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Comportamentos Como lidamos com a morte O mistério e a curiosidade em relação à morte andam de mãos dadas com medos, especulações, crenças e tabus. Sabe-se que a morte é a única certeza da vida, mas ao longo da vida, onde a finitude é um dado adquirido, existem muitos muros a ultrapassar Luís Baquero, cirurgião cardiotorácico e diretor do Heart Center do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), em Lisboa CLÁUDIA PINTO DN/ Açoriano Oriental A morte continua a ser um mis- tério, do ponto de vista cientí- fico, filosófico ou humanístico. Acabando por estar ligada a um conjunto de ideias - umas rea- listas, outras mais relacionadas com mitos, a ideia de finitude desencadeia sentimentos difí- ceis de gerir nos seres humanos que começam a percecionar a falta de controlo. O tema tem "atormentado a consciência hu- mana desde que há memória e perpetuou desde sempre a pro- cura de um elixir para prolon- gar a vida, a chamada Pedra Fi- losofal que os alquimistas da Idade Média tanto procuraram. Olhando para a história, a ex- pectativa de vida mundial ao nascer era aproximadamente de

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Comportamentos

Como lidamoscom a morteO mistério e a curiosidade em relação à morte andamde mãos dadas com medos, especulações, crenças e tabus.Sabe-se que a morte é a única certeza da vida, mas ao longoda vida, onde a finitude é um dado adquirido,existem muitos muros a ultrapassar

Luís Baquero, cirurgião cardiotorácico e diretor do Heart Centerdo Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), em Lisboa

CLÁUDIA PINTO

DN/ Açoriano Oriental

A morte continua a ser um mis-tério, do ponto de vista cientí-fico, filosófico ou humanístico.Acabando por estar ligada a umconjunto de ideias - umas rea-listas, outras mais relacionadascom mitos, a ideia de finitudedesencadeia sentimentos difí-ceis de gerir nos seres humanos

que começam a percecionar afalta de controlo. O tema tem"atormentado a consciência hu-mana desde que há memória e

perpetuou desde sempre a pro-cura de um elixir para prolon-gar a vida, a chamada Pedra Fi-losofal que os alquimistas daIdade Média tanto procuraram.

Olhando para a história, a ex-pectativa de vida mundial ao

nascer era aproximadamente de

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40 anos em 1900, 47 anos em1940 e 61 anos em 1980", come-

ça por explicar Luís Baquero, ci-

rurgião cardiotorácico e diretordo Heart Center do Hospital daCruz Vermelha Portuguesa(HCVP), em Lisboa.

E ainda que não se conheçaevidência da ciência ligada à

morte, o mistério continua afa-zer parte dos nossos dias. Teo-rias, mitos, medos, tentativas de

justificações... nada parece sermuito concreto. No entanto, sa-bemos que a esperança médiade vida tem vindo a aumentarsobretudo devido a três fatores,enunciados por Luís Baquero:"O descobrimento de fármacos,como apenicilina, aestrepto-micina e algumas vacinas, a di-vulgação e a disponibilidade de

tecnologias médicas e de saú-de pública para toda a popula-ção, inclusive nos países maispobres, e a mudança no statusda saúde que praticamente se

tornou um direito universal

para todos."E por mais que se saiba tudo

isto, a ideia da morte, não rarasvezes, assusta. "Passamos dofascínio à tentativa de ignorarque somos tão mortais quantoos outros", explica Magda Oli-veira, psicóloga clínica e da saú-de do Hospital CUF Porto. Omodo como se vive a mortetambém depende de um con-junto de aspetos, desde logo, "acultura da sociedade onde a

pessoa se insere e as crenças re-ligiosas ou a ausência delas

(como por exemplo, a espiri-tualidade) têm um papel mui-to importante na maneira comose lida com a morte e como se

gerem os processos de luto", su-blinha.

De muro em muroO primeiro muro a escalar, se-

gundo Magda Oliveira, é preci-samente esta aceitação de que avida é finita e que, por mais do-lorosa que seja a ideia de que aexistência física como a conhe-

cemos tem um fim, é o mais ine-vitável que existe.

O segundo muro já está re-lacionado com a perda e envol-ve um grande sofrimento e dor.

"Apesar disso, é um processonormal. Lidar com a morte

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pressupõe aprender a tolerara dor para poder processá-la,assimilá-la e dar espaço às emo-ções e aos pensamentos", refe-re. Neste muro mental, existeainda o desafio de evoluir no

processo de luto. "Por isso, ve-mos medicação excessiva nes-ta fase e as pessoas a envolve-

rem-se em situações de umaespécie de anestesia emocionalou de um comportamento dis-sociativo como se as coisas nãoacontecessem e como se seruma pessoa mais resiliente fos-

se sinónimo de ser uma pessoaintocável do ponto de vistaemocional", explica.

A esperança média de vidamundial supera os 75 anos deidade e aproximadamente"20% da população dos paísesindustrializados celebra o 90 5

aniversário de vida", constataLuís Baquero. Além da gené-tica, do meio em que vivemose dos estilos de vida que esco-

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lhemos, os avanços tecnológi-cos têm permitido um dia-gnóstico precoce de doenças e

os novos tratamentos farmaco-lógicos têm desempenhado um

papel crucial. "Exemplos, comoo tratamento do VIH, a qui-mioterapia contra o cancro, osfármacos imunossupressoresque permitem a transplantação

de órgãos com sucesso, etc, têmtido um impacto muito signifi-cativo neste aumento da ex-pectativa de vida. Contudo, em-bora a vida se prolongue, osdoentes permanecem doentes,seja pela doença em so ou poroutras decorrentes do próprioenvelhecimento biológico donosso organismo." E acrescen-ta: "O nosso organismo tem li-mites do ponto de vista bioló-gico que podem ser alargadosde forma artificial, no entan-to, cada vez mais existe a cons-ciência geral da importância demanter uma boa qualidade devida em detrimento de umavida longa."

Miguel Castanho, professorcatedrático da Faculdade deMedicina da Universidade deLisboa e investigador principaldo Instituto de Medicina Mole-cular, explica que todos os seresvivos são formados por célulase que as mesmas são compostaspor moléculas, como proteínas,glícidos ou lípidos. "Esta fron-teira é fascinante: como podeum conjunto de matéria inerte(as moléculas) juntar-se e for-mar algo vivo? É como se peçasde Lego conseguissem formaralgo vivo ao associarem-se en-tre si", esclarece.

Comparando cada célula dos

seres vivos a uma casa, se tudofor deixado ao acaso, a mesmaficaria naturalmente desarru-mada. Manter a casa em fun-cionamento sustentado exigeautorregulação através do gas-to de energia em tarefas especí-ficas de arrumação e de limpe-za da casa, diz o professor."Enquanto estiver viva, a célulafará o mesmo : consumirá ener-gia (sob a forma de nutrientes)para contrariar a tendência na-tural de aumento da desordem,evitando assim entrar num es-

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tado de desregulação em queperca a sua sustentabilidade.

Neste sentido, ávida é umaluta com grande dispêndio de

energia contra a desordem.Quando a luta para, a desordem

impõe-se, as moléculas reagemlivremente entre si e chega- se

a um estado imutável de com-pleta estabilidade. É este o pon-to em que as células estão mor-tas", conclui.

O confronto com a perdaO medo de morrer é sempre ummuro difícil de contornar. Dolado dos médicos, é mandatórioinformar os riscos durante a ci-

rurgia ou a convalescença e as

possíveis complicações que po-dem surgir. "Mas há uma gran-de maioria de doentes que, maisdo que a morte, receiam ficar in-capacitados para manter umavida normal e retornar ao queeram antes da cirurgia. O factode ficarem dependentes, de não

poderem retomar a vida normalé, às vezes, mais aterrador do

que apropria morte", salientao cirurgião cardiotorácico.

Mas será a morte o últimomuro das nossas vidas? A psi-cóloga Magda Oliveira consi-

dera que sim mas apenas paraos doentes.

"Para os familiares, muitas ve-

zes, é o primeiro muro a ultra-passar ou um entre muitos", diz.Fazendo a analogia com os sal-tos em barreiras, onde cada eta-

pa é como um muro que tem de

se ultrapassar, obstáculo a obs-

táculo, considera que "a mortedeve fazer parte da educaçãodesde a infância de forma a evi-tar tabus", salienta.

Perante uma situação de luto,a sugestão da psicóloga passapor "não patologizar respostasque são naturais através de umaintervenção farmacológica pre-coce. Há que trabalhar com as

pessoas. A dor e o sofrimento fa-zem parte e é saudável viver es-sas emoções", acrescenta. Deigual modo, não se devem sal-tar etapas nos funerais. "Os ri-tuais associados, nomeada-mente velórios de dois dias,servem para dar tempo à pessoapara se expor e confrontar coma perda e para o cérebro ir en-caixando", diz Magda Oliveira.

Depois, a própria pessoa quesofreu uma perda tem de se per-mitir tolerar a dor e o sofri-mento, mas também os dapró-

pria sociedade, uma vez queexistem muros culturais em re-lação à morte.

No Hospital CUF Porto exis-te um processo de luto anteci-patório que envolve tarefascom os doentes e com os seusfamiliares até porque, da par-te dos últimos, podem surgirsentimentos de impotência pornão conseguiram lidar com o

sofrimento do outro. E então

que surgem os muros seguin-tes e que quem sofre uma per-da tem de aprender a superar.Por exemplo, "aceitar queaquela pessoa morreu, que istoé irreversível e não se voltaatrás; saber processar, ter a ca-pacidade de voltar a orientara nossa vida para as tarefas e as

rotinas depois de uma perda...No fundo, voltarmos a ali-nhar-nos para integrar a mor-te numa trajetória de vida quecontinua a correr.

Outras vezes, temos de des-cobrir a capacidade de investiros afetos que tínhamos poraquela pessoa noutras pessoase noutros projetos", concluiMagda Oliveira. ?