelo demandante e da

função administrativa é primária (espontânea), enquanto função jurisdicional é secundária (inerte, provocada – caráter substitutivo da jurisdição). A jurisdição é tida como “longa manus” da legislação, porque assegura a prevalência do direito objetivo no país. Por outro lado, na relação entre poderes Executivo e Judiciário, há dois sistemas: (a) francês ou do contencioso administrativo, caracterizado pela separação absoluta dos poderes, onde o Poder Judiciário não julga questões em que Estado é parte; o próprio Poder Executivo julga tais questões através de órgãos chamados de contenciosos administrativos, com força de definitividade; (b) anglo-saxão ou da jurisdição única, em que o Poder Judiciário pode examinar legalidade dos atos administrativos (adotado pelo Brasil). 236 Àqueles a quem se dirigem as regras do direito objetivo estão interligados por uma relação jurídica (nexo que une dois ou mais sujeitos, com atribuição de deveres e obrigações) Ex. credor e devedor, cônjuges etc. Se o fato se enquadrar na norma (subsunção), a regra abstrata gera uma regra concreta (criando-se direitos e obrigações entre os sujeitos da relação jurídica). 237 Além da definitividade, do cunho substitutivo e do escopo da atuação do direito, a doutrina ressalta outras características da jurisdição: lide e inércia. A existência de uma lide (ou crise de direito material, como vem se pronunciando parte da doutrina) é característica, pois é a existência do conflito de interesses que está a exigir a intervenção do Judiciário, que substitui a atividade dos sujeitos em conflito. Outra característica da jurisdição decorre do fato de que os órgãos jurisdicionais são inertes (provocados). O exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo contraproducente, pois a finalidade que informa toda a atividade jurídica do Estado é a pacificação social e isso viria a gerar conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam. Além disso, a experiência mostra que, quando o próprio juiz toma a iniciativa do processo, ele se liga psicologicamente à idéia que dificilmente teria condições para julgar imparcialmente. Por isso, fica geralmente a critério do próprio interessado a provocação do Estado-juiz ao exercício da função jurisdicional. Assim, é sempre uma insatisfação que motiva a instauração do processo. O titular de uma pretensão vem a juízo pedir a prolação de um provimento que, eliminando a resistência, satisfaça a sua pretensão e com isso elimine o estado de insatisfação; e com isso vence a inércia a que estão obrigados os órgãos jurisdicionais. CPC, art. 2º. Art. 2 - Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais. Em casos raros e específicos, a lei institui certas exceções à regra da inércia dos órgãos jurisdicionais. Ex. abertura de inventário. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 134-136.

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defesa pelo demandado. O direito material, por sua vez, consiste no

conjunto de normas que disciplinam as relações do homem com os bens da

vida, bens estes que podem ser materiais (móveis e imóveis) e imateriais

(v.g., honra, liberdade etc).238

Afirma-se, então, que o direito processual é um instrumento a

serviço do direito material: todos os seus institutos principais (jurisdição,

ação, defesa e processo) são concebidos pela necessidade de se preservar

a autoridade do direito material. O processo, regulado pelo direito

processual, não encerra, portanto, um fim em si mesmo, tratando-se de um

direito-meio, no sentido de que é por seu intermédio que se consegue o

almejado bem da vida. É um meio para se perseguir um fim239, donde advém

a concepção de instrumentalidade.240

Portanto, malgrado nem sempre clara a linha divisória, de um lado

está o direito substancial a regular as situações da vida fazendo-se atuar

através do processo nas situações de crise e, de outro, o direito processual,

entendido como o conjunto de normas e princípios que disciplinam o

processo. Como esclarece Enrico Tullio Liebman (1984), a ordem jurídica:

(...) constitui-se de dois sistemas de normas, distintos e

coordenados, que se integram e se completam

reciprocamente: o das relações jurídicas substanciais,

representadas pelos direitos e pelas correspondentes

obrigações, segundo as várias situações em que as pessoas

venham a se encontrar, e o do processo, que fornece os

238 Segundo Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 36), além dos bens corpóreos e incorpóreos, as pessoas também podem ser objeto de uma relação jurídica, p. ex., quando se trata de sobre elas exercer o poder familiar ou a guarda. 239 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 104. 240 Em outras palavras, “o direito processual simplesmente carece de função sem o direito substancial, enquanto esse, determinante das bases primárias da convivência, se faz valer e se justifica, em condições normais, independentemente do processo, somente dele necessitando se valer nas situações de crise”. PESSOA, Fábio Guidi Tabosa. Elementos para uma teoria do direito intertemporal no

processo civil. São Paulo: USP, 2004, p. 155. (Tese de Doutorado).

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meios jurídicos para tutelar os direitos e atuar o seu

sistema”.241

Dessa distinção resulta a autonomia do direito processual, que,

portanto, é ramo autônomo da ciência do direito.

A propósito, formaram-se duas teorias sobre o ordenamento

jurídico. A teoria dualista entende que ordenamento jurídico cinde-se em

direito material e direito processual, cabendo ao primeiro ditar as regras

abstratas a fim de torná-las, automaticamente, regras concretas quando o

fato se enquadrar naquelas normas abstratas, independentemente do

processo e do juiz, isto é, o processo não contribui para a formação das

regras concretas, não criando direitos e obrigações. Harmoniza-se com a

visão de Chiovenda no sentido de que o escopo do processo consiste na

atuação da vontade concreta do direito.

Já a teoria unitária propugna a inexistência de nítida cisão entre

direito material e direito processual. O processo participa da criação de

direitos e obrigações, os quais só nascem com a sentença. Ajusta-se com a

noção carneluttiana de jurisdição como a justa composição da lide.

A primeira é teoria aceita atualmente, pois, como ressalta Cândido

Rangel Dinamarco (2004), os defensores da teoria unitária jamais

conseguiram demonstrar:

(...) o acerto da premissa fundamental da tese proposta, que

seria a suposta inaptidão do sistema jurídico-substancial a

gerar concretos direitos, obrigações e relações jurídicas. A

realidade da vida mostra que direitos e obrigações nascem,

desenvolvem-se, modificam-se e extinguem-se, na grande

241 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. v. 1. Tradução Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 148.

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maioria, sem qualquer interferência judicial e sem a

intercessão de qualquer outro meio de pacificação ou

composição.242

Em razão dessa autonomia, refuta a doutrina o ultrapassado

qualificativo de direito adjetivo ao direito processual, que não estabelece

relação de dependência para com o direito substancial, muito embora seja

seu instrumento243, repudiando a ciência processual igualmente a idéia de

processo como contrato ou quase contrato.

Deve-se a Oskar von Bülow, em seu livro A teoria das exceções

dilatórias e os pressupostos processuais, publicada na Alemanha em 1868,

o início da sistematização doutrinária que distinguiu o direito material

controvertido e o processo, revelando que entre as partes e o juiz havia uma

relação jurídica, de direito público, diversa da relação substancial discutida.

A teoria da relação jurídica processual foi contestada pela teoria do processo

como situação jurídica, de James Goldschmidt (2004), que vê no direito

meras chances. Em suas palavras:

Os nexos jurídicos dos indivíduos que se constituem

correlativamente são expectativas de uma sentença

favorável ou perspectivas de uma sentença desfavorável (...)

a incerteza é consubstancial às relações processuais, posto

que a sentença judicial nunca se pode prever com

segurança.244

242

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 133. 243 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. 1, p. 6. 244 Ibidem, p. 44-50.

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Esta última teoria é rejeitada pela maioria dos processualistas,

informa Vicente Greco Filho (2003)245, porque não explica o processo

propriamente dito, mas os efeitos por ele provocados na relação de direito

material, na qual, sim, pesa o estado de incerteza.

Recentemente, surgiu na Itália o pensamento de Elio Fazzalari

apud Cintra, Grinover e Dinamarco (2004)246 repudiando a inserção da

relação jurídica processual no conceito de processo, afirmando que o

processo é representado pelo procedimento em contraditório. Em verdade,

com aduzem os referidos autores, a presença da relação jurídica processual

é projeção do contraditório, inexistindo qualquer incompatibilidade entre

essas duas facetas da mesma realidade, daí porque é “lícito dizer, pois, que

o processo é o procedimento realizado mediante o desenvolvimento da

relação entre os sujeitos, presente o contraditório”.247

Por outro lado, a natureza de direito público do direito processual,

no bojo do qual sempre se desenvolverá a atividade pública relativa ao

exercício jurisdição, não implica dizer que suas normas sejam

necessariamente cogentes ou de ordem pública.248 Cogentes, assinala

Cândido Rangel Dinamarco (2004):

(...) são todas as normas (processuais ou substanciais)

referentes a relações que transcendam a esfera de

interesses dos sujeitos privados, disciplinando relações que

os envolvam mas fazendo-o com atenção ao interesse da

sociedade como um todo, ou ao interesse público. Existem

245 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1, p. 36. 246 In: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 285. 247 Ibidem, p. 285. 248 Corretamente tomam como sinônimas as expressões “cogentes” e “de ordem públicas” Arruda Alvim (1996, p. 103) e Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 69).

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normas processuais de ordem pública e outras, também

processuais, que não o são.249

De fato, as normas processuais podem ser cogentes (de ordem

pública) ou dispositivas. Aquelas são de observância obrigatória, não

podendo as partes convencionar de modo diverso, como o prazo de recurso.

Estas são obrigatórias apenas se as partes não convencionarem de modo

diverso, ou seja, são derrogáveis pela vontade das partes. Por exemplo, o

Código permite a eleição de foro pelas partes, afastando aplicação das

regras que versam sobre a competência relativa (Código de Processo Civil,

art. 111)250, bem como a convenção a respeito da distribuição do ônus da

prova, desde que não recaia sobre direito indisponível ou torne

excessivamente dificultoso o exercício do direito da parte (art. 333, parágrafo

único). Citemos, ainda, a norma que permite a suspensão do processo por

acordo das partes (art. 265, II), assim também a que se refere ao adiamento,

por uma única vez, da audiência de instrução e julgamento (art. 453, I), a

afastar a regra do art. 262 que trata do impulso oficial.

A diferença está no grau de imperatividade, sendo cogentes as

normas com imperatividade absoluta, sem qualquer margem de liberdade

para as partes disporem de modo diverso, enquanto dispositivas as de

imperatividade relativa, cujos preceitos são passíveis de modificação pelos

litigantes.

10.2. Objeto do Direito Processual Civil

249 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 69. 250 A reforma operada pela Lei 11.280, de 16.02.2006, através do parágrafo único do art. 112 (“A nulidade de cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo competente”) não criou nova hipótese de incompetência absoluta; a incompetência continua a ser relativa, prorrogando-se caso o juiz não decline de ofício antes da resposta do réu ou este não oponha exceção declinatória, conforme art. 114. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves

comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 17-22. SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 179).

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Verificado que a norma processual, quer a cogente quer a

dispositiva, representa expressão do exercício da função jurisdicional,

pertencendo aos quadros do direito público, impende apreender a amplitude

da matéria regulada por essas normas.

Humberto Theodoro Júnior (1998) especifica como objeto das leis

processuais: (a) regras de organização estática da jurisdição, como a

distribuição de atribuições entre os componentes dos órgãos judiciários,

horário de funcionamento dos serviços forenses251, competência de juízes

etc.; (b) regras sobre a forma e a dinâmica do exercício da ação em juízo

(procedimento); e (c) normas e princípios gerais ou específicos da função

jurisdicional e do exercício do direito de ação, como as condições e

pressupostos processuais, a definição dos ônus e faculdades das partes no

processo, meios e ônus de prova permitidos, meios de harmonizar o direito

processual com outras normas jurídicas estranhas ao Código, e de

solucionar conflitos intertemporais de normas.252

Moacyr Amaral Santos (2004), a seu turno, desdobra as leis

processuais em: (a) leis que regulam a formação dos órgãos jurisdicionais

(leis de organização judiciária); (b) leis que tratam da capacidade das partes

quanto à realização de atos processuais; e (c) leis caracteristicamente

processuais: as que regem as formas de atuação da lei, os direitos e

deveres dos órgãos jurisdicionais e das partes no processo, a forma e os

efeitos dos atos processuais; são as leis que disciplinam os atos

251 Concordamos com Fabio Guidi Tabosa Pessoa (2004, p. 106) no sentido de que o horário de funcionamento dos serviços forenses é puramente de natureza exclusivamente administrativa, não podendo ser qualificada de processual a lei a discipliná-lo. Diferentes são as leis que tratam do tempo e horário dos atos processuais, estas sim de cunho processual. 252 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. 1, p. 21.

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processuais, a relação jurídica que se estabelece no processo e bem assim

o procedimento, que é a exteriorização respectiva.253

Arruda Alvim (1996), por derradeiro, classifica as normas

processuais em: (a) normas processuais stricto sensu, relacionadas ao

processo em si, regulando o processo contencioso, as atividades das partes,

o reflexo dessas atividades nas próprias partes e eventualmente sobre

terceiros, o órgão jurisdicional e sua atividade, bem como a atividade dos

auxiliares da justiça; (b) normas processuais estritamente procedimentais,

reguladoras da forma do procedimento, também aplicáveis à jurisdição

voluntária; e (c) normas processuais lato sensu, disciplinadoras da

organização judiciária de cada um dos Estados.254

No tocante às normas de organização judiciária, precisamos ter

cautela, pois algumas normas versam assuntos relativos à administração do

Poder Judiciário, não podendo, pois, receber o qualificativo de

processuais255; são, ao reverso, consideradas de direito processual as

normas editadas pela Assembléia Legislativa que disciplinem a competência

dos órgãos jurisdicionais e as regras sobre ação direta de

inconstitucionalidade estadual.256

Compreende-se, portanto, no objeto das leis processuais, as

normas reguladoras do processo como tal, ou seja, tudo quanto diga

respeito à relação jurídica processual e ao procedimento, e as normas

253 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, vol. 1, p. 25. 254 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, vol.1, p. 105-117. 255 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 68. 256 ANDRADE NERY, Rosa Maria de; NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal comentada e

legislação constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 199.

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disciplinadoras da organização judiciária no que versam sobre matérias de

direito processual. 257

Extraímos da lição dos processualistas, ainda, que não só as

normas de caráter substancial traçam regras de comportamento ou de

conduta, ou seja, as leis processuais não dispõem apenas sobre a técnica

do processo, estabelecendo também direitos e deveres dos sujeitos

evolvidos no processo. São processuais, assim, as leis reguladoras dos

direitos e deveres dos órgãos jurisdicionais e das partes no processo, quais

os preceitos éticos de lealdade, boa-fé, urbanidade e veracidade.258

257 Porém, para fins de competência legislativa, a Constituição Federal distingue normas processuais de normas procedimentais, ao preceituar a competência exclusiva da União para editar normas de direito processual (art. 22, I) e competência concorrente da União e Estados para legislarem sobre procedimentos em matéria processual (24, XI). Essa distinção operada pelo texto constitucional aparta-se do moderno conceito de processo, do qual fazem parte procedimento e relação jurídica processual. Não obstante, partindo-se do pressuposto de que inexistem palavras inúteis na Magna Carta, deve-se considerar que, “na ordem jurídica brasileira, podem existir normas puramente procedimentais ao lado de normas processuais stricto sensu”, enfatiza Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 67). Esclarecendo, então, as normas procedimentais que poderiam ser editadas pelos Poderes Legislativos Estaduais, esclarece Arruda Alvim (1996, p. 119): “Para se identificar, com alguma nitidez, o traço divisório entre as normas procedimentais e processuais é necessário que se levem em conta, fundamentalmente, dois parâmetros: (1º) a estreita conexão que têm certas regras de processo com o direito material v.g., regras atinentes à legitimidade, à capacidade, às provas, o que por si só, afasta a possibilidade de os Estados-federados legislarem acerca dessas matérias, que consistem, pois, em normas processuais e não procedimentais. (2º) o princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, pelo que as normas procedimentais não podem gerar direitos diferentes, v.g., no Acre e em Santa Catarina. A nosso ver, de acordo com estas balizas, normas procedimentais não gerais seriam as que estabelecessem novas formas de citação ou de intimação, normas respeitantes a cartas precatórias, a cartas de ordem, etc”. Por outro lado, os Regimentos Internos dos Tribunais são normas administrativas que disciplinam o funcionamento interna corporis dos órgãos do Tribunal respectivo, de forma que não podem dispor sobre direito processual estrito. É o que ensinam Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior (2006, p. 199). As normas regimentais não são consideradas leis processuais em sentido estrito, porque editadas sem a interferência do Poder Legislativo, embora não se descarte a possibilidade de eventual conflito intertemporal entre antigas e novas disposições regimentais. Leis, define Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 73), “são os textos normativos elaborados segundo as competências e o processo legislativo definidos na Constituição e nas leis pertinentes, sempre com a participação do Poder Legislativo”. 258 Conveniente observarmos que o caráter processual de uma norma não se extrai pelo fato de serem aplicadas pelo magistrado, posto que ele também faz atuar o direito material, inclusive de modo superveniente (cf. art. 462 do CPC, com as limitações constantes da Constituição e da Lei de Introdução); resulta, em verdade, da idéia de cuidar do processo em si, da “vida do processo”, como diz Cândido Rangel Dinarmaco (2004, p. 65-66 e 68), acrescentando que o “objeto da norma processual abrange as situações de todos esses três sujeitos [juiz, autor e réu] e de suas condutas coordenadas ao objetivo final de pacificação. Nisso as normas processuais diferem as de direito material, as quais regem diretamente a atribuição de bens e determinação de condutas das pessoas em suas relações na vida em comum”.

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Precisamos ter em mente, nesse aspecto, que uma conduta da

parte praticada em desobediência a um dever processual caracteriza-se

como conduta processual (e não de direito material), tais como as ações

exercidas pelas partes em transgressão ao dever de lealdade e boa-fé. O

ato da parte (Código de Processo Civil, art. 158) que, por exemplo, altera a

verdade dos fatos (art. 17, II) é ato processual; também o é o ato do

executado que intimado, não indica ao juiz, em cinco dias, quais são e onde

se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores (art.

600, IV, com a redação dada pela Lei nº 11.382, de 06.12.2006).

Ora, resulta, então, que se o dever é processual e a subseqüente

conduta é igualmente instrumental, segue a mesma natureza as normas no

bojo das quais se estabelecem medidas de coerção e punição,

eventualmente impostas pelo magistrado. Importa apreendermos que o

direito intertemporal processual não se reserva somente aos atos do juiz,

mas igualmente aos atos das partes. E a respeito destas normas

(processuais) de caráter penitencial, vigora o princípio da irretroatividade das

sanções processuais agravadas ou inovadas, as quais não incidem sobre

atos (processuais) anteriormente praticados.259

259 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 59. Observamos, inclusive, que o autor na página mencionada, ao comentar os arts. 16 e s. do Código de 1973, denomina o tópico de “Sanções Processuais”, de modo a evidenciar a natureza formal por nós afirmada. Outrossim, sobre a impossibilidade de cominação à parte da multa prevista no parágrafo único do art. 14 do Código de Processo aos atos (processuais) praticados antes da lei que a instituíra (Lei nº 10.358, de 27.12.2001), discorre Cândido Rangel Dinamarco (2002) na obra intitulada A reforma da reforma, p. 71-72. Já a multa diária a que alude o § 4º do art. 461, imposta para forçar o réu a cumprir obrigação de fazer ou não fazer, é aplicável aos deveres constituídos ou violados antes da instauração do processo (Eduardo Talamini 2001, em Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer, p. 36-41), porque esses atos constituídos ou violados são atos materiais (e não instrumentais), ao passo que a multa diária é de cunho processual, de modo que há não vinculação entre eles quanto ao direito intertemporal. Por sua vez, a despeito de respeitáveis entendimentos em contrário, entendemos que a multa prevista no art. 475-J somente é exigível depois de transcorrido o prazo de quinze dias para seu pagamento, contados da intimação do devedor na pessoa de seu advogado; cremos, também, e aqui discordando de abalizados trabalhos doutrinários, que esta intimação não se perfaz com o despacho “cumpra-se” ou outro similar, mas com despacho específico para esse fim, proferido após o credor requerer o cumprimento de sentença apresentando memorial do cálculo atualizado; esta nos afigura a posição mais segura, pois o devedor terá conhecimento do valor exato a ser pago, além de decorrer da própria exegese legal (art. 475-B) a exigir o requerimento do credor para o início do cumprimento de sentença “na forma do art. 475-J”, que trata justamente da multa. Nesse sentido, o recente julgado oriundo do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

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Por fim, devemos ressaltar a importância do exame desse

conteúdo, em vista do qual a lei qualificar-se-á como processual

independentemente de encontrar-se inserida neste ou naquele Código260 ou

Agravo de Instrumento nº 1.081.610-00/1, rel. Des. Neves Amorim, j. 12/12/06. Acresce, ainda, que a cominação da multa de ofício, com o conseqüente aumento do valor do débito, pode, inclusive, inibir eventual composição amigável entre as partes, que não raro firmam acordos extrajudiciais somente a após prolação de sentença e o respectivo do trânsito em julgado; o credor é, pois, quem deverá dizer se prefere a intervenção judicial (intimando-se o devedor para pagamento da dívida sob pena de multa) ou não, para o recebimento de seu crédito. Quanto à questão de direito intertemporal relativa à aludida multa, partindo-se do pressuposto da necessária antecedência de requerimento do credor, ela será passível de ser imposta desde que esse requerimento tenha ocorrido sob a égide da nova lei ou, a contrario sensu, a ação de execução iniciada antes a vigência da Lei nº 11.232, de 22.12.2005, deve seguir o texto primitivo (Humberto Theodoro Júnior, 2006, p. 124-125). Isso porque, é princípio pacífico de direito intertemporal de que prossegue a ação iniciada antes da lei que a aboliu (Carlos Maximiliano, 1955, p. 30), pois é direito adquirido do demandante ao processamento da ação já proposta. Nada obsta, porém, se ainda não houve citação do devedor para em 24 horas pagar o débito ou nomear bens à penhora, que o credor desista da ação de execução iniciada segundo os ditames da lei antiga e, simultaneamente, requeira o cumprimento de sentença nos termos da lei nova. É uma sistemática que não viola qualquer princípio de direito intertemporal e permite a aplicação do moderno texto legal. Mais ou menos no mesmo sentido discorre Paulo Afonso de Souza Sant’Anna (2006, p. 178): “(...) se a execução foi proposta na vigência do sistema revogado, mas ainda não houve citação do devedor, poderá o credor requerer o recolhimento do mandado (citação por meio de oficial de justiça) ou a não expedição da carta registrada (citação pelo correio), bem como o desentranhamento da petição inicial. Deverá, ainda, requerer a intimação do devedor para que cumpra a sentença na forma do novo sistema”. Porém, se já efetuada a citação do executado sob o velho regime, nem por isso serão cabíveis os embargos do devedor, salvo se o executado fora intimado da penhora na vigência da lei antiga. Caso intimado da penhora sob império da Lei nº 11.232, de 22.12.2005, deverá oferecer impugnação (art. 475-L); se, na hipótese, o devedor opôs embargos, deverá o juiz receber como impugnação. 260 Não nos parece acertado o entendimento de Fábio Guidi Tabosa Pessoa (2004, p. 143) ao vislumbrar flagrante cunho processual nos arts. 231 e 232 do Código Civil. Os dispositivos em questão estabelecem a presunção ficta de paternidade àquele que se recusa a submeter-se ao exame pericial destinado a esse fim (Ricardo Fiúza, 2003, Novo Código Civil comentado, p. 223-224), sendo certo que presunção legal é assunto reservado ao direito substancial, pois se encontra diretamente relacionada com a admissibilidade e o valor de determinada prova (vasta doutrina é apontada por Wilson de Souza Campos Batalha, 1980, em Direito intertemporal, p. 562-568); desimportante o fato de a recusa ocorrer durante o curso do processo para a correta qualificação da norma. A isso se acrescem as palavras de Chiovenda (1969, p. 94): “De igual natureza são as normas que encerram praesumtiones iuris: conquanto relativas ao ônus da prova (art. 1.352, Código Civil), não têm natureza processual, pois que não tendem a manter a igualdade das partes com repartir entre elas, de modo geral, o ônus da prova segundo o princípio da normalidade, da maior facilidade da prova (...); senão que – embora inspiradas, quase sempre, no que acontece comumente – estabelecem que fatos devem, em determinadas relações jurídicas, tratar-se como constitutivos, ou impeditivos, ou extintivos do direito, com o fim, não tanto de conformar à verdade a convicção do juiz, quanto de facilitar certas condições jurídicas (de filho, de proprietário, de possuidor, de credor...). Pertencem, por conseguinte, ao direito substancial”.

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137

em certa legislação extravagante261, anotando-se, outrossim, que nem todas

as normas constantes do Código de Processo Civil são processuais.262

261 Do que são exemplos o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Falências, no bojo dos quais existem disposições de natureza material e processual. 262 É o caso da responsabilidade patrimonial (art. 591), matéria puramente substancial, conclusão igualmente válida para os casos de impenhorabilidade de bens (art. 649).

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138

11. SÍNTESE HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO NO

INTERTEMPORAL PROCESSUAL

O primeiro diploma genuinamente brasileiro a tratar de processo

foi o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, que, por força do

disposto no seu art. 27, se aplicava unicamente às causas comerciais. O art.

742 previa, in verbis:

As causas comerciais intentadas depois da execução do

Código, mas provenientes de títulos ou contratos anteriores

à execução do mesmo Código, serão regulados, quanto à

forma de processo pelas disposições deste Regulamento; e

quanto à matéria, serão decididas pela legislação que

anteriormente regia.

Tal disposição já denotava o perfeito conhecimento do legislador

acerca da diversidade, no tempo, de aplicação do princípio tempus regit

actum no direito material e no direito processual.

Às causas civis se aplicavam, ainda, as Ordenações Filipinas, o

que ocorreu até 16 de setembro de 1890, quando sobreveio o Decreto nº

763, que prescreveu a incidência do Regulamento nº 737 às causas cíveis

em geral, com algumas exceções.

Com o advento da Constituição de 1891 e a atribuição aos

Estados de competência legislativa em matéria processual, códigos

estaduais foram editados a partir de então.

Assim é que os Códigos de Processo de Minas Gerais e

Pernambuco previram nos arts. 1º das disposições transitórias e 1.503,

respectivamente, a sua aplicação às causas pendentes, sem prejuízo dos

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atos consumados, regendo-se, todavia, os recursos pela lei em vigor ao

tempo da prolação da sentença recorrida.263

De se destacar, ainda, o Código de Processo Civil do então

Distrito Federal, ao tratar detidamente da problemática do direito transitório

nos arts. 1.196 a 1.199. Preceituou referido diploma a imediata aplicação

aos feitos em curso, respeitando-se os atos já praticados sob a égide da lei

anterior. Quanto aos recursos, dispôs:

Depois de entrar em vigor o Código, não serão permitidos

outros recursos senão os que ele admite, e por ele se

deverão regular a sua interposição, forma do processo e

julgamento, sem prejuízo dos que tenham sido interpostos e

dos respectivos termos já processados de acordo com a lei

anterior.264

A partir de 1934, com a promulgação de nova Constituição, que

novamente centralizou a competência para legislar sobre direito processual

na União, tornou-se necessária a preparação de um novo Código, o que se

deu em 1939.

Nesse passo, o art. 1.047 do Código de Processo Civil de 1939,

ao disciplinar transitoriamente a matéria, firmou a regra da aplicação de sua

imediata, salvo quanto aos processos em que iniciada a instrução em

audiência, os quais seriam processados e julgados em primeiro grau pela lei

anterior, exceto no tocante às nulidades processuais (§ 1º). E, não obstante

processadas e julgadas tais ações em primeiro grau de jurisdição de acordo

com a lei anterior, relativamente aos recursos preceituou a admissibilidade, o

263 Ao prever o regramento do recurso pela lei do tempo em que proferida a sentença, os legisladores aproximaram-se do sistema das fases processuais, isto é, toda a fase recursal (cabimento e processamento) foi regulada por uma única lei, aquela vigorante quando prolatada a decisão. 264 Não foi de boa técnica, inclusive apartando-se dos postulados da segurança jurídica e previsibilidade, deixar legislador de regular o cabimento do recurso pela lei vigente ao tempo que prolatada a decisão, ignorando o direito adquirido de recorrer.

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processamento e julgamento pelo novo diploma, com exceção dos já

interpostos, os quais seriam processados e julgados segundo a lei anterior

(§ 2º).265

Finalmente, em 1973 veio a lume o vigente Código de Processo

Civil, traçando duas regras de direito transitório. A primeira, inserta no art.

1.211, acompanhou a tradição brasileira de aplicação imediata da lei

processual aos feitos pendentes e, a segunda, descrita no art. 1.217,

ressalvou a manutenção dos recursos regulados em leis especiais e as

respectivas disposições procedimentais constantes do Código de 1939, até a

publicação de lei destinada a adaptá-los ao novo Código.

Exposta sucintamente as principais disposições processuais civis

editadas ao longo da história brasileira, é bem de constatar a omissão

legislativa quanto ao estabelecimento de regras específicas de direito

intertemporal aplicáveis exclusivamente ao campo processual civil. Todos os

artigos supramencionados situam-se na seara do direito transitório, vale

dizer, foram criados com o único propósito de regular a fase de transição

havida entre os velhos e os novos diploma legais, nos quais foram inseridos.

Nem mesmo no art. 1.211 do atual Código podemos encontrar

uma regra de direito intertemporal processual, cuidando-se de simples

disposição transitória ao reger a incidência no tempo tão-somente do próprio

Código de Processo Civil, quando de sua entrada em vigor.

265 Sem fazer distinção, no tocante à aplicação da lei nova, entre cabimento e procedimento do recurso, o Código de 1939 relacionou-se com o sistema das fases processuais. A previsão do §1º também se harmoniza com esse sistema. Por outro lado, contornando a atecnia do legislador, que expressamente regulou a vigência pela lei anterior apenas dos recursos já interpostos, olvidando mais uma vez do direito de recorrer já constituído, temos o parecer de Luís de M. S. Machado Guimarães (1942, p. 711-713) no sentido de que a admissibilidade dos recursos, ainda que não interpostos quando da entrada em vigor do novo Código, seriam regulados pela lei anterior se anteriormente houvesse sido proferida a decisão recorrível; propugnou o autor não só a admissibilidade pela lei vigente ao tempo da sentença, mas também o processamento do recurso, inclinando-se pelo sistema das fases processuais.

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141

A única regra específica a cuidar da intertemporalidade jurídica

conflitual aplicável ao processo civil como um todo266 é a constante do art.

87 do Código de Processo Civil, na parte em que preceitua a irrelevância,

em se tratando de competência, de superveniente modificação do estado de

direito após a propositura da ação (rectius: edição lei nova), salvo quando

suprimir o órgão judiciário ou alterar a competência absoluta.

Há autores, como Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini

Grinover e Cândido Rangel Dinarmarco (2004)267, que vislumbram no art. 2º

do Código de Processo Penal (“a lei processual penal aplicar-se-á desde

logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei

anterior”), um princípio geral de direito intertemporal que se aplica, como

preceito de superdireito, também ao processo civil.

É indiscutível ser, de fato, o art. 2º do Código de Processo Penal

regra de superdireito, porque tem por objeto a disciplina de outras leis. Tal

consideração, porém, não autoriza a ilação de que se aplica ao campo

processual civil. Nem a circunstância de vigorar o princípio tempus regit

actum tanto no processo penal268 quanto no processo civil é passível de

levar a essa conclusão, porquanto se trata de princípio derivado das próprias

regras gerais de direito intertemporal, que, por isso, seria aplicável ao

processo penal ainda que inexistente o sobredito artigo.

A bem da verdade, as leis processuais penais não têm qualquer

incidência subsidiária no direito processual civil, de modo que, à falta de

preceitos específicos, é na Constituição Federal e na Lei de Introdução que

266 O art. 1º do Código de Processo Civil estabelece que ele regerá o exercício da jurisdição em todo o território nacional, de sorte que, salvo disposições em sentido contrário, contidas leis processuais extravagantes, também a estas se aplica o Código de Processo. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p 76. 267 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 97-99. 268 MIRABETE, Julio Fabrini. Código de processo penal interpretado. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 78-79.

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142

devem ser extraídos os princípios gerais de direito intertemporal processual

civil.

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143

12. O DIREITO INTERTEMPORAL E O PROCESSO CIVIL

12.1. Regras Gerais de Direito Intertemporal e o Processo Civil

Investigada a submissão da lei processual aos ditames dos arts.

5º, XXXVI, da Constituição Federal e 6º da Lei de Introdução ao Código Civil,

regras gerais de direito intertemporal, é de considerarmos superado o

entendimento outrora sufragado no sentido de que as especificidades em

sede de direito processual consistiam na aplicação imediata da norma

processual ou mesmo na sua eficácia retrooperante.

Não é recente essa concepção distorcida a respeito da matéria.

Segundo informam os doutos, o doutrinador medieval Fellinus Maria

Sandaeus269, na obra Commentaria in quinque libros Decretalium, publicada

em 1567, após assentar o princípio geral de que a lei não invade fatos

pretéritos, apresentou dez exceções, duas das quais relacionadas ao tema

processual, vale dizer, se concernentes: (a) ao modo de ordenar as causas

em juízo; e (b) lei que cria ou suprime uma exceção, pois se trata de matéria

processual.270

No sistema brasileiro não foi diferente. Já se mencionou a

influência do anteprojeto de Coelho Rodrigues para a feitura Lei de

Introdução e do Código Civil de 1916. Mas outros anteprojetos foram

apresentados destinados a essa finalidade. O de Nabuco de Araújo previa,

no art “caput” do art. 7º, que as leis não têm efeito retroativo, salvo as leis do

processo civil (§4º).271

269 De acordo com Roubier, Fellinus viveu de 1444 a 1503. ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 48. 270 Para Limongi França (1998), “a síntese de Felinus Sandaeus constitui o primeiro grande marco na evolução do Direito Medieval desde Justiniano (527-565)”. In: FRANÇA, R. Limongi. A

irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 29-31. 271 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 139-140.

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144

O anteprojeto de Felício dos Santos seguiu a mesma linha de

orientação, ao prever no art. 7º, “caput”, que a lei não pode ser aplicada

retroativamente, com ofensa a direitos legitimamente adquiridos, estando

fora dessa compreensão as leis de processo (art. 8º, § 4º).272

A jurisprudência pátria também se inclinava pela existência de

peculiaridades nas leis processuais, prescrevendo a retroação das leis de

ordem pública, como processuais (Corte de Ap., 18-7-1924, Revista de

Direito, - LXXVI/568, 30-1-1923 – LXIX/538).273

A premissa de que partem tais ilações é, decerto, equivocada,

porque, repita-se, toda e qualquer lei detém a capacidade de atingir, em

regra, as situações pendentes, das quais o processo é exemplo.

Ressaltemos, ainda, que em muitos casos nos quais se cogitava de

retroatividade não haveria mais do que simples efeito imediato da lei

processual.

A suposta existência de imediatidade ou retrooperância da lei

processual como fator diferenciador de outras leis pode ser atribuída, em

vários casos, pela circunstância de que, no mais das vezes, um direito

adquirido de natureza material se configura em momento anterior a um

direito adquirido processual.

Exemplificando, é regra de direito intertemporal que um contrato

rege-se pela lei vigorante ao tempo de sua formação, inclusive no tocante

aos efeitos futuros, impedindo o julgador de decidir a lide com base em lei

posterior de cunho material vigente no momento da prolação da sentença;

contudo, uma lei processual posterior ao aperfeiçoamento desse mesmo

contrato será, em princípio, aplicada ao processo em curso. Tanto a lei

material quanto a processual são dotadas de eficácia imediata, com a única

272 Ibidem. 273 Ibidem.

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145

condição de que respeitem os direitos adquiridos - dos quais os atos são

espécies - e suas conseqüências próprias ulteriores.

Noutro falar, Humberto Theodoro Júnior (1998) explica que “a lei

que se aplica em questões processuais é a que vigora no momento da

prática do ato formal, e não a do tempo em que o ato material se deu”.274

Em suma, às normas processuais e àquelas outras prevalece, em

princípio, a regra tempus regit actum, mas o ato a ser considerado pelo

direito processual é o ato processual e não o ato substancial. A regra é a

mesma, apenas variando no tempo a formação de um e outro ato.275

Atualmente, a confusão não se encontra totalmente dissipada,

quiçá pelo teor da regra transitória a que alude o art. 1.211 do Código de

Processo Civil, nestes termos: “Art. 1.211. Este Código regerá o processo

civil em todo o território brasileiro. Ao entrar em vigor, suas disposições

aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes”.

Leitura apressada do referido dispositivo legal poderia conduzir o

intérprete, salienta Nelson Nery Junior (2004):

(...) à falsa idéia de que a aplicação imediata da lei nova aos

feitos pendentes seria irrestrita. É verdade que a lei

processual nova rege sempre para o futuro, mas se deve

274 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. 1, p. 22. 275 A diferença entre o ato material e o ato formal também é sentida na área penal, como observou o Superior Tribunal de Justiça (RSTJ 73/53): “O princípio da exigência de anterioridade da lei em relação ao crime não se estende às normas de processo e de execução, em relação às quais vigora a regra da anterioridade da lei frente ao ato processual, não ao fato criminoso. Mas, aplicando-se a norma processual nova aos processos em curso, ‘sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’ (art. 2º do CPP), não poderia o acórdão em exame cassar liberdade provisória regularmente concedida a acusado de estupro, na vigência de lei anterior, pelo só argumento da vedação superveniente, contida na lei de crimes hediondos (art. 22, II, da Lei nº 8.072/90). Hábeas Corpus deferido para conceder-se ao paciente liberdade provisória, nos termos do art. 310, parágrafo único, do CPP” (MIRABETE, Julio Fabrini. Código de processo penal interpretado. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 79).

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observar, no particular, o que determina a garantia

constitucional fundamental do respeito ao direito adquirido e

ao ato jurídico perfeito (CF 5º XXXVI). Assim, os atos

processuais já praticados sob a égide da lei antiga

caracterizam-se como atos jurídicos processuais perfeitos,

estando protegidos pela mencionada regra constitucional,

não podendo ser atingidos pela lei nova.276

A corroborar o sobredito e escorreito entendimento, temos a

observação de Wellington Moreira Pimentel (1975), nos seguintes termos:

Neste particular, no que se respeita a sua eficácia temporal,

a lei do processo em nada difere de qualquer outra norma.

Atua para o futuro. (...) Daí resulta que a lei processual nova

regulará os atos ainda não praticados, respeitando,

entretanto, os que já tiverem sido segundo a disciplina

emprestada pela lei anterior. Ora, se assim é, não há que se

falar em retroatividade da lei processual, a menos que, por

equívoco, se suponha existência de direito adquirido a

determinada forma procedimental (disposição seqüencial

dos atos que consubstanciam o fenômeno processual) ou,

também erroneamente, se veja a relação processual sem a

sua exata conformação, mas como se fora uma relação

instantânea, ou estática, ou formada por um bloco

monolítico de atos e atividades (sistemas da unidade

processual), o que não é acolhido pela melhor doutrina.277

Por outro lado, corolário das regras gerais de direito intertemporal,

a lei nova de cunho processual deve respeitar não só os atos processuais

aperfeiçoados sob a vigência da lei antiga, mas igualmente os efeitos

276 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 492-493. 277 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo

civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p. 127.

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(desses atos) a produzir a partir da entrada em vigor do novo diploma legal,

isto é, a aplicação imediata da lei nova incide apenas sobre atos realizados

após a sua entrada em vigor, resguardando-se tanto os efeitos produzidos

quanto os atuais (ainda não produzidos) dos atos passados.

A respeito, Chiovenda (1969) é incisivo no sentido de que a lei

processual nova deve respeitar os atos consumados sob a lei antiga;

“significa isso que mesmo os efeitos processuais ainda não verificados do

ato ou fato já consumados permanecem regulados pela lei antiga, sem que a

lei nova se diga, em verdade, retroativa”.278

De igual teor é a lição de Moacyr Amaral Santos (2004), para

quem a lei processual não tem efeito retroativo, isto é, ela é inaplicável a

atos passados, regulados por lei anterior, os quais permanecem com os

efeitos produzidos ou a produzir. A lei nova atinge o processo em curso no

ponto em que este se encontrar, sendo resguardada a inteira eficácia dos

atos processuais até então praticados. Somente os atos posteriores à lei

nova que se regularão conforme os preceitos desta.279

Francesco Carnelutti (1940) segue a mesma linha ao dizer ser de

rigor estabelecer nitidamente:

(...) la relación entre el hecho efectuado bajo el dominio de

la ley anterior, y el efecto o efectos jurídicos de cuya

producción se discuta. Todos los efectos que la norma

jurídica atribuye a un hecho efectuado bajo su dominio, y

únicamente ellos, subsisten pese al cambio de la propia ley

(...).280

278 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 87-94. 279 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 31. 280 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil. Traducción de Niceto Alcalá-Zamora Y Castillo y Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Uteha Argentina, 1940, p. 109. José

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A propósito dos efeitos novos dos atos processuais passados,

importa ressaltarmos que, ao contrário do que poderíamos supor, tanto a

doutrina objetiva quanto a doutrina subjetiva encampam a orientação de

proteção a esses efeitos ainda não consumados.281

Em abono à concepção ora defendida, de rememorar que o

jurídico perfeito é uma das formas de gerar um direito adquirido e que, em

regra, os efeitos do direito adquirido são inatingíveis pela lei nova.

Entretanto, ao tratar do assunto, Paul Roubier (1960) faz a

distinção entre atos da parte e atos do juiz: no primeiro caso, à semelhança

das situações jurídicas de direito privado, aplicar-se-ia a lei vigente ao tempo

em que produzido o ato; no segundo, ocorre a incidência imediata da lei,

sendo a retroatividade só aparente.282

Essa diversidade de tratamento entre atos das partes e atos do

juiz para fins de aplicação da lei no tempo, ressalvado melhor entendimento,

não encontra guarida no direito brasileiro, ante o que dispõem a Carta

Magna e a Lei de Introdução, que não fazem essa distinção. Wilson de

Souza Campos Batalha (1980), ao que parece, não acolhe a lição de Paul

Roubier (1960) afirmando que: “Cada momento processual é regulado pela

sua lei, isto é, pela lei vigente ao tempo em que se praticaram os atos que Frederico Marques (2001, p. 83) também é expresso nesse sentido, ao afirmar: “Em se tratando de atos processuais cujos feitos se produzem sob a vigência da lex novas, não incidirá esta, no tocante a esses efeitos, desde que a lex prius preveja que conseqüências devem resultar do ato praticado sob sua vigência”. Wellington Moreira Pimentel (1975, p. 132), também disserta: “Os efeitos já produzidos pelo ato praticado segundo a lei que ao tempo vigia bem como os efeitos pendentes por aquele se regerão, e, por isso, subsistirão diante da revogação da lei sob cuja égide se formaram”. 281 É o que informa Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 557-558), ao citar os subjetivistas Merlin, Dalloz e Gabba, e o objetivista Coviello, que é expresso quanto à intangibilidade dos efeitos novos dos atos processuais antigos. 282 Diz o doutrinador francês: “Il résulte de là que le droit transitoire procédural este commandé par la distinction capitale de lois qui gouvernent l’activité du juge et des lois qui gouvernent l´activité des parties; les premières saisissent l’activité du juge à tout moment du procès; elles ont ainsi une apparence de rétroactivité, mais ce n’est qu’une fausse apparence, une pseudo-rétroactivitè; quant aux secondes, elles ont sur les situations juridiques procédurales exactement la même portée d’application que les lois de droit privé sur les situations juridiques de droit prive” (Roubier, 1960, p. 546).

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deveriam ter sido praticados. E esta solução alberga não somente os atos

das partes como também os atos do juízo”.283 Carlos Maximiliano (1955)

também não faz tal diferenciação284, nem Eduardo Espínola e Eduardo

Espínola Filho (1943).285

É de se reconhecer, contudo, que nem sempre é tarefa fácil

identificar o que representa efeito (produzido ou a produzir) do ato

processual e o que se caracteriza como outro ato processual e não simples

efeito do ato antecedente.

De todo modo, exemplificando como efeito, vejamos a questão da

remição de bens. O vigente Código de Processo Civil, ao entrar em vigor,

suprimiu o direito de o devedor remir o bem penhorado286, limitando a

respectiva legitimação ao cônjuge, ao descendente e ao ascendente (art.

787). Como o direito à remição é conseqüência (efeito) da arrematação ou

do requerimento de adjudicação, se alguns destes atos tiverem sido

realizados sob o império do Código revogado, ao devedor continuaria aberta

a possibilidade de remição mesmo na vigência do novo Diploma

Processual.287

Os arts. 787 a 789 do Código, que tratavam da remição de bens,

foram revogados pela Lei nº 11.382, de 06.12.2006, a qual, apesar de

extinguir o direito à remição em caso de arrematação, conferiu ao cônjuge,

283 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Op. cit, p. 561. 284 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 263. 285 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 486-487. 286 Não devemos confundir remição de bem com remição da execução e com remissão da dívida. A segunda é ato do devedor, que paga o débito, mais juros, custas e honorários. Já a terceira é o perdão da dívida, concedida pelo credor ao devedor. 287 Nossa posição coincide parcialmente com a de Galeno Lacerda (1974, p. 45-46), para quem o direito de o devedor remir o bem penhora subsistiria desde que havida a arrematação ou a adjudicação antes da vigência do Código de Processo Civil de 1973. Para nós, como o que gerava direito à remição não era propriamente a adjudicação, mas o requerimento de adjudicação, nos posicionamos no sentido de que o direito sobreviveria desde que tenha ocorrido a arrematação ou o pedido pelo executado de adjudicação sob o império da lei velha.

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descendentes e ascendentes do executado a possibilidade de adjudicação

dos bens penhorados (art. 685-A, § 2º). Pela mesma linha de raciocínio, com

relação às arrematações realizadas antes do advento da nova lei, subsiste o

direito aos parentes do executado de remir o bem penhorado.

Outro exemplo de efeito de ato processual realizado no passado

diz respeito à questão da penhora. A constrição, além de individualizar o

patrimônio do devedor e gerar direito de preferência ao credor288, tinha o

efeito de permitir o oferecimento de embargos à execução fundada em

sentença (Código de Processo Civil, antiga redação do art. 741),

substituídos pela possibilidade de impugnação (art. 475-L, com a redação

dada pela Lei nº 11.382, de 06.12.2007).289 Ora, se a penhora aperfeiçoou-

se antes da edição na nova lei, nos parece que teria o executado o direito de

opor os embargos respectivos, por força do mencionado efeito resultante da

penhora.

Por fim, anotemos que a concepção de inexistência de

diversidade de tratamento das normas processuais no tocante ao fenômeno

da intertemporalidade jurídica conflitual torna-se mais evidente pela

circunstância de encontrar-se firmada, atualmente, a autonomia do direito

processual290 e do processo291 e, por conseguinte, da relação jurídica

288 A Lei nº 11.382, de 06.12.2007, ao dar nova redação ao art. 698 do Código de Processo Civil, tornou expressa a prática de se cientificar o credor com penhora anteriormente averbada de ação execução movida por outrem, sem o que não se defere a adjudicação ou alienação do bem do executado. 289 Por outro lado, se a lei nova cria certo efeito, até então inexistente, a um ato processual, esse efeito não prevalece para os atos aperfeiçoados sob a vigência da lei revogada. Por exemplo, o Código de Processo Civil de 1973 criou o direito de preferência do credor sobre o bem penhorado (art. 612). Tal preferência (efeito) não pode ser atribuída a penhoras realizadas antes da entrada em vigor do Código, sob pena de retroatividade e de ferir direitos de outros credores (Galeno Lacerda, 1974, p. 61). 290 A autonomia do direito processual não significa isolamento, mas corpo unitário dentro de um conjunto regido por leis próprias que regulam o exercício da função jurisdicional. O direito processual é autônomo nesse sentido, como corpo de princípios e leis dentro de um sistema maior, a ciência do direito, da qual é um de seus ramos. Liga-se aos demais ramos sob os mais variados aspectos: (a) no direito constitucional, o direito processual irá encontrar diretrizes de sua estrutura e função. Na Constituição Federal se esboçam os princípios fundamentais do processo, tais como o da igualdade das partes (art. 5º), o da inafastabilidade do controle jurisdicional, pelo qual toda e qualquer lesão de direitos é suscetível de apreciação pelos órgãos judiciários (art. 5º, XXXV), o do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), o da imparcialidade do juiz (art. 5º, XXXVII e LIII) etc.; (b) das ligações

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processual292, inconfundível com a relação de direito material, de forma a

divergirem, inclusive no tempo, os direitos que daquela e desta emergem.

com o direito processual penal refere-se ao fato de ambos serem ramos do mesmo direito, o direito processual (institutos básicos se aplica a ambos), o que levou a doutrina a criar uma teoria geral do processo voltada ao estudo dos princípios comuns a ambos os ramos; (c) com o direito penal se relaciona, porque alguns ilícitos processuais caracterizam também ilícito penal, a exemplo dos delitos de falso testemunho, falsa perícia e coação no curso do processo; e (d) com o direito privado (civil e comercial), pois os conflitos de interesses regulados pelo direito privado se resolvem pelo processo civil. (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19-20). 291 A autonomia do processo traz a idéia de autonomia do direito de ação. A ação é definida como o direito subjetivo público, abstrato e autônomo, a um provimento jurisdicional de mérito. Direito porque contrapõe-se ao dever do Estado de prestar a função jurisdicional. É subjetivo porque o direito é exercido contra o Estado, que tem o dever de resolver os litígios. É público por referir-se a uma atividade pública do Estado, qual seja, a atividade jurisdicional. É autônomo porque se distingue do direito material alegado pela parte. É abstrato, pois independe da existência efetiva do direito material invocado pela parte. Teorias sobre ação: (a) teoria civilista (imanentista ou clássica): por esta teoria, que vigorou desde o direito romano até o século passado, a ação era considerada uma qualidade do direito material da parte. Entendia-se que não poderia haver direito sem ação, nem ação sem direito (Código Civil de 1916, art. 75). Não se diferenciava a ação do direito; (b) teoria autônoma: após a célebre polêmica entre os romanistas Windscheid e Muther, passou-se a considerar a ação diferente do direito material lesado. A ação é um direito autônomo em relação ao direito material. Seriam realidades distintas a ação e o direito material. A partir desta nova visão da ação, tida como direito autônomo, formaram-se duas correntes, ambas fundadas na autonomia: b. 1) teoria autônoma e concreta: para esta teoria, embora a ação seja um direito diverso do direito material lesado, o direito de ação existe somente quando também exista concretamente o próprio direito material. A ação seria, então, o direito a um provimento favorável; b .2) teoria autônoma e abstrata: o direito de ação, além de diverso do direito material, independe da existência deste. Mesmo quando a sentença julga improcedente o pedido do autor, não deixa de ter havido ação. A sentença pode ser favorável ou desfavorável e ação terá, mesmo assim, existido. É suficiente, para ter havido ação, que o autor invoque um direito material abstratamente protegido pelo ordenamento jurídico, ainda que, concretamente, o juiz diga que ele não tem razão (não tem o direito que invoca). Esta última é teoria dominante. 292 A relação jurídica processual difere da relação jurídica de direito material. Esta envolve os titulares dos interesses em conflito, como credor e devedor; cônjuges etc. Aquela é estabelecida no bojo no processo e tem como sujeitos o demandante, o demandado e o juiz. O juiz é um dos sujeitos e comanda a atividade processual, distinguindo-se das partes por ser imparcial. Na relação jurídica processual há: (a) poderes: poder é a atividade permitida pelo direito que possibilita a interferência na esfera jurídica de alheia. Ex. juiz tem o poder de determinar o comparecimento de testemunhas; (b) faculdades: faculdade é atividade permitida pelo direito que não atinge a esfera alheia. Ex. faculdade de perguntas pelas partes; (c) sujeições: impossibilidade de evitar conduta alheia. Ex. sentença; (d) deveres: dever é a exigência de uma conduta. Ex. dever de comparecimento às testemunhas intimadas; dever do juiz de despachar a inicial; (e) ônus: faculdade cujo exercício é necessário para a realização de um interesse; o seu não exercício acarreta uma posição desfavorável da parte no processo. Ex. ônus da prova. Predomina a tese de que a configuração da relação jurídica é triangular (haveria relação entre demandante e Estado, demandado e Estado, demandante e demandado), mas para alguns é apenas angular (inexistiria relação direta entre demandante e demandado). É tranqüilo, porém, o entendimento de que a configuração é sempre tríplice (Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, 2004, p. 287). Para nós, a relação jurídica afigura-se triangular, havendo, em alguns casos, relação direita entre autor e réu. É a hipótese, por exemplo, das convenções realizadas entre as partes (sobre ônus da prova, foro de eleição, suspensão do processo, adiamento de audiência), do dever de lealdade e boa-fé etc.

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12.2. O Efeito Imediato e as Normas Dispositivas

Ao levar em consideração o interesse direto das partes, é de

perquirirmos a existência de tratamento diferenciado às normas processuais

dispositivas no que tange à aplicação das regras de direito intertemporal, já

que eventual acordo entre os litigantes poderia obstar a incidência imediata

da lei nova processual também de cunho dispositivo.

Suponhamos a celebração dos seguintes negócios jurídicos

processuais: determinada convenção acerca do ônus da prova e a

sobrevinda de lei nova, igualmente dispositiva, modificadora dos critérios de

distribuição desse ônus, ou, ainda, a eleição de foro e posterior alteração

legislativa, advinda entre esse pacto e o ajuizamento da demanda,

modificando as normas de competência relativa.293 Nesse caso, impedindo-

se eficácia imediata da lei nova, está-se criando regramento diferenciado

quanto à aplicação no tempo das leis processuais dispositivas? A resposta é

positiva.

Sobre o assunto, Arruda Alvim (1996) precisa o conceito de

norma processual dispositiva ou facultativa ao afirmar ser aquela que incide

à falta de manifestação volitiva das partes em sentido contrário à norma ou

cuja aplicabilidade pode ser afastada caso as partes se manifestarem nesse

sentido, isto é, a vontade das partes pode afastar a incidência da norma

dispositiva, que incidirá se não tiver sido estipulado diferentemente.294

293 A doutrina dominante também confere a natureza de negócio jurídico processual ao compromisso arbitral, ao “fechar as portas à jurisdição estatal”. (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 77). 294 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, vol. 1, p. 103.

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Ora, se às partes295 permite-se a não-aplicação da própria norma

processual dispositiva vigente quando da celebração da convenção, é

inarredável a ilação de que o pacto privado de cunho processual296

sobrepõe-se também sobre ulteriores leis dispositivas que disciplinem

diversamente a respeito do assunto.

Portanto, a lei nova de cunho dispositivo poderia deixar de aplicar-

se imediatamente ao feito em curso em razão de ajuste anteriormente

celebrado entre as partes.

A questão torna-se particularmente intrincada ao pensarmos na

superveniência da lei cogente que simplesmente proíba ou restrinja a

convenção nos moldes em que ajustada, o que será objeto de

considerações adiante.

12.3. Direitos Adquiridos Processuais

A despeito de a jurisprudência ter apresentado, no passado, certa

vacilação297, atualmente dúvida não há quanto à possibilidade de existirem

direitos adquiridos processuais.298

É o que se infere do contido no art. 158 do Código de Processo

Civil, ao dispor que os “atos das partes, consistentes em declarações

unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição,

295 Ensina James Goldschmidt (2004, p. 58) que o direito processual dispositivo diz respeito somente às partes e não ao juiz. “É falso falar também em Direito processual dispositivo quando a lei conceder livre-arbítrio ao juiz”. 296 Tanto convenção sobre a distribuição do ônus da prova quanto o foro de eleição revestem-se, como já dito, de caráter processual, sendo verdadeiros negócios jurídicos processuais, devendo, assim, ser examinados à luz do direito processual intertemporal, abstraindo-se das questões de direito material. 297 Decidiu-se equivocadamente, no que respeita à inexistência de direito adquirido processual, no v. acórdão prolatado nos autos do AI nº 328.598-8/00, 3ª Câmara, Rel. Juiz Oswaldo Breviglieri, j. em 10.09.91, RT 675/161. 298 James Goldschmidt (2004, p. 53-64) dedicou, inclusive, um capítulo inteiro (Capítulo V) de sua obra Princípios Gerais do Processo Civil para escrever sobre os “direitos processuais”, que a seu ver se “encontram em uma relação causal com um ato processual”.

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a modificação ou extinção de direitos processuais”, acrescendo que a

aquisição de direitos também pode derivar diretamente da lei ou de ato do

juiz.

Bem por isso, Galeno Lacerda (1974) sustenta que existem

direitos adquiridos à defesa, à prova, ao recurso, da mesma forma que há

quanto ao estado, à posse e ao domínio, argumentando com acerto que “os

direitos subjetivos processuais se configuram no âmbito do direito público e,

por isto, sofrem o condicionamento resultante do grau de indisponibilidade

dos valores sobre os quais incidem”.299

Embora, mercê de mandamento constitucional, a lei nova, seja de

ordem pública ou não, deva respeitar os direitos processuais adquiridos, a

grande dificuldade do intérprete será verificar as situações nas quais esses

direitos se configuram, dado que, de fato, a indisponibilidade do bem jurídico

protegido pela norma pode afastar a possibilidade de se invocar qualquer

direito constituído.

É o caso, por exemplo, da diferenciação, em tema de direito

intertemporal, entre competência absoluta e competência relativa: vigora o

princípio de que não existe direito adquirido em matéria de competência

absoluta (Código de Processo Civil, art. 87).300

299 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 13. 300 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (1997, p. 382) esclarecem o teor desse dispositivo: “A regra da perpetuatio jurisdictionis somente se aplica às hipóteses de competência relativa. Em se tratando de competência absoluta (material e hierárquica), a regra não se aplica (Arruda Alvim, Man., I, 109, 205). Alterada, v.g., a competência da vara de registros públicos para julgar usucapião, as ações dessa natureza que estiverem tramitando em vara cível terão de ser remetidas àquele outro juízo, porque a competência ratione materiae – critério utilizado pela matéria usucapião – é absoluta”. Por outro lado, inexiste direito adquirido, ainda que derivado de ajuste anterior, ao processamento da causa perante determinado órgão judiciário, suprimido pela lei nova.

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Já as alterações atinentes às regras de competência relativa não

se sobrepõem aos direitos adquiridos derivados de pactos processuais

aperfeiçoados anteriormente entre as partes.

Sobre essa questão, Galeno Lacerda (1974) é esclarecedor no

sentido de que não pode a lei nova, sem ofensa a direito adquirido, alterar,

para os processos em curso, a disciplina já consolidada da competência

relativa, salvo se opuser, contra esta, regra de competência absoluta.301

De todo modo, a par da complexidade na constatação de direitos

adquiridos, é de ficar definitivamente assentado que direitos dessa natureza

se configuram no âmbito do direito processual civil.

12.4. O Efeito Imediato e os Institutos de Natureza Mista

A existência de institutos jurídicos híbridos, compostos por

normas substanciais e processuais, é apontada por Cândido Rangel

Dinamarco (2004), para quem seria o campo do denominado direito

processual material, caracterizado pela:

301 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Op. cit., p. 18. Importa ressaltar, de outra banda, que a declaração de nulidade de cláusula de eleição de foro em contrato de adesão (alterações provocadas nos art. 112 e 114 do CPC pela Lei nº 11.280, de 16.02.2006, conforme última nota de rodapé ao item 10.1.), com a respectiva remessa dos autos ao foro do domicílio do réu, é passível de ser decretada pelo juiz mesmo em casos de foro eleito antes da referida lei. Objetar-se-á que haveria direito adquirido do fornecedor ao processamento da causa perante o foro eleito anteriormente, porque se está diante de hipótese de incompetência relativa. Ocorre que a espécie não cuida de declaração de ofício de incompetência relativa, mas declaração de ofício de nulidade de cláusula contratual abusiva, sendo a remessa dos autos ao foro do domicílio do réu mera conseqüência. Todavia, seja nos processos futuros ou pendentes, a remessa dos autos ao foro do domicílio do réu somente não poderá ser feita pelo magistrado após a resposta do requerido, pois se prorroga a competência, ante o disposto no art. 114. Não concordamos, com a devida vênia, com o entendimento de Maurício José Nogueira no (2006, p. 133) no sentido de que, entrando “em vigor o parágrafo único do art. 112 do Código de Processo Civil, havendo, na espécie, a nulidade de cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, poderá o juiz, em qualquer momento processual, declarar a presente eiva processual, determinando, pois, a remessa dos autos para o juízo do domicílio do réu”. Permitir-se ao juiz que, em qualquer momento processual, determine a remessa respectiva é contrariar frontalmente o teor do art. 114 do Código, que prevê a prorrogação da competência. Conforme anotam Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, a nulidade da cláusula de eleição de foro somente poderá ser reconhecida de ofício pelo juiz “enquanto o réu não apresentar sua resposta” ou, em outras palavras, “não poderá ser feito pelo juiz após o término do prazo para a apresentação de exceção, pelo réu” (2006, p. 22 e 24).

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(...) convergência de normas substanciais e processuais a

disciplinar os institutos, em si mesmo processuais, que

preenchem as faixas de estrangulamento existentes entre os

dois planos do ordenamento jurídico. Ele é, pois, o conjunto

de normas e princípios de direito material e de direito

processual disciplinadores de institutos processuais que

diretamente se relacionam com o direito à tutela jurisdicional

(ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada

material, responsabilidade patrimonial).302

No dizer do referido autor, haveria entre os direitos material e

processual “momentos de intersecção”303, não se encontrando em

compartimentos estanques os dois planos do ordenamento jurídico. E para

institutos processuais dessa natureza, que se configuram fora do processo e

dizem respeito diretamente à vida das pessoas, inclina-se doutrinador para a

existência de tratamento diferenciado quanto às regras de direito

intertemporal, expressando-se nestes termos:

A aplicação da lei nova que elimine ou restrinja

insuportavelmente a efetividade de situações criadas por

essas normas bifrontes transgrediria as garantias de

preservação contidas na Constituição e na lei, porque seria

capaz de comprometer fatalmente o direito de acesso à

justiça em casos concretos – e, conseqüentemente, de

cancelar direitos propriamente substanciais dos litigantes.

Seria ilegítimo transgredir situações pré-processuais ou

mesmo extraprocessuais como essas aqui consideradas, as

quais configuram verdadeiros direitos adquiridos e, como

tais, estão imunizadas à eficácia da lei nova por força da

garantia constitucional da irretroatividade das leis (Const.,

302 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 46. 303 Ibidem, mesma página.

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art. 5º, inc. XXXVI). Atingir o próprio direito de ação, impor

ao sujeito novas competências ou privá-lo dos meios antes

postos à sua disposição para a obtenção da tutela

jurisdicional (provas, bens), teria o efeito de suprimir direitos

adquiridos. Nesses casos, a lei velha continua eficaz apesar

de no momento de sua vigência inexistir processo algum

pendente e ato processual algum a ser preservado (...).304

Moacyr Amaral Santos (2004), a seu turno, alude à existência de

normas processuais substancias, as quais, diferentemente das normas

processuais puras, atribuem aos sujeitos direitos e obrigações, aduzindo

que:

Muito embora a maioria das normas processuais seja de

natureza instrumental, a doutrina distingue muitas dentre

delas as que se revestem das características das leis

substanciais, porquanto, como estas, atribuem direitos ou

criam obrigações. Típicas leis processuais substanciais são,

entre outras, as que concedem as ações correspondentes

(ex.: o titular de uma letra câmbio vencida tem ação

executiva contra o devedor); as que instituem os tribunais,

regulando-lhes as funções; as que disciplinam a

condenação das custas; as que impõem o dever do

testemunho.305

Vejamos, porém, que em nenhum momento Moacyr Amaral

Santos (2004) nega a qualidade processual da norma simplesmente por ela

criar determinado dever e/ou obrigação. Seguindo os ensinamentos deste

autor, seria legítimo citarmos, ainda, como exemplo de norma processual

material, a que institui o dever dos litigantes de procederem com lealdade e

boa-fé (Código de Processo Civil, art. 14, II), norma que, apesar de instituir

304 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Op. cit., p. 101-102. 305 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 25.

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um dever, não se priva da característica de lei processual, pois encontra-se

direcionada àqueles que participam do processo.

Também é interessante observarmos que Cândido Rangel

Dinamarco (2004) apóia-se no chamado direito justicial material, empregado

no passado por James Goldschmidt (2004)306, para abrandar “os

radicalismos autonomistas” do processo e para que se possa chegar ao que

denomina “exame bifocal de alguns institutos”, quando o referido direito

justicial material, nas palavras de Hernando Devis Echandía (2002), consiste

em uma noção “ambigua, equívoca, que no tiene un fundamento jurídico real

y que debe ser rechazada” porquanto “el pretendido derecho justicial

material no es más que um efecto del derecho material, en cuanto este

otorga a los titulares de los derechos subjetivos materiales la facultad de

ejercitarlo frente a terceros”.307

Dinamarco (2004), ainda, no sustentar de sua respeitável tese,

cita o escólio de Giuseppe Chiovenda, segundo o qual é “preciso evitar a

crença de que a lei processual seja sinônimo de lei formal”. O doutrinador

italiano, porém, não parece conferir em tais palavras o sentido pretendido

por Dinamarco, senão vejamos. Afirma Chiovenda (1969) ser mister:

(...) fugir à suposição de que as leis processuais sejam

equivalentes de leis formais. A norma que faculta a ação

não é, por certo, formal, porquanto garante um bem da vida,

que, todavia, não se poderia conseguir fora do processo;

mas é processual, visto fundar-se na existência do processo

e dela originar-se. Na base de todo complexo de normas

reguladoras de uma figura processual (...) encontra-se,

expressa ou implícita, uma norma (processual) que confere

306 A propósito do direito justicial material, discorre GOLDSCHIMIDT, James. Princípios gerais do processo civil (teoria geral do processo). Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004. 307 ECHANDÍA, Hernando Devis. Teoria general de la prueba judicial. 5ª ed. Tomos I e II. Bogotá: Temis, 2002, p.40-41.

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as ações correspondentes (...) Há, pois, um direito

processual substancial e formal.308

A exemplo de Amaral Santos (2004), observamos que Chiovenda

(1969) também não está a refutar a qualidade processual da norma que

conceda à parte determinada ação, mas, ao contrário, a reafirma e, além

disso, apenas discorre que tal comando normativo é apto à produção de

bens da vida.

De todo modo, razão assiste a Dinamarco (2004) quando alude a

certas categorias jurídicas permeadas tanto por normas de direito material

quanto de direito processual. A prova é exemplo clássico de instituto de

natureza híbrida, circunstância reconhecida em 1931 por Carnelutti (2000)

no prólogo ao volume sexto das Lezioni di dir. proc. civ., como nos informa

Giacomo P. Augenti309 A prova é regulada, pois, de acordo também com o

sustentar de João Batista Lopes (2002), por ambos os ramos que compõem

o ordenamento jurídico.310

Nessa esteira, anota Moacyr Amaral Santos (1983) que ao direto

civil cabe a determinação das provas, a indicação de seu valor jurídico e as

condições de sua admissibilidade, enquanto ao direito processual incumbe

estabelecer o modo de constituir a prova e de produzi-la em juízo.

Exemplifica normas de conteúdo material: verificar como se prova o

casamento ou o domínio, quando se indaga o efeito jurídico de um contrato

não registrado perante terceiros, se é admissível a prova testemunhal de

308 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 73. 309 No apêndice de Giacomo P. Augenti vem expresso o pensamento de Canelutti acerca desse caráter híbrido ao rever seu conceito inicial de que o instituto da prova fosse puramente processual: “(...) basta ‘esta reflexión para excluir que las pruebas operen sólo en el proceso y que, por tanto,

constituyan exclusivamente una institución procesal. Si al comienzo de mis estudios creí que fuese así,

éste es uno de los puntos acerca de los cuales hace tiempo que debí cambiar de opinión’”. (CARNELUTTI, Francesco. La prueba civil. Apéndice de Giacomo P. Augenti. Tradução para o espanhol de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo. 2ª ed. Buenos Aires: Depalma, 2000, p. 213). 310 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.

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contratos de valor superior a determinado patamar, se um filho pode depor

contra o pai. Por sua vez, são exemplos de normas processuais: quando se

questiona como se tomam os depoimentos das testemunhas, quando se

deve oferecer a prova de domínio, quais as solenidades necessárias à

confissão.311

Todavia, embora devamos reconhecer-lhes a existência, não

parece razoável admitirmos aos institutos dessa natureza o pretendido

tratamento diferenciado em relação à disciplina intertemporal. Cogitar de

aplicar a lei processual vigente ao tempo do fato litigioso em vez daquela

vigorante quando da prática do ato processual (da parte ou do juiz) significa

caminhar na contramão das regras gerais de direito intertemporal.

Examinemos, então, as categorias citadas por Dinamarco (2004):

ação, competência, prova, coisa julgada material e responsabilidade

patrimonial, a começar pela prova.

É inconcebível, na visão de Dinamarco (2004), privar a parte dos

meios probatórios antes postos à sua disposição ou a alteração de regras

sobre o ônus da prova, motivo pelo qual propõe tratamento diverso em

relação à intertemporalidade jurídica.312

Todavia, é bastante que consideremos, como tem considerado a

doutrina majoritária, que os meios de prova inserem-se nos quadrantes do

direito material (e não do direito processual) que a dificuldade desaparece,

pois, em obediência às regras gerais de direito intertemporal, aplica-se a lei

(substantiva) vigente ao tempo fato litigioso.

311 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 42-44. 312 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 99-102.

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161

Assim é que Bento de Faria (1934), em atenção a essa natureza

substantiva, conclui que a lei vigente ao tempo da realização do fato jurídico

é que há de disciplinar os meios de prova e guardar a sua força.313. Na

mesma linha Mattirolo apud Amaral Santos (1983), para quem o direito de

fornecer esta ou aquela prova, as condições pelas quais uma determinada

prova é admitida em juízo314, o valor, ou seja, a força da mesma, depende

exclusivamente da lei vigente ao tempo em que teve lugar o fato que se trata

de provar. Por outro lado, a forma pela qual a prova deve ser fornecida em

juízo depende da lei em vigor ao tempo em que a mesma deve ser

produzida315; por exemplo, incide a lei (processual) hodierna ao meio de

prova produzido sob sua égide que discipline a capacidade das testemunhas

e qualidades que as tornem suspeitas.316

Não incide, pois, lei posterior ao fato que suprima ou restrinja um

meio de prova antes permitido, ao contrário daquela que o amplie.317 Não se

tolera a aplicação de norma que, v.g., suprima a prova testemunhal e exija

prova escrita às relações anteriormente constituídas.318

Dinamarco (2004), é bem de ver, oferece acertada conclusão

quanto à questão relativa aos meios de prova, embora parta de uma

premissa que nos afigura obscura ao olvidar da natureza substancial da

legislação que está a disciplina-los.

313 FARIA, Bento de. Aplicação e retroatividade da lei. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1934, p. 36. 314 Donde se percebe que a qualificação de uma regra como material ou processual independe do fato de supor uma atuação do magistrado, o qual lida com normas de ambas as naturezas. Assim, tanto as normas substanciais quanto as processuais podem ter seus efeitos condicionados a uma manifestação judicial no bojo do processo. 315 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 45-46. 316 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 282. 317 A lei (substancial) que amplia os meios de prova aplica-se desde logo (Bento de Faria, 1934, p. 39). Anotam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho (1943, p. 488), apoiados em Faggella, a inexistência de dissenso doutrinário sobre a aplicação imediata da nova lei ampliadora dos meios de prova. 318 In: SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 45.

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162

No tocante ao ônus da prova, igualmente não há necessidade de

recorrermos a qualquer regramento especial quanto aos princípios de direito

intertemporal. Matéria de cunho eminentemente processual que é319, não se

há de supor, bem por isso, a aplicabilidade da lei vigorante à época do fato

material.320

É bem verdade, entretanto, que tal conclusão não retira a

complexidade da matéria, bastando ver o debate travado em 1976 no Curso

de Especialização em Direito Processual, coordenado por Arruda Alvim, o

qual, acompanhando a posição de Gian Antonio Micheli, entendeu que o

ônus da prova é determinado pela lei vigente à época da sentença; teses

opostas foram sustentadas por Antônio Cezar Peluso e Clito Fornaciari

Júnior, o primeiro afirmando prevalecer a lei vigente ao tempo do

deferimento das provas e o segundo quando da propositura da ação.321

Tratando-se de regra de julgamento e aplicável somente em

casos de insuficiência ou inexistência de prova, nos afigura correto o

entendimento de Arruda Alvim (1976), mas, de todo modo, o que deve ser

afastado, a nosso sentir, é o pretendido caráter substancial das normas

sobre ônus da prova. 322

319 É o que ensina João Batista Lopes (2002, p. 29): “Já o direito processual procura disciplinar a forma de colheita das provas, o momento e o lugar de sua produção, as regras sobre o ônus da prova, os poderes do juiz na produção da prova etc.”. 320 Da mesma forma como sugere Dinamarco (2004), Campos Batalha (1980, p. 562) entende que o ônus da prova rege-se pela lei vigente ao tempo em que se realizou o fato ou ato jurídico, com o que, repita-se, não concordamos, com a devida vênia. 321 ALVIM, Arruda; MICHELI, Gian Antônio; FORNACIARI JÚNIOR, Clito; PELUSO, Antônio Cezar. O ônus da prova e o direito intertemporal. Revista de Processo, nº 4, 1976, p. 227-230. 322 No sentido de incidir a lei (processual) nova sobre o onus probandi, sem, porém, adentrarem em detalhes quanto ao momento próprio de aplicação, WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 302. Outrossim, coerentemente com o que se sustentou em relação à competência absoluta, cujas regras novas sobrepõem-se sobre anterior foro de eleição objeto de ajuste entre as partes, entendemos que a convenção em torno do ônus da prova não prevalece diante de ulterior norma cogente que, de alguma forma, proíba ou restrinja a avença nos moldes em que pactuada. O que se observa, nesse diapasão, é uma tendência de que de as normas processuais de natureza cogente prevaleçam contra convenções processuais anteriores, que têm por base leis dispositivas, assumindo os negócios processuais privados uma feição diversa dos contratos

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163

Não devemos confundir a modificação legal das regras sobre o

ônus da prova com a inversão judicial prevista no Código de Defesa do

Consumidor, se verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor (art.

6º, VIII). Referido dispositivo da legislação consumerista em nada tangencia

com as regras de direito intertemporal, circunscrevendo-se tão-somente à

possibilidade de inversão pelo próprio magistrado.323

Portanto, embora se reconheça a dificuldade, como adverte

Moacyr Amaral Santos (1983)324, em se encontrar a precisa linha divisória

entre direito material e direito substancial quanto ao instituto da prova, atinar

se determinada norma é cunho material ou processual, independentemente

do Código em que inserida, é a solução para a justa aplicação da lei nova no

tempo.325

Quanto à responsabilidade patrimonial, argumenta Dinarmarco

(2004) a impossibilidade de a lei nova:

(...) excluir a responsabilidade de algum bem pelas

obrigações do dono; sua imposição aos casos onde já

houvesse um ato jurídico perfeito ou direito adquirido

atentaria contra a estabilidade destes. Mas a jurisprudência

vem afirmando a aplicação imediata da lei que instituiu o

chamado bem de família (lei n. 8.009, de 29.3.90), ficando a

firmados no âmbito do direito material. Como já registramos, é de Galeno Lacerda (1974) a afirmação de que os direitos subjetivos processuais se configuram na seara do direito público e, por isso, subordinam-se aos valores indisponíveis sobre os quais incidem. Portanto, assim como não há direito adquirido processual contra regra de competência absoluta, também inexiste em face de norma cogente a disciplinar a distribuição do ônus da prova. 323 Sandra Aparecida Sá dos Santos (2002) resume as três teorias acerca do momento próprio para o ato judicial que determina a inversão, quais sejam, no despacho judicial, na decisão saneadora e na sentença. (SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova como garantia

constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 81-86). 324 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 42-44. 325 Resume João Batista Lopes (2002) que “saber se determinada norma é de caráter material ou processual tem repercussão direta no campo do direito intertemporal” (LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29).

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164

casa residencial a salvo da expropriação executiva ainda em

relação a obrigações anteriores à vigência.326

Malgrado legítima a crítica lançada pelo sobredito autor e, de

resto, pela maioria da doutrina contra o entendimento sumulado do Superior

Tribunal de Justiça (Súmula nº 205), mais uma vez desnecessário deslocar-

se para o campo do direito processual material para a correta solução da

questão intertemporal suscitada.

A mesma conclusão exarada quanto às provas é igualmente

válida para o instituto da responsabilidade patrimonial, com a diferença de

que este é inteiramente regulado por normas de direito material, não

apresentando verdadeira natureza híbrida. Responsabilidade e obrigação

caminham lado a lado no âmbito do direito substancial, representando a

primeira conseqüência (sanção) pelo descumprimento da segunda,

inexistindo cunho processual nas normas que as disciplinam.

Considerando esse aspeto puramente substancial característico

das normas disciplinadoras da responsabilidade patrimonial, infere-se o

equívoco da jurisprudência da Corte Superior ao subtrair da

responsabilidade bem de devedor existente quando contraída a obrigação,

sem outro apto a garantir a higidez de seu patrimônio.

Em voto vencido a respeito da aplicabilidade da Lei nº 8.009, de

29.03.1990, o Ministro Marco Aurélio, amparando-se em acórdão oriundo do

extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil, deixou assentado o caráter material

da matéria, entendimento escorreito em nosso sentir.327

326 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 99. 327 O relato parcial deste RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 179.768 – PR encontra-se na seção de Anexos, no final deste trabalho.

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Por outro lado, quanto à ação, além da impossibilidade de se

“atingir o próprio direito de ação”, acresce Dinamarco (2004) que:

(...) não pode a lei nova retirar a proteção jurisdicional antes

outorgada à determinada pretensão, excluindo ou

comprometendo radicalmente a possibilidade do exame

desta de modo a tornar impossível ou particularmente difícil

a tutela antes prometida. É até tolerável a retirada de uma

tutela específica, desde que outras vias suficientes

subsistam, como no caso de a lei nova extinguir

determinado título executivo extrajudicial antes do exercício

da ação executiva: resultando ao titular do eventual direito

alguma outra via processual a percorrer (no caso, processo

de conhecimento ou monitório), isso basta para legitimar a

aplicação da lei nova. Inexiste direito adquirido, nessa

óptica, a determinada espécie de tutela jurisdicional ou a

determinada categoria de ação. Não se admite a aplicação

imediata da lei processual nova, p. ex., caso ela venha a

criar novas impossibilidades jurídicas (v.g, para impedir que

qualquer dívida de jogo tivesse apreciação jurisdicional e

não somente aquelas contidas na previsão do art. 814 do

Código Civil)”. 328

Finaliza Dinamarco (2004) ser vedado ao legislador, também, a

edição de lei que venha a “eliminar a legitimidade de propor determinada

demanda”. 329

Nesse aspecto, é preciso, antes, diferenciarmos o que

doutrinariamente se intitula de direito constitucional de ação e direito

processual de ação. O primeiro vem inserto no art. 5º, XXXV, da

Constituição, nestes termos: “a lei não excluirá da apreciação do Poder

328 Ibidem, p. 103. 329 Ibidem, p. 99.

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Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Direito constitucional de ação ou

direito de demanda significa, então, o direito a todos de acesso ao Poder

Judiciário, que se obriga a oferecer uma resposta ao autor. A parte exercita

esse direito com o simples ingresso de uma ação. É um direito

incondicionado, ou seja, que não depende da existência de condições para

se exercê-lo. Mesmo quando o juiz deixa de apreciar o mérito por ausência

de uma das condições da ação, houve exercício do direito constitucional de

ação, pois houve acesso ao Poder Judiciário.

No salientar de Enrico Tullio Liebman (1984), esse “poder de agir

em juízo”, “garantia constitucionalmente instituída”, “pertence à categoria dos

direitos cívicos; ele é absolutamente genérico e indeterminado, inexaurível e

inconsumível, não se ligando a qualquer situação concreta”.330

Já o direito processual de ação significa algo mais. Conceitua-se

como o direito subjetivo público, abstrato e autônomo, a um provimento

jurisdicional de mérito.331 É um direito condicionado, ou seja, que depende

para sua existência das seguintes condições: legitimidade de parte,

possibilidade jurídica e interesse de agir. 332

330 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. v. 1. Tradução Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 150. 331 Direito porque contrapõe-se ao dever do Estado de prestar a tutela jurisdicional. É subjetivo porque o direito é exercido contra o Estado, que tem o dever de resolver os litígios. É público por referir-se a uma atividade pública do Estado, qual seja, a atividade jurisdicional. É autônomo porque se distingue do direito material alegado pela parte. É abstrato, pois independe da existência efetiva do direito material invocado pela parte. 332 Para que se possa exigir do juiz a emissão de um provimento jurisdicional de mérito (analisando o pedido do autor), é preciso que estejam presentes determinadas condições, chamadas condições da ação, que são: (a) possibilidade jurídica; (b) interesse de agir; e (c) legitimidade de parte. Possibilidade jurídica do pedido é a inexistência de vedação em abstrato no ordenamento jurídico ao pedido formulado pelo autor na petição inicial. Não será possível sequer examinar o pedido do autor. Exemplo da impossibilidade jurídica do pedido (ou melhor, da causa de pedir): cobrança de dívida de jogo. Interesse de agir: a provocação da tutela jurisdicional deve ser útil para solucionar o conflito alegado pelo autor. Haverá utilidade se a prestação jurisdicional for necessária e adequada. Pela necessidade, compete ao autor demonstrar que sua pretensão somente será satisfeita pelo réu com a interferência do Poder Judiciário. Pela adequação, entende-se que o provimento jurisdicional solicitado deve ser apto a corrigir o mal de que se lamenta o autor. Legitimidade de parte: a relação jurídica de direito material é a existente entre os titulares dos interesses em conflito. Ex. credor e devedor; cônjuges. Em regra, somente os titulares dos interesses em conflito têm legitimidade para figurar como autor e réu da ação. Em outras palavras, em regra, são partes legítimas, ativa (autor) e

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Isso não significa dizer, porém, que existam dois direitos de ação,

um constitucional e um processual. O direito de ação é sempre processual,

porquanto é por meio do processo que ele se exerce. O que há é a garantia

constitucional genérica do direito de ação, contudo, o seu exercício é sempre

processual.333

Posta a diferenciação, fica claro, prescindindo adentrarmos até

mesmo nas regras de direito intertemporal, que a superveniência de lei nova

que venha a malferir o direito constitucional de ação será induvidosamente

inconstitucional por violar o art. 5º, XXXV, da Carta Magna.334

No tocante ao direito processual de ação, a questão torna-se mais

complexa; no entanto, mais uma vez, a exemplo das provas, resolve-se pelo

caráter da norma editada. É que, a despeito da correta e tradicional

denominação - direito processual de ação (uma vez que o direito de ação é

sempre processual) -, não se vislumbra natureza processual nas normas em

que se apega Dinarmarco (2004), referentes à legitimidade de parte e à

possibilidade jurídica do pedido.

É evidente o caráter processual de uma lei que, por exemplo,

permita ao juiz a extinção do processo sem resolução do mérito se existente

vedação em abstrato no ordenamento jurídico para o fim pretendido pelo

autor, se houver ilegitimidade de parte ou falta de interesse de agir, como

passivamente (réu), os titulares da relação jurídica de direito material. É a chamada legitimidade ordinária. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão e a passiva ao titular do interesse que opõe resistência à pretensão. Em casos excepcionais, quando expressamente autorizado por lei, é possível alguém ser parte legítima apesar de não ser o titular da relação de direito material. É a chamada legitimidade extraordinária, na qual a lei autoriza que uma pessoa ingresse em juízo, em nome próprio, na defesa de direito alheio. 333 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 76. 334 Embora o destinatário principal da norma seja o legislador, ela atinge a todos, ou seja, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o cidadão vá a juízo deduzir uma pretensão.

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dispõem os arts. 267, VI e 295, II, III e parágrafo único, III, do Código de

Processo, porque aludem diretamente ao exercício da função jurisdicional.

O mesmo não sucede, porém, com as normas que determinam

quem é parte legítima e se a pretensão que se formula é ou não proibida

abstratamente na ordem jurídica brasileira.

No primeiro caso, Vicente Greco Filho (2003) é contundente ao

afirmar que, apesar de a legitimidade ser examinada no processo e ser uma

das condições da ação, a regra é de que as normas definidoras da parte

legítima estão no plano do direito material, porque é ele que define as

relações jurídicas entre os sujeitos de direito, determinando quais os

respectivos titulares.335

No segundo caso, respeitante à impossibilidade jurídica do pedido

– sempre conjugado com a causa de pedir336 -, também se analisa o tema

puramente sob a ótica substancial, na esteira do pensamento exposto por

Fábio Guidi Tabosa Pessoa (2004).337

Exemplo clássico em que tal natureza material pode ser ilustrada

consta do disposto no art. 814 do Código Civil a vedar a cobrança de dívida

oriunda de jogo ou de aposta, proibição que já constava do Código de 1916

(art. 1.477). Outro exemplo, agora bem mais recente e que vem oferecendo

tormentosa discussão no seio da doutrina, diz com o teor do art.1.639, §2º,

do atual Diploma Civil, que preceitua, in verbis: “É admissível a alteração do

335 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1, p. 79. 336 Quanto a essa condição da ação, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (1997, p. 532): “Deve entender-se o termo ‘pedido’ não em seu sentido estrito de mérito, pretensão, mas conjugado com a causa de pedir. Assim, embora o pedido de cobrança, estritamente considerado, seja admissível pela lei brasileira, não o será se tiver como causa pretendi dívida de jogo”. 337 Afirma o autor nestes termos: “(...) o problema da impossibilidade jurídica do pedido, como já dissemos neste trabalho, deve ser examinado pela ótica substancial, não processual”. (PESSOA, Fábio Guidi Tabosa. Elementos para uma teoria do direito intertemporal no processo civil. São Paulo : USP, 2004, p. 169 – Tese de Doutorado).

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regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de

ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e

ressalvados os direitos de terceiros”.

Enquanto Antonio Jeová Santos (2004) enxerga traço processual

na sobredita norma porque está a exigir autorização judicial para a

modificação do regime de bens338, Freddie Didier Júnior (2004) nela não

vislumbra esse caráter.339 De nossa parte, a razão está com Freddie Didier

Júnior (2004), não havendo conotação processual no § 2º do art. 1.639 do

Código Civil. Isso porque, a lei criou nova possibilidade jurídica do pedido

antes inexistente e, coerentemente com o que acima consignamos, tem

cunho material, sendo certo que a simples exigência de autorização judicial

para a alteração do regime de bens não transmuda a natureza da norma de

material em processual. O cerne do problema deve ser visto com a seguinte

indagação: o ordenamento deixou de vedar a formulação de certa

pretensão? A resposta, qualquer que seja, insere-se no âmbito do direito

material. É o mesmo que se sobreviesse norma permitindo a cobrança de

dívida de jogo ou aposta: circunscreve-se a questão na seara do direito

substancial.

O debate se aclara com o exemplo do divórcio, introduzido no

Brasil pela Emenda Constitucional nº 9, de 28.06.1977, que deu nova

redação ao § 1º do art. 175 da Constituição de 1969 (com a superveniente

regulamentação pela Lei nº 6.515, de 16.12.1977), permitindo-se, por

sentença, a dissolução do vínculo matrimonial. Recentemente, o divórcio

passou a prescindir de autorização judicial, por simples escritura pública, se

inexistirem filhos menores ou incapazes.340 Indagamos então: terá qualidade

substancial a norma que permite o divórcio sem intervenção judicial e

338 SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 165-176. 339 DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 107. 340 Art. 1.124-A do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei nº 11.441, de 04.01.2007.

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processual a norma que a exige? A resposta não pode ser outra: é negativa.

Não tem cunho processual a regra jurídica que admite o divórcio, seja por

sentença, seja por escritura pública.

Portanto, exija – ou não – determinada regra normativa a

anuência judicial para a satisfação de certa pretensão, a problemática

deverá ser analisada no restrito âmbito do direito material. Esse equívoco,

passível de acarretar graves conseqüências no plano intertemporal, de se

supor processual uma norma que simplesmente remeta ou pressuponha

uma atividade do magistrado, não passou despercebido por Fábio Guidi

Tabosa Pessoa (2004), ao discorrer:

(...) ser absolutamente irrelevante, para a definição da

natureza substancial ou processual de uma regra, o fato de

depender sua atuação da atividade judicial, ou mesmo de se

manifestarem seus efeitos, naturalmente, no ambiente

processual. O direito processual não rege as situações

substanciais, mas o juiz sim, atuando ele a um só tempo os

dois planos jurídicos e não podendo por isso ter seus atos

analisados apenas sub a perspectiva instrumental.341

Concluindo, a lei a estabelecer legitimidade de parte e vedação ao

exame de determinado pedido ou causa de pedir deve ser apreciada à

exclusiva luz do direito substancial, com base no qual soluciona-se eventual

questão de direito intertemporal surgida, sem necessidade de qualquer

tratamento peculiar nessa matéria.342

341 PESSOA, Fábio Guidi Tabosa. Elementos para uma teoria do direito intertemporal no processo civil. São Paulo: USP, 2004, p. 155. (Tese de Doutorado). 342 Nesses limites se devem compreender as palavras de Carlos Maximiliano (1955, p. 30-31), que com apoio em Gabba, assevera: “Ação judicial para fazer valer um direito já adquirido, constitui, por sua vez, direito adquirido (o direito de acionar); porquanto semelhantes remédios processuais enumeram-se entre as conseqüências do direito adquirido; não são faculdades das leis, nem a estas se equiparam. Impõe-se, entretanto, o requisito de ser de índole privada o objeto da ação. Cumpre evitar a desastrosa confusão entre ações judiciais e atos processuais: estes se regem pela norma recente e alinham-se entre os assuntos de Direito Adjetivo ou Formal; aquelas se incluem na esfera do Direito Substantivo ou Material”.

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O tema, embora de direito material, nem por isso, todavia, deixa

de se tornar complexo. Suponhamos a inexistência de vedação no sistema

pátrio para a cobrança de dívida de jogo (contrato de jogo). Nesse caso,

caberia ao juiz examinar a pretensão a fim de julgá-la procedente ou

improcedente. Mas e se a ação ainda não tivesse sido ajuizada e após esse

mesmo contrato sobreviesse uma lei vedando a cobrança? Deve o juiz

examinar o pedido posteriormente formulado? A resposta é positiva, pois, a

nosso ver, à época da contratação a lei permitia, ou seja, formou-se em

favor do autor verdadeiro direito adquirido a que a pretensão, estribada no

contrato privado, fosse conhecida pelo magistrado. As regras processuais

que determinam a extinção do processo sem resolução do mérito não

podem ser aplicadas neste caso, pois o direito processual não deve

sacrificar um direito adquirido material (aquele que tem por objetivo servir a

este e não o contrário). A mesma solução, outrossim, não poder dar-se, por

exemplo, caso sobreviesse após o casamento lei suprimindo o divórcio, o

qual, segundo a melhor doutrina, não a natureza jurídica de um contrato

privado, não havendo, pois, direito adquirido invocável. Neste caso, é de

permitir ao juiz a extinção do processo sem resolução do mérito tenha a

impossibilidade jurídica se manifestado antes ou após a propositura da ação.

É o que nos ensina Fiore apud Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho

(1943):

Suponhamos que a lei nova tenha modificado as regras para

promover a dissolução do casamento mediante o divórcio;

em semelhante caso, cumpre admitir que, se a ação

judiciária tiver sido iniciada, como meio para tal fim, no

império da lei que a autorizava, não poderá prosseguir

depois de promulgada a lei nova.343

343 In: ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 485.

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Igualmente, Silvio Rodrigues (2005) afirma que “a lei que veda o

divórcio, ou que o permite, deve, fora de dúvida, ter aplicação imediata”.344

Sobre esse tema, porque a tanto autoriza a legislação processual,

o Superior Tribunal de Justiça, analisando um pedido de habilitação de

crédito em processo de falência, decidiu que:

A extinção do processo com fundamento em impossibilidade

jurídica do pedido não obsta a que o autor venha

posteriormente a renová-lo em juízo, nos moldes

preconizados pelo art. 268 do CPC, sendo de assinalar-se, a

titulo de justificativa, que uma determinada pretensão pode,

em certo momento, não encontrar respaldo no ordenamento

jurídico e o mesmo não se verificar após o transcurso de

certo tempo, em virtude de alterações legislativas ou da

própria evolução do entendimento jurisprudencial.345

Não cremos, porém, seja esta a melhor solução em casos de

negócios jurídicos de caráter privado, pois configuram atos jurídicos

perfeitos, como no exemplo já citado de dívida de jogo, sendo possível

sustentar a existência de direito adquirido do devedor no sentido de que a

dívida não fosse cobrada em juízo (é o mesmo raciocínio no caso de a

cobrança ser permitida à época da contratação, hipótese na qual haveria

direito adquirido em favor do credor); entendimento contrário poderia causar

surpresas aos contratantes, o que seria incompatível com o ideal do Direito.

Por fim, ainda no que tange ao direito processual de ação, temos

a questão relativa à retirada de uma tutela específica, qual no caso de uma

lei nova que suprima determinado título antes do exercício da ação

executiva, tema a se refletir na condição de ação referente ao interesse

processual. 344 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 28. 345 RSTJ 73/199.

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Devemos admitir aqui, de fato, a existência de um direito

processual substancial, como o faz Moacyr Amaral Santos (2004), já que

está a norma a conceder determinando direito à parte ao dar origem a

determinada ação. Também não merece reparo o resultado alcançado por

Dinamarco (2004) no sentido de regular-se a categoria de ação (ação

monitória, ação executiva etc.) pela lei vigente ao tempo em proposta a

demanda, o que vai ao encontro da moderna e tranqüila doutrina a propósito

do tema.346 Sucede que essa escorreita interpretação é obtida abstraindo-se

da necessidade de tratamento intertemporal diferenciado, sendo suficiente a

compreensão de que a lei que cria (ou retira) uma espécie de ação,

malgrado institua (ou exclua) um direito, é tipicamente processual e, como

tal, tem incidência imediata independentemente do tempo no qual foi

constituída a obrigação.

Por outro lado, Dinamarco (2004) faz referência ao instituto da

coisa julgada, insurgindo-se contra eventual (a) ampliação de prazo recursal

depois de já passada em julgado a sentença de mérito e (b) aumento de

prazo para a propositura de ação rescisória quando já extinto o prazo ditado

pela lei velha.347

Para se chegar a essa correta ilação, que também encontra apoio

no restante da doutrina348, basta a aplicação do princípio da irretroatividade,

a vedar à lei nova instrumental a transgressão de situações processuais

definitivamente constituídas, sendo dispensável recorrer-se ao campo do

direito processual material.

346 Humberto Theodoro Júnior (1998, p. 22); Moacyr Amaral Santos (2004, p. 33). 347 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 102-103. 348 Galeno Lacerda (1974, p. 91) resume a incontroversa posição doutrinária sobre o tema: “Claro está que os prazos já terminados sob a lei antiga não podem, em hipótese alguma, ser reabertos. O efeito já se produziu sob aquela lei. O problema de direito transitório só se apresenta, é claro, quanto à incidência da lei nova sobre prazos que ainda não acabaram”.

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Por derradeiro, sobre a competência, sustenta o mencionado

autor que as garantias constitucionais do juiz natural vedam expressamente

a imposição de tribunais de exceção, criados após o fato, bem como tornam

irrelevantes as novas competências fixadas posteriormente, sempre que isso

reduza a possibilidade de defesa.349 Ora, todos esses princípios são

eminentemente processuais e de ordem constitucional, de modo que lei

ordinária que os afete será inconstitucional e inaplicável ao processo,

resolvendo-se a problemática sem adentrar na seara substancial e

prescindido-se de eventual equacionamento especial no plano da

intertemporalidade jurídica.

12.5. O Efeito Imediato e os Princípios Processuais

Princípios são definidos como a verdade básica imutável de uma

ciência, funcionando como pilares fundamentais da construção de todo o

estudo doutrinário, sendo diretrizes que iluminam a compreensão das

normas.

A doutrina divide os princípios do direito processual civil em

princípios fundamentais (ou gerais) e princípios informativos do processo. Os

informativos são, no dizer de Nelson Nery Junior (2002), “considerados

axiomas, pois prescindem de demonstração. Não se baseiam em outros

critérios que não os estritamente técnicos e lógicos, não possuindo

praticamente nenhum conteúdo ideológico”.350 São universais e não

antagônicos entre si.351

349 Ibidem, p. 102. 350 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 30. 351 São eles: (a) princípio lógico: o processo deve ser lógico em sua estrutura, devendo, por ex., a petição inicial preceder a contestação; (b) princípio jurídico: o processo deve seguir as regras preestabelecidas pelo ordenamento jurídico; (c) princípio político: as regras de ordem política devem ser seguidas no processo, como a que determina ao juiz o dever de sentenciar, ainda que haja lacuna na lei (Código de Processo Civil, art. 126), pois do contrário não estaria garantido o direito de acesso ao judiciário; (d) princípio econômico: com o mínimo de atividade desenvolvida deve se obter o

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Já os fundamentais são aqueles “sobre os quais o sistema jurídico

pode fazer opção, considerando aspectos políticos e ideológicos. Por essa

razão, admitem que em contrário se oponham outros, de conteúdo diverso,

dependendo do alvedrio do sistema que os está adotando”.352 São dotados

de cunho ideológico e comportam, assim, princípios antagônicos entre si.353

Dentre os fundamentais, sobreleva destacarmos os princípios do

devido processo legal354, da igualdade ou isonomia355, do contraditório e da

máximo de rendimento, sempre respeitando os direitos das partes e as regras procedimentais (ex.: arts. 125, II, e 154). 352 Ibidem, mesma página. 353 Ex.: no processo penal vigora a regra da indisponibilidade, ao passo que no processo civil vige a disponibilidade; a verdade formal prevalece no processo civil, enquanto a verdade real domina o processo penal. Alguns princípios gerais têm aplicação idêntica no processo civil e no processo penal. 354 Art. 5º, LIV, da Constituição: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O devido processo legal pressupõe: (a) a elaboração da lei em conformidade com a Constituição e com o princípio da razoabilidade. É o chamado devido processo legal em sentido

material ou substantivo. Somente respeitará o devido processo legal a lei que não entrar em confronto com a Constituição. Além disso, toda lei que não for razoável é contrária ao direito e deve ser controlada pelo Poder Judiciário; (b) a aplicação judicial da lei, garantindo aos litigantes o direito a um processo respeitando-se as suas formas, tornando efetiva a possibilidade de acesso à justiça, de deduzir pretensão e defender-se amplamente. É o chamado devido processo legal em sentido

processual. O princípio em comento é gênero do qual os demais princípios constitucionais do processo são espécies: princípio do juiz natural, princípio da igualdade, princípio do contraditório, princípio da ampla defesa, princípio da publicidade, princípio da motivação etc. 355 Art. 5º, “caput”: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. A igualdade perante a lei é pressuposto para a afirmação da igualdade perante o juiz (igualdade processual ou formal). Dessa norma surge, portanto, o princípio da igualdade processual ou formal, ou seja, as partes devem merecer tratamento igualitário no processo, para que tenham as mesmas oportunidades em juízo. O Código de Processo Civil, no art. 125, I, estabelece ser dever do juiz “assegurar às partes igualdade de tratamento”. A igualdade processual ou formal (tratamento igualitário no processo) não é suficiente, contudo, para eliminar a desigualdade econômica das partes. Por isso, do conceito primitivo de igualdade (igualdade processual formal) passou-se ao conceito de igualdade substancial ou real, ou seja, o tratamento igualitário deve ser dado apenas aos realmente iguais, dando-se tratamento desigual às partes que estiverem em situação de desigualdade. Portanto, o princípio da igualdade, hoje, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. É igualdade real ou substancial. Exemplos de aplicação do princípio da igualdade real ou substancial: prioridade às causas de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos (Lei 10.741/2003), com a justificativa de que os idosos têm menor expectativa de vida; o Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, I) considera o consumidor como parte mais fraca na relação de consumo. Há, portanto, uma situação de desigualdade real entre o consumidor e o fornecedor. Por isso, o CDC prevê mecanismos para corrigir essa desigualdade, como a inversão do ônus da prova, tido como direito básico do consumidor (art. 6ª, VIII).

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ampla defesa356, os quais podem eventualmente postergar a imediata

aplicação da nova lei processual.

Tomemos exemplificativamente a questão suscitada por Galeno

Lacerda (1974) quanto ao fato de haver o vigente Código Processo Civil

eliminado o sistema de louvados das partes, adotando o critério consistente

na nomeação de um único perito oficial, com a designação de assistentes

técnicos pelas partes. Orienta o processualista de que essa salutar

modificação (art. 421) somente pode ser concebível, aos feitos em

tramitação, se ainda não ocorrido o compromisso prestado por qualquer

perito das partes, caso em que eles seriam considerados pelo juiz como

assistentes técnicos, ressalvando a hipótese de o perito da outra parte já

estar compromissado, o que tornaria inconversível o sistema de perícia do

velho Código.357

Ora, fosse aplicarmos friamente a regra de eficácia imediata da lei

no caso em tela, mesmo se o perito de uma parte já estivesse

compromissado quando da entrada em vigor do Código, o da outra (ainda

não compromissado) haveria de ser considerado, ex vi do art. 421 do

356 Princípio do contraditório: ciência bilateral dos atos processuais, somando-se à possibilidade de contrariá-los. Decorre desse princípio a necessidade de que se dê ciência a cada litigante dos atos praticados no processo. Somente conhecendo esses atos poderão as partes exercitar o contraditório, ou seja, só assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir no convencimento do juiz. A ciência dos atos processuais é dada através da citação e da intimação. Citação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém da instauração de um processo, chamando-o a participar da relação processual (Código de Processo Civil, art. 213). Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos do processo, para que se faça ou deixe de fazer alguma coisa (art. 234). O contraditório é constituído, portanto, de dois elementos: informação +

possibilidade de reação. O contraditório não admite exceções: mesmo nos casos de urgência, em que o juiz concede determinada medida liminar sem ouvir a parte contrária, o réu será informado e terá possibilidade de oferecer reação posteriormente no processo, inclusive com direito a recurso contra a medida liminar concedida sem sua participação. É o chamado contraditório diferido, porque postergado no tempo. Nossa jurisprudência tem reconhecido a violação ao princípio do contraditório nos julgamentos fundados em documentos sobre os quais não foi dada chance de manifestação à parte vencida. O contraditório é a exteriorização da ampla defesa, ou seja, o contraditório possibilita a ampla defesa. A violação a este princípio está ligada ao conceito de cerceamento de defesa, consistente na prolação de uma decisão prematura, sem que tenha sido facultada à parte a utilização de todos os meios e recursos previstos em lei para a defesa de seus direitos. 357 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 51.

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Código, assistente técnico. Daí adviria, porém, manifesta desigualdade:

perito para uma parte e assistente técnico para a outra. A solução alvitrada

pelo doutrinador lastreou-se, à evidência, no princípio da isonomia.358

12.6. As Teorias da Unidade, das Fases Processuais e do Isolamento

dos Atos Processuais

Em doutrina359, são apontados três sistemas destinados à

aplicação da lei nova processual aos feitos pendentes.

Primeiro, o sistema da unidade, segundo o qual o processo é

considerado um conjunto de atos inseparáveis uns dos outros. É um corpo

uno, uma unidade, de forma a somente poder ser regulado, do início ao fim,

por uma única lei, ou a nova ou a revogada, impondo-se, porém, que a

regência se faça pela lei velha evitando-se indevida retroação, pois se regido

pela lei nova, com a conseqüente anulação dos atos já realizados, haveria

inequívoca retroatividade.

Em segundo lugar, temos o sistema das fases processuais, a

supor no desenvolver do processo a existência de fases autônomas e

independentes umas das outras (postulatória, ordinatória, instrutória,

decisória e recursal), cada qual compreendendo um complexo de atos

inseparáveis entre si. Aqui há unidade em cada fase processual e não no

processo como um todo, sendo cada fase regida por uma única lei, com a

observação de que, para impedir a pecha da retroatividade, a

superveniência de lei nova não incide na fase já iniciada.

358 E também no necessário encadeamento lógico dos atos praticados no bojo do processo. 359 FERREIRA, Pinto. Direitos processuais adquiridos. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. ano XIII, nºs 13-14. Rio de Janeiro, 1998, p. 189-193; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 32; e CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 96-99.

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Divergindo apenas quanto à denominação, Chiovenda (1969),

após citar a possibilidade de se “ou aplicar a lei antiga até a conclusão do

processo (solução sugerida pela intenção de evitar perturbações e

complicações); ou aplicar a nova aos atos sucessivos (aplicação rigorosa da

autonomia da relação processual)”, indica a solução intermediária

consistente na divisão da causa em “períodos”, aplicando-se a lei antiga até

o perfazimento do período então iniciado360, o que, à evidência, corresponde

ao sistema das fases processuais.

Por derradeiro, citemos o sistema do isolamento dos atos

processuais, através do qual a lei nova atinge o processo em curso,

respeitando os atos processuais já realizados (e seus efeitos), aplicando-se

aos que houverem de realizar-se. Cada lei rege os atos praticados sob seu

império: tempus regit actum.

Ora fundamentando no art. 1.211 do Código de Processo Civil361,

ora no art. 2º do Código de Processo Penal362, a doutrina aponta pela

adoção, no Brasil, do sistema do isolamento dos atos processuais.

Já registramos, no entanto, que o art. 1.211 não passa de uma

disposição transitória, cuja finalidade única foi a de disciplinar a aplicação do

Código do Processo de Civil de 1973, quando de sua entrada em vigor, aos

feitos pendentes, enquanto o art. 2º do Código de Processo Penal é

inaplicável subsidiariamente ao processo civil.

Precisamos verificar, pois, a espécie de sistema adotado no

direito brasileiro à luz das regras constantes na Constituição Federal e na Lei

de Introdução, que são as verdadeiras normas gerais de direito 360 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 95. 361 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo

civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p.32. 362 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 96-99.

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intertemporal. Assim é que aquela, no art. 5º, XXXVI, manda respeitar o

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, enquanto esta, no

art. 6º, preceitua o efeito imediato e geral das leis, resguardando-se os

institutos já mencionados pela Lei Maior.

Em razão dos sobreditos dispositivos, que expressamente limitam

a imediatidade da lei à obediência ao ato jurídico perfeito, infere-se que a lei

processual tem aplicação imediata, condicionada ao respeito ao ato jurídico

processual perfeito formalizado no processo em curso. Daí então, embora

por premissa diversa, demonstra-se escorreita a lição da doutrina a

recomendar o acolhimento do sistema do isolamento dos atos processuais

no ordenamento jurídico pátrio.363

É preciso do intérprete, porém, cautela no aplicar da teoria

respectiva. Seria equivocado imaginarmos, por exemplo, que o magistrado

deixe de proferir sentença, prolatando ao revés decisão interlocutória364, em

embargos à execução em curso quando da entrada em vigor da Lei nº

11.232, de 22.12.2005, simplesmente porque esta legislação teria suprimido

a referida modalidade de ação, substituindo-a pela impugnação prevista no

art. 475, J, § 1º, do Código de Processo. É que, como já consignado

anteriormente, é princípio tranqüilo de direito intertemporal de que prossegue

a ação iniciada antes da lei que a aboliu.

Ademais, a conclusão acerca da adoção da teoria do isolamento

não significa arredar, de modo absoluto, a possibilidade de aplicação dos

363 José Olympio de Castro Filho (1976, p. 261) entende haver sido adotado no Brasil o sistema da unidade processual, pois, por força do art. 1.211 do Código de Processo Civil que determinou a aplicação do novo Código aos processos pendentes, os feitos em curso seriam integralmente regulados pela nova lei. Afirma que o critério do legislador de 1973 teria diferido do Código de 1939, em que se previu a aplicação em alguns casos da lei velha, nos arts. 1.047 e 1.048. Com esse entendimento não concordamos, pois do art. 1.211 não se infere, de modo algum, o acolhimento do critério da unidade processual: ao preceituar que se aplica aos processos pendentes não significa dizer que incide sobre todos os atos dos processos pendentes. Ademais, o sistema da unidade processual pela aplicação do novo Código implicaria indevida retroatividade, já que resultaria na ineficácia dos atos processuais perfeitos já realizados no processo. 364 Embora, hoje, a sentença seja conceituada pelo seu conteúdo e não mais pelos efeitos que produz.

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demais sistemas. O sistema unidade processual pode, conforme já

consignado na parte geral deste trabalho, ser objeto de opção legislativa

através da edição de norma transitória, da qual é exemplo o art. 76 da Lei nº

8.245, de 18.10.91 (Lei de Locações), que preceituou: “Não se aplicam as

disposições desta lei aos processos em curso”.

De outro turno, sem adentrar nas dificuldades apontadas por José

Carlos Barbosa Moreira (1997) atinentes à exata separação temporal entre

elas365, o sistema das fases processuais também pode eventualmente ser

aplicado pelo intérprete, mesmo à falta de disposição transitória expressa na

qual se resguarde a pós-atividade da lei vigente ao tempo iniciada a fase em

curso. É que, na lição de Carnelutti (1940), o processo é:

(...) una serie o una cadena de actos, realizados por la parte

o por el juez, coordinados todos en un momento dado por la

legislación en una relación de medio a fin, para conseguir el

resultado último, que es el juzgamiento (il giudicato) o la

satisfacción del acreedor. Teóricamente es posible que (...)

el jurista señale en la serie de esos actos líneas de

separación, en el sentido de que un acto posterior no deba

reconocerse como efecto jurídico de un acto precedente, es

decir, que su coordinación práctica no surja en manera

alguna con la intensidad de una causalidad jurídica. Es, por

tanto, teóricamente posible que sobre estas líneas de

separactión actue, durante el curso del proceso mismo, el

cambio de la ley procesal y que el régimen del proceso se

365 Segundo José Carlos Barbosa Moreira (1997), a caracterização de cada fase processual se liga antes à idéia de predominância que à exclusividade, de forma que haverá, assim, uma fase predominantemente postulatória, uma predominantemente instrutória etc. Não são, pois, compartimentos estanques: a produção de provas, por exemplo, inicia-se desde a fase postulatória e mesmo após o encerramento desta podem praticar-se, eventualmente, atos assemelhados à demanda ou à defesa. Demais disso, as fronteiras entre elas nem sempre são muito claras; a nitidez da diferenciação entre as fases varia em sentido contrário ao do grau de concentração do procedimento. Quanto mais concentrado seja este, mais se esvaziam as linhas divisórias entre as fases. É mais fácil, por exemplo, discernir uma divisão em fases no procedimento ordinário do que no sumário (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novo processo civil brasileiro, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 5).

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modifique así durante su proprio desenvolvimiento. Pero la

coordinación práctica subsiste; y de ella puede surgir el

inconveniente de una desconexión o de una desorientación

del proceso cuando durante su curso intervenga una ley

modificadora, especialmente cuando actos estabelecidos

por la ley posterior no encuentren conveniente preparación

en los actos precedentes efectuados bajo el régimen de la

ley anterior. Este es el motivo práctico por el que las

reformas mayores en la legislación procesal van

normalmente acompañadas de disposiciones transitorias,

que si no adoptan por completo la medida excesiva de

aplicar la ley antigua hasta el término del proceso pendiente,

moderan, sin embargo, casi siempre la rígida aplicación del

principio arriba enunciado, estableciendo, por un lado, que

determinados grupos de actos, o secciones, o períodos del

proceso continúen siendo regulados por la ley precedente,

aun cuando según el rigor de los principios, les sea aplicable

la ley nueva, y por otro, disponiendo formas especiales para

la coordinación de los actos afectuados según la tramitación

(rito) precedente, con los actos a realizar según la

tramitación posterior.366

Desse modo, de forma a evitar o comprometimento do necessário

encadeamento lógico, seqüencial e causal dos atos processuais, o

intérprete, por vezes, se verá na obrigatoriedade de postergar a aplicação

imediata da lei processual ao processo em curso, ainda que diante da

ausência de disposição transitória a respeito.

Poderíamos objetar que ao intérprete não seria lícito tal proceder,

uma vez que o efeito imediato da lei deriva de norma legal (Lei de Introdução

ao Código Civil, art. 6º). Ocorre que a eficácia imediata da lei não pode

desfigurar ou inutilizar os atos já consumados no processo, dos quais 366 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil. Traducción de Niceto Alcalá-Zamora Y Castillo y Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Uteha Argentina, 1940, p. 110.

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dependem os posteriores. Caso o fizesse, seria retroativa por violação à

norma superior que impõe a obediência aos atos jurídicos processuais

perfeitos (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI).

A título ilustrativo, vejamos a questão outrora suscitada pela

doutrina quanto à aplicação imediata do Código de Processo Civil de 1973

aos feitos pendentes no tocante ao procedimento sumaríssimo (hoje

sumário), reintroduzido, à época, pelo Código. Nesse caso, Wellington

Moreira Pimentel (1975) ponderou que:

(...) dada a amplitude dos critérios para a admissibilidade do

procedimento sumaríssimo, este, ao entrar em vigor o novo

Código, a 1º de janeiro de 1974, apanhará em curso ações

de ritos diversos, do ordinário aos especiais do velho

Código, em momentos ou em fases processuais que,

raramente ou nunca, se compatibilizarão com o novo

procedimento a ser obedecido em primeiro grau de

jurisdição, a menos que se trate de ação em fase

embrionária de processamento, isto é, onde a citação não

haja, ainda, sido efetuada (....). Relegar tudo o que foi feito,

por amor à regra da lei nova, seria ferir a regra

constitucional, que veda a aplicação retroativa da lei.367

Outro não foi o entendimento de Galeno Lacerda (1974) a

respeito da impossibilidade de conversão do novo procedimento

sumaríssimo nos feitos em andamento se “a citação tiver ocorrido na

vigência da lei antiga”.368

A ultratividade da fase processual iniciada, portanto, pode

decorrer de interpretação pelo aplicador do direito e não necessariamente

367 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo

civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p. 131. 368 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 43.

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por razões de política legislativa. Importa ressaltarmos, porém, que a pós-

atividade por força da hermenêutica somente ocorrerá se imprescindível à

harmonização dos atos praticados no curso do processo, pois, do contrário,

prevalece o critério do isolamento dos atos processuais.

É possível, ainda, avançar mais nas conclusões exaradas acerca

desses modos ou sistemas de aplicação da lei nova ao processo em curso.

Isso porque, nem sempre será preciso, para manter a concatenação lógica

dos atos processuais, que o intérprete resguarde a ultratividade da fase

processual, mas apenas de determinados “grupos de atos” inseridos no

interior da fase em andamento.

A construção doutrinária, quiçá a mais perceptível, a demonstrar a

pós-atividade, não de uma fase processual, mas de lapsos temporais

inferiores, vem do direito intertemporal recursal.

Assinala Nelson Nery Junior (2002), citando o francês Roubier,

que “a lei vigente no dia em que foi proferido o julgamento é a que determina

o cabimento do recurso; e a lei vigente no dia em que foi efetivamente

interposto o recurso é que regula o seu procedimento”.369 Em outras

palavras, apesar de revogadas, a lei em vigor no dia da sentença rege o

cabimento do recurso e a vigente quando da interposição disciplina o seu

processamento. Ambas são, portanto, pós-ativas, aplicáveis mesmo após a

revogação. Este irrepreensível ensinamento doutrinário, que se aproxima, na

medida do possível, da teoria do isolamento dos atos processuais ao permitir

a dual incidência legislativa nova na fase recursal (na qual podem ser

praticados vários atos processuais) e que se afasta, porque desnecessário,

369 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 563-565. Em sentido parecido discorre Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 100): “se à publicação da sentença sobrevier lei suprimindo o recurso cabível contra ela, continua o vencido com o direito de recorrer (arts. 499 e 513), muito embora o modo de recorrer possa ser legitimamente regido por lei nova (requisitos da petição e das razões, modo e momento de fazer o preparo etc.)”.

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do sistema das fases processuais ao não propugnar a singela aplicação de

uma única lei, não é, porém, de aceitação geral entre os doutos. 370

Exemplifique-se, ainda, com a hipótese de uma audiência de

instrução e julgamento iniciar-se em certo dia, concluindo-se em outro e a

superveniência, nesse interregno, de lei processual nova, estabelecendo

comando normativo diverso na sistemática das audiências, incompatível com

os atos praticados inicialmente. Decerto que as novas regras seriam

inaplicáveis à audiência marcada em continuação, sob pena de malferir o

encadeamento causal dos atos processuais.371

370 Defendendo que a lei do recurso é o que determinada a lei que deve incidir, tanto no tocante ao cabimento quanto ao processamento, temos Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2006, p. 287-300), os quais levantam a seguinte objeção quanto à posição de que compartilhamos: se a lei nova, ao entrar em vigor entre o dia do julgamento e o da interposição do recurso, suprimir o recurso então existente, não haverá procedimento. Mas a solução é dada pelos próprios autores no sentido de que, neste caso excepcional, se o recurso for extinto pela nova lei, aplicam-se as normas atinentes ao recurso com o procedimento que tinha à época da decisão. Por outro lado, Dinamarco (2002, p. 280) reporta-se a interessante questão suscitada por Pedro da Silva Dinamarco sobre a intertemporalidade jurídica envolvendo os embargos declaratórios e os infringentes: “Se o acórdão suscetível de embargos infringentes foi publicado na vigência da lei velha e uma das partes opôs embargos declaratórios a ele, a superveniência da lei restritiva da admissibilidade daqueles não se aplica ao caso, sob pena de retroatividade ilegítima, porque os embargos infringentes terão sempre por alvo o acórdão aclarado e só em segundo plano o aclarador; o direito de opô-los será, como sempre, regido pela lei do tempo da publicação do acórdão e não pela lei nova”. 371 Carlos Eduardo Ferraz de Mattos Barroso (1999, p. 6-7) lembra a hipótese do art. 414, § 1º, do Código de Processo Civil, o qual limita ao número de três as testemunhas destinadas à prova do fato controvertido. Suponha-se uma audiência designada em continuação para a oitiva de uma terceira testemunha de defesa, ausente quando da primeira data, sobre o único fato controvertido existente nos autos. Lei processual superveniente que venha a entrar em vigor nesse interregno, proibindo a oitiva de mais de duas testemunhas por cada fato controverso, não terá aplicabilidade no caso, permanecendo aplicável a lei anterior. Outro exemplo, agora fornecido por Nelton dos Santos (Coord. Antonio Carlos Marcato, 2004, p. 1382 e 2074), diz respeito à edição de lei nova que altere a ordem de colheita das provas, inaplicável à audiência designada em prosseguimento. Por outro lado, para o referido autor, o fato de ser uma e contínua a audiência de instrução, debate e julgamento (art. 455) impede, por si só, a incidência das novas regras na audiência designada em continuação. A nosso ver, com devido respeito, a circunstância de ser uma a audiência não implica dizer que nela pratica-se apenas um ato processual; ao revés, podem ser realizados vários atos processuais dentro de uma única audiência. A audiência é sempre uma, única (não são várias audiências), mas isso não impede no seu bojo o aperfeiçoamento de inúmeros atos processuais. Vejamos, por exemplo, a Lei nº 11.187, de 19.10.2005, que obrigou a interposição oral do agravo retido das decisões proferidas nas audiências de instrução e julgamento. Lei desse teor, mesmo se editada no interregno mencionado, se aplicaria à audiência designada posteriormente em continuação, o que obrigaria a parte, contra uma decisão proferida nessa segunda data, a interpor o agravo na forma oral e não escrita. Aqui não haveria qualquer desarmonia entre os atos praticados no processo.

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185

Não é por outra razão que Wellington Moreira Pimentel (1975), ao

criar seu esboço de sistematização sobre a incidência do Código de

Processo Civil de 1973 aos processos em andamento, propôs duas regras

que merecem destaque, quais sejam: (a) para a aplicação da lei nova aos

atos que serão praticados após a sua vigência, é necessária a sua

compatibilização com os anteriores, de forma a não quebrar o nexo que os

vincula e (b) se o ato não praticado for mera seqüência de outro praticado

segundo a lei anterior, aquele a esta se sujeitará.372

Portanto, entre as teorias do isolamento e das fases processuais,

que não devem ser consideradas inflexíveis e estanques, viável o

reconhecimento de uma solução intermédia, desde que suficiente à

observância de logicidade entre os atos processuais, isto é, os atos ainda

não realizados e considerados imediata conseqüência de outros

anteriormente praticados no processo submetem-se à velha e ultrativa

legislação, diante da presente e inquestionável conexão existente em

eles.373

372 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo

civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p. 132. 373 Este é o ensinar de Carlos Maximiliano (1955) que, com apoio em Gabba, afirma: “Atos processuais que são imediata e natural conseqüência de outros já realizados, constituem direito adquirido em virtude de conexão; regem-se pelos preceitos contemporâneos dos atos anteriores”. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 271).

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186

CONCLUSÃO

Analisadas as regras gerais constantes da Constituição Federal e

da Lei de Introdução do Código Civil e a respectiva aplicabilidade no âmbito

do processo civil, é possível inferirmos a inexistência de tratamento

intertemporal diferenciado no tema a que nos propomos no presente

trabalho.

É justamente, pois, nos sobreditos comandos imperativos de que

o intérprete deverá valer-se para solucionar as diversas questões jurídicas

surgidas, decorrentes da sucessão de duas leis processuais no tempo.

Não obstante inexistir propriamente tratamento diverso, não há

como negarmos, porém, a ocorrência de peculiaridades intertemporais na

seara processual, diante da complexidade do processo e das múltiplas e

variantes situações jurídicas assumidas pelos que dele participam durante o

seu curso.

Bem por isso, se, de um lado, as normas gerais são

imprescindíveis à exata compreensão do instituto, de outro, a efetiva solução

do fenômeno não dispensa o conhecimento de certas particularidades, tais

como as referentes às leis dispositivas, aos princípios processuais, aos

sistemas da unidade, das fases processuais e do isolamento dos atos

processuais (este último aplicável, em regra), à necessária compatibilidade

entre os atos processuais conexos (o que pode afastar a plena incidência da

teoria do isolamento), sem embargo de outras tantas peculiaridades, quais

as questões relativas às ações em andamento extintas pela lei nova, ao

cabimento e processamento dos recursos, e aos negócios jurídicos

processuais a denotarem uma feição diversa daquela presente nos pactos

privados de direito substancial.

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187

Não pretendemos, deveras, fazer crer que o fenômeno da

intertemporalidade seja suficiente e seguramente resolvido à luz dos

instrumentos normativos e construções doutrinárias desenvolvidas para tal

mister, em torno das quais se debatem os conceitos de direito adquirido e

situação jurídica. Em nenhum ramo do direito a ciência logrou atingir este

intento e o direito processual civil certamente não representa exceção à

regra.

De todo modo, a solução desejável de determinado conflito de leis

instrumentais no tempo pressupõe o entendimento do que propugnam os

doutos que se debruçaram sobre o tema em comento, não devendo o

intérprete, ainda, olvidar da máxima da Filosofia no sentido que o Direito

repugna as transformações bruscas, a gerarem descompasso entre a

harmonia da justiça e a certeza almejada, ensinamento indubitavelmente

válido ao processo civil cuja efetividade, no que respeita ao aplicar da lei

nova aos feitos pendentes, não prescinde do equilíbrio entre os valores

celeridade e segurança.

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200

ANEXOS

RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 179.768-PR – Tribunal Pleno

Relator Ministro Carlos Velloso

Recorrente: Banco do Estado do Paraná S/A

Recorridos: Deciola Ribeiro Costa e outro

Brasília, 28 de junho de 1996, Fonte: RTJ nº 176/919-936.

O objetivo maior dos preceitos - de preservar as situações devidamente

constituídas - salta aos olhos. Daí, em acórdão merecedor de encômios, o

Relator do Agravo de Instrumento nº 497.395-7, Juiz Donaldo Amele (sic),

do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, haver ressaltado que o direito à

conservação do patrimônio - garantia comum dos credores - é de natureza

material, embora se efetive normalmente por meio do processo, mesmo

porque no campo da efetividade o direito material é dependente do

processual. A seguir, deixou assentado que essa garantia não pode ser

diminuída, quer pela lei, quer pelo devedor, a ponto de prejudicar a

satisfação do direito assim assegurado, e se traduz realmente, na conduta

do devedor, em um limite da disponibilidade de bens deste, revestindo-se,

pois, consoante esclarece Yussef Said Cahali, de características de uma

obrigação negativa, no que faz surgir uma verdadeira imprópria obrigação

para o devedor - de não alterar a solidez de seu patrimônio, destinado que é

à satisfação de seus credores. (...) Por tais razões, e enaltecendo mais uma

vez o precedente mencionado, do Tribunal de Alçada Civil do Estado de São

Paulo, que, em homenagem ao ilustre magistrado e professor de Direito

Processual Civil, ora transcrevo, concluo pela inaplicabilidade da Lei nº

8.009, de 1990, às execuções concernentes a débitos formalizados antes da

respectiva vigência. Eis o inteiro teor daquele percuciente voto:

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‘(...) De qualquer forma, todavia, essa lei está vigendo, impondo-se a sua

observância e, conseqüentemente, a solução das questões desta

emergentes. Acentue-se desde logo ter o diploma legal em tela natureza

material, a despeito de alguns seus dispositivos disciplinarem matéria

processual. O bem de família é, indisputavelmente, instituto de direito

material e a Lei nº 8.009/90 veio alterar o seu atual regramento explicitado

nos artigos 70 a 73 do Código Civil. (...) Contudo, in casu, não se cogita de

impenhorabilidade decorrente de lei processual, como se assentou supra. A

impenhorabilidade a que aludem os artigos 1º e s da Lei nº 8.009/90 resulta

de direito material, na medida em que esta, além de instituir, na prática, o

bem de família legal, expressamente excluiu da responsabilidade patrimonial

os bens nela elencados. (...) O direito à conservação do patrimônio do

devedor, garantia comum dos credores, é de natureza material, embora se

efetive normalmente através do processo, mesmo porque, no plano da

efetividade, o direito material é dependente do processual (cfr. Andrea Proto

Pisani, Breve premessa a un corso sulla giustizia civile (Introduzione) in:

Appunti sulla giustizia civile, Bari Cacucci Editore, 1982, pp. 8 e segs.). Essa

garantia não pode ser diminuída, quer pela lei, quer pelo devedor, a ponto de

prejudicar a satisfação do direito assim assegurado, e se traduz,

relativamente à conduta do devedor, em um limite da disponibilidade de

bens deste, revestindo-se, pois, consoante esclarece Yussef Said Cahali,

invocando o magistério de Cico, de "características de uma obrigação,

negativa, no que faz surgir uma verdadeira e própria obrigação para o

devedor, de não alterar a solidez de seu patrimônio, destinado que é à

satisfação de seus credores" (cfr. Fraude contra Credores, S. Paulo, RT.

1989. p. 39). (...) Assim sendo, resta examinar se tal direito pode ser

suprimido por lei de efeitos retroativos. Como foi acentuado supra, o artigo

591 do CPC enseja à lei ordinária restringir a responsabilidade do devedor, o

que indubitavelmente poderá ocorrer prospectivamente, entretanto não

poderá atingir elementos constantes do patrimônio do devedor, que dele não

poderiam voluntariamente ser retirados sem infringir o direito do credor à

conservação desse patrimônio em nível suficiente para a satisfação de seu

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direito. Isto porque o credor adquiriu direito a essa conservação, aquisição

essa que dispensa o exercício para se corporificar. Aliás, em regra, sendo o

exercício do direito forma de sua consumação, não haveria porque fazer

coincidir a aquisição necessariamente com a sua extinção. (...) Nessa

conformidade, é de se concluir que a Lei nº 8.009/90, a despeito de sua

redação ensejar diversa interpretação, somente pode ser prospectiva. Assim

sendo, não vulnerará direitos adquiridos, seja através da penhora ou da

citação, como sustentam respeitáveis posicionamentos, hábeis a tornar

ineficazes os atos de alienação ou oneração de bens em detrimento do

credor, seja mediante o surgimento de obrigação do devedor de manter o

seu patrimônio em nível adequado para responder pelo débito contraído. Isto

porque, com a configuração do débito, emerge direito do credor à

conservação. Portanto, para que a impenhorabilidade prevista nessa mesma

Lei nº 8.009/90 pudesse atuar nos processos que derivem de obrigações

pecuniárias do devedor, contraídas antes do advento desse diploma legal,

mister se faria que este não apenas comprovasse estarem os bens

penhorados encartados entre os previstos no artigo 1º dessa mesma lei,

como também que existem outros bens penhoráveis, hábeis a responder

pelo crédito existente. Assim, em verdade, não se tornaria insubsistente,

simplesmente, a penhora já realizada, mas se substituiria o seu objeto,

mantendo-se, destarte, a prelação dela resultante. (...) O cancelamento da

penhora, considerando-se a exegese emprestada ao aludido artigo 6º, far-

se-ia somente mediante substituição do bem penhorado, como supra

explicitado, sem o que emerge evidenciada a impossibilidade de atuar o

comando dessa norma, por colisão com o texto constitucional’.