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PRESENÇA REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Nov.-N°29, Vol. VIII, 2004. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR

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PRESENÇA REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Nov.-N°29, Vol. VIII, 2004.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR

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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Mai.-N°29, Vol. VIII, 2004.

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UNIVEUNIVEUNIVEUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA RSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA RSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA RSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ———— UNIR UNIR UNIR UNIR

GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS MODOS DE VIDAS E CULTURAS AMAZÔNICAS-GEPCULTURA

LABORATÓRIO DE GEOGRAFIA HUMANA E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

PRESENÇAPRESENÇAPRESENÇAPRESENÇA ---- ISSN 1413ISSN 1413ISSN 1413ISSN 1413----6902690269026902

Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente

Vol. VIII - n° 29 - Novembro — 2004 — Porto Velho/RO

PROVADO PELO CONSEPE/UFRO RESOLUÇÃO N°0122/1994

E d i t o r : JOSUÉ COSTA

Foto:

Josué da Costa

Leiaute e Diagramação: Eliaquim T. da Cunha

Sheila Castro dos Santos

CONSELHO EDITORIAL

Arneide Bandeira Cemin – antropóloga/UNIR Carlos Santos – geógrafo/UNIR

Clodomir Santos De Moraes - sociólogo/UNIR Liana Sálvia Trindade – antropóloga/USP

Maria Das Graças Silva Nascimento Silva – geógrafa/UNIR Mariluce Paes De Souza –administradora/UNIR

Miguel Nenevé – letras/UNIR Nídia Nacib Pontuschka – geógrafa/USP

Theóphilo Alves De Souza Filho – administrador/UNIR

www.revistapresença.unir.br

PRESENÇAPRESENÇAPRESENÇAPRESENÇA.... Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente. Porto Velho, fundação Universidade Federal de Rondônia.

Trimestral

1. Educação-Periódica 2. Meio Ambiente — Periódico

CDU 37(05)

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

EDITORIAL.....................................................................................................04 ESPACIALIDADE DAS FESTAS RELIGIOSAS EM COMUNIDADES RIBEIRINHAS................................................................................................05 ADRIANO LOPES SARAIVA JOSUÉ DA COSTA SILVA TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O BIODIREITO...............................................................................................15 LUÍS TIAGO FERNANDES KLIEMANN CLAUDIMIR CATIARI O CORPO E SUA DIMENSÃO SIMBÓLICA................................................23 JOÃO GUILHERME RODRIGUES MENDONÇA OS RECURSOS PESQUEIROS DA AMAZONIA.........................................34 AMARAL, J.J.; BADOCHA, T.E. CRÔNICAS: DOUTORES DA VIDA.............................................................40 VANISA DURAND GONÇALVES A COLONIZAÇÃO EM RONDÔNIA E AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO............................................................................................ 42 SÉRGIO L. V. DE MIRANDA O REFLEXO DA LENTIDÃO DAS DECISÕES DO PODER PÚBLICO NA AUTO-SUSTENTABILIDADE DO SETOR FLORESTAL EM RONDÔNIA....................................................................................................52 EDMUNDO MACHADO NETTO UM OLHAR SOBRE A QUEIXA DOCENTE NA ESCOLA ATUAL..........62 JURACY MACHADO PACÍFICO

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EDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIAL

A revista Presença vem marcar mais uma publicação colocando como centro da discussão teór ica aspec tos vol tados a comunicação, imaginário e significação para o homem em suas relações sociais. Neste sentido, as matérias aqui apresentadas vislumbram contribuir de forma significativa para a discussão sobre a pesquisa que utiliza a oralidade como referência em formar interpretações da realidade que têm, no entrevistado uma visão prioritária para essa aproximação, bem como a construção mítica e cultural que os rituais que trazem símbolos e códigos textuais que dizem muito mais do que o ato de realização cultural em si. E m u ma d i n â mi c a q u e é p ecu l i a r a o c a rá t e r e ex is t ênc i a dessa revista, propomos uma expansão da leitura do meio ambiente, sob o ponto de vista ético. Pensamos todas as discussões articuladas com o conhec imento da realidade amazônica (compromisso irrefutável, imbricado com o próprio existir da revista), publicando fatos acerca da construção histórica deste lugar, enquanto entidade federativa assim como espaço urbano. Ambos sob a égide da dependência política. Por certo não poderíamos deixar de contribuir com a discussão sobre o ensino superior refletindo sobre a seleção do conhecimento que lhe vem sendo inquirida através das reformas curriculares. Essas reflexões, neste número, enriquecerão e certamente contribuirão para o debate por todos aqueles que são interessados pelo tema. Isto nos estimula a confiar que no próximo número a disputa por um espaço nesta revista continuará acirrado.

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ESPACIALIDADE DAS FEESPACIALIDADE DAS FEESPACIALIDADE DAS FEESPACIALIDADE DAS FESTAS STAS STAS STAS RELIGIOSAS EM COMUNIRELIGIOSAS EM COMUNIRELIGIOSAS EM COMUNIRELIGIOSAS EM COMUNIDADES DADES DADES DADES

RIBEIRINHASRIBEIRINHASRIBEIRINHASRIBEIRINHAS

Adriano Lopes SaraivaAdriano Lopes SaraivaAdriano Lopes SaraivaAdriano Lopes Saraiva1111

Josué da Costa SilvaJosué da Costa SilvaJosué da Costa SilvaJosué da Costa Silva2222

RESUMO: Esse artigo analisa o espaço utilizado para a realização das festas religiosas em comunidades ribeirinhas, suas características e como esse acontecimento interfere na organização espacial do grupo, chegando a orientar aa criação de novos espaços dentro das comunidades. PALAVRAS-CHAVE: Festas religiosas; Populações tradicionais; Espaço ribeirinho; Cultura e religiosidade; Geografia cultural. ABSTRACT: This article analysis the space to the accomplishment of religious parties in riversides communities, their characteristic and as that happening interferes in the space organization of the grouup, ending up guiding the new spaces cration inside the communities.. KEYWOR: Religious festivities; Traditional populations; Riverside space; Culture and Religiosity; Cultural geography.

“A vida religiosa constitui, portanto, um dos temas centrais para o estudo da vida das coletividades humanas, pois permite compreender aquilo que as estrutura e a partir de que elementos se constroem as identidades coletivas”. (Paul Claval, 1999, p. 55)

Introdução

A partir da realização do projeto de pesquisa “Estudo do Processo de Recriação do Espaço

Ribeirinho através das Festas Religiosas” (PIBIC/CNPq/UNIR, 2002), alguns aspectos foram

levantados e discutidos. Como por exemplo, a festa religiosa como fator modificador do espaço

1 Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Membro do Centro de Estudos Interdisciplinar em Desenvolvimento Sustentável e Populações Tradicionais da Amazônia - CEDSA. Endereço eletrônico: [email protected] 2 Prof. Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinar em Desenvolvimento Sustentável e Populações Tradicionais da Amazônia - CEDSA. Endereço Eletrônico: [email protected]

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(criação e recriação) e responsável pela construção da paisagem cultural de comunidades

ribeirinhas (SARAIVA & SILVA, 2002). As análises aqui apresentadas são frutos de estudos

desenvolvidos nas comunidades de São Carlos, Prosperidade e Nazaré, localizadas na região do

rio Madeira, à jusante da cidade de Porto Velho, Estado de Rondônia. Onde participamos de

algumas festas religiosas, como Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Nossa Senhora da

Saúde, Nossa Senhora de Nazaré e São Sebastião.

O universo da pesquisa rico em singularidades, nos trouxe diversas situações e elementos

que vieram a enriquecer o trabalho. As festas em comunidades ribeirinhas constituem um

acontecimento ligado ao universo mental do grupo, capaz de promover mudanças na estrutura

espacial das comunidades. Esses eventos representam momentos de identidade do grupo

ribeirinho, tal acontecimento possui seu modo próprio de ser realizado, refletindo a maneira pela

qual o grupo estabelece sua vida. Além de servir como ritual de renovação do modo de produção,

de um período que se inicia e que é voltado para o plantio ou colheita dos principais produtos da

comunidade.

As festas religiosas merecem destaque por representarem mudança, por modificarem o

espaço, por mudarem o tempo das comunidades. Em algumas festas temos essas características

mais visíveis, com a construção de novas igrejas e a criação de espaço próprio para o santo

padroeiro. Assim, são as festas; acontecimentos fruto do sincretismo religioso; que trazem consigo

características próprias que moldam o espaço, transformando-o num lugar único. O que nos lembra

os escritos de Luis Boada (1991, p. 88), onde podemos observar que o espaço pode ser

humanizado, ou seja, transformado num lugar diferenciado do restante, basta que para tanto ali

sejam realizados ritos que dêem conta de tal tarefa, o que aliás pode muito bem ser realizado

através das festas religiosas.

Este artigo busca dar subsídios para o entendimento desse grupo social, que mantém sua

estrutura social com ligações com sua origem étnica. Ao falarmos do espaço de comunidades

ribeirinhas, estamos a todo momento buscando elementos ligados ao universo mental do grupo, da

cultura e da religiosidade.

As festas religiosas e o espaço das comunidades ribeirinhas:

As festas religiosas configuram-se como eventos ligados ao sacramentalismo cristão ligado ao

universo mental do grupo. O ribeirinho cumpre suas promessas e graças recebidas por meio de

rituais, traduzidos na forma de festas religiosas, almoços comunitários, missas, procissões,

novenas, bailes, etc. Cada festejo possui sua própria história e razão de existência. Representa

agradecimento, devoção e também saúda um novo período produtivo que se inicia nessas

comunidades, o início do período de plantio, pode representar também a solução de um grave

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problema, a saúde recuperada, tudo isso é traduzido em agradecimentos. Portanto, a organização

espacial estará ligada ao universo das crenças, o que refletirá de forma concreta na maneira pela

qual o homem irá estabelecer-se no espaço.

As atribuições dadas ao espaço e a forma de organizar-se nele estão ligados a cultura e modo

de vida das populações. Entre as populações ribeirinhas as crenças, os mitos e a religiosidade

destacam-se dentro da cultura do grupo, tornando-se fatores responsáveis pela organização sócio-

espacial das comunidades.

Nos baseamos em SILVA (2000) ao que se refere a definição de população tradicional

ribeirinha, sendo uma população que possui seu modo de vida peculiar que as distingue das

demais populações do meio rural ou urbano, possuindo sua cosmovisão marcada pela presença

das águas. Para estas populações o rio, o igarapé e o lago não são apenas elementos do cenário

ou paisagem, mas algo constitutivo do modo de ser e viver do homem.

As festas religiosas são fatores de destaque entre essas populações. O geógrafo Carlos

Eduardo Maia as define como: “ manifestações culturais que se caracterizam, entre outros

aspectos, por serem eventos efêmeros e transitórios, perdurando algumas horas, dias ou semanas”

(1999, p.204). Estando ligadas à religiosidade e ao costume de “pagar” e de “fazer” promessas,

esse ato é destacado por ROSENDAHL, pois ”a prática religiosa de "fazer" e "pagar" promessas

constitui uma devoção tradicional e bastante comum no espaço sagrado dos santuários católicos”

(1999b, p.61). Assim, cada festa é resultado de um acontecimento particular ligado a algum fato

referente a um sujeito de destaque no âmbito da comunidade

No estudo do antropólogo Charles Wagley “Uma Comunidade Amazônica” (1988), o papel das

festas religiosas é por ele destacado, posto que são de fundamental importância para acentuar o

cotidiano dos ribeirinhos amazônicos, com os quais realizou seu trabalho. WAGLEY destaca que

“... todos os anos, em maio e junho, quando, no Vale Amazônico, os rios voltam aos seus leitos e

as chuvas diminuem, começa a estação seca; realizam-se então inúmeras festas ...” (1988, p.194).

Nesse sentido, estudos de SARAIVA & SILVA (2002, p.204) nos dizem que “as atividades

realizadas durante as festas constituem momentos onde o espaço ganha contornos diferentes do

que possui durante o cotidiano (...), cada morador vive o espaço de uma maneira particular”. O que

nos faz perceber que o espaço das comunidades ribeirinhas recebe designações ligadas às

crenças criadas pelo grupo, ligadas a elementos constituintes da realidade do homem ribeirinho,

como os rios, os igarapés, os lagos, a mata, as lendas, os mitos, etc. NASCIMENTO SILVA (2000,

p.94-95) exemplifica a organização espacial de comunidades ribeirinhas:

o espaço, nas comunidades ribeirinhas, ainda está muito próximo, ou melhor, está intimamente ligado às pessoas, e elas mesmas ainda não perderam completamente o controle desse espaço, onde reconhecem os signos e significados que estão presentes em seu ambiente sem se separem deles inteiramente, sem transformá-lo essencialmente em mercadorias.

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O que é atestado por RIVIÈRE quando nos fala :

... o espaço, não se trata somente de uma relação concreta, física, com ele, feita de práticas e de descolamentos, ou de uma fenomenologia do espaço vivido, mas de uma imaginário no qual entram os estereótipos da civilização e os valores ligados à identidade e à diferenciação social. (1999, p. 59)

Outro aspecto a ser destacado é que a festa religiosa necessita de vários espaços para sua

realização. Cada momento da festa é pensado e realizado em um determinado espaço, por

exemplo: a procissão é realizada nas ruas da comunidade, o baile no centro comunitário ou outro

lugar que comporte tal atividade. Assim:

A rua, os pátios, as praças, tudo serve para o encontro de pessoas fora das suas condições e do papel que desempenham em uma coletividade organizada. Então, a empatia ou a proximidade constituem os suportes de uma experiência que acentua intensamente as relações emocionais e dos contatos afetivos, que multiplica ao infinito as comunicações, e efetua, repentinamente, uma abertura recíproca entre as consciências na medida que a festa não mais necessita de símbolos e inventa as suas figurações que desaparecem, muitas vezes, em seguida perecível. (DUVIGNAUD, 1983, p.68)

Esta organização social nos remete ao espaço utilizado para a realização da festa e suas

funcionalidades, o que é destacado por MAIA:

... grande parte das festas, no seu momento de ocorrência, simplesmente fornecem nova função às formas espaciais prévias que dispõem para a sua realização (ponto central): ruas, praças, etc. Mas, tão logo cesse o período ou momento extraordinário, tais formas retomas a sua função habitual. (1999, p. 204)

Com efeito, as festas religiosas constituem momentos onde a população ribeirinha modifica o

espaço que habita, dando-lhe significados os mais diversos, transformando-o num lugar único fruto

das crenças dessas populações, diferenciando e qualificando locais com características que só

existem durante o período da festa.

Modificações e percepções: o espaço recriado

A realização de festas religiosas pode deixar marcas no espaço, funcionando como fator de

organização e de mudanças na espacialidade das comunidades, além de trazerem à tona as

relações que implicam a realização de um festejo como, as disputas e os conflitos existentes entre

o grupo.

O ribeirinho vive o espaço de maneira peculiar, levando em consideração a maneira pela qual

relaciona-se com o ambiente a sua volta. É uma relação de respeito pautado nas crenças e nos

mitos, como destaca SILVA (1994, p. 13): "A natureza passa a ser humanizada, desmistificada , ou

seja, desnudada de mistérios e incorporada de novos significados. Passa a correr, em alguns

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momentos, a sacralização da paisagem. A "mata" e o "rio" passa a ter um significado especial para

esse grupo...".

A religiosidade tem papel de destaque entre essas populações, tornando-se elemento capaz

de promover mudanças na organização do espaço desses locais. Assim, temos dentro da realidade

do ribeirinho elementos constituintes da cultura que compõem o espaço, como as crenças, o

sincretismo religioso e os mitos. Cada elemento torna a festa fator de destaque nas modificações

espaciais presentes nas comunidades. No que se refere ao espaço recriado, o conceito que melhor

o define está ligado ao ambiente construído como espaço natural modificado pela ação humana

(BOADA, 1991, p.88).

Na comunidade de Nazaré temos um exemplo do espaço modificado pela ação humana

ligado à cultura do grupo social. Foi criado um novo bairro na comunidade chamado “Bairro de São

Sebastião”, fruto de uma promessa feita pelo líder religioso da comunidade, o que acarretou a

construção da nova igreja católica, que fica mais distante do parte central da comunidade. O

espaço de São Sebastião representa para o exercício da fé católica do grupo um aumento, pois a

partir de então duas igrejas passaram a existir na comunidade. Cada igreja possui um grupo

organizado de membros da comunidade que ficam responsáveis pelas tarefas de limpeza,

manutenção e organização do lugar para as celebrações, sendo que o grupo da igreja de São

Sebastião tem como coordenador o chefe religioso da vila de Nazaré. Sua autoridade é reiterada

pelo viés educacional, além de conduzir e manter o grupo dentro da mesma religião e crença.

Contribuindo para o fortalecimento da doutrina cristã que faz frente ao vertiginoso crescimento das

igrejas neo-pentacostais dentro das comunidades ribeirinhas.

A criação de um espaço como o Bairro de São Sebastião vem para enfatizar o papel do líder

religioso entre o grupo. Sua função está ligada à organização do festejo de São Sebastião, sendo

também responsável por manter o grupo congregando os mesmos cultos e rituais católicos. As

atividades desenvolvidas para a realização da festa são coordenadas por este líder, que funciona

como o ordenador dos rituais dentro do espaço sagrado. Assim, a atuação do líder pode lhe dar

legitimidade junto ao grupo e com os participantes do evento (MAIA, 1999, p.209).

Modificações e percepções: o espaço sagrado e o espaço profano

O espaço utilizado para os festejos adquire designações ligadas à forte religiosidade do

grupo. Dentro dos acontecimentos que ocorrem durante a festa podemos observar vários

momentos que possuem características chamadas de sagradas e profanas. No Festejo de Nossa

Senhora de Nazaré e no de São Sebastião observamos as mesmas características - como a

procissão, a novena, a missa, os batizados, o leilão, a venda de comidas e bebidas, o baile e o

torneio esportivo. Já na Festa de Nossa Senhora da Saúde não há o baile dançante e o grande

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momento está na realização de um almoço comunitário oferecido aos participantes pela família

organizadora do festejo. Portanto, cada festa tem suas próprias características, que podem ser

tanto sagrada como profana.

Segundo Mircea Eliade (1992, 1998) o sagrado não está ligado aos elementos não-racionais e

racionais da religião, este conceito vai além. Num primeiro momento sabe-se que o sagrado

opõem-se ao profano. E que sua manifestação se apresenta de diversas maneiras, ou seja, ele se

revela de várias maneiras estando ligado ao valor atribuído a coisas concretas, tais como um

espaço ou um lugar. O sagrado e o profano também podem manifestar-se em momentos não

concretos, por exemplo: o tempo pode adquirir características sagradas devido a algum ritual ligado

à temporalidade.

O sagrado manifesta-se por intermédio da hierofania (ELIADE, 1992, 1998), significa dizer

que algo de sagrado se revela na realidade vivida pelo homem. Além disso, ELIADE (1998, p.297)

nos explica que a manifestação do sagrado é imposta também ao homem, o que implica dizer que

o homem que vive nessa realidade não a percebe, ele apenas a vive de uma maneira calma e

serena. Portanto, caracterizar essas hierofanias no ambiente ribeirinho é uma tarefa complexa,

visto que essas manifestações são “diferentes” dentro do aspecto observável das populações

ribeirinhas. Ademais, o mundo do ribeirinho é orientado pela construção de uma rede de

significados manifestos nos símbolos e mitos da paisagem habitada.

Os festejos religiosos apresentam para os moradores das comunidades ribeirinhas rituais e

objetos que remetem ao divino, à ligação do homem com Deus. Podemos citar a procissão e a

celebração como dois momentos principais ligados ao sagrado. A procissão para DaMatta (1997,

p.65) é definida como um desfile especial; podemos observar características de ambos(o sagrado e

o profano), dentro de um mesmo momento, pois a imagem do santo está com o povo e dele recebe

na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade. Nesse momento as pessoas rezam,

pagam promessas e penitências, o fazem para mediar seu contato com a divindade.

Com efeito ROSENDAHL(1999b, p.61) nos diz que “ a prática religiosa de “fazer” e “pagar”

promessas constitui uma devoção tradicional e bastante comum no espaço sagrado dos santuários

católicos”. Assim, ao elegerem uma imagem e em torno dela organizarem um acontecimento capaz

de modificar o tempo e o espaço, essa devoção é a mais clara representação da hierofania. A

realidade vivida pelo homem ribeirinho está ligada ao seu comportamento eminentemente religioso,

e tal comportamento está arraigado ao seu modo de vida, o que é sustentado por DURKHEIM

(1989, p.68), pois:

... todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em dois gêneros opostos, designados geralmente bem, pelas palavras profano e sagrado.

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O profano dentro da realidade ribeirinha é ainda mais difícil de ser percebido, seja pelo seu

caráter inconstante, pois o ribeirinho não divide seu modo de vida entre o sagrado e o profano, os

acontecimentos que envolvem a fé e devoção é que vão determinar a existência de um ou de

outro, ou mesmo de ambos.

Alguns estudiosos se referem ao profano como o comércio e as danças. Todavia essa

proposição não deve ser levada ao pé da letra no estudo com populações ribeirinhas, pois esses

dois momentos fazem parte da festa e são esperados com uma certa ansiedade pelos moradores.

O “baile” ou “forró” está presente em quase todos os festejos e é uma das tradições da festa.

No que se refere ao comércio há uma prática muito comum que é a realização de leilões para

angariar fundos para a igreja do santo homenageado. Nesse sentido, então não podemos

considerar o leilão como uma atividade caracteristicamente profana, as pessoas que compram os

objetos que são doados pelos moradores da comunidade, o fazem para ofertar ao santo uma parte

do que lhe é dado durante o restante do ano, o fruto de seu trabalho e uma parte dele é ofertado

ao santo.

Modificações e percepções: a paisagem cultural ribeirinha

No que concerne ao estudo da paisagem temos em Carl Sauer e Denis Cosgrove conceitos e

discussões que são perfeitamente aplicáveis à discussão central deste artigo.

O termo paisagem ganha destaque dentro da geografia do séc. XIX a partir da competição

entre duas escolas que despontavam no avanço da ciência da época, o racionalismo e o

positivismo. Até essa época o complexo de fatores (clima, relevo e drenagem) estavam sendo

estudados de forma separada. Foi com o empate entre teóricos e pensadores, dentre eles La

Blache, Hettner e Ratzel que os elementos da natureza passaram a ser vistos como resultado, ou

seja, passam a ser examinados como causa e efeito (SAUER, 1998, p.20). Este estudo integrando

os elementos colaboraram para o surgimento do estudo da paisagem. Na década de 70 houve uma

retomada do conceito de paisagem que trouxe novas formas de apreensão frutos de estudos e de

novas abordagens teóricas e metodológicas.

A paisagem passa, assim a ser chamada de paisagem geográfica, apresentando diversos

conceitos a seu respeito. Com isso para CORRÊA & ROSENDAHL(1998, p.08) tornou-se possível

ao geógrafo falar de paisagem sagrada, paisagem profana, paisagem cultural, paisagem do medo

e paisagem do desespero, entre outras. A religião e as crenças passam a serem estudadas como

formadoras e como componentes da paisagem. O que é destacado por ROSENDAHL, posto que:

o impacto da religião na paisagem não está limitada somente às características visíveis, tais como locais de culto, apesar destes mostrarem mais claramente formas e funções religiosas, mas também na experiência da fé que nos fornecem símbolos e mensagens, algumas inteligíveis somente aos que comungam a mesma fé. (2001, p. 27).

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Um dos grandes estudiosos foi SAUER que com o seu estudo A Morfologia da Paisagem

propôs diferenciações, definições e abordagens sobre a paisagem, ele a classificou como

paisagem natural e paisagem cultural. O que as diferencia é o conteúdo das mesmas, ou seja, os

fatos físicos e culturais do homem. Para SAUER (1998, p. 49-50) a paisagem natural “ ... se torna

conhecida através da totalidade de suas formas. Essas formas são conhecidas não por elas

mesmas (...), mas nas suas relações uma com as outras e nas suas posições na paisagem, cada

paisagem sendo uma combinação definida de formas.”. Ainda em SAUER encontramos a definição

de paisagem cultural, sendo que “a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural

por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural é o

resultado.” (1998, p.59)

Já COSGROVE com o estudo A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas

paisagens humanas analisa a paisagem como sendo resultado das atividades do homem contendo

suas crenças, modos de ver o mundo, mitos e simbologias, segundo ele a paisagem

... está intimamente ligada a uma nova maneira de ver o mundo como uma criação racionalmente ordenada, designada e harmoniosa, cuja estrutura e mecanismo são acessíveis à mente humana, assim como ao olho, e agem como guias para os seres humanos em suas ações de alterar a aperfeiçoar o meio ambiente. (COSGROVE, 1998, p.99)

A paisagem é imagem socialmente construída pelo homem. Na região ribeirinha essa

paisagem é fruto de sua vivência de sua cultura. O francês Claude Rivièri (1999, p.59) ao estudar

as peregrinações na África Tradicional percebeu que a paisagem pode ser sacralizada pelo

suposto investimento de uma divindade. Segundo ele “ na realidade, não vemos a paisagem, nós a

construímos mentalmente através de séries e de alguns pontos de vista. Entre o aqui e o outro

lugar, entre a habitação principal e a residência secundária, o homem tende a desenvolver seu

espaço”. Podemos observar que as festas religiosas têm a capacidade de deixar marcas no espaço

das comunidades, ou seja, é a cultura do grupo promovendo mudanças no espaço.

Para não concluir ...

As mudanças espaciais ocorridas nas comunidades ribeirinhas são resultados de diversos

elementos. A cultura do homem ribeirinho é o fator de destaque, o espaço é reflexo desta cultura.

Temos na fé do ribeirinho elementos norteadores da construção de seu espaço e as festas

funcionam como fator de mudança dentro do tempo e do espaço. São momentos de grande

vivência para os moradores das comunidades ribeirinhas e representam a manifestação de uma

das facetas que o grupo possui, sua forte religiosidade.

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As atividades realizadas durante a festa constituem momentos onde o espaço ganha

contornos diferentes do que possui durante o cotidiano das comunidades, cada morador vive o

espaço de uma maneira particular. Esse momento está ligado à fé e devoção que está presente no

festejo, sendo resultado da cultura e do modo de vida dessas populações.

As atividades realizadas durante as festas constituem momentos onde o espaço ganha

contornos diferentes do que possui durante o cotidiano das comunidades. Cada morador vive o

espaço de maneira particular. E este momento está ligado à fé e devoção que está presente no

festejo.

E nesse sentido que o espaço representa estas relações. A organização para a festa reflete o

trabalho e suas relações, sejam elas conflitantes ou não, de acordo com o que já foi previamente

definido cada atividade será desenvolvida em dado local que já foi pensado para aquele momento.

A dinâmica espacial passa necessariamente pela funcionalidade, tanto para um Festejo como para

outro, todavia esta mudança ou movimento no espaço da comunidade só pode ser observado no

período da festa, quando passa este período os locais que serviram para alojar algum momento do

Festejo voltam a fazer parte do universo cotidiano.

O artigo pode contrariar a tese comum que não define a cultura de certos grupos. O estudo

dos festejos demonstra a riqueza cultural dos ribeirinhos manifesta em suas vidas, manifestações,

construção de mundo e que por isso são inegáveis merecedores do exercício de Cidadania, pois

estão inseridos no âmbito da sociedade brasileira.

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TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS POST MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O MORTEM: ENTRE A BIOÉTICA E O

BIODIREITOBIODIREITOBIODIREITOBIODIREITO3333

Luís Tiago Fernandes KliemannLuís Tiago Fernandes KliemannLuís Tiago Fernandes KliemannLuís Tiago Fernandes Kliemann4444 Claudimir CatiariClaudimir CatiariClaudimir CatiariClaudimir Catiari5555

RESUMO: O presente artigo estudará, primeiramente, o conceito de Bioética, para, depois, relacioná-la com a questão do transplante de órgãos post mortem. Após, definir-se-á o Biodireito, e explicar-se-á como é regulado o tema proposto no atual ordenamento jurídico brasileiro de forma geral. Por fim, mostrar-se-á os crimes da legislação em vigor brasileira que possuem relação com o tema. PALAVRAS-CHAVE: Bioética – Biodireito – Transplante. ABSTRACT: The present article will study, firstly, the concept of Bioética, for, then, to relate her/it with the subject of the transplant of organs post mortem. After, Biodireito will be defined, and it will be explained as the theme is regulated proposed in the current ordenamento juridical Brazilian in a general way. Finally, it will be shown the crimes of the legislation in Brazilian vigor that you/they possess relationship with the theme. KEYWORD: Bioética - Biodireito - Transplant.

Introdução

O presente artigo tem como finalidade estudar a problemática do transplantes de órgãos

post mortem no ordenamento jurídico brasileiro e relacionar a Bioética com a legislação em vigor.

Desde já é bom frisar que este artigo não analisará o transplante de sangue, esperma e óvulo, nem

o transplante inter vivos, tampouco o autotransplante e a clonagem de órgãos com fim terapêutico.

Buscar-se-á explicar o fenômeno do transplante de um cadáver para um ser humano vivo,

buscando-se entender se atende os princípios Bioéticos e como a legislação brasileira em vigor

regula tal operação.

3 Artigo produzido como requisito para a elaboração de relatório final de pesquisa do PIBIC – UNIR. 4 Discente do IV período do curso de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – UNIR. 5 Prof. MSc. Discente da Disciplina de Direito Constitucional e Chefe de Departamento do Curso de Ciências Jurídicas da Fundação Universidade federal de Rondônia – UNIR.

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Bioética

Etimologicamente, a palavra bioética tem origem grega: bios (vida) + ética (conjunto de

valores supremos que têm por objetivo a felicidade do homem). Segundo Oliveira6, o uso da

palavra bioética surgiu nos Estados Unidos por volta da década de 70, com o objetivo de designar

a ética da vida num plano de pleno desenvolvimento das ciências médicas.

Ferreira faz uma definição que precisa ser considerada:

“[Bioética é a] ética das biociências e biotecnologias que visa preservar a dignidade, os princípios e os valores morais das condutas humanas, meios e fins defensivos e protetivos de vida, em suas várias formas, notadamente, a vida humana e a do planeta”7.

A função da ética é fornecer o necessário discernimento ao homem para que ele possa

distinguir o justo do injusto, o certo do errado. Nesta definição, portanto, bioética seria a própria

ética aplicada às mais variadas questões, principalmente as que envolvam a discussão acerca do

valor da vida humana. Desta forma, constantemente é a bioética convocada para a discussão de

assuntos polêmicos, como a eutanásia, o aborto e o transplante de órgãos post mortem e a sua

mais nova tendência, que é tratar da clonagem de órgãos com fins terapêuticos.

A questão do transplante post mortem de órgãos e tecidos

Após estas breves iniciação sobre a Bioética, passar-se-á a discussão central do

tema proposto. Transplante pode ser entendido como a remoção de órgãos e tecidos de um corpo

humano para a implantação em outro, com a finalidade de sanar uma deficiência ou patologia. O

transplante post mortem é aquele feito de um cadáver para um ser humano vivo. Este ato de

transplante é regulamentado por leis, mas sua discussão supera o aspecto legal, atingindo também

a Bioética, pois se busca saber em que condição pode-se fazê-lo sem que vilipendia o valor da

dignidade da pessoa humana.

O ser humano possui um valor intrínseco, que deve ser respeitado sob pena de se cometer

atrocidades. A dignidade da pessoa humana não se restringe à pessoa humana com vida, mas

também ao respeito por seu corpo após a morte. Nos transplantes post mortem, o respeito à

aparência digna do corpo humano não é suficiente para o transplante ser considerado “ético” ou

“justo”: o tratamento correto e especial a um corpo humano não basta em si mesmo. Deve-se

também respeitar a vontade que o indivíduo possuía enquanto pessoa viva. Esse respeito pode ser

classificado como o respeito à autonomia individual do homem.

6 OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. p. 47. 7 FERREIRA, Jussara S. A. B. N. Bioética e Biodireito. p. 5.

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O homem como ser racional tem desejos e emoções decorrentes da sua autonomia de

vontade e de pensamento. Por isso deve-se buscar e respeitar o desejo que possuía para o

tratamento do seu corpo após a morte: se queria cremá-lo, deve-se fazê-lo; se queria doar seus

órgãos a certa instituição, também, e assim por diante. Mas para esta vontade ser válida, deve ser,

sobretudo, livre e esclarecida. Isto significa que não se pode forçar ou pressionar alguém para que

assine um documento dispondo seu corpo após a morte para determinada instituição, pois a

vontade deve ser livre e espontânea.

Como ato voluntário, a disposição do próprio corpo para após a morte pode, sob o prisma da

Bioética, ser realizada a qualquer tempo, sob pena de se ferir os princípios da dignidade da pessoa

humana e da autonomia da vontade. Da mesma forma que se pode produzir uma declaração deste

tipo a qualquer tempo, pode-se revogá-la a qualquer tempo. Mas o princípio da autonomia da

vontade também se aplica às pessoas que nunca fizeram uma declaração sobre a disposição de

seu próprio corpo para após a morte não podem ter seus órgãos transplantados, pois não se sabe

qual era a vontade da pessoa em vida, não se pode realizar qualquer tipo de remoção de seus

órgãos.

Desta forma, é impensável realizar-se um transplante “ético” de um corpo não identificado,

por não se saber qual era a vontade do indivíduo em vida. Deve-se salientar que este respeito à

vontade individual é um dos pontos cardeais da bioética, e é um corolário do princípio da dignidade

da pessoa humana, princípio este que, quer a pessoa esteja viva, quer esteja morta, deve ser

respeitado. Corpos não-identificados não podem ser jogados ao relento ou ter seus órgãos

transplantados, pois a vida humana possui um valor intrínseco, e o simples fato de pertencer à

espécie humana garante-lhes, eticamente, um tratamento igual ao dos demais.

Biodireito

Biodireito pode ser definido como o “conjunto de normas esparsas que têm por objeto

regular as atividades e relações desenvolvidas pelas biociências e pelas biotecnologias”8. O

Biodireito não é uma ciência independente, buscando inspiração principalmente na Bioética e no

desenvolvimento da medicina, sendo a sua função de defender a integridade e o valor da vida

humana frente aos rápidos avanços das ciências Biotecnológicas. Deve-se salientar que o

Biodireito não está codificado, reunido, como o Código Civil e a Constituição Federal, isto é, não

está reunido em uma única lei, mas divido em várias leis. Outra característica importante do

Biodireito é a de que está sempre atrasado em relação aos avanços da Biociência e da Bioética,

pois é evidente que o poder legislativo não consegue acompanhar a acelerada marcha da

sociedade. 8 FERREIRA, Jussara S. A. B. N. Bioética e Biodireito. p. 7.

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Transplantes post mortem no atual ordenamento jurídico brasileiro

A característica do Biodireito de se encontrar esparso é muito marcante no atual

ordenamento jurídico brasileiro. Os transplantes no Brasil são regulamentados pela Lei n. 9.434 de

1997 (Lei dos Transplantes), com alteração da Lei n. 10.211/2001, e ainda encontram respaldo

jurídico no Código Civil e no Código Penal. Começar-se-á o estudo do ordenamento jurídico

através do texto original da Lei dos Transplantes que dizia, em seu art. 4º:

“Art. 4° Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem”.

O que tal disposição trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro foi a presunção de que

todos os cidadãos brasileiros autorizam ser doadores, a qual é considerado algo como grave, tanto

do ponto de vista jurídico, quanto do ponto de vista ético. Do ponto de vista jurídico, a doação

presumida corresponde a uma “violação do regime democrático, dentro do qual a regra é de o

cidadão dizer o que quer”9, e não o que não quer. Essa presunção poderia ser usada para abusos,

como, por exemplo, assassinatos calculados com o fim de que o órgão da vítima seja transplantado

depois de morta. Além disso, deve-se considerar que, no Brasil, o desconhecimento da lei é algo

muito comum, acontecendo casos em que, por exemplo, um cidadão que deseja não se tornar

doador seus órgãos após a morte mas, por desconhecimento da lei, não efetua uma declaração de

vontade em contrário.

Foi esta Lei 9.434/97 que criou no Brasil as declarações de vontade de “doador de órgãos e

tecidos” e de “não doador de órgãos e tecidos” nas carteiras de identidade e de motorista. Mas

deve-se salientar que aqueles que não possuíam tal “carimbo” eram automaticamente classificados

como doadores presumidos, decorrente do art. 4° da Lei dos Transplantes. Do ponto de vista ético,

a doação presumido vilipendiava o princípio da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa

humana, pois, ao presumi-lo um indivíduo doador, retirava dele a autonomia de decidir sobre a

disposição de seu corpo a qualquer tempo, sendo pressionado pelo Estado a fazê-lo.

Além disso, caso revogasse sua disposição, seria automaticamente classificado como

doador, criando absurdos jurídicos como o de alguém que, manifestando juridicamente sua

vontade de ser doador, revoga-a pouco tempo depois, com o desejo de não o ser mais. Porém,

para o Estado, não valeria mais essa intenção contida no ato da revogação, mas apenas o fato de

que não há manifestação de vontade, classificando tal indivíduo que não quis mais ser doador

como doador presumido, simplesmente pela ausência de declaração de vontade. A doutrina

9 NEVES, Serrano. Lei dos Transplantes: duas abordagens diferentes. p. 1.

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brasileira foi unânime ao classificar o texto como um absurdo jurídico à época, munindo-se destes

argumentos éticos e jurídicos.

Avançando na discussão da Lei dos Transplantes, é importante ressaltar que a remoção

post mortem, nos casos em que o doador “presumido” seja absolutamente incapaz ou menor de

idade, só poderá ser feita mediante autorização, por escrito, dos responsáveis, o que não nem

sequer ameniza o absurdo jurídico da presunção de doação presumida. Importante destaque

merece o art. 6º da referida Lei, pois preceitua que “é vedada a remoção post mortem de tecidos,

órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas”, sendo um dispositivo que atende

perfeitamente aos princípios Bioéticos, conforme discutido anteriormente.

A pressão doutrinária sobre o monstruosidade jurídica da doação presumida fora constante,

até que em 2 de março de 2001 foi promulgada a Lei. n. 10.211, modificadora da anterior Lei dos

Transplantes, a Lei n. 9.434. A principal modificação que fez foi alterar o caput do art. 4º, retirando

a presunção de doação de órgãos, como se pode notar através da análise do referido dispositivo:

“Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e parte do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte”10.

Como se pode notar, a Lei 10.211 extinguiu a presunção de doação de órgãos no

ordenamento jurídico brasileiro. Mas, se por um lado, a substituição pela decisão da família

acalmou os ânimos da doutrina e dos juristas brasileiros, por outro não solucionou o problema

ético. O absurdo jurídico, que antes era expresso, agora apenas se tornou mais sublime,

camuflado, pois o que acontece ainda é a permissão de se remover, post mortem, tecidos ou

órgãos sem a necessária autorização expressa do indivíduo em vida, vilipendiando, da mesma

forma, os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade.

Avulta de importância a contribuição que o Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro

de 2002) deu sobre o tema em questão. Inspirado pelo humanismo do novel diploma, transmutado

no paradigma da eticidade, preceitua o art. 14 e seu parágrafo único:

“Art. 14. É válida, com objetivo altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”.

Pela leitura de comentadores, pode-se afirmar que o Código Civil, claramente, deixa

exclusivamente ao indivíduo a decisão de dispor sobre possíveis transplantes post mortem,

notadamente através da expressão “próprio corpo”. Note-se que este dispositivo se adapta

perfeitamente aos princípios da Bioética da dignidade da pessoa humana e da autonomia da 10 Vale salientar que as declarações de vontade (“doador de órgãos e tecidos” e “não doador de órgãos e tecidos”) na carteira de identidade e na carteira nacional de habilitação perderam a validade em 22 de dezembro de 2000, segundo a mesma Lei 10.211.

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vontade, principalmente porque autoriza não só a declaração de disposição de corpo para após a

morte, como também a revogação de tal manifestação da vontade a qualquer tempo. Ademais, a

autonomia da vontade do indivíduo ainda é mais resguardada porque o código limita o uso do

corpo post mortem com objetivo científico ou altruístico, impedindo qualquer tipo de

comercialização de atos declaratórios de vontade, ofertas econômicas ou “chantagens” de

possíveis receptores.

Porém, pode-se questionar se os textos do Código Civil e da Lei dos Transplantes são

compatíveis entre si ou se um revogaria o outro11. A resposta é que os textos são compatíveis,

porque deve se ter a interpretação de que o Código Civil regula apenas os atos declaratórios de

vontade, que devem ser respeitado, e a Lei dos Transplantes se aplica em casos em que não há tal

ato, decidindo, neste caso, a família do morto. Deve-se ressaltar que somente o Código Civil possui

um texto compatível com a ética, pois a conclusão Bioética sobre o tema é a de que sempre se

deve respeitar a autonomia da vontade através do ato declaratório e, nos casos onde não houver,

não se deve realizar o transplante.

Reflexos no Direito Penal brasileiro

Mudando da perspectiva geral para a penal, percebe-se que o Código Penal pode ser

aplicado para punir possíveis ilegalidades, através da análise de seu art. 211:

“Art. 211. Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”.

Deve-se salientar que tal crime é um crime contra o respeito aos mortos, segundo o próprio

Código Penal. Tal tipificação criminal se encaixa perfeitamente ao ato de transplantes ilegais, pois

a remoção de órgãos de um cadáver é uma subtração de uma parte do próprio cadáver. Desta

maneira, alguém que o faz comete um crime descrito na lei, devendo ser punido da maneira

descrita no Código. Mas a questão torna-se mais complexa com o advento da Lei dos

Transplantes, posterior ao Código Penal, quando preceitua, na Seção I (Dos Crimes) do Capítulo V

(Das Sanções Penais e Administrativas):

“Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 (cem) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”.

Note-se como a pena prevista na Lei dos Transplantes pode ser duas vezes mais severa do

que o Código Penal, apesar de, aparentemente, tipificar o mesmo crime – o de remover órgãos ou

11 Segundo o princípio do direito de que lei posterior revoga lei anterior, se os dispositivos do Código Civil e da Lei dos Transplantes fossem realmente incompatíveis entre si, teria validade o Código Civil (2002), por ser posterior à Lei dos Transplantes (1997).

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tecidos para transplante de um cadáver de forma ilegal. Mas essa aparência é falsa. Uma análise

mais profunda da Lei dos Transplantes revela que ela vai dispor “sobre a remoção de órgãos,

tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante”12 (grifo acrescentado). Desta maneira,

o art. 14 só poder ser aplicado quando o ato for praticado com fins de transplante, pois o próprio

caput do artigo preceitua que ele deve ser aplicado somente quando o ato ocorrer “em desacordo

com as disposições desta Lei” (grifo acrescentado).

Portanto, percebe-se que não há conflito de normas, pois o art. 14 reduz sua aplicação à Lei

dos Transplantes, enquanto o Código Penal apresenta uma aplicação geral. Por exemplo: supõe-

se que Fulano tenha invadido um hospital e removido o coração de um paciente; somente a

enunciação deste fato não é suficiente para se determinar qual norma aplicar. Deve-se ir mais além

na descrição dos fatos: se Fulano praticou o crime por motivo de vingança, sofrerá a sanção do

Código Penal, mas, se o praticou tendo em vista transplantar ilegalmente o coração da vítima,

sofrerá a sanção da Lei dos Transplantes.

Todavia, a Lei dos Transplantes não tipifica apenas a conduta de que remove os órgãos e

tecidos com fim de transplante. Também tipifica o crime praticado pela implantação13 deste com o

conhecimento de sua origem ilegal:

“Art. 16. Realizar transplante ou enxerto utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei: Pena – reclusão, de 1 (um) a 6 (seis) anos, e multa, de 150 (cento e cinqüenta) a 300 (trezentos) dias-multa”.

Note-se que este crime é direcionado especialmente a médicos, por serem os únicos

profissionais presumidamente capazes de realizar a implantação de órgão ou tecido em um corpo

de maneira eficaz. Desta maneira, o art. 14 visa punir a remoção, enquanto o art. 16, a

implantação; portanto, em conjunto, visam punir o transplante ilegal de órgãos ou tecidos de um

cadáver a outra pessoa. Mas surge uma pergunta que supera a Lei e aspira aos preceitos da

Bioética: o que fazer com um órgão “ilegal” que o médico não pode transplantar se este saber a

procedência?

Se a retirada vilipendiosa de órgãos ou tecidos de um cadáver com o fim de transplante já é

algo em sim mesmo antiético, o é mais fazê-lo e desperdiçar tal órgão. Além de se estar

desprezando a possível melhora da pessoa receptora, estaria se ofendendo ao próprio valor

intrínseco da vida humana com tal desperdício, pois, para o receptor, não há a mínima diferença se

um órgão fora retirado ilegalmente ou não, pois o que importa é que a sua eficácia. Deve-se ter

bastante cautela em tal situação para não se cometer absurdos como o desperdício de órgãos

12 BRASIL. Lei n. 9.434 – 04 fev. 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e parte do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. 13 Tal tipificação é coerente pois o ato de transplante comporta não só se consuma com a implantação do órgão ou tecido removido de outro corpo, conforme o conceito explicado no início deste trabalho.

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humanos apenas porque são “ilegais”, pois certamente uma família respeitaria a implantação de

órgão “ilegal” desde que o receptor estivesse agindo de boa-fé, isto é, se não tivesse participado do

planejamento ou da consumação do crime.

Conclusão

A Bioética tornou-se indispensável ao ser humano nos dias atuais, devido aos constantes e

acelerados avanços da Biociência. O Biodireito, por sua vez, sempre está atrasado em relação a

esses avanços, mesmo os da Bioética. Os transplantes de órgãos e tecidos só são justos e dignos

quando respeitada a vontade do indivíduo enquanto pessoa viva. De qualquer outra maneira, são

injustos: a decisão não deve ser do Estado, como preceituava o texto original da Lei dos

Transplantes, nem tampouco da família como se encontra o texto atual da referida Lei, mas apenas

do próprio indivíduo.

Por isso, precisa ser reformulado o art. 4º da Lei dos Transplantes para que possa se

compatibilizar com os princípios Bioéticos da dignidade da pessoa humana e da autonomia da

vontade, seguindo o exemplo do art. 14 do atual Código Civil. Por fim, na esfera penal, é

necessário se refletir mais sobre a proibição da finalização de transplantes cujos órgãos tenham

origem “ilegal”, através da reformulação do art. 16 da Lei dos Transplantes, para que não se

chegue ao absurdo de se desperdiçar órgãos enquanto a fila de espera de transplantes não pára

de crescer.

Referências bibliográficas

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O CORPO E SUA DIMENSÃO SIMBÓLICAO CORPO E SUA DIMENSÃO SIMBÓLICAO CORPO E SUA DIMENSÃO SIMBÓLICAO CORPO E SUA DIMENSÃO SIMBÓLICA

João Guilherme Rodrigues MendonçaJoão Guilherme Rodrigues MendonçaJoão Guilherme Rodrigues MendonçaJoão Guilherme Rodrigues Mendonça14

RESUMO: Corpo e psique revelam-se em uma unidade indissolúvel, reafirmando a dimensão humana em corpo que somos. Através da Cabala e da filosofia judaico-cristã, a geografia do corpo é mapeada no esquema corporal e compreendida em sua representação que transcende nossa consciência. O corpo é concebido como uma via simbólica, que se comunica em uma dimensão sagrada. A construção desse olhar foi a partir da pesquisa bibliográfica cujos aportes permeiam o papel do corpo na psicologia de orientação analítica. PALAVRAS_CHAVE: Corpo-símbolo; esquema-corporal; soma e psique. ABSTRACT: Body and psyche are revealed in an indissoluble unit, reaffirming the human dimension in body that we are. Through the Cabal and of the Jewish-Christian philosophy, the geography of the body is mapped in the corporal outline and understood in your representation that transcends our conscience. The body is conceived as a symbolic road, that communicates in a sacred dimension. The construction of that glance was starting from the bibliographical research whose contributions permeate the paper of the body in the psychology of analytic orientation. KEYWORD: Body-symbol; outline-corporal; he/she/you adds and psyche.

“Cada parte ferida de um corpo é a pista para uma causa maior e profunda, um sinal a ser lido e decodificado. Diz-se que as catedrais são livros de pedra. Nós somos livros de carne. Vivemos o que somos”.

Evaristo Eduardo de Miranda

O corpo é a referencia nominal que diz da presença material, física, de cada ser humano.

Sua presença física revela enquanto espécie a identificação comum das características de nossa

forma (cabeça, tronco, membros), de nossa verticalização e nossa comunicação vocal.

14 Professor Mestre em Pedagogia do Movimento Humano, da Fundação Universidade Federal de Rondônia, Psicólogo com formação em Psicologia Transpessoal e Educador Físico.

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Todavia, a experimentação vivida por cada indivíduo de nossa espécie em relação ao seu

corpo determinará a especificidade identitária que o fará ser percebido como único. Esse processo

discriminatório revela então que, o humano tem uma realidade de essência, de natureza mais

íntima e profunda daquilo que faz que o humano seja, o que é, indo além da própria matéria.

Ver o corpo como matéria, é poder concebê-lo como engrenagens justapostas (ossos,

músculos, órgãos) com diferentes funções. Essa perspectiva reducionista lembra muito bem a

ciência do século XVIII, XIX e também de boa parte do século XX. O dualismo soma e psique fruto

do pensamento cartesiano contribuiu para que o Ser que é em cada corpo, não pudesse

manifestar-se na plenitude de sua essência. Jung (1981), considera que, matéria e psique fazem

parte de uma mesma e única realidade.

As conseqüências de uma concepção não integradora, de unidade do humano entre seu

corpo físico e suas outras realidades interiores potencializou diferentes síndromes que a medicina

psicossomática apressou-se a desvendar. VARGAS (2002: p.33) considera que o tema

“psicossomático”, “uma tentativa de reunir o indevidamente separado”, ou seja “psique” e “soma”.

Nossa “psique” é também somática, tanto quanto nosso “soma” é também psíquico. Desapossados

um do outro, soma e psique lança a dimensão humana em rupturas, que poderá repercutir em

diferentes disfunções. Podemos concluir que o corpo tem uma relação de igualdade com a psique

em sua totalidade.

É relevante considerar as intervenções da psicologia e também das diferentes religiões

que agem também no sentido de reverter ou minimizar as incongruências entre o corpo que age, o

pensamento, e o ser desejante que pede. PÉREZ (2002: p. 27) reafirma esta idéia ao confirmar

que “la nuevas formulaciones de la física contemporânea se enruban a una concepción acentuada

de la transformación y el cambio de psique em cuerpo en psique y por lo mismo la imaginación y la

energia parecem jugar un papel clave”.

O confinamento do humano em corpo matéria não permite sua hominização. Ao contrário,

o escraviza a um bem que está mas não é. Poderíamos mesmo compreender o corpo como um

envelope vivente e sem vida. É preciso pois, a reapropriação do corpo no humano que é, porque

não temos um corpo, somos um corpo. Ser e conhecer o próprio corpo é saboreá-lo, vivenciá-lo.

SIVADON (1988: p.13) propõe a conveniência de “aprender a se ocupar do corpo sadio afim de

que este seja menos doente e saiba deixar mais agilmente as fronteiras da morbidade”. Ocupar do

corpo sadio é promovê-lo a encontros em suas mais recônditas geografia. É torná-lo uma eterna

novidade, um desbravador de mundo, e que o proteja. É apropriar-se e reapropriar-se no vivenciar

as reações e padrões de nosso corpo. É permitir toda mobilização de resoluções favoráveis ao

nosso organismo.

Quando sentimos que não temos nada mais a aprender em relação ao nosso corpo, dado

a obviedade e objetividade de sua presença física tal qual é e está; o corpo é visto e vivido como

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um velho conhecido. Esta forma de viver e conceber o corpo pode denunciar o enrijecimento da

forma, do modelo tal qual se apresenta, para não se submeter à fragilidade do desconforto e,

sobretudo a insegurança do que representa a mudança da forma.

O engessar-se cronifica e mantém a ilusão da segurança e estabilidade de um modelo que

pode estar significando a presentificação de uma doença (quadro patológico) e, portanto de

sofrimento. Levar o paciente à re-descobrir; tirar a coberta que modela; o gesso que paralisa; a

muleta que sustenta a estagnação do corpo em padrões; para a novidade do desnudar da forma; a

insegurança de um gesto novo; as sensações de novas contraturas; a leveza e força dos membros;

a flexibilidade do gesto; a incerteza de um novo ponto de equilíbrio, podemos renascer para um

novo mundo do meu corpo. Um corpo integrado e potencializado em sua dimensão humana.

DIMENSÃO SIMBÓLICA

O corpo humano tem através de sua materialização uma imagem e conteúdo que

comunica consciente e inconsciente como símbolo. E “é por meio dos símbolos que os diferentes

arquétipos estruturam nossa consciência, nosso ego, ao longo de nossa existência” (VARGAS: p.

30). O corpo, portanto, como uma via simbólica, é uma dimensão estruturante da consciência.

REIS (2002: p. 44) ao analisar o corpo como expressão dos arquétipos afirma que “a linguagem

corporal é como a onírica: anuncia e denuncia, fornecendo, assim, símbolos à consciência”.

O corpo como símbolo, atua na direção de um sentido. Sentido que se desvela, ou seja, a

consciência de ser esse corpo que fala, que pensa, que sente, que age. O sentido da consciência é

o da harmonia e identificação. O sentido do simbólico

está expresso nas atitudes, posturas, mímicas, no funcionamento de nossos aparelhos, bem como nas alterações bioquímicas e neuro hormonais. Está expresso no modo como nos relacionamos com o outro, na maneira como nos sentimos e pensamos, como vemos o mundo onde estamos vivendo, ... (VARGAS, 2000: p. 31)

MAGALHÃES (1984: p. 146) apud JUNG, revela que a natureza e a origem dos símbolos

não são individuais, mas coletivos, principalmente “os símbolos religiosos, cuja função é dar

sentido à vida do homem”. O corpo então se revela em um símbolo como uma dimensão

estruturante e arquetípica. Sua estrutura e suas partes expressam de acordo com suas intenções a

realidade essencial da pessoa. Nesse sentido o simbolismo do corpo, desvela que a dimensão do

corpo matéria é somente uma variável a ser compreendida, é preciso que se ouça o corpo que fala

por meio do desejo e que anuncia e denuncia o universo consciente e inconsciente.

SIMBOLISMO DO CORPO HUMANO

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Diferentes culturas e tradições do oriente e do ocidente dizem sobre a dimensão corporal,

a descrição do homem. A dimensão sagrada e simbólica do corpo traz a representação do que

transcende nosso entendimento e consciência. Focalizarei esta dimensão na geografia do corpo;

procurando ouví-lo em uma unidade representativa de um microcosmo unida ao macrocosmo

extraído na tradição da Cabala através da Árvore das vidas ou Árvore de sefirot e na filosofia

judaico-cristã. Para SOUZENELLE (1995: p. 10) a Árvore das vidas “permanece, o arquétipo do

corpo do homem, aquele de quem ela é a imagem e a semelhança do qual ele é chamado”.

A Árvore das vidas (figura 1 e 2, Apud SOUZENELLE, 1995: p. 14 e 51) possue as

qualidades e atributos da divindade, indica no judaísmo que uma pessoa são muitas vidas. A

representação dessa figuras revela o caminho do conhecimento e da experiência interior.

Simbolicamente na tradição judaica nosso corpo e a pessoa que somos desenvolvem como Árvore

das vidas, isto significa o local por onde jorra a experiência vivida e a unidade na vivência com o

mundo exterior.

As dez sefirot podem se grupadas em três unidades ternárias, no esquema da Árvore das vidas: Coroa (ketér), Sabedoria (chochmá), Inteligência (Biná), na parte superior. Esse primeiro triângulo revela a essência de divindade, com seu vértice apontado para cima, para o Ain. Ele está associado à cabeça (rósh) e à matriz craniana no esquema corporal e a sede do ser divino. Segue-se a tríade Graça ou Misericórdia (Chessed), Justiça ou Rigor (Din ou Guevurá) e Beleza (Tiféret), o coração, o sol, o amor divino fecundo e criador. Voltado para baixo, esse triangulo exprime o plano de Deus e está associado á matriz peitoral, ao sistema cardiorrespiratório no corpo humano. É visto como a sede do ser espiritual e a matriz do ser divino. Na Cabala, os vértices desses triângulos são associados a Abraão (Chesséd), Isaac (Guvurá) e Jacó (Tiferét). Mais abaixo está o segundo triangulo, Vitória ou Potencia (Nétsach), Glória ou Magestade (Hod) e Fundamento (Iessód), o sexo, o amor humano, o útero, a lua. Ele corresponde ao complexo urogenital, sede do ser psíquico e matriz do ser espiritual, a matriz abdominal. O vértice desse triângulo aponta para baixo e abre-se ao Reino (Malchút), ao domínio, à terra, ao sentir físico, aos pés no sistema corporal, à sraízes da Árvore humana. (MIRANDA, 2000: p. 41).

FIGURA 1

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FIGURA 2

A Árvore das vidas vem analogamente à Árvore humana, (Figura 3 e 4, Apud DOUGLAS &

SLINGER, s/d: p.114 e 115) representar a dimensão sagrada do corpo em seu aspecto físico,

psicológico e divino. Cada parte do esquema corporal é tornado sagrado e de significado simbólico

específico; dando uma dimensão transcendente ao humano. Essas figuras são representativas de

uma simbologia que une no humano o plano ontológico e o existencial; ela exprime a união

orgânica de dez sefirot. MIRANDA (2000: p.45) esclarece que “na tradição da cabalá, em cada

pessoa, a essa Árvore humana (Árvore das vidas) corresponde à presença de uma árvore divina

(Árvore do conhecer bem e mal), em posição invertida”.

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FIGURA 3

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FIGURA 4

Explorarei em seguida as explicações existentes entre os órgãos; víceras ou as diversas

partes do corpo como na obra de MIRANDA (2000), “Território do Sagrado”:

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O REINO (MALCHÚT)

OS PÉS: Simbolicamente, os pés representam nosso começo, nosso primeiro estágio no

campo do TER e nos levam às nossas raízes, à identificação e à identidade.

AS PERNAS: A perna vai representar a símbolo dos vínculos sociais e exteriores. Do

ponto de vista espiritual, elas são a imagem daquilo que permitirá ao Homem percorrer suas terras

interiores, estabelecendo contatos de fertilidade com seu EU profundo.

OS JOELHOS: Representa como símbolo o engendrar humano, eles deveriam ser objetos

de atenção e carinho. Na tradição judeu-cristã os joelhos falam da procriação realizada, da criança

benigna e bendita em cada ser humano e do coroamento do crescimento interior.

AS COXAS: As coxas evocam a adolescência e as passagens iniciáticas do

amadurecimento que preparam para a experiência sexual, para a reprodução, para a entrada na

idade adulta, a passagem do homem na tríade Hod, Netsach e Iessód.

A PORTA DOS HOMENS

O PLEXO UROGENITAL: Representa as primeiras aberturas e comunicações físicas

permanentes entre o interior e o exterior do humano, entre o Ter e o Ser.

A MATRIZ ABDOMINAL

O ÚTERO: É a matriz do Ser por excelência; é o seio interior. É dar a luz a si mesmo.

O UMBIGO: O umbigo é o lugar de nosso primeiro ferimento formal, de nosso primeiro

corte, de nossa primeira cisão com a fonte da vida maternal.

OS RINS: Na simbologia bíblica, os rins estão associados à força e a seus contrários, o

pânico e o medo. Nos rins se chega ao segundo estágio do SER como terra fértil para as sementes

da Vida.

O ESTÔMAGO: O amor, ser amado e deixa-se amar, representa o verdadeiro ágape. O

estômago deveria ser receptáculo de bons alimentos e sentimentos.

O PÂNCREAS: O pâncreas está simbolicamente vinculado á realização ou á

transformação da carne. Na tradição Judeu-cristã, a carne não pode ser identificada com o corpo,

nem com a matéria. Ele é o completo psicofísico do homem sua existência concreta e total.

O FÍGADO: É o órgão da honra, do peso, do pesar, da glória e da luz. Um dos lugares

simbólicos de maior densidade do corpo humano.

A MATRIZ PEITORAL

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O CORAÇÃO: Cheio de realeza, o coração é identificado como um rei, tanto na tradição

Judeu-cristã, como no Taoísmo, ou no Sufismo, onde é vista como o trono de Deus no centro do

homem (Tiferet).

OS PULMÕES: Na perspectiva bíblica os pulmões vêem. E quem não vê com os pulmões,

não ouve, nem se conhece, nem se conhece o Espírito da verdade.

A COLUNA VERTEBRAL: Arquetipicamente abalar a coluna significa abalar o edifício

inteiro. Representam também as relações entre céu e a terra.

AS MÃOS: As mãos representam na tradição Judeu-Cristã o conhecimento e o poder. A

mão é uma síntese exclusivamente humana, do masculino e do feminino. Ela é passiva no que

contém e ativa no que detém.

OS OMBROS: Os ombros são considerados simbolicamente o lugar do fardo, do jugo, do

peso, transformam-se no território do bem querer, da potência da realização, da emergência do

escondido ou perdido.

AS CLAVÍCULAS: As clavículas são as chavinhas. Elas são as chaves (mafteach) da

chamada porta dos deuses, a passagem do pescoço na simbologia do corpo humano.

A PORTA DOS DEUSES

O PESCOÇO: Simboliza no sentido descendente a passagem da vida à ação, a

comunicação da alma com o corpo, a via pela qual se manifesta e passa a vida.

A COROA (KETÉR)

A CABEÇA: O rosto humano retoma nesse plano superior tudo o que os planos inferiores

revelaram.

OS OUVIDOS: Simbolicamente estão associados à capacidade de escuta mística, interior,

vibracional ou à abertura da pessoa à inteligência cósmica, à capacidade de situar-se no espaço e

no universo.

A BOCA: Por ser o órgão da palavra (Logus, Verbum) e do sopro (ruach, spiritus), a boca é

um símbolo feminino do poder criador, criativo, a manifestação dos graus mais elevados da

consciência.

OS DENTES: O dente evoca as leis e os instrumentos pelos quais a pessoa, trabalhando

sobre si mesma, vai tornar-se devenir, cada vez mais, uma pedra trabalhada e não bruta, apta a

inserir-se no grande edifício humano e cósmico.

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A LÍNGUA E A SALIVA: Como órgão do paladar e do gosto, a língua é o símbolo do

discernimento. A saliva fala de nosso desejo de alimentação espiritual.

O NARIZ: Simbolicamente, representa um tipo de discernimento mais intuitivo do que a

razão.

OS OLHOS: Os olhos são a grande porta de entrada para a matriz cerebral, nossa

instância mais próxima da Emanação.

O CRÂNIO: O crânio coroa e representa a Pessoa, única e irrepetível, ícone divino, criado

ao som do Verbo e na ressonância do seu Nome.

Entremeado pelos mecanismos biológicos, o corpo mantém uma estreita relação com a

psique. Esta se afirma em uma unidade indissociável que revela o Ser que é. Verificamos e

confirmamos a matéria como o corpo se apresenta, bem como sua dimensão de comunicar que

antecede e transcende a comunicação verbal. Esse potencial e revelador de uma fala se fez

representar pela dimensão sagrada e simbólica do corpo e seus aspectos físico, psicológico e

divino dentro da compreensão da Cabala e da filosofia judaico-cristã. É portanto, a formação

arquetípica do esquema corporal que apresenta um significado ampliado e que transcende a

objetividade do corpo tornado matéria, das construções fragmentárias de imagens corporais.

Esboçamos a compreensão do conjunto de representações que o corpo pode assumir, a dimensão

simbólica. Esta não significa simplesmente o conjunto de significados das diferentes partes da

Árvore humana, e sim, a compreensão de que cada parte do esquema corporal atua como um

significante, capaz de fazer com que o indivíduo possa agir. A dimensão simbólica produz uma

ação no real, suscita um sentido ao ser que somos. Assim, é importante que se compreenda ao

lidar com o paciente, que o olhar, a escuta, e o acolhimento terapêutico não seja composta de uma

infinidade de fragmentos do corpo, isolados de uma representação, de um sentido. É preciso que o

terapeuta possa provocar recordações, interpretações, fazer ligações, estabelecer analogias,

mobilizar e amplificar o sentido. Oportunizar ao paciente não se identificar apenas com o seu

corpo, seu psiquismo, mas de descobrir esta outra dimensão do seu ser, a dimensão sagrada. É

reencontrar-se na unidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

DOUGLAS, Nick & SLINGER, Penny. Segredos sexuais. Record: São Paulo, s/d.

JUNG. C.G. Psicologia do inconsciente. Vozes: Petrópolis, 1981.

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Alberto Olavo Advincula. Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. EPU: São Paulo,

1984.

MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Corpo território do sagrado. Loyola: São Paulo, 2000.

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Brasileira da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Palar Athena: São Paulo, 2002.

REIS, Marfiz Ramalho. O corpo como expressão de arquétipos. Jungniana, v. 20. Revista

Brasileira da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Palar Athena: São Paulo, 2002.

SIVADON, Paul & ZOILA, Adolfo Fernandez. Corpo e Terapêutica: uma psicopatologia do

corpo. Papirus: Campinas, 1988.

SOUZENELLE, Annick de. O simbolismo do corpo humano: da árvore da vida ao esquema

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VARGAS, Nairo de Souza. Símbolo e psicossomática: o corpo simbólico. Junquiana, nº 20.

Revista Brasileira da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Palar Athena: São Paulo, 2002.

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OS RECURSOS PESQUEIROS RECURSOS PESQUEIROS RECURSOS PESQUEIROS RECURSOS PESQUEIROS DA OS DA OS DA OS DA AMAZONIAAMAZONIAAMAZONIAAMAZONIA

AAAAmaralmaralmaralmaral, J. J, J. J, J. J, J. J15151515; ; ; ; BBBBadocha, T.E.adocha, T.E.adocha, T.E.adocha, T.E.16161616(2005)(2005)(2005)(2005)

RESUMO: O aumento na eficiência da pesca, devido ao incentivo do governo às empresas de pesca, combinado as inovações tecnológicas de captura. A pesca na Amazônia movimenta por ano no mercado regional uma quantia estimada em pelo menos US$ 100 milhões, sem nenhum subsídio do governo federal ou estadual. Isso se considerarmos que as capturas se localizam acima de 200 mil toneladas e o preço do pescado em torno de US$ 0,50 o quilo. PALAVRAS-CHAVE: Incentivo, Pesca, Amazônia. ABSTRACT: The increase in the efficiency of the fishing, due to the incentive of the government to the fishing companies, combined the technological innovations of capture. The fishing in the Amazonian moves a year in the regional market a dear amount in at least US$ 100 million, without any subsidy of the government federal or state. That if we consider that the captures are located above 200 thousand tons and the price of the fish around US$ 0,50 the kilo. KEYWORD: I motivate, he/she Fishes, Amazonian.

A dimensão da bacia Amazônica e sua grande heterogeneidade ambiental são fatores de

fundamental importância para a manutenção de sua alta diversidade. As características da bacia e

as paisagens que nela estão inseridas são aspectos macro a serem considerados no sistema

aquático (Barthem, 2001).

A Amazônia é uma região ampla, que apresenta a maior taxa de crescimento populacional

do país (IBGE, 2000), o que gera degradação ambiental pela ocupação desordenada do espaço,

reduzindo potencialmente a capacidade de suporte do sistema através da ampliação das

demandas internas por alimento e renda. O setor pesqueiro nacional segue a deriva, no meio de

embates da visão “produtivista” e “conservacionista” de órgãos do Governo Federal, e a maioria

15 - Professor Adjunto da Fundação Universidade Federal de Rondônia, [email protected] 16 - Pesquisador credenciado no LABOGEOHPA da Fundação Universidade Federal de Rondônia, [email protected]

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dos estados ainda não estabeleceu ou implantou políticas de desenvolvimento sustentável para o

setor (Ruffino, 2004).

A partir da década de 1960, uma conjunção de fatores, incluindo o aumento no mercado de

pescado, a introdução de novas tecnologias de pesca, políticas de fomento do setor pesqueiro e a

decadência da juta, a principal atividade econômica da várzea, levou a intensificação da pesca na

Amazônia. O aumento na eficiência da pesca, devido ao incentivo do governo às empresas de

pesca, combinado as inovações tecnológicas de captura (fio sintético), de transporte (barcos a

motor), e de armazenamento (fabricas de gelo e caixas de isopor) do pescado, abriram espaço

para a pesca comercial como atividade econômica principal na várzea para os ribeirinhos e o

pescador comercial profissional (McGrath et al. 1993).

A pesca na Amazônia movimenta por ano no mercado regional uma quantia estimada em

pelo menos US$ 100 milhões, sem nenhum subsídio do governo federal ou estadual. Isso se

considerarmos que as capturas se localizam acima de 200 mil toneladas e o preço do pescado em

torno de US$ 0,50 o quilo. Essa quantia gera mais de 200 mil empregos diretos (Ficher et al.,

1992); fornece a principal fonte protéica consumida pela população Amazônica (Jesus et al. , 1991)

e de acordo com Barthem (2001) aquece uma economia formal e informal baseada no comércio

relativo a pesca (redes, manutenção de motores, fabricação de gelo, construção de barcos e outros

artefatos).

Segundo Cerdeira et al. (1997) e Batista et al. (2004), as taxas de consumo de pescado na

Amazônia são as maiores do mundo, demonstrando a importância regional que esse recurso

representa.

Os instrumentos legais para proteger grande parte dessa biodiversidade já estão, previsto

pela legislação atual. Sua aplicação depende não só da aquisição de mais conhecimento, para

justificar melhor as propostas de proteção, como também da organização de órgãos dos governos

federal, estadual e municipal, e da sociedade como um todo, de modo a acatarem, de uma forma

verdadeira, as medidas de preservação desse patrimônio (Barthem, 2001).

De qualquer modo, o aparato legal para administrar a pesca na Amazônia não parece estar

sendo suficiente para atuar em caso de sobreexploração de um determinado recurso pesqueiro.

Issac & Ruffino (1996) mostraram há alguns anos que os estoques de piramutaba e tambaqui,

respectivamente, estavam sendo excessivamente explorados. Apesar da informação estar

disponível, muito pouco pôde ser feito ate agora para contornar o problema.

Além do número relativamente baixo de espécies utilizadas na pesca em relação ao grande

potencial existente, observa-se também que grande parte da produção pesqueira recai apenas

sobre uma minoria delas. As dez principais espécies representam mais de 80% da produção dos

mercados pesqueiros regionais (Leite & Zuanon, 1991).

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O recurso pesqueiro não está ameaçado apenas pela sobrepesca seletiva, voltado a

algumas poucas espécies, mas pela quase ausência, ou ineficácia, do atual gerenciamento

(Leonel, 1998).

De acordo com Santos & Santos (2005) o ponto principal a considerar quando se evoca a

sustentabilidade do setor pesqueiro é que a redução dos estoques pesqueiros e demais efeitos

negativos que abatem sobre a ictiofauna não advêm exclusivamente da pesca, mas de impactos

negativos do entorno, como a derrubada de matas ciliares, a destruição de nascentes, o

assoreamento, a poluição e o represamento de rios.

Prosseguindo como esta, o abuso do recurso peixe, com uma sobre-exploração não

monitorada e concentrada em poucas espécie, será agravada pelo descontrole de outros fatores de

degradação do ambiente, chegando até o comprometimento dos rios. Podendo ameaçar a

renovabilidade do pescado, em particular das espécies mais cobiçadas pelo consumidor (Leonel,

1998).

Além das dificuldades inerentes a piscicultura e tecnologia do pescado, a pesca Amazônica,

em seu sentido amplo, enfrenta outros problemas relativos à insuficiência de recursos humanos e

financeiros e, talvez mais importante, a falta de conscientização dos atores da pesca e da

sociedade em geral sobre a real importância da preservação e uso responsável dos recursos

pesqueiros e do meio ambiente como um todo (Santos & Santos, 2005).

A despeito dos conflitos de interesse e dos embates presentes ou futuros, parece haver um

consenso de que a manutenção da integridade do ecossistema amazônico e fundamental para

todo e qualquer tipo de iniciativas que visem a sua exploração e desenvolvimento em bases

sustentáveis. Nesse contexto, independentemente de políticas, métodos, estratégias, táticas ou

técnicas evocadas ou levadas a termo, a educação ambiental que leva a conscientização e

mudanças de comportamento é o fundamento desta sustentabilidade (Santos & Santos, 2005).

O gerenciamento do recurso pesqueiro tem a sua disposição uma multiplicidade de

alternativas de controle da sobrepesca, como as proibições sazonais; as proibições ou restrições

em determinadas áreas; proibições ou limites para alguns instrumentos; proibições ou limites

quantitativos para a proteção específica de algumas espécies, ou controle de sua quantidade ou

tamanho; sistemas de quotas regionalizadas aos pescadores e limites de número de pescadores

ou de barcos em lagos e outros locais piscosos. Muitas destas alternativas podem surgir do

consenso dos atores (Leonel, 1998).

De acordo com Ruffino (2004) a ação deficiente do poder público em relação ao seu papel

como gerenciador dos recursos pesqueiros e a exclusão da pesca como prioridade nos programas

governamentais de gerenciamento de recursos naturais da região permitiu o aumento

descontrolado da explotação. As normas de ordenamento pesqueiro existentes, consideradas, na

maior parte das vezes inadequadas às características regionais são, na prática, pouco cumpridas e

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deficientemente fiscalizadas. Tais fatos levaram ao surgimento de conflitos sociais na região, onde

não houve nenhum agente mediador ou disciplinador dos confrontos.

No caso de pesca, praticamente toda produção dos barcos pesqueiros é acondicionada,

transportada e vendida em gelo. Como não há infra-estrutura suficiente para isso, ocorre

normalmente que os peixes de segunda categoria capturados acabam sendo descartados para dar

lugar as espécies mais importantes capturadas simultaneamente ou no momento posterior.

Estimativas informais dão conta de até 30% de estrago do pescado nessa operação (Santos &

Santos, 2005).

O impacto das ações antrópicas nas áreas de várzea vem aumentando ao longo dos tempos

( Monteiro & Sawyer, 2001). A ocupação desses locais tem sido feita com a derrubada da floresta,

tanto para a exploração de madeira como para a agricultura, pois os solos da várzea são os solos

amazônicos mais ricos em nutrientes (Ayres, 1993).

O ribeirinho necessita estar no centro de uma política de promoção do desenvolvimento

sustentável da pesca na Amazônia e de seu gerenciamento ambiental. As soluções a serem

buscadas, vão desde o reconhecimento de sua condição de pescador eventual, até o conjunto de

sua difícil condição de sobrevivência (Leonel, 1998).

De acordo com Ruffino (2004) o problema global do ordenamento pesqueiro na Amazônia é

o efeito decorrente da utilização do recurso por vários grupos de usuários. Assim, o ordenamento

pesqueiro deverá levar em consideração a eficiência no uso do recurso, conservação da

biodiversidade e a distribuição dos benefícios gerados pela apropriação do recurso para atingir a

sustentabilidade.

O zoneamento dos locais piscosos, em particular os lagos de várzea, mas também

cachoeiras e bocas de afluentes, é uma das bases para gerenciamento adequado dos recursos

pesqueiros (Leonel, 1998).

O eixo do gerenciamento é a garantia de renovabilidade do recurso comum, cabendo a

política pública a ação preventiva reguladora para manutenção da reprodução das espécies, dos

estoques, antecipando-se a ação destrutiva da sobrepesca especializada e a degradação

ambiental por outras atividades de exploração predatória (Leonel, 1998).

Existem alguns casos de implementações de estratégias para o uso de recursos pesqueiros

em unidades de conservação, através de reservas extrativistas ou reserva de desenvolvimento

sustentável, obedecendo a um esquema de rodízio de lagos perseguindo a conservação da

biodiversidade e dos recursos naturais enquanto busca a melhoria das condições de vida da

população (SCM, 1996).

Os órgãos de gestão começam a reconhecer a possibilidade de uma política mais

participativa e descentralizada para o manejo dos recursos pesqueiros. Isso explica o surgimento

das primeiras portarias de acordo de pesca, para gerenciamento de locais como lagos ou reservas,

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que possuem uma geografia que facilita o controle por parte dos próprios pescadores, ou de

Agentes Ambientais Voluntários comunitários, devidamente autorizados para tal função (Ruffino,

2004).

A sobrepesca na Amazônia pode acarretar, em vez de um colapso brusco de uma atividade

pesqueira, uma sucessão de extinções econômicas de estoques pesqueiros de diferentes valores

econômicos, como foi modelado por Welcomme (1985), para as pescarias nos trópicos. Esse

modelo prevê que os primeiros estoques a desaparecerem são os formados por espécies de maior

porte, seguido pelas de porte mediano até o esgotamento das espécies de menor porte (

Crampton, 1999).

De acordo com Serra & Fernández (2004) qualquer proposta sustentável sobre o futuro da

Amazônia deve partir do fato de que a região conta hoje com aproximadamente 20 milhões de

habitantes, a maioria dos quais vivendo em áreas urbanas. Logo, enxergar a floresta como uma

grande floresta virgem só pode levar a oferecer propostas irrealistas e inviáveis.

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DOUTORDOUTORDOUTORDOUTORES DA VIDAES DA VIDAES DA VIDAES DA VIDA

Vanisa Durand GonçalvesVanisa Durand GonçalvesVanisa Durand GonçalvesVanisa Durand Gonçalves A crônica Doutores da Vida foi escrita por Vanisa Durand Gonçalves, acadêmica do 7º Período de Direito da UNIR como um dos desdobramentos do trabalho de campo desenvolvido na disciplina de Direito Agrário, ministrada pela professora Ms Isabela Esteves Cury Coutinho. Doutores da Vida relata, numa narrativa intimista, a realidade que os estudantes da Universidade Federal de Rondônia, campus Cacoal, encontraram no decorrer da visita ao acampamento dos sem-terra, em Alto Alegre dos Parecis,há 500 km de Porto Velho.. As pesquisas de campo dos estudantes da UNIR já são realizadas neste local há três anos. Sob a coordenação da professora Isabela Esteves Cury Coutinho, este projeto permite lançar um novo olhar sobre o universo agrário, em busca de respostas para importantes questões sociais e econômicas da atualidade..

Sabe aqueles trabalhos de campo aos quais todos os universitários são submetidos? Pois

então! Este parecia ser apenas mais um.

Sexta feira, 21 de abril, feriado. Dia ensolarado. Saímos cedo.

O ônibus passava pelas cidades recolhendo os acadêmicos para um destino que

surpreenderia a todos. A cantoria de praxe não poderia faltar na excursão. A viagem seguia

animada.

De repente, na paisagem enquadrada pela janela, as cidades e casas foram dando lugar à

plantação. Logo, surgiam os barracos. Sentíamos que aquele lugar seria o objeto de nossas

pesquisas.

Uma criança. Outra criança. Um instante e estávamos cercados por dezenas delas. Muitos

sorrisos nos davam as boas-vindas. Mas nada soava tão receptivo quanto as canções que nos

recebiam numa atmosfera de afeto e alegria. Com certeza, naquele dia tão diferente teríamos

muito a aprender. A nossa fome de saber e curiosidade foram saciadas num banquete de visões

de mundo como talvez jamais poderíamos imaginar. Não importava como chegáramos ali. Crus,

‘verdes’, subestimando-os, discriminando-os. Não importava.

O que de fato foi bom de ver foram as máscaras da ignorância caindo. Nossas concepções

carregadas de preconceito e intolerância sendo desfeitas através do conhecimento de causa. Foi

surpreendente ver o processo de transformação de idéias acontecendo ali diante de nossos olhos.

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Novos conceitos eram absorvidos. As questões fermentavam. Os interesses pareciam insaciáveis.

Tudo foi sabiamente respondido.

Eram joãos, franciscos, marias, teresas. Vidas cheias de vida, de saber, de experiências, de

sonhos, de ideais. Aqueles homens e aquelas mulheres realmente sabiam o porquê de estarem ali.

Diferentes de nós, que estávamos aprendendo uma lição que serviria para toda a vida.

Hora de almoçar. Mesquinho pensar que comeríamos cada um, egoisticamente, o próprio

lanche. Idéia errada. O alimento farto, vindo da terra, através do suor e árduo trabalho do

camponês, seria carinhosamente repartido com todos, num gesto de amor e simplicidade. Engoli a

seco a memória do meu mesquinho lanche solitário para partilhar a lição da coletividade.

“Acho que reclamamos demais” disse um amigo meu, que atônito também tentava assimilar

tantas lições de vida. Que gente simples! Que gente feliz! “É”, concordo com meu amigo, “acho que

reclamamos demais”.

Ao voltar para o local de concentração, notamos que havia crianças demais ali. Tentamos

uma aproximação. Mas não foi preciso esforço. Havíamos esquecido por um minuto como é a alma

desses pequenos. Dispensam formalidades; um mero gesto de afeto nos permite achegar-se.

Cantamos com eles, ensinamos algumas músicas, eles nos ensinaram tantas outras. Brincamos,

rimos. Distribuímos alguns presentes, mas fomos nós que recebemos os maiores e melhores

presentes. O afago, o sorriso, o carinho. Isso é indescritível e não tem preço.

Hora de ir embora. Chuva, lama, despedidas, lágrimas de emoção. Palavras de gratidão a

quem idealizou esse projeto e tantas outras a quem nos ensinou uma nova visão de mundo. Nosso

agradecimento a esses seres que nos fizeram sentir o peso da nossa responsabilidade como

cidadãos, como brasileiros, como seres humanos. Obrigada pelas lições ministradas nas áreas de

história, biologia, agricultura, genética, humanismo, oratória, empreendimento, religião, filosofia,

sociologia, enfim, lições da vida.

Nossa eterna gratidão a estes mestres e doutores formados na faculdade da vida, que

souberam ensinar com proficiência o significado do respeito, da simplicidade, da comunidade.

Talvez eu nunca mais volte a ver essas pessoas. As probabilidades de um reencontro são

muito remotas. Mas quero levar sempre comigo o ideal de acreditar que um sonho e um ideal

devem ser vividos, sonhados, cultivados e defendidos. Eu prometo a mim mesma sonhar e lutar

por uma sociedade mais justa.

Acredito que muitos trabalhos científicos fluirão desta visita, pois nada apagará a lição de

vida que tivemos nesta ensolarada sexta-feira, 21 de abril.

E pensar que parecia ser apenas mais um dia de trabalho de campo realizado por uma

universidade federal...

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A COLONIZAÇÃO EM RONDÔNIA E AS A COLONIZAÇÃO EM RONDÔNIA E AS A COLONIZAÇÃO EM RONDÔNIA E AS A COLONIZAÇÃO EM RONDÔNIA E AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃOUNIDADES DE CONSERVAÇÃOUNIDADES DE CONSERVAÇÃOUNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Sérgio L. V. de MirandaSérgio L. V. de MirandaSérgio L. V. de MirandaSérgio L. V. de Miranda

RESUMO: Como uma das regiões de colonização mais recente, com apenas trinta anos de início da implantação do primeiro Projeto Integrado de Colonização (PIC), o de Ouro Preto do Oeste, Rondônia teve, ao longo do tempo, problemas sérios de pressão antrópica sobre as áreas definidas como de conservação e preservação ambiental. O próprio modelo de colonização adotado, sendo uma estratégia estatal, em que o Estado muitas vezes ficou a reboque da ocupação, levou centenas de pessoas a se assentarem em áreas frágeis ou no entorno de Unidades de Conservação federais, estaduais, criadas mais recentemente ou das Terras Indígenas, cuja população teve suas áreas mais afetadas desde o início da ocupação do território hoje pertencente ao estado de Rondônia. Neste artigo será apresentada, de forma reduzida, como se deu a colonização no Brasil, em Rondônia e a influência dessa ocupação sobre as Unidades de Conservação estaduais e federais, seus problemas e possíveis soluções.

PALAVRAS-CHAVE: Colonização, Conservação, Rondônia.

ABSTRACT: As one of the areas of more recent colonization, with only thirty years at the beginning of the implantation of the first Integrated Project of Colonization (PIC), the one of Ouro Preto of the West, Rondônia had, along the time, serious problems of pressure antrópica on the defined areas as of conservation and environmental preservation. The own colonization model adopted, being a state strategy, in that the State many times it was to it tows of the occupation, it took hundreds of people the if they seat in fragile areas or in I spill him/it of Units of Conservation federal, state, maids more recently or of the Indigenous Lands, whose population had your more affected areas today since the beginning of the occupation of the territory belonging to the state of Rondônia. In this article it will be presented, in a reduced way, as he/she felt the colonization in Brazil, in Rondônia and the influence of that occupation on the Units of Conservation state and you federate, your problems and possible solutions.

KEYWORD: Colonization, Conservation, Rondônia.

Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas Instituições, nossas idéias, e timbrando em manter

tudo isto em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda

hoje uns desterrados em nossa terra. (Sérgio Buarque de Holanda)

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A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos governamentais de induzirem os colonos a destruírem a

floresta sob pretexto de transformar Rondônia em um novo cenário de modernização agrícola no estilo do

Centro – Sul do País, também deveria ser principal alicerce de uma sociedade rural próspera. Hoje, cima de tudo, esta natureza é vista como degradada por

práticas inadequadas ao ambiente amazônico. (José Januário de Oliveira Amaral)

Similar ao processo de expansão da colonização no Brasil, Rondônia foi um dos últimos

territórios a ser “conquistados” pelos colonizadores.

A ocupação do atual estado, não é muito diferente da que ocorreu no restante do país desde

sua ocupação pelos portugueses, a partir de 1500. O que mudou foi a época e os meios utilizados

para tal ação, deixando-se de utilizar a mão-de-obra escrava, por exemplo, para se passar a

agricultura familiar e com mão-de-obra assalariada.

O Brasil, como fruto da expansão dos Impérios Mercantis salvacionistas, baseados na fé, na

religião, dos quais Portugal, no nosso caso e Espanha, no caso do restante da América Latina, ou

espanhola, são exemplos, é colonizado por uma Portugal “(...) que vinha explorando a costa

africana desde o começo do século XV (...)” (RIBEIRO, 1987: 130), tentando implantar uma “

cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente

estranhas à sua tradição milenar “ (HOLANDA, 2000: 31).

No Brasil, se herdou a cultura autoritária trazida pelos povos ibéricos, tendo como alicerces a

questão religiosa e a mercantilização. Com seus conceitos e dogmas, os europeus nos

abarrotaram, durante o processo de colonização, de ícones, que como dizia Darcy Ribeiro, nos

transformou em “ninguenada”, os quais até os dias de hoje são seguidos e servem de orientação

para milhões de pessoas. A era da iconoclastia, ou seja, destruição dos ícones, foi iniciada com

Copérnico, afirmando que a Terra era redonda, e depois continuada por Darwin, com sua teoria da

evolução das espécies, e Freud, criador da Pscicanálise, e se estendeu por todo o século, até os

dias de hoje. Mas, esta idéia de iconoclastia, como tem a ver com descolonização, sempre foi

procurada ser deixada de lado, repudiada pelos colonizadores e pelas classes dominantes, pois

com tais ícones era mais fácil dominar aqueles que eram analfabetos.

A Europa, origem dos povos que colonizaram a América, aos poucos se “transfigura

ideologicamente, aprofundando o movimento de renovação inaugurado com o Renascimento e

intensificado pela Reforma. Nas áreas em que mais amadurecera o Capitalismo Mercantil,

quebram-se as velhas hierarquias religiosas e enseja-se um amplo movimento de secularização”

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(RIBEIRO, 1987:144), abrindo espaço para a era industrial. A mão-de-obra se transforma em um

“bem livremente negociável” (ibid.), Os “excedentes” da população, oriundos de um crescimento e

distribuição de renda desordenados, “se devem exportar como emigrantes” (ibid.). Ou seja, a

Europa mercantil é um cadinho de culturas e problemas, que transbordou, originando a colonização

de além mar. Além de trazer todos estes problemas para o país que se iniciava, é desenvolvido no

país um modelo de agricultura que, se arrastou pelos séculos, chegando aos nossos dias, com

faceta moderna, mas com muitos dos mesmos problemas, como: latifúndios, sem-terra, baixo nível

de educação, baixo ou nenhum salário, plantio de cultivos de exportação, cana de açúcar, no

início, depois café e hoje, principalmente soja, o que provocou inchaço das grandes cidades,

favelas, e todos os problemas sociais vivenciados atualmente.

Contrariamente a China, que até o século XVI, era auto-suficiente em cultura, materiais

originários de ferro, etc., e que fechou seus portos neste período, somente abrindo-os novamente,

quando os ingleses forçaram esta abertura, na base de confrontos, a Europa produziu uma cultura

dinâmica, baseada em uma revolução agrária, social, ideológica, de cunho racionalista, embora a

bandeira tenha sido levar a fé, mas com fundamento mercantil.

A Revolução Mercantil, que gerara o maior movimento expansionista da história humana tendente a unificar o mundo inteiro num só sistema de intercâmbio econômico, experimenta nesse passo, um movimento oposto de segmentação dos povos em entidades étnico-nacionais carregadas de hostilidade umas para com as outras. O mesmo processo civilizatório que alargara o mundo, pondo todos os povos em contato, e que ampliara o âmbito interno de cada sociedade pelo rompimento de barreiras regionais, encontra seu termo nas fronteiras nacionais (RIBEIRO, 1987:146).

Com a Revolução Industrial, impõe-se uma nova cultura na Europa, passando o ser humano

a ser mais uma “peça’” nas fábricas e trabalhando como um “robô”, com salários e jornadas de

trabalho aviltantes, condições de trabalho degradantes, o que provocou, aos poucos, reação e

conquistas que são válidas até os dias de hoje, como jornada de trabalho de oito horas, salários de

acordo com o nível de escolaridade do trabalhador, entre outras. Embora, no mundo capitalista, na

relação de trabalho, quem sempre fica com a maior e melhor parte, é o empresário.

Mas, no princípio, não se achava que na terra recém descoberta pudesse surgir alguma

atividade proveitosa, porém o “espírito empreendedor daqueles aventureiros conseguiu encontrar

algo que poderia satisfazer suas ambições” (PRADO JR., 1970:24). Foi justamente a exploração do

pau-brasil, seguida da cana de açúcar e outros produtos agrícolas, além do ouro, diamante, etc.,

que os colonizadores puderam obter da nova terra e perpetuar a sua descendência, com um alto

grau de miscigenação.

Com o início da colonização do Brasil, formou-se uma “sociedade agrária na estrutura,

escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na

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composição” (FREYRE, 1997: 4). Uma sociedade baseada, inicialmente, no ciclo do açúcar,

trazendo a formação da matriz cultural do brasileiro: família patriarcal, escravocrata ligada as

plantações de açúcar, ou seja, uma formação agrícola.

Diferentemente dos colonizados pelos espanhóis, os que nasciam e se formavam na colônia

portuguesa, tinham um grau de rebeldia maior, não acatando facilmente as ordens da Coroa

Portuguesa e mesmo da Igreja Católica, o que provocou, por diversas vezes, conflitos, que, na

maioria das vezes, são passados às gerações futuras, pelas classes dominantes, como sendo

estes os heróis. Mas esta sempre foi a versão deles, ou seja, nunca foi transmitido nas escolas

brasileiras quem eram os causadores e quais os motivos reais dos conflitos.

A formação do povo brasileiro começou a ser plasmada em função da cana-de-açúcar, sendo

que o apogeu da venda do açúcar se deu por volta de 1650, trazendo com isto riqueza para a casa

grande e mais trabalho e, na maioria das vezes, sofrimento para a senzala. Tudo que os habitantes

europeus e seus descendentes precisavam na Colônia, vinha de fora, ou seja, da Metrópole.

Os portugueses tinham facilidade em se misturar com outras raças, fruto da sua origem, uma

vez que na Península Ibérica haviam diferentes povos convivendo, pacificamente ou não,

dependendo da ocasião, havia séculos. Por isto, a miscigenação era tão grande, não só com os

indígenas, inicialmente, mas também com os negros, que vieram mais tarde, havendo com isto

uma enorme troca cultural e, ao contrário do que ocorreu na colonização do atual Estados Unidos

da América, a colonização no Brasil provocou uma enorme mistura étnica,

Não se preocupando com a pureza da raça, questões religiosas e políticas, os portugueses

mantiveram o vasto território pelo uso da força, em diversos casos, alcançando uniformidade da

língua e religião.

O negro escravo e a cana-de-açúcar fundamentavam a colonização aristocrática e esta

estrutura básica do coronelismo se perpetuou durante os ciclos do ouro e do café.

O colono, no Brasil, tinha uma liberdade muito grande, pois os centros do poder se

encontravam distantes, muitas vezes, dele, facilitando suas ações.

O senhor de engenho tinha tanto poder, que o que ele ordenava era lei, e este poder era

asfixiante, que em conjunto com a mão forte do Governo, mantinha mais forte esta asfixia sobre a

sociedade, que era, na realidade, uma asfixia da consciência individual, fato contrário ao que

ocorria nos Estados Unidos da América, de colonização protestante, que tinham o trabalho e a

organização como principais fatores para o seu crescimento.

A economia açucareira fez com que surgisse no Brasil uma tradição latifundiária, que até

nossos dias persiste, sendo que o maior exemplo deste fato é a Região Nordeste, onde os

agricultores não tiveram acesso a terra e que foi, ao longo dos séculos, formatado numa cultura

latifundiária.

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O parasitismo do Estado e a tendência autoritária da cultura católica ibérica, em conjunto com

o patriarcalismo, provocaram uma atrofia no setor privado, observada na medida em que o país se

consolida. Atrofia que reflete até nossos dias. O patriarcalismo, nesta época é formado de

paternalismo, de um lado, e autoritarismo de outro, e o empresariado que se forma, tem caráter

familiar.

Apesar do pacto colonial, contestavam-se as ordens da Metrópole, mas a iniciativa

econômica não é desenvolvida pelos particulares, setor privado, ficando à mercê do Estado e as

iniciativas modernizantes que existiam, eram oriundas, hierarquicamente, de cima para baixo, ou

seja, sem discussão com os principais interessados, era imposta pelo Estado e/ou pela classe

dominante. Somente em finais do século XIX e início do XX, é que com a imigração principalmente

italiana, começam a surgir iniciativas particulares, mas que somente durante o século XX se

consolidam. Desta maneira, se forma no Brasil um estado urbano, com uma economia agrícola,

que só com capital estrangeiro, empréstimos, é que consegue se industrializar. Mas, inicialmente,

são implantadas indústrias que não competem com a dos países do chamado primeiro mundo, pelo

contrário, as complementam, pois com suas vendas o retorno de capital é cada vez maior.

A ocupação em Rondônia.

O processo de colonização em Rondônia não foi diferente, na forma e estratégia

empregadas, do que ocorreu no Brasil. Apenas os métodos foram outros. Desta vez, se tinha um

órgão governamental, Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, última denominação,

que apoiava a ocupação do estado, incentivada pelo Governo Federal.

Este processo de ocupação do atual estado de Rondônia, foi uma “(...) estratégia estatal, mas

realizado por milhares de migrantes, cuja iniciativa influiu na ação do Estado e é hoje dominante”

(Becker,1985). O Estado sempre esteve a reboque do povoamento (Becker,1985), obtendo com

isto uma ocupação rápida do seu território.

No final da década de 60, a ocupação de algumas áreas por colonizações particulares, como

a Urupá, em Ji-Paraná, e da família Melhorança, em Espigão do Oeste, foi incentivada,

inicialmente, mas reprimida depois, quando do início da colonização oficial, que aproveitou muitas

das infra-estruturas realizadas, como estradas vicinais. Porém, somente utilizando a força, é que,

como exemplo, foi conseguido que a colonização da família Melhorança parasse suas atividades.

Com o início da colonização oficial, com o Projeto Integrado de Colonização, em Ouro Preto

do Oeste, no início da década de 70, o processo de ocupação do território do atual estado de

Rondônia, utilizando agricultores vindos de outros estados, principalmente do Centro – Sul do país,

é definitivamente deflagrado. Depois deste, e sucessivamente, vieram os demais projetos de

colonização, regularização fundiária e assentamento dirigido, que na maioria das vezes, baseados

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em estudos do próprio INCRA ou outros órgãos governamentais, assentavam pessoas em terras

inóspitas, estranhas para eles, com vegetação e solos desconhecidos, para utilizar técnicas

agrícolas antiquadas e inadequadas à região.

A ocupação de novas áreas, que não estavam previstas inicialmente no planejamento dos

órgãos governamentais, como as regiões da BR 429, em direção a Costa Marques e BR 421, em

direção a Buritis, provocou a abertura de áreas para a colonização, que se não totalmente

impróprias para o estabelecimento da agricultura tradicional, faziam parte de ecossistemas frágeis,

como os da região do Guaporé, além de estarem no entorno de Unidades de Conservação e

Terras Indígenas.

Exemplos de conflitos oriundos destas regiões são as invasões ocorridas na Terra Indígena

Uru-Eu-Wau-Wau, em São Miguel do Guaporé e Seringueiras, até que se instalasse postos fixos

da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, com apoio da Polícia Federal e do Batalhão de

Policiamento Ambiental da Polícia Militar do Estado de Rondônia, que mesmo assim não evitaram

totalmente as invasões ocasionais, e na Floresta Nacional do Bom Futuro e Reserva Extrativista

Jaci – Paraná, em Buritis. Esta última região teve um fluxo migratório grande nos últimos cinco

anos, voltado para a retirada de madeira e ocupação de terras, o que provocou a invasão da

Floresta Nacional Bom Futuro, gerida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

Naturais Renováveis – IBAMA, até mesmo com a instalação, ilegal, de uma vila em seu interior, na

fronteira Oeste da referida Unidade.

As Unidades de Conservação no Brasil e em Rondônia.

A criação de Unidades de Conservação em todo o Brasil, em especial na Região Amazônica,

sempre foi vista pelos “desenvolvimentistas” como um empecilho ao “crescimento econômico”.

Porém a partir da década de 70, iniciou-se um movimento em todo o planeta, sobre a questão

ambiental, e no nosso país, com apoio de instituições internacionais, o tema meio ambiente foi

cada vez mais sendo discutido. Após praticamente duas décadas de discussões, com a ECO –92,

surgiram diversas organizações não governamentais, que entre outras coisas, desejavam a

manutenção dos ecossistemas frágeis e/ou únicos nas Unidades de Conservação e a

sobrevivência, com dignidade, das populações tradicionais.

Durante o século passado foram criadas diversas Unidades de Conservação, embora outras

tenham sido extintas, como, por exemplo, os Parques Nacionais de Paulo Afonso (1969) e de Sete

Quedas (1981), provocadas pela inundação da Usina de Sobradinho e para a construção da

hidrelétrica de Itaipu, respectivamente (Horizonte Geográfico, 1998).

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As Unidades que foram criadas neste período, não tiveram seus limites respeitados e,

freqüentemente, foram invadidas, descaracterizando, muitas vezes, completamente áreas frágeis

ou de belezas cênicas inigualáveis (ibid).

As Unidades de Conservação sofrem danos das mais diversas formas, como: invasão para

retirada de madeira, palmito e outros produtos extrativos, para especulação, para caça e pesca

predatórias e ilegais, entre outros. Contribuem para isto, a carência de recursos humanos lotados

nas Unidades, demarcação antiga ou inexistente, poucos recursos materiais e precária

identificação, orientação e sinalização, contribuindo para a descaracterização de muitas dessas

áreas, causando sérios prejuízos ao meio ambiente e, consequentemente, ao próprio homem,

provocando extermínio de espécies da fauna e flora.

A partir de 1988, com a instituição da 1ª Aproximação do Zoneamento Socioeconômico –

Ecológico, com o Decreto n.º 3782 daquele ano e, posteriormente, com a Lei n.º 52 de 1991,

diversas Unidades de Conservação estaduais foram propostas e estabelecidas. Foram criadas mas

não implantadas efetivamente, sendo alvo inúmeras vezes de ações ilegais, provocando a

degradação dessas áreas e, não raro, sua descaracterização, tornando-as inadequadas para a

preservação e conservação do meio ambiente.

As unidades federais, criadas a partir de 1961, com as Reservas Florestais Jarú e Pedras

Negras, posteriormente transformadas nas Reservas Biológicas Jarú e Guaporé, em 1979 e 1982,

respectivamente ( RONDÔNIA, Projeto de Fiscalização Preventiva, 2000), também sofreram, ao

longo do tempo, ações danosas aos seus estoques ambientais.

Com recursos do Programa de Desenvolvimento da Região Noroeste do Brasil –

POLONOROESTE, empréstimo do Banco Mundial, foi possível ao Governo Federal proceder o

asfaltamento da BR 364, que liga Porto Velho (RO) a Cuiabá (MT), e implantar a infra-estrutura de

apoio aos agricultores já assentados, em processo de assentamento e/ou que estivessem tendo a

regularização fundiária das terras que ocupavam, provocando uma maior pressão sobre as

Unidades de Conservação existentes, pois diversas dessas Unidades foram criadas próximas aos

assentamentos e estes também o foram.

Substituindo o POLONOROESTE, o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia –

PLANAFLORO, contratado em 1992 e iniciados os primeiros desembolsos em 1993, apoiou

inúmeras ações de proteção às Unidades de Conservação federais, estaduais e Terras Indígenas,

como levantamentos socioeconômico-fundiários, demarcação de todas as Unidades estaduais e de

praticamente todas as Terras Indígenas, faltando apenas duas que estão interditadas, por existirem

vestígios de índios isolados nelas, atividades de monitoramento e fiscalização ambiental, aquisição

de materiais e equipamentos, reforma e construção de sedes e postos de vigilância, entre outras.

Mas, os recursos deste Programa nem sempre eram liberados na época certa e no montante

programado, em função dos cortes que o Governo Federal fazia, em virtude das prioridades eleitas

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para as diversas regiões do Brasil, prejudicando seriamente a aplicação dos recursos na área

ambiental no Estado. Com a instituição pelo Governo do Estado da Lei 233 de 06/06/2000, do

Zoneamento Socioeconômico Ecológico do Estado, na escala de 1:250.000, essas áreas foram

mantidas, e quaisquer alterações em seus limites, somente poderão ser realizadas por novo projeto

de lei e com estudos tão ou mais detalhados quanto os que subsidiaram a elaboração da referida

lei, o que impede, pelo menos parcialmente, a mudança conforme a vontade dos políticos.

Além disto, há outras prioridades no âmbito dos Governos federal e estadual, como por

exemplo abertura e asfaltamento de estradas, construção de escolas e postos de saúde, entre

outras, o que relega as atividades ligadas ao meio ambiente a um plano secundário. Em função da

liberação dos recursos do PLANAFLORO, que sofria a supervisão do Ministério da Integração

Nacional – MIN e do Banco Interamericano para a Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD, o

Governo do Estado tinha compromissos assumidos nos Acordos de Empréstimo e de Projeto, de

manter as Unidades de Conservação e Terras Indígenas, porém as atividades nessas áreas

ocorrem de forma lenta, em função da liberação dos recursos, pessoal e materiais disponíveis para

tal execução.

O ser humano não percebe que continuando o atual ritmo de desmatamento, destruirá uma

rica biodiversidade, que leva com ela dezenas de milhares de substâncias e princípios ativos que

poderiam ser utilizados para a pesquisa farmacológica, cosmética e medicina, ou mesmo para

utilização na cura de doenças do próprio homem, que só ao final do século passado iniciou o

reconhecimento e valorização destes recursos.

Criadas pelo Estado, União ou Municípios, as Unidades de Conservação são sempre alvo de

vândalos, que freqüentemente as atacam, levando com eles parte da nossa sobrevivência. Leis

que as criam, regulamentam seu uso e as protegem não faltam. Porém, cumpri-las e fazer que

sejam cumpridas é que tem sido o problema.

No estado de Rondônia existem quarenta e uma Unidades de Conservação estaduais e dez

federais, em diversas categorias, tais como Parques, Estações Ecológicas, Reservas Biológicas,

Reservas Extrativistas, Florestas Estaduais de Rendimento Sustentado e Floresta Nacional, e vinte

e uma Terras Indígenas, abrangendo 34,95% da área total do estado, correspondendo a

8.336.790,07 ha. Muitas pessoas não entendem qual o objetivo de se manter uma Unidade de

Conservação e nem qual o papel social de uma Terra Indígena, achando que essas áreas devem

ocupar locais de baixa ou nenhuma fertilidade, isto é, sem utilidade. Mas, quando se define uma

área como Unidade de Conservação, seja de qual categoria for, o motivo não é só de se preservar

áreas intactas, porque lá a vegetação nativa é bonita, porque há muitos animais, etc., mas porque

representam ecossistemas únicos, frágeis ou de uma importância relevante, como a Serra dos

Pacaás Novos, abrangida pelos Parques Estadual Guajará Mirim e Nacional Pacaás Novos, onde

nascem a maioria dos rios que drenam para os rios Madeira e Guaporé. Este tipo de visão errônea,

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leva representantes da população, muitas vezes formadores de opinião, a movimentarem-se contra

a criação e manutenção de Unidades de Conservação, induzindo a população em geral a achar

que essas áreas “só atrapalham” o desenvolvimento econômico do estado.

Apesar dos recursos que foram e são disponibilizados para a manutenção e efetiva

implantação dessas áreas, que são poucos em relação ao que seria necessário, a maioria delas

carece de uma infra-estrutura adequada ao seu funcionamento, fiscalização e monitoramento em

quantidade insuficiente ao necessário, estudos de alternativas econômicas para as populações

tradicionais, que vivem em Reservas Extrativistas, pouco implantados, além do pouco envolvimento

das comunidades do entorno na preservação dessas áreas.

A ação dos governos estaduais e federais, na maioria das vezes, é pontual, ou seja, destina-

se a “apagar fogo”, tentando resolver problemas que já estão instalados. A sociedade civil

organizada atua, também, através de denúncias e participação em operações de fiscalização, na

manutenção da integridade dessas áreas, que, apesar de todos os esforços, do lado

governamental e não governamental, continuam sofrendo ações predatórias que vem sendo

repelidas, conforme ocorrem.

A colonização oficial no estado, a ocupação de áreas sem potencial agrícola, com posterior

regularização fundiária, garimpos, a ação de pessoas que visam apenas o interesse pessoal, têm

levado as Unidades de Conservação e Terras Indígenas a perda da sua biodiversidade,

provocando danos irreparáveis a sua integridade, colocando em risco a nossa própria

sobrevivência.

Ações de governo que esteja interessado na manutenção dessas áreas, em conjunto com

atividades da sociedade civil organizada, podem levar a uma maior conscientização da população,

principalmente do entorno destas áreas, e população tradicional, que acarretará uma conservação

e preservação das Unidades de Conservação e uso racional e sustentável das Terras Indígenas,

com apoio à sua população, respeitando-se os seus aspectos sociais e culturais.

Bibliografia consultada

AMARAL, J. Januário de Oliveira. Os latifúndios do INCRA :A concentração de terra nos projetos de assentamento em Rondônia. Tese de doutorado. USP, São Paulo. 1999, 125 p.

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FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 29ª ed. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 1999. 248 p.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 32ª ed. Rio de Janeiro. Record, 1997.

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O REFLEXO DA LENTIDÃO DAS DECISÕES DO O REFLEXO DA LENTIDÃO DAS DECISÕES DO O REFLEXO DA LENTIDÃO DAS DECISÕES DO O REFLEXO DA LENTIDÃO DAS DECISÕES DO PODER PÚBLICO NA AUTOPODER PÚBLICO NA AUTOPODER PÚBLICO NA AUTOPODER PÚBLICO NA AUTO ----

SUSTENTABILIDADE DO SETOR FLORESTAL SUSTENTABILIDADE DO SETOR FLORESTAL SUSTENTABILIDADE DO SETOR FLORESTAL SUSTENTABILIDADE DO SETOR FLORESTAL EM RONDÔNIA: OS IMPACTOS DA NÃO EM RONDÔNIA: OS IMPACTOS DA NÃO EM RONDÔNIA: OS IMPACTOS DA NÃO EM RONDÔNIA: OS IMPACTOS DA NÃO IMPLEMENTAÇÃO DO ZONEAMENTO NO IMPLEMENTAÇÃO DO ZONEAMENTO NO IMPLEMENTAÇÃO DO ZONEAMENTO NO IMPLEMENTAÇÃO DO ZONEAMENTO NO

SETOR FLORESTAL DE RONDÔNIASETOR FLORESTAL DE RONDÔNIASETOR FLORESTAL DE RONDÔNIASETOR FLORESTAL DE RONDÔNIA

Edmundo Machado NettoEdmundo Machado NettoEdmundo Machado NettoEdmundo Machado Netto RESUMO: O presente artigo tem por objetivo sustentar que, apesar da materialização do pacto social institucionalizado entre o movimento dos trabalhadores sem terra, associações de produtores rurais, setor produtivo urbano – rural, toreiros, poderes públicos estadual e municipais, etc, através do Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico do Estado de Rondônia, a lentidão na implementação de suas diretrizes por parte do poder público, tem levado a distorções no processo de efetivação de um desenvolvimento sustentável no Estado. A incompatibilidade de competências entre órgãos como o IBAMA e a SEDAM, também devido a problemas estruturais destes (burocratização, superposição de atividades e ausência de capacidade fiscalizadora), tem resultado no retardamento de decisões que desacreditam a importância do pacto referido, remete-os a uma posição de cobrança dos segmentos sociais ante o poder público em vista do que fora previamente pactuado e resultam numa pressão descontrolada daqueles grupos sobre os recursos naturais não renováveis, resultando em agressões ao meio ambiente como o desmatamento e a invasão de Áreas Indígenas, Florestas Nacionais e Estaduais de Rendimento Sustentado, Parques Estaduais e Reservas Extrativistas. Esta condição de descumprimento das diretrizes do Zoneamento tem prejudicado sobremaneira a possibilidade do alcance do desenvolvimento sustentável do setor de base florestal no Estado de Rondônia. ABSTRACT: The present article has for objective to sustain that, in spite of the materialization of the social pact institutionalized among the workers' movement without earth, associations of rural producers, urban productive section - rural, toreiros, state and municipal public powers, etc, through the Socioeconomic and Ecological Zoning of the State of Rondônia, the slowness in the implementação of your guidelines on the part of the public power, it has been taking the distorções in the process of efetivação of a maintainable development in the State. The incompatibility of competences among organs as IBAMA and SEDAM, also due to structural problems of these (bureaucratization, overlap of activities and absence of capacity fiscalizadora), he/she has result in the retardation of decisions that you/they discredit the importance of the referred pact, it sends them to a position of collection of the social segments in the face of the public power in view of what it had previously been made a pact and they result in an uncontrolled pressure of those groups on the natural resources you didn't renew, resulting in aggressions to the environment as the deforestation and the invasion of Indigenous Areas, National and State Forests of Sustained Revenue, State Parks and you Reserve Extrativistas. This condition of noncompliance of the guidelines of the Zoning has been harming the possibility of the reach of the maintainable development of the section of forest base excessively in the State of Rondônia.

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Introdução

Este texto pretende analisar, de forma sucinta, o reflexo que a lentidão das decisões do

Poder Público em Rondônia exerce na auto-sustentabilidade do Setor de Base Florestal do Estado,

tendo como enfoque principal de análise o retardamento da implementação do Zoneamento Sócio-

Econômico e Ecológico no Estado e os conflitos entre órgãos que, contrariamente ao esperado,

não tem uma mesma linha de atuação para superar obstáculos que possam retardar a

implementação de diretrizes para um desenvolvimento sustentável do referido setor.

Nessa linha de análise, esse texto visa:

• Fazer uma abordagem sobre a expectativa gerada pelo Zoneamento Sócio-Econômico e

Ecológico à luz do ordenamento territorial que ele propunha e do desenvolvimento

sustentável que sua correta implementação poderia resultar;

• Analisar o papel do Estado de mediar conflitos sociais e resolver impasses institucionais,

de forma rápida e efetiva, de sorte a possibilitar que as ações planejadas e formalizadas

sob a forma de políticas públicas se materializem;

• Comentar sobre os reflexos da lentidão das decisões do Estado na auto-sustentabilidade

do setor de base florestal, apesar da existência de um bom instrumento de planejamento e

gestão territorial – o ZSEE;

• Discutir as conseqüências do dissenso entre os órgãos que conduzem a política florestal do

Estado, e de que forma isso se reflete no campo da obtenção ou não da auto-

sustentabilidade;

• Abordar a questão cultural da população que ocupou o Estado de Rondônia e as

dificuldades que estas pessoas tem de, naturalmente, assimilarem as ações estratégicas

do ZSEE, e, como isso se reflete na sustentabilidade do Setor de Base Florestal;

• Citar a questão da lentidão do Estado em punir os responsáveis pela invasão de reservas e

pela deterioração dos recursos florestais disponíveis e traçar um paralelo sobre as

conseqüências disso ante a ação de oportunistas encravado no seio dos movimentos

sociais organizados.

Assim, neste texto buscou-se abordar os problemas atuais que o setor de base florestal,

como de resto os que todos os demais atores do tecido social do Estado de Rondônia tem

enfrentado pelas indefinições decorrentes da não aplicação do Zoneamento Sócio-Econômico e

Ecológico à prática, culminando então com as recomendações constantes na conclusão.

O poder público e as diretrizes do Zoneamento

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É um fato do mais amplo conhecimento público a enorme pressão antrópica exercida pela

sociedade civil sobre o território e os recursos florestais em Rondônia. Essa pressão se dá por uma

gama de atores sociais que compreende: movimento de trabalhadores sem terra organizados,

associações de produtores rurais, toreiros, grileiros, entre outros. O alvo principal destas ações

antrópicas são os recursos existentes sobre as Unidades de Conservação de Proteção Integral e

do Uso Sustentável em Rondônia, tanto a nível federal, a nível estadual e até municipal, como de

fato tem sido reiteradamente noticiado nos jornais e demais veículos de imprensa.

Essa pressão decorre, em grande medida, da lentidão do poder público na tomada de

decisões, sobretudo as que visam regular os meios de acesso dos atores sociais aos recursos

naturais disponíveis, fato que tem concorrido fundamentalmente para que o Estado passe da

condição desejável de mediador e resolutor de conflitos sociais para uma condição indesejável de

gerador de conflitos sociais, sobretudo no que tange a sua omissão na implementação das

diretrizes do Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico de Rondônia e na ausência de uma

política pública claramente identificada com as diretrizes do desenvolvimento sustentável.

É de ressaltar aqui o impasse verificado entre os entes do poder público (União e Estado de

Rondônia) para chegar a um consenso quanto às modificações que devem ser feitas no texto legal

da Lei Complementar n.º 152, de 12 de junho de 2000, que institui o Zoneamento Sócio-Econômico

e Ecológico, de sorte a adequá-la ao Código Florestal Brasileiro (Lei n.º 4771, de 15 de setembro

de 1965). A questão poderia a muito estar resolvida, mas até agora tem a solução retardada, mais

por conta de disputas políticas particulares do que pela falta de alternativas técnicas que possam

atender satisfatoriamente os dois lados (agropecuaristas e ecologistas). A verdade é que enquanto

a discussão e o impasse perduram o Meio Ambiente padece e a desregulamentação impera, haja

vista que os movimentos dos trabalhadores sem terra avançam impiedosamente sobre a Zona 2.1

e 2.2, áreas propícias ao Manejo Florestal com Rendimento Sustentado invadindo inclusive

projetos aprovados pelo IBAMA, descaracterizando povoamentos florestais, inviabilizando-os

tecnicamente, condenando-os, portanto, ao cancelamento sumário e a geração de um clima de

incertezas em relação ao setor de base florestal do Estado, que antes chegou a contar com uma

situação aparentemente consolidada quanto ao acesso a áreas da Zona 2 para a elaboração de

seus Planos de Manejo Florestais e atualmente, viu desmoronar todo esse nível de certeza.

Este exemplo dá o tom do quanto o retardamento na implementação das diretrizes do

Zoneamento tem prejudicado o Estado. A bem da verdade com a instituição do ZSEE, as diversas

zonas foram criadas dando destinações diversas às áreas de acordo com suas potencialidades e

respeitando suas fragilidades, entretanto a não implementação de suas diretrizes deixou uma

sensação de frustração no ar, ao mesmo tempo em que estimulou os oportunistas a se

aproveitarem da ausência de uma ação efetiva do Estado para patrocinarem todo os tipos de

invasões e descaracterizações, no afã de depois tentarem apresentar o resultado de sua ação

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antrópica como fato consumado, para, então, tentar convalidar suas ações “politicamente”, fato que

já tem muitos precedentes em Rondônia.

Esta avassaladora sensação de frustração se dá fundamentalmente por duas razões, a um

porque ao se dispor a elaborar seu Zoneamento, o Estado de Rondônia, devidamente avalizado

pelo Governo Federal, propôs um pacto de convivência à sociedade Rondoniense, representada

por um complexo conjunto de segmentos sociais, que tiveram amplas oportunidades de opinar ao

longo das oficinas de realização da 2ª aproximação, bem como nas audiências públicas que foram

realizadas em diversos municípios do Estado para a oitiva da população. Em razão deste pacto,

foram geradas expectativas junto aos segmentos sociais representados nas discussões, no sentido

de terem seus desejos satisfeitos, em maior ou menor grau, variando em função do diagnóstico e

potencialidades das diversas zonas estudadas, apontando assim para o melhor uso possível de

determinada zona, levando-se ainda em consideração o uso atual no momento do diagnóstico, os

anseios dos diversos segmentos representativos da sociedade civil organizada, mas,

principalmente, as diretrizes do desenvolvimento sustentável. A dois, porque ao publicar seu ZSEE

e transformá-lo em Lei Complementar, se esperava sua imediata implementação que deveria

contemplar uma gama de atividades, ações estratégicas e instrumentos de intervenção no sentido

de possibilitar de maneira concreta sua implementação, a luz do que fora pactuado com o tecido

social Rondoniense, como também das restrições, vulnerabilidades e potencialidades de cada

Zona e Sub-zona, que de uma forma imperativa limita o acesso aos recursos naturais

condicionando-os ao melhor uso possível para a obtenção da eficiência econômica e distribuição

social da renda, princípios basilares do Desenvolvimento Sustentável.

No geral, política pública pode ser definida como um conjunto de ações do Estado,

previamente planejadas e legalmente estatuídas na forma da lei, cuja execução deve ser articulada

entre si, de forma a permitir que as diretrizes políticas traçadas sejam adotadas e aceitas pela

sociedade, sendo fundamental para tanto que haja na sua concepção o concurso da participação

efetiva e paritária do poder público, dos setores produtivos, dos representantes da sociedade civil

organizada e dos representantes de todos os setores que compõem a cadeia de serviços que

esteja ligado a àquela determinada atividade.

A implementação de uma política pública deve compreender também a aplicação oportuna e

articulada de um conjunto de instrumentos técnicos, sociais, econômicos e políticos que sejam

complementares entre si. Destarte, o crédito necessário e suficiente, a capacitação dos técnicos, o

treinamento em serviço dos agentes, o devido suporte político das atividades, a ação convergente

das instituições públicas envolvidas, o compartilhamento de metas, a disponibilização de base

tecnológica adequada, são partes essenciais do processo, condicionando inclusive o êxito da

implementação da política traçada a sua fiel observância.

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Na mesma linha, Desenvolvimento Sustentável foi definido como: “O desenvolvimento

requerido para obter a satisfação duradoura das necessidades humanas e o crescimento

(melhoria) da qualidade de vida.” (Allen, 1980).

No plano institucional o Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico de Rondônia foi

concebido como “um instrumento de planejamento regional que visa o Desenvolvimento

Sustentável. Na sua essência, o zoneamento propõe implementar estratégias de uso social do

espaço, refletindo os interesses coletivos da sociedade como um todo, baseando-se em

conhecimentos sobre paisagens naturais e os modos de vida de populações locais” (MILLIKAN, B.,

1998).

Esse desejável uso social de espaço foi refletido mais tarde na promulgação da Lei do

Zoneamento, Lei n.º 152 de 12/06/2000, pela qual os possíveis usos do espaço foram

compartilhados entre os mais importantes atores do cenário sócio-econômico e político do Estado.

Assim, a Zona 1, Subzonas 1.1, 1.2 e 1.3 foram destinadas, preferencialmente ao uso de

atividades agrícolas e pecuárias na proporção da capacidade de uso de seus solos; a Zona 2,

Subzonas 2.1 e 2.2, foi destinada, preferencialmente, ao Manejo Florestal com rendimento

sustentável, atividade de uso predominante dos setores de base florestal do Estado; a Zona 3 foi

destinada às Unidades de Conservação de Proteção Integral e Uso Sustentável, que prevêem no

seu bojo os usos indireto e direto dos recursos naturais.

Entretanto, é oportuno enfatizar que, inobstante haver um bom desenho institucional de

instrumento de intervenção do poder público quanto ao uso social do espaço, isso não tem sido

aplicado na prática, sobretudo, por obra da própria lentidão do Estado em tomar iniciativas

concretas quanto à implementação de medidas oportunas, necessárias e suficientes para tornar

realidade o adequado, democrático, justo e desejável uso social do espaço territorial, senão

vejamos:

� A inépcia do poder público em resolver conflitos de competência da ordem legal que tem

retardado a implementação e validade do Zoneamento Estadual;

� O desconhecimento e a falta de orientação de grandes levas de agricultores do

conteúdo, de finalidade e de importância do Zoneamento para a democratização do

acesso a terra;

� A fragilidade do aparato institucional de controle e fiscalização do Estado (a polícia

ambiental teve seu quadro reduzido, a SEDAM encontra-se desestruturada, o IBAMA

contido por restrições orçamentárias e problemas diretivos, as polícias civil e militar não

tem cumprido os mandados de reintegração de posse concedidos pela justiça, ou tem,

no mínimo, demorado muito para fazê-lo);

� A impunidade de pessoas oportunistas que invadem reservas, pilham suas madeiras de

valor e derrubam a floresta no interior das mesmas para implantar agricultura e pecuária

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de forma rudimentar, tem servido de estímulo a novas e reiteradas invasões, quer nas

mesmas ou em outras reservas (ex.: Floresta Nacional do Bom Futuro, Reserva

Extrativista Estadual do Rio Jaci-Paraná, Reserva Extrativista Federal do Rio Ouro-Preto

e Área Indígena Uru-eu-wau-wau);

� A assincrônia entre as atitudes do poder público e sua efetiva necessidade social e

oportunidade temporal, também tem servido de obstáculo ao alcance da auto-

sustentabilidade, ou seja, o Estado sempre está a reboque das demandas sociais, fruto

da absoluta incapacidade do mesmo, de planejar suas ações, implementá-las e prever os

cenários futuros, se transformando então em refém de fatos sociais consumados (ex.:

Flona do Bom Futuro totalmente invadida e em parte descaracterizada, havendo

inclusive a existência de uma vila no seu interior – a Vila de Rio Pardo com mais de

4.000 habitantes).

Como se não bastassem os problemas mencionados quanto à implementação de medidas

eficazes para a gestão do território há que se ponderar que o Estado tem falhado na

implementação do Zoneamento também em função da inexistência de sistemas paritários de

gestão entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil organizada,sistemas estes

essenciais para democratizar o acesso aos recursos naturais, permitir a efetiva aplicabilidade das

destinações concebidas e pactuadas no Zoneamento e, sobretudo, resolver conflitos sociais de

forma civilizada e democrática, decorrência natural de uma ocupação plural e ordenada do território

do Estado.

No mesmo diapasão, é fundamental destacar a excessiva burocracia, dissenso entre IBAMA

e SEDAM e lentidão do poder público para a concessão de licenças ambientais, a exemplo da

licença de desmatamento, cujo retardamento da emissão, nas frações de área a que o produtor

tem direito ao desmate tem desestimulado a busca da legalização, levando a grande maioria à

prática dos desmatamentos irregulares que maculam a ocupação do território com a queima

sumária de milhares de metros cúbicos de madeiras comerciais, que ao invés de gerar os

desejáveis emprego e renda pela industrialização, acabam por se transformar em cinzas, a

despeito de qualquer controle do estado17.

É trágica a falta de entendimento entre IBAMA e SEDAM quanto a questões básicas do rol de

hipóteses de atividades a serem descentralizadas por força de Termos de Cooperação Técnica,

precursores do tão desejável Pacto Federativo, a ponto de ficarem meses discutindo a validade de

um Termo de Cooperação Técnica, enquanto a população ávida por se legalizar fica totalmente

desassistida, mal orientada e sem certeza quanto à obtenção de documentos e sua validade, ou

quando os obtêm já se encontram totalmente fora da cronologia do calendário agrícola.

17 Algumas licenças de desmate costumam demorar até 3 anos para serem concedidas pelo IBAMA e pela SEDAM.

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Por outro lado, na medida em que não há uma definição clara e efetiva quanto ao percentual

a ser destinado para reserva legal florestal no Estado de Rondônia, não há interesse por parte de

um grande contingente de proprietários rurais do Estado, sejam eles de pequeno, médio ou grande

porte, em averbar suas reservas legais florestais, colocando-os a margem da legalidade, e

impossibilitando-os de conseguirem as licenças ambientais de suas propriedades e de suas

atividades econômicas, tolhendo-os, por conseguinte, do acesso ao crédito e ao sistema oficial de

financiamento, o que resulta ao seu final, mais uma vez, em queima de resíduos lenhosos de valor

econômico, ou mesmo, no desperdício de recursos naturais renováveis, além de uma crise

institucional inusitada nas agências de crédito oficial, uma vez que pelos fatos aduzidos não tem a

quem emprestar os recursos que dispõe, por impedimentos legais ou por falta de projetos.

Outro fator que tem contribuído, sobremaneira, para retardar a expedição de licenças

ambientais aos usuários é a indefinição de competências, além da concorrência corporativa que

IBAMA e SEDAM realizam entre si. Desta forma, a descentralização administrativa apregoada pela

Constituição Federal de 1988 não tem sido implementada satisfatoriamente, de maneira que o

IBAMA e a SEDAM não conseguiram até hoje se entender quanto à definição de competências no

âmbito da competência comum em Rondônia, consoante determina a Constituição Federal de

1988. Assim, as delegações de competência a SEDAM tem sido concedidas freqüentemente e

sucessivamente suspendidas pelo IBAMA, a depender de quem ou de qual grupo político está

ocupando momentaneamente cada órgão. Essa situação tem prejudicado substancialmente a

normalidade do controle, do licenciamento ambiental e do ordenamento da ocupação territorial no

Estado.

Como se depreende do exposto, mais uma vez se materializa a tese de (Cavalcanti, 2001)

que relata, “in verbis”:

“a luz de vários desses conflitos (sócio-ambientais) envolvendo setores os mais diversos de nossa sociedade e/ou civilização atual, pode-se notar que dificilmente as soluções puramente técnicas possibilitarão a tomada de decisões efetivamente justas e ‘racionais’. Mesmo porque muitas das decisões são tomadas politicamente, competindo à argumentação técnica apenas a função legitimadora da decisão política” (Cavalcanti, 2001).

É digno de lembrança ainda a questão cultural dos migrantes que vieram de todas as regiões

do país para colonizar Rondônia e que trazem consigo, na sua formação ética a cultural, um

padrão de colonização herdada ainda da Cultura Européia e presente em todas as fases da

Colonização do Brasil. Esta formação consiste, fundamentalmente, na cultura da “terra arrasada”,

ou seja, a floresta é tida como uma inimiga do agricultor, um obstáculo à formação de seu sítio. De

maneira que para obter a sustentabilidade temporal do sítio e a rentabilidade financeira mínima

para a sobrevivência de sua família, o agricultor entende ser imprescindível desmatar e queimar a

floresta, para que assim possa realizar seu “sonho” e converter o solo para o uso agropecuário.

Esta cultura está tão arraigada no Brasil que é compartilhada pelos próprios órgãos do poder

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público no país. Assim o INCRA, até hoje, mesmo depois de enormes críticas, ainda continua

privilegiando e documentando quem faz “benfeitorias” em detrimento de quem realiza o Manejo

Florestal com Rendimento Sustentável, que constitui uma atividade ainda não reconhecida pela

maioria dos técnicos do INCRA como atividade produtiva. Da mesma forma os bancos oficiais –

que privilegiam nas diversas fases de concessão do crédito o agricultor que desmatou sua floresta

e realizou “benfeitorias”. Isso se dá inclusive na avaliação do imóvel quando o funcionário do banco

valoriza a maior propriedade com benfeitorias em detrimento da propriedade florestal, isto se reflete

diretamente sobre o valor financiado por constituir-se, via de regra, na garantia real do empréstimo

tomado, como de resto o mesmo fato se repete no momento da análise financeira do projeto

quando os analistas consideram uma propriedade desmatada e com benfeitorias detentora de

maior capacidade de pagamento e possuidora de maiores condições de endividamento do que

uma propriedade florestal, mesmo que esta possua floresta e grande aptidão para o Manejo

Florestal. A questão que se impõe de imediato é: Qual é o estímulo então para, que o produtor

mantenha sua floresta em pé, já que não encontra amparo em lugar nenhum para tanto?

Em verdade, de pouco tem adiantado ao Estado de Rondônia o detalhado estudo que foi

realizado no âmbito do Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico do Estado, mesmo porque como

se viu acima, a lentidão política para a decisão sobre conflitos de ordem legal e conflitos de

competência entre a União e o Estado de Rondônia, tem retardado a sua implementação, de sorte

que a ocupação social de espaços tem permanecido desordenada em detrimento das diretrizes de

ordenamento da ocupação territorial previstas naquele instrumento técnico, gerando uma gama de

conflitos sociais entre diferentes atores do tecido social do Estado de Rondônia e pior,

proporcionando um lamentável desperdício de recursos naturais renováveis, sobretudo

madeireiros, situação que a persistir, comprometerá a sustantabilidade do setor florestal do Estado.

É fundamental colocar que a auto-sustentabilidade do setor florestal em Rondônia necessita

com urgência de decisões de ordem política como: A implementação do Zoneamento Sócio-

Econômico e Ecológico seja na sua forma tecnicamente elaborada ou politicamente modificada; A

definição da política fundiária do Estado que, depende diretamente, da implementação do ZSEE;

No estabelecimento claro das regras de acesso das Indústrias de base florestal às áreas

destinadas pelo Zoneamento ao manejo florestal com rendimento sustentável (Zona 2 do ZSEE) e

as Unidades de Conservação de Uso Sustentável (parte da Zona 3 do ZSEE), bem como às áreas

a serem destinadas a Reforma Agrária; Ao estabelecimento de um conjunto de medidas

integrantes de uma política pública para o setor, de maneira a permitir o treinamento dos

funcionários das empresas em exploração florestal de baixo impacto; O crédito florestal oportuno e

suficiente; à legislação florestal estadual revisada e regulamentada compatibilizada com o ZSEE de

Rondônia e com a Legislação Florestal brasileira; a base tecnológica adequada para dar suporte a

uma exploração florestal diferenciada; As pesquisas a nível local estimuladas para a promoção de

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descobertas de melhores métodos de intervenção na floresta, como também de melhores técnicas

de manejo florestal e reflorestamento; os órgãos públicos ágeis na tomada de decisões e na

implementação das mesmas; o adequado assessoramento técnico ao Estado para a

fundamentação técnica-científica de suas decisões e a difusão das técnicas florestais ao tecido

social; as instancias democráticas de deliberação e controle instituídas e em pleno funcionamento

com vistas ao adequado monitoramento da exploração racional das florestas; as formas de

monitoramento ambiental definidas a nível técnico, de sorte a possibilitar um adequado e

padronizado acompanhamento das atividades florestais.

Conclusão

Da análise do texto conclui-se que inobstante ter sido construído em Rondônia um formidável

pacto social, instrumentalizado pela 2ª aproximação do Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico

de Rondônia, confeccionado mediante detalhados estudos técnicos das mais diversas áreas

temáticas como: Meio Físico, Flora, Fauna, Sócio-Econômica, levantamento fundiário, e mais do

que isso, negociado com os mais variados atores do Cenário Social do Estado: Industriais,

produtores rurais, toreiros, seringueiros, ribeirinhos e índios, isto tem se constituído até o presente

em pouca aplicabilidade prática para o ordenamento da ocupação territorial do Estado e para a

promoção de seu desenvolvimento sustentável, com reflexo direto e imediato na auto-

sustentabilidade do setor de base florestal do Estado.

A lentidão do poder público no processo de tomada de decisão, como de resto na agilização

da implementação dos instrumentos técnicos de viabilização das políticas públicas tem colocado

em risco todo o ordenamento territorial e planejamento nacional do uso dos espaços, concebido no

ZSEE, mesmo porque a necessidade social agravada pelas pressões provocadas pelas migrações

internas tem ocasionado um acelerado avanço sobre as fronteiras agropecuárias e florestais que

ainda restam no Estado de Rondônia, comprometendo não só os ativos ambientais, mas também

todo planejamento previamente traçado, e o que é o pior, deixando como legado um profundo

descrédito da sociedade civil organizada no processo de planejamento participativo e na

capacidade do próprio Estado de realizar um planejamento plural e multirreferenciado de seu

futuro.

Como pode-se visualizar também, grande parte do problema tem sido causado pela lentidão

do Estado em dirimir conflitos de ordem legal, de maneira a permitir a imediata implementação do

Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico, de tal sorte que apesar dos instrumentos técnicos que

dispõe, a sustentabilidade do setor de base florestal no Estado, como de resto todas as diretrizes

do Zoneamento dependem de uma rápida e categórica vontade política, pela qual a sociedade

rondoniense espera e cuja decisão urge.

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Referências bibliográficas

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MILLIKAN, Brent Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável em Rondônia: Situação Atual e Desafios para sua Implementação. SEPLAN, Governo do Estado de Rondônia, 1998, 31 p.

Brasil Constituição (1988): Texto constitucional de 05 de outubro de 1988 com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n.º 1/92 a 19/98 e Emendas Constitucionais de Revisão n.º 1 a 6/94 – Ed. Atual, 1998 – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1998, 357 p.

CAVALCANTI, Clóvis (org.) Desenvolvimento e Natureza: Estudos para uma Sociedade Sustentável, 3ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001, 429 p.

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UM OLHAR SOBRE A QUEIXA DOCENTE UM OLHAR SOBRE A QUEIXA DOCENTE UM OLHAR SOBRE A QUEIXA DOCENTE UM OLHAR SOBRE A QUEIXA DOCENTE NNNNA ESCOLA ATUALA ESCOLA ATUALA ESCOLA ATUALA ESCOLA ATUAL

Juracy Machado Pacífico Juracy Machado Pacífico Juracy Machado Pacífico Juracy Machado Pacífico18181818

RESUMO: Este artigo apresenta algumas pesquisas que apontam problemas quanto à saúde do professor e professora, evidenciando que o professor e a professora sofrem de enfermidades específicas, conseqüências do ofício do magistério. Faz uma reflexão a partir dos casos de doenças, pois de acordo com as pesquisas, a “enfermidade profissional” contribui para a fuga de professores e professoras da sala de aula. Aponta o papel atual da escola como gerador do sofrimento pelo qual passam os docentes na instituição escolar, onde a queixa representa um lamento que impede a reflexão dobre sua própria prática. PALAVRAS-CHAVES: Educação; Escola; Queixa docente; doença do(a) professor(a); ABSTRACT: This article presents some researches that point problems with relationship to the teacher's health and teacher, evidencing that the teacher and the teacher suffer of specific illnesses, consequences of the occupation of the teaching. He/she makes a reflection starting from the cases of diseases, because in agreement with the researches, the professional " illness contributes to the teachers' escape and teachers of the class room. He/she/you points the current paper of the school as generator of the suffering for which you/they pass the teachers in the school institution, where the complaint represents a lament that impedes the reflection it bends your own practice. KEYWORD: Education; School; He/she/you complains educational; disease do(a) professor(a);

Pesquisas19 indicam que os professores são dos grupos profissionais que apresentam níveis

de mal-estar mais elevados. Para além das mudanças sociais que permitem compreender os níveis

de mal-estar que as pessoas, em geral, apresentam, há fatores que têm a ver com a especificidade

da profissão docente que estão na base deste problema.

Nos últimos anos temos observado uma preocupação maior quanto à saúde do professor e

da professora, isso tanto por parte dos próprios educadores, em suas publicações, quanto por

18 Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Pedagogia da UNIPEC e FIP - Porto Velho - RO. 19 APOSENTADORIA dos professores, nem privilégio nem compensação: justiça. http://www.aomestrecomcarinho.com.br/index.htm. Acesso em: 05 maio 2003.

J. M. ESTEVE. El estrés de los profesores: propuestas de intervención par su control. J. M. ESTEVE.O mal-estar docente. J. M. ESTEVE. O mal-estar docente: a sala-de-aula e a saúde dos professores.

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parte dos organismos internacionais. O foco das preocupações são as condições do trabalho

escolar, sabendo-se que, para se possibilitar um ótimo desenvolvimento do processo de

aprendizagem e melhor qualidade do ensino, é necessário o bem estar integral, físico, psíquico e

social de toda a comunidade educativa escolar.

Devido a algumas especificidades da profissão, os professores estão sujeitos ao estresse e

às doenças profissionais, pois o ensino possui características particulares, que possivelmente, são

geradoras de estresse e de alterações do comportamento dos que nele trabalham.

Segundo documento elaborado para a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em

Educação) em julho de 1997, como parte da campanha em defesa da aposentadoria especial na

Constituição Federal, estudos realizados em diversos países da América e da Europa têm

demonstrado que os docentes estão permanentemente sujeitos a uma deterioração progressiva da

sua saúde mental.

De acordo com esses organismos internacionais, o estresse já é reconhecido como

"enfermidade profissional", onde seus efeitos atingem inclusive o ambiente escolar. É considerado

pela OIT ( ) não somente como um fenômeno isolado mas "um risco ocupacional significativo da

profissão".

Conforme esse mesmo documento, as ocorrências médicas revelam que o maior número de

dispensas para o pessoal docente são, em diferentes países, as de psiquiatria, neurologia,

otorrinolaringologia, reumatologia, traumatologia, hematologia e doenças cardiovasculares, o que

tem permitido caracterizar um quadro de doenças profissionais da categoria.

Esse mesmo documento também revela que, no Brasil, é grande o número de professores

"readaptados" (afastados temporária ou permanentemente para atividades administrativas)

afetados por uma ou algumas doenças desse conjunto, ou de professores que se mantêm com

sucessivas licenças-saúde e, não raro, como objeto de desprezo e como fonte de problemas,

afetando o quadro docente, que já é escasso e, conseqüentemente, o quadro discente.

Muitas são as causas apontadas como geradoras de fadiga mental. Algumas delas,

apontadas no já referido documento, são:

1. trabalho que exige muita atenção com o público;

2. conflitos nas relações pessoais motivados ou acentuados pela múltipla convivência (idem

para aumento de possibilidade de contrair doenças infecciosas, parasitárias, etc.);

3. autoritarismo burocrático;

4. excesso de responsabilidade para o tempo e os meios de que dispõe, obrigando-se o

professor a realizar mal o seu próprio trabalho;

5. insegurança cotidiana típica de serviço sobre o qual não se podem estabelecer normas

precisas e quantidades de ações que resultem, necessariamente, no objetivo desejado, e

conseqüente dificuldade de avaliação quanto aos resultados alcançados.

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Os problemas físicos advindos da sobrecarga psíquica apontados, são:

1. irritações e alergias especialmente na pele e nas vias respiratórias provocadas pelo pó de

giz (que ainda são usados na grande maioria das escolas);

2. calos nas cordas vocais;

3. sobrecargas musculares e para o sistema circulatório provocadas por excessiva

permanência em posturas incômodas (muito tempo em pé ou em assentos não ergonômicos).

Tal problemática também aparece em outros países. Instituições de pesquisa em países

como Suécia, França, Alemanha e Espanha revelam uma grande corrida de professores a

tratamentos psicoterapêuticos. Nestes países tem sido observado um crescente abandono da

profissão devido ao risco de esgotamento físico e mental.

Mas por que essa preocupação, nos últimos anos, com a saúde do professor? Voltemos um

pouco na história da escola e do acesso à escolarização.

A escola para crianças e jovens, como hoje a conhecemos, tem presença recente na história da humanidade, embora desde de um passado bem remoto, existia a tarefa de levar às novas gerações o conhecimento sistematizado e as normas de convivência consideradas necessárias aos mais jovens. Como sabemos, na Antiguidade a preocupação com a formação cultural daqueles que iriam constituir as camadas dirigentes estava presente. A educação dos meninos para a convivência pública e para a guerra era objeto de muita atenção. O ensino era organizado em instituição própria, embora saibamos, e aí está o cerne da questão, eram poucos os que tinham acesso às primeiras letras e formas elementares de aprendizagem, preparatórias para as universidades. Quem tinha acesso à escola eram apenas os filhos das camadas mais ricas da população.

Basicamente, mais ou menos há cerca de 200 anos, com os ideais da Revolução Francesa e da democracia americana, é que a escola passou a ser compreendida como uma instituição importante, não apenas para os filhos das elites, mas também para os filhos das camadas trabalhadoras. As mudanças políticas resultantes de movimentos revolucionários tiveram influência sobre a função social da escola porque tanto a Revolução Francesa como o movimento pela independência dos Estados Unidos representou mudanças na natureza dos processos de participação popular, rompendo com o modelo aristocrático anterior. A partir desses importantes marcos políticos nos dois países, a busca pela democracia intensificou-se. Por isso começou uma longa luta para transformar uma escola para poucos em escola para todos. Algumas coisas mudaram de lá para cá em termos de acesso à escolarização fundamental em alguns países. Porém, enquanto em países, como Europa (França, Inglaterra) e a própria América Latina, a exemplo da Argentina, a escola se expandia e o ensino fundamental atendia amplas camadas da população, no Brasil o processo foi muito diferente. Aqui, a educação permanecia como privilégio de poucos, muito poucos. As escolas, quando existiam, abrigavam os filhos das elites, de preferência os homens. As mulheres mal apareciam na cena social.

Hoje, no Brasil, após longos e difíceis anos de luta pela democratização da escola pública, já

vencemos algumas batalhas, dentre elas, a do acesso à escolarização fundamental. E, ao nosso

ver, entra aí a queixa docente, pois a diferença mais importante que cabe apontar entre as escolas

do passado e as de hoje é que aquelas escolas atendiam poucos alunos. Hoje as escolas públicas

estão repletas de alunos de todas as origens, já que a grande maioria das crianças brasileiras

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freqüenta escola pública. As escolas que hoje se destinam a uma minoria são instituições privadas,

freqüentada por uma clientela oriunda de famílias que pagam os estudos de seus filhos.

Enfrentar essas mudanças não foi, e não está sendo, tão fácil e teve efeitos importantes sobre os resultados produzidos pela escola. O ganho histórico foi que maior número de crianças passou a freqüentar a escola, embora se começou a perceber que no interior da escola teve início a uma cultura de fracasso escolar, e também um grande lamento por parte dos professores, que somando tudo, vem resultando no aumento dos problemas relativos à qualidade da educação. Fatores indicam que, com a inclusão social a doença do professor aumentou, pois suas respostas já não são suficientes aos dilemas atuais e aos novos deveres da profissão. Conforme apontamos no início deste texto, a preocupação com o bem-estar do professor, com sua saúde, também se faz presente entre os próprios educadores, profissionais da área de pedagogia. Apontaremos, nesse momento, pesquisas de educadores que estão mais ligados à área pedagógica, embora já tenhamos conhecimento de outras abordagens sobre esta temática – a psicanalítica por exemplo - pois fizemos esse levantamento por ocasião do mestrado, onde desenvolvemos uma dissertação que teve como título: A queixa docente. Enfocaremos principalmente as contribuições de Esteve porque, além de ser da área educacional, o mesmo tem desenvolvido pesquisas no sentido de explicitar os desafios enfrentados pelo magistério face às rápidas mudanças por que passa a sociedade, para além das fronteiras nacionais.

Esteve (1999), é educador espanhol, e em sua obra “O mal-estar docente: a sala de aula e a

saúde dos professores”, aborda principalmente as dificuldades dos professores geradas a partir

das mudanças do contexto social, mudanças relacionadas às novas exigências do ofício de

professor.

Para ele os professores se encontram ante o desconcerto, dificuldades e demandas mutantes

e a contínua crítica social por não chegarem a atender às novas exigências, surgidas a partir da

acelerada mudança do contexto social em que exercem a profissão.

...às vezes o descontentamento surge do paradoxo de que essa mesma sociedade, que exige novas responsabilidades dos professores, não lhes fornece os meios que lhes reivindicam para cumpri-las. Outras vezes, da demanda de exigências opostas e contraditórias. (p.13).

Assim, surge uma queixa de situações de profundo mal-estar, e que este, em si, quando

percebido, já é uma queixa. O mal-estar é empregado por Esteve para descrever “efeitos

permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade do professor como resultado das

condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência.” (p.25).

O que se percebe é que o conjunto de vários fatores sociais e psicológicos, presentes na

situação em que se exerce a docência atualmente, está produzindo o que ele chama “um ciclo

degenerativo da eficácia docente.” (p.27).

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Dois grupos de indicadores de mal-estar docente20 são apresentados por Esteve (1999): os

fatores secundários e primários. Os fatores primários referem-se aos que incidem diretamente

sobre a ação do professor em sala de aula, gerando tensões associadas a sentimentos e emoções

negativas. Os fatores secundários referem-se as condições ambientais, ao contexto mesmo em

que se exerce a docência. De acordo com o autor, a ação dos fatores secundários é indireta e

afeta a eficácia docente ao promover uma diminuição da motivação do professor no trabalho, de

sua implicação e seu esforço. Isolados, têm apenas significado intrínseco, mas quando se

acumulam, influem fundamentalmente sobre a imagem que o professor tem de si mesmo e de seu

trabalho profissional, gerando uma crise de identidade que pode chegar, inclusive à

autodepreciação do ego. (p.27).

Esteve aponta modificações no papel do professor e dos agentes tradicionais de

socialização. Segundo ele, têm aumentado as responsabilidades e exigências que se projetam

sobre os educadores, coincidindo com um processo histórico de uma rápida transformação do

contexto social, o qual têm sido traduzido também em modificação do papel docente, resultando

em fonte importante de mal-estar para muitos, na medida em que não aceita acomodar-se às

novas exigências.

Conforme a bibliografia levantada por Esteve (1999), um fator muito presente é o

aparecimento de dificuldades advindas da transferência, por parte da comunidade social e da

família, de algumas de suas atividades sociais e protetoras anteriores à escola, sem que essa

transferência tenha sido acompanhada das necessárias mudanças na formação profissional dos

educadores, preparando-os para enfrentá-las com êxito, nem dos meios de que dispunham para

responder às novas exigências.

Esteve (1999), também verificou em suas pesquisas que não só na França, mas em toda a

Europa e nos Estados Unidos, a escola – e sobretudo a escola secundária – está sendo

questionada por uma crise geral e dupla: crise da instituição escolar cujo rendimento é dos mais

medíocres; crise do ato pedagógico em si mesmo.

Também o alemão Mitter21, citado por Esteve (1999), desenvolveu idéias bem parecidas

quando se refere à percepção de uma “fase de desencanto” que ele considera como fator central

do exercício da docência nos sistemas educativos. Atribui essa situação à subvalorização da

formação de professores.

Outro pesquisador dessa questão é Claude Merazzi22, que assinala que, nas atuais

circunstâncias, a capacidade de viver e assumir as situações conflitivas são um dos aspectos mais

20 Essa classificação apresentada por Esteve (1999, p.27) foi estabelecida por Blase (1982) a propósito do estresse docente. 21 W. MITTER. Goal Aspects of Teacher Education. 22 C. MERAZZI. Apprendre à vivre les conflits: une tâche de la formation des enseignants.

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importantes da competência social dos educadores. Assim, uma nova exigência para a formação

de professores seria o preparo dos mesmos para viver entre os conflitos.

Merazzi baseia sua tese em três fatos, que para ele, fundamentais: em primeiro lugar, na

evolução e transformação dos agentes tradicionais de socialização (família, ambiente cotidiano)

que nos últimos anos, por diversas circunstâncias sociais, reagiram renunciando às

responsabilidades que antigamente vinham desempenhando no âmbito educativo e exigindo das

instituições escolares que ajudassem a ocupar um vazio que nem sempre tinham capacidade de

preencher.

Em segundo lugar, o papel que tradicionalmente era designado às instituições escolares, viu-

se seriamente modificado pelo aparecimento de novos agentes de socialização, que se

converteram em fonte paralelas de transmissão de informação e cultura, onde qualquer informação

passada pelo professor poderá ser, não só examinada, como contestada.

Muitos professores souberam, outras ainda buscam, integrar e utilizar harmoniosamente as

vantagens oferecidas por esses novos agentes, outros se obstinam em manter seu papel

tradicional, ignorando a enorme força de penetração e o interessante potencial educativo que os

novos canais de informação poderiam colocar a seu serviço, como sabemos, a luta é desigual.

Quem ainda pretende manter exclusividade, com certeza, só tem a perder.

E em terceiro lugar, o conflito, embora apenas quando se pretende definir qual é a função das

instituições escolares, que valores, dentre os vigentes em nossa sociedade, o professor deve

privilegiar.

Para Esteve (1999), essas transformações supõem um profundo e exigente desafio pessoal

para os professores que se propõem a responder às novas expectativas projetadas sobre eles,

pois, não foi este um consenso social. Toda, nenhuma ou qualquer atitude do professor poderá ser

contestada.

É curioso observar, como alguns pais, tanto nesse aspecto quanto em muitos outros,

simplificam os males da escola, declarando os professores responsáveis universais por tudo o que

nela possa haver de errado, inclusive quando se trata de problemas em que a responsabilidade

real do professor e sua capacidade de evitá-los é muito limitada.

Esteve também aponta a modificação do status social do professor. Para se ter uma idéia,

piadas como “o ladrão não o assaltou pois o reconheceu como professor”, são muito comuns.

Para muitos pais, o fato de que alguém tenha escolhido ser professor está associado não ao

sentido de uma vocação, mas ao álibi de sua incapacidade de fazer “algo melhor”; ou seja, para

dedicar-se a outra coisa em que se ganhe mais dinheiro. Certamente o salário dos professores

constitui mais um forte elemento da crise de identidade que os afeta, já que os professores têm

níveis de retribuição, inferiores aos de outros profissionais com a mesma titulação. (Esteve, 1999)

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Há também pesquisadores23 que, ao estudar as fontes de estresse nos professores, apontam

como elementos mais significativos: em primeiro lugar os salários; em segundo, a falta de

coerência em sua relação com os alunos; e em terceiro lugar, a sobrecarga quantitativa de

trabalho.

Na França, estudos sobre a saúde mental dos docentes mostram que os diagnósticos mais

freqüentes são: estados neuróticos (27%); estados depressivos (26.2%) personalidades e

caracteres patológicos (17,6%) estados psicóticos, psicoses maníaco-depressivas (7,4%) e

esquizofrenias (6,6%). Esses estudos mostram também que a freqüência desses diagnósticos é

maior entre docentes do que em outros grupos profissionais.

Esteve (1999) também aponta o fato de que é até curioso observar o tratamento que recebe

a figura do professor nas seções fixas de educação que publicam diariamente a maioria dos

grandes jornais nacionais. Em outras ocasiões, os professores aparecem na seção de justiça, o

que também é bem sintomático.

Para este pesquisador, Esteve, a formação dos professores não os prepara adequadamente

para a prática do ensino. O professor iniciante ficará desarmado e desconcertado ao perceber que

a prática real do ensino não responde aos esquemas ideais com os quais ele foi formado.

Acrescenta que a prática real do ensino está limitada por um bom número de carências e

contradições que o professor iniciante vai encontrar na instituição educativa concreta em que

começa a trabalhar. Essa instituição já tem o seu funcionamento definido, para bem ou para mal; e

o novo professor, individualmente, só pode fazer algo para modificá-lo, adaptando-o aos ideais com

os quais formou-se, e ainda pode ocorrer que, para piorar as coisas, seus colegas de profissão,

vão presenteá-lo com os “piores” grupos, os piores horários e as piores condições de trabalho,

seguindo o princípio de que os veteranos escolhem primeiro.

O que se percebe, conforme aponta o autor, é que a atuação individual não é totalmente

independente do contexto social em que se realiza e, em muitas ocasiões, o sentimento de

desânimo que domina muitos professores tem suas bases muito mais nesses fatores contextuais,

que até aqui analisamos, do que na situação real da sala de aula, mesmo com todas as suas

dificuldades.

Quanto aos fatores primários, diz Esteve,

...independentemente das tensões geradas no contexto social no qual se exerce a docência, encontramos outra série de limitações que atuam diretamente sobre a prática cotidiana, limitando a efetividade da ação do professor e constituindo-se em elementos que, em conjunção com os já descritos como fatores secundários, acabam contribuindo para o mal-estar docente a médio ou longo prazo. (p.47)

De acordo com este autor, professores que enfrentam com ilusão uma renovação pedagógica

de sua atuação nas aulas encontram-se, freqüentemente, limitados pela falta de material didático

23 M. MILSTEIN et al. Organizationally basedstress: What bothers teachers.

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necessário e pela carência de recursos para adquiri-los. Muitos desses professores queixam-se

explicitamente da contradição que supõe, por um lado, que a sociedade e as instâncias superiores

do sistema educacional exijam e promovam uma renovação metodológica, sem, ao mesmo tempo

dotar os professores dos recursos necessários para levá-la a cabo.

Também há situações em que a falta de recursos não se refere ao material didático, mas a

problemas de conservação dos edifícios, escassez de móveis, insuficiência de locais adequados,

etc. (OIT, 1981, In: Esteve, 1999).

Esteve (1999) afirma: “Todas as instituições tendem a criar artifícios adicionais, e a escola

não é uma exceção. As características internas de algumas instituições impedem que estas

possam realizar o que se espera delas”. (p.44).

Problemas de horários, de normas internas, de locais cuja utilização é regulada por normas

gerais de pouca flexibilidade, as exigências de prescrições marcadas pela instituição ou pela

inspeção, a necessidade de reservar uma parte de seu tempo para reuniões, encontros,

avaliações, visitas de pais e outras atividades do centro, limitam em muitas outras ocasiões as

possibilidades de uma atuação de qualidade. Por esta razão, qualquer melhoria que se pretenda

fazer tem que se mexer nas bases da instituição.

A violência24 nas instituições escolares, também é fator, apontado por Esteve, como causador

de mal-estar e este, como já assinalamos, consequentemente revelar-se-á em forma de queixa.

Ada Abraham,25 que denomina crises de identidade docente aquelas geradas pela contradição entre seu “eu real” (o que faz cotidianamente) e seu “eu ideal” (o que pensa que deveria fazer). Essa autora classifica esta crise em alguns grupos. Destacamos três deles: a) - predomínio de sentimentos contraditórios, que não resolvem na prática educativa os conflitos entre ideais e realidade; b) - negação da realidade pela alta carga de ansiedade do professor. Recorre a uma rotina em sua prática docente evitando implicações pessoais com a docência; c) - presença de uma grande ansiedade ao dar-se conta de que necessita de recursos para levar adiante seus ideais, ao passo em que não deseja renunciá-los. O professor pode tentar resolver de forma individual problemas do sistema, e deixar-se vencer pela depressão considerando-se culpado por não realizar seus ideais. Ousamos apontar também a carga horária de trabalho do professor como forte contribuidora de produção de queixa, pois muitos professores, trabalhando em várias escolas são tomados pelo cansaço acumulado, despersonalizam o trabalho docente e anulam-se frente aos superiores. No Brasil, as condições de trabalho pioram a situação em relação a outros países. Nestes tentam-se compensar as estressantes características do trabalho docente com melhorias das condições de trabalho. Segundo o documento já citado, elaborado para a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) em julho de 1997, a Conferência Intergovernamental Especial sobre a situação do pessoal docente convocada pela UNESCO em colaboração com OIT em Paris, 1966, por exemplo, recomenda a melhoria das condições de trabalho como elemento central para a melhor qualidade do ensino. No caso brasileiro as péssimas condições de trabalho servem para complicar ainda mais a situação. O caso das jornadas excessivas certamente é um deles.

24 Sobre violência nas escolas ver Escola e Violência nas periferias urbanas francesas, Angelina Peralva ; A violência urbana e a escola, Nancy Cardia e; Pequeno relato sobre a cultura da violência no sistema escolar público em Nova York, Peter Lucas. Revista Contemporaneidade e Educação, ano II, Set/97, nº 2. 25 A. ABRAHAM. El mundo interior del docente.

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Na referida conferência, constatou-se que a jornada média internacional está entre 30 e 35

horas semanais na escola, das quais entre 18 e 24 de atenção direta ao alunado (observando-se

que essa diferença não é ainda suficiente para atender às tarefas extra-classe tais como

programação, coordenação, auto-preparação, preparação e correção de provas e de exercícios,

preenchimento dos diários de classe, elaboração das médias, etc.). No Brasil, entretanto, as

jornadas situam-se em torno de 45 aulas semanais, sendo raros os casos em que parte desse

tempo (em geral entre 10% e 20%) é dedicado aos trabalhos extra-classe. Com isso muitas dessas

atividades inerentes ao ensino têm que ser realizadas em casa pelo docente. A sobrecarga de

horas extraordinárias (além de tudo não pagas) tem efeitos particularmente nocivos sobre as

condições de trabalho (e de saúde dos educadores), uma vez que torna mais acentuadas as

condições já estressantes do trabalho realizado em "condições normais".

Tudo isso, pela incidência de fatores que geram mal-estar, pede uma grande seriedade para como as condições e na realização do trabalho docente.

Gatti (1996), em um artigo publicado no Caderno de Pesquisa enfocando a profissão

docente, numa discussão sobre o trabalho cotidiano de professores e a construção de uma

identidade profissional, afirma que a identidade do professor é uma questão que precisa e merece

ser trabalhada e levada em conta nas pesquisas. A autora também adverte para as mudanças

sofridas pela profissão nas últimas décadas, que são provocadas por um conjunto de forças sociais

como o aumento do número de alunos e sua heterogeneidade do ponto de vista sócio-cultural, as

novas demandas de escolarização postas pela sociedade, bem como o impacto de novas formas

de tratar o conhecimento e o ensino. Conforme a autora, este quadro ora vivido se torna mais

grave diante da ausência de políticas educacionais que possam dar conta dos desafios da escola e

da valorização de seus agentes, os profissionais da educação. Sobre a queixa docente a autora

afirma que:

...explorando os aspectos relacionados à frustração na profissão, que é expressa pela maioria, verifica-se que essa frustração repousa também em fatores diferenciados como: os baixos salários, a ausência de condições para o bom exercício da profissão, os problemas relativos à formação para a profissão, as más relações no trabalho, as múltiplas exigências extra classe ou, ainda, a exaustão pela demanda continuada das crianças e a indisciplina. (p.86)

A autora também fala de contradições na profissão docente que passam desde a “escolha” da

profissão até sua imagem social, pois,

...de um lado os professores exaltam o quanto são gratificados pelas crianças e pais, de outro apontam o descaso das políticas sociais para com a educação e os professores, o desinteresse dos alunos, o não comprometimento das famílias com a educação dos filhos. (p.87).

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Também Trias, no artigo El malestar docente (1998) diz que, para se falar em crise da

educação é necessário compreender que o mal-estar docente localiza-se em crises mais amplas

como as sociais, políticas e econômicas.

De acordo com essa autora, a teoria crítica contemporânea propõe que para se fazer uma

análise do mal-estar docente deve-se tomar uma distância da situação permitindo um

conhecimento da situação, buscando orientar o capital crítico reflexivo face a elaboração de

inovações produtivas.

De acordo com Trias (1998), Habermas26 propõe que para analisar a trabalho docente numa

perspectiva crítica com uma finalidade emancipatória, deve-se compreender a resposta a esta

questão: “Qué papel debe cumplir el educador como trabajador social en una estrutura conflictiva,

cambiante y dinámica?” (p. 94).

A resposta a essa pergunta é simples: o professor precisa assumir-se como criador de cultura

sem que isso lhe dê um lugar de privilégio. Para a autora,

Modestia y solidariedad pueden ser dos buenos principios como guías en la acción. Es indispensable que el tránsito de la doxa (opinión) al logos (saber) se realice en la vivencia de la dialéctica acción – reflexión de la praxis humana. (Trias, 1998, p.94).

Silvia Trias estabelece algumas reflexões que julgamos também importantes por pensar uma

identidade para o docente em vários âmbitos sociais.

a) O docente: um trabalhador social

Nesta visão apontada pela autora, a ação do docente como trabalhador social poderá

provocar reflexão que permitirá a ele detectar: - quais as forças de trocas e quais as de

estabilidade; o que deve ser trocado; que meta trará uma maior humanização; realização de um

esforço crítico comum do conhecimento da realidade que venha libertá-lo do sectarismo.

b) O docente é um profissional

A autonomia e responsabilidade são duas características que se sobressaem na profissão de

professor. Desta forma, se se pretende falar em mal-estar docente, estas devem ser levadas em

conta pela relação que têm com o mal-estar e com a desprofissionalização do docente.

A ética deve ser trabalhada e elaborada pelos educadores como um dos pilares mais

importantes do trabalho docente. A autonomia coletiva significa a participação dos professores nas

decisões sobre a política educacional escolar.

c) O docente deve ser um investigador

26 HABERMAS, J. Conocimiento e interés. Buenos Aires, Taurus, 1990.

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O fenômeno educativo não é neutro e por isso a investigação também não pode ser. O

fenômeno educativo pressupõe uma retroalimentação dialética entre teoria e prática. O importante

aqui são as trocas, e não o conhecimento em si mesmo. Um conhecimento em função de produzir

trocas pede também uma concepção de realidade dinâmica. A esse respeito, Trias diz que:

El docente que investiga su propia práctica, no sólo la conece sino que se compromete en ella de tal modo que logra modificaciones norteadas por lo que Habermas denomina interés emancipatorio. (p.95).

Portanto para se fazer educação num processo dialético é imprescindível a opção, o

compromisso do educador com uma causa. Esta causa deve ser assumida por inteiro e pelo ser

inteiro: razão, emoção.

Porém, quando se fala em mudanças no cotidiano logo vêm as desculpas e resistências e,

com tantos contras tentando mostrar que é inútil tentar, entra-se num círculo vicioso, diríamos

patológico, neurótico, onde o que passa a preencher e justificar a existência é a doença e no fundo,

um temor em procurar cura. (Trias, 1998).

Alicia Fernández (1994), revendo o papel do professor, propõe que para substituir a queixa

faz-se necessário ter que buscar a certeza perdida, duvidando do passado.

Creio que a queixa dos professores, enquanto funciona como lubrificante da máquina inibitória do pensamento, é favorecida e, ás vezes, até promovida pela própria escola. Quem escuta uma queixa-lamento é chamado somente a condoer-se e é difícil que, a partir do enunciado, possa pensar. A carga saudável de agressividade, necessária para pensar, degrada-se e aparece como lamento. (p.108).

Para esta autora, o juízo crítico que substitui a queixa, aparecerá quando se reflete se esse

processo de queixa consiste em aprender a valorizar o delicioso e perigoso gosto da dúvida,

correndo o risco de sair da certeza e utilizando a máquina desejante-imaginativa-pensante, que

também nos permite selecionar e eleger.

O que se percebe é que o professor, como qualquer agente social, está perpassado por

contradições, mas o principal é saber sair, saber como superar essas contradições.

Vasconcellos (1998), aponta duas possibilidades que podem ser assumidas pelo professor

rumo à superação ou não superação de tais contradições. Uma seria justificar para não mudar.

Nessa postura fica-se discutindo eternamente os problemas, não entrando diretamente no estudo

de formas de superação. Deste modo, procura-se também a acomodação na administração do

cotidiano, ao invés de se procurar mudá-lo.

A outra postura apontada por Vasconcellos seria compreender para transformar. Aqui,

procuram-se os problemas, para então enfrentar e transformar a prática com firmeza. Duas

perguntas seriam importantes: é possível fazer algo? É possível transformar a realidade?

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Nesta perspectiva o sujeito deve perceber-se como agente histórico da transformação. O

contrário, as respostas virão com palavras alusivas, apenas belas idéias. Para o autor, também é

preciso não se deixar cair em posições equivocadas: voluntarismo, com excesso de otimismo e

crença na boa vontade como redentora, pois querer é condição necessária mas não é suficiente. O

voluntarismo leva também ao imediatismo, onde se analisa pouco e de maneira rápida o problema.

Isso causa empolgação inicial, dificuldade de realização e, finalmente, o desânimo.

Ainda de acordo com Vasconcellos, o determinismo é uma outra posição perigosa, que leva à

atitude fatalista, onde o pessimismo é parte do pensar do sujeito (no caso o professor). Pensa-se: o

problema é estrutural, é do sistema, enquanto não mudar o sistema, nada vai mudar; só resta

esperar. E assim o sentimento de impotência toma conta: o sujeito nada pode fazer. O resultado é

como expõe Espinosa,27 citado por Vasconcellos (1998): “tristeza é o que sentimos ao perceber

que nossa realidade diminui porque nossa capacidade de agir encontra-se diminuída ou

entravada.” (p.23).

Como sair de tais situações? Como ajudar o professor a superar o mal-estar? A resposta a

tais questões não é tão simples, como, aliás, não nos parece mesmo ser simples. Como vimos, a

queixa parece ser uma forma de promover, em quem a faz, a permanência e até o fortalecimento

da situação que a origina. E, portanto, a reflexão sobre a prática nos parece ser um bom começo,

pois somente uma postura dialética e comprometida poderá, no entender dos autores apontados e

também no nosso, superar essa realidade.

Mas tudo estaria resolvido com a reflexão sobre a prática? Nos parece que este é o melhor

caminho, mas tal caminho não poderá ser visto como uma panacéia. Todas as questões apontadas

merecem atenção: decisões políticas referentes a salário, jornada de trabalho e à formação

continuada deverão ser levadas a sério pelos responsáveis legais, pois o acesso à escola a todas

as crianças jovens e adultos é questão indiscutível. A cidadania não pode ser negada a alguns –

ainda um grande número -, exatamente por quem já a conquistou, no entanto, garantir a saúde dos

professores, além de necessário por uma questão humana e existencial, é também garantir

educação de qualidade aqueles e àquelas que estão na escola em busca de compreender e

intervir nessa realidade, buscando mudá-la para melhor e, com isso, melhorar sua qualidade de

vida, visando sua emancipação.

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27 Espinosa. Ética.

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