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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE PEDAGOGIA
ALESSANDRA NASCIMENTO SILVA
PRESENÇA DA MULHER NEGRA NA DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR:
DISCUTINDO RELAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES RACIAIS
Orientador: Prof°. Dr. João Maria Valença de Andrade
NATAL/RN
2016
ALESSANDRA NASCIMENTO SILVA
PRESENÇA DA MULHER NEGRA NA DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR:
DISCUTINDO RELAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES RACIAIS
Monografia apresentada à Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito parcial para
obtenção de título de licenciada em Pedagogia.
Orientador: Prof°. Dr. João Maria Valença de
Andrade
NATAL/RN
2016
ALESSANDRA NASCIMENTO SILVA
PRESENÇA DA MULHER NEGRA NA DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR:
DISCUTINDO RELAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES RACIAIS
Monografia apresentada à Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, como requisito parcial
para obtenção de título de licenciada em
Pedagogia
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. João Maria Valença de Andrade – Orientador
Departamento de Práticas Educacionais e Currículo – UFRN
Primeiro/a Examinador/a
Segundo/a Examinador/a
AGRADECIMENTOS
Á José meu pai, e Sandra minha mãe, por todos os ensinamentos passados durante
toda minha vida, a minha imensa gratidão, pelo amor e força dedicada em minha trajetória.
Aos meus familiares, irmãos e irmã, tias/o, primos e avó, pelo carinho e incentivo nos
desafios corriqueiros.
Á todos/as os/as amigos/as, em especial, à Adryelle Oliveira, Sônia Lopes, Richardson
Lima, Thayanne Érica, Louise Guedes, Gustavo Henrique, Danyelle Oliveira, Fernanda
Fernandes, Kelly Oliveira e Pedro Pierote, por acreditarem e compartilharem de momentos
especiais e angustiantes ao meu lado durante os quatro anos de graduação em pedagogia.
Á Rafael Araújo em especial, por tornar minhas tarde mais alegres e floridas durante
três anos na graduação, por presentear-me com o referencial ponta pé desta monografia, por
torna-se um irmão para todos os momentos em minha vida.
Aos meus companheiros e companheiras do Levante Popular da Juventude que me
permitiram navegar pelas mais diversas formações subjetivas e coletivas, cultivando a tornar-
me educadora do povo, além de me permitirem abrir os olhos na minha formação identitária
de mulher negra e reconhecer e lutar contras barreiras impostas a essa população.
Á professora e coordenadora do curso de pedagogia Marisa Sampaio pelo apoio e
ajuda na conclusão de minha graduação, por sua disponibilidade e empenho nesse momento
tão delicado.
Á todos e todas, professoras, bolsistas, supervisoras e professora colaboradora da
Escola Municipal Professora Emília Ramos por se tornarem nas minhas manhãs motivos de
sorrisos e desafios frente ao papel de professora de uma escola pública. Agradeço, também, ao
PIBID/pedagogia por se fazer presente e possibilitar torna-me educadora durante dois anos de
experiência na E.M.P.E.R.um exemplo de escola transformadora e diversa.
Por fim, ao meu orientador, professor João Maria Valença de Andrade, que me
permitiu compreender de maneira mais ampliada a trajetória da população negra no Brasil,
por aulas dinâmicas e inovadoras, além de topar e contribuir me acompanhando na elaboração
e afirmação da importância e escolha da temática desse trabalho, não foi fácil, mas foi
possível.
E a todas e todos que de forma direta ou indireta contribuíram com palavras,
indicações de leituras, um gesto carinhoso, etc., fazendo parte da minha formação pessoal e
profissional, a minha imensa gratidão. Obrigada!
Me gritaram negra!
Tinha sete anos apenas,
apenas sete anos,
Como sete anos?!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra!
"Sou por acaso negra?" - me disse
SIM!
"O que é isso, ser negra?"
Negra!
Eu não conhecia a verdade triste que isso
ocultava.
Negra!
E me senti negra,
Negra!
Como eles diziam
Negra!
E retrocedi
Negra!
Como eles queriam
Negra!
E odiei meus cabelos e meus grossos
lábios
e olhei apequenada minha carne tostada
E retrocedi
Negra!
E retrocedi...
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
E passava o tempo,
e sempre amargurada
Continuava carregando às costas
minha carga pesarosa
E como pesava!
Alisei meu cabelo,
pus pó-de-arroz na cara,
e em minhas entranhas retumbava a
mesma palavra
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Até que um dia em que retrocedia,
retrocedia e estava prestes a cair
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra!
E daí?
E daí?
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Sou negra!
De hoje em diante não quero
alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles
que para evitar - segundo eles -
que para evitarmos algum dissabor
Chamam os negros de gente de cor
E de que cor?!
NEGRO
E como soa lindo!
NEGRO
E olha esse ritmo!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO
Por fim
Por fim compreendi
POR FIM
Já não retrocedo
POR FIM
Avanço segura
POR FIM
E bendigo os céus porque quis Deus
que negro retinto fosse minha cor
E agora compreendi
POR FIM
Tenho a chave!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
Negra sou!
(Poema “Me gritaram Negra!” da
compositora Victoria Santa Cruz)
RESUMO
O presente trabalho teve como designío investigar as relações de gênero e as relações raciais
na trajetória de mulheres negras professoras universitárias, de maneira a compreender seu
percurso desde o espaço educativo inicial, a relação familiar, e a sua formação contínua até a
ocupação do espaço de docência do ensino superior. Para esclarecer as ideias desse trabalho, a
pesquisa é realizada, de início, com uma breve abordagem acerca da história das mulheres
negras no Brasil, desde período colonial com a escravidão, e no pós-escravidão, elucidando as
consequências sofridas por essa população através de práticas discriminatórias como o
racismo, na sua maneira brasileira. Ainda, abordando incialmente, as relações raciais e de
gênero vivenciadas por mulheres negras, além das políticas públicas voltadas a promoção e
igualdade deste grupo, como as ações afirmativas, cotas, e políticas no âmbito do debate de
gênero, como Lei Maria da Penha, entre outras. Na sequência, e finalização da pesquisa, uma
breve discussão sobre a trajetória das professoras negras no ensino superior e a perspectiva de
duas professoras da UFRN, com relatos de suas vidas profissionais e pessoais permeadas
pelas relações de gênero e raça. O objetivo é compreender a trajetória dessas mulheres a partir
das relações citadas, destacando o processo histórico, social, cultural e político em que essas
mulheres estiveram e encontram-se no espaço e tempo atual. Para além do referido, espera-se
também, com este projeto, a possibilidade de estimular a inclusão das mulheres negras,
através da intensificação da reflexão acerca das desigualdades vivenciadas pelas professoras
universitárias na sua trajetória e cotidiano. A metodologia aplicada baseia-se na pesquisa
bibliográfica utilizando-se de aporte teórico como Gomes (1995), Oliveira (2006), Reis
(2008), Brasil (2005). Metodologicamente a abordagem se amparou na pesquisa qualitativa,
em que fizeram parte desta construção duas sujeitas interlocutoras, sendo ambas as
professoras negras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Para a construção dos
dados e informações da pesquisa, a técnica utilizada foi à entrevista aberta composta por
perguntas relacionadas ao tema, sendo todas direcionas as professoras da UFRN. A pesquisa
apresentou nas falas das entrevistadas um histórico das relações que afetam a trajetória das
professoras negras em seu processo de formação que perpassam por racismo e sexismo.
Palavras-chave: Professoras negras. Relações de Gênero. Relações Raciais. Trajetórias.
A todas as mulheres negras que a cada dia defrontam-se com
barreiras sociais e lutam pela busca da liberdade e visibilidade.
SUMÁRIO
1INTRODUÇÃO....................................................................................................................09
2 UMA HISTÓRIA DAS MULHERES NEGRAS NO BRASIL.......................................12
2.1 O PERÍODO ESCRAVOCRATA E AS MULHERES NEGRAS................................12
2.2 A POPULAÇÃO NEGRA PÓS-ABOLIÇÃO...............................................................14
2.2.1 O racismo à brasileira............................................................................................19
2.3 MULHER NEGRA: RELAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES RACIAIS................20
2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NEGRAS............................................23
2.4.1 Políticas dirigidas ao campo racial (ações afirmativas).....................................24
2.4.2 Políticas voltadas á promoção da igualdade de gênero......................................29
3 TRAJETÓRIA DA MULHER NEGRA PROFESSORA UNIVERSITÁRIA..............31
3.1NARRATIVAS SOBRE EXISTÊNCIAS ATRAVÉS DO TEMPO............................33
4 CONSIDERAÇÕES............................................................................................................53
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................56
APÊNDICE
11
1 INTRODUÇÃO
A presente monografia trata de apresentar uma discussão sobre a importância do
protagonismo das mulheres negras nas instituições de ensino e pesquisa de nível superior,
enquanto docentes universitárias. Dessa forma, buscando observar como as relações de gênero
e raciais interferem em suas trajetórias de vida, abrangendo desde sua formação acadêmica às
relações sociais.
Compreende-se que este tema tem uma dimensão ampla e relevante que abrange diversas
discussões que envolvem aspectos de processos históricos, tanto no contexto brasileiro, como
no contexto mundial. É possível observar que a presença da mulher na sociedade é marcada
por variados conflitos, desafios, desigualdades sociais, opressões, lutas e conquistas, as quais
ainda refletem nos dias atuais e na longa caminhada travada pela busca da paridade de gênero
e da igualdade de direitos.
Discutir a presença da mulher negra na docência universitária é dar visibilidade a conflitos
existentes, que muitas vezes são camuflados, o que nega direitos garantidos
constitucionalmente. Logo, é no espaço de atuação do contexto educativo que as mulheres
encontram a possibilidade de luta e afirmação da identidade negra, além de pautar propostas
de discussão das relações de gênero e raça nas universidades.
A escolha da temática se deu pela relevância de discutir a presença e a garantia das
mulheres negras nos espaços de direção, poder e formação de opinião, como os
estabelecimentos de ensino superior. Salientando também sua escolha como objeto de afeto,
de identificação, de luta diária, individual e coletiva, e do reconhecimento de espaços negados
durante anos às mulheres, principalmente, as negras. Considerou, também, a pertinência para
se problematizar pesquisas que indicam que, o maior número de mulheres vivendo em
situação de pobreza e sem escolarização formal (analfabetas) são as mulheres negras.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é compreender como se deu a caminhada de um
determinado grupo de mulheres negras, as docentes do ensino superior, de maneira a
compreender seu percurso desde espaço educativo inicial, a relação familiar, e a sua formação
contínua até tornarem-se professoras do ensino superior. Assim, foi desenvolvido a partir da
revisão de literatura deste campo, além da construção de dados e informação por meio de
entrevistas que foram realizadas com mulheres docentes e negras da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Tais professoras foram selecionadas por serem as únicas mulheres
negras do Centro de Educação (CE) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Buscando, assim, investigar como as relações de gênero e raciais interferiram no seu
processo de formação e chegada à docência do ensino superior.
Como objetivos específicos este trabalho almeja: i) Descrever e analisar o processo de
formação identitária da mulher negra professora universitária; ii) Verificar a questão do
racismo e machismo nos espaços educacionais do ensino superior; iii) Levantar as formas de
enfrentamento das práticas do racismo e machismo na perspectiva das entrevistadas.
Com isso, pretende-se também observar a particularidade da mulher negra numa
perspectiva racial e de gênero. Essas mulheres comparadas às mulheres não negras vivenciam
concepções de vida, família e inserção social opostas e caminhadas de maneira diferenciada.
Essas concepções introduzidas as variáveis de gênero e raça reproduzem uma extensa
exclusão das mulheres negras na sociedade brasileira. Marcadas pela histórica negação de
direitos fundamentais, o que dificulta sua emancipação, pretende-se nesta pesquisa
problematizar: i) como as relações de gênero e as relações raciais interferem na formação da
mulher negra nos espaços de docência do ensino superior?
A metodologia utilizada nessa monografia apoia-se, como procedimento de alcance de
informações, na pesquisa qualitativa, por meio de entrevista aberta e gravada, além de
pesquisas bibliográficas e revisão de literatura referente ao campo discutido, o que inclui
livros, artigos científicos, teses e dissertações, além de documentos que tratam sobre o debate
de mulheres, formação docente, relações raciais e de gênero.
Dessa forma, serão apresentados, nos próximos dois capítulos, algumas considerações
essencialmente relevantes e explicativas ao tema proposto, seguindo uma linha que vai do
passado à atualidade das professoras negras do ensino superior.
No primeiro capítulo será abordada de maneira breve á história das mulheres negras no
Brasil, como e de onde foram trazidas, como estavam inseridas na escravidão no período
colonial, e também como está população vive após a Lei Áurea de 1888, assinada pela
princesa Isabel. Faz-se ainda o destaque na atualidade de quais papeis e lugares em que os
negros e as negras ocupam na sociedade brasileira. Seguido disso, será abordada, brevemente
aspectos relacionados a questões raciais e de gênero, trazendo as concepções de raça e gênero,
e que processos envolvem ambas as relações. Algumas políticas públicas voltadas a esse
grupo também serão verificadas, tanto as políticas voltadas à população negras, ações
afirmativas, cotas, etc., como as políticas voltadas especificadamente as mulheres, como a Lei
Maria da Penha, entre outras.
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No segundo capítulo, a exposição demostrará a trajetória de mulheres negras no espaço
acadêmico enquanto professoras do Ensino Superior, seguindo dos relatos produzidos por
meio de uma entrevista aberta.
E para as Considerações finais, espera-se que a discussão feita neste trabalho possa
contribuir de maneira significativa, principalmente, a vida de mulheres negras que enfrentam
cotidianamente as barreiras sociais impostas ao seu grupo, além de provocar a reflexão aos
leitores da importância dos grupos diversos na construção de uma sociedade mais justa e
igualitária. Espera-se, também, que essa monografia sensibilize corações e mentes para
construção de uma nova sociedade.
Ainda nas considerações finais serão retomadas as consequências de sistemas de
opressões como o racismo e sexismo no quadro brasileiro, destacando o lugar em que as
mulheres negras ocupam na sociedade e como o percurso para tornassem professora do ensino
superior pode ser uma trajetória marcada por ambas as relações: raciais e de gênero.
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2 UMA HISTÓRIA DAS MULHERES NEGRAS NO BRASIL
A história brasileira é permeada pelas relações históricas de gênero e mais adiante
constituída pelos debates étnico-raciais. Ao reunir os conhecimentos passados sobre o grupo,
em específico, das mulheres negras, observa-se que a trajetória do grupo dessas mulheres é
atravessada por processos de lutas e reivindicações.
Na particularidade brasileira, recorte o qual fará parte desse trabalho, essas lutas foram
travadas desde a escravidão, a dominação senhorial, e após a Abolição com a Lei Áurea de
1888, até os dias atuais, pela afirmação de uma identidade constituída de maneira diferenciada
das demais mulheres, e contra práticas racistas e sexistas no seu dia a dia.
Compreender a mulher negra dentro da história brasileira requer retomar períodos,
acontecimentos, mudanças, entre outros aspectos, em que essas mulheres foram e encontram-
se inseridas na sociedade. Visto que para Matta (1987), o Brasil “é um todo social altamente
hierarquizado, com muitas camadas ou estados sociais diferenciados e complementares. Tão
hierarquizada que até as formas nominais de tratamento, isto é, o modo de uma pessoa se
dirigir a outra, estavam reguladas em lei [...]” (MATTA, 1987, p. 65).
Para início, far-se-á necessário entender de onde, como, por quem e para que finalidades
essas mulheres foram trazidas e, também, ao que foram submetidas. Assim, será possível
salientar que consequências se concretizaram ao atravessarem seus percursos.
2.1 O PERÍODO ESCRAVOCRATA E AS MULHERES NEGRAS
A mulher negra teve tragicamente um passado de submissão ao trabalho forçado,
ocorrido durante a escravidão no Brasil, nos períodos colonial e imperial. Eram trazidas
forçadamente de países do continente Africano. No Brasil, eram submetidas a ocupações,
como “ama-de- leite”, “mães-pretas”, “mulher reprodutora” e “escrava sexual” (Castro,
1999).
Dessa forma, ao mesmo tempo em que essas mulheres eram forçadas a cumprirem tais
ocupações, como amamentar e cuidar dos filhos (crianças brancas) de seus senhores, servirem
de escravas sexuais, ainda eram subjugadas a castigos e condições subumanas. Para melhor
compreender as consequências de um passado obscuro, Botelho e Reis (2003), compreendem
sobre a escravidão:
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Relação social caracterizada pela sujeição pessoal de um indivíduo a outro.
Significava dizer que o escravo, além de ser propriedade do senhor, tinha sua
vontade sujeita à autoridade do dono, e seu trabalho poderia ser obtido pela
força. O cativo podia ser comprado, vendido, alugado, doado, leiloado,
hipotecado, etc. Os direitos do senhor, como proprietário do escravo, eram
assegurados por lei, permitindo-lhe explorar o seu trabalho, castiga-lo e até
mata-lo, embora neste caso tivesse prejuízo, pois o trabalho do escravo é que
assegurava sua posição e riqueza (BOTELHO; REIS, 2003).
A partir da metade do século XIX a escravidão no Brasil passou a ser contestada pela
Inglaterra, potência econômica interessada a ampliar seu mercado consumidor. O Parlamento
Inglês aprovou a Lei Bill Aberdeen (1845), que proibia o tráfico de escravos, dando o poder
aos ingleses para abordarem e aprisionarem navios de países que faziam esta prática.
Em 1850, o Brasil cedeu às pressões inglesas e aprovou a Lei Eusébio de Queiróz que
acabou com o tráfico negreiro. Em 28 de setembro de 1871 era aprovada a Lei do Ventre
Livre que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data. E no ano de
1885 era promulgada a Lei dos Sexagenários que garantia liberdade aos escravos com mais de
60 anos de idade.
Porém, é importante ressalvar que essas leis não podem ser compreendidas como uma
dádiva do governo, pois envolveu um longo processo de luta e resistência de negros e negras.
Os escravos foram os próprios protagonistas da superação do sistema escravocrata. Muitas
estratégias foram utilizadas na resistência e combate a esse sistema, como: resistir ao trabalho,
fugas temporárias, colaboração com a compra de alforrias, formação de quilombos, ajuda
mútua entre eles.
O que acontece é que muito do que foi produzido sobre nossa história parte de um
discurso do opressor, do detentor dos meios de comunicação, poder e educação formal.
Assim, ocultando vozes da população negra na mídia e na grande circulação social. Havia
aqui um grande embate entre a disputa da propriedade privada contra a garantia dos direitos
humanos de liberdade.
Embora promulgada a Lei Áurea de 1888, os “ex-detentores” dos escravizados,
ludribiavam os direitos que deviam ser garantidos pela lei e sustentavam suas práticas de
submissão ao trabalho forçado. A Lei do Ventre Livre, por exemplo, mesmo dando liberdade
aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data continuavam a viver sob tutela dos
senhores, dessa forma submetendo-se ao domínio e ao cumprimento de “deveres” imposto
pelos senhores de escravos.
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A escravidão existiu na sociedade brasileira do século XVI ao XIX e só foi legalmente
abolida no ano 1888. Mas é importante problematizar: o projeto de abolição no Brasil foi um
projeto de inclusão racial e social?
Algumas características atualmente presentes na sociedade brasileira podem ser
decorrentes da escravidão e de um processo de abolição que não contava com nenhum tipo de
auxílio ou projeto que facilitasse o grande número de negros libertos a serem devidamente
inseridos na sociedade brasileira.
Se a lei deu a liberdade jurídica aos escravos, a realidade foi cruel com muitos deles,
inclusive com as mulheres. Sem moradia, sem condições econômicas e sem assistência do
Estado, muitos negros passaram por dificuldades após a “liberdade”. Muitos não conseguiam
empregos e sofriam preconceito e discriminação racial. A grande maioria passou a viver em
habitações de péssimas condições e a sobreviver de trabalhos informais e temporários.
Tais acontecimentos durante este período tornaram-se arraigados e criaram estereótipos
de uma figura de mulher negra com características, “comportamentos”, e espaço que eram
determinados, ou seja, eram “impulsionadas” a ocuparem lugares subalternos na sociedade
brasileira.
2.2 A POPULAÇÃO NEGRA PÓS-ABOLIÇÃO
Após a Lei Áurea a população negra passou a se concentrar na busca de moradia em
regiões precárias e afastadas dos bairros centrais das cidades. Esses locais se referiam as
favelas, “vista como um lugar onde reina a pobreza, marcado pelo descaso do poder público,
da violência, da desordem herdada pelas desigualdades sociorraciais sofridas pela população
desde o período da Abolição da escravatura” (REIS, 2008, p. 141).
As consideradas favelas, comunidades, guetos, ou bairros foram/são constantemente
atribuídas a estereótipos e estigmas. Essas nomenclaturas estão diretamente ligadas á
processos históricos de lutas e reivindicações e as relações sociais que foram constituídas e
permeadas na sociedade civil. Elas ainda podem ser atribuídas a uma ampla discussão
política, cultural, social e econômica por trás de suas definições.
O fato de atribuídas a estereótipos e estigmas provavelmente se deve pela ausência do
Estado brasileiro nestas localidades, assim favorecendo a uma violência simbólica desse lugar
e aos seus habitantes que em sua maioria constituem negros e negras.
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Se utilizar das nomenclaturas “favela” ou “favelado” tem ao longo dos anos criado um
caráter depreciativo, construindo no imaginário brasileiro uma série de mitos ligados à
violência, a criminalidade, a prostituição, a pobreza, a sujeira nesses lugares. Tais
caracterizações refletem a ausência do Estado e de políticas públicas que geram uma
manutenção de processos de exclusão, marginalização, estigmas e estereótipos.
Contudo, mesmo diante dessas considerações, são nesses lugares que boa parte da
identificação da nossa cultura e, cultura que tem grande herança dos povos africanos, se
manifesta. As práticas de jogos de capoeira, o hip-hop, o samba, o funk, o pagode, a
grafitagem, o rep, etc., compõem a produção e herança cultural brasileira.
Diante disso, visto a omissão e ausência governamental a lugares e grupos específicos,
uma questão primordial foi enaltecida em meados de 1964, feita pelo sociólogo Florestan
Fernandes (1920-1995). Em sua obra conhecida como A integração do negro na sociedade de
classes, ele aborda a centralidade do problema:
A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem
que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de
assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de
trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela
manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer
outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto
prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...)
Essas facetas da situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma
espoliação extrema e cruel (FERNANDES, 1978, p. 15).
Esse novo regime, apesar de “libertar” os negros, não veio para democratizar a sociedade
ou possibilitar uma maior mobilidade social. A nova estrutura manteve intocada uma
organização elitista e excludente, segregando e marginalizando as populações negras.
Outro fato que também foi observado no pós-abolição: foram formuladas políticas que
visavam à ideologia do branqueamento da população pela eliminação simbólica e material dos
negros. Houve também o fortalecimento de um mito da democracia racial. Esse episódio
contribuiu para que as próprias pessoas negras incorporassem a ideologia do branqueamento,
o que reforçou a impressão de marcas negativas na sua subjetividade, além de também
imprimir tais marcas nas pessoas que os discriminam. A ideologia do branqueamento como
também o mito da democracia racial que tenta transpassar uma relação harmoniosa entre todas
as raças brasileiras “são consideradas armas para ocultar à verdadeira ‘identidade’ negra”
(FRY, 1995/1996, p. 13).
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Segundo o Censo Demográfico de 2010 (IBGE) tem-se que 51% da população brasileira é
formada por indivíduos negros e pardos, em que mais da metade dessa população habita nas
zonas periféricas, ou seja, nas conhecidas favelas (lugar em que o Estado não se faz presente,
negligenciando e omitindo-se aos direitos desse conjunto), reforçando assim, também para o
censo de 2010.
De acordo com o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres
negras no Brasil (2013), a representação de mulheres negras em 2009, respondiam por cerca
de um quarto da população brasileira. Eram quase 50 milhões de mulheres em uma população
total que, naquele ano, alcançou 191,7 milhões de brasileiros(as).
Os dados ainda mostram que os índices de alfabetização e escolaridade menores estão
associados às mulheres negras em comparação as mulheres e homens de cor branca, o que
gera consequentemente os trabalhos de menores rendas, menores posições no mercado de
trabalho, sem assistência alguma, e ainda correndo o risco de serem vítimas do “turismo
sexual”.
Algumas outras características podem ainda ser observadas, como o maior número da
população negra e parda nas classes “D” e “E”, camadas de menores rendas e menores níveis
educacionais, dessa forma agravando a uma situação degradante.
Segundo o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras
no Brasil (2013) e os Indicadores da Qualidade na Educação: Relações Raciais na Escola
(BRASIL, 2013), em pesquisas realizadas pelas instituições como o IPEA- Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, o Censo do IBGE (2010) – Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas, e PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2011), as tabelas a
seguir, divididas nos campos de desigualdade social, mercado de trabalho/desemprego e
educação, podem revelar um quadro desigual implementado na estrutura social brasileira.
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TABELA 1
Distribuição da população por sexo e cor/raça, segundo a situação de pobreza definida
com base no Programa Brasil Sem Miséria – Brasil (1999 e 2009)
(Em %)
População Extremamente pobre Pobres Vulneráveis Não pobres
1999 2009 1999 2009 1999 2009 1999 2009
Brancos 5,7 3,0 10,8 5,6 43,8 38,8 39,7 52,6
Mulheres Negras 16,0 7,4 22,9 13,4 46,6 53,0 14,5 26,3
Mulheres brancas 5,7 3,1 10,9 5,5 43,8 38,9 39,6 52,5
Homens negros 16,1 7,0 23,0 12,9 43,1 52,2 14,9 27,9
Homens brancos 5,6 2,9 10,8 5,6 43,8 38,7 39,8 52,8
Fonte: Ipea et al. (2011). Obs.: a população negra é composta por pretos e pardos.
TABELA 2
Condição da população por sexo e cor/raça, segundo a situação de mercado de trabalho
e desemprego pobreza definida com base no Censo do IBGE/2010.
1) No rendimento médio do trabalho por raça/cor, os homens brancos recebiam o valor mensal
de R$ 1.817,70; as mulheres brancas, R$ 1.251,87; os homens negros, R$ 952,14; e as mulheres
negras, R$ 702,17 (IBGE/2010);
2) Segundo o estudo de 2012 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na faixa etária de
15 a 24 anos, as jovens mulheres negras expunham os maiores índices de desigualdades, com
taxas de desemprego de 25,3%. O número era 12,2% superior ao grupo de jovens homens
brancos
3) 8,5% da população brasileira é extremamente pobre, sendo 70,8% dela constituída por
famílias negras. Nesse grupo incluem-se sem rendimentos ou as que vivem com renda per capita
de até R$ 70,00 (IBGE/2010).
Fonte: Censo IBGE (2010). Obs.: a população negra é composta por pretos e pardos.
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TABELA 3
Condição da população por sexo e cor/raça, segundo a situação educacional no Brasil,
definida com base no Censo do IBGE/2010.
1) Das 821.126 crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 512.402 são negras
(Censo/IBGE, 2010);
2) Entre os jovens brancos de 15 a17 anos, 58% haviam concluído o Ensino
Fundamental, enquanto que entre os negros esse percentual era de 44%
(Censo/IBGE, 2010);
3) Em 2010, 55% de jovens brancos, de 15 a 17 anos, estavam cursando o Ensino
Médio, enquanto o percentual de negros era de 41% (Censo/IBGE, 2010);
4) Dos jovens brancos de 18 a 19 anos concluíram o Ensino Médio, 47% eram
brancos e apenas 29% eram negros (Censo/IBGE, 2010);
5) O número absoluto de pessoas analfabetas entre jovens negros de 15 a 29 anos é
mais de duas vezes e meia maior do que entre brancos (Censo/IBGE, 2010);
6) A frequência líquida no Ensino Médio é de 49,2% maior entre os jovens brancos
do que entre os negros (IPEA, 2008);
7) A diferença de dois anos de estudo entre brancos negros mante-se praticamente
inalterada desde o início do século XX. A média atual de estudos das pessoas de
25 anos ou mais de idade entre os adultos brancos é de 8,2 anos e dos adultos
negros é de 6,4 anos (PNAD/IBGE, 2011);
8) Do total de pessoas com 10 anos ou mais no país, 8,31% possuem Ensino
Superior completo, sendo 6,09% brancos e 2,04% negros (Censo/IBGE, 2010);
9) Em 30 anos, o percentual de pessoas brancas com diploma universitário aos 30
anos de idade passou de 5% para 18%, sendo que o percentual de pessoas negras
na mesma situação passou de 0,7% para 4,3%. O hiato racial quase triplicou para
13 pontos nas últimas três décadas (IPEA, 2008).
Fonte: Censo IBGE (2010), IPEA (2008) e PNAD (2011). Obs.: a população negra é composta por pretos e pardos.
Esses dados dão conta de uma realidade clara em que está posta uma hierarquia das
oportunidades sociais, quando relacionadas ao gênero, a classe, e a cor, seguindo dessa forma
a lógica de uma pirâmide, em que no seu ápice encontram-se os homens brancos, logo abaixo
as mulheres brancas, em seguidas os homens negros e por fim no mais inferior da pirâmide as
mulheres negras. Essas tripla discriminação, que acontece com as mulheres negras desde a
escravidão, é histórica, perpassa ao social, cultural, econômico e político até nos dias atuais.
Vale considerar também que mesmo os dados apontando a três campos específicos, ao
pesquisarmos a inserção da população negra, em especial as mulheres negras, no meio social,
todos os ângulos irão apontar uma presente desigualdade social. Isso, desde campos da saúde
ou, no espaço doméstico.
Essas condições também podem revelar claramente como os processos sexistas e
racistas estão fortemente arraigados na sociedade. Ambas as ideologias geram frequentemente
um quadro de violência seja em meio familiar, no trabalho, na escola, nas universidades, no
21
dia-a-dia de todo/a brasileiro/a. Dessa forma perpetuando-se numa estrutura desigual, ora
simbólica, ora explícita marcando negativamente o país.
2.2.1 O racismo à brasileira
Diante de todo um cenário formado a partir de consequências históricas, sociais, politicas,
uma das características da sociedade brasileira, decorrente do período escravista na sua forma
de tratamento aos negros, é o racismo, “um sistema que afirma a superioridade de um grupo
racial sobre outros (SANTOS, 1984, p.11)”.
No Brasil, o racismo esse ocorre de forma velada/camuflada, o que muitas vezes parece
não deixar “evidente” sua existência. Dessa forma, o “racismo à brasileira”, contribui e se
apoia no mito da “democracia racial”, que tenta explicitar uma relação harmoniosa entre
brancos e negros no país. Este, por sua vez, pode ser desmistificado com dados que
evidenciam o negro num quadro de desigualdade racial e social, além de violação de direitos
dessa população.
A prática racista no Brasil, na sua forma sutil chega às mulheres negras através de
estereótipos, imposições, até mesmo relacionadas à sua condição de gênero. Para Cardoso
“[...] o preconceito disfarçado ou irrefletido conduz à negação de direitos” (OLIVEIRA, 2004,
p. 85).
De acordo com Oliveira (2006), a idealização da mulher negra, está muitas vezes
associada a estereótipos e concepções, atribuídas a termos do tipo escrava, doméstica,
lavadeira e outros, que evidenciam uma descriminação e afirmação de uma suposta
superioridade de uma classe sobre a outra. Essas atribuições de desqualificação ás mulheres
negras, ofuscam um longo processo de luta e resistência dessas mulheres.
Frente a um cenário de obstáculos posto por uma sociedade machista, patriarcal e racista,
dá-se o destaque das mulheres negras que em especial, constroem sua identidade nadando
entre duas águas profundas: a da relação de gênero e a das relações raciais (OLIVEIRA,
2006).
Portanto, compreender e discutir a trajetória das professoras mulheres negras no espaço
universitário é oportunizar entender seu protagonismo e sua construção identitária permeadas
pelas relações raciais e de gênero. Professoras as quais não deixam dúvidas sobre a aquisição
e oportunidade desiguais tanto do seu capital cultural quanto social por um sistema que tem
por premissa segregar esse segmento social. Isso sendo imposto através de barreiras até a sua
22
chegada à posição de profissionais do ensino superior na Universidades Federal do Rio
Grande do Norte.
Com isso, o educador Paulo Freire (2011, p.68), nos impulsiona a tarefa de “aprender a
construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à
aventura do espirito”.
2.3 MULHER NEGRA: RELAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES RACIAIS
Após Lei Áurea (1888), e pós Ditadura Militar (1964-1985), o Brasil viveu mudanças
primordiais na sua trajetória de formação sociocultural, econômica e histórica. Mudanças que
refletiram desde a erradicação do trabalho forçado e escravo, até a reformulação da
Constituição Federal de 1988. Essas transformações podem ser percebidas nas expressões
como a afirmação da identidade negra, na luta e resistência desse grupo, por meio de suas
organizações sociais, como o Movimento Negro.
Nessas construções, conflitos e lutas, estão inseridas as mulheres negras que
mergulham contra duas grandes barreiras decorrentes das relações construídas durante a
história: relações de gênero e relações raciais. Tais conflitos se desenrolam durante a trajetória
dessas mulheres, em que podem influenciar seu perfil e amoldar sua identidade.
É durante a década de 1970, que surge o termo “gênero” com intuito de discutir a
diferença sexual (SOIHET,1997). Dessa forma, é importante salientar que os termos gênero e
sexo estão relacionados, porém não mantém o mesmo significado, sendo essa subdivisão
importante para compreensão das relações construídas culturalmente entre mulheres e
homens.
No interior da população brasileira, mulheres negras enfrentam, desde suas infâncias,
um número considerável de barreiras sociais na busca de melhores condições de vida. Isso
pode ser observado na realização de estatísticas oficiais as quais foram citadas anteriormente
no trabalho. Nos dias atuais, permanecem ainda profundas desigualdades permeadas pelas
relações comparativas entre mulheres negra, não negras e homens, em especifico os brancos,
desigualdades que decorrem, também, da associação do racismo e sexismo na sociedade.
Sexismo é um conjunto de práticas, crenças e valores que defende a
superioridade de pessoa de um determinado sexo (geralmente do homem em
relação à mulher) identidade sexual (em geral a heterossexualidade em
relação à homossexualidade, bissexualidade, etc.) com relação às demais. O
sexismo contra as mulheres é também chamado de machismo (MEC, 2013,
p. 42).
23
Segundo Joan Scott (1990, p. 51 apud LOURO, 1994, p. 32) considera-se: “Gênero:
uma categoria útil para análises históricas”. Para essa autora, a proposta é de que uma
procurar na leitura da história seja realizado, e que realce a esta categoria as condições de raça
e de classe.
Posteriormente, debates foram realizados em que a pauta das condições de gênero,
raça e classe fossem articuladas e levadas em consideração nas relações sociais estabelecidas
nas sociedades como parte da construção do sujeito. No contexto de organização das
mulheres, espaços para discussões, lutas, e afirmação foram se constituindo, movimentos com
temáticas específicas para cada grupo considerado excluído e marginalizado. Nesse sentido
surge o feminismo negro com o intuito e pensamento de defesa que o sexismo, a opressão de
classe, de gênero e racismo estão diretamente ligadas.
Nos últimos cinquenta anos as lutas das mulheres negras se intensificaram e
elas ampliaram sua presença no cenário político nacional; as organizações de
mulheres negras fizeram uma interação entre a luta feminista e as questões
raciais e fortaleceram os movimentos negros, permitindo a incorporação do
racismo como uma variável das desigualdades, inclusive entre mulheres
(BRASIL, S.P.M. 2013, p. 9).
Essa forma de organização leva em consideração que as experiências do ser mulher e
negra não devem ser pensadas de maneira repartida, mas que devem ser pensadas juntas,
levando em consideração que cotidianamente ambas as experiências se reforçam de modo
mútuo. Num sentido mais amplo o movimento feminista é reconhecido como propulsor na
luta para abolir as desigualdades vivenciadas por mulheres.
Nesse processo é importante destacar o que se entende por raça: uma construção social
forjada nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas,
e nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje
totalmente superado. Cabe aqui esclarecer, também, que o termo raça é utilizado com
frequências nas relações sociais para informar como determinadas características físicas,
como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem, e até mesmo
determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade.
No entanto, o termo “raça” foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em diversas
situações, passa a utiliza-lo com sentido político e de valorização do legado deixados pelos
africanos. Faz-se importante também destacar que o emprego do termo étnico, utilizado na
expressão étnico-racial, é uma forma de marcar essas relações tensas devidas as diferenças na
cor da pele e traços fisionômicos, o são também devido a raiz cultural plantada na
24
ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e princípios das de origem
indígena, europeia, asiática. Para Gomes (2011, p. 110), que leva em consideração as
interpretações do Movimento Negro e de vários estudiosos do campo das relações raciais no
Brasil, raça é entendida como:
[...] uma construção social e histórica. Ela é compreendida também no seu
sentido político como uma ressignificação do termo construída na luta
política pela superação do racismo na sociedade brasileira. Nesse sentido,
refere-se ao reconhecimento de uma diferença que nos remete a uma
ancestralidade negra e africana. Trata-se, portanto, de uma forma de
classificação social construída nas relações sociais, culturais e políticas
brasileiras (GOMES, 2011, p. 110).
A possibilidade de agregar as duas categorias de raça e gênero não se trata apenas de
uma escolha, mas de uma realidade constatada, o ser mulher e negra é permear por dupla, por
vezes tripla opressão. Nesse contexto histórico, político e cultural que as mulheres negras
encontram-se na sociedade.
Dessa forma, pensar na liberdade das mulheres negras, implica pensar o fim das
opressões sexistas, raciais, de classe, em que todas as pessoas devem fazer parte nesse
processo. Para alguns estudos (IPEA, IBGE, PNAD), e posicionamentos, dentro das estruturas
de poder, a mulher negra se incluí de maneira diferenciada às mulheres brancas, essas
ocupando melhores espaços e prestígios comparados às mulheres negras.
A história da organização das mulheres negras no Brasil inicia-se a partir do século
XIX com a criação de associações e irmandades. Já durante o século XX, inicia-se a fundação
de organizações desde 1950, ano em que o Conselho Nacional de Mulheres Negras foi criado
no estado do Rio de Janeiro. Tais organizações vêm, durante anos, mantendo um papel
fundamental em combater o racismo e sexismo, além também de reconceitualizar o
significado de democracia e cidadania à nação brasileira.
É nesse contexto do movimento feminista negro (Feminismo negro) em que se podem
destacar duas importantes protagonistas nas causas das mulheres negras no Brasil. Uma delas
Lélias Gonzales, doutora em antropologia, militante, co-fundadora do Movimento Negro
Unificado (MNU). A outra, Maria Beatriz Nascimento, poetisa, ativista, historiadora,
pesquisadora sobre quilombos e ex participante da fundação do Instituto de Pesquisas e
Cultura Negra, no Rio de Janeiro (IPCN). Como afirmam Schumaher e Vital Brasil (2007),
“ambas deixaram como legado o entendimento imprescindível da necessidade de se ancorar
as ações na ‘feminização’ das questões raciais e na ‘racialização’ do ideário feminista”.
25
Atualmente, muitas lutas ainda são travadas pelas mulheres negras, para que consigam
conquistar seu espaço na academia, necessitam estudar mais que homens e mulheres brancas,
visto que a lógica da estrutura social, dos papeis atribuídos às mulheres, como o do cuidado,
do lar e dos filhos, além da disputa de poder e consequências dos processos históricos, criam
barreiras estruturais, reforçando á discriminação de raça e gênero.
A ideia de que as funções essenciais da sociedade vão ser exercidas por homens,
impõe que as mulheres são uma espécie de maioria minoritária, sempre vistas como o
segundo sexo: são pensadas e tratadas como minorias. Segundo Louro (1994, p. 36), a
supremacia social masculina e a subordinação feminina são explicadas como sendo de algum
modo inevitáveis, ou, para alguns intérpretes, como preferíveis.
Há a necessidade de se entender e conhecer os elementos que rodeiam as discussões
acerca de gênero e saber, também, a trajetória de lutas e embates travados pelas mulheres
negras. Em uma sociedade aprendemos que tais comportamentos opressores são “naturais” e
somos levados a aceitar tal desigualdade, inserindo características que nos depreciam e nos
constrangem cotidianamente (ROSADO; LAMPHERE, 1979).
2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NEGRAS
Ao longo dos processos que envolveram a população negra, e nela presente as
mulheres negras, pode-se perceber um curso árduo, subumano e desigual, e nesse sentido
lutas e resistência desta população passaram a se intensificar com o tempo o que resultou em
mudanças significativas a essa população. O Movimento Negro (MN) passou então a buscar
políticas que pudessem suprir as desigualdades e o preconceito racial sofrido por esse povo na
sociedade brasileira.
No campo da educação, algumas conquistas têm sido alcançadas, nas últimas três
décadas. No auge da comemoração dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, em
marcha contra o racismo, pela igualdade e pela vida, têm-se a tomada de algumas medidas
pelo governo. Tais medidas diziam respeito à criação do Grupo de Trabalho Interministerial
(GTI) a fim de se discutir políticas públicas a população negra.
Nos períodos entre 2003 e 2010, no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
foi instituído e implementado “um conjunto de medidas e ações com o objetivo de corrigir
injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão social e a cidadania para todos no
sistema educacional brasileiro”, através do Ministério da Educação (MEC, 2005, p. 5).
26
Neste governo foram fundadas, também, secretarias com o objetivo de promover ações
que contribuíssem com a diversidade, a igualdade e respeito nos espaços educacionais, através
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Trilha-se aqui
a tentativa de se descobrir novos caminhos para uma construção de uma educação com
marcas da igualdade sejam raciais, de gênero etc. Toda criança e adolescente têm direito a
uma educação de qualidade e inclusiva, em que a inclusão de todos os grupos social se façam
presentes nos processos de desenvolvimento do país.
Ainda neste período foi criada a Secretária Especial de Promoção de Igualdade Racial
(SEPPIR), que articula formas de superar o racismo que atinge principalmente as pessoas que
se declaram negras e pardas. Não por coincidência, a fundação da SEPPIR ocorre na mesma
data escolhida (21 de março de 2003) pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o
Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial – referência ao Massacre de
Shaperville, ocorrido em 21 de março de 1960, em Johannesburgo, África do Sul, que teve
papel significativo na mobilização internacional do apartheid.
A SEPPIR elabora e articula, junto a órgãos públicos e outras instituições, políticas de
promoção da igualdade e proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos, com
ênfase a população negra, afetados por discriminação racial e demais formas de intolerância.
Atua também no acompanhamento da execução de programas de cooperação com organismos
nacionais e internacionais, públicos e privados, voltados a promoção de igualdade racial.
Esses marcos legais buscam eliminar estigmas e dar visibilidade à contribuição de
homens e mulheres africanos/as e seu descendentes para a formação social brasileira.
2.4.1 Políticas dirigidas ao campo racial (ações afirmativas)
O Movimento Negro brasileiro teve e tem mantido seu importante papel nas lutas e
reinvindicações da população negra, com efeitos de indagar o Estado, partidos políticos,
diante de discussões que deveriam ampliar-se além da raça na formação do país. O
Movimento Negro ativo em suas lutas passou a considerar que a questão racial deveria
compreender uma forma de “opressão e exploração estruturante das relações sociais e
econômicas brasileiras, acirradas pelo capitalismo e pela desigualdade social” (GOMES,
2011, p. 111).
Assim, um marco decisivo para o Brasil no que se refere aos debates raciais e étnicos
foi sua participação na 3° Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância, realizado pela ONU em Durban (África do Sul), no ano de
27
2001. Foi este um ponto de grande relevância para se pensar e discutir questões direcionadas à
população negra. Dessa forma as ações afirmativas ganham força para serem implementadas e
pensadas nos meios institucionais na sociedade brasileira.
Após o período da ditadura militar no Brasil, com abertura a redemocratização, há um
início de debate sobre as temáticas das relações raciais na sociedade, visando sua ocupação
em espaços como a educação. A educação no Estado brasileiro é um direito constitucional
conforme o art. 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). No entanto, mesmo formulada
como direito constitucional pesquisas indicam que o campo educacional tem um papel
considerável na contribuição de um quadro desigual na sociedade brasileira. Conforme
Gomes (2011), a educação no âmbito escolar tornava-se um campo de reprodução da
desigualdade, de práticas racistas, discriminatórias, sexistas etc., passa a ganhar contornos
políticos nacionais e internacionais
Em 26 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal, por decisão unânime, reconhece
a constitucionalidade das ações afirmativas, colocando um ponto final em um longo debate
jurídico:
Políticas de reparação e de reconhecimento formarão programas de ações
afirmativas, isto é, conjunto de ações políticas dirigidas à correção de
desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento
diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e
mantidas por estrutura social excludente e discriminatória (BRASIL,
SEPPIR, 2005).
O marco regulatório apresenta como conquistas dessas ações, a Lei 10.639, de janeiro
de 2003, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que torna
obrigatório o estudo da História e Cultura Africana e Afro- brasileira no currículo oficial das
redes de ensino, nos níveis de educação fundamental e média, pública ou privada. Esta lei visa
à incorporação dos conteúdos educacionais da História da África e dos africanos, suas lutas,
cultura e contribuições desses povos na formação da sociedade brasileira, nos campos sociais,
culturais, econômicos e políticos.
Em documento oficial do governo federal sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de história e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, diz respeito à “[...] todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se
enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de
construir uma nação democrática [...].” (BRASIL, 2005).
28
A política de inclusão do estudo da história e da cultura africana e afro-brasileira nas
escolas deve ser forjada através de estratégias pedagógicas com vista a garantir a valorização
da diversidade, da promoção da igualdade, do combate ao racismo e qualquer outra forma de
discriminação de cunho racial.
Dessa forma, com intuito de também fomentar um debate para além dos muros da
escola, tomando como primordial uma formação pautada na criticidade e reflexão das relações
de desigualdades, exclusão, preconceito constantes na nossa sociedade.
Ainda sob contexto da Lei n° 10.639, faz-se importante salientar, que neste processo a
formação dos professores é fundamental e deve ser forjada, por meio de incentivos e
investimentos aos educadores, a fim de que seu exercício profissional seja competente e
passível de criação a novas estratégias pedagógicas á educação para as relações étnico-raciais.
Conforme cartilha do MEC/SEPPIR, “A luta pela superação do racismo e da discriminação
racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educador, independente do seu pertencimento étnico-
racial, crença religiosa ou posição política” (BRASIL, 2005). Segundo o Artigo 5° da
Constituição Brasileira, o racismo é um crime inafiançável, se aplicando a todo e qualquer
cidadão ou instituição, incluindo à escola.
O racismo, a discriminação racial e qualquer outra forma de intolerância, não tem seu
nascedouro na escola, porém perpassam esse espaço, e a escola como instituição primordial
para o desenvolvimento integral da aprendizagem, da formação de valores, comportamentos,
hábitos e senso crítico, deve forjar práticas pedagógicas que respeitem as diferenças e as
características próprias, no ato de educar visando por uma nova sociedade, justa, igualitária e
democrática.
As ações afirmativas atendem ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos
Humanos, bem como a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo
de combater ao racismo e a discriminação, como, por exemplo, a Convenção da UNESCO de
1960, direcionado à luta contra o racismo em todas as suas formas de ensino, bem como a
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Discriminação Correlatas de 2001.
Outra ação das políticas de reparação e de reconhecimento que compõe as ações
afirmativas foi o Decreto 4886, de 20 de novembro de 2003, instituindo a Política Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), com objetivos de reduzir as desigualdades, por meio
da defesa de direitos das ações afirmativas e da articulação das dimensões de gênero e raça. A
29
PNPIR tem como princípios a transversalidade; a descentralização; e a gestão democrática,
que reconhece o papel da sociedade civil no avanço da igualdade racial.
Para além do decreto anterior, foi implementado também o Decreto 6872, de 8 de
junho de 2009, que aprova o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial que, com base
nas definições da I Conferência de Promoção da Igualdade Racial (I CONAPIR), estabelece
um conjunto de ações vinculadas aos seguintes eixos: trabalho e desenvolvimento econômico;
educação; saúde; diversidade cultural; direitos humanos e segurança pública; povos e
comunidades tradicionais; desenvolvimentos social e segurança alimentar; infraestrutura; e
juventude.
Ainda no âmbito do marco regulatório das ações afirmativas, tem-se a Lei 12.288, de
20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, essa lei toma como objetivo a
necessidade de definir as principais áreas a serem reconhecidas pelas instituições públicas
para a superação das desigualdades raciais, campos esses: saúde; educação; cultura; esporte e
lazer; liberdade de consciência e de crença; acesso a terra e moradia; trabalho; e meios de
comunicação. Também estabelece mecanismos institucionais como o SINAPIR (Sistema
Nacional de Promoção da Igualdade Racial) e o FIPIR (Fórum Intergovernamental de
Promoção da Igualdade Racial) e as Ouvidorias Permanentes em Defesa da Igualdade Racial.
Diante de um cenário de políticas de promoção da igualdade racial, foi sancionada no
ano de 2012, uma das leis mais relevantes direcionada as minorias, dentre elas a população
negra. A Lei 12.711, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 29 de agosto de 2012,
“Lei das Cotas”, que dispõe sobre a reserva de vagas com critérios para estudantes de escolas
públicas, negros e indígenas, definindo em no mínimo 50% o acesso destes às universidades
federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio.
Essas iniciativas se tornaram medidas fundamentais na inclusão de negros, pardos e
indígenas no ensino superior público por meio de políticas públicas. Para além das ações do
marco regulatórios, foram também criados iniciativas de cunho educativo, como, por
exemplo, planos, programas, projetos, cursos, campanhas, editais e mecanismos
intersetoriais, as quais são de primordial relevância na transformação das demandas da
população negra em normas legais e em favor da igualdade racial do país.
Projeto A Cor da Cultura – Plano Juventude Viva – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
nas Ações Afirmativas (PIBIC – AF) – Campanha Igualdada de Racial é pra valer – Curso Gênero e Diversidade
na Escola – Curso de atualização e especialização em Gestão Pública com foco em Gênero e Raça (GPP-GER) –
Comitê Técnico de Saúde da População Negra.
30
Com isso, faz-se importante destacar entre tais iniciativas, o Projeto de Ação Integrada
Para Mulheres Negras, o qual visa contribuir para o emponderamento da mulher negra e sua
organização política; o enfrentamento ao racismo e ao sexismo institucional; e apoio a ações
que afirmem a imagem positiva de jovens e mulheres negras. Ação implementada no ano de
2013 em parceria com organizações da sociedade civil.
A Secretaria Especial de Promoção a Igualdade Racial (SEPPIR) desenvolve suas
ações no sentido de garantir os direitos e elevar a qualidade de vida desses povos brasileiros,
no sentido de observar a vivência plena de suas identidades e de seu pertencimento racial.
Diante disto, a SEPPIR realizou no ano de 2014, a primeira edição do prêmio Lélia Gonzales
“Protagonismo de Organização de Mulheres Negras e participação ativa do Conselho
Nacional de Direitos da Mulher”.
Tais medidas obtiveram como resultados algumas ações como: o Prêmio Lélia
Gonzalez que premiou, no ano de 2014, treze organizações de mulheres negras de variados
estados do Brasil, sendo três projetos na modalidade nacional, seis na estadual e quatro na
municipal; outra ação foi a realização do Seminário O Feminismo Negro e o Pensamento de
Lélia Gonzalez, realizado em maio de 2013, com os objetivos de difundir e debater a
contribuição teórica de Lélia Gonzalez e oferecer subsídios às organizações para a melhor
execução dos projetos premiados, em linha com as políticas de enfrentamento ao racismo e ao
sexismo e de promoção da igualdade racial e de gênero.
Outro terceiro resultado foi o pré-lançamento do Projeto Memória que, em sua 13°
edição que homenageia Lélia Gonzales. Tal projeto consiste na produção e ampliação de um
Almanaque histórico, um Livro Fotobiográfico, um sítio na Internet, uma exposição itinerante
e um Videodocumento sobre a vida e a obra da antrópologa e ativista afro-brasileira,
elaborado em julho de 2014.
As devidas ações, também resultaram com o apoio ao I Congresso Internacional sobre
o Pensamento das Mulheres Negras no Brasil e na Diáspora Africana e I Workshop Mulheres
Negras Pensando as Práticas Sociais, Culturais e Políticas, realizado em dezembro de 2014
pela Universidade Federal da Bahia, em parceria com a Criola (Organização de Mulheres
negras). Durante a III CONAPIR, no final de 2013, a SEPPIR lançou a publicação intitulada
“A Participação das Mulheres Negras nos Espaços de Poder”.
Avançar rumo a condições de vida de qualidade a população negra, como a educação,
por exemplo, são formas de superação da herança racista e da histórica naturalização para a
31
desigualdade racial e social que ainda marcam o povo brasileiro. São apostas em processos
políticos que efetivem e garantam o direito humano à educação, ao respeito, a diversidade, a
coletividade e ao reconhecimento, pensando também em intensa articulação com os demais
direitos humanos.
Estes marcos legais precisam ser compreendidos como fruto das lutas e reivindicações
do Movimento Negro, e não como algo dado pelo Estado brasileiro. Espera-se que tais
medidas e ações para a compreensão da diversidade étnico-racial não se centralizem apenas
no âmbito educacional, mas que consigam ramificar-se no conjunto de padrões de poder, de
trabalho, de conhecimento, de classificação etc. em nossa sociedade.
2.4.2 Políticas voltadas á promoção da igualdade de gênero
No âmbito da discussão das relações de gênero direcionadas as mulheres, em que
fazem parte também às negras, algumas políticas podem ser consideradas marcos importantes
na conquista de direitos fundamentais á suas vidas. Dentre essas políticas, Reis (2008)
destaca: a criação dos Conselhos de Condição Feminina, objetivando a elaboração de políticas
públicas voltadas para o combate à discriminação das mulheres e a promoção da igualdade de
gênero; as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM), inclusive
compostas por abrigos para proteção das mulheres, em caso de violência; e a luta das
mulheres pelo direito de tomar decisões em relação ao seu próprio corpo, como, por exemplo,
decidir se querem ter filhos ou não (REIS, 2008).
Umas das principais conquistas do público feminino no marco regulatório é a Lei
Maria da Penha, Lei 11.340, com vistas ao combate à violência doméstica e familiar que
provoque morte, sofrimento físico, sexual, psicológico, ou dano moral e patrimonial. Tal lei
foi sancionada em agosto de 2006, como resultado da luta dos movimentos de mulheres
brasileiras. No capítulo I da Lei Maria da Penha, constam artigos que abordam a importância
da educação e das escolas na prevenção da violência doméstica e familiar.
Todas as conquistas realizadas têm uma grande importância para o Movimento das
mulheres, pois as desigualdades a esse grupo são preocupantes, excludentes, e seguidas a
outras práticas de desigualdades como as raciais e sociais se intensificam e apresentam de
forma evidente.
Destaca-se ainda entre tais medidas, a criação da Secretaria Especial de Políticas para
Mulheres, que vem contribuindo para efetivação das conquistas das mulheres negras
brasileiras. Para REIS (2008) nesta secretaria, programas foram instituídos como: “Gênero e
32
Diversidade na Escola”, em que mantém parceria com o Ministério da Educação (MEC), com
a finalidade de propor formação aos professores, e propiciar elementos que possam excluir
práticas de desigualdades no espaço formal de educação.
Segundo REIS (2008), foi desenvolvida também no ano de 2003, dentro do Ministério
de Desenvolvimento Agrário (MDA), o Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça
e Etnia, realizado com propósito de promover o acesso de mulheres do campo, populações
quilombolas e indígenas nas políticas de acesso a terra.
Esses marcos e medidas são elaboradas com intuito de discutir, fomentar e fortalecer
políticas e ações que previnam e eliminem práticas discriminatórias com base no gênero, e
assegurar a proteção, a igualdade, justiça as mulheres brasileiras.
O conhecimento sobre as formas pelas quais as desigualdades se produzem e
reproduzem torna-se ferramenta fundamental para que ela seja enfrentada. Nisso
considerando-se essas políticas em diálogo com os Movimentos Feministas e de Mulheres.
Portanto, essas ações são importantes para se considerar a categoria gênero dentro das
relações sociais, problematizando as consequências de uma cultura do patriarcado imposta às
mulheres. Além disso, é importante reconhecer que as desigualdades vivenciadas pelas
mulheres perpassam outros setores os quais podem reforçar a sua condição de mulher. Levar
em consideração as especificidades e variações das mulheres, inclusive a sua condição de cor
e classe.
Assim, observaremos a seguir como as relações raciais e de gênero estão presentes na
trajetória da mulher negra professora universitária, em que seus relatos também podem
evidenciar suas considerações sobras às políticas voltadas para o grupo.
33
3 A TRAJETÓRIA DA MULHER NEGRA PROFESSORA UNIVERSITÁRIA
Diante de diversos indicativos desiguais frente a um cenário permeado por processos
históricos, sociais, culturais, econômicos e políticos, destacam-se as mulheres negras
professoras do ensino superior público que se inserem num âmbito que, tradicionalmente,
sempre foi ocupado por homens brancos, e num passado recente, ocupado por mulheres
brancas.
Atualmente, sabe-se que para as mulheres negras na sociedade brasileira, criou-se o
estigma social que ajuda a provocar a criminalização desse grupo, assim mantendo-as
excluídas na história, em consequência ao período escravocrata e pela cultura do patriarcado
de tempos remotos. Para Adorno (1996), os estigmas parecem pesar de maneira mais intensas
e notadamente sobre populações negras, estigmas que parecem ter sólido lastro no passado.
A quase ausência de mulheres negras em instituições de ensino superior ainda é forte e
compreender sua trajetória até a posição de professoras da universidade requer acionar
memórias de lutas e resistências, as quais foram travadas, mesmo após a democratização do
ensino público na década de 1960, oportunizando a abertura da educação a todas as classes
sociais. Segundo Cláudia Pereira Vianna (2001) “as mulheres são maioria na Educação
Básica, porém exercem atividades bem definidas na carreira. A Educação Infantil arregimenta
mais de 90% das educadoras, enquanto no Ensino Superior as mulheres ainda são uma
minoria, em especial nas carreiras tidas como masculinas” (VIANNA, 2001, p. 92).
Ao longo do século XX, o ensino primário foi tomando como característica um caráter
feminino em sua maioria. Atualmente, principalmente nos ensinos da Educação básica
(formadas pela Educação infantil, o Ensino Fundamental e Médio), há um grande número de
mulheres no exercício da docência, porém quando observamos tal cenário no ensino superior
não ocorre da mesma maneira. Nos espaços universitários o número de mulheres,
principalmente, mulheres negras em alguns cursos, ainda é considerado pequeno.
Como destaca Gomes (1995), a chegada ao magistério para a mulher negra constitui a
culminância de múltiplas rupturas e afirmações, a saber, a luta pelo prosseguimento dos
estudos, uma profissão que dá garantia de ter espaço no mercado de trabalho, uma profissão
que possibilite dar espaço para atuar em outro trabalho e ou conciliar às atividades do lar.
Dessa forma, busca-se aqui através dos relatos feitos em entrevistas, analisar a trajetória
de duas professoras negras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com intuito de
34
perceber como as relações raciais e de gênero estiveram presentes em suas caminhadas, e de
que forma tais relações interferiram e/ou interferem em suas posições profissionais e pessoais.
O interesse em realizar esta pesquisa partiu, principalmente, pela relevância de se discutir
a presença de mulheres negras nos estabelecimentos de ensino superior, visando desmistificar
estigmas, e estimular a inclusão de outras mulheres em espaços que oferecem instrução,
preparação, formação cidadã e crítica para as relações sociais a partir dos relatos das
trajetórias das docentes entrevistadas. As entrevistadas foram selecionadas por serem as
únicas professoras negras do Centro de Educação (CE) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Foi a partir de um roteiro elaborado por mim, e gravação da atividade que
as entrevistas foram realizadas, a estrutura e resultados encontram-se no apêndice do trabalho.
Como forma de preservar a identidade das professoras serão aqui apresentadas como:
entrevista N° 01 e entrevista N° 02. A professora da entrevista N° 01, tem 52 anos, natural do
Rio de Janeiro, pedagoga e mestre me educação pela UFRJ. Doutora em Educação pela
Universidade Federal Fluminense, tendo realizado bolsa sanduíche na Universidade de
Coruña, Espanha. Foi professora e orientadora pedagógica em escola do ensino fundamental
da rede pública no Rio de Janeiro. É, atualmente, professora do curso de pedagogia no Centro
de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atua nas áreas de formação
continuada, cotidiano escolar e educação de jovens e adultos.
Já a professora da entrevista N°02, tem 46 anos, natural do Rio de Janeiro, formada em
pedagogia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mestre em educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutora em educação pela mesma
universidade. Possui experiência nas áreas políticas educacionais, nas temáticas de Gestão
educacional, cultura organizacional, projeto político-pedagógico (PPP) e avaliação
institucional. Ambas são atualmente docentes da UFRN e se identificam como mulheres
negras.
Para se chegar aos objetivos propostos, o trabalho seguirá organizado com intuito de
compreender as relações dessas professoras negras, desde aspectos familiares, educacionais, a
construção de suas identidades, a vivência de práticas de desigualdades raciais ou de gênero.
Há considerações também sobre quais os impulsos e motivações na caminhada até o status de
docentes universitárias, os obstáculos e dificuldades para ingresso e permanência na carreira,
as concepções que consideram de machismo e racismo e de que formas tais práticas
interferem ou interferiram em suas trajetórias.
35
Com intuito de dar a devida importância aos processos educacionais nos sistemas de
ensino, também se discutirá conforme relato das professoras a relevância que atribuem a
educação para as relações étnico-raciais e diversidade.
Outro ponto de discussão será a problemática da mulher negra na sociedade e quais os
lugares que ocupam e o porquê consideram, e por fim, que posições tomam frente às políticas
compensatórias, as ações afirmativas, cotas, etc. e que relações fazem diante de um novo
contexto atual que atinge diretamente as políticas e ações da população negra.
É fundamental neste momento refletir criticamente sobre os lugares de poder ocupados
por pessoas negras e pessoas brancas. Dessa forma, questionar-se sobre um retrato de
desigualdade inculcada na sociedade brasileira é necessário. Assim compreender o lugar em
que as mulheres negras estão em sua maioria, à presença de professoras negras no quadro do
espaço acadêmico superior e em geral compreender qual o lugar ocupado pelas mulheres
negras na sociedade civil faz-se necessário.
Muitas vezes, em decorrência do racismo, é considerado natural um quadro desigual em
que a população negra apresenta-se em todas as ocasiões desfavorecidas e desconsideradas.
Assim, atuar nessa realidade, buscando garantir condições efetivas para que pessoas negras e
demais grupos discriminados socialmente tenham oportunidade de acesso as politicas sociais,
torna-se uma tarefa árdua e contínua. Oportunidade de acesso essa considerando os espaços
sociais como educação, saúde, representação política, e até a posição de professores em
Universidades Federais.
Apesar de todos os obstáculos já colocados a essas mulheres histórica e socialmente,
algumas conseguiram subvertê-los, passando a ocupar um lugar que não lhes foi determinado.
Em seguidas, os relatos de ambas as professoras em que os debates de raça e gênero estão
colocados frente a suas trajetórias de vida e profissional.
3.1. NARRATIVAS SOBRE EXISTÊNCIAS ATRAVÉS DO TEMPO
As trajetórias de uma sociedade e para cada ser em sua individualidade iniciam-se nos
primeiros contatos que se dão em meio a suas famílias. Através das interações sociais
passamos a compreender as regras e comportamentos sociais dentro de cada cultura
específica. E nesse processo deve-se também observar a inserção de cada indivíduo dentro de
uma lógica de estrutura social, essa a qual compreenderá seu pertencimento a um grupo ou
sua classe. A família (nos seus vários formatos) aqui cumpre um papel relevante na trajetória
de seus membros que ainda procuram entender as relações estabelecidas na sociedade. Dessa
36
forma, as professoras colaboradoras relatam o papel que suas famílias impulsionaram durante
suas trajetórias, no âmbito escolar:
“Me obrigando a ir pra escola! Desde criança eu entrei na escola aos 3 anos
de idade. Minha mãe trabalhava e meu pai trabalhava, minha mãe era
professora, então eu tinha valorização da educação formal na minha casa né,
meu pai apesar de não ter completado o que, hoje, a agente chama de ensino
fundamental, também era/é uma pessoa que valorizava a educação, a
escolarização, apesar dele ter fugido da escola, ele fugiu literalmente, e
então, assim, desde criança muito pequena eu sabia que eu ia pra escola, eu
ansiava ir pra escola, eu ansiava ir pra escola, especialmente, porque eu
queria muito aprender a ler, então minha mãe sempre brinca quando ela me
levou pra escola pela primeira vez quem chorou foi ela, porque eu
simplesmente dei tchau pra ela e sai correndo [...]” (ENTREVISTA N°1,
19/09/2016)
“Olha, meus pais assim, escola nunca me faltou, mas eles nunca ligaram
muito não, assim a minha trajetória eu fiz, eu sempre gostei de estudar e aí a
minha mãe mandava eu parar de estudar, ao contrário, ‘você se preocupada
demais’[...] Quando eu morava numa cidade do interior pequena era normal
que os jovens saíssem pra continuar os estudos, então quando eu tinha 14
anos, nós voltamos de viagem pro Rio de Janeiro e eu fiquei pra estudar na
casa de uma tia, e aí o baque foi grande de uma escola que não tinha muitas
vezes professores preparados lá no Mato Grosso do Sul, numa escola
pública, e aí eu fui estudar numa escola de freira, e na primeira semana foi
um choque, tudo mudou e eu vi que não tinha base, então nesse ponto passei
morar com minha tia e ela me deu todo apoio, ela era professora e me deu
todo apoio pra que eu tivesse condições, e sempre me esforçando muito pra
conseguir terminar o ensino médio na época [...] e não tive assim grandes
problemas não, nada foi fácil , mas tudo com muito esforço, tive muito apoio
dos meus pais, não assim num sentido de me cobrar, eu sempre fiz o meu
caminho, mas assim, nunca faltou comida, nunca faltou livro, nunca faltou
apoio, mas eu que fiz o meu caminho, e tive muito auxilio desses meus tios
que me deram o suporte, que ali foi o momento mais difícil né que foi a
mudança do estado e da escola” (ENTREVISTA N° 2, 06/10/2016).
Como se percebe, a relação de ambas as entrevistadas com suas famílias tem
concepções diferenciadas na figura do indivíduo propulsor nas suas trajetórias de formação na
educação formal. A primeira professora revela a importância do papel de sua mãe no seu
caminho para ascensão social, sempre incentivada, a figura da mãe passou a representar o
elemento motivador na sua conduta do papel da escola na educação. Já a segunda entrevistada
apesar de não manter a mesma relação que a primeira, teve seus tios como principais figuras
impulsionadoras no seu processo de educação formal.
A educação na família apresenta o que Bourdieu (1983), chama de habitus
transmitidos às professoras negras nas suas primeiras interações sociais, o que as possibilitou
fundamentar e ampliar o capital cultural que teve função primordial nas suas vidas pessoais e
profissionais, abrindo-se caminhos que permitiram atingir seus status de professoras de
37
universidade pública e consideravelmente reconhecida, ou ainda, “algo que mantém uma
enorme potência geradora, em que nela se introduz uma transformação (BOURDIEU,1983, p.
129). Tal habitus, lutas e resistências constituídas na trajetória dessas professoras foi passível
de contrariar um sistema que tem por premissa segregar grupos, como a população negra, as
quais as professoras pertencem.
Ao opor-se ao que a sociedade lhe confere a mulher negra, tem mostrado
entendimento das circunstâncias discriminadoras de que é vítima e busca nos seus cursos de
vida engajar-se em luta, resistência que lhes permitam sobressair às barreiras impostas
socialmente, buscam valor e dignidade a raízes e irmãos e irmãs de etnia e raça.
Durante esses trajetos a identidade passa a ser um elemento importante na formação
das docentes negras ou a qualquer outra mulher que se identifique como negra. Esse elemento
faz parte da realidade subjetiva da cada um, um processo de construção que tende a ser
constantemente transformado e remodelado com o passar do tempo através das interações
sociais e conflitos vivenciados por cada indivíduo com o diverso e diferente. Segundo Peter e
Brigitte Berger (1994, p.212), conforme citado por Oliveira (2006, p.88),
[...] quer a identidade seja atribuída ao individuo, quer seja atribuída por ele,
ela sempre é assimilada através de um processo de interação com outros. São
os outros que o identificam de certa maneira. Só depois que uma identidade
é confirmada pelos outros, é que pode torna-se real para o individuo ao qual
pertence. Em outras palavras, a identidade resulta do intercurso da
identificação com a auto identificação. Isto se aplica até mesmo as
identidades deliberadamente constituídas pelo próprio indivíduo (PETER;
BRIGITTE BERGER, 1994, p.212).
O que se observa é que essa construção da identidade não se faz de maneira individual,
há um processo coletivo, que por meio da socialização vai se concretizando, como também
sendo possível mudar e remodelar as identidades. No caso das colaboradoras nesta pesquisa,
constata-se que é justamente no momento de reconhecimento enquanto mulher e negra, que as
professoras passam a construir suas identidades, frente a conflitos como a discriminação
racial, o racismo, e preconceito de gênero. Com base em Gomes (2003), “a identidade negra
é entendida, aqui, como uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a
construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo
grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro” (p. 171).
Nesse contexto as professoras em seus relatos não precisaram um momento fixo para
suas identificações como mulheres negras. Esse fato, para elas, acontece já mais tarde,
inseridas no espaço acadêmico enquanto alunas e posteriormente professoras, em que
38
puderam obter oportunidades e acesso ao conhecimento científico, informações, diferentes
ideais, debates etc., relacionados ás questões étnico-raciais, dentre outras. Com isso relatam:
“Então eu não sei precisar assim um momento, um dia né, porque também eu
acho que isso é impossível, porque é uma construção mesmo, que é feita ao
longo da vida, especialmente, por conta do racismo mesmo isso não é dado
né, especialmente, pessoa como nós que não temos o fenótipo tradicional do
negro, to falando nós, eu e você, porque somos mais ou menos iguais. Bom
então, uma construção mesmo, então eu me lembro, assim de coisas que me
falavam, principalmente na minha adolescência, porque criança a gente não
presta muita atenção nessas coisas, mas na adolescência algumas coisas que
me falavam e me deixavam assim em dúvida ou inquieta e porque que
estavam falando essas coisas, por exemplo, uma coisa que eu me lembro é
que as minhas próprias colegas, amigas de escola sempre que diziam que eu
devia namorar alguém essa pessoa era negra, entendeu, então é uma forma
de racismo né, mas eu acho que isso começou a ficar mais claro pra mim na
época da universidade né, porque claro na universidade a gente amplia, eu
sai de uma cidade menor, fui pra uma cidade maior, e a universidade mesmo
né, que tem esse papel na vida da gente eu acho de ampliar a nossa visão de
mundo pelo simples fato de estarmos ali de termos contato com uma serie de
ideais, convergente, divergentes, então isso foi ficando cada vez mais claro
pra mim né, que eu era uma mulher negra, até inclusive, até o doutorado que
eu tinha uma amiga que pesquisava sobre as mulheres negras, uma vez
alguém falou assim pra mim ‘ah vocês duas (eu e ela, eu e essa amiga),
vocês duas tem mais ou menos a mesma cor, mas eu identifico ela como
mulher negra, mas você não’ não sei se era por causa do cabelo, enfim, né,
mas...” (ENTREVISTA N° 1, 19/09/2016).
“Isso foi dolorido! Por que essa questão de ser negro sempre foi muito
complicado, porque o valor, o bonito é o branco. E eu lembro que desde
criancinha eu queria ter os meus cabelos lisos como as minhas coleguinhas e
não era assim e aí eu era criança a primeira vez que alisei o cabelo e saia
com os cabelos balançando, e logo em seguida o cabelo ficou horrível e eu
tive que usar tipo Joãozinho, aquilo foi triste pra mim, e isso na infância
antes dos sete anos quando morava no Rio de Janeiro, ou seja, uma negra
entre vários negros, mas eu acho que essa questão da aceitação da negritude,
não ainda, não havia acontecido, isso só aconteceu muito mais tarde. [...]
Com o tempo foi passando e eu fui percebendo que eu não era menor, que
meu cabelo era bonito, que eu tracei o meu caminho e que a consciência que
eu sou negra hoje eu não abro mão num sentido de que aqui as pessoas tem
medo de falar que são negras né, elas são é moreninhas, ai eu digo ‘não, eu
não sou moreninha eu sou negra’ porque essa identidade ela foi construída
de forma muito difícil e muito dolorosa e esse processo de auto aceitação foi
longo e necessário, e meu marido me deu muito apoio para que eu me visse
como negra e me aceitasse como tal. (ENTREVISTA N° 2, 06/10/2016).
Pode-se considerar pelos relatos de ambas as professoras que suas identidades tiveram
o fator da conflitualidade bastante presente em suas trajetórias. Apesar de ambas não
relatarem ter sofrido discriminação de raça ou gênero de maneira agressiva, degradante ou
humilhante, o racismo esteve presente na sua maneira sutil, o que fez com que inquietudes e
39
dúvidas fossem consideradas por elas. Segundo Barbosa (1987, p.54, apud REIS, 2008, p.
17), não é marcado apenas pela conscientização das diferenças raciais, “mas pelo significado
dessas diferenças e da importância que elas têm para suas futuras relações sociais”.
Para exemplificar a construção permeada por conflitos internos e externos, a
colaboradora da ENTREVISTA N° 2, diz: “e eu lembro que desde criancinha eu queria ter os
meus cabelos lisos como as minhas coleguinhas e não era assim e aí eu era criança a primeira
vez que alisei o cabelo e saia com os cabelos balançando”. Para as mulheres negras o
fenotípico, traços característicos, pode evidenciar uma maior conflitualidade diante de um
padrão considerado superior, um padrão eurocêntrico de beleza, além do reforço da ideologia
do branqueamento que enfatizava a necessidade de se desenvolver características mais
‘convenientes’ da ascendência europeia brasileira.
Logo, para uma mulher negra aceitar-se como tal, necessita quebrar inúmeras barreiras
criadas a sua figura e de sua população. Conforme Maria Clareth Reis (2008), esse processo
torna-se mais difícil, pois carrega uma concentração de herança negativa, por meio da
manifestação de preconceitos e descriminação; comportamentos que se arraigam em nossa
sociedade através de estigmas e estereótipos raciais, e demais formas de inferiorização da
população preta.
Em uma sociedade permeada pelas ideologias racistas, sexistas e de gênero, as
mulheres negras tornam-se vítimas de dupla, por vezes, por tríplice discriminação, nos
campos raciais, de gênero e classe. Diante disso, ao serem questionadas sobre a vivência,
mesmo que silenciosamente, de práticas de reprodução de desigualdades sociais, raciais e/ou
de gênero, relatam:
“Sim! Então eu vou te contar a história do elevador, é que essa foi uma
bastante marcante pra mim, porque eu não tinha a menor ideia do que estava
acontecendo e depois foi a minha professora, minha orientadora, que me
mostrou que naquele momento eu estava sendo vítima de uma prática de
racismo né, pelo porteiro do edifício dela, um edifício elegante em
Copacabana, que me mandou subir pelo elevador de serviço, e quando eu
cheguei ela estranhou o porquê eu estava saindo daquele elevador e quando
eu falei que tinha sido o porteiro quem tinha indicado ela ficou um pouco
chateada e aí conversamos sobre isso. E lugares também que já várias vezes
houve práticas silenciosas de racismo, muitas vezes em lojas, lojas bacanas,
mais caras e tal, que você entra e não é atendida, como se você não estivesse
ali, ignorando sua presença, imagino porque, devem imaginar que eu não
poderia comprar ou que eu não deveria estar ali enfim... [...] Preconceito de
gênero é uma coisa que atravessa a vida de mulheres sempre né, nos
mínimos detalhes eu acho” (ENTREVISTA N°1, 19/09/2016).
40
“Sim! Como mulher negra quem é que não passou por situações dessas. Mas
eu também, percebi que essa relação de, vamos dizer assim, a desvalorização
do negro, está relacionado diretamente com a desvalorização da condição
socioeconômica, porque existem situações, por exemplo, eu fui a uma foto
aqui em Nova Descoberta, tirar foto com meus filhos, estava em casa, saí era
perto de casa, fui andando de chinelo e percebi que não me atendiam, e aí ‘o
que, que está acontecendo? ’ naquele momento pra me sentir valorizada
busquei as palavras mais difíceis que eu sabia pra mostrar ‘Olha! To aqui!
Eu tenho valor’ foi uma forma de defesa, não acho que isso é, não foi a
melhor forma, mas eu percebi que se eu tivesse bem vestida não era assim
me tratavam [...] porque mulher negra e pobre as pessoa pisam e não
reconhecem o seu valor. É como se você fosse menor” (ENTREVISTA N°
2, 06/10/2016).
Por estes relatos, podemos perceber que ambas as professoras tiveram em suas
trajetórias momentos com a presença do racismo, mesmo que de forma camuflada. O que se
percebe é que mesmo antiga essa discussão ainda reflete na sociedade, e por vezes por meio
de marcas carregadas de descriminação contra a população negra. Munanga (1996, p.17)
afirma que as práticas discriminatórias “[...] são fontes de conflitos e de inúmeras
manipulações socioeconômica e político ideológicas. Quanto mais crescem, as diferenças
favorecem a formação dos fenômenos de etnocentrismos [...]”. Dessa forma, tal
etnocentrismo torna-se ponto fundamental para a construção de estereótipos e preconceitos,
inclusive raciais.
Tem-se, no Brasil, uma construção insistente da existência de uma “democracia
racial”. Porém, ao partimos para dados estatísticos percebemos que na verdade temos vivido
o mito da democracia racial, mito este que difunde uma convivência, organização social,
educação etc., sem resquícios de uma lógica que desqualifica e salienta estereótipos
depreciativos, explicitando violência e expressando um sentimento de superioridade de
brancos em relação aos negros. Difunde-se com este mito uma crença que vem
“desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com
prejuízos para os negros” (BRASIL, 2005, p. 12).
As consequências do mito da “democracia racial” têm, até os dias atuais, estado
bastante presente e em bom funcionamento, alimentando o ideário coletivo. Ainda mais
quando diz respeito às práticas racistas e discriminatórias, o que pode ser observado nos
relatos das professoras entrevistadas.
Nesse contexto, em que se manifestam as relações de poder através de formas
discriminatórias e tendo o público negro como um dos principais alvos, as mulheres negras
que ocupam um espaço universitário enquanto docentes, espaço esse de certo forma permeado
41
por privilégios e disputas de poder, ascendem através de uma força interior que pode, de certa
forma, ter sido influenciada pela forma organizada no espaço exterior. Ou seja, os impulsos de
força das mulheres negras ter sido intensificados diante das desigualdades impregnadas na
sociedade, motivadas por cor, gênero, etnia, raça, crença.
As construções sociais são baseadas conforme a representação de uma pirâmide, em
uma estrutura hierárquica de poder que compõe no seu ápice a elite e o Estado, que detém
poder e autoridade dentro dessa estrutura. Em sua base compõem populações marginalizadas,
negros, índios, etc., sem assistência ou subsídios algum de sobrevivência, de igualdade e de
justiça. De acordo com Adorno:
Diferentes clivagens contribuem para este cenário social: situação
ocupacional, carência de profissionalização, baixa escolaridade, gênero,
origem regional, idade e, acima de tudo, cor. Negros - homens e mulheres,
adultos e crianças - encontram-se situados nos degraus mais inferiores das
hierarquias sociais na sociedade brasileira, como vêm demonstrando
inúmeros estudos e pesquisas. A exclusão social é reforçada pelo preconceito
e pela estigmatização (ADORNO, 1996, p. 283).
Dessa forma, nascidas em um meio que tenta lhes impor posições, e presentes nas
estatísticas do grupo que mais sofre desigualdades, as mulheres negras professoras, relatam de
que forma seus caminhos as levaram até a posição de professora do ensino superior público.
“Então, não foi uma caminhada proposital nem intencional que me trouxe
até aqui, eu não queria ser professora, eu fiz o magistério do ensino médio
porque era a única opção na minha escola pública numa época que era
obrigatório fazer um curso profissionalizante e também por uma certa
pressão familiar, porque minha mãe considerava que eu deveria fazer o
magistério, porque terminando o curso de magistério eu teria uma profissão
e poderia trabalhar [...] eu percebi que pra ser professora eu precisaria de
mais formação, e ai eu sai da ciências sociais e fui pra pedagogia, ai terminei
a pedagogia, emendei a pedagogia com o mestrado e quando terminei o
mestrado eu não queria mais saber de fazer vida acadêmica, fui trabalhar,
trabalhei em vários projetos e aí quando eu tive em mãos os relatórios, os
registros diários das práticas pedagógicas das professoras com as quais eu
trabalhava, eu coordenava o trabalho delas a distância, eu comecei a achar
que aquilo era muito interessante e foi oito anos depois de eu ter terminado o
mestrado, ai eu achei que valeria a pena fazer o doutorado [...] e aí eu já
estava meio, não quero dizer uma expressão para ser gravada, mas já estava
meio chateada com meu trabalho naquele momento, porque as relações, eu
gostava muito do trabalho que eu fazia no SESC coordenando o projeto de
alfabetização de Jovens e Adultos, gostava muito das minhas companheiras
de trabalho, do trabalho que eu fazia, mas as relações no SESC eram muitos
ruins, muito difíceis, e ali sim a gente sofria muito preconceito de gênero,
não diretamente dizendo isso né, mas como Dilma sofreu agora né, muitas
coisas contra Dilma eram flagrantemente preconceito de gênero, certas
coisas que falavam, que faziam, que caricaturavam não fariam com um
homem né, embora não existisse um discurso direto ‘você é burra porque
você é mulher [...]ai pensei ah pode ser uma oportunidade e aí me inscrevi
42
em alguns concursos fiz esse primeiro passei e pronto vim pra cá”
(ENTREVISTA N° 1, 19/09/2016).
“Olha, embora eu sempre gostasse de estudar e sempre me esforçasse pra
fazer o meu melhor, não ser melhor do que ninguém, mas o meu melhor eu
nunca acreditei no meu potencial, nunca acreditei que eu pudesse chegar
aqui e se eu estou aqui hoje é por conta do meu marido [...] Eu sempre
achava não, não vai dar certo e ele: ‘não, você vai fazer, agora é a sua vez’, e
foi assim no mestrado, e no doutorado ‘você vai conseguir, faz’, nos
concursos, eu fiz três concursos, fiz um pra UERN, fiz um pra UFPB, porque
Pau dos Ferros era muito longe, e passei seis meses na Paraíba em Rio Tinto,
até que saísse uma vaga pra cá. Nunca eu achava que eu podia e ele sempre
me dando a força ‘não, você vai, você consegue’ ele me dava o estímulo e eu
corria atrás e foi assim que eu cheguei” (ENTREVISTA N° 1, 06/10/2016).
No relato da primeira professora, pode-se observar que apesar de não declarar um
motivo específico e claro, a sua decisão a escolha da docência superior, decorreu também por
motivos de preconceito de gênero o que a fez não ter dúvida alguma na mudança de sua
trajetória. Para a segunda entrevistada, é perceptível que sua construção refletiu um
sentimento de incapacidade de poder ocupar um espaço como a universidade. Esse sentimento
pode ser decorrente das estruturas estabelecidas, da presença do racismo, discriminação de
raça ou gênero muito presente em nossa sociedade. Segundo Pierre Bourdieu (1983, p.129)
citado por Oliveira (2006, p. 41) confere a existência de uma “estrutura estruturada
predisposta a se tornar estruturante”, a partir tanto de um ritmo de interiorização do que está
na exteriorização, por parte do individuo, quando de exteriorização de sua interioridade, reúne
todas as características adquiridas pelo agente em seu processo de relações sociais, o que vai
sendo incorporado e possibilitando a formação de concepções e habilidades para sua vida
individual e coletiva.
Ainda segundo Bourdieu (1983, apud OLIVEIRA, 2006, p. 41), o habitus é algo que
possui uma enorme potência geradora, é o produto dos condicionamentos que tende a
reproduzir a lógica objetiva destes, mas introduzindo neles uma transformação. O habitus, que
pode ser pensado como uma força transformadora, é adquirida pelas mulheres negras
professoras universitárias desde seu processo inicial de relacionar-se socialmente (família), o
que apresentará um esforço passado a próxima geração e permitirá a reestruturação do
habitus, tanto pelo sistema escolar como por outros valores presentes na sociedade.
Permitindo-lhes, dessa forma, ascender socialmente a carreiras disputadas e privilegiadas,
como a docência no ensino superior.
Movidas por uma força transformadora chamada habitus (Bourdieu, 1983), essas
professoras reconhecem a existência, de forma velada, de práticas racistas na sociedade
43
brasileira. Percebem, também, que de certa forma já vivenciaram tais práticas. Sentem a
necessidade de estarem preparadas, de conhecerem a ideologia racista e o que a sustenta, para
lidarem com as situações corriqueiras, no espaço da academia, em sala de aula, vida social e
profissional. Algumas formas de enfrentamento a práticas racistas e machistas são tomadas
pelas professoras ao longo de suas trajetórias formativas e profissionais.
“Então eu acho que é isso, primeiro me colocando como pessoa pra
desconstruir os meus próprios preconceitos né [...] Então, pessoalmente, eu
acho que pra mim é uma luta interna contra isso né, de me impor, é... como
profissional de não deixar que essa discussão seja esquecida, seja colocada
de lado e divulgar, conversar com os alunos de uma maneira geral, é porque
eu não pesquiso essa temática, eu mesma diretamente, mas é não deixar que
isso tenha uma importância menor no meu trabalho, nas minhas relações, e
na minha prática como professora” (ENTREVISTA N° 1, 19/09/2016).
“[...] usando da educação, da gentileza, na escolha das palavras, na forma de
vestir, então são certas formas que não sei se isso é bom ou se isso é ruim,
mas acaba fazendo com que a gente seja aceita, apesar da cor, porque muitas
pessoas nos consideram diferente não numa forma positiva, então nos aceita
nos grupos, mas existe sim uma, eu não digo aqui no meio acadêmico, aqui
no meio acadêmico não senti muitas dificuldades não, mas às vezes em sala
de aula, às vezes, nas próprias relações sociais em diversos âmbitos, nos
quais a gente trabalha, atua, as relações elas são sutis não precisam vir
descaradamente, você pode atenuar até mesmo com um sorriso antes mesmo
de entrar como cartão de visita. Agora, aqui a gente tem que tomar cuidado,
não pode sorrir demais, porque o outro já acha que a gente está dando bola”
(ENTREVISTA N° 2, 06/10/2016).
Para confrontar tais barreiras impostas, as professoras determinam mecanismos como
meios de romper com o estabelecido, em que se faz necessário ter consciência de suas práticas
e tomar-se de saberes necessários a transformação dessa estrutura. Os depoimentos de ambas
as professoras nos trazem reflexões sobre as relações raciais estabelecidas no ensino superior.
Mostram formas distintas de comportamento quando surge a necessidade de se utilizar
mecanismos de combate a práticas de descriminação no espaço acadêmico, social etc., que
tenta impor aos/às negros/as “o lugar que devem ocupar”.
Essas formas, estabelecidas pelas professoras, de enfrentar o racismo ou qualquer
outra discriminação, lhes dão o suporte de confronto e afirmação da sua ocupação enquanto
docente universitária no espaço acadêmico. Contrapondo-se as históricas desvantagens que
elas, mulheres negras, enfrentam nos seus caminhos profissionais, devido as suas condições
de mulher e negra.
Ambas as professoras encontram formas de imposições, uma num caráter mais pessoal
de comportamento, outra num caráter mais amplo no seu campo profissional. É importante
que não só essas professoras, mas também na formação de todo/a educador/a exista uma
44
construção de um trabalho transformador por esses profissionais em que reconheçam e
reflitam criticamente temáticas raciais e de gênero no espaço de ensino. Levando em
consideração suas próprias condições de raça (inclusive a chamada branquitide).
Assim, deve-se considerar a educação básica, o ensino fundamental, o ensino médio,
e o ensino superior, em que os debates reflitam sobre as relações raciais ou de gênero, e como
elas estão presentes em nossas trajetórias de vida, orientando ou dificultando os olhares de
problemas no cotidiano.
A descriminação racista, tão bem elaborada na história, continua sendo muito bem
inserida em nossas mentes por meio das socializações. Seja no meio familiar, no educacional
ou profissional, em áreas como a comunicação, a religião, dentre outras. Mesmo um individuo
considerado negro/a não se abstém de atitudes preconceituosas, racistas ou discriminatórias.
Foi por volta de 1930, que no Brasil, começam a surgir, primeiro em jornais e nas
organizações de luta negras, expressões como “discriminação racial”, “preconceito racial” e
“segregação racial”. Essas práticas racistas só passaram ser conhecidas a partir da necessidade
de uma parcela da sociedade brasileira em “afirma” que negros não disputam lugares com os
brancos. Somando-se a essas tensas relações as disputas acirradas de competições frente ao
sistema capitalista em instauração.
Segundo Joel Rufino dos Santos (1984), existem modalidades do racismo brasileiro.
Para ele as principais modalidades do racismo à brasileira são: primeira, o tratamento de
pessoas como bichos o que impede e existência de democracia, muito menos racial; segunda,
o “achismo” de que os brancos são melhores que os não brancos; terceira, a ideia negativas
que se faz das pessoas negras, e o dizer que em nosso país não existe racismo, mas apenas
“preconceito racial”; quarta, a ideia de que não somos racistas; e quinta, a visualização do
negro como o “outro”, o olhar para os não brancos como não brasileiros.
O racismo ainda é um problema pouco assumido na sociedade brasileira, o que pode
ser observado na definição da terceira modalidade, que divulga a não existência do racismo
pelos brasileiros (SANTOS, 1984). No entanto, os depoimentos dessas professoras, assim
como as estatísticas oficiais citadas no início do trabalho e diversas situações do dia a dia
evidenciam o contrário: o racismo existe, está na sociedade brasileira, na dimensão macro e
micro das relações sociais.
O racismo, compreendido como fenômeno que desumaniza pessoas e marca
estruturalmente a distribuição desigual de acessos a oportunidades, recursos, informações e
45
poder no cotidiano, na sociedade e nas políticas de Estado, é um fenômeno revelado por
diversas estatísticas em pesquisas (citadas anteriormente) de alguns institutos e denunciado
por movimentos de mulheres e homens negros, entre outros movimentos sociais.
Dessa forma, reeducar nossos olhares, nossos ouvidos e atitudes se faz necessário para
reconhecer e agir para superar o racismo, bem como outras formas de descriminação
presentes na sociedade brasileira, contra mulheres, deficientes, pobres, nordestinos,
homossexuais, etc. É necessário garantir o direito humano de vida, saúde, escola, alimentação,
entre outros, a todos os grupos que compõem a nação brasileira.
Ao tratarem sobre concepções e práticas que consideram como racismo e machismo, e
em que medidas tais práticas podem ou tem interferido em suas trajetórias, os depoimentos de
ambas as professoras nos permite considerar elementos fundamentais nesta discussão, como o
“racismo à brasileira” e a predominância das relações de inferioridade impostas às mulheres
desde muito tempo:
“Bom, racismo pra mim é ter um preconceito, ou seja, pré-conceber o que
uma pessoa é, mas fazer um juízo de valor sobre uma pessoa de antemão,
simplesmente por sua aparência física né. E o machismo é quase a mesma
coisa, mas o machismo é... o conceito de racismo é um conceito mais
recente, uma prática mais recente do que a prática machista que nos
acompanha há muito mais tempo e que vemos vencendo ai nesse final de
século XX e início do Século XXI. Mas é ainda muito forte. Aqui no Rio
Grande do Norte, por exemplo, eu sinto uma razoável diferença em relação
ao machismo do que eu sinto no Rio, o machismo no Rio não é tão agressivo
ou tão presente, tão óbvio, quanto é aqui pra mim. Aqui, por exemplo, eu
senti as primeiras vezes que eu vim pra cá e saia sozinha, estava num bar
sozinha, de todos olharem com um olhar de ‘o que, que essa mulher esta
fazendo aqui, que coisa estranha uma mulher sozinha num bar’ entendeu?
É... e eu vejo também, observo às vezes, quando to sozinha num bar, as
relações que eu vejo assim entre as pessoas, entre casais ou família, das
mulheres com uma postura muito subservientes né, tudo que as mulheres
parecem fazer é pra agradar ao homem que está ao seu lado”
(ENTREVISTA N° 1, 19/09/2016).
“[...] o machismo, eu acho que é essa preponderância do homem sobre a
mulher [...]. O racismo no Brasil, por mais que se diga que não existe, ele
existe! É velado e isso se dá de diversas formas até mesmo por um simples
olhar, mas também eu acho que pela minha condição econômica nunca fui
rica, mas assim por não estar fazendo parte da população mais pobre dessa
sociedade, eu acho que também nunca sofri muito com isso, olhares de
menosprezo [...] Não vale a pena eu me expressar, muito pelo contrário
preciso sempre emitir boas energias para essas pessoas, pra que elas possam
se reconhecer como parte dessa sociedade que a diferença é nossa condição
natural, ninguém é igual, nem igual e nem melhor do que ninguém”.
(ENTREVISTA N° 2, 06/10/2016).
46
Na primeira fala, observa-se que foi feita uma relação de comparação entre os estados
do Rio Grande do Norte, em que atualmente mora, e Rio de Janeiro, sua moradia anterior. No
seu entendimento, as relações de descriminação de gênero são mais presentes e intensas no
Rio Grande do Norte, em fato da aparente submissão das mulheres em relação aos homens no
Estado do RN.
Já no relato da segunda professora, a discussão sobre a forma de racismo praticada no
Brasil, conhecido como “racismo à brasileira”, evidencia-se na sua confirmação, mesmo que
de forma velada. De acordo com os relatos, essas professoras não sofreram de forma explícita
estas formas de opressão em suas condições de mulheres negras. Para elas, o racismo existe e
se apresenta de forma sutil. Segundo Oliveira, “a ideologia do racismo permanece forte e
implícita nas práticas sociais e age silenciosamente na reprodução das desigualdades sociais,
raciais e de gênero” (2006, p. 100).
Diante de tal conjuntura, ao serem questionadas sobre a relevância de se discutir as
temáticas raciais e de gênero nos estabelecimento de ensino, reconhecem tal importância tanto
nas escolas como para qualquer espaço e profissão. E afirmam serem estas temáticas
imprescindíveis na formação de qualquer cidadão.
“É vamos dizer assim, não é importante não, é imprescindível! Não se pode
formar ninguém, hoje, sem que essa pessoa tenha oportunidade de fazer essa
discussão, de ouvir e de participar dessa discussão. Seja de qualquer
profissão, de qualquer profissional. Se for professor ainda mais, porque o
professor é o responsável pela formação de outras pessoas. Das pessoas em
geral e pra que elas tenham a possibilidade de refletir sobre sua própria
postura, suas atitudes e talvez superar seus preconceitos, pra suas atitudes,
pra vida em relação a todas as outras pessoas, as suas relações em qualquer
lugar, isso é importante pra todas as pessoas, mas para os professores, além
disso, é fundamental que eles tenham uma discussão um pouco mais
aprofundada, porque o papel do professor é formar outras pessoas. [...] então
não pode ser uma discussão isolada, isso tem que fazer parte mesmo do
nosso currículo transversalmente e obrigatoriamente” (ENTREVISTA N° 1,
19/09/2016).
“E foram anos, séculos de exclusão, de não aceitação, de preconceito com
relação aos meus irmãos de cor e em função disso os movimentos foram
importantíssimos para garantir, durante muito tempo, eu só lembro de um
único professor que tinha no CCSA como negro, professor Elisau. Mas eu
entrava na sala de aula e não tinha negros na minha sala de aula, agora não,
já vejo uma sala mais colorida” (ENTREVISTA N°2, 06/10/2016).
A relevância atribuída pelas professoras na abordagem das temáticas raciais e de gênero
nos espaços institucionais de ensino é considerada fundamental. Incluem, também, a
importância da obrigatoriedade de tais temáticas à formação de todo e qualquer cidadão. A
figura do educador toma destaque por ser a figura de representação na formação cidadã de
47
cada indivíduo que passa pela escola. Para a primeira entrevistada tal formação fornecida pela
escola, contextualizada às situações sociais, culturais, políticas, torna-se passo fundamental na
desconstrução das estruturas dominantes estabelecidas, em que refletem a discriminação, o
racismo e o sexismo.
Ainda na perspectiva da primeira entrevistada a formação dos professores deve ser
pensada de forma a atender as demandas sociais, e pautar-se no respeito às diferenças. Para
ela “[...] formar pessoas que também tenham essa intenção, porque todas essas questões são
culturais, então a gente pra fazer mudanças na cultura, à gente precisa de muito trabalho, isso
esta muito interiorizado, muito arraigado nas pessoas em geral”. Logo, a formação do
professor deve ser elaborada com intuído de atender as diferenças no espaço escolar, como
também contribuir a construção de valores, hábitos e comportamentos isentos de preconceito
racial ou de gênero.
Para além das argumentações citadas pelas professoras, faz-se necessário aqui também,
citar como toda equipe pedagógica dos sistemas de ensino exercem papéis importantes na
implementação dessas discussões na escola. A gestão democrática vem à tona como
primordial, sendo a maneira pela qual a escola, a cidade, um país, funciona valorizando a
opinião e participação de casa cidadão para alcançar o bem comum.
Dessa forma, apenas com uma postura realmente democrática e participativa podem-se
alcançar propósitos mais dinâmicos, concretos, coletivos e diversificados no reconhecimento
da diversidade que há no espaço escolar.
Nesse sentido, a escola que efetiva no seu espaço uma gestão democrática em seu dia a dia
cria diversas oportunidades para formular uma educação que estabelece o respeito à
diversidade e compromete-se á combater e superar o racismo e demais práticas
discriminatórias. Assim, em meio a tais discussões para superação das formas de
descriminação, nos últimos anos, o Ministério da Educação (MEC), comprometido com a
pauta de políticas afirmativas do Governo Federal, vem elaborando e implementando um
conjunto de medidas e ações no intuito de corrigir injustiças, eliminar descriminações e
promover a inclusão social e a cidadania para todos no sistema escolar brasileiro.
A educação constitui-se um dos principais ativos e mecanismos de
transformação de um povo e é papel da escola, de forma democrática e
comprometida com a promoção do ser humano na sua integralidade,
estimular a formação de valores, hábitos, e comportamentos que respeitem
as diferenças e as características próprias de grupos e minorias. Assim, a
educação é essencial no processo de formação de qualquer sociedade e abre
caminhos para a ampliação da cidadania de um povo (BRASIL, 2005, P. 7).
48
A sociedade brasileira, ao longo de sua história, estabeleceu um modelo de organização
excludente, que obteve como consequência o impedimento de milhões de brasileiros a direitos
fundamentais como o acesso à escola e, até mesmo, a permanência nela. Esse fato pode ser
observado na fala da segunda professora entrevistada “foram anos, séculos de exclusão”
denunciando um quadro desigual vivenciado por alguns grupos brasileiros.
Esse quadro de desigualdade vem sendo abordado através de políticas, educação, reflexão,
promoção do respeito, na tentativa de reverter os efeitos desastrosos na sociedade brasileira
decorrentes da escravidão e do sistema patriarcal.
Diante disso, houve a criação de secretarias comprometidas com a educação e
alfabetização, com a educação para relações raciais e aos debates de gênero (mulheres e
homens), tais secretarias com finalidades de garantir o exercício de direito a todo cidadão,
forjando um novo modelo de desenvolvimento pautado na inclusão social, fortalecimento de
políticas, e criação de instrumentos de afirmação cidadã, valorizando a riqueza de nossa
diversidade étnico-racial e cultural.
Em razão disso, as entrevistadas reconhecem a necessidade de implementar mudanças
destinadas a população negra aumentando o acesso dessa população em áreas negadas
historicamente, com intuito de minimizar as desigualdades raciais, sociais e de gênero.
Demonstram perante as propostas de mudanças, como políticas compensatórias, ações
afirmativas, cotas, multiculturalismo e outros:
“Bom sobre isso você deve ter assistido Nilma Lino Gomes, porque na
palestra de Nilma, ela discutiu né essa ideia da importância da
multiculturalidade, da ideia de discutimos, de termos presente na nossa
sociedade essa discussão, e que isso deve atravessar as nossas práticas na
universidade que é importante que a universidade tenha e realize essa
discussão em todos os seus cursos e que atravessando a fala dela estava o
tempo todo, o quando estamos perdendo e podemos perder com esse
governo golpista, que tomou o poder de uma maneira totalmente ilegal e que
vem usando esse poder pra desconstruir e desfazer vários avanços que
tivemos aí nesse pequeno intervalo, pouquíssimos últimos 13 anos [...] o fim
do Ministério que era o Ministério de Nilma Lino Gomes, da diversidade,
das mulheres, etc., então isso já demonstra qual é o pensamento e que
fundamenta as propostas desse governo golpista, então é muito sério o que
estamos vivendo. É isso, então para além, Nilma dizia, para além das cotas
que são uma conquista importante de ter sido universalizada para as
universidades públicas, para, além disso, é preciso mostrar pra quem entra na
universidade com cota ou sem cota, o porquê existem cotas, o porquê é
importante que ela exista e o porquê que essa discussão é importante. [...] As
pesquisas demostram que não há nenhuma diferença em termos de
desempenho em relação a esses alunos cotistas, muito pelo contrário se tiver
diferença é pra melhor [...]” (ENTREVISTA N° 1, 19/09/2016).
49
“[...] eu acho inclusive que as cotas deveriam ser ampliadas, não só para
negros, índios, etc., e tal, mas também para as pessoas pobres que também
são tão excluídas como nós, nos diversos âmbitos dos quais participo. Então,
eu sou a favor considero uma forma de justiça social, me incomodava àquela
questão de estudar numa universidade pública e você saber que as pessoas
que estavam ali não eram da minha classe social, de ser exceção e que nesse
momento você passa por um processo de, vamos dizer assim, de permitir
esse acesso [...] Eu lembro que a primeira vez que eu vi o livro didático dos
meus filhos e tinha a história da África eu me assustei, eu nunca tinha visto
aquilo, no meu tempo não era assim, a gente só estudava que havia índio,
negro e branco, mas a história, toda a trajetória, todos os conteúdos que a
gente trabalhava e estudava não era, era só pra fazer, eu lembro que quando
a gente trabalhava lá na classe de alfabetização, a gente tinha o dia do índio
como ainda hoje existe, coloca lá os menininhos pintados, libertação dos
escravos, eram datas comemorativas, mas a gente não ressignificava nossa
prática até porque éramos também mentes colonizadas que viam as nossas
raízes de forma, vamos dizer assim, a gente acabava por reproduzir muitas
vezes as relações de dominação que nós vivíamos e que se naturalizava e a
gente se repetia e em função disso nos sentido inclusive inferiores, menores,
como muitas vezes eu me vi [...]” (ENTREVISTA N° 2, 06/10/2016).
Foi no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e, em seguida no governo da
Presidenta Dilma Rousseff, que passou a ser redefinido o papel do Estado como propulsor das
mudanças sociais. Reconhecendo as disparidades entre brancos e negros em nossa sociedade,
além da necessidade de intervir de forma positiva, assumindo o compromisso de eliminar as
desigualdades raciais e de gênero. Assim, dando importantes passos rumo à afirmação dos
direitos humanos básicos e fundamentais da população negra brasileira. Aqui faz-se
necessário destacar que as medidas tomadas e direcionadas a população negra tem o
importante pepal e luta dos Movimentos Sociais, todas as conquistas tiveram participação e
pressão dos Movimentos sociais para sua consolidação.
Na fala da primeira entrevistada, ela cita Nilma Lino Gomes, a qual também faz parte do
referencial na construção deste trabalho. Nilma foi anunciada oficialmente Ministra de Estado
Chefe da Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial. Esta secretaria teve como
objetivo promover políticas de promoção a igualdade e a proteção de grupos raciais e étnicos
afetados por descriminação e demais forma de intolerância, com ênfase a população negra.
Numa nova estrutura estabelecida pelo governo a esse ministério também foi adicionada
novas pastas, juntando a Secretaria Especial de Promoção a Igualdade Racial, a Secretaria de
Políticas para as Mulheres e a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Todas, agora,
reunidas numa única secretaria representada por Nilma Lino Gomes.
No entanto, tal secretaria passou a fazer parte do Ministério da Justiça pós reforma
ministerial no atual governo Michel Temer, após o processo de impeachment da presidenta
50
Dilma Rousseff. Esse fato foi avaliado pela primeira professora entrevistada como negativo e
desfavorável à sociedade brasileira, pois tais medidas para ela têm sido posturas ameaçadoras
de desconstruir e desfazer diversos avanços alcançados nos últimos 13 anos. Para ela,
conquistas como as políticas de cotas devem ser discutidas nos espaços educativos,
elucidando reflexões da sua existência, sua configuração, e seus impactos.
A segunda professora entrevistada considera as políticas de cotas como forma de justiça
social, sendo favorável a elas. Além disso, a professora considera que essas políticas deveriam
ser ampliadas as classes menos privilegiadas, ou seja, as minorias pobres que vivem à
margem da sociedade, excluídas, devendo ser consideradas as populações pretas e brancas.
Segundo Oliveira (2004, p. 87) essas medidas devem ser pensadas de forma que se
ramifiquem a todos os espaços sociais “provocar uma mudança nas atitudes dos atores para
que se tornem mais críticos à discriminação e ao filtro da consideração”.
As políticas compensatórias, como as cotas, podem, no seu interior, ser uma forma de
estimulo que visa uma maior preocupação como respeito aos direitos, à cidadania dos negros
e à ampliação das oportunidades de participação no mercado e na vida pública do país.
Ainda no contexto da segunda entrevista, um fato consideravelmente importante são as
mudanças didático-pedagógicas nas escolas e no processo de ensino aprendizagem, com
destaque para o livro didático que já apresenta mudanças primordiais para a educação das
relações étnico raciais. Neste caso, faz-se interessante citar a Lei n. 10.639/2003,
posteriormente reformulada para Lei n. 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do
ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira e dos povos indígenas na educação
básica. Fruto da atuação histórica do movimento negro brasileiro, esta legislação foi criada
para que todo o Brasil avance no sentido de transformar suas relações sociais em prol da
igualdade racial e conheça culturas e histórias ainda pouco abordadas em creches, escolas, e
universidades. Histórias essas ainda invisíveis, desconsideradas e desvalorizadas pelo
currículo, currículo que não é “neutro”, mas fundamentado a partir da perspectiva de
determinados grupos sociais.
Por último, neste processo investigativo, com intuito de observar a situação das mulheres
negras no Brasil, questionam-se as entrevistadas em que lugar elas consideram estar essas
mulheres no quadro brasileiro.
“Uma das coisas que me chamou atenção também aqui em Natal é que eu
via poucos negros, aí eu comecei a andar um pouco mais na cidade, os
negros estão na periferia, vai à zona norte. [...] eles estão e onde eles estão
51
nas periferias, sempre nos piores postos de trabalho, nos piores salários, etc.,
com raras exceções, e as mulheres pior ainda, porque é isso estatisticamente,
as mulheres negras, se os negros e negras de forma geral sempre tem um
patamar abaixo de salário, de condição de trabalho, de tipo de trabalho né
pior, nesta faixa de negros e negras as mulheres negras estão pior ainda,
porque tem uma dupla [...] sofrem duplo preconceito de ser negra e ser
mulher” (ENTREVISTA N° 1, 19/09/2016).
“Eu não sei dizer onde elas estão, em grande maioria em casa, em grande
maioria como donas de casa, como empregadas domésticas. Eu sei que a
grande maioria não está aqui dentro da universidade, isso é fato, nem como
aluna e muito menos como professora, então elas, as mulheres negras
continuam ocupando papeis subalternos” (ENTREVISTA N° 2, 06/10/2016).
O Brasil tem apresentado, nos últimos anos, avanços importantes como as políticas
compensatórias, cotas, ações afirmativas, em diversos indicadores sociais. Contudo, esses
avanços pouco têm alterado as desigualdades raciais no país. Dessa forma, alguns dados
podem ilustrar o desafio:
No rendimento médio do trabalho por raça/cor, os homens brancos
recebiam o valor mensal de R$ 1.817,70; as mulheres brancas, R$
1.251,87; os homens negros, R$ 952,14; e as mulheres negras, R$
702,17 (IBGE/2010);
Segundo o estudo de 2012 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), na faixa etária de 15 a 24 anos, as jovens mulheres negras
expunham os maiores índices de desigualdades, com taxas de
desemprego de 25,3%. O número era 12,2% superior ao grupo de jovens
homens brancos
A taxa de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais de idade, por
raça/cor, era de 13,7% entre os negros, enquanto para os brancos era de
5,9% (IBGE/2010);
8,5% da população brasileira é extremamente pobre, sendo 70,8% dela
constituída por famílias negras. Nesse grupo incluem-se sem
rendimentos ou as que vivem com renda per capita de até R$ 70,00
(IBGE/2010).
Isso demonstra claramente que os relatos das professoras remetem a uma realidade que
manifesta uma lógica perversa envolta em uma ideologia racista, machista, sexista e desigual.
Para a primeira entrevistada, o lugar ocupado pela população negra diz respeito aos espaços
em que há as piores condições de trabalho, os salários mais baixos, e nas ocupações que não
tem valorização alguma. Dessa forma, se para a população negra essa lógica reflete de
maneira tão negativa, para as mulheres negras, tais condições tornam-se mais intensas ainda,
pois, segundo a professora, essas mulheres sofrem duplo preconceito, de ser mulher e ser
negra numa sociedade em que são invisíveis. Segundo Sergio Adorno esse cenário coberto de
preconceito racial “tendem a estreitar sobremodo suas oportunidades de vida, sua integração
ao mercado de trabalho em condições de igualdade de postos e de salários, bem como suas
52
chances sociais de aquisição de graus mais elevados de escolaridade” (ADORNO, 1995, p.
296).
Na disparidade entre homens e mulheres e quando inserido o fator raça/cor, de acordo
com os dados do IBGE (2010), os menores salários, a maior taxa de desemprego, a população
vítima da extrema pobreza, e importante evidenciar, a taxa de analfabetismo está entre os
negros brasileiros, e mais ainda entre as mulheres negras. Neste cenário, dificilmente
mulheres negra conseguem ascender socialmente. Torna-se uma tarefa árdua para elas
ocuparem o chão da escola, mais árduo ainda ocuparam o chão da universidade, imagine
então tornarem-se professoras do ensino superior. Segundo Teixeira (2006, pp 27-28 apud
REIS, 2008, p. 157):
Em torno de 60% das mulheres professoras têm nível médio e atuam no
ensino fundamental, enquanto os homens só atuam nesse nível de ensino em
23%; a maior parte (31,7%) atua no nível médio e em expressivo percentual
(18,3%) trabalha no nível superior de ensino. Ou seja, através desses dados
se pode concluir que o ensino superior é uma categoria masculina (a
participação dos homens é mais de quatro vezes superior à participação das
mulheres), assim como o ensino médio, os cursos de formação profissional e
de educação física, enquanto o ensino fundamental e a educação infantil para
profissionais de nível médio são femininos e mais representativos também
para pretos e pardos (TEIXEIRA, 2006, pp. 27-28).
Isso pode ser observado na fala da segunda professora negra entrevistada: “eu sei que
a grande maioria não está aqui dentro da universidade [...] nem como aluna e muito menos
como professora, então elas, as mulheres negras continuam ocupando papeis subalternos”.
Historicamente, as mulheres negras foram e têm sido marginalizadas cotidianamente,
diante de uma lógica que as segrega a grupos considerados minorias, permeados por
ideologias que as descriminam. Uma sociedade que insiste em determinar que lugares essas
mulheres devam ocupar e que posições, as subalternizando. Para elas todo dia é dia de lutar,
resistir e romper estruturas históricas marcadas com o sofrimento de seu povo.
As particularidades dessas mulheres negras geram consequências concretas em sua
participação na sociedade, o que leva todos/as para um longo caminho rumo à transformação
social. Elas compõem grande parte da classe trabalhado brasileira, as donas de casa,
moradoras das periferias, mas também mesmo que em menor número ocupam universidades e
escolas.
No espaço universitário, seja como aluna ou como professora, ainda é muito forte o
contraste da disparidade entre negros e não negros. No caso de professoras negras o número é
53
ainda menor. O espaço acadêmico consiste num lugar ainda distante para as mulheres negras,
apesar de existirem exceções. Essas mulheres em sua maioria estão nas filas de creches para
seus filhos, nas filas de hospitais públicos, nos presídios, etc.
Mulheres negras correspondem em média cerca de 25% da população carcerária
feminina. A esse fato o Mapa da Violência do ano de 2012 aponta que as taxas de homicídio
para cada 100 mil habitantes entre 1980 e 2010 cresceram de 11,7 para 26,2. Enquanto o
número de homicídios de brancos caiu em 27,1% entre 2002 e 2010, entre os negros houve
aumento de 19,6% no mesmo período. Se em 2002 morriam proporcionalmente 45,8% mais
negros do que brancos, em 2010, o índice chegou a 139%.
Para REIS (2008), as famílias negras em sua maioria estão concentradas massivamente
na classe trabalhadora, “sofrem as consequências oriundas do capitalismo que, no seu
processo de reprodução, gera grandes desigualdades sociais; desemprego, pobreza e miséria,
fome, concentração de renda, degradação da qualidade de vida, violência etc.” (p. 81).
É a partir dessas relações que se pode evidenciar o racismo na sua forma enraizada,
nas instituições, o que chamamos de racismo institucional. Trata-se de um obstáculo muito
concreto para o acesso ao direito à educação e demais direitos humanos. Esse racismo
aumenta consideravelmente as barreiras existentes numa estrutura de dominação
hierarquizada, “o lugar social e historicamente preestabelecido para a população negra; e os
obstáculos que impedem a mobilidade social dessa população” (REIS, 2008, p. 146).
Essa forma de organização social está diretamente ligada às relações de poder
estabelecidas nas relações sociais. Dessa forma, produzindo e reproduzindo uma
hierarquização entre as classes, nelas compostas por dominadores e dominados. A população
negra, assim, compondo um grupo dominado pelas relações de opressão presentes na
sociedade civil. Nesse sentido, sendo separada por espaços físicos e de poder, os quais
refletem na sociedade, na cultura, na representação política e de trabalho, concebendo-se
assim a subalternização desta população.
Logo, as narrativas das professoras negras do ensino superior permeadas pelas
relações raciais e de gênero demostram como suas trajetórias foram e são influenciadas por
uma lógica de marginalização social. Assim, revelando como as suas condições de gênero e
cor fomentam relações conflituosas na sociedade, através das ideologias estruturais racistas e
sexistas.
54
Portanto, os relatos das professoras negras, sujeitas desse estudo, demostram como há
uma desigualdade de gênero e raça presentes nos espaços sociais. Apontam ainda como meios
combativos dessa desigualdade, a importância das políticas públicas voltadas à população
negra, como também a implementação de práticas com base no respeito, na democracia, na
gentileza e ampla disseminação dessas temáticas em toda e qualquer formação profissional.
Assim, construindo um trabalho com vistas à emancipação do povo negro, e
contribuição para novos valores, hábitos e comportamentos na sociedade. Dessa maneira, com
fins de promover a igualdade e o reconhecimento ao povo negro.
55
4 CONSIDERAÇÕES
A análise feita aqui neste trabalho, em que as mulheres negras professoras universitárias
tornaram-se protagonistas essenciais e necessárias para se compreender suas trajetórias
transpassadas pelas ralações de gênero e raça foi uma maneira de apontar as desigualdades de
cunho racista e sexistas ainda protagonizadas nos espaços da sociedade. Compreendendo o
racismo e machismos como gatilhos de processos históricos, sociais, culturais e econômicos
na sociedade brasileira.
As particularidades da discriminação das mulheres negras têm consequências concretas
em sua participação na sociedade brasileira. É nítido que as mulheres, em destaque as negras,
ainda não alcançaram, enquanto sujeito político coletivo, uma posição de poder na sociedade.
Poucas conseguem chegar a esse patamar, como se apresentam as sujeitas da pesquisa. Esta
realidade tem natureza estrutural, derivada, entre outros fatores, da lógica de marginalização
social, o que revela que as dificuldades encontradas pelas mulheres não são decorrentes de sua
situação individual, nem de deficiências particulares.
As representações, mesmo que em número menor no espaço universitário, por mulheres
negras, evidenciam que o racismo tem suas dimensões constatadas mesmo que na sua forma
“mais sutil”. Visto que o espaço superior de ensino pode, talvez, favorecer no acesso a novas
ideais, a diversidade, ao conhecimento. Isso não isenta, de forma alguma, que tal sistema de
afirmação de superioridade não ocorra, ou não exista neste lugar.
Pode-se verificar, nos relatos de ambas as professoras que, em suas formações, a
identificação enquanto mulheres negras que atravessam momentos de discriminação em suas
vidas e como esses acontecimentos provocaram e impulsionaram suas formações pessoal e
profissional. Vê-se também, como atribuem fundamental importância na discussão de gênero,
raça, etnia nos sistemas de ensino como meio de propor e pautar o respeito, a igualdade e
diversidade sociocultural brasileira nas escolas.
Discutir sobre o protagonismo dessas professoras no ensino superior possibilitou a
oportunidade de dar visibilidade as suas lutas e reivindicações, marcadas muitas vezes pelo
silêncio, desvalorização, desrespeito, mas que foram fortes o suficiente para enfrentarem
muitas dessas barreiras em suas trajetórias de vida até ao caminho de docentes do ensino
superior. Resistir tornou-se luta possível e fundamental para elas.
Neste estudo percebeu-se também que o racismo, a discriminação racial e as práticas
machistas estão fortemente impregnadas na sociedade brasileira, contribuindo
56
demasiadamente para um quadro de desigualdade social e racial. Sabe-se que tais fatores são
consequências de um passado que cruza a disputa por terras, por capital, por trabalho escravo,
por sofrimento, por sangue, por crueldade. Um passado obscuro da sociedade brasileira, em
que mulheres, negros, indígenas, sofrem até os dias atuais.
Toda essa situação de perseguições à população negra, seja por meio de estereótipos ou
estigmas, foi fortemente acentuada pelas teorias racistas científicas do século XIX que levava
em consideração as heranças “positivas” eram transmitidas geneticamente, e não por
processos educativos/sociais, em que negros/a não compunham tal herança.
Essas imposições também fortaleceram o imaginário do mito da democracia racial e a
ideologia do branqueamento. Essa na tentativa de dizimar povos negros, aquela tentando
ofuscar o injusto cenário social brasileiro.
No caso das mulheres negras, é pertinente reconhecer a relação de gênero como fator de
influência nas suas dificuldades como docentes do ensino superior. Assim, tornam-se
duplamente discriminadas pelas condições de ser mulher e negra.
É importante também constatar a relevância do papel das políticas, mesmo que ainda
vivamos um cenário de desigualdades evidenciadas pelas pesquisas, como medidas de
extrema importância na garantia da ocupação dos espaços da sociedade, principalmente os
espaços de ensino. A escola torna-se aqui um dos campos possível e mais relevantes para as
transformações rumo a uma nova sociedade pautada na justiça social e na igualdada de
direitos para os grupos socialmente excluídos e marginalizados.
Lamentavelmente, as mulheres negras no Brasil ainda ocupam lugares pouco prestigiados,
pouco reconhecidos, com as piores condições de trabalho, as remunerações mais baixas, as
que menos possuem habilidades de escrita e leitura. Dessa forma, pode-se considerar que
professoras, como as que colaboraram com este trabalho, são exceções no espaço acadêmico
superior. Ainda é necessário mudar esse quadro, para que as universidades se pintem de
povo, para que a classe trabalhadora moradora das zonas periféricas do Brasil ocupe a
universidade tornando-a mais democrática e diversa.
Sabemos que as discussões sobre as relações raciais e de gênero estão longe de se
esgotarem, sabemos que muitas outras discussões devem ser realizadas comparadas a esta
pesquisa, que poderão ser respondidas à medida que novos estudos sejam realizados nas
temáticas raciais e de gênero.
57
Por fim, por meio das histórias compartilhadas pelas professoras neste trabalho, mesmo
que perpetuados por momentos de discriminação, a esperança é que suas narrativas possam
chegar a outras mulheres negras e as estimulem, lhes deem forças e esperanças para lutarem e
reivindicarem espaços que são direito seus.
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APÊNDICE 1
1. ROTEIRO DE ENTREVISTA
TEMA: A PRESENÇA DA MULHER NEGRA NA DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA: DISCUTINDO RELAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES RACIAIS
OBJETIVO: discutir e fomentar a importância do protagonismo das mulheres negras nas instituições de ensino e pesquisa do nível superior enquanto docentes universitárias, além também de observar como ocorre sua trajetória permeada por ambas às relações.
Nome:
Idade:
Formação:
Campus:
1) Como se constituiu a relação entre a sua formação na família e a educação formal? Que papel teve sua família em sua formação?
2) A partir de que momento ocorre a construção da sua identidade de mulher negra? Como ocorre?
3) Já vivenciou, mesmo que silenciosamente, práticas de reprodução de desigualdades sociais, raciais e/ou de gênero?
4) O que a impulsionou na caminhada até a posição de professora do ensino superior público?
5) Que obstáculos e dificuldades você encontrou para ingressar e permanecer na carreira do magistério?
6) O que considera ser racismo e machismo, e em que medidas tais práticas interferiram ou interferem na sua condição de mulher negra professora ?
7) Que relevância atribui à possibilidade de abordar a questão do racismo e do machismo nos espaços institucionais?
8) Que formas de enfrentamento ao racismo e ao machismo tem sido praticadas ao longo da sua trajetória formativa e profissional?
9) Pra você onde estão as mulheres negras e porquê?
10) Qual seu posicionamento perante as propostas de mudanças, como políticas compensatórias, ações afirmativas, cotas, multiculturalismo e outros?
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APÊNDICE 2: ENTREVISTA Nº 01
TEMA: A PRESENÇA DA MULHER NEGRA NA DOCÊNCIA: DISCUTINDO AS RELAÇÕES DE GÊNERO E AS RELAÇÕES RACIAIS
OBJETIVO: discutir e fomentar a importância do protagonismo das mulheres negras nas instituições de ensino e pesquisa do nível superior enquanto docentes, além também de observar como ocorre sua trajetória permeada pelas relações raciais e de gênero.
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Nome: ENTREVISTA N° 01 Data: 19/09/2016
Idade: 52 anos
Formação: Graduação em pedagogia e Mestrado em Educação – UFRJ/ Doutorado em Educação – UFF/ Pós –doutorado- Universidade de Coruña
Campus: Natal
1) Como se constituiu a relação entre a sua formação na família e a educação formal? Que papel teve sua família em sua formação?
“Me obrigando a ir pra escola! Desde criança eu entrei na escola aos 3 anos de idade. Minha mãe trabalhava e meu pai trabalhava, minha mãe era professora, então eu tinha valorização da educação formal na minha casa né, meu pai apesar de não ter completado o que, hoje, a agente chama de ensino fundamental, também era/é uma pessoa que valorizava a educação, a escolarização, apesar dele ter fugido da escola, ele fugiu literalmente, e então isso, assim, desde criança muito pequena eu sabia que eu ia pra escola, eu ansiava ir pra escola, eu ansiava ir pra escola, especialmente, porque eu queria muito aprender a ler, então minha mãe sempre brinca quando ela me levou pra escola pela primeira vez quem chorou foi ela, porque eu simplesmente dei tchau pra ela e sai correndo, então, porque eu gostava muito e as minhas lembranças da escola são sempre muito boas, sempre gostei muito do ambiente da escola e sempre fiz coisas que eu gostava”.
2) A partir de que momento ocorre a construção da sua identidade de mulher negra? Como ocorre?
“Então eu não sei precisar assim um momento, um dia né, porque também eu acho que isso é impossível, porque é uma construção mesmo, que é feita ao longo da vida, especialmente, por conta do racismo mesmo isso não é dado né, especialmente, pessoa como nós que não temos o fenótipo tradicional do negro, to falando nós, eu e você, porque somos mais ou menos iguais. Bom então, uma construção mesmo, então eu me lembro, assim de coisas que me falavam, principalmente na minha adolescência, porque criança a gente não presta muita atenção nessas coisas, mas na adolescência algumas coisas que me falavam e me deixavam assim em dúvida ou inquieta e porque que estavam falando essas coisas, por exemplo, uma coisa que eu me lembro é que as minhas próprias colegas, amigas de escola sempre que diziam que eu devia namorar alguém essa pessoa era negra, entendeu, então é uma forma de racismo né, mas eu acho que isso começou a ficar mais claro pra mim na época da universidade né, porque claro na universidade a gente amplia, eu sai de uma cidade menor, fui pra uma cidade maior, e a universidade mesmo né, que tem esse papel na vida da gente eu acho de ampliar a nossa visão de mundo pelo simples fato de estarmos ali de termos contato com uma serie de ideais, convergente, divergentes, então isso foi ficando cada vez mais claro pra mim né, que eu era uma mulher negra, até inclusive, até o doutorado que eu tinha uma amiga que pesquisava sobre as mulheres negras, uma vez alguém falou assim pra mim ‘ah vocês duas (eu e ela, eu e essa amiga), vocês duas tem mais ou menos a mesma cor, mas eu identifico ela como mulher negra, mas você não’ não sei se era por causa do cabelo, enfim, né, mas... e também eu acho que isso acompanhou meu processo de formação, acompanhou também no momento em que esse debate começou a ser feito com mais clareza na sociedade né, então eu pude pensar um pouco mais sobre isso”.
3) Já vivenciou, mesmo que silenciosamente, práticas de reprodução de desigualdades sociais, raciais e/ou de gênero?
“Sim! Então eu vou te contar a história do elevador, é que essa foi uma bastante marcante pra mim, porque eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo e depois foi a minha professora, minha orientadora, que me mostrou que naquele momento eu estava sendo vitima de uma prática de racismo né, pelo porteiro do edifício dela, um edifício elegante em Copa Cabana, que me mandou subir pelo elevador de serviço, e quando eu cheguei ela estranhou o porquê eu estava saindo daquele elevador e quando eu falei que tinha sido o
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porteiro quem tinha indicado ela ficou um pouco chateada e aí conversamos sobre isso. E lugares também que já várias vezes houve práticas silenciosas de racismo, muitas vezes em lojas, lojas bacanas, mais caras e tal, que você entra e não é atendida, como se você não estivesse ali, ignorando sua presença, imagino porque, devem imaginar que eu não poderia comprar ou que eu não deveria estar ali enfim... Mas não, nunca, sofri assim nenhum ataque direto e agressivo nesse campo, nem do racismo nem de machismo, de gênero, preconceito de gênero. Preconceito de gênero é uma coisa que atravessa a vida de mulheres sempre né, nos mínimos detalhes eu acho.
4) O que a impulsionou na caminhada até a posição de professora do ensino superior público?
“Então, não foi uma caminhada proposital nem intencional que me trouxe até aqui, eu não queria ser professora, eu fiz o magistério do ensino médio porque era a única opção na minha escola pública numa época que era obrigatório fazer um curso profissionalizante e também por uma certa pressão familiar, porque minha mãe considerava que eu deveria fazer o magistério, porque terminando o curso de magistério eu teria uma profissão e poderia trabalhar. Então, assim fiz, quis sair disso, fui fazer comunicação social, fiz vestibular pra comunicação social, fiz pra ciências sociais, mas pouco tempo depois que eu terminei o magistério, teve um concurso pra professor do estado e eu tinha a qualificação, fiz o concurso passei e fui ser professora. Nesse momento eu percebi que pra ser professora eu precisaria de mais formação, e ai eu sai da ciências sociais e fui pra pedagogia, ai terminei a pedagogia, emendei a pedagogia com o mestrado e quando terminei o mestrado eu não queria mais saber de fazer vida acadêmica, fui trabalhar, trabalhei em vários projetos e aí quando eu tive em mãos os relatórios, os registros diários das práticas pedagógicas das professoras com as quais eu trabalhava, eu coordenava o trabalho delas a distância, eu comecei a achar que aquilo era muito interessante e foi oito anos depois de eu ter terminado o mestrado, ai eu achei que valeria a pena fazer o doutorado, mas quando eu comecei a fazer o doutora, segundo uma amiga minha era só porque eu não tinha nada pra fazer, é eu não pensava em ser professora, porque também nessa época foi em 2004, a seleção foi em 2003, e em 2004 eu comecei o doutorado, então nessa época ainda era muito restrito, a abertura de vagas pro professor no ensino superior, não existia a quantidade de concursos que existe hoje, isso foi ao longo do meu doutorado crescendo né, porque foi justo também no momento em que com o Governo Lula abriram-se mais, as universidade cresceram muito, abriram-se muitas vagas e já no final do meu doutorado coincidiu mesmo com o REUNI, então a minha vaga aqui na UFRN, é uma vaga proporcionada pelo reuni, e tanta outras. Então, eu fiz o doutorado de 2004 á 2008, neste ano de 2008 é, foi um ano de muitos concursos, muitos, porque eu acho que exatamente estava começando o reuni, então eu recebia praticamente todos os dias ‘concurso para universidade federal de num sei onde Tocantins, Roraima, Rio de Janeiro, São Paulo... e aí eu já estava meio, não quero dizer uma expressão para ser gravada, mas já estava meio chateada com meu trabalho naquele momento, porque as relações, eu gostava muito do trabalho que eu fazia no SESC coordenando o projeto de alfabetização de Jovens e Adultos, gostava muito das minhas companheiras de trabalho, do trabalho que eu fazia, mas as relações no SESC eram muitos ruins, muito difíceis, e ali sim a gente sofria muito preconceito de gênero, não diretamente dizendo isso né, mas como Dilma sofreu agora né, muitas coisas contra Dilma eram fragrantemente preconceito de gênero, certas coisas que falavam, que faziam, que caricaturavam não fariam com um homem né, embora não existisse um discurso direto ‘você é burra porque você é mulher’, mas é, então no SESC também tinha um pouco esse... eu já estava meio me cansando um pouco, e ai pensei ah pode ser uma oportunidade e aí me inscrevi em alguns concursos fiz esse primeiro passei e pronto vim pra cá”.
5) Que obstáculos e dificuldades você encontrou para ingressar e permanecer na carreira do magistério?
“Então, pra ingressar nunca tive nenhum obstáculo porque foram todos por concurso, concurso público, mesmo no SESC foi um concurso público, processo de seleção. Então, é... nunca teve assim um impedimento por conta disso ser mulher ou ser negra, mas, e aqui pra desenvolver o meu trabalho nunca senti isso, ao contrario nem dos colegas, nem da instituição, no SESC tinha isso né, tinha a questão de gênero bastante forte, mas como éramos muitas mulheres a gente também se fortalecia por outo lado né”.
6) O que considera ser racismo e machismo, e em que medidas tais práticas interferiram ou interferem na sua condição de mulher negra professora ?
“Bom, racismo pra mim é ter um preconceito, ou seja, pré-conceber o que uma pessoa é, mas fazer um juízo de valor sobre uma pessoa de antemão, simplesmente por sua aparência física né. E o machismo é quase a mesma coisa, mas o machismo é... o conceito de racismo é um conceito mais recente, uma prática mais recente do que a prática machista que nos acompanha há muito mais tempo e que vemos vencendo ai nesse final de século XX e início do Século XXI. Mas é, ainda muito forte. Aqui no Rio Grande do Norte, por exemplo, eu sinto uma razoável diferença em relação ao machismo do que eu sinto no Rio, o machismo no Rio não é tão agressivo ou
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tão presente, tão óbvio, quanto é aqui pra mim. Aqui, por exemplo, eu senti as primeiras vezes que eu vim pra cá e saia sozinha, estava num bar sozinha, de todos olharem com um olhar de ‘o que, que essa mulher esta fazendo aqui, que coisa estranha uma mulher sozinha num bar’ entendeu? É... e eu vejo também, observo as vezes, quando to sozinha num bar, as relações que eu vejo assim entre as pessoas, entre casais ou família, das mulheres com uma postura muito subservientes né, tudo que as mulheres parecem fazer é pra agradar ao homem que está ao seu lado. Então né, eu acho uma coisa curiosa minha mãe e meu pai, embora tenho um olhar crítico, as vezes, sobre as coisas, mas são pessoas da sua geração né, então difícil de romper com certas coisas. Então, é na prática muitas vezes eu vejo que a minha mãe que toma decisões, mas ela toma decisões para agradar o meu pai, entendeu? E como ela muitas mulheres, digo assim toma decisões pra família, pra casa, pra instituição familiar, para organização doméstica, etc., mas ela só toma essas decisões que são decisões que ela sabe que vão satisfazer ao meu pai, vão deixar ele bem. E eu fico de olho em mim mesma, porque né existe uma tendência minha também a, as vezes, fazer isso com meu marido. Então é complicado, é bom que ele não deixa muito”.
7) Que relevância atribui à possibilidade de abordar a questão do racismo e do machismo nos espaços institucionais?
“É vamos dizer assim, não é importante não, é imprescindível! Não se pode formar ninguém, hoje, sem que essa pessoa tenha oportunidade de fazer essa discussão, de ouvir e de participar dessa discussão. Seja de qualquer profissão, de qualquer profissional. Se for professor ainda mais, porque o professor é o responsável pela formação de outras pessoas. Das pessoas em geral é pra que elas tenham a possibilidade de refletir sobre sua própria postura, suas atitudes e talvez superar seus preconceitos, pra suas atitudes, pra vida em relação a todas as outras pessoas, as suas relações em qualquer lugar, isso é importante pra todas as pessoas, mas para os professores, além disso, é fundamental que eles tenham uma discussão um pouco mais aprofundada, porque o papel do professor é formar outras pessoas. Então esse profissional professor precisa ser formado pra ter atenção às diferenças, pra que ele ajude a formar pessoas que também tenham essa intenção, porque todas essas questões são culturais, então a gente pra fazer mudanças na cultura, à gente precisa de muito trabalho, isso esta muito interiorizado, muito arraigado nas pessoas em geral. Então é preciso muito debate, muita prática também, pra que as pessoas comecem a mudar as suas atitudes e sua postura né, comecem a perceber o preconceito que está dentro delas, de que maneira esse preconceito se manifesta. Então, imprescindível, eu acho, por exemplo, que o nosso curso de pedagogia não discute isso suficiente, acabemos de aprovar uma disciplina optativa pra discutir questões raciais que vai ser oferecida no próximo semestre pelo professor João Valença, temos uma disciplina também optativa que discute questões de gênero, mas considero que além de estar nessas disciplinas optativas deveriam estar também em disciplinas obrigatórias, mas para além disso são questões que precisam atravessar as discussão do curso como um todo, por exemplo, essa temática vai aparecer também na disciplina de Teoria e Práticas Curriculares que vai discutir as diferentes teorias de currículo e aquelas teorias que no bojo dos movimentos sociais foram sendo criadas no âmbito das teorias pós-críticas. Então, o currículo escolar com a preocupação com gênero, com a preocupação racial, indígena, enfim, dessas diferenças, mas são discussões que precisam estar presentes ao longo desse curso, história e filosofia da educação precisam discutir isso, didática e currículo, e atuação do pedagogo em diferentes espaços pra que a gente possa “produzir, formar” pessoas aqui que levem essa preocupação pros seus lugares de trabalho, então não pode ser uma discussão isolada, isso tem que fazer parte mesmo do nosso currículo transversalmente e obrigatoriamente”.
8) Que formas de enfrentamento ao racismo e ao machismo tem sido praticadas ao longo da sua trajetória formativa e profissional?
“Então eu acho que é isso, primeiro me colocando como pessoa pra desconstruir os meus próprios preconceitos né, uma... eu não falei isso, mas aproveito pra falar agora, uma certa baixa autoestima que eu vejo que é assim recorrente entre as mulheres negras, e as mulheres negras são o suprassumo da pior coisa que existe na nossa sociedade né, em termos estatísticos se a gente for pensar né, as mulheres negras são aquelas que recebem o pior salário, são aquelas que têm a pior condição de trabalho, estatisticamente falando né. Pessoas como eu ou como você somos exceção né. Então eu acho que isso gera uma certa... pra nós mesmas, tanto preconceito que a gente percebe nos outros que pra nós mesma gera uma interiorização dessa inferioridade. Eu falo isso por achar, mas por viver, mas também por experiência, de colegas minhas que trabalham com essa temática na universidade, por exemplo, e que fazem e orientam trabalhos de mestrados, doutorado nesta área e é muito comum que as mulheres negras que pesquisam isso terão muita dificuldade de levar o seu trabalho a cabo, porque elas acham que não vão conseguir, entendeu? Então, existe um auto boicote, muitas vezes e muitas vezes é uma atitude de assumir a interiorização que os outros estão nos
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colocando, atribuindo à nós. Então, pessoalmente, eu acho que pra mim é uma luta interna contra isso né, de me impor, é... como profissional de não deixar que essa discussão seja esquecida, seja colocada de lado e divulgar, conversar com os alunos de uma maneira geral, é porque eu não pesquiso essa temática, eu mesma diretamente, mas é não deixar que isso tenha uma importância menor no meu trabalho, nas minhas relações, e na minha prática como professora”.
9) Pra você onde estão as mulheres negras e porquê?
“Uma das coisas que me chamou atenção também aqui em Natal é que eu via poucos negros, aí eu comecei a andar um pouco mais na cidade, os negros estão na periferia, vai à zona norte... Então quando eu transitava, logo que eu cheguei, transitava muito por aqui perto na Universidade, Candelária, foi o primeiro lugar que morei. É diferente da minha cidade que os negros estão em todos os lugares né, claro aqui tem uma diferença, porque aqui não houve uma presença de escravos tão forte como no Rio de Janeiro, por exemplo, como Pernambuco, etc., Mas, eu não sei estaticamente quando é a presença dos negros na população do Rio Grande do Norte, mas eles estão e onde eles estão nas periferias, sempre nos piores postos de trabalho, nos piores salários, etc., com raras exceções, e as mulheres pior ainda, porque é isso estatisticamente, as mulheres negras, se os negros e negras de forma geral sempre tem um patamar abaixo de salário, de condição de trabalho, de tipo de trabalho né pior, nesta faixa de negros e negras as mulheres negras estão pior ainda, porque tem uma dupla que eu acho que é isso que você ta querendo discutir, sofrem duplo preconceito de ser negra e ser mulher”.
10) Qual seu posicionamento perante as propostas de mudanças, como políticas compensatórias, ações afirmativas, cotas, multiculturalismo e outros?
“Bom sobre isso você deve ter assistido Nilma Lino Gomes, porque na palestra de Nilma, ela discutiu né essa ideia da importância da multiculturalidade, da ideia de discutimos, de termos presente na nossa sociedade essa discussão, e que isso deve atravessar as nossas práticas na universidade que é importante que a universidade tenha e realize essa discussão em todos os seus cursos e que atravessando a fala dela estava o tempo todo, o quando estamos perdendo e podemos perder com esse governo golpista, que tomou o poder de uma maneira totalmente ilegal e que vem usando esse poder pra desconstruir e desfazer vários avanços que tivemos aí nesse pequeno intervalo, pouquíssimos últimos 13 anos, tivemos muitos avanços, e primeiro a demonstração de querer desconstruir nessa temática, nesta sua temática, foi à configuração do Ministério do atual presidente, só brancos e homens, o fim do Ministério que era o Ministério de Nilma Lino Gomes, da diversidade, das mulheres, etc., então isso já demonstra qual é o pensamento e que fundamenta as propostas desse governo golpista, então é muito sério o que estamos vivendo. É isso, então para além, Nilma dizia, para além das cotas que são uma conquista importante de ter sido universalizada para as universidades públicas, para, além disso, é preciso mostrar pra quem entra na universidade com cota ou sem cota, o porquê existem cotas, porquê é importante que ela exista e o porquê que essa discussão é importante. A gente já tem agora estudos sobre os alunos que entraram por cota que desmentem totalmente toda a polêmica que aconteceu quando foi aprovada a política de cotas para as universidades. As pesquisas demostram que não há nenhuma diferença em termos de desempenho em relação a esses alunos cotistas, muito pelo contrário se tiver diferença é pra melhor, então esse argumento não precisa mais ser dito pelas pessoa que combatem as cotas, já podem tentar arrumar outro argumento”.
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APÊNDICE 3: ENTREVISTA Nº 02
TEMA: A PRESENÇA DA MULHER NEGRA NA DOCÊNCIA: DISCUTINDO AS RELAÇÕES DE GÊNERO E AS RELAÇÕES RACIAIS
OBJETIVO: discutir e fomentar a importância do protagonismo das mulheres negras nas instituições de ensino e pesquisa do nível superior enquanto docentes, além também de observar como ocorre sua trajetória permeada pelas relações raciais e de gênero.
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Nome: ENTREVISTA N° 02 Data: 06/10/2016
Idade: 46
Formação: Graduação em pedagogia – UFRJ/ Mestrado em Educação – UFRN/ Doutorado em educação – UFRN.
Campus: Natal
1) Como se constituiu a relação entre a sua formação na família e a educação formal? Que papel teve sua família em sua formação?
“Olha, meus pais assim, escola nunca me faltou, mas eles nunca ligaram muito não, assim a minha trajetória eu fiz, eu sempre gostei de estudar e aí a minha mãe mandava eu parar de estudar, ao contrário, ‘você se preocupada demais’, também eu fui criada numa cidade do interior do Mato Grosso do Sul e assim, cidade pequena, todo mundo conhecia todo mundo, apesar de ser carioca né, eu sou carioca, mas com oito anos fui pra Iguatemi/Mato Grosso do Sul. Minha mãe nunca foi a escola, nunca precisou se preocupar, eu trazia os boletins as notas eram boas, e as coisas assim se deram normalmente, eu sempre gostei de estudar. Quando eu morava numa cidade do interior pequena era normal que os jovens saíssem pra continuar os estudos, então quando eu tinha 14 anos, nós voltamos de viagem pro Rio de Janeiro e eu fiquei pra estudar na casa de uma tia, e aí o baque foi grande de uma escola que não tinha muitas vezes professores preparados lá no Mato Grosso do Sul, numa escola pública, e aí eu fui estudar numa escola de freira, e na primeira semana foi um choque, tudo mudou e eu vi que não tinha base, então nesse ponto passei morar com minha tia e ela me deu todo apoio, ela era professora e me deu todo apoio pra que eu tivesse condições, e sempre me esforçando muito pra conseguir terminar o ensino médio na época, o normal, terminando o ensino médio eu fiz o vestibular, foi o primeiro vestibular discursivo da UERJ, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e passei, éramos seis pessoas que tinha passado pro turno da noite, eu trabalhava de dia, trabalhava numa escola, nossa... faz tanto tempo, trabalhava em realengo, morava na zona oeste do Rio, e depois tinha todo o deslocamento de trem pra chegar até a UERJ, no Rio nada é perto tudo com duas horas pra ir, duas horas pra voltar, e assim vai... e aí terminei a faculdade, logo depois casei, durante esse tempo estava com meu marido na mesma universidade, e não tive assim grandes problemas não, nada foi fácil , mas tudo com muito esforço, tive muito apoio dos meus pais, não assim num sentido de me cobrar, eu sempre fiz o meu caminho, mas assim, nunca faltou comida, nunca faltou livro, nunca faltou apoio, mas eu que fiz o meu caminho, e tive muito auxilio desses meus tios que me deram o suporte, que ali foi o momento mais difícil né que foi a mudança do estado e da escola”.
2) A partir de que momento ocorre a construção da sua identidade de mulher negra? Como ocorre?
“Isso foi dolorido! Por que essa questão de ser negro sempre foi muito complicado, porque o valor, o bonito é o branco. E eu lembro que desde criancinha eu queria ter os meus cabelos lisos como as minhas coleguinhas e não era assim e aí eu era criança a primeira vez que alisei o cabelo e saia com os cabelos balançando, e logo em seguida o cabelo ficou horrível e eu tive que usar tipo Joãozinho, aquilo foi triste pra mim, e isso na infância antes dos sete anos quando morava no Rio de Janeiro, ou seja, uma negra entre vários negros, mas eu acho que essa questão da aceitação da negritude, não ainda, não havia acontecido, isso só aconteceu muito mais tarde. Quando fui morar no Mato Grosso do Sul a colonização naquele lugar era pessoas do Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo poucos, mas a grande maioria branca e eu fui morar numa cidade pequena, meu pai era Sargento do Exército, num era lá grande coisas, mas a gente passou a conviver com pessoas que tinham muito dinheiro, mas muito simples, então nós fomos incorporados, vamos dizer assim, na nata, na sociedade daquela cidadezinha pequenininha, não que tivéssemos posses, não tínhamos, morávamos na casa da vila militar, tudo normalmente, mas frequentávamos um meio que eu sabia que não era o meu, então muitas vezes chegavam a nossa casa e perguntavam, batiam palma: ‘a dona da casa está?’ porque quando a gente ia atender né, aquela casa não poderia ser nossa e assim, eram pessoas simples, mas sempre que a gente ia em alguma festa,
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quando não estava conhecida, eu não era conhecida, perguntavam assim: ‘você é baba de quem?’, porque estar naquele meio deveria ser baba do filho de alguém, porque como negra eu não poderia... inclusive meus filhos, irmãos, crianças naquela época, mamãe sempre conta que teve uma vez que ela escutou uma outra criança dizer: ‘você vai brincar com esses neguinhos?’ que aquilo machucava, mas eu nunca dei muita bola pra isso não, isso nunca foi... Agora, tive muita dificuldade de aceitar o meu cabelo. Queria ter cabelo liso como todo mundo e naquela cidade, eu não me sentia valorizada, mas eu acho que esse desprestigio era muito mais meu do que das pessoas, eu que não me aceitava nas minha características de negra. O meu marido foi muito importante na minha história ele me deu muito apoio pra que eu estivesse aqui hoje, e que eu me aceitasse enquanto negra e ele é branco, então nessa questão eu falei: ‘e agora?’ ele é tão branco, será que as pessoas não vão estranhar quando a gente começou a namorar, já de volta ao Rio de Janeiro quando tinha voltado pra estudar. E ele sempre falava: ‘por que você alisa seu cabelo? Deixa ele crescer, o cheiro é ruim, num é bonito, deixa...’ então depois que a gente casou eu fui deixando o cabelo normal, nossa mãe! Mas também sempre ele preso, porque eu acho que eu não aceitava muito e também não tínhamos recursos pra tratarmos do meu cabelo. Com o tempo foi passando e eu fui percebendo que eu não era menor, que meu cabelo era bonito, que eu tracei o meu caminho e que a consciência que eu sou negra hoje eu não abro mão num sentido de que aqui as pessoas tem medo de falar que são negras né, elas são é moreninhas, ai eu digo ‘não, eu não sou moreninha eu sou negra’ porque essa identidade ela foi construída de forma muito difícil e muito dolorosa e esse processo de auto aceitação foi longo e necessário, e meu marido me deu muito apoio para que eu me visse como negra e me aceitasse como tal. Aqui em natal existem muito poucos negros, me acostumei a ser diferente e não abro mão da minha diferença, hoje não passa pela minha cabeça pensar em alisar o meu cabelo, coisa que fiz durante tantos anos né, mas tudo é uma questão de auto aceitação, hoje eu acho tão feio aqueles cabelos esticados. Acho lindo as curvinhas, e eu acho que isso é um processo de auto aceitação não só do cabelo, mas como um todo”.
3) Já vivenciou, mesmo que silenciosamente, práticas de reprodução de desigualdades sociais, raciais e/ou de gênero?
“Sim! Como mulher negra quem é que não passou por situações dessas. Mas eu também, percebi que essa relação de, vamos dizer assim, a desvalorização do negro, está relacionado diretamente com a desvalorização da condição socioeconômica, porque existem situações, por exemplo, eu fui a uma foto aqui em Nova Descoberta, tirar foto com meus filhos, estava em casa, saí era perto de casa, fui andando de chinelo e percebi que não me atendiam, e aí ‘o que, que está acontecendo?’ naquele momento pra me sentir valorizada busquei as palavras mais difíceis que eu sabia pra mostrar ‘Olha! To aqui! Eu tenho valor’ foi uma forma de defesa, não acho que isso é, não foi a melhor forma, mas eu percebi que se eu tivesse bem vestida não era assim me tratavam, eu não sei se isso é uma desculpa para minha vaidade ou se de fato essa relação... mas a partir daí busquei me vestir bem para ser aceita, antes de trabalhar aqui, eu trabalhei na UERN em Pau dos Ferros, então fiquei seis meses na UERN e assim num ligava muito pra roupa, como viajava muito daqui pra lá, quando assumi a função de professora lá, então eu acho que me vestia muito simples, e teve uma vez que eu comprei uma calça jeans e uma blusa e fui com uma roupa diferente né, que eu estava acostumada a ir, e num é que as pessoas olhavam ‘professora a senhora esta de roupa nova’ eu olhei e... mas nossa isso é tão importante assim, ai a partir daí eu busco, principalmente, quando vou ao interior me vestir melhor para não ser desvalorizada, porque mulher negra e pobre as pessoa pisam e não reconhecem o seu valor. É como se você fosse menor.”
4) O que a impulsionou na caminhada até a posição de professora do ensino superior público?
“Olha, embora eu sempre gostasse de estudar e sempre me esforçasse pra fazer o meu melhor, não ser melhor do que ninguém, mas o meu melhor eu nunca acreditei no meu potencial, nunca acreditei que eu pudesse chegar aqui e se eu estou aqui hoje é por conta do meu marido, ele fez... Eu trabalhava pra uma escola do Rio de Janeiro como pedagoga, como coordenadora pedagógica, e quando chegou um determinado momento ele teve a oportunidade de sair do Brasil pra fazer o doutorado. E eu larguei tudo e segui com ele pra fora do Brasil. Passamos dois anos e retornamos. Isso significa: largar trabalho, largar família, e vir me tornar dona de casa. Quando a gente retornou ao Brasil ele disse: ‘agora é sua vez’ e me deu todo apoio pra isso, pra que eu pudesse a partir daí fazer, primeiro descobrir o que se discutia na educação, porque eu estava fora. Então entrei como aluna especial, fiz o projeto e foi nesse momento a gente quando retornou ele foi trabalhar na UNICAMP em São Paulo, Campinas São Paulo, e depois ele fez o concurso pra cá, e foi assim que a gente veio pra cá, foi na época da seleção do mestrado. Eu sempre achava não, não vai dar certo e ele: ‘não, você vai fazer, agora é a sua vez’, e foi assim no mestrado, e no doutorado ‘você vai conseguir, faz’, nos concursos, eu fiz três concursos, fiz um pra UERN, fiz um pra UFPB, porque Pau dos Ferros era muito longe, e passei seis meses na Paraíba em Rio Tinto, até que saísse uma vaga pra cá. Nunca eu achava que eu podia e ele sempre
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me dando a força ‘não, você vai, você consegue’ ele me dava o estimulo e eu corria atrás e foi assim que eu cheguei”.
5) Que obstáculos e dificuldades você encontrou para ingressar e permanecer na carreira do magistério?
“Não tive obstáculos, não que eu não pudesse transpor, os meus obstáculos eram mais internos do não acreditar em mim mesma, mas aí isso de certa forma me impulsionou tentar seguir. ‘Ah eu acho que eu não consigo’, então eu vou me esforçar mais, vou criar os meios para conseguir. Eu não tive nenhum empecilho sempre me foi garantido escola, sempre me foi garantido o apoio, então eu não posso dizer que eu tive. A minha dificuldade na saída do Mato Grosso ao Rio de Janeiro, os meus tios me deram suporte pra que eu continuasse estudando, eu não posso dizer, vamos dizer assim, que eu tive barreiras, são as barreiras naturais que todo mundo tem pra conseguir o que busca”.
6) O que considera ser racismo e machismo, e em que medidas tais práticas interferiram ou interferem na sua condição de mulher negra professora ?
“Eu acho que eu nunca tive problema com essas coisas, porque não deixava isso me abater por muito tempo. Pra mim o machismo, eu nunca tive problema com essa questão do machismo, o que, que é o machismo, eu acho que é essa preponderância do homem sobre a mulher e nunca vivi essa relação nem em casa e nem no meio em que estive até porque as escolas, a maioria é feminina, então nunca tive problema. O racismo no Brasil, por mais que se diga que não existe, ele existe! É velado e isso se da de diversas formas até mesmo por um simples olhar, mas também eu acho que pela minha condição econômica nunca fui rica, mas assim por não estar fazendo parte da população mais pobre dessa sociedade, eu acho que também nunca sofri muito com isso, olhares de menosprezo, olhares, isso sempre vivi e estou acostumada e não me deixo abater por isso, porque eu fico com pena né, coitados. Não vale a pena eu me expressar, muito pelo contrário preciso sempre emitir boas energias para essas pessoas, pra que elas possam se reconhecer como parte dessa sociedade que a diferença é nossa condição natural, ninguém é igual, nem igual e nem melhor do que ninguém. Eu nunca tive problemas fortes com relação ao racismo ou com relação ao machismo”.
7) Que relevância atribui à possibilidade de abordar a questão do racismo e do machismo nos espaços institucionais?
“É importante, nós fomos durante tanto tempo, sou uma exceção, a grande maioria dos meus irmãos de cor não tiveram as chances que eu tive, não são da mesma condição, vamos dizer assim, eu nunca fui rica, mas nunca fui paupérrima, nunca passei por dificuldades que a maioria passam. E foram anos, séculos de exclusão, de não aceitação, de preconceito com relação aos meus irmãos de cor e em função disso os movimentos foram importantíssimos para garantir, durante muito tempo, eu só lembro de um único professor que tinha no CCSA como negro, professor Elisau. Mas eu entrava na sala de aula e não tinha negros na minha sala de aula, agora não, já vejo uma sala mais colorida e cada um mais lindo do que o outo, mas somos minorias. Então, as cotas, ela é, eu a vejo como justiça social é necessária, não eternamente, mas você ser discriminado por não ter, por ser barrado, não ter o recurso, porque não ser discriminado positivamente para conseguir alcançar coisas, porque não existe uma igualdade, estamos todos em busca de uma concorrência por vaga, mas não existe uma igualdade, vamos dizer assim, de partida e em função disso as políticas de cotas como a culminância de um processo que vem de construção de movimentos sociais, de reconhecimento, não só do negro, mas do índio, e vários outros, são importantíssimos para garantir que, eu lembro que quando eu era da UERJ, na graduação, a grande maioria das pessoas eram negras e era notório que aquelas pessoas que você olhava, no estacionamento era cheio de carro, mas a grande maioria negra vinha a pé. A minha sala, embora no Rio fossemos um número muito maior do que aqui, eram poucos os negros em sala de aula e a maioria negra não eram aqueles que lotavam os estacionamentos da UERJ. Aqui não digo nada, porque a população negra é menor, e ela é, eu vejo a questão da exclusão muito mais forte aqui do que no Rio propriamente dito”.
8) Que formas de enfrentamento ao racismo e ao machismo tem sido praticadas ao longo da sua trajetória formativa e profissional?
“Como eu disse eu não sofri muito, eu tento assim me distinguir, não quero ser melhor do que ninguém, mas não sofrer com o racismo tendo em vista, usando da educação, da gentileza, na escolha das palavras, na forma de vestir, então são certas formas que não sei se isso é bom ou se isso é ruim, mas acaba fazendo com que a gente seja aceita, apesar da cor, porque muitas pessoas nos considera diferente não numa forma positiva, então nos aceitam nos grupos, mas existe sim uma, eu não digo aqui no meio acadêmico, aqui no meio acadêmico não senti muitas dificuldades não, mas as vezes em sala de aula, as vezes, nas próprias relações sociais em diversos âmbitos, nos quais a gente trabalha, atua, as relações elas são sutis não precisam vir
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descaradamente, você pode atenuar até mesmo com um sorriso antes mesmo de entrar como cartão de visita. Agora, aqui a gente tem que tomar cuidado, não pode sorrir de mais, porque o outro já acha que a gente está dando bola”.
9) Pra você onde estão as mulheres negras e porquê?
“Eu não sei dizer onde elas estão, em grande maioria em casa, em grande maioria como donas de casa, como empregadas domesticas. Eu sei que a grande maioria não está aqui dentro da universidade, isso é fato, nem como aluna e muito menos como professora, então elas, as mulheres negras continuam ocupando papeis subalternos”.
10) Qual seu posicionamento perante as propostas de mudanças, como políticas compensatórias, ações afirmativas, cotas, multiculturalismo e outros?
“Olha, eu acho importante às cotas, mas acho também, que também tem muitos brancos pobres que não se articulam, até porque o branco supostamente sempre foi hegemônico né, nunca não tem um movimento pra isso, eu acho inclusive que as cotas deveriam ser ampliadas, não só para negros, índios, etc., e tal, mas também para as pessoas pobres que também são tão excluídas como nós, nos diversos âmbitos dos quais participo. Então, eu sou a favor considero uma forma de justiça social, me incomodava aquela questão de estudar numa universidade pública e você saber que as pessoas que estavam ali não eram da minha classe social, de ser exceção e que nesse momento você passa por um processo de, vamos dizer assim, de permitir esse acesso, mas se é para discriminar positivamente é necessário discriminar direito, porque quantos de nós chega aqui e não tem como se manter, então daí a importância de auxilio, e outra coisa, pra sairmos de uma escola pública que muitas vezes não nos da o suporte nem o repertório necessário, para que a gente siga a nossa trajetória. Então, é necessário criar programas que discutam e que possam auxiliar nesse embasamento teórico dos nossos alunos, principalmente, do professor que tem mudado, vamos dizer assim, o seu âmbito no sentido de que antes era de uma elite e agora quem trabalha com o professor já vem das classes populares e não tem , vamos dizer assim, o mesmo repertório que a classe dominante tem. Então, é necessário que a gente tenha um apoio maior para permanência na universidade, não só tendo em vista os recursos que nos permitam chegar aqui transporte, alimentação, mas principalmente para que a gente tenha acesso a um capital cultural que não é nosso e é esse capital cultural que a escola passa, busca democratizar para a população, porque muitas vezes embora a gente tenha, por exemplo, não lembro o número da Lei embora eu seja professora de OEB que trata da importância de você discutir de modo transversal a cultura negra, a arte a história, etc., e tal, isso significa que nem todos os nossos professores estão preparados pra isso e de uma certa forma isso acaba ficando também sem um apoio, sem que a gente possa dar conta dessa demanda. E existe uma, como eu trabalho na sala de aula, ás vezes, a gente sente uma rejeição com relação a isso, mas as mudanças estão ocorrendo aos poucos. Eu lembro que a primeira vez que eu vi o livro didático dos meus filhos e tinha a história da África. Eu me assustei, eu nunca tinha visto aquilo, no meu tempo não era assim, a gente só estudava que havia índio, negro e branco, mas a história, toda a trajetória, todos os conteúdos que a gente trabalhava e estudava não era, era só pra fazer. Eu lembro que quando a gente trabalhava lá na classe de alfabetização, a gente tinha o dia do índio como ainda hoje existe, coloca lá os menininhos pintados, libertação dos escravos, eram datas comemorativas, mas a gente não ressignificava nossa prática até porque éramos também mentes colonizadas que viam as nossas raízes de forma, vamos dizer assim, a gente acabava por reproduzir muitas vezes as relações de dominação que nós vivíamos e que se naturalizava. E a gente se repetia e em função disso nos sentindo, inclusive, inferiores, menores, como muitas vezes eu me vi. Talvez, por introjetar essa visão social que a gente subliminarmente a gente vai aos pouquinhos introjetando, talvez, por isso eu nunca acreditasse que eu tinha possibilidade e precisei de um homem branco pra dizer ‘vai, segue, você consegue’. Então eu não posso reclamar da vida não, porque em tudo mesmo nas dificuldades nunca me faltou auxilio, nunca me faltou ajuda eu sei que chegar aqui não foi fácil, me esforcei muito, mas eu tive ajuda de muita gente, não é um projeto isolado”.