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Premissas Fundamentais e asPectos introdutórios RENATO BRASILEIRO DE LIMA .

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CAPÍTULO I

Premissas Fundamentais e aspectos introdutórios

SUMÁRIO • 1. A importância do exame da competência criminal; 2. Jurisdição e compe-tência; 3. Princípio do juiz natural; 3.1. Lei processual que altera regras de competência; 3.2. Convocação de Juízes de 1º grau de jurisdição para substituição de Desembargadores; 4. Espécies de competência; 5. Competência absoluta e relativa; 5.1. Quanto à natureza do interesse; 5.2. Quanto à arguição da incompetência; 5.3. Quanto ao reconhecimento da incompetência no juízo ad quem; 5.4. Quanto às consequências da incompetência absoluta e relativa; 5.5. Quanto à coisa julgada nos casos de incompetência absoluta e relativa; 5.6. Quadro sinóptico dos regimes jurídicos das regras de incompetência absoluta e relativa; 6. Fixação da competência criminal; 6.1. Conflito de competência; 6.2. Conflito de atri-buições no âmbito do Ministério Público; 7. Competência internacional; 8. Tribunal Penal Internacional.

1. A IMPORTÂNCIA DO EXAME DA COMPETÊNCIA CRIMINAL.A qual juiz compete o processo e julgamento de determinada infração penal?

Apesar da simplicidade da pergunta, a definição do juiz natural para o julga-mento de um delito apresenta-se como um dos temas mais complexos e relevantes do processo penal. Por mais que se tenha em foco única e exclusivamente o estudo da competência da Justiça Estadual, cuja competência abarca a grande maioria dos delitos, para que seja possível definir se um crime é (ou não) de sua competência, que tem caráter residual, devemos antes nos perquirir se referido delito não estaria afeto à competência da Justiça Federal, Eleitoral, Militar, etc. Portanto, a fim de que se possa estabelecer o juiz competente para o processo e julgamento de um delito, deve se conhecer a fundo toda a temática relativa à competência criminal, cuja análise deve partir da Constituição Federal, passando pelo estudo da legislação infraconsti-tucional, notadamente do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil, subsidiariamente, até que se chegue às Constituições Estaduais, Leis de organização judiciária e normas regimentais.

Inicialmente, antes mesmo de se proceder à distribuição interna da competência criminal pelos diversos órgãos jurisdicionais, surge a indagação prévia acerca da pos-sibilidade de o poder jurisdicional brasileiro ser, ou não, competente para o exame da pretensão punitiva, o que se convencionou chamar de competência internacional.

Firmada a possibilidade de aplicação da lei penal brasileira, para que se possa conhecer o juiz natural de determinado crime, devemos, a priori, fazer uma análise detida da denominada ‘Competência de Justiça’, de modo a se determinar se o processo e julgamento do delito estaria afeto à Justiça Militar (da União ou dos Estados), à Jus-tiça Eleitoral, à Justiça Federal, à Justiça Estadual, ou até mesmo a um órgão político (v.g., competência do Senado Federal para o julgamento de crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República).

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Todavia, com o escopo de se estabelecer o juízo natural, também se faz impor-tante o exame da competência por prerrogativa de função. Com efeito, em virtude da relevância das funções desempenhadas por certos agentes, reservam-lhes a Cons-tituição Federal, as Constituições dos Estados e a legislação infraconstitucional o denominado foro por prerrogativa de função, atribuindo aos Tribunais a competência para o processo e julgamento de eventuais delitos por eles praticados.

Essa análise, no entanto, deve ir além da mera leitura dos dispositivos consti-tucionais e legais que versam sobre o assunto. De fato, a fim de se compreender a temática da competência por prerrogativa de função, algumas regras pertinentes ao tema devem ser analisadas a fundo, tais como: a) investigação e indiciamento de titulares de foro por prerrogativa de função; b) arquivamento de inquérito ou de peças de informação nas hipóteses de atribuição originária do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral da República; c) duplo grau de jurisdição; d) infrações penais praticadas antes, durante, e após o exercício funcional; e) dicotomia entre crime comum e crime de responsabilidade; f) competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por titulares de foro por prerrogativa de função; g) hipóteses de coautoria; h) previsão de competência por prerrogativa de função pelas Constituições Estaduais e princípio da simetria; i) exceção da verdade; j) procedimento originário dos Tribunais, etc.

Uma vez examinada a competência de Justiça, e se o acusado seria (ou não) titu-lar de foro por prerrogativa de função, impõe-se o estudo da competência territorial. Afinal, em um país de dimensões continentais, temos que definir em qual comarca deverá ser processado e julgado o delito. De modo a se estabelecer a denominada com-petência ratione loci, em regra determinada pelo local da consumação do delito, ou pelo local da prática do último ato de execução nos casos de tentativa, faz-se necessária a análise das várias espécies de infração penal, destacando-se dentre elas as de menor potencial ofensivo (CF, art. 98, I), assim como os crimes de mera conduta, formais, materiais, qualificados pelo resultado, permanentes, em continuidade delitiva, pluri-locais, à distância, cometidos a bordo de embarcações ou aeronaves, no estrangeiro, na divisa de duas ou mais comarcas, etc.

Fixada a competência territorial, e diante da possibilidade da existência de plu-ralidade de varas na referida comarca, dar-se-á a análise da competência do Juízo, seja pela análise da competência por distribuição e prevenção, seja pela análise da competência de determinados juízos em razão da matéria, tal qual se dá com a com-petência do Tribunal do Júri, do Juizado Especial Criminal, do Juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher instituído pela Lei “Maria da Penha” (Lei nº 11.340/06) e do Juízo das Execuções Criminais.

Finda a análise da competência de juízo, incumbe ainda o estudo da conexão e da continência, importantes causas modificativas da competência, e de outros temas correlatos, tais como a prorrogação de competência, a perpetuação de jurisdição, assim como os conflitos de competência e de atribuição.

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O juiz competente, portanto, será aquele cuja jurisdição satisfaça a todos esses requisitos da competência, isto é, que tenha jurisdição para conhecer da infração penal de que se trata, para submeter a seu juízo a pessoa do acusado, para estender a sua autoridade até o lugar onde a infração foi cometida, e desde que não haja nenhuma causa modificativa dessa competência. O conhecimento da competência importa, em tese, em várias indagações: de que natureza é o fato? Quem o praticou? Onde o praticou? A lei de organização judiciária determina a competência de algum juízo para o processo e julgamento da infração penal? Há alguma causa modificativa da competência?

E qual a importância do estudo do tema competência criminal? Ora, compreendida a competência criminal como o limite e a medida da jurisdição, dentro dos quais o órgão jurisdicional poderá aplicar o direito objetivo ao caso concreto, resta inegável que, diante de inadequada intervenção do órgão jurisdicional competente, o processo estará contaminado por grave nulidade, a qual, a depender da espécie de incompetên-cia, poderá inclusive ser questionada pelo réu após o trânsito em julgado de sentença condenatória ou absolutória imprópria.

De fato, por mais grave que seja a infração penal, por mais eficiente que tenha sido a investigação preliminar, ministrando elementos de informação para que o titular da ação penal pudesse ingressar em juízo, por mais contundentes que sejam os elementos probatórios colhidos durante a instrução processual e por mais convicto que esteja o juiz acerca da culpabilidade do acusado, decisão proferida por juízo abso-lutamente incompetente é passível de declaração de nulidade, diante da violação ao preceito constitucional do juízo natural (CF, art. 5º, incisos XXXVII e LIII).

Com efeito, se está assentado na própria Constituição Federal que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (art. 5º, LIII), o indivíduo sobre o qual recai uma imputação da prática de um delito tem o direito de ser julgado pelo seu juiz natural, e o Estado não pode, discricionariamente, querer submetê-lo a julgamento em juízo que não seja o seu natural.

Consequentemente, como não se pode emprestar validade ao recebimento de peça acusatória proferida por juízo incompetente, caso essa incompetência absoluta seja reconhecida tardiamente, tem-se que o curso do prazo prescricional somente será interrompido quando se der a ratificação do recebimento da exordial pelo magistrado competente (CP, art. 117, I), o que irá fatalmente beneficiar o acusado com futura e inevitável argüição de prescrição da pretensão punitiva, produzindo a extinção da punibilidade.

Daí sobressai a importância do tema competência criminal, objeto de nosso estudo.

2. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIAA vida em sociedade produz inevitáveis conflitos de interesses. Na grande maioria

das vezes, esses conflitos são solucionados pelas próprias partes em litígio, seja através

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de transações, seja por meio de renúncias e outras formas de auto composição. Ocorre que, vedada que está a autotutela (salvo em hipóteses excepcionais, como a legítima defesa, estado de necessidade e até mesmo nos casos de prisão em flagrante), caso haja resistência de uma das partes à pretensão da outra, surge a necessidade de que o Estado, através do processo, resolva esse conflito de interesses opostos, dando a cada um o que é seu e reintegrando a ordem e a paz no meio social. Desse importante mister se desincumbe o Estado por meio da jurisdição, poder-dever reflexo de sua soberania, por meio do qual, substituindo-se à vontade das partes, coativamente age em prol da segurança jurídica e da ordem social.

Segundo definição de Giuseppe Chiovenda, jurisdição é “a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva”.1

Em sentido semelhante, nas palavras de Frederico Marques, “na atividade legisla-tiva, realiza o Estado um duplo objetivo: determina qual a tutela que concede a certos interesses, e consagra através de normas gerais de conduta. Na atividade jurisdicional, ao contrário, realiza o Estado um único fim, qual o de consagrar ainda a tutela conce-dida aos referidos interesses, mas de um modo diverso: intervindo diretamente para sua concretização, quando a primeira forma de tutela se tenha mostrado praticamente ineficaz. A jurisdição, por conseguinte, não é execução da tutela: enquanto a legislação é tutela mediata de interesses, a jurisdição é tutela imediata”.2

No âmbito específico da jurisdição penal, cogita-se da resolução de um conflito intersubjetivo de interesses:3 por um lado, na intenção punitiva do Estado, inerente ao ius puniendi; por outro, no direito de liberdade do cidadão. Esses dois interesses traduzem, na realidade, o conteúdo da causa penal, que deve se limitar à verificação da materialidade de fato típico, ilícito e culpável, à determinação da respectiva autoria, e à incidência, ou não àquele, da norma penal material incriminadora.4

Como função estatal exercida precipuamente pelo Poder Judiciário, caracteriza-se a jurisdição pela aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Como função esta-

1. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução: J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva e Cia., 1943, v. 2, p. 11.

2. Da competência em matéria penal. Campinas: Millenium, 2000. p. 3.3. Preferimos evitar a transposição do conceito de lide para o processo penal. Isso porque o interesse na pre-

servação da liberdade individual é também um interesse público, uma vez que interessa ao Estado, na mesma medida, a condenação do culpado e a absolvição do inocente. O Estado, no processo penal, somente pode pretender a correta aplicação da lei penal. Ademais, mesmo que o imputado esteja de acordo com a imposi-ção de pena, com o que não haveria qualquer resistência de sua parte ao pedido condenatório, ainda assim a defesa técnica será indispensável no processo penal, valendo lembrar ser inviável a aplicação de pena sem a existência de processo em que sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa. No processo penal, costuma-se trabalhar com o que se convenciona chamar de pretensão punitiva, que significa a pretensão condenatória de imposição da sanção penal ao autor do fato tido por delituoso.

4. TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 51-52.

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tal que é, a jurisdição é una (princípio da unidade da jurisdição), o que, no entanto, não significa dizer que um mesmo juiz possa processar e julgar todas as causas. Com efeito, nem todos os juízes podem julgar todas as causas, razão pela qual motivos de ordem prática obrigam o Estado a distribuir esse poder de julgar entre vários juízes e Tribunais. Dessa forma, cada órgão jurisdicional somente pode aplicar o direito obje-tivo dentro dos limites que lhe foram conferidos nessa distribuição. Essa distribuição, que autoriza e limita o exercício do poder de julgar no caso concreto, é a competência.

Compreende-se a competência, por conseguinte, como a medida e o limite da jurisdição, dentro dos quais o órgão jurisdicional poderá aplicar o direito objetivo ao caso concreto. Na dicção de Vicente Greco Filho, a competência é “o poder de fazer atuar a jurisdição que tem um órgão jurisdicional diante de um caso concreto. Decorre esse poder de uma delimitação prévia, constitucional e legal, estabelecida segundo critérios de especialização da justiça, distribuição territorial e divisão de serviço. A exigência dessa distribuição decorre da evidente impossibilidade de um juiz único decidir toda a massa de lides existente no universo e, também, da necessidade de que as lides sejam decididas pelo órgão jurisdicional adequado, mais apto a melhor resolvê-las”.5

3. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURALO princípio do juiz natural deve ser compreendido como o direito que cada cida-

dão tem de saber, previamente, a autoridade que irá processar e julgá-lo caso venha a praticar uma conduta definida como infração penal pelo ordenamento jurídico. Juiz natural, ou juiz legal, dentre outras denominações, é aquele constituído antes do fato delituoso a ser julgado, mediante regras taxativas de competência estabelecidas pela lei.

Visa assegurar que as partes sejam julgadas por um juiz imparcial e independente. Afinal, a necessidade de um terceiro imparcial é a razão de ser da própria existência do processo, enquanto forma de heterocomposição de conflitos, sendo inviável conceber a existência de um processo em que a decisão do feito fique a cargo de um terceiro interessado em beneficiar ou prejudicar uma das partes. Aliás, segundo o art. 8.1 do Pacto de São José da Costa Rica, todo acusado tem direito a ser julgado por um juiz independente e imparcial.

A relevância do princípio do juiz natural é destacada por Ada Pellegrini Grino-ver: “a imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional, é vista hodiernamente como seu caráter essencial, sendo o princípio do juiz natural erigido em núcleo essencial do exercício da função. Mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do

5. Manual de processo penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 133.

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juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível”.6

Cuida-se de princípio fundamental do processo penal, instituído em prol de quem se acha submetido a um processo, impedindo o julgamento da causa por juiz ou tri-bunal cuja competência não esteja, previamente ao cometimento do fato delituoso, definida na Constituição Federal, valendo, assim, pelo menos para a doutrina, a regra do tempus criminis regit iudicem.

Na dicção do Min. Celso de Mello, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.7

Para grande parte da doutrina, a primeira vez que o princípio do Juiz Natural surgiu com tal denominação foi mesmo na Carta Constitucional Francesa de 1814, que previu a garantia do cidadão ser julgado pelo Juiz Natural: “Ninguém poderá ser subtraído de seus juízes naturais”.8

Não obstante, os aspectos de sua formação se devem à proibição histórica do poder de comissão (nos textos ingleses do século XVII), do poder de evocação (nas Constituições americanas) e do poder de atribuição (dos textos constitucionais fran-ceses).9 O poder de comissão é a instituição de órgãos jurisdicionais sem prévia previsão legal e estranhos à organização judiciária estatal (juízos extraordinários ex post facto ou, na terminologia brasileira, juízos e tribunais de exceção). O poder de evocação (ou, modernamente, derrogação de competência) significa que o rei podia atribuir competência de julgamento a órgão diverso do previsto em lei, ainda que fosse órgão judiciário. O poder de atribuição possibilitava que se desse prerrogativa de competência a órgão judiciário em razão da matéria, previamente à ocorrência do crime, correspondendo, hoje, aos juízos especiais. É da tradição do direito brasileiro a permissão do poder de atribuição, não afrontando o princípio do juiz natural a criação de juízos especiais, desde que pré-constituídos.

Apesar do princípio do juiz natural não constar da Constituição Federal expres-samente com essas palavras, não há como negar sua sedes materiae na própria Carta Magna. O inciso XXXVII do art. 5º da Magna Carta preceitua que não haverá juízo ou tribunal de exceção. Lado outro, e de modo complementar, estabelece o art. 5º, inciso

6. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 44.

7. STF, 2ª Turma, HC 81.963/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004.8. Nesse sentido: MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2008. p. 60.9. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 64-65 (Apud

FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6ª ed., rev., ampl. e atual. com a Reforma Processual Penal. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 316-317).

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LIII, da CF, que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade compe-tente.

Não são estes, todavia, os únicos dispositivos constitucionais que versam sobre o referido princípio. Com efeito, não se pode olvidar do disposto no art. 5º, XXXVIII, da CF, que estabelece ser o Tribunal do júri o juiz natural para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, assim como todas as hipóteses de foro por prer-rogativa de função previstas na Constituição Federal (v.g., competência do Supremo Tribunal Federal para o processo e julgamento de parlamentares federais em relação à prática de crimes comuns).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos também prevê que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (art. 8º, nº 1, do Dec. 678/92). O mesmo ocorre com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, em 16 de dezembro de 1996, prevendo o referido princípio em seus arts. 9.3 e 14.

Como escreveu Frederico Marques, quando a Constituição afirma que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, consagra a garantia de que ninguém pode ser subtraído de seu Juiz Constitucional. Somente se considera juiz natural ou autoridade competente, no direito brasileiro, o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais. No sistema brasileiro, portanto, o juiz natural é equiparado à garantia de que ninguém pode ser subtraído de seu juiz constitucional, de modo que se considera juiz natural o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais, ou seja, somente é juiz natural o juiz constitucional.10

Do inciso XXXVII do art. 5º da Constituição Federal extrai-se a vedação aos juízos ou tribunais de exceção. Mas o que se deve entender por juízo ou tribunal de exceção? Juízo ou tribunal de exceção é aquele juízo instituído após a prática do delito com o objetivo específico de julgá-lo. Contrapõe-se, portanto, o juiz de exceção ao juiz natural, que pertence ao Judiciário e está revestido de garantias que lhe permitem exercer seu mister com objetividade, imparcialidade e independência.

Conquanto seja vedada sua criação na Constituição Federal, há inúmeros exem-plos de tribunais de exceção no plano internacional, notabilizando-se os tribunais instituídos para o julgamento dos crimes de guerra praticados na ex-Iugoslávia, Ruanda, Camboja, etc. Daí a importância da criação do Tribunal Penal Internacional

10. Juiz natural, Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 46, p. 447 (Apud FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 128).

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em Roma, evitando-se arguição de violação ao princípio do juiz natural, na medida em que se tem um Tribunal previamente criado para o julgamento de crimes contra a humanidade, de genocídio, de guerra e de agressão.

Da vedação aos juízos ou tribunais de exceção não se pode concluir que exista qualquer impedimento à criação de justiças especializadas ou de varas especializadas. Em relação a tais justiças, não se dá a criação de órgãos para julgar, de maneira excep-cional, determinadas pessoas ou matérias. Ocorre, sim, simples atribuição a órgãos jurisdicionais inseridos na estrutura judiciária fixada na Constituição de competência para o julgamento de matérias específicas, com o objetivo de melhor atuar a norma substancial.

Como anota Antônio Scarance Fernandes, embora dúplice a garantia do juiz natu-ral (CF, art. 5º, XXXVII, LIII), manifestada com a proibição de tribunais extraordiná-rios e com o impedimento à subtração da causa ao tribunal competente, a expressão ampla dessas garantias desdobra-se em três regras de proteção: 1) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição; 2) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato; 3) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja.11

Certas questões relacionadas ao princípio do juiz natural têm gerado intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial, razão pela qual merecem ser analisadas separadamente. Vejamo-las, em seguida.

3.1. Lei processual que altera regras de competênciaUm primeiro questionamento que pode surgir acerca do princípio do juiz natural

diz respeito à entrada em vigor de lei que altere a competência e sua aplicação imediata aos processos em andamento.

A despeito de posições doutrinárias em sentido diverso,12 tem prevalecido na jurisprudência o entendimento de que a modificação da competência criminal, decor-

11. Processo penal constitucional. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 127. Com entendimento semelhante: CUNHA, Leonardo José Carneiro. Jurisdição e competência. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-nais, 2008, p. 65. Não por outro motivo, concluiu o STJ que a designação de magistrado para julgar determinada ação penal viola o princípio do juiz natural, in verbis: “É ilícita a designação ad personam de magistrado para atuar especificamente em determinado processo. No caso, falta razoabilidade à justificativa apresentada pelo Tribunal de origem – grande acúmulo de serviços daquele que seria o substituto legal na ação – para proceder à designação casuística, especial, de magistrados para julgar o feito. As Portarias nº 1.623/2009 e 744/2010, do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, são incompatíveis com os regramentos constitucionalmente estabele-cidos. Ordem concedida a fim de anular todos os atos praticados pelos magistrados designados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Piauí para atuarem, especificamente, na ação penal em questão”. (STJ, 6ª Turma, HC 161.877/PI, Rel. Min. Celso Limongi – Desembargador convocado do TJ/SP –, j. 10/05/2011, DJe 15/06/2011).

12. Ao tratar da modificação da competência, antes atribuída à Justiça ordinária, e posteriormente transferida a tribunais especializados por dispositivos constitucionais, Ada Pellegrini Grinover (2000; p. 52) não vê como não estender a garantia do juiz natural à irretroatividade da competência constitucional, de modo que a fixação desta só poderia reger os casos futuros. Na mesma linha, Tourinho Filho, ao comentar a atribuição ao Júri dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, ainda que usando armamento militar (Lei nº 9.299/96), assevera que a competência da Justiça Militar, porque fixada ante facto, não podia ter sido deslocada para a Justiça Comum (Processo penal. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 70).

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rente de lei que a altere em razão da matéria, não viola o princípio do juiz natural, dado que, na Constituição Federal, esse primado não tem o mesmo alcance daquele previsto em constituições de países estrangeiros, que exigem seja o julgamento rea-lizado por juízo competente estabelecido em lei anterior aos fatos, tanto que o inciso LIII do art. 5º da Carta Magna somente assegurou o processo e julgamento frente a autoridade competente, sem exigir deva o juízo ser pré-constituído ao delito a ser julgado.

Para a jurisprudência, norma que altera competência tem natureza genuinamente processual. Logo, aplica-se a ela o princípio da aplicação imediata, constante do art. 2º do CPP: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Pela regra aí plasmada do tempus regit actum, entrando em vigor uma norma processual penal, tem esta aplicação imediata, o que, no entanto, não significa dizer que os atos processuais anteriormente praticados sejam inválidos. Afinal, foram praticados de acordo com a lei então vigente.

Em se tratando de lei processual que venha a alterar regras de competência (v.g., a Lei nº 9.299/96 passou a considerar crime comum o homicídio doloso cometido por militar contra civil, ainda que praticado em serviço), tem prevalecido na jurispru-dência o entendimento de que essa norma deve ter aplicação imediata aos processos em andamento, salvo se já houver sentença relativa ao mérito, hipótese em que o processo deve seguir na jurisdição em que ela foi prolatada, ressalvada a hipótese de supressão do Tribunal que deveria julgar o recurso.13

Em virtude do silêncio do Código de Processo Penal acerca do assunto, admite-se a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, que dispõe sobre a perpetuatio jurisdictionis em seu art. 87: “determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. A regra é que a ação termine perante o juiz que começou, salvo em três situações: a) extinção do órgão judiciário – é o que ocorreu com os extintos tribunais de alçada (EC nº 45/04, art. 4º); b) alteração da competência em razão da matéria – é exatamente o que produziu a Lei nº 9.299/96, ao suprimir da Justiça Militar a competência para processar e julgar homicídio doloso praticado por militar contra civil; c) alteração da competência hierárquica – imaginando-se cidadão processado perante juiz de 1ª instância que seja diplomado deputado federal, a competência passará automaticamente para o Supremo Tribunal Federal.14

13. STF, 2ª Turma, HC 76.510/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 15/05/1998 p. 44. Na mesma linha: STF, 1ª Turma, HC 78.320/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 28/05/1999. No mesmo contexto: STJ, 5ª Turma, HC 20.158/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 06/10/2003 p. 289.

14. No sentido da possibilidade de aplicação subsidiária do art. 87 do CPC no processo penal: STF – RHC 83.008/RJ – 2ª Turma – Rel. Min. Maurício Corrêa – DJ 27/06/2003 p. 55. E ainda: STF – HC 89.849/MG – 1ª Turma – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ 16/02/2007 p. 49.

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Portanto, em regra, pode-se afirmar que norma processual que altera a com-petência tem aplicação imediata, daí não emergindo qualquer violação ao princípio do juiz natural. No entanto, caso já haja sentença de mérito à época da alteração da competência de Justiça, ter-se-á prorrogação automática e superveniente da compe-tência da Justiça anterior, de modo que a atividade jurisdicional recursal posterior há de se basear na competência já disposta, firmada pela sentença de mérito proferida.

Não obstante, como adverte Roberto Luis Luchi Demo, muita atenção deve ser dispensada ao verdadeiro conteúdo dessa norma que alterou a competência.15 E isso porque, caso a norma de alteração de competência traga, em seu bojo, certa carga penal, e essa carga for prejudicial ao acusado (lex gravior), aí não se pode falar em aplicação imediata para fins de alteração da competência, na medida em que esse raciocínio poderia implicar em retroatividade da lei penal em prejuízo do acusado, contrariando o disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal. Isso ocorreu quando da entrada em vigor da Lei n.. 9.605/98, que tipificou algumas condutas anterior-mente previstas como contravenções penais (e, portanto, de competência da Justiça Estadual) como crimes ambientais, com pena mais grave: tendo as condutas narradas na denúncia ocorrido na vigência da Lei nº 4.177/65, que as tipificava como contra-venções penais, não se pode fazer retroagir a Lei nº 9.605/98, que as remete para o juízo federal.16

3.2. Convocação de Juízes de 1º grau de jurisdição para substituição de Desembargadores

Outro ponto relacionado ao princípio do juiz natural que tem gerado certa con-trovérsia diz respeito à convocação de juízes de 1º grau de jurisdição para substituir desembargadores junto aos Tribunais, porquanto tem sido razoavelmente comum que, quando um desembargador se afasta por período superior a 30 (trinta) dias, em razão de licença ou outro motivo, proceda o Tribunal à convocação de juízes de 1ª instância.

Inicialmente, importa analisarmos se há previsão legal para essa substituição de desembargadores, o que de fato ocorre. De acordo com o art. 118 da Lei Comple-mentar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), com redação dada pela Lei Complementar nº 54/86, em caso de vaga ou afastamento, por prazo superior a 30 (trinta) dias, de membro dos Tribunais Superiores, dos Tribunais Regionais, dos Tribunais de Justiça, poderão ser convocados Juízes, em Substituição, escolhidos por decisão da maioria absoluta do Tribunal respectivo, ou, se houver, de seu Órgão Especial. De acordo com o §1º do referido dispositivo, a convocação far-se-á mediante

15. Competência penal originária: uma perspectiva jurisprudencial crítica. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 118.

16. A propósito: “Tendo as condutas narradas na denúncia ocorrido na vigência da Lei 4.177/65, que as tipificava como contravenções penais, não se pode fazer retroagir a Lei 9605/98, que as remete para o juízo federal. Irretroatividade da lei mais gravosa. Conflito conhecido, declarando-se a competência do juízo comum esta-dual, o suscitado”. (STJ – CC 22.893/RJ – 3ª Seção – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJ 26/04/1999 p. 43).

Premissas Fundamentais e asPectos introdutórios RENATO BRASILEIRO DE LIMA .

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sorteio público dentre os Juízes da Comarca da Capital para os Tribunais de Justiça dos Estados (inciso III) e dentre os Juízes de Direito do Distrito Federal, para o Tribu-nal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (inciso IV). No âmbito da Justiça Federal, em caráter excepcional e quando o acúmulo de serviço o exigir,o art. 4º da Lei nº 9.788/99 também autoriza os Tribunais Regionais Federais a convocar Juízes Federais para auxiliar em Segundo Grau, nos termos da Resolução nº 51, de 31 de março de 2009, do Conselho da Justiça Federal. Há dispositivos legais semelhantes nos Regimentos Internos do Supremo (arts. 40 e 41) e do Superior Tribunal de Justiça (art. 56).

Para que essa convocação seja considerada válida, sem qualquer ofensa ao prin-cípio do juiz natural, é indispensável que haja a prefixação de qual será o juiz con-vocado, segundo critérios objetivos predeterminados. Daí por que, ao apreciar o Habeas Corpus nº 126.390/SP, a 5ª Turma do STJ concedeu a ordem para anular julgamento de apelação proferido por Tribunal a quo feito com inobservância das diretrizes da LC estadual nº 646/1990, que não permite convocar juízes de primeiro grau num sistema de voluntariado, para formar novas câmaras criminais mesmo diante de inúmeros recursos pendentes de julgamento.17

Discute-se na jurisprudência acerca da possibilidade de fixação desses critérios objetivos por intermédio dos Regimentos Internos dos Tribunais. Há precedente isolado do Supremo no sentido de que a convocação de juízes de 1º grau para substi-tuir desembargadores está subordinada ao princípio da reserva legal absoluta, impe-dindo o tratamento do tema por meio de Regimentos Internos.18 Posteriormente, no entanto, ao apreciar Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em face do art. 27 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que permitia que o juiz de 1º grau em substituição fosse indicado pelo desembargador substituído, a Suprema Corte concluiu que os Regimentos Internos dos Tribunais de Justiça podem dispor a respeito da convocação de juízes para substituição de desembargadores, em caso de vaga ou afastamento, por prazo superior a trinta dias, observado o disposto no art. 118 da LOMAN, Lei Complementar 35/79 (redação dada pela Lei Complementar 54/86). Daí por que foi declarada a inconstitucionalidade da norma regimental que estabelecia que o substituído poderia indicar seu substituto.19

Se o art. 118 da LOMAN determina que a substituição deve se dar mediante singela convocação de juízes, escolhidos por decisão da maioria absoluta do Tribunal ou, se houver, de seu Órgão Especial, afastados quaisquer critérios subjetivos, não se pode considerar válido dispositivo de Regimento Interno que permita ao Desembar-gador substituído indicar seu substituto para efeito de recrutamento. Em síntese, os

17. STJ, 5ª Turma, HC 126.390/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 14/05/2009. Na mesma linha: STJ, 3ª Seção, HC 108.425/SP, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 12/11/2008.

18. STF, 1ª Turma, HC 69.601/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18/12/1992.19. STF, Pleno, ADI 1.481/ES, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 04/06/2004.