prescrição de ofício - o novo § 5 º do art 219 do cpc · És um senhor tão bonito/ quanto a...

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Prescrição de ofício — o novo § 5.º do art. 219 do CPC, com a redação da Lei n.º 11.280/06. 1 ________________________________________________________ Marcelo Rodrigues Prata * És um senhor tão bonito/ Quanto a cara do meu filho/ Tempo Tempo Tempo Tempo/ Vou te fazer um pedido/ Tempo Tempo Tempo Tempo/ Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo Tempo Tempo Tempo/ Entro num acordo contigo/ Tempo Tempo Tempo Tempo/ Por seres tão inventivo/ E pareceres continuo/ Tempo Tempo Tempo Tempo/ És um dos deuses mais lindos/ Tempo Tempo Tempo Tempo/ Que sejas ainda mais vivo/ No som do meu estribilho/ Tempo Tempo Tempo Tempo. (Oração ao tempo, CAETANO VELOSO.) 1. Introdução. A Lei n.º 11.280/06 tem seu gérmen no “Pacto de Estado em favor de um Poder Judiciário mais rápido e republicano”, firmado no Congresso Nacional, que dá prosseguimento à Reforma do Judiciário. 2 Segundo a 1 Originalmente publicado in CHAVES, Luciano Athayde (org.) Direito processual do trabalho: reforma e efetividade. São Paulo : LTr, 2007, p. 375-403. * Marcelo Rodrigues Prata é Juiz Titular da 4.ª Vara do Trabalho de Salvador, especializado em Direito Processual pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. 2 V. PRATA, Marcelo Rodrigues. Primeiras notas sobre a inovação legislativa e seus reflexos no processo trabalhista — Lei n.º 11.277, de 7 de fevereiro de 2006. São Paulo: LTr, ano 70, n. 8, p. 986- 997, 2006.

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Prescrição de ofício — o novo § 5.º do art. 219 do CPC, com a redação da

Lei n.º 11.280/06. 1

________________________________________________________

Marcelo Rodrigues Prata *

És um senhor tão bonito/ Quanto a cara do meu filho/ Tempo Tempo

Tempo Tempo/ Vou te fazer um pedido/ Tempo Tempo Tempo

Tempo/ Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo

Tempo Tempo Tempo/ Entro num acordo contigo/ Tempo Tempo

Tempo Tempo/ Por seres tão inventivo/ E pareceres continuo/ Tempo

Tempo Tempo Tempo/ És um dos deuses mais lindos/ Tempo

Tempo Tempo Tempo/ Que sejas ainda mais vivo/ No som do meu

estribilho/ Tempo Tempo Tempo Tempo. (Oração ao tempo, CAETANO VELOSO.)

1. Introdução.

A Lei n.º 11.280/06 tem seu gérmen no “Pacto de Estado em

favor de um Poder Judiciário mais rápido e republicano”, firmado no Congresso

Nacional, que dá prosseguimento à Reforma do Judiciário. 2 Segundo a

1 Originalmente publicado in CHAVES, Luciano Athayde (org.) Direito processual do trabalho: reforma e efetividade. São Paulo : LTr, 2007, p. 375-403. * Marcelo Rodrigues Prata é Juiz Titular da 4.ª Vara do Trabalho de Salvador, especializado em Direito Processual pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. 2 V. PRATA, Marcelo Rodrigues. Primeiras notas sobre a inovação legislativa e seus reflexos no processo trabalhista — Lei n.º 11.277, de 7 de fevereiro de 2006. São Paulo: LTr, ano 70, n. 8, p. 986-997, 2006.

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Exposição de Motivos do seu Projeto, a lei em comento tem por alvo, além de

proporcionar maior eficiência, “...conferir racionalidade e celeridade ao

serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e

à ampla defesa”. 3 (Grifamos.) Aliás, desde 1992 vem sendo aos poucos

modificado o caráter formalista do CPC de modo a atribuir-lhe maior

plasticidade e funcionalidade, amoldando-o às exigências dos tempos

modernos com suas transformações cada vez mais velozes e complexas, como

observa o ilustre RODRIGUES PINTO. 4

2. Brevíssima nótula sobre a natureza do tempo.

Não se pode falar em prescrição sem se mencionar o tempo.

ORLANDO GOMES escreveu que “dentre os acontecimentos naturais ordinários, o

decurso do tempo é dos que maior influência exercem nas relações jurídicas. A

lei atribui-lhe efeitos, seja isoladamente, seja em concurso com outros fatores”. 5 A esse respeito, professa CAIO MÁRIO que: “O tempo domina o homem, na

vida biológica, na vida privada, na vida social e nas relações civis. Atua nos

seus direitos”. 6 A maioria das pessoas vê a “flecha do tempo” cruzar os ares

em um sentido bem definido, cuja manifestação mais marcante é o nosso

envelhecimento biológico... 7 “O tempo não pára”, como escreveu CAZUZA. Mas,

embora intuitivamente todas as pessoas dotadas de discernimento saibam o

que é o tempo, pouquíssimos poderão definir a sua natureza com precisão.

Sobre isso, perplexo, questionava-se SANTO AGOSTINHO (354-430): “Que é,

3 EM n.º 00184 - MJ (Disponível em: <http://www.ibep.com.br/>. Acesso em: 5 out. 2006.) 4 PINTO, José Augusto Rodrigues. Reconhecimento ex officio da prescrição e processo do trabalho. In Revista LTr, São Paulo, ano 70, n. 4, p. 391-395, 2006. 5 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, pág. 420. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pág. 679.

7 FLEMING, Henrique. O tempo na física. Disponível em: <http://www.hfleming.com/tempo.html>. Acesso em: 7 out. 2006.

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pois, o tempo? Se ninguém me perguntar eu sei, porém, se quiser explicar a

quem me perguntar, já não sei”.

Em verdade, a idéia de tempo surgiu da necessidade do ser

humano de prever ciclos definidos, a fim de obter melhores resultados na

agricultura e na pesca, além de estabelecer datas de referências para o

comércio, festas, compromissos e contar a sua própria História. Isso o homem

fez observando primeiramente a Lua, quando passou, então, a dividir o tempo

em semanas, meses e estações climáticas. Mais tarde, ele fixou-se no

movimento cíclico aparente do Sol, em face da rotação da Terra em seu próprio

eixo. 8 Por sinal, PLATÃO (428-347 a.C.) fez o comentário seguinte sobre o

tempo: “Se nunca tivéssemos visto as estrelas, o sol e o céu, nenhuma das

palavras que pronunciamos sobre o Universo teria sido dita. Mas a visão do dia

e da noite, e dos meses, e as revoluções dos anos, criaram um número e nos

deram uma concepção do tempo, e o poder de indagar sobre a natureza do

Universo”. 9

Por sua vez, SANTO AGOSTINHO especulava: “...Há três tempos:

o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. E essas

três espécies de tempos existem em nossa mente, e não as vejo em outra

parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a

percepção direta; o presente do futuro é a esperança”. 10 11 Nessa mesma

linha, IMMANUEL KANT (1724-1804) considerava o tempo uma abstração da

mente humana: “O tempo não subsiste por si mesmo, nem pertence às coisas

8 ALMEIDA, José Renato M. de. Uma questão de tempo. Disponível em: < http://xoomer.alice.it/odialetico/thiago/tempo.htm>. Acesso em: 7 out. 2006.

9 Apud MARTINS, André Ferrer P. & ZANETIC, João. Tempo: esse velho estranho conhecido. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br>. Acesso em: 5 out. 2006. 10 SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo, Martin Claret, 2002, págs. 268 e 273. 11 “Para definirmos passado e futuro, precisamos definir o presente. Mas, segundo nossa separação estrutural, o presente não pode ter duração no tempo, pois nesse caso poderíamos definir um período no seu passado e no seu futuro. Portanto, para sermos coerentes em nossas definições, o presente não pode ter duração no tempo. Ou seja, o presente não existe!” (In GLEISER, Marcelo. Reflexões sobre o tempo e a origem do universo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe07069809.htm>. Acesso em: 5 out. 2006.)

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como determinação objetiva que permaneça na coisa mesma uma vez

abstraídas todas as condições subjetivas de sua intuição”. 12 ISAAC NEWTON

(1643-1727) definiu o assim chamado tempo absoluto, fazendo um paralelo

com o fluir de um rio, cujo transcorrer é sempre constante e não depende da

posição do observador. 13 Aliás, o pré-socrático HERÁCLITO (540-470 a.C.), já

dizia que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, considerando que não

serão as mesmas águas que lá estarão e a própria pessoa será então

diferente.

Nada obstante, ALBERT EINSTEIN, através da teoria da

relatividade restrita (1905) e da teoria da relatividade geral (1914-1916),

concluiu que não se podem construir conceitos absolutos de tempo e espaço,

pois ambos estão interligados e dependem da velocidade em que esteja o

observador. 14 Donde se conclui que o tempo cronológico absoluto não existe

como fenômeno da natureza, ele é tão-somente uma medida criada pelo

homem, com base nos ciclos de rotação do nosso planeta. Assim, a luz de uma

estrela que contemplamos hoje no firmamento pode se referir a um astro que já

“morreu”... Esse belo e intrigante fenômeno se deve ao fato de que a estrela

mais próxima da Terra — Proxima Centauri — está a 40 trilhões de quilômetros

12 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Ediouro, [ ], pág. 52. 13 GLEISER, Marcelo. Reflexões sobre o tempo e a origem do universo. Ob. cit. 14 “...O passado, o presente e o futuro não passariam de três pontos no tempo, como os três pontos do espaço ocupados, por exemplo, por três cidades (Washington, Nova York e Boston). Segundo Einstein, cientificamente falando, era tão lógico viajar de amanhã para ontem como viajar de Boston a Washington. Se um homem pudesse deslocar-se com uma velocidade superior à da luz, alcançaria o passado e teria data do seu nascimento relegada para o futuro; veria os efeitos antes das causas, e presenciaria os acontecimentos antes que eles sucedessem realmente. Cada planeta possui o seu sistema cronométrico próprio, diferente de todos os outros. O sistema da Terra, longe de constituir uma medida absoluta do tempo para toda a parte, não passa de uma tabela de movimento do nosso planeta ao redor do Sol. O dia é uma medida de movimento através do espaço. Nossa posição no tempo depende inteiramente da nossa situação no espaço. A luz que nos traz a imagem de uma estrela distante, pode ser a estrela de milhões de anos atrás; um acontecimento ocorrido na Terra há milhares de anos só agora poderia estar sendo presenciado por um observador em outro planeta, que, por conseguinte, o considera como um episódio atual. O que é hoje em nosso planeta, pode ser ontem num outro planeta, e amanhã em um terceiro, pois o tempo é uma dimensão do espaço, e o espaço é uma dimensão do tempo. Para Einstein, o Universo era uma continuidade espaço-tempo; um dependia do outro. Ambos deviam ser encarados como aspectos coordenados da concepção matemática da realidade. O mundo não era tridimensional — consistia nas três dimensões do espaço e numa quarta dimensão adicional: o tempo.” (In Einstein: vida e pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2002, págs. 18/19.)

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de distância e, portanto, a luz das estrelas leva muito tempo para percorrer

uma enorme extensão até o alcance de nossos olhos.

3. A importância do tempo nas relações jurídicas e a prescrição extintiva.

CLÓVIS BEVILÁCQUA, citando KOHLER, diz que “o tempo é o meio

onde se realizam os acontecimentos humanos; e uma atividade continuada em

certa direção ou desviando-se de certa outra, não pode ser indiferente ao

direito; a regulamentação das relações opera-se de acordo com as

circunstâncias e os acontecimentos de um determinado tempo, vive neles e

com eles se tece. Uma separação subitânea do direito ambiente, uma

‘fragmentação da esfera jurídica, não é coisa necessária ao progreso; daí o

princípio: o que manteve durante certo tempo pode tornar-se um direito’”. 15 Por

sua vez, escreve SILVIO RODRIGUES que “...existe um interesse da sociedade

em atribuir judicidade àquelas situações que se prolongaram no tempo. De

fato, dentro do instituto da prescrição, o personagem principal é o tempo”. 16

Na Mitologia Grega, o tempo é associado ao deus CRONOS,

representado como um homem velho de encanecidos cabelos e barba longa,

que, após se revoltar contra URANO, seu pai, reinou entre os deuses, na Idade

Dourada. Nada obstante, havia uma profecia, segundo a qual CRONOS seria

derrotado por um dos seus filhos. Diante disso, ele passou a devorar os

próprios filhos assim que estes nasciam. 17 A propósito, disse ÍSIS DE ALMEIDA

que “...o passar do tempo é, realmente, inexorável, tanto do ponto de vista

biológico como social, nessa destruição. Perde-se a vida com as energias

aniquiladas; perde-se o direito, com a atrofia pelo seu desuso”. 18 É por isso

que, tal qual CRONOS, a prescrição precisa, periodicamente, “devorar” as

15 Apud ALMEIDA, Ísis de. Manual da prescrição trabalhista. 2. ed. São Paulo: LTr, 1994, pág. 15. 16 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 323. 17 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Cronos>. Acesso em: 5 out. 2006. 18 In ALMEIDA, Ísis de. Manual da prescrição trabalhista. Ob. cit., pág. 16.

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pretensões dos credores, sob pena de se permitir a manutenção de um

ambiente de insegurança jurídica, no qual os devedores estejam eternamente

sob a “espada de Dâmocles”. 19 Noutros termos, a prescrição tem por escopo

impedir uma situação em que os devedores fiquem presos à incerteza de

serem cobrados mesmo por uma dívida muito antiga. 20 A esse respeito disse

CARVALHO SANTOS que “não se deve esquecer que as relações humanas têm

caráter temporário e assim é necessário que se resolvam certas situações de

fato, que não podem ser permanentes, e que, portanto, não devem gravar

gerações futuras”. 21 A passagem do tempo faz presumir a solidificação das

relações jurídicas, assim, se o credor deixar hibernar uma dívida por um longo

lapso temporal, presume-se que renunciou ao seu crédito. Aliás, escreveu

WINDSCHEID que “o que durou muito tempo, só por essa razão, parece alguma

coisa de sólido e indestrutível”. 22Por sinal, afirmou SANTO AGOSTINHO: “O

tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes,

causa na alma efeitos maravilhosos”. 23

4. Importância e fundamentos da prescrição extintiva.

CASSIODORUS qualificou a prescrição como a “patrona generis

humani”, já CÍCERO a entendia como “fines sollicitudinis et periculi litium”. No

19 DÂMOCLES era um dos cortesãos de DIONÍSIO e vivia a invejar a sua sorte. Este último, então, ofereceu-se para trocar de lugar com aquele por um dia, de modo que ele pudesse saborear também as mesmas delícias. Foi assim realizado um banquete à noite, no qual DÂMOCLES foi servido como um rei. Porém, apenas ao final da refeição, ele notou que havia, diretamente sobre a sua cabeça, uma afiada espada, suspensa por um único fio de rabo de cavalo. Imediatamente, ele perdeu o interesse pelos privilégios do rei e abdicou do posto... 20 Por sinal, lemos no Livro Sagrado que: “Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou, tempo de matar e tempo de curar, tempo de derribar e tempo de edificar, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de saltar de alegria, tempo de espalhar pedras e tempo de juntar pedras, tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de guardar e tempo de deitar fora, tempo de rasgar e tempo de coser, tempo de estar calado e tempo de falar, tempo de amar e tempo de aborrecer, tempo de guerra e tempo de paz”. (Eclesiastes 3:1-5.) 21 Apud ALMEIDA, Ísis de. Manual da prescrição trabalhista. Ob. cit., págs. 16/17. 22 Apud MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003, pág. 56. 23 SANTO AGOSTINHO. Confissões. Ob. cit., pág. 87.

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Direito Romano primitivo eram as ações perpétuas. No sistema pretoriano, o

magistrado vai conferir às partes ações temporárias hábeis a contornar a

rigidez dos preceitos dos jus civile, que deveriam ser exercitadas no prazo

máximo de um ano (annus utilis), ultrapassado este, o réu poderia alegar a

prescrição por meio de exceção. Na época imperial, fixou-se o prazo de dez

anos para as ações reais sobre imóveis entre presentes ou vinte anos entre

ausentes, 24 “‘quando a exigência de certeza nas relações jurídicas se torna

essencial na vida negocial...’”, professa MARIA ROSA CIMMA. 25 Apenas com

TEODÓSIO II, em 424, a Constituição imperial veio a instituir como defesa contra

as ações perpétuas a “praescriptio triginta annorum”. 26 O termo prescrição vem

de praescriptio de praescribere (prae + scribere). Isso porquanto todas as

“...exceções ou alegações, pronunciadas ou trazidas preliminarmente como

medidas ou justificativas dos direitos em demanda, diziam-se, assim,

praescriptiones, porque se produziam a seguir da intentio, mas precedendo à

fórmula. Escreviam-se ou se diziam antes (prae) de qualquer outra scriptio”.

Assim, o juiz não poderia se ocupar do processo antes de apreciá-las. 27 28 29

Do ponto de vista moral, o instituto da prescrição seria

questionável, pois se alguém deve a outrem deve cumprir para com a sua

obrigação, sob pena de enriquecimento sem causa. Os antigos, por isso, a 24 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 326. 25 Apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência no novo Código Civil: alguns aspectos relevantes. (Publicada na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº 23 - MAI-JUN/2003, pág. 128.) Apud Juris Síntese IOB. São Paulo: IOB, mai./jun. 2006, CD-ROM. 26 V. ALMEIDA, Ísis de. Manual da prescrição trabalhista. Ob. cit., pág. 17. 27 SILVA, de Plácido e. Vocabulário jurídico. 10. ed. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1987, pág. 433. 28 MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003, pág. 56.

29 “Procedimiento formulario. [...] La fórmula es un documento que resume la controversia entre las partes y que luego es remitida por el magistrado al juez y le sirve para decidir el litigio. [...] Podía contar de: a) Partes ordinarias. Eran cuatro: 1. Intentio. [...] 2. Demostratio. [...] 3. Condemnatio. [...] 4. Adiudicatio. [...] c) Partes extraordinarias: 1. Exceptio. Es una parte de la fórmula que permite el demandado oponer a la acción del demandante una alegación que paralice su eficacia. Va situada entre la intentio y la condemnatio. Puede suceder que una vez admitida la exceptio sea contrarrestada por otra del demandante que se llama replicatio y frente a ella cabía también una contestación del demandado que se llamaba duplicatio. Las clases de excepciones que existían eran: - Perentorias. Paralizar de forma definitiva la acción. - Dilatorias. Tiene una validez temporal. 2. Praescriptio. Se colocaba al principio de la fórmula y servía para concretar o limitar el objeto del juicio. Existían dos tipos de praescriptio: - Praescripto pro actore. A favor del actor. - Praescriptio pro reo. A favor del reo.” (Disponível em: <http://www.elergonomista.com/derechoromano/for.htm >. Acesso em: 21 out. 2006.

8

qualificavam como impium remedium ou impium praesidium, lembra MANUEL DE

ANDRADE. 30 Aliás, repugna a consciência social o fato de um cidadão,

ardilosamente, livrar-se de uma dívida apenas pelo transcorrer do tempo. Nada

obstante, sob outro prisma, a prescrição extintiva ou liberatória visa

salvaguardar a harmonia social e a segurança jurídica, que se veriam

ameaçadas diante da indefinida possibilidade de cobrança de uma dívida. O

devedor e os seus sucessores seriam compelidos a arquivar, ad aeternum, os

recibos de pagamento, bem como manter a memória das vetustas obrigações.

Não fora isso o bastante, ainda seriam obrigados a não perder o contato com

as testemunhas dos seus negócios jurídicos. 31 Nesses moldes, o

adimplemento de todas as obrigações implicaria “prova custosa e difícil”, 32

quiçá impossível... Por sua vez, o credor negligente, que deixou transcorrer

longo prazo sem manejar o remédio jurídico de que dispunha, contaria com o

injusto privilégio de poder exercitá-lo a qualquer tempo. Ele poderia assim

proceder até mesmo por motivos inconfessáveis, impondo ao devedor uma

condição de eterna submissão e intranqüilidade, em detrimento dos princípios da liberdade de ação, 33 da lealdade e da boa-fé. 34 Por isso muitos autores

também justificam a prescrição como sendo uma pena contra a incúria do credor. 35

A prescrição extintiva, portanto, é regulada por norma cogente

de ordem pública, cuja função maior é preservar a paz social e a segurança 30 Apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit. 31 “Moralmente, não deve usá-la quem verdadeiramente se considera devedor do que lhe é reclamado; mas, em terreno de segurança jurídica, é preferível correr o risco de que alguém a use injustamente a deixar a sociedade exposta a todas as pretensões velhas, de cuja legitimidade ou ilegitimidade é difícil estar seguro em razão do longo tempo transcorrido. [...] A busca eterna da justiça, porém, longe de realizar a plenitude da paz social, gera intranqüilidade e incerteza, no tráfico jurídico que urge coibir. [...] Nessa altura, ainda que se corra o risco de cometer alguma injustiça (o que nem sempre acontecerá), a obra da prescrição consistirá, basicamente, em consolidar situações de fato que tenham perdurado por longo tempo e que, em nome da segurança e da paz social, devem se tornar definitivas.” (In THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit. ) 32 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 327. 33 A assim chamada liberdade-matriz está prevista na Magna Carta: Art. 5.º - [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei...”. 34 Impõe o Código Civil, subs. aplicado: “Art. 421 - A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422 - Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. 35 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pág. 375.

9

jurídica. 36 Ademais, a prescrição permite a segurança do comércio jurídico 37 e o desafogo da pletora de processos nos tribunais. 38 Tanto isso é

verdade que o Código Civil veda a renúncia antecipada da prescrição ou a

alteração dos seus prazos. 39 É por isso ainda que “...a prescritibilidade é a

regra, a imprescritibilidade, a exceção”, como disse CAIO MÁRIO DA SILVA

PEREIRA. 40 A regra geral é que haja a prescrição da pretensão de direito

material não exercida no prazo legal. A ausência de cobrança de uma crédito

por longo tempo faz presumir a renúncia do seu titular. 41

Por seu turno, o instituto da prescrição na esfera laboral é tão

importante que foi alcandorado ao páramo constitucional: “Art. 7.º - São direitos

dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de

sua condição social: [...] XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das

relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os

trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do

contrato de trabalho...”.

5. Noções sobre a pretensão.

Pretensão vem “do latim, praetensio, praetensionem, do verbo

praetendere (julgar-se com direito, requerer, interpor), juridicamente, entende-

se não somente aquilo que se trata de conseguir, como o direito que se julga

ter sobre a coisa”. 42 No Direito Romano, do sistema das legis actiones e do

36 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, págs. 327/328. 37 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Ob. cit., pág. 423. 38 ENCINAS, Emilio Eiranova. Ob. cit., pág. 98. 39 “Art. 191 - A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição. Art. 192 - Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes.” 40 In PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Ob. cit., pág. 687. 41 V. PRUNES, José Luiz Ferreira. Tratado sobre a prescrição e a decadência no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998, pág. 21. 42 SILVA, de Plácido e. Vocabulário jurídico. 10. ed. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1987, pág. 442.

10

sistema formulário, a ação não se distinguia do direito material perseguido, o

autor recebia do pretor uma actio, ou seja, uma declaração de que ele,

segundo os fatos expostos, teria direito, em tese, ao bem da vida buscado,

restando-lhe ainda a prova dos mesmos fatos alegados. A atividade do pretor

não consistia em atribuir direitos mas ações, que, indiretamente, conferiam os

direitos. Assim, por exemplo, se hoje falamos em direitos do comprador e do

vendedor os romanos falavam em actio ex empto e em actio ex vendito. 43

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR ensina que “no direito romano e

no medieval, sempre se teve a prescrição como um fenômeno do plano

processual, que afetava a actio e não diretamente o direito material”. 44 Apenas

com a evolução do Direito Público, WINDSCHEID, em 1856, concluiu que a ação

era um direito subjetivo público abstrato, pertencente a todos os cidadãos, de

obter um pronunciamento jurisdicional, independentemente do direito subjetivo

material alegado. 45 Ele entendia, partindo da noção da antiga actio romana,

que a pretensão era o próprio direito subjetivo dirigido contra outra pessoa.

Influenciado pelos estudos de WINDSCHEID, o Código Civil Alemão (BGB), em

seu art. 194, definiu a pretensão como o direito de exigir uma prestação ativa

ou negativa. 46 Por sua vez, FRANCESCO CARNELUTTI aperfeiçoou a noção de

pretensão (Anspruch), conceituando-a como a “...exigência de subordinação de

um interesse alheio ao interesse próprio”. 47 Segundo o mesmo autor, a

pretensão constitui-se em simples manifestação de vontade, não se trata de

um poder do declarante mas apenas de um ato, que pode, ou não, possuir

correspondência efetiva com o direito subjetivo do pretendente. Por sinal, no

Código Civil brasileiro temos: “Art. 189 - Violado o direito, nasce para o titular a

pretensão...”. 48

43 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito Judiciário do Trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 1985, pág. 66. 44 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit. 45 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado... Ob. cit., pág. 65 e ss. 46 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, pág. 118 e ENCINAS, Emilio Eiranova. Código Civil alemán comentado. Madri: Marcial Pons,1998, pág. 103. 47 CARNELUTTI, Francesco. Instituições de Processo Civil. V. I. Campinas: Servanda, 1999, págs. 78/81. 48 “No rigor da lógica, não é exato supor que a violação efetiva do direito (a uma prestação) constitua pressuposto necessário do nascimento da pretensão. Se esta consiste na exigência de que alguém realize

11

Atente-se, porém, para não se confundir pretensão de direito

material com pretensão de direito processual, esta última, na lição de

COUTURE, “é a auto-atribuição de um direito e a petição de que seja tutelado. 49

Por sua vez, a pretensão processual não se confunde com a ação, embora

esteja com esta imbricada, porquanto “a ação é o poder jurídico de fazer valer

a pretensão. Esse poder jurídico existe no indivíduo ainda quando a pretensão

seja infundada”. 50 Aliás, o titular do direito cuja pretensão é considerada

prescrita “...não perde o direito processual de ação, porque a rejeição de sua

demanda, por acolhida da exceção de prescrição, importa uma sentença de

mérito (CPC, art. 269, IV)”. 51

6. Conceito e requisitos da prescrição.

A prescrição trata-se de uma exceção, defesa indireta a ser

apresentada pelo réu, capaz de encobrir a eficácia da pretensão do autor, pelo

decurso do prazo previsto para fazer valer um direito material. Quanto ao

conceito de exceção, PONTES DE MIRANDA assim se pronuncia: “A exceção diz

respeito à eficácia do ius exceptionis e à eficácia do direito, da pretensão, ou

da ação, ou da exceção, que ela ‘excetua’. [...] A exceção não ataca o ato

jurídico, nem o direito em si mesmo. [...] A exceção é contradireito, mas

apenas encobre outro, ou encobre a pretensão, ou a ação, ou a exceção, a que

a prestação, duas hipóteses, na verdade, são concebíveis: uma é a de que aquele que exige realmente faça jus à prestação, mas há outra: a de que se esteja exigindo sem razão — ou porque o direito inexista, ou porque não haja sofrido violação, ou ainda porque a prestação, por tal ou qual motivo, não seja exigível. Afinal de contas, há pretensões fundadas e pretensões infundadas. Mas compreende-se que o legislador se haja expressado como se expressou: a regra tem como pressuposto a existência de fundamento para a pretensão, e assim há de ser entendida.” (In MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. Em Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n.º 19, p.111, set-out/2002. Apud Juris Síntese IOB. São Paulo: IOB, jul./ago. 2006, CD-ROM. 49 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1993, pág. 105. 50 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. Ob. cit., pág. 72. 51 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit.

12

se opõe”. 52 Já a prescrição é assim conceituada pelo mesmo autor:

“Prescrição é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante

certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”. 53

Por sinal, definia o antigo Código Civil alemão (BGB) — antes

da reforma implementada pela Lei de Modernização das Obrigações

(Schuldrechtsmodernisierungsgesetz), de 2 de janeiro de 2002, em seu art.

198: “A prescrição começa a contar-se desde o momento em que nasce a

pretensão...”. 54 (Grifamos.) Na mesma linha, o Novo Código Civil brasileiro

estabelece: “Art. 189 - Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual

se extingue, pela prescrição...”. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, contudo,

crítica a noção de “extinção” da pretensão pela prescrição. 55 Na realidade,

como bem assinalou PONTES DE MIRANDA, com pronunciamento da prescrição a

pretensão apenas tem a sua eficácia encoberta: “Os prazos prescricionais

servem à paz social e à segurança jurídica. Não destroem o direito, que é; não

cancelam, não apagam as pretensões; apenas, encobrindo a eficácia da

pretensão, atendem à conveniência de que não perdure por demasiado tempo

a exigibilidade ou a acionabilidade”. 56 Caso contrário, como explicar a

possibilidade de renúncia da prescrição pelo devedor? Ou mesmo a hipótese

de não haver sido declarada, de ofício, pelo juiz a prescrição no curso do

processo de cognição, passando em julgado a sentença?

Por outro lado, não se olvide que o ordenamento jurídico

brasileiro adotou a autonomia do direito subjetivo público de ação no que se

refere ao direito material concreto. A ação é um direito de natureza abstrata, é

um direito autônomo, pois independe da existência do direito subjetivo material.

52 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. T. 6. Campinas: Bookseller, 2000, págs. 29 e ss. 53 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. T. 6. Ob. cit., pág. 135. 54 ENCINAS, Emilio Eiranova. Código Civil alemán comentado. Madri: Marcial Pons,1998, pág. 105. 55 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. Ob. cit. 56 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Ob. cit., pág. 136.

13

Ela é, também, instrumental, haja vista que o seu escopo é garantir um

determinado bem da vida. 57

Desse modo, com o pronunciamento da prescrição a pretensão

de direito material passa a ter sua eficácia encoberta, mas a prescrição não

acarreta a perda do direito subjetivo material em si mesmo considerado.

Noutros termos, o direito subjetivo material perseguido permanece incólume,

porém, neutralizado, ou seja, o seu titular perde a possibilidade de obrigar o

devedor a cumprir uma determinada prestação judicialmente. Aliás, PONTES DE

MIRANDA, numa feliz expressão, qualifica os direitos com a eficácia da

pretensão encoberta de “direitos mutilados”, uma vez que não podem ser

cobrados em juízo, sem o risco concreto de ser declarada a prescrição, nem

argüidos sob a forma de exceção com eficácia. “Há direitos que não têm ou

perderam pretensão ou ação. Circunstâncias históricas deram ao fato nome

impróprio, pois ao complexo ‘direito, pretensão e ação’, tirando-se a ação, ou a

ação e a pretensão, ficaria direito. Em verdade, trata-se de direitos desprovidos

de pretensões ou da ação, ou de direito mutilados”. 58 Nada obstante, eles

continuam a existir, caso contrário, aquele que recebeu o pagamento de

crédito, cuja eficácia da pretensão estava encoberta pela prescrição, seria

obrigado a devolvê-lo. 59 60

Por sua vez, CÂMARA LEAL define os requisitos essenciais da

prescrição: “1. existência de uma ação exercitável (actio nata); 2. inércia do

titular da ação pelo seu não exercício; 3. continuidade dessa inércia durante um

certo lapso de tempo; 4. ausência de algum fato ou ato, a que a lei atribua

eficácia impeditiva, 61 suspensiva 62 ou interruptiva 63 do curso prescricional”. 64

57 CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini & DINAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, pág. 252. 58 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Ob. cit., pág. 69. 59 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. V. I. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, pág. 51. 60 Dispõe o Código Civil: “Art. 882 - Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”. 61 V. arts. 197, I a II; 198, I; 199, I e II; e 200 do CCb; assim como o art. 440 da CLT.

14

7. Primeiras linhas sobre a distinção entre decadência e prescrição.

Ao contrário da prescrição, o instituto da decadência não

chegou a ser elaborado no Direito Romano, apenas no século XIX é que foi

moldado. 65 Tanto a prescrição quanto a decadência são figuras jurídicas que

representam a impossibilidade de exigir-se um direito em face do escoamento

de um prazo determinado. Por tal motivo, a distinção inequívoca entre as duas

— se é que isso é possível — representa um dos maiores desafios para os

juristas. PONTES DE MIRANDA, que denominava a decadência de preclusão,

disse: “Preclui o que deixa de estar incluído no mundo jurídico. Preclusão é

extinção de efeito, — de efeito dos fatos jurídicos, de efeitos jurídicos (direito,

pretensão, ação, exceção, ‘ação’, em sentido de direito processual). Prescrição

é encobrimento de eficácia, não extinção dela”. 66

De outro lado, o critério distintivo mais seguro entre prescrição

e decadência — se é que isso é realmente factível — encontra-se na teoria dos direitos potestativos, como ensina AGNELO AMORIM FILHO, em clássico

estudo sobre o tema ventilado. 67 Ao contrário do que ocorre na prescrição, o

instituto da pretensão material não se aplica à decadência, haja vista que esta

se refere apenas a direitos potestativos. Por sua vez, há no exercício de um

direito potestativo tão-somente a declaração unilateral de vontade do seu

titular, que afeta a situação jurídica de um terceiro, independentemente de sua

vontade. Tal manifestação não implica o dever alheio no sentido de praticar ou

62 V. arts. 198, I e III; 199, III; e 201 do CCb; bem como o art. 625-G da CLT. 63 V. arts. 202, I a V e § ún.; 203 e 204 do CCb; bem assim os arts. 219 e §§; 263 e 617 do CPC. 64 Apud PRUNES, José Luiz Ferreira. Tratado sobre a prescrição e a decadência no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998, pág. 20. 65 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit. 66 Idem, ibidem, pág. 173. 67 In AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. RT 300, ano 49, outubro de 1960, p.7/37. Disponível em: < http://www.tex.pro.br/wwwroot/06de2003/prescricaoedecadencianonovocodigocivil.htm>. Acesso em: 17 out. 2006.

15

deixar de praticar qualquer ato, não existe prestação a ser atendida. 68 Como

disse GIUSEPPE CHIOVENDA, “em muitos casos, a lei concede a alguém o poder

de influir, com sua manifestação de vontade, sobre a condição jurídica de

outro, sem o concurso da vontade deste: a) ou fazendo cessar um direito ou

um estado jurídico existente; b) ou produzindo um novo direito, ou estado ou

efeito jurídico”. 69 Por sua vez, MOREIRA ALVES os explica: “Os direitos

potestativos são direitos sem pretensão, pois são insuscetíveis de violação, já

que a eles não se opõe um dever de quem quer que seja, mas uma sujeição de

alguém (o meu direito de anular um negócio jurídico não pode ser violado pela

parte a quem a anulação prejudica, pois esta está apenas sujeita a sofrer as

conseqüências da anulação decretada pelo juiz, não tendo portanto, dever

algum que possa descumprir)”. 70

Assim, v. g., no poder de anulação do casamento do menor

púbere pelo seu representante legal não há pretensão, dado que não se exige

nenhuma prestação positiva ou negativa dos cônjuges, o estado destes é

modificado sem a necessidade de que se manifestem. 71 É, por conseguinte,

constitutiva a natureza da ação que serve de instrumento para fazer valer

direitos potestativos sujeitos à decadência, haja vista que o almejado pelo autor

é a modificação de um status jurídico existente. A decadência impede que o

direito potestativo que existia em potência se exteriorize objetivamente. 72

Por sua vez, a natureza da ação que tem o poder jurídico de

fazer valer a pretensão prescritível é condenatória, pois a pretensão material é

sempre no sentido de impor ao réu o dever de cumprir uma prestação. 73

68 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. Ob. cit., pág. 395. 69 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 2. ed. Campinas: Bookseller, 1998, págs. 30/31. 70 Apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit. 71 Diz o CCb: “Art. 1.555 - O casamento do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal, só poderá ser anulado se a ação for proposta em cento e oitenta dias, por iniciativa do incapaz, ao deixar de sê-lo, de seus representantes legais ou de seus herdeiros necessários”. 72 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. Ob. cit., pág. 395. 73 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. Ob. cit., pág. 403.

16

Já nas ações declaratória puras não se pode falar nem de

prescrição nem de decadência, visto como não há nelas o objetivo de causar

nenhuma transformação no mundo jurídico mas tão-somente a intenção de

provocar-se a declaração da certeza jurídica sobre uma determinada situação.

Além disso, o seu exercício ou sua omissão não causam nenhuma

intranqüilidade social. Assim seria o caso da reclamação trabalhista na qual se

busca apenas a declaração de existência de um vínculo empregatício, com o

escopo de contagem do tempo de serviço correlato para efeito de

aposentadoria. 74 75 O mesmo ocorre em relação às ações constitutivas, que

não tenham prazo previsto em lei para o seu manejo. Por isso ambas são

alcunhadas de “perpétuas”.

Outro critério distintivo básico entre prescrição e decadência é

que a primeira implica que pretensão do credor terá a sua eficácia encoberta,

embora o direito material correspondente continue a existir. Enquanto que a

decadência estabelece que o direito subjetivo material, em si mesmo

considerado, deve ser exercitado em determinado prazo, sob pena de

caducidade. Na decadência o direito material já carrega o próprio gérmen de

sua autodestruição, ele, fatalmente, caduca com hora marcada.

Há, outrossim, em relação à decadência uma preocupação de

política legislativa, no sentido de não se permitir que determinadas situações

especiais fiquem indefinidas ao longo de muito tempo, de modo a causar

profunda repercussão social. Aliás, esse é o único fundamento da decadência,

enquanto a prescrição possui múltiplos e controvertidos motivos, já estudados

alhures. 76 Assim, seria o caso, e. g., do prazo decadencial de quatro anos para

74 Dispõe a Consolidação das Leis do Trabalho: “Art. 11 - O direito de ação quanto a créditos resultantes das relações de trabalho prescreve: [...] § 1.º - O disposto neste artigo não se aplica às ações que tenham por objeto anotações para fins de prova junto à Previdência Social”.

75 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, pág. 990. 76 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit.

17

ser aforada a ação de anulação de casamento celebrado sob coação. (Art.

1.560 do CCb.)

Exceto quando haja lei expressa em contrário — como no caso

do impedimento quanto aos incapazes, do vício oculto 77 e do CDC 78 —, não

cabe o impedimento, a suspensão nem a interrupção da decadência, ou seja,

os seus prazos são peremptórios, ao contrário do que ocorre com a

prescrição. 79 A prescrição, após a sua consumação, pode ser renunciada,

expressa ou tacitamente, já a decadência legal não pode ser renunciada, o que

é possível apenas na decadência convencional. (Art. 209 do CCb.) O prazo

prescricional só pode ser estabelecido por lei, não podendo ser ampliado ou reduzido pela vontade das partes. 80 Daí porque sempre se entendeu que a

decadência legal poderia ser pronunciada, de ofício, pelo juiz, ao contrário da

prescrição.

77 Prevê o CC: “Art. 444 - A responsabilidade do alienante subsiste ainda que a coisa pereça em poder do alienatário, se perecer por vício oculto, já existente ao tempo da tradição. Art. 445 - O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade. § 1.º - Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis”. (Realces nossos.) 78 Todavia, prevê o Código de Defesa do Consumidor de 1990: “Art. 26 - O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - 30 (trinta) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto não duráveis; II - 90 (noventa) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto duráveis. § 1.º - Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2.º - Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; III - a instauração do inquérito civil, até seu encerramento. § 3.º - Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito. Art. 27 - Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”. (Grifamos.) 79 Dispõe o Novo Código Civil: “Art. 207 - Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição. Art. 208 - Aplica-se à decadência o disposto nos arts. 195 e 198, inciso I. Art. 209 - É nula a renúncia à decadência fixada em lei. Art. 210 - Deve o juiz, de ofício, conhecer da decadência, quando estabelecida por lei. Art. 211 - Se a decadência for convencional, a parte a quem aproveita pode alegá-la em qualquer grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação”. Por sua vez, diz o art. 198: “ Também não corre a prescrição: I - contra os incapazes de que trata o art. 3.º...”.

80 V. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. Ob. cit., pág. 408 e RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. Ob. cit., págs. 332/333.

18

Na esfera trabalhista, temos como o único exemplo

exclusivamente laboral da aplicação do instituto da decadência legal o previsto

no art. 853 da CLT, id est, o prazo de 30 dias para se ajuizar inquérito judicial,

com o escopo de rescindir por justa causa o contrato de empregado estável,

sempre que o trabalhador for suspenso das suas atividades para responder ao

inquérito. 81 Existem outros prazos de decadência que também se aplicam ao

universo laboral, ainda que não sejam previstos na Consolidação das Leis do

Trabalho, como o prazo de 120 dias para a impetração de mandado de

segurança (art. 18 da Lei n.º 1.533/51) e o de 2 anos para aforar-se ação

rescisória (art. 495 do CPC).

Além disso, a decadência convencional tem como exemplos

mais comuns o prazo para adesão a plano de demissão voluntária ou para

aceitação de plano de aposentadoria incentivada, dispostos em alguns

regulamentos de empresa. Nesses casos, a decadência, por ser convencional,

deve ser argüida pelo devedor. 82

A prescrição corresponde a uma exceção, uma defesa

facultada ao devedor, que pode ser levantada em qualquer instância, quando

este for cobrado judicialmente por uma dívida. 83 Aqui o interesse privado se

sobressai, posto que não se possa negar que, reflexamente, também interessa

à harmonia social o fim da insegurança jurídica provocada pela existência de

uma dívida que pode ser cobrada a qualquer tempo.

O Novo Código Civil, sabiamente, evitou contribuir para

aumentar a perplexidade no que toca à distinção entre prescrição e

decadência. MIGUEL REALE, entendendo que não há nenhum critério distintivo

absoluto, explica as razões da disciplina da prescrição e da decadência no

Código: “Não haverá dúvida nenhuma: ou figura no artigo que rege as

81 Diz a Súmula n.º 403 do STF: “É de decadência o prazo de trinta dias para instauração do inquérito judicial, a contar da suspensão, por falta grave, do empregado estável”. 82 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr, 2005, pág. 256. 83 Nada obstante, diz a Súmula n.º 153 do TST: “PRESCRIÇÃO. Não se conhece de prescrição não argüida na instância ordinária”.

19

prescrições, ou então se trata de decadência. Casos de decadência não

figuram na Parte Geral, a não ser em cinco ou seis hipóteses em que cabia

prevê-la, logo após, ou melhor, como complemento do artigo em que era,

especificamente, aplicável. [...] Cada norma de decadência está acoplada ao

preceito cuja decadência deve ser decretada. De maneira que, com isso, não

há mais possibilidade de alarmantes contradições jurisprudenciais”. 84

8. Da inovação legislativa e seu procedimento.

O Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicado, com a

redação anterior, dada pela Lei n.º 5.925, de 1.º/10/1973, assim dispunha: “Art.

219 - [...] § 5.º - Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de

ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato”. O mesmo dispositivo

foi alterado pela Lei n.º 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, com vigência a

partir de 18 de maio de 2006, passando a ter a seguinte redação: “Art. 219 - [...]

§ 5.º - O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”. O mesmo Diploma ainda

previu: “Art. 11 - Fica revogado o art. 194 da Lei n.o 10.406, de 10 de janeiro de

2002, Código Civil”. O revogado art. 194 do CC, por sua vez, dispunha: “O juiz

não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer

absolutamente incapaz”.

Aparentemente, uma leitura apressada da inovação sub oculi

poderia levar à conclusão de que a nova norma não só faculta mas determina

ao juiz, in limini litis, que pronuncie a prescrição, ex officio, mesmo que o

pedido se refira a direitos de cunho patrimonial. Tal interpretação encontraria

guarida na inegável intenção do legislador, como dito alhures, em imprimir

dinamismo à administração da justiça. Desse modo, pela redação do novo § 5.º

do Art. 219 do CPC o reitor do processo não mais ficaria de mãos atadas,

84 REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/index.html>. Acesso em: 17 out. 2006.

20

sendo obrigado a instruir e sentenciar em processo fadado a ser resolvido com

a simples acolhida de uma preliminar de mérito de prescrição absoluta da

pretensão. Ele, agora, poderia, liminarmente, indeferir a petição inicial com

fincas na prescrição total, haja vista que foi mantida a redação do antigo inciso

IV do art. 295 do mesmo Codex: “Art. 295 - A petição inicial será indeferida: [...]

IV - quando o juiz verificar, desde logo, a decadência ou a prescrição (art. 219,

§ 5.º)...”. Assim, o réu sequer chegaria a ser importunado com a citação, sendo

apenas intimado a respeito da sentença, a fim de poder se resguardar contra

futura ação. Considerando que permaneceu intocada, outrossim, a disposição

do § 6.º do mencionado artigo 219, que diz: “Passada em julgado a sentença, a

que se refere o parágrafo anterior, o escrivão comunicará ao réu o resultado do

julgamento”.

Apesar da aparente clareza do Diploma Processual alterado,

porém, à toda evidência, parece-nos que o legislador, obcecado com a questão

da celeridade, não levou em conta que o Direito Processual e o Direito Material

são ramos do mesmo tronco, ou seja, o Direito é uno. Assim, não se pode

estudá-los como se fizessem parte de departamentos estanques. Até mesmo

porque o processo é um instrumento de efetivação do bem da vida buscado no

plano material. Nesse contexto, assinala CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, existem

determinados institutos jurídicos que são igualmente importantes tanto para o

Direito Processual quanto para o Material, considerando que, embora

regulados pelo primeiro no que toca aos seus efeitos práticos, estão também

sob o pálio do segundo quanto à sua essência, como é o caso da prescrição e

da decadência tipicamente “institutos híbridos”, situados numa “zona gris”,

servindo de “ponte” entre o Direito Processual e o Material, nas chamadas

“faixas de estrangulamento” entre os dois ramos mencionados. Desse modo, a

prescrição e decadência, como “institutos bifrontes”, requerem que o seu

estudo se faça, com igual profundidade, tanto no campo do Direito Processual

quanto no do Direito Material. 85 86

85 “Institutos bifrontes: só no processo aparecem de modo explícito em casos concretos, mas são integrados por um intenso coeficiente de elementos definidos pelo direito material e — o que é mais importante — de algum modo dizem respeito à própria vida dos sujeitos e suas relações entre si e com os

21

Feita essa necessária observação quanto à natureza bifronte

dos institutos da prescrição e da decadência, passamos, finalmente, a analisar

a inovação legal trazida pelo § 5.º do art. 219 do CPC, com a redação da Lei

n.º 11.280/06. Em verdade, pela antiga dicção do § 5.º do Art. 219 do CPC de 1973, quando este previa “não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz

poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato”, estava

autorizando o pronunciamento, ex officio, da decadência legal e não da

prescrição. Isso porque o codificador do CPC de 1973 buscava remediar uma

deficiência do Código Civil de 1916, que, ao contrário do atual, não traçava

uma distinção expressa entre os prazos de prescrição e de decadência, penosa

tarefa que ficava a cargo da doutrina e da jurisprudência. 87

Nesse contexto, observe-se que os direitos não

patrimoniais, referidos pela regulamentação anterior à Lei n.º 11.280/06, se

tratavam, justamente, dos direitos potestativos, estudados em linhas

transatas. Noutros termos, pela velha redação do § 5.º do Art. 219 do CPC de

1973, o que poderia ser declarada de ofício era tão-somente a decadência

legal, haja vista que esta afeta primordialmente interesse de ordem pública.

Ademais, a decadência não se suspende, não se interrompe nem se renuncia,

salvo nas raras exceções expressas na lei. 88 Além disso, ela extingue o próprio direito subjetivo material do autor da ação. 89 De tal arte, a

decadência legal, mesmo sob a égide do antigo Código Civil, poderia ser

declarada, de ofício, pelo juiz. Daí o motivo pelo qual sempre se entendeu que

bens da vida. Constituem pontes de passagem entre o direito e o processo, ou seja, entre o plano substancial e o processual do ordenamento jurídico (Calamandrei).” (In DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Apud Juris Síntese IOB. São Paulo: IOB, mai./jun. 2006, CD-ROM.) 86 V. LEONEL, Ricardo de Barros. Normas bifrontes no Novo Código Civil: prescrição e decadência. Apud Juris Síntese IOB. São Paulo: IOB, mai./jun. 2006, CD-ROM. 87 V. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. Ob. cit., págs. 393/394 e RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 329. 88 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Vol. 1. Ob. cit., pág. 397. 89 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Ob. cit., pág. 431.

22

o juiz poderia, ex officio, pronunciar a decadência legal, o que, inclusive,

passou a ser um dever do magistrado, pela redação do Novo Código Civil: “Art.

210 - Deve o juiz, de ofício, conhecer da decadência, quando estabelecida por

lei”.

No que tange à prescrição, porém, o interesse principal é

privado, ou seja, é do devedor, apenas reflexamente diz respeito também à

coletividade. Ou seja, há aqui uma motivação de ordem pública tão-somente

secundária, em nome da paz social. 90 Ademais, a prescrição encobre a

eficácia da pretensão material mas deixa vivo o direito subjetivo material. Por

outras palavras, ainda que legalmente inexigível pelo seu titular, o direito pode

ser atendido sponte sua pelo devedor, não podendo este recobrar a dívida

prescrita paga espontaneamente. Tanto assim que dispõe o Código Civil: “Art.

882 - Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou

cumprir obrigação judicialmente inexigível”.

Não fora isso o bastante, a prescrição, além de ser renunciável,

após a sua consumação, pode ser impedida, suspensa ou interrompida. Todas

essas questões de fato, contudo, estão fora da percepção do magistrado no

momento em que este tem o primeiro contato com a petição inicial. É, por

conseguinte, imprescindível, que seja aberta oportunidade para ambas as

partes a fim de que possam alegar e provar, querendo, todos os fatos relativos

ao impedimento, à interrupção, à suspensão e à renúncia da prescrição.

Ao demais, existem ainda outras situações de fato que

dificultam o estabelecimento do termo inicial da prescrição. Seriam os casos

em que ela só começa a correr após a ciência inequívoca do sujeito passivo a

respeito de dano injusto que sofreu. Assim, consoante a teoria da actio nata, a

pretensão nasce apenas no momento em que poderia ser exercitada: “actio

90 V. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. Ob. cit., pág. 691.

23

nondum nata non praescribitur”. 91 92 Desse modo, prevê o Código Civil,

subsidiariamente aplicado: “Art. 189 - Violado o direito, nasce para o titular a

pretensão, a qual se extingue, pela prescrição...”. Assim, se um trabalhador

manteve um contrato de trabalho por vários anos, ao longo do qual adquiriu

uma doença ocupacional — como a asbestose, o transtorno de estresse pós-

traumático ou a LER, ad exemplum — e só vem a dela tomar consciência após

haver recebido um diagnóstico definitivo, é apenas a partir daí que começa a

correr o prazo prescricional, pois só então teve ciência da violação do seu

direito à incolumidade psicofísica. 93 O DES. CLÁUDIO BRANDÃO, em percuciente

monografia sobre o acidente do trabalho, ensina — com apoio no saudoso

MARTINS CATHARINO — que nas doenças ocupacionais “‘...a causa jamais é

súbita ou imprevista e violenta, e entre ela e o efeito, ou lesão, há um lapso de

tempo mais prolongado’; forma-se no tempo, sendo, ainda interna e mórbida”. 94 A esse respeito, vemos em artigo, no qual reluz o notável RODRIGUES PINTO,

que sendo a doença ocupacional, na maioria das vezes, decorrente de

acontecimento continuado, isso dificulta extraordinariamente a percepção de

quando ela começou, a fim de fixar-se o termo inicial da prescrição. 95 O

mesmo jurisconsulto escreve que o caráter da doença ocupacional é “insidioso

e melífluo”, por isso, na maioria dos casos, o empregado só toma

conhecimento da sua enfermidade quando ultrapassado o biênio prescricional,

contado a partir do dia do término do contrato de trabalho. A Súmula n.º 278 do STJ, outrossim, esclarece: “O termo inicial do prazo prescricional, na ação

de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da

incapacidade laboral”. A Súmula n.º 230 do STF é ainda mais precisa: “A

prescrição da ação de acidente do trabalho conta-se do exame pericial que

comprovar a enfermidade ou verificar a natureza da incapacidade”.

91 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, pág. 424. 92 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. Ob. cit., págs. 328/329. 93 Apud COL, Helder Martinez Dal. A prescrição nas ações indenizatórias por acidente do trabalho no Código Civil de 2002. Apud Juris Síntese IOB. São Paulo: IOB, nov./dez. 2005, CD-ROM. 94 BRANDÃO, Cláudio. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador. São Paulo: LTr, 2006, pág. 130. 95 V. PINTO, José Augusto Rodrigues. Prescrição, indenização acidentária e doença ocupacional. Revista LTr, São Paulo, v. 70, n. 1, p. 5-12, 2006.

24

Desse modo, na dúvida, o juiz deve decidir contra a prescrição, consoante a cátedra de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO: “As

disposições são sempre de aplicação estrita, não comportando interpretação

extensiva, nem analogia; a exegese será sempre restritiva. Na dúvida, deve

julgar-se contra a prescrição, meio talvez antipático de extinguir-se a

obrigação”. 96 Na mesma linha, escreveu PINHO PEDREIRA que a “‘prescrição é

matéria que, pelo seu rigor, não pode ser presumida, ainda mais em Direito do

Trabalho, no qual o princípio in dubio pro operario afasta a possibilidade do seu

reconhecimento, quando não há certeza sobre a sua consumação’ (Ac. 2ª

Turma, 5º TRT, 04.09.86)”. 97

Alfim, lembre-se que o réu tem interesse jurídico em provar

que já quitou a dívida, uma vez que isso diz respeito a seu patrimônio moral, id

est, à sua reputação de bom pagador, de cidadão honesto e cumpridor de

seus deveres com lealdade e boa-fé. Assim, não se pode impor ao devedor a

declaração da prescrição da dívida sem nem ao menos lhe conceder

ensanchas para justificar o não pagamento, como disse CLÓVIS BEVILÁCQUA,

citado por SILVIO RODRIGUES, “deve o direito respeitar o escrúpulo de

consciência daquele que não quer libertar-se da dívida, por não a ter podido

pagar em determinado tempo”. 98 Além disso, o réu poderá querer alegar

qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação — como

pagamento, novação, compensação, transação. Finalmente, o devedor pode

manifestar o interesse de quitar a dívida em juízo e encerrar definitivamente a

querela.

Como se não bastasse, observe-se ainda que o Código Civil

prevê: “Art. 940 - Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em

parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido,

96 Apud OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Prescrição nas ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho ou doença ocupacional. Disponível em: <Disponível em: <http://www.otrabalho.com.br/>. Acesso em: 20 out. 2006. 97 Apud COSTA, Coqueijo. Direito Processual do Trabalho. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, pág. 243. 98 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. I. Ob. cit., pág. 334.

25

ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que

houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se

houver prescrição”. (Realçamos.) Por outras palavras, tratando-se da primeira

hipótese, o réu tem o direito de reconvir para receber em dobro o valor

equivalente à dívida já paga.

Como pudemos ver, muita vez a fixação do início do prazo

prescricional vai depender da realização de perícia judicial, o que, por si só,

impediria o juiz, in limini litis e de ofício, declarar a prescrição já no momento

em que recebe a petição inicial. Tal atitude representaria uma afronta direta ao

direito de ação, pois o autor se veria tolhido ao não poder argüir as matérias

relativas à actio nata, ao impedimento, à interrupção, à suspensão e à renúncia

da prescrição. Além disso, o instituto da prescrição, desde a sua milenar

origem, sempre foi entendido como uma exceção peremptória, meio de defesa

indireta do devedor, “...que atua em juízo sem negar o fato constitutivo do

direito do autor, mas contrapondo-lhe outro a benefício do réu, cujos efeitos

são capazes de neutralizar os do primeiro”. 99 A exceção de prescrição, por

conseguinte, não se coaduna com o pronunciamento liminar, sem a oitiva das

partes e ex officio pelo juiz, porquanto isso implica uma quebra dos princípios

do devido processo legal, da imparcialidade e da isonomia entre as

partes. 100 101

99 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência... Ob. cit.

100 Reza a Lex Fundamentalis: “Art. 5.º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes...”. E ainda: “Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. Por sua vez, o Código de Processo Civil determina: “Art. 125 - O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento...”. Além disso, estabelece, nos arts. 134 a 138, os casos de impedimento e suspeição do juiz, de modo a assegurar-lhe a independência. Finalmente, o mesmo Codex prevê: “Art. 128 - O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”.

101 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr, 2005, pág. 277.

26

9. Compatibilização do novo § 5.º do Art. 219 do CPC com o devido

processo legal.

Diante de uma lei feita de forma açodada, em flagrante

desrespeito ao enfoque da prescrição como instituto jurídico bifronte, que

surgiu no Direito Romano e foi sendo aperfeiçoado ao longo dos séculos, cabe

ao jurista a espinhosa tarefa de tentar compatibilizar o novo § 5.º do Art. 219 do

CPC com os princípios constitucionais do devido processo legal e da

celeridade e com os preceitos do Código Civil atual. 102

Invocamos aqui inspiração para essa hercúlea tarefa na

sabedoria do gigante MIGUEL REALE, que, ao escrever sobre o princípio da operabilidade, disse “...que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o

Direito é feito para ser executado; Direito que não se executa — já dizia

JHERING na sua imaginação criadora — é como chama que não aquece, luz

que não ilumina, O Direito é feito para ser realizado; é para ser operado”. 103

Salvo melhor juízo, entendemos que a maneira de proceder a essa

compatibilização seria defender que o juiz, ao receber a petição inicial,

verificando que há, em tese, prescrição da pretensão material, intimar o autor

para que informe se pretende argüir alguma das matérias relativas à actio nata,

ao impedimento, à interrupção, à suspensão ou à renúncia da prescrição. O

réu, por seu turno, seria intimado para informar se deseja renunciar à

prescrição, para provar, e. g., que pagou todo o débito, de modo a deixar 102 Por sinal, leia-se a crítica de SEBASTIÃO GERALDO DE OLIVEIRA: “...É surpreendente que uma mudança tão importante não tenha sido debatida previamente com a sociedade para o devido amadurecimento. O projeto foi aprovado numa convocação extraordinária, com votações sumárias, sem maior aprofundamento e reflexão sobre todos os contornos da questão”. (In OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Prescrição nas ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho ou doença ocupacional. Disponível em: <Disponível em: <http://www.otrabalho.com.br/>. Acesso em: 20 out. 2006.) 103 REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil. Disponível em: < http://www.miguelreale.com.br/index.html>. Acesso em: 17 out. 2006.

27

patente a sua condição de bom pagador; ou reservar-se para argüi-la em

momento posterior, caso receie não conseguir produzir a prova respectiva. Se,

esgotado o prazo concedido, nenhuma das partes se pronunciar, o juiz, então,

declararia a prescrição sem correr o risco de ferir o direito dos litigantes. De tal

sorte, harmonizar-se-iam dois princípios constitucionais, quais sejam, o do

devido processo legal e o da celeridade 104 com as disposições sobre a

prescrição estabelecidas no Código Civil.

Por outro lado, se qualquer das partes alegar alguma das

matérias referidas, o processo deverá seguir seu curso regular, com a citação e

a juntada de contestação e documentos, de modo que as questões relativas à

prescrição possam ser apuradas, cabendo ao juiz encerrar antecipadamente a

lide se não houver necessidade de produção de provas em audiência. 105

Amparamos nossa posição no douto escólio de CASSIO

SCARPINELLA BUENO ao comentar a inovação ventilada: “...‘Atuar de ofício’ só

pode ser entendido como a desnecessidade de o magistrado ser provocado

por uma das partes (ou por um terceiro, aí entendido também o Ministério

Público, quando atua na qualidade de fiscal da lei) para decidir, de uma ou

outra forma, sobre uma ou outra questão. Esta desnecessidade de

provocação anterior para decidir, contudo, não pode ser confundida com

decisão precipitada, carente, distante ou indiferente aos elementos que se

mostrem necessários para bem decidir. [...] O princípio do contraditório, mesmo

sob as vestes de ‘colaboração’ ou ‘cooperação’, deve reger toda atividade do

Estado, inclusive do Estado-juiz. [...] Na situação concreta em exame, de

104 Determina a Lex Fundamentalis: “Art. 5.º - [...] LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

105 Dispõe o CPC: “Art. 330 - O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: I - quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência...”.

28

reconhecimento da prescrição, não há razão sequer para diferir a ampla

aplicação do princípio em questão”. 106 107

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, de sua parte, por entender que a

prescrição é uma exceção do réu e com esteio no due processe of law, só

aceita a sua declaração in limini litis e ex officio, por motivo de ordem pública,

como nas ações em que se discutam interesses dos absolutamente

incapazes, haja vista que seus bens patrimoniais são indisponíveis e a falta

de argüição de prescrição por seu representante legal equivaleria a uma

renúncia. 108 Ressalvamos, porém, que até mesmo aí seria indispensável a oitiva do autor da ação, porquanto a prescrição pode ser impedida,

suspensa ou interrompida, além do que o termo a quo do prazo prescricional,

em alguns casos, só pode ser fixado a partir da comprovação da data em que o

titular teve ciência inequívoca de violação do seu direito, como na hipótese da

doença ocupacional e do vício oculto na coisa, lembrando-se que, na dúvida, o juiz deve decidir contra a prescrição.

THEODORO JÚNIOR defende ainda o pronunciamento liminar e ex

officio da prescrição pelo juiz quando a própria lei substancial o impõe, como

ocorreria em relação aos créditos tributários, 109 por força do art. 156, IV do

106 BUENO, Cassio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. Vol. II. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, págs. 105/106. 107 A propósito, a Orientação Jurisprudencial n.º 130, em função da inovação legal em foco, segundo SEBASTIÃO GERALDO DE OLIVEIRA, encontra-se superada. Leia-se: “PRESCRIÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. ARGÜIÇÃO. ‘CUSTOS LEGIS’. ILEGITIMIDADE. Ao exarar o parecer na remessa de ofício, na qualidade de ‘custos legis’, o Ministério Público não tem legitimidade para argüir a prescrição em favor de entidade de direito público, em matéria de direito patrimonial (arts. 194 do CC de 2002 e 219, § 5.º, do CPC)”.

108 THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pág. 68.

109 THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pág. 68.

29

CTN 110 combinado com o § 4.º do art. 40 da Lei de Execuções Fiscais 111.

Observe-se, todavia, a dicção expressa do referido § 4.º: “Se da decisão que

ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de

ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição

intercorrente e decretá-la de imediato”. (Destacamos.) Noutros termos, mesmo

aí a lei é claríssima no sentido de não permitir o pronunciamento da prescrição

sem a oitiva da parte credora. 112

10. Aplicabilidade da inovação legal no processo trabalhista.

Aparentemente, no processo trabalhista não é possível a

aplicação do novo § 5.º do Art. 219 do CPC, haja vista que a Consolidação das

Leis do Trabalho prevê que o juiz do Trabalho só terá contato com a

reclamação no dia da audiência, considerando que o reclamado será,

110 “Art. 156 - Extinguem o crédito tributário: [...] V - a prescrição e a decadência...”. 111 “Art. 40 - O juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrado bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição. § 1.º - Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública. § 2.º - Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrado bens penhoráveis, o juiz ordenará o arquivamento dos autos. § 3.º - Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução. § 4.º - Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.”(Destacamos.) 112 “116285313 – PROCESSO CIVIL – TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – PRESCRIÇÃO – DECRETAÇÃO DE OFÍCIO – IMPOSSIBILIDADE – ARTIGO 219, § 5º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – DISSÍDIO NOTÓRIO – 1. Segundo o art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil, ‘não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato’. A contrário senso, não pode o órgão julgador, pelo simples transcurso de tempo e sem requerimento da parte interessada, conhecer ex officio da prescrição, quando se tratar de direito exclusivamente patrimonial. 2. Tratando-se de execução fiscal, a partir da Lei nº 11.051, de 29.12.2004, que acrescentou o § 4º ao art. 40 da Lei nº 6.830/80, pode o juiz decretar de ofício a prescrição, após a ouvida da Fazenda Pública exeqüente. 3. A Lei nº 11.280, de 16.02.2006, deu nova redação ao art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil, para determinar que ‘o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição’. 4. A nova redação do art. 219, § 5º, do CPC, conferida pela Lei nº 11.280/2006, que somente entra em vigor em 16 de maio de 2006, somente poderá ser aplicada, em Recurso Especial, se esse dispositivo estiver prequestionado na origem. A partir do julgamento do RESP nº 720.966/ES (12.12.2005), a seção de direito público concluiu não ser aplicável, na instância especial, o direito superveniente, em razão do óbice constitucional do prequestionamento. 5. Recurso Especial provido. (STJ – RESP 200502046173 – (802998 RR) – 2ª T. – Rel. Min. Castro Meira – DJU 25.04.2006 – p. 00117).” (Apud Juris Síntese IOB. São Paulo: IOB, jul./ago. 2006, CD-ROM.)

30

automaticamente, notificado (citado) pelo Serviço de Distribuição de Mandados

Judiciais. 113 A fim de operacionalizar a aplicação do novo § 5.º do art. 219 do

CPC no processo trabalhista, porém, basta que os órgãos auxiliares do juízo do

Trabalho, em vez de procederem a imediata notificação inicial do reclamado,

sejam orientados no sentido de encaminharem os autos diretamente ao juiz

todas as vezes que as reclamações sejam aforadas, em tese, após a

prescrição bienal. 114 Mister para tanto que o juiz do Trabalho baixe uma

portaria, com o intuito de evitar surpresas aos jurisdicionados e tumulto

administrativo-processual. 115 De modo que, quando for recebida reclamação

relativa a pretensão, teoricamente, já prescrita, seja a petição encaminhada

diretamente ao magistrado, para que este possa, após determinar a ouvida das

partes a esse respeito, pronunciar-se, de ofício, sobre a prescrição.

Somos, por conseguinte, favoráveis à declaração da

prescrição, de ofício, pelo juiz no processo trabalhista — com as ressalvas já

formuladas —, considerando que a CLT é omissa a esse respeito. Note-se que

não há conflito entre a nova regra e o sistema processual trabalhista. 116 117 A

113 “Art. 841 - Recebida e protocolada a reclamação, o escrivão ou secretário, dentro de 48 (quarenta e oito) horas, remeterá a segunda via da petição, ou do termo, ao reclamado, notificando-o ao mesmo tempo, para comparecer à audiência do julgamento, que será a primeira desimpedida, depois de 5 (cinco) dias.”

114 V. GIGLIO, Wagner D. Direito Processual do Trabalho. 8. ed. São Paulo: LTr, 1995, págs. 207/208. MARTINS, Sergio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2003, pág. 237. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, pág. 180. TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. As novas leis... Ob. cit. Em sentido contrário, porém, leia-se: “No processo trabalhista seria um tanto impróprio dizer-se que foi ‘indeferido o pedido’ ou ‘indeferida a petição inicial’, porque ‘indeferir’ presume uma apreciação initio litis da reclamação apresentada — e o juiz do trabalho não o faz; não despacha a petição e muito menos o pedido verbal, não podendo, portanto, ‘deferir’ ou ‘indeferir’, quando, na realidade, só toma conhecimento da reclamatória na audiência...”. (ALMEIDA, Ísis. Manual de Direito Processual do Trabalho. 4. ed. Vol. II. São Paulo: LTr, 1991, pág. 31.) 115 HERKENHOFF FILHO, Helio Estellita. O julgamento do mérito da demanda antes da angularização do processo (aplicação subsidiária do art. 285-A do CPC — in vacatio legis). In Revista LTr, São Paulo, v. 70, n. 3, p. 357-362, 2006. 116 Dispõe a CLT: “Art. 769 - Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título”. (V. PRATA, Marcelo Rodrigues. A prova testemunhal no processo civil e trabalhista. São Paulo: LTr, 2005, págs. 89 e 182.) 117 V. PRATA, Marcelo Rodrigues. Primeiras notas sobre a inovação legislativa... Ob. cit.

31

esse respeito, temos a honra de comungar, mutatis mutandis, da mesma

posição externada pelos insignes JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES PINTO, MANOEL

ANTONIO TEIXEIRA FILHO e SEBASTIÃO GERALDO DE OLIVEIRA quanto à

aplicabilidade da inovação em estudo ao processo laboral. 118 Leve-se em

conta que, cuidando a Justiça Especial, principalmente, da imposição do

cumprimento de direitos de natureza alimentar, a economia e a celeridade

estão entre os seus princípios mais relevantes. Observe-se que não é possível

se ter um processo do trabalho ágil sem haver racionalidade em sua dinâmica,

com magistrados sobrecarregados pela administração de feitos, cujo

indeferimento final já se sabe de antemão.

O princípio da conciabilidade dos processos trabalhistas,

porém, inegavelmente, poderá ser afetado pela declaração, ex officio, da

prescrição, liminarmente, uma vez que, embora intimadas as partes para se

manifestar, aí não seria necessária a sua presença em audiência. O princípio

da economia processual, em compensação, é atendido em toda a sua

grandeza. ROBERT ALEXY, para esses casos, com a apoio na jurisprudência do

Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, formula a seguinte lei da

ponderação: “Quanto maior seja o grau de não cumprimento ou de afetação

de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento de outro”. 119 Tanto isso é verdade que o C. TST baixou a Súmula n.° 263, orientando no

sentido da legalidade do indeferimento da inicial, nas hipóteses do art. 295 do

CPC, exceto nos casos em que a emenda é cabível. 120

118 V. PINTO, José Augusto Rodrigues. Reconhecimento ex officio da prescrição e processo do trabalho. Ob. cit.; TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. As novas leis alterantes do processo civil e sua repercussão no processo do trabalho. In Revista LTr, São Paulo, v. 70, n. 3, p. 274-299, 2006. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Prescrição nas ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho ou doença ocupacional. Ob. cit. 119 In ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, pág. 161. 120 “PETIÇÃO INICIAL. INDEFERIMENTO. INSTRUÇÃO OBRIGATÓRIA DEFICIENTE - Salvo nas hipóteses do art. 295 do CPC, o indeferimento da petição inicial, por encontrar-se desacompanhada de documento indispensável à propositura da ação ou não preencher outro requisito legal, somente é cabível se, após intimada para suprir a irregularidade em 10 (dez) dias, a parte não o fizer”.

32

Existe, porém, uma outra objeção quanto à aplicabilidade da

inovação legislativa em comento ao universo laboral, considerando que o Direito do Trabalho não admite a renúncia dos direitos do trabalhador. 121

Ocorre que a declaração da prescrição ex officio não implica renúncia a

nenhum direito trabalhista mas apenas, reflexamente, encobre a eficácia da

respectiva pretensão de cunho patrimonial. Noutros termos, tão-somente a

eficácia da pretensão material é oculta, o direito subjetivo material,

propriamente dito, permanece vivo, posto que mutilado por falta de

exigibilidade. Tanto assim que o empregador pode resolver, espontaneamente

saldar o seu débito, e, concretizado legalmente o ato, não fará jus à repetição

de indébito. Caso contrário, vejamos o escólio de PONTES DE MIRANDA: “A

imprescritibilidade é excepcional. À prescrição submetem-se todas as

pretensões, inclusive as que correspondem a direitos reais, ao direito de família

e ao direito de sucessões. As relações jurídicas e os direitos mesmos não

prescrevem; razão por que não se pode pensar em prescrição da locação ou

da sociedade”. 122

Na mesma linha, escreveu CAIO MÁRIO: “A prescrição fulmina

todos os direitos subjetivos patrimoniais, e, normalmente, estende-se aos

efeitos patrimoniais de direitos imprescritíveis, porque estes [...] Não se podem

extinguir, o que não ocorre com as vantagens econômicas respectivas”. 123 124

A maior prova da correção desse entendimento encontra-se na própria Magna

Carta, que estabelece expressamente: “Art. 7.º - São direitos dos trabalhadores

urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...] XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com

prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o

limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho...”.

121 SAKO, Emília Simeão Albino. Prescrição ex offcio — § 5.º do art. 219 do CPC — A impropriedade e inadequação da alteração legislativa e sua incompatibilidade com o Direito e o Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, ano 70, n. 8, p. 966-973, 2006. 122 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Ob. cit., pág. 164. 123 In PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições... Vol. I. 21. ed. Ob. cit., págs. 682/689. 124 Diz a Súmula n.º 149 do STF: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”.

33

Por outro lado, mesmo nos caso de revelia o juiz deverá, de

ofício, pronunciar a prescrição, bastando para tanto que ofereça oportunidade

para que o reclamante se pronuncie acerca da existência de fato que

prejudique a sua declaração. O reclamado, porém, não será intimado para

tanto, uma vez que é revel, exceto se resolver acompanhar o processo antes

de ser consultado. 125

Além disso, a prescrição poderá ser pronunciada, ex officio, na

segunda instância pelo relator do recurso, conquanto intime o recorrente e o

recorrido para que informem se desejam pronunciar-se a esse respeito. Na

instância especial, ou seja, no Tribunal Superior do Trabalho não cremos que

isso seja posto em prática, em função do teor de sua própria Súmula n.º 153:

“Não se conhece de prescrição não argüida na instância ordinária”.

11. Conclusões esquematizadas.

1. O objetivo da Lei n.º 11.280/06, que conferiu nova redação ao § 5.º do Art.

219 do CPC, foi oferecer maior eficiência, racionalidade e celeridade à

administração da justiça sem, contudo, ferir o princípio do devido processo

legal;

2. O tempo tende a consolidar as relações jurídicas que permaneceram

inalteradas ao longo dos anos;

3. A prescrição é um instituto bifronte e, como tal, não poder ser aplicada

apenas com base no CPC sem a devida compatibilização com o CC;

125 Diz o Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicado: “Art. 322 - Contra o revel que não tenha patrono nos autos, correrão os prazos independentemente de intimação, a partir da publicação de cada ato decisório. Parágrafo único. O revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar”.

34

4. A prescrição é um instituto jurídico necessário à paz social e à segurança

jurídica para evitar-se que uma dívida muito antiga venha a ser a cobrada

quando o devedor estiver certo de que ela já havia sido perdoada, sob pena de

gerar-se obrigação de se manter, eternamente, a impossível prova de todos os

pagamentos;

5. A decadência visa o interesse coletivo em primeiro lugar. Por sua vez, a

prescrição atende o interesse privado do devedor, ainda que reflexamente

tenha também motivação social;

6. A decadência extingue o próprio direito subjetivo material, enquanto que a

prescrição encobre apenas a eficácia da pretensão, deixando vivo o direito,

ainda que inexigível;

7. Os prazos de decadência, salvo as exceções de lei, não sofrem

impedimento, interrupção nem suspensão, além de a decadência não ser

renunciável, ao contrário do que ocorre com a prescrição consumada;

8. A decadência deve ser declarada, liminarmente e de ofício, salvo os casos

expressos em lei, enquanto que a prescrição só pode ser pronunciada após a

oitiva das partes, exceto no caso revel;

9. Antes do pronunciamento, de ofício, da prescrição, é indispensável a oitiva

do autor da ação, porquanto a prescrição pode ser impedida, suspensa ou

interrompida, além do que o termo a quo do prazo prescricional, em alguns

casos, somente começa a correr da comprovação da data em que o titular teve

ciência inequívoca de violação do seu direito. É necessária, outrossim, a

intimação do réu a fim de que este possa informar se deseja fazer uso do seu

direito de renunciar à prescrição.

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10. O pronunciamento, ex officio, da prescrição é compatível com a

Constituição Federal, com o Código Civil e com a CLT, mas desde que seja

facultada a oportunidade de as partes se manifestarem antecipadamente.//