prefacio de a queda do ceu

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O recado da mata Eduardo Viveiros de Castro Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, […] a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. Carlos Drummond de Andrade Enfim vem à luz, na elegante tradução de Beatriz Perrone-Moisés, a edição em português de A queda do céu. Cinco anos se passaram desde sua publicação em francês, na sexagenária e prestigiosa coleção Terre humaine, onde este livro brilha com uma intensidade talvez só comparável à do segundo volume da coleção, Tristes trópicos, 1 do qual, aliás, A queda do céu pode ser visto como uma variante forte, no sentido que a mitológica estrutural professada pelo autor de Tristes trópicos dá a essa noção. Ou, melhor ainda, o livro de Kopenawa e Albert é, relativamente a seu ilustre predecessor, um exemplo daquela ‘transformação canônica’ que Lévi-Strauss entendia ser o princípio dinâmico da mitopoese, a “dupla torção” pela qual se complicam (e se co-implicam) a necessidade semiótica e a contingência histórica, a razão analítica e a razão dialética. 2 Se isso torna A queda do céu muito diferente de Tristes trópicos, também o conecta estrategicamente com ele, e por diversos caminhos. Mas nenhum deles é circular; menos ainda é caminho batido, como nos casos de emulação ou de epigonia despertados por Tristes trópicos. A queda do céu, antes que meramente completando, ainda que com chave de ouro, o projeto aberto pela obra revolucionária de 1955 o da invenção de uma narrativa etnográfica ao mesmo tempo poética e filosófica, crítica e reflexiva — relança-o em uma vertiginosa trajetória espiral (uma espiral logarítmica, não arquimediana) 1. Lévi-Strauss 1955. 2. Ver o texto fundamental de Almeida 2008. (Neste prefácio, as aspas duplas indicam citações ou expressões criadas por outros autores, mencionados ou não, inclusive, bem entendido, Kopenawa e Albert; as aspas simples, exceto quando ‘embutidas’ em citações, indicam expressões aproximativas ou intenção irônica [‘scare quotes’] de minha parte.)

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Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro

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  • O recado da mata

    Eduardo Viveiros de Castro

    Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,

    [] a mquina do mundo, repelida,se foi miudamente recompondo,

    enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mos pensas.

    Carlos Drummond de Andrade

    Enfim vem luz, na elegante traduo de Beatriz Perrone-Moiss, a edio em portugus de A

    queda do cu. Cinco anos se passaram desde sua publicao em francs, na sexagenria e

    prestigiosa coleo Terre humaine, onde este livro brilha com uma intensidade talvez s

    comparvel do segundo volume da coleo, Tristes trpicos,1 do qual, alis, A queda do cu

    pode ser visto como uma variante forte, no sentido que a mitolgica estrutural professada pelo

    autor de Tristes trpicos d a essa noo. Ou, melhor ainda, o livro de Kopenawa e Albert ,

    relativamente a seu ilustre predecessor, um exemplo daquela transformao cannica que

    Lvi-Strauss entendia ser o princpio dinmico da mitopoese, a dupla toro pela qual se

    complicam (e se co-implicam) a necessidade semitica e a contingncia histrica, a razo

    analtica e a razo dialtica.2 Se isso torna A queda do cu muito diferente de Tristes trpicos,

    tambm o conecta estrategicamente com ele, e por diversos caminhos. Mas nenhum deles

    circular; menos ainda caminho batido, como nos casos de emulao ou de epigonia

    despertados por Tristes trpicos. A queda do cu, antes que meramente completando, ainda

    que com chave de ouro, o projeto aberto pela obra revolucionria de 1955 o da inveno

    de uma narrativa etnogrfica ao mesmo tempo potica e filosfica, crtica e reflexiva

    relana-o em uma vertiginosa trajetria espiral (uma espiral logartmica, no arquimediana)

    1.Lvi-Strauss 1955.2.Ver o texto fundamental de Almeida 2008. (Neste prefcio, as aspas duplas indicam citaes ou expresses criadas por outros autores, mencionados ou no, inclusive, bem entendido, Kopenawa e Albert; as aspas simples, exceto quando embutidas em citaes, indicam expresses aproximativas ou inteno irnica [scare quotes] de minha parte.)

  • que desloca, inverte, e renova o discurso da antropologia sobre os povos amerndios,

    redefinindo suas condies metodolgicas e pragmticas de enunciao. Caminhamos..

    Tardou, alguns diro, a publicao de A queda do cu em nosso pas,3 onde nasceu o

    autor principal, onde o livro foi quase inteiramente elaborado, e ao qual ele privilegiadamente

    se refere. Mas para uma obra de mais de 700 pginas, que levou vinte anos sendo gestada, que

    tem atrs de si trinta de convivncia entre os signatrios de um pacto etnogrfico (em cujas

    entrelinhas se firma um pacto xamnico) sem precedentes na histria da antropologia, e cerca

    de quarenta de contato do etnlogo-escritor com o povo do xam-narrador, cinco anos no

    chega a ser muito tempo. E a hora boa.

    Este um livro sobre o Brasil, sobre um Brasil decerto, ele ostensivamente sobre

    a trajetria existencial de Davi Kopenawa, onde o pensador e ativista poltico yanomami,

    falando a um antroplogo francs, discorre sobre a cultura ancestral e a histria recente de seu

    povo (situado em terras venezuelanas tanto quanto em brasileiras), explica a origem mtica e a

    dinmica invisvel do mundo, alm de descrever as caractersticas monstruosas da civilizao

    ocidental como um todo, e de prever um futuro funesto para o planeta mas, de um modo

    muito especial, ele um livro sobre ns, dirigido a ns, os brasileiros que no se consideram

    ndios. Pois com a A queda do cu mudam-se o nvel e os termos do dilogo pobre,

    espordico e fortemente desigual entre os povos indgenas e a maioria no-indgena de nosso

    pas, aquela composta pelo que Davi chama de Brancos (nap).4 Nele aprendemos algo de

    essencial sobre o estatuto ontolgico e antropolgico dessa maioria so espectros canibais

    que esqueceram suas origens e sua cultura , onde vive ela em altas e cintilantes casas de

    pedra amontoadas sobre um cho nu e estril, em uma terra fria e chuvosa sob um cu em

    chamas, e com o que ela sonha, assombrada por um desejo sem limites sonha com suas

    mercadorias venenosas e suas vs palavras traadas em peles de papel. Essa maioria, como eu

    disse, somos, entre outros, ns, os brasileiros legtimos, que falam o portugus como lngua

    3.Harvard University Press publicou a traduo em ingls, The Falling Sky, em 2013.4.O termo yanomami nap, originalmente utilizado para definir a condio relacional e mutvel de inimigo, passou a ter como referente prototpico os Brancos, i.e. os membros (de qualquer cor) daquelas sociedades nacionais que destruram a autonomia poltica e a suficincia econmica do povo nativo de referncia. O Outro sem mais, o inimigo por excelncia e por essncia, o Branco. Outras lnguas indgenas do pas conheceram deslocamentos anlogos, em que palavras designando o inimigo ou estrangeiro, e normalmente especificadas por determinativos distinguindo as diferentes etnias indgenas (ou comunidades da mesma etnia) em posio de hostilidade/alteridade, passaram a ser usadas sem maiores especificaes para designar o Branco, que passou assim a ser o Inimigo. A possibilidade de que esta sinonmia Branco=Inimigo=Outro contra-efetue uma identidade genrica ndio e uma sinonmia etnopoltica ndio=Parente=Eu algo explorado de modo varivel, instvel e, como se pode imaginar, problematicamente estratgico pelos povos indgenas (ver, p.ex. a reflexo irnica de Krenak 2015: 55-56).

  • materna, gostam de samba, novela e futebol, aspiram a ter um carro bem bacana, uma casa

    prpria na cidade e, quem sabe, uma fazenda com suas tantas cabeas de gado e seus hectares

    de soja, cana ou eucalipto. A maioria dessa maioria acha, alm disso, que vive num pas que

    vai pra frente, como cantava o jingle dos tempos daquela ditadura que imaginamos pertencer

    a um passado obsoleto.

    Do ponto de vista, ento, dos povos autctones cujas terras o Brasil incorporou, os

    brasileiros no-ndios to vaidosos como nos sintamos de nossa singularidade cultural

    perante a Europa ou os EUA, isso quando no nos envaidecemos justo do contrrio so

    apenas Brancos/inimigos como os demais nap, sejam estes portugueses, norte-americanos,

    franceses. Somos representantes quaisquer desse povo brbaro e extico proveniente de alm-

    mar, que espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta, de perceber que a

    mquina do mundo um ser vivo composto de incontveis seres vivos, um superorganismo

    constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardies invisveis, os xapiri,

    imagens espirituais do mundo que so a razo suficiente e a causa eficiente daquilo que

    chamamos Natureza em yanomami, hutukara , na qual os humanos estamos imersos por

    natureza (o pleonasmo se autojustifica). A alma e seus avatares leigos modernos, a cultura, a

    cincia e a tecnologia, no nos isentam nem nos ausentam deste comprometimento no

    desacoplvel com o mundo,5 at porque o mundo, segundo os Yanomami, um plenum

    anmico, e porque uma verdadeira cultura e uma tecnologia eficaz consistem no

    estabelecimento de uma relao atenta e cuidadosa com a natureza mtica das coisas6

    qualidade de que, justamente, os Brancos carecemos por completo. Pode-se dizer de ns,

    ento, o que o narrador diz dos maus caadores yanomami, aqueles que costumam guardar

    para si as presas que matam (e por isso os animais se furtam a eles) que apesar de terem os

    olhos abertos, no enxergam nada. Com efeito, se as profecias justificadamente pessimistas

    de Davi se concretizarem, s comearemos a enxergar alguma coisa quando no houver mais

    nada a ver. A ento poderemos, como o poeta, avaliar o que perde[mos].

    Uma expresso feliz de Patrice Maniglier, pela qual este filsofo define o que chamou

    de mais alta promessa da antropologia, a saber, devolver-nos uma imagem de ns mesmos na

    5.Para um documento que afirma precisamente o contrrio, e que vem assim servir de prova da estupidez incurvel dos Brancos ou pelo menos da frao mais agressiva de seu segmento modernizador veja-se o Manifesto ecomodernista (http://www.ecomodernism.org) lanado recentemente pelo Breakthrough Institute, um think tank anti-ambientalista e pr-nuclear californiano, onde se defende a viabilidade de um desacoplamento (decoupling) entre uma desejada hiper-acelerao tecnolgica e qualquer impacto ambiental. Tudo para maior glria de um capitalismo ps-industrial [?] e vibrante, como dizem os executivos do BI em outro texto (cf. Danowski e Viveiros de Castro 2014: 67).6.Expresso que consta do poema de CDA em epgrafe , A mquina do mundo.

  • qual no nos reconheamos7, ganha em A queda do cu um sentido simtrico e inverso ao

    sentido visado, o que, longe de desmentir, enriquece a definio com uma inesperada dobra

    irnica adicional. Impossvel, de fato, no nos reconhecermos nessa caricatura fielmente

    disforme de ns mesmos desenhada, para nosso escarmento, por esse ns outro, esse outro

    que entretanto insiste em nos advertir que somos, ao fim e ao cabo (mas talvez apenas ao fim e

    ao cabo), todos os mesmos, uma vez que, quando a floresta acabar e as entranhas da terra

    tiverem sido completamente destroadas pelas mquinas devoradoras de minrio, as

    fundaes do cosmos ruiro e o cu desabar terrvel sobre todos os viventes. Isso j

    aconteceu antes, lembra o narrador. O que o modo ndio de dizer que acontecer de novo.

    ***

    A queda do cu um acontecimento cientfico incontestvel, que levar, suspeito, alguns anos

    para ser devidamente assimilado pela comunidade antropolgica. Mas espero que todos os

    seus leitores saibam identificar de imediato o acontecimento poltico e espiritual muito mais

    amplo, e de muito grave significao, que ele representa. Chegou a hora, em suma; temos a

    obrigao de levar absolutamente a srio o que dizem os ndios pela voz de Davi Kopenawa

    os ndios e todos os demais povos menores do planeta, as minorias extra-nacionais que

    ainda resistem total dissoluo pelo liquidificador modernizante do Ocidente. Para os

    brasileiros, como para as outras nacionalidades do Novo Mundo criadas s custas do

    genocdio americano e da escravido africana, tal obrigao se impe com fora redobrada.

    Pois passamos tempo demais com o esprito voltado para ns mesmos, embrutecidos pelos

    mesmos velhos sonhos de cobia e conquista e imprio vindos nas caravelas, com a cabea

    cada vez mais cheia de esquecimento,8 imersa em um tenebroso vazio existencial, s de raro

    7. [N]ous renvoyer de nous-mmes une image o nous ne nous reconnaissons pas Maniglier 2005: 773-74.8.Esta uma expresso recorrente nos discursos de Kopenawa para designar a deficincia mental- espiritual mais marcante dos Brancos. Recordo que Lvi-Strauss deu enorme importncia ao motivo do esquecimento na mitologia indgena, a ponto de defini-lo como uma verdadeira categoria do pensamento mtico (L.-S. 1973: 231; 1983: 253). Ao longo do livro, Davi repassa por diversas daquelas patologias da comunicao que o autor das Mitolgicas identifica como centrais no dramatismo dos mitos, todas elas, no caso presente, afetando privilegiadamente os Brancos olvido, surdez, cegueira, lngua de espectro (incompreensvel), palavras mentirosas, narcisismo metafsico. Mas estas patologias semiticas, justo como as patologias biolgicas xawara, podem acabar por contaminar aqueles Yanomami que, cegos ao mundo dos xapiri, passam a desejar as mercadorias dos Brancos e literalmente perdem o rumo, pois seu pensamento se torna emaranhado e sombrio como as trilhas ruins da floresta (ver o pargrafo final do captulo XIV).

  • em raro iluminado, ao longo de nossa pouco gloriosa histria, por lampejos de lucidez poltica

    e potica. Davi Kopenawa ajuda-nos a pr no devido lugar as famosas ideias fora do lugar,

    porque o seu um discurso sobre o lugar, e porque seu enunciador sabe qual , onde , o que

    o seu lugar. Hora, ento, de nos confrontarmos com as ideias desse lugar que tomamos a

    ferro e a fogo dos indgenas, e declaramos nosso sem o menor pudor; ideias que constituem,

    antes de mais nada, uma teoria global do lugar, gerada localmente pelos povos indgenas, no

    sentido concreto e etimolgico desta ltima palavra.9 Uma teoria sobre o que estar em seu

    lugar, no mundo como casa, abrigo e ambiente, oikos, ou, para usarmos os conceitos

    yanomami, hutukara e urihi a: o mundo como floresta fecunda, transbordante de vida, a terra

    como um ser que tem corao e respira (p. ??? [epgrafe do cap. XXIII]), no como um

    depsito de recursos escassos ocultos nas profundezas de um subsolo txico massas

    minerais que foram depositadas no inframundo pelo demiurgo para serem deixadas l, pois so

    como as fundaes, os sustentculos do cu ; mas o mundo tambm como aquela outra

    terra, aquele suprassolo celeste que sustenta as numerosas moradas transparentes dos

    espritos, e no como esse cu de ningum, esse serto csmico que os Brancos sonham

    incurveis que so em conquistar e colonizar. Por isso Davi Kopenawa diz que a ideia-coisa

    ecologiasempre fez parte de sua teoria-prxis do lugar:

    Na floresta, a ecologia somos ns, os humanos. Mas so tambm, tanto quanto ns, os xapiri, os animais, as rvores, os rios, os peixes, o cu, a chuva, o vento e o sol! tudo o que veio existncia na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda no tem cerca. As palavras da ecologia so nossas antigas palavras, as que Omama [o demiurgo yanomami] deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, no ? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, esto agora comeando a entender. por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que so a gente da ecologia porque esto preocupados, porque sua terra est ficando cada vez mais quente. [] Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e l crescemos. (infra p. ???. Eu sublinho)

    O mundo visto ento melhor, vivido a partir daqui, do centro da ecologia, do

    corao indgena dessa vasta e ilimitada Terra cosmopoltica onde se distribuem

    nomadologicamente as inumerveis gentes terranas,10 e no como uma esfera abstrata, um

    9.Indgena ETIM lat. indigena,, natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe prpria... (Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, s.v. Eu sublinho) Essa propriedade, permito-me interpretar, um atributo imanente ao sujeito, no uma relao extrnseca com um objeto aproprivel. No so poucos os povos indgenas do mundo a afirmarem que a terra no lhes pertence, pois so eles que pertencem terra.10.O conceito de nomadologia tomado aqui de Deleuze e Guattari (1997 [1980]: cap. 12), que interpretam a raiz grega -nem (de onde deriva o polissmico nomos) em sentido rigorosamente antipodal

  • globo visto de fora, cercado e dividido em territrios administrados pelos Estados nacionais,

    puras da alucinao euro-antropocntrica conhecida pelos nomes de soberania, domnio

    eminente, projeo geopoltica e fantasmagorias do mesmo quilate. Talvez seja mesmo

    chegada a hora de concluir que vivemos o fim de uma histria, aquela do Ocidente, a histria

    de um mundo partilhado e imperialmente apropriado pelas potncias europeias, suas antigas

    colnias americanas e seus mulos asiticos contemporneos. Caberia-nos portanto constatar,

    e tirar da as devidas consequncias, que o nacional no existe mais; s h o local e o

    mundial.11 Dir-se- que tal declarao conversa de europeu decadente, fantasia de

    localista romntico, mantra de anarquista irresponsvel, isso se no for, Deus nos proteja, um

    arroto do libertarianismo americana, aquele sinistro fascismo supremacista do indviduo

    macho branco armado que grassa em nosso Grande Irmo do Norte. O que cabe a ns

    brasileiros, dizemos com a cabea erguida, construir a Ptria Socialista do Porvir, o

    prometido pas de classe mdia e feliz, sustentado por um Estado forte capaz de defend-lo

    contra a cobia internacional,12 ou, para sermos proativos, capaz de faz-lo ingressar no

    clube seleto dos patres deste mundo. Mas, se o nacional vai de fato aguardemos

    deixando de existir l fora (s que nunca houve l fora, pois o aqui dentro sempre foi, e

    continua sendo, uma das dependncias do l fora), provvel que o conceito do nacional

    acabe mudando mundialmente de lugar, isto , de sentido, e isso at mesmo aqui dentro. No

    mnimo, talvez comecemos a nos dar conta de que se continuarmos a destruir obtusamente o

    local, este local do mundo que chamamos de nosso mas quem detm, para alm do mero

    direito pronominal, o fato brutalmente proprietarial deste possessivo?13 , no sobraro nem

    fundos nem fundamentos para construirmos qualquer nacional que seja, anacrnico ou

    futurista. O Brasil grande mas o mundo pequeno.

    A queda do cu rico em lies, entre outras, sobre a incompetncia eficaz, a

    irrelevncia maligna, o ufanismo bufo da teoria e prtica da governamentalidade nacional,

    esse nomos antinmico que estria e devasta simultaneamente um espao que ele imagina

    instituir quando , na verdade, literalmente suportado por ele. O Estado nacional? Muito bem,

    muito bom; mas muito antes dele, h os espritos invisveis da floresta, as fundaes metlicas

    ao consagrado por Carl Schmitt, ou seja, como distribuio-disperso dos homens e demais viventes sobre a terra, antes que como distribuio-repartio da terra entre os homens com seus rebanhos (ver Sibertin-Blanc 2013) e portanto, analogiza Schmitt, como repartio da Terra inteira entre os Estados-nao europeus. Para o conceito de terrano, tomado de Bruno Latour, ver a exposio de Danowski e Viveiros de Castro 2014.11.Comit Invisvel 2015.12.Sem abrir mo de algumas parcerias estratgicas, claro. La Cina vicina...13.Ver Quem so os proprietrios do Brasil 2015.

  • da terra, a fumaa diablica das epidemias e a doena degenerativa do cu e nada disso

    tem fronteira, porteira ou bandeira. Os xams e seus xapiri14 no carecem de passaporte nem

    de visto dado por gente; so eles que vem, se forem bem vistos pela onividente gente invisvel

    da floresta... O Brasil? O Brasil, na imagem to bela e melanclica de Oswald de Andrade,

    j foi uma repblica federativa cheia de rvores e gente dizendo adeus. Hoje, ele est mais

    para uma corporao empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgnicas e

    agrotxicas, crivada de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam

    centenas de milhes de toneladas de minrio para exportao, coberta por uma espessa

    nuvem de petrleo que sufoca nossas cidades enquanto trombeteamos recordes na produo

    automotiva, entupida por milhares de quilmetros de rios barrados para gerar uma energia de

    duvidosssima limpeza e ainda mais questionvel destinao, devastada por extenses de

    floresta e cerrado, grandes como pases, derrubadas para dar pasto a duzentos e onze milhes

    de bois (hoje mais numerosos que nossa populao de humanos).15 Enquanto isso, a gente...

    Bem, a gente continua dizendo adeus s rvores. Adeus a elas e repblica, pelo menos

    em seu sentido original de res publica, de coisa e causa do povo.

    ***

    O depoimento-profecia de Kopenawa aparece, assim, em boa hora; porque a hora, claro est,

    pssima. Neste momento, nesta repblica, neste governo, assistimos a uma concertada

    maquinao poltica que tem como alvo as reas de preservao ambiental, as comunidades

    quilombolas, as reservas extrativistas e em especial os territrios indgenas. Seu objetivo

    consumar a liberao (a desproteo jurdica) do mximo possvel de terras pblicas ou, mais

    geralmente, de todos aqueles espaos sob regimes tradicionais ou populares de

    territorializao que se mantm fora do circuito imediato do mercado capitalista e da lgica da

    propriedade privada, de modo a tornar produtivas essas terras, isto , lucrativas para seus

    pretendentes, os grandes empresrios do agronegcio, da minerao e da especulao

    fundiria, vrios deles aboletados nas poltronas do Congresso, muitos apenas pagando seus

    paus-mandados para ali operarem. Na verdade, so os Trs Poderes da nossa repblica

    14.As noes so praticamente sinnimas em yanomami: xam se diz xapirit thp, gente-esprito.15. Com disse recentemente Davi Kopenawa em um encontro no Rio de Janeiro, o governo quer transformar o Brasil em um campo de futebol. Somos o segundo maior produtor de carne bovina do planeta, perdendo apenas para a ndia, pas que parece estar se convertendo rapidamente de uma religio a outra no que tange s suas vacas, a saber, passando da venerao hindusta ao massacre capitalista.

  • federativa que vm costurando uma ofensiva criminosa contra os direitos indgenas,16

    conquistados a duras penas ao longo da dcada entre 1978, ano do Projeto de emancipao

    da ditadura (o qual deu espetacularmente com os burros ngua), e 1988, ano da Constituio

    cidad que reconheceu os direitos originrios dos povos indgenas sobre suas terras,

    consagrando e perenizando o instituto fundamental do indigenato. Esse acolhimento dos

    ndios como uma categoria sociocultural diferenciada de pleno e permanente direito dentro da

    nao suscitou uma feroz determinao retaliativa por parte do sistema do latifndio, que hoje

    ocupa vrios ministrios, controla o Congresso e possui uma legio de serviais no Judicirio.

    Chovem, de todas as instncias e nveis dos poderes constitudos, tentativas de desfigurar a

    Constituio que os constituiu, por meio de projetos legislativos, portarias executivas e

    decises tribunalcias17 que convergem no propsito de extinguir o esprito dos artigos da Lei

    Maior que garantem os direitos indgenas.18

    O presente governo, e refiro-me aqui ao Executivo, desde sua comandante at seus

    ordenanas ministeriais, vem-se mostrando o de pior desempenho, desde a nossa tmida

    redemocratizao, no tocante ao respeito a esses direitos, agravando a j pssima

    administrao anterior sob a mesma gerncia: procedimentos de demarcao e homologao

    de terras indgenas praticamente nulos; polticas de sade mais que omissas, desastrosas para

    as comunidades indgenas; uma indiferena quase indistinguvel da cumplicidade diante do

    16.Ver a entrevista de Henyo Barreto a Clarissa Presotti, Trs Poderes contra os direitos indgenas, in http://www.portalambiental.org.br/pa/noticias?id=134.17.Vide a famigerada lista das condicionantes e a contestao do princpio do indigenato pela tese do marco temporal, emergidas da deciso pelo STF relativa ao caso da terra Raposa-Serra do Sol (Roraima). Ambas, condicionantes e tese, embora de questionvel efeito vinculante, j tiveram um preocupante impacto anti-indgena nas diversas instncias do Judicirio. Ver tambm Capiberibe e Bonilla 2014 para uma cobertura exaustiva, mas j desatualizada (pois a ofensiva uma Blitzkrieg), dos projetos de lei ou emenda constitucional em tramitao no Congresso, cujo objetivo reduzir os direitos indgenas, quando no reverter seus efeitos j consolidados.18.H quem entenda ou defenda, estou entre eles, de que o estatuto prprio dos ndios seria bem mais que o de uma categoria sociocultural especial de cidado. Ele definiria uma multiplicidade poltica diferenciada, inserida por autoconsentimento em um Estado com vocao plurinacional. E se formos aos finalmente, como se diz, suspeito que a viso oficial antiga (ainda viva na cabea de tanta gente), pr-Constituio de 1988, sobre os ndios no Brasil segundo a qual a condio indgena era transitria, votada inexoravelmente assimilao pela comunho nacional, ao passo que esta ltima era subentendida ser permanente, em outras palavras, eterna , esta viso poder ser objetivamente virada de ponta-cabea em um futuro no muito remoto. Pois no impossvel que os povos indgenas, com sua mquina territorial primitiva que antecede de milnios ao aparelho de captura dos Estados nacionais implantados nas Amricas, perdurem aps o colapso de muitos, seno de todos, nossos orgulhosos Entes Soberanos, em um mundo que promete ser materialmente muito diferente daquele em que vivemos hoje o qual, como se sabe, foi construdo graas invaso, ao saque e limpeza tnica das Amricas.

  • genocdio praticado continuadamente e s escncaras sobre os Guarani-Kaiow, ou

    periodicamente e por descuido sobre os Yanomami e outros povos nativos, bem como diante

    do assassinato metdico de lideranas indgenas e ambientalistas pelo pas afora quesito no

    qual o Brasil , como se sabe, campeo mundial.

    Veja-se por fim, mas no por menos lamentvel, a jia da coroa da suprema

    mandatria da repblica, a saber, a construo a toque de caixa, por mega-empreiteiras de

    capital privado a servio do poder pblico e/ou vice-versa, ao arrepio insolente da legislao e

    s custas de financiamentos de dimenses obscenas, feitos com o chamado dinheiro do povo,

    de dezenas de hidreltricas na bacia amaznica, que traro gravssimos danos vida de

    centenas de povos indgenas e de milhares de comunidades tradicionais19 para no falarmos

    nas dezenas de milhares20 de outras espcies de habitantes da floresta, que vivem nela, dela e

    com ela; que so, enfim, a floresta ela prpria, o macrobioma ou megarrizoma autotrfico que

    cobre um tero da Amrica do Sul, e cuja estrutura lgico-metafsica, se me permitem a

    expresso, se encontra claramente exposta por Kopenawa em A queda do cu. Mas de que

    vale tudo isso, perante as leis inexorveis da Economia Mundial e o objetivo supremo do

    Progresso da Ptria? A entropia crescente se transfigura dialeticamente em antropia triunfante.

    E ainda se diz que so os ndios que crem em coisas impossveis.

    Em suma, o que a ditadura empresarial-militar no conseguiu arrasar, a coalizo

    comandada pelo Partido dos ...Trabalhadores! vai destruindo, com eficincia estarrecedora.

    Seu instrumento material para tanto so as mesmas foras poltico-econmicas que apoiaram e

    financiaram o projeto de poder da ditadura. Tal eficincia destrutiva, note-se bem, anda longe

    19.Chamam-se populaes tradicionais (ribeirinhas, caboclas), quelas comunidades camponesas e extrativistas da bacia amaznica cuja conscincia da relao com os povos indgenas que as precederam parece ter sido, em alguns casos, abolida. A cultura trazida pelos imigrantes brancos (de origem principalmente nordestina) que se fundiram com o substrato autctone recalcou toda memria nativa e se orientou mimeticamente para o Brasil oficial. Na maioria dos casos, porm, a relao apenas entrou em situao de latncia, exprimindo-se vestigialmente por automatismos prticos e idiomatismos simblicos. Essa aparente perda de conscincia, assim, tem-se mostrando cada vez mais frequentemente como sendo no tanto uma ruptura definitiva mas antes um longo desmaio uma espcie de coma tnico do qual a Amaznia cabocla comea a despertar, como atesta o fato de que, hoje, apenas no Mdio Solimes, cerca de duzentas comunidades tradicionais reivindicam sua passagem para indgena, isto , sua condio de titulares dos direitos reconhecidos no artigo 231 da Constituio Federal (Deborah Lima 2015 [com.pess.], citando dados de Rafael Barbi para os rios Copac, Tef, Uarini, Juta, Caiamb e Mineru; as Reservas de Mamirau e Aman respondem por 50 comunidades deste total). O fenmeno geral no Brasil profundo, e parece ainda mais paradoxal quando se constata que ele vai se tornando mais intenso medida que este Brasil profundo vem superficie, isto , se moderniza, inserindo-se nas redes por onde circulam os fluxos semitico-materiais que atravessam o planeta, do dinheiro internet.20. Ou seriam centenas de milhares? Sequer sabemos ao certo quantas espcies existem e quantas vo desexistindo na regio.

  • da destruio criadora marxista e schumpeteriana, valha o que esta ainda valer nos sombrios

    tempos que correm. No h absolutamente nada de criador, e menos ainda de criativo, no que

    a classe dominante e seu rgo executivo fazem na Amaznia. O que falta em inteligncia e

    descortino sobra em ganncia e violncia.

    As invases das terras dos Yanomami por garimpeiros e suas consequncias em

    termos de epidemias, estupros, assassinatos, envenenamento dos rios, esgotamento da caa,

    destruio das bases materiais e dos fundamentos morais da economia indgena se sucedem

    com montona frequncia, seguindo a oscilao das cotaes do ouro e outros minerais

    preciosos no mercado mundial. No dia mesmo em que escrevo este pargrafo (7 de maio de

    2015), leio a notcia de que uma organizao criminosa de extrao de ouro em territrio

    yanomami, que movimentou cerca de um bilho de reais nos ltimos dois anos, foi

    desmantelada pela Polcia Federal (em um acesso indito de eficincia que deve ter l seus

    motivos). O esquema tinha a participao de servidores pblicos locais entre eles,

    funcionrios da Funai , intermediao de joalherias das grandes cidades da Amaznia, e

    financiamento por empresrios do ramo localizados, principalmente, em So Paulo.21 Davi

    Kopenawa vem sendo ameaado repetidamente de morte, desde pelo menos 2014, por ter

    denunciado a situao. E como se ler neste livro (ver especialmente o cap. XV), foi sua

    consternao atnita ao testemunhar a sucesso de catstrofes desencadeadas pela corrida do

    ouro na terra Yanomami, entre os anos 1975 e 1990 desde a construo mal-inacabada da

    rodovia Perimetral Norte, na primeira metade da dcada de 1970, at a macia invaso

    garimpeira, estimulada pelos militares, a partir da implantao do Projeto Calha Norte no

    Governo Sarney, em 198522 foram essa raiva e essa perplexidade, transformados em

    convico militante,23 que levaram Kopenawa a se engajar na dupla posio de xam e de

    diplomata (trata-se, como veremos, de uma s e mesma posio). Ele inverteu assim a

    polaridade de sua funo de intrprete a servio dos Brancos, que desempenhou por algum

    21.Fonte: http://amazoniareal.com.br/pf-desarticula-organizacao-criminosa-de-extracao-de-ouro-na-reserva-yanomami/.22. Lembremos ainda que, em 1987-89, com a transio para nossa plena democracia praticamente completada, os militares interditavam formalmente o territrio Yanomami aos antroplogos e outros pesquisadores, enquanto facilitavam a entrada dos garimpeiros.23.Ao ver os cadveres sendo arrancados da terra, tambm eu chorei. Pensei, com tristeza e raiva: O ouro no passa de poeira brilhante na lama. No entanto, os brancos so capazes de matar por ele! Quantos mais dos nossos vo assassinar assim? E depois, suas fumaas de epidemia vo comer os que restarem, at o ltimo? Querem que desapareamos todos da floresta? A partir daquele momento, meu pensamento ficou realmente firme. Entendi a que ponto os brancos que querem nossa terra so seres malficos. Sem isso, talvez tivesse continuado como muitos dos nossos que, na ignorncia, fazem amizade com eles apenas para pedir arroz, biscoitos e cartuchos! (infra, pp. ???. Eu sublinho.)

  • tempo como funcionrio da Funai, para se tornar o intrprete e o defensor permanente de seu

    povo contra os Brancos, como descreve perspicazmente Albert.24

    O sistema do garimpo semelhante ao do narcotrfico, e, em ltima anlise, ttica

    geopoltica do colonialismo em geral: o servio sujo feito por homens miserveis, violentos e

    desesperados, mas quem financia e controla o dispositivo, ficando naturalmente com o lucro,

    est a salvo e confortvel bem longe do front, protegido por imunidades as mais diversas. No

    caso do garimpo nos Yanomami, o dispositivo, como de notrio conhecimento nos meios

    especializados, envolve polticos importantes de Roraima, alguns deles defensores destacados,

    no Congresso, de reformas liberalizantes da legislao minerria relativa s terras indgenas.

    Esses prceres no aparecem na notcia sobre o desmantelo da operao criminosa mais

    recente. Duvido que apaream. Quem sabe, sequer existam. O povo inventa muito...

    Mas no temos a exclusividade do ruim; nossa estupidez etnocida, ecocida, e em

    ltima anlise suicida, no sequer original. A concorrncia internacional fortssima. O

    diagnstico e o prognstico contidos em A queda do cu no concernem apenas aos

    brasileiros. Neste momento, assistimos a uma mudana do equilbrio termodinmico global

    sem precedentes nos ltimos 11 mil anos da histria do planeta, e, associada a ela, a uma

    inquietao geopoltica indita na histria humana se no em intensidade (ainda),

    certamente em extenso, na medida em que ela afeta literalmente todo (o) mundo. Neste

    momento, portanto, nada mais apropriado que venha dos cafunds do mundo, dessa

    Amaznia indgena que ainda vai resistindo, mesmo combalida, a sucessivos assaltos; que

    venha, ento, dos Yanomami, uma mensagem, uma profecia, um recado da mata alertando

    para a traio que estamos cometendo contra nossos conterrneos nossos co-terranos,

    nossos co-viventes assim como contra as prximas geraes humanas; contra ns mesmos,

    portanto. O que lemos em A queda do cu a primeira tentativa sistemtica de antropologia

    simtrica, ou contra-antropologia,25 do Antropoceno, a poca geolgica atual que, na

    24.Alm de toda a massa de informaes e esclarecimentos que se encontram dispersos, ou antes, organizados no minucioso aparelho de notas, podemos ler nos anexos finais do livro, compostos por Bruce Albert, um resumo conciso da histria de vida de Davi Kopenawa e da interao do povo Yanomami com os diversos agentes da civilizao que os assedia, dos missionrios americanos da New Tribes Mission at os funcionrios da Funai, da malfadada Perimetral Norte at as sucessivas invases garimpeiras. Os nmeros registrados pelo autor de invasores brancos, de mortos ndios, de terras arrasadas so assustadores; deixo ao leitor a tarefa de constat-los. 25. Falo em antropologia simtrica em sentido prximo mas no idntico quele em que Bruno Latour (1994) emprega este conceito. Poderia tambm ter convocado a noo de antropologia reversa de Roy Wagner (2010), que se aplicaria bastante bem ao ecologismo xamnico de Kopenawa. Albert fala em uma contra-antropologia histrica do mundo dos brancos (infra p. ???) contida na narrativa de Davi, em sentido talvez anlogo quele que proponho em Mtaphysiques cannibales, quando caracterizo o perspectivismo indgena como uma contra-antropologia multinaturalista (Viveiros de Castro 2009: 61).

  • opinio crescentemente consensual dos especialistas, sucedeu o Holoceno, e na qual os

    efeitos da atividade humana entenda-se, a economia industrial baseada na energia fssil e

    no consumo exponencialmente crescente de espao, tempo e matrias primas adquiriram a

    dimenso de uma fora fsica dominante no planeta, ao par do vulcanismo e dos movimentos

    tectnicos. Ao mesmo tempo uma explicao do mundo segundo uma outra cosmologia e

    uma caracterizao dos Brancos segundo uma outra antropologia (uma contra-antropologia), A

    queda do cu entrelaa estes dois fios expositivos para chegar concluso de uma iminncia

    da destruio do mundo, levada a cabo pela civilizao que se julga a delcia do gnero

    humano essa gente que, liberta de toda superstio retrgrada e de todo animismo

    primitivo, s jura pela santssima trindade do Estado, do Mercado e da Cincia,

    respectivamente o Pai, o Filho e o Esprito Santo da teologia modernista.26 Tal credo fantico,

    de resto, costumeiramente empurrado goela baixo dos ndios por um estranho instrumento,

    ao mesmo tempo arcaico e modernizador, o Teosi (Deus) dos missionrios evanglicos norte-

    americanos que Davi conheceu to bem, esses insuportveis operadores de telemarketing do

    Capital.

    Um outra razo para saudarmos a boa hora em que A queda do cu se torna acessvel

    ao leitorado brasileiro que ele vem compensar, melhor, desmoralizar a apario por aqui do

    ltimo rebento de um personagem lamentvel da antropologia amaznica. Refiro-me ao livro

    recente de Napoleon Chagnon, protagonista de episdios controversos da histria da relao

    entre os Yanomami e a cincia ocidental, dos quais o mnimo que se pode dizer que certos

    protocolos ticos bsicos da pesquisa foram ali violados. Como o sensacionalismo, a burrice

    reacionria e o preconceito racista vendem bem, o livro de Chagnon, publicado nos EUA em

    2013, no demorou a ser traduzido no Brasil e posicionado com a devida fanfarra pela

    empresa responsvel.27 As reminiscncias de Chagnon, antroplogo que, ao contrrio do co-

    autor de A queda do cu, cessou todo contato relevante com os Yanomami j l vo dcadas,

    consistem essencialmente em uma longa e ressentida autojustificao, um acerto de contas

    cheio de acusaes de esquerdismo contra seus crticos, e em uma reapresentao

    salmodiada de seus dogmas tericos, cuja supostas evidncias etnogrficas e estatsticas foram

    refutada por uma quantidade de pesquisadores. Campeo de uma das verses menos

    sofisticadas da sociobiologia humana, disciplina (?) que no chega a impressionar, em geral,

    nem pela sofisticao terica nem pela fecundidade de suas conjeturas, Chagnon difundiu

    uma imagem dos Yanomami como povo feroz (ttulo de seu livro mais famoso), uma tribo de

    26.Viveiros de Castro 2011: 318.27.A editora do livro de Chagnon pertence ao grupo Folha, que edita o jornal Folha de So Paulo. O mesmo encontra-se venda no site on-line do jornal. No o referimos na bibliografia deste prefcio por motivos de higiene.

  • gente suja, primitiva e violenta, verdadeiros figurantes de um Grand-Guignol hobbesiano. Tal

    clich etnocntrico foi repetidas vezes usado contra os Yanomami pelos muitos agentes dos

    Brancos burocratas, missionrios, polticos interessados em lhes roubar a terra e/ou as

    almas. O pesquisador norte-americano defende, entre outras ideias bizarras, a tese de que o

    povo de Davi Kopenawa constitudo por autmatos genticos movidos pelo imperativo de

    maximizao do potencial reprodutivo dos grandes matadores, os homens que teriam na sua

    conta o maior nmero de inimigos mortos em combate. Isto foi demonstrado ser um equvoco

    grotesco de interpretao das prticas guerreiras yanomami, diretamente ligadas no a

    condicionamentos genticos, mas a um sistema sociopoltico sofisticado e a um dispositivo

    ritual funerrio de forte densidade simblica, ambos por sua vez associados a uma viso da

    vida e da morte, do espao e do tempo, da fisiologia humana e da escatologia csmica da qual

    podemos ter uma ideia lendo a esplndida exposio feita em diversos captulos de A queda

    do cu.28 Os livros de Chagnon so muito populares nos cursos de introduo antropologia

    das universidades dos EUA no por acaso, j que seus Yanomami se parecem muito mais

    com certos modelos masculinos dominantes naquele pas que com os ndios homnimos. O

    autor tornou-se tambm uma espcie de mascote da vertente mais obtusamente cientificista

    (no confundir com cientfica) da academia norte-americana, onde, entre defensores da Big

    Science e saudosistas da Guerra Fria, pontificam psicossociobilogos de credenciais duvidosas,

    vulgarizadores especializados na distoro da teoria darwinista de modo a transform-la em

    uma apologia do individualismo rugged, uma justificao da dominao masculina e, mais ou

    menos disfaradamente, do racismo. Resta-nos esperar que o presente livro de Kopenawa e

    Albert, j traduzido nos EUA, possa servir de antdoto a esse festival de boalidade reacionria.

    E que esta edio brasileira dificulte um pouco sua proliferao por aqui, no pas dos Ponds,

    dos Narloch, dos Reinaldos Azevedos e dos Rodrigos Constantinos.

    ***

    A queda do cu ser um divisor de guas, como eu j disse, na relao intelectual e poltica

    entre ndios e no ndios nas Amricas. Verdade que no faltam livros de memrias indgenas,

    no sentido lato ou estrito do termo, tanto auto- como heterobiografias, especialmente de

    28.O leitor de formao ou vocao antropolgica no pode deixar de completar a exposio de Davi Kopenawa por um estudo da tese indita de Bruce Albert (1985) sobre a organizao social e ritual dos Yanomami sul-orientais, com foco no complexo funerrio e na teoria da periodicidade fisiolgica, sociolgica e escatolgica nele implicada.

  • membros dos povos situados na Amrica do Norte.29 Os prprios compatriotas de Davi

    Kopenawa contam com um relato autobiogrfico importante, o de Helena Valero, uma jovem

    do povo Bar raptada por uma comunidade dos Yanomami em 1936, junto aos quais viveu por

    vrios anos.30 Registrem-se ainda os vrios depoimentos preciosos que se vm acumulando,

    como os relatos que o Instituto Socioambiental publicou sobre as vises indgenas a respeito

    da origem e natureza dos Brancos (Ricardo, org., 2000), ou o recentssimo livro de entrevistas

    de Ailton Krenak (2015), outro destacado lder e pensador indgena, cuja trajetria biogrfica

    apresenta diferenas significativas em relao de Kopenawa, o que no os impediu de

    formarem lado a lado na mesma frente de combate durante as ltimas dcadas.

    Mas A Queda do Cu um objeto indito, compsito e complexo, quase nico em

    seu gnero. Pois ele , ao mesmo tempo: uma biografia singular de um indivduo excepcional,

    um sobrevivente indgena que viveu vrios anos em contato com os Brancos at reincorporar-

    se a seu povo e decidir tornar-se xam; uma descrio detalhada dos fundamentos potico-

    metafisicos de uma viso do mundo da qual s agora comeamos a reconhecer a sabedoria;

    uma defesa apaixonada do direito existncia de um povo nativo, que vai sendo engolido por

    uma mquina civilizacional incomensuravelmente mais poderosa; e, finalmente, uma contra-

    antropologia arguta e sarcstica dos Brancos, o povo da mercadoria31, e de sua relao

    doentia com a Terra conformando um discurso que Albert (1993) caracterizou,

    lapidarmente, como uma crtica xamnica da economia poltica da natureza.

    O livro se destaca de seus aparentes congneres, antes de mais nada, pela densidade e

    solidez inauditas de seu contexto de elaborao, que ps frente a frente, em um dilogo

    entrebiogrfico que tambm a histria de um projeto poltico convergente, um pensador

    indgena com uma longa e dolorosa experincia pragmtica (mas tambm intelectual) do

    mundo dos Brancos, observador sagaz de nossas obsesses e carncias, e um antroplogo com

    uma longa experincia intelectual (mas tambm prtica, e no isenta de dificuldades) do

    mundo dos Yanomami, autor que chegou a esta obra a quatro mos j de posse de um saber

    etnogrfico que conta entre as mais importantes contribuies ao estudo dos povos

    amaznicos, e cuja biografia quase to anmala, em sua recusa a se deixar capturar pela

    29.Vrias dessas biografias de ndios norte-americanos esto publicadas na coleo Terre Humaine. Na verdade (ver Calavia 2012, nota 4), os testemunhos autobiogrficos provenientes de povos colonizados antecedem de muito a antropologia como disciplina, e o mesmo se diga das auto-etnografias (pense-se em Guamn Poma de Ayala, por exemplo).30. Valero 1984. A histria de Helena Valero foi contada pela primeira vez, de forma algo truncada, em um livro publicado em 1965, em italiano, pelo mdico Ettore Biocca. A verso francesa do livro de Biocca foi publicada na coleo Terre Humaine em 1968.31. Que melhor nome se poderia cunhar para a civilizao capitalista? O Capital inteiro em um simples etnnimo....

  • carreira acadmica, quanto a do xam-narrador. Recorrendo a uma distino que me foi

    sugerida por Vinciane Despret para pensar um problema semelhante, pode-se dizer que nem

    Kopenawa nem Albert so exatamente representativos de seu meio e repertrio sociocultural

    originais Amaznia e xamanismo yanomami, Europa e antropologia universitria francesa

    , mas que justamente essa condio de enunciadores em posio atpica, fronteiria ou ex-

    centrada, que os torna representantes ideais de suas respectivas tradies, capazes de mostrar

    do que elas so capazes, uma vez libertas de seu ensimesmamento e de seu monolinguismo

    cosmolgico; quando essas tradies so foradas, em outras palavras pelas circunstncias

    histricas e a fora de carter do protagonista, em um caso, pelo compromisso existencial e a

    disciplina intelectual do seu colaborador, no outro , a negociarem a diferena intercultural

    at o ponto de uma mtua e imensamente valiosa entretraduo, tanto mais valiosa quanto

    mais ciente de suas imperfeies, suas aproximaes equvocas, suas equivalncias

    impossveis e, contas feitas (concluso que de minha exclusiva responsabilidade), sua

    incompatibilidade metafsica e antropolgica absoluta, que s ser superada, temo, com a

    destruio material ou espiritual da civilizao de origem de um ou outro dos interlocutores. E

    como j sugeri em uma nota mais acima, no est claro qual das duas ceder primeiro, diante

    das condies materiais inimaginveis que nos aguardam no tempo das catstrofes, na

    barbrie por vir.32

    Este livro excepcional, em segundo lugar, pela felicidade das decises propriamente

    tradutivas, tanto aquelas que procuram superar a grande distncia entre a enciclopdia e a

    semntica das respectivas lnguas-culturas, como aquelas que dizem respeito s convenes

    de textualizao de um discurso oral, ao seu agenciamento enunciativo e s dimenses

    pragmticas e metapragmticas do texto. Essas decises so exaustivamente discutidas no Post

    Scriptum de Albert, parte de A queda do cu que mereceria um estudo especial, por seu

    contedo crtico-reflexivo e sua perspectiva em abismo, metatextual aspectos que

    interpelam diretamente os etngrafos e, de modo geral, todos aqueles cujo ofcio transmitir,

    isto , transformar, a palavra alheia. O Post Scriptum retraa a histria do pacto entre o co-

    autor e Davi Kopenawa que desembocou neste livro; rememora (memorializa) as peripcias de

    uma vocao e as vicissitudes de uma pesquisa de campo realizada, em larga medida, durante

    os negros tempos de nossa ditadura militar, quando antroplogos essa gente comunista e

    maconheira vivendo entre selvagens binacionais no eram nada bem vindos, ainda mais se

    32. Ver Stengers 2009; Danowski e Viveiros de Castro 2014.Recordem-se aqui as palavras de Russel Means, o clebre ativista Oglala Lakota, pronunciadas nos longnquos idos de 1980, o que lhes d um carter quase proftico: E quando a catstrofe tiver terminado, ns, os povos indgenas americanos, ainda estaremos aqui para povoar o hemisfrio. Pouco importa se estivermos reduzidos a um punhado de gente vivendo no alto dos Andes. O povo indgena americano sobreviver; a harmonia ser restabelecida. isso a revoluo.

  • fossem estrangeiros; e tece reflexes altamente pertinentes sobre as condies de uma escrita

    etnogrfica ps-colonial, tanto do ponto de vista poltico-diplomtico de sua possibilidade e

    pertinncia, como daquele retrico-epistmico de seu estilo, em todos os sentidos possveis

    dessa ltima palavra.

    Prevejo que os crticos sociolgicos, os que escrevem sem parar e sem temer o

    paradoxo sobre os perigos da textualizao da inscrio e traduo engessadoras de uma

    oralidade fluida, vibrtil, autntica (a qual, suponho, deveria idealmente ser capaz de se

    transmitir por telepatia para uma audincia tambm monolngue), vero uma boa dose de

    artificialidade neste livro, visto que a narrativa de Kopenawa aqui publicada o resultado de

    um laborioso trabalho de composio como o , surpresa!, toda escritura etnogrfica,

    biogrfica, ficcional ou qualquer outra. O que temos diante de ns uma edio,

    explicitamente reconstruda, resumida e homogeneizada, de milhares de folhas de transcritos

    de diversos ciclos de entrevistas, gravadas ao longo de doze anos, em situaes as mais

    diversas; um texto em francs (em portugus) que procurou manter os torneios e maneirismos

    caractersticos da lngua de origem, mas recusando qualquer primitivizao pitoresca da

    lngua de destino ao contrrio, inovando poeticamente e renovando ritmicamente a prosa

    padro dessa lngua. Destaque-se, por fim, uma organizao capitular que obedece a uma

    rigorosa simetria, criando uma ressonncia interna entre vrios captulos e desdobrando o livro

    em um trptico, cujo quadro central, que conta a catastrfica coliso dos Yanomami com os

    Brancos e o modo pelo qual este mal-encontro determinou a vida e a vocao do narrador,

    ladeado por uma seo inicial, que descreve a formao xamnica de Davi Kopenawa por seu

    sogro, bem como situa os parmetros cosmolgicos nativos, e por outra seo, final, onde o

    narrador comenta a experincia antropolgico-xamnica adquirida nas viagens quela parte

    do hemisfrio norte que os brasileiros ainda chamamos de Primeiro Mundo (EUA, Frana,

    Inglaterra), lugar dos ancestrais dos nap canibais que vieram comer a terra dos Yanomami

    depois de terem devorado a sua prpria. Para ainda maior simetria, o trptico emoldurado por

    uma dupla introduo (assinada uma por Albert, a outra por Kopenawa) e uma dupla

    concluso (idem) sem falarmos na dupla epgrafe geral, uma de Lvi-Strauss, a outra ainda

    de Kopenawa , em um dualismo que marca insistentemente (j ia escrevendo

    obsessivamente...) a dualidade das vozes entrelaadas.

    Ali ento onde aqueles que acreditam em uma naturalidade imanente do discurso do

    Outro mas s se so eles que o repercutem; os crticos da Presena costumam tornar-se seus

    campees quando esto presentes a ela iro ver, suspeito, artifcio arquitetnico, artefato

    textual, qui contrafao ideolgica piedosa em A queda do cu, ali eu vejo, ao contrrio,

    uma mostra do mais alto engenho e arte de que capaz a escritura antropolgica. Vejo um

  • dos rarssimos exemplos recentes de verdadeira inveno reflexiva no plano das tcnicas de

    textualizao etnogrfica, por um lado (talvez s comparvel, mutatis mutandis, ao que fez

    Marilyn Strathern para a Melansia)33, e de renovao radical de um gnero distintivo da

    tradio francesa, a cavaleiro entre a etnologia e a literatura, por outro lado.34 O co-autor

    antroplogo est ciente dos riscos das decises tomadas o escrpulo talvez a atitude mais

    marcante nas intervenes do escritor branco deste livro, desde o meticuloso aparelho de

    notas que acompanham a narrativa de Davi at este paradigmtico Post Scriptum, e dele aos

    Anexos, aos glossrios, aos diversos ndices, conscienciosa bibliografia. Albert est

    perfeitamente a par das controvrsias acesas pela crise ps-modernista em torno da

    (auto)biografia como gnero, da tenso entre o Eu do narrador e o do escritor, da economia

    da pessoa implicada na etnografia e do processo de delegao ontolgica que veio renov-

    la (Salmon 2013), da alteridade prpria a toda autoria, e sobretudo da assimetria inerente

    situao etnogrfica e suas consequncias epistmicas (Zemplni 1984; Viveiros de Castro

    2002), assimetria irredutvel que o escriba/escritor de A queda do cu procura compensar, sem

    jamais pretender escond-la, por um conjunto de solues narrativas postas sob o signo do

    menor dos males (infra p. ???). Esta ltima expresso me parece particularmente feliz para

    caraterizar a essncia do gnero etnogrfico conhecimento aproximado por natureza,

    diria Bachelard (ou antes, por cultura) , e, mais geralmente, para designar a sensao de

    perda inevitvel suscitada por todo trabalho de traduo, seja esta interlingustica,

    intercultural, intersemitica, ou mesmo, como constatamos dolorosamente em nossa prpria

    vida, interpessoal para no falarmos naquela obscura, incessante e equvoca traduo

    intrapessoal que se estabelece no tumulto de nossas mltiplas vozes internas, sob a presso

    implacvel do inconsciente. E pouco importa, no final das contas, que a perda seja de fato

    puramente imaginria. Mais um equvoco (inevitvel?) sobre o equvoco.

    ***

    Pelo que precede, suspeita-se que livro ter muita coisa a ensinar aos antroplogos e outros

    estudiosos ou hermeneutas das vozes indgenas, seja sob o modo do exemplo dado pela

    narrativa de Davi Kopenawa, seja sob o modo da reflexo que nos apresentada neste Post

    Scriptum. O autor deste ltimo, retomando um um artigo que publicou anos atrs (Albert

    33.Ver, naturalmente, Strathern 2006, mas tambm o importante artigo O efeito etnogrfico em Strathern 2014 (cap. 12).34.Ver Debaene 2010.

  • 1997) define ali o que chama de pacto etnogrfico. O pacto comea pelo respeito aos trs

    imperativos bsico de todo engajamento do antroplogo com um povo indgena:

    Em primeiro lugar, evidentemente, fazer justia de modo escrupuloso imaginao conceitual de [seus] anfitries; em seguida, levar em conta com todo o rigor o contexto sociopoltico, local e global, com o qual sua [deles] sociedade est confrontada; e, finalmente, manter um olhar crtico sobre o quadro da pesquisa etnogrfica em si (p. ???).

    A habilidade o gosto e o talento que mostra cada etngrafo no cumprir igualmente bem

    as trs exigncias , como se sabe, muito varivel.35 Mas, de qualquer forma, elas no so o

    bastante. Como prossegue Albert, o etngrafo deve estar preparado para compreender que o

    objetivo principal dos seus interlocutores indgenas, e o fundamento de sua cooperao, o de

    converter o pesquisador em um aliado poltico, em seu representante diplomtico ou intrprete

    junto sociedade de onde ele provm, invertendo assim, tanto quanto possvel, os termos da

    troca desigual subjacente relao etnogrfica (p. ???) . Os nativos aceitam se objetivar

    perante o observador estrangeiro na medida em que este aceite (e esteja tecnicamente

    preparado para isso) represent-los adequadamente perante a sociedade que os acossa e

    assedia tal o pacto etnogrfico, mediante o qual os sentidos poltico e cientfico da ideia

    de representao so levados por fora (pela fora das coisas) a coincidir. Isso supe,

    entretanto, que o pesquisador, ao assumir a funo de enviado diplomtico dos nativos junto a

    seu prprio povo, possa e deva faz-lo sem por isso abrir mo da singularidade de sua

    prpria curiosidade intelectual (da qual depende, em grande parte, a qualidade e a eficcia de

    sua mediao) (p. ???)).

    Esta ltima ressalva me parece extremamente importante. No basta compadecer-se da

    sorte do colonizado. No suficiente mostrar generosas disposies emancipatrias para com

    o nativo, nem imaginar-se dotado dos instrumentos terico-polticos capazes de libert-lo de

    sua sujeio instrumentos de libertao que, o mais das vezes, vm da mesma caixa de

    ferramentas que os instrumentos de sujeio, como diversos nativos j observaram (Means

    35. O fato de que Albert coloque como primeiro e bvio (evidentemente) imperativo o respeito escrupuloso imaginao conceitual de seus anfitries no , penso, acidental, exprimindo uma determinada concepo da antropologia (Viveiros de Castro 2009: 7) que est longe de ser compartilhada por todos os praticantes da disciplina (id. 1999). Muitos deles entendem, ao contrrio, que o segundo imperativo o alfa e o mega do trabalho etnogrfico a sociedade do nativo reduzida a seus contextos sociopolticos, que o observador textualizar segundo sua prpria imaginao conceitual. Outros, por fim, preferem dedicar-se com exclusividade a obedecer ao terceiro imperativo e com isso a crtica ao quadro da pesquisa etnogrfica (de preferncia a pesquisa de outros etngrafos) vem tomar o lugar da pesquisa etnogrfica ela mesma, ignorando assim a advertncia de Marilyn Strathern: As etnografias so construes analticas de acadmicos; os povos que eles estudam no o so (Strathern 2006: 23). .

  • 1980, Nandy 2004, Rivera 2014). Os numerosos trechos do depoimento de Kopenawa onde

    somos confrontados a aes (ou inaes) abominveis dos Brancos, onde assistimos tragdia

    de famlias ou aldeias inteiras dizimadas por epidemias trazidas por supostos benfeitores dos

    Yanomami, sbita reduo a uma mendicncia abjeta de comunidades que, havia pouco,

    eram ntegras e orgulhosas, s invases sucessivas por agentes da destruio material e moral

    de um povo nada disso soa, em A queda do cu, apenas como mais uma daquelas litanias

    dilacerantes que muitos Brancos, sejam eles acadmicos, telogos da libertao, jornalistas,

    militantes da causa indgena, todos eles, insisto, obviamente bem intencionados (mesmo os

    que conseguiram sua tenure graas desgraa alheia), repetem exausto. E se nada nas

    palavras de Kopenawa soa assim apenas assim , porque elas se inscrevem em um livro

    composto a partir de um ponto de vista teoricamente preparado para dar sentido a estas

    catstrofes, situando-as nos quadros conceituais de um mundo vivido singular, o que as dota

    de uma significao infinitamente mais rica que a de um exemplo entre outros da misria

    humana. Em poucas palavras, sem a curiosidade intelectual que moveu o antroplogo

    escritor, e sem a curiosidade (contra-)antropolgica que moveu o xam-narrador, no haveria

    este livro, ou ele seria ininteligvel.

    Cabe aqui ser direto, e marcar um ponto. Por muito que tenham ajudado o escritor

    antroplogo de A queda do cu a entender a situao neo-colonial e hiper-capitalista que

    enfrentam as minorias tnicas no Brasil, inspirando-o a formular o instigante programa terico

    de um trabalho de campo ps-malinowskiano (Albert 1997), a verdade que a escola do

    chamado contato intertnico (ou frico idem) e seus desdobramentos em uma doutrina da

    etnicidade tendncias hegemnicas na antropologia brasileira durante todo o ltimo

    quartel do sculo passado , como, igualmente ou sobretudo, os escritos de etngrafos

    militantes de ... concedamos, esquerda, cujo exemplo mais destacado Terence Turner, autor

    de uma laboriosa teoria paramarxista de uma passagem de cosmologia a ideologia que teria

    miraculado os Kayap a verdade que nenhum dos autores representativos dessas posies

    radicais (mas quem no se considera radical?) chegou sequer perto de abrir a fenda na

    muralha dialgica erguida entre ndios e brancos que A queda do cu teve a capacidade de

    abrir. evidente que a formao terica de Albert, sua curiosidade intelectual de base

    estruturalista36 responsvel pela sintonizao do ouvido analtico do antroplogo na

    36. A queda do cu est firmemente alicerada pela etnografia contida na tese do co-autor francs (Albert 1985) sobre as representaes da doena, o espao poltico e o sistema ritual dos Yanomami, onde a influncias da antropologia lvi-straussiana, em particular das Mitolgicas, so transparentes..

    Que a voz da epgrafe branca escolhida como abertura do livro tenha sido a de Lvi-Strauss antes que a de Albert ele mesmo, ao contrrio das metades indgenas das duas epgrafes, dos dois prlogos e duas concluses, sempre de Kopenawa, marca duas coisas: primeiro, que o livro de Davi so suas palavras que (se) contam, como indica o subttulo do livro , mas ele foi escrito por Bruce, a quem no

  • frequncia de onda da imaginao conceitual de Kopenawa, o qual, por sua vez, coproduziu

    com seu pactrio francs um discurso que vai muito alm da denncia e da lamentao

    pois a condenao irrevogvel do narrador sobre o que se pode esperar de nossa civilizao

    precedida por (e derivada de) uma ampla exposio filosfica dos fundamentos de um

    mundo indgena, em seu triplo aspecto ontolgico, cosmolgico e antropolgico. Registre-se,

    por fim, que o engajamento vital com os Yanomami traduzido em um dos trabalhos de

    campo de mais longa durao na histria da etnologia amaznica , que incluiu a montagem

    de servios emergenciais de sade, levantamentos epidemiolgicos, projetos de proteo

    ambiental, estudos das dimenses etno-ecolgicas e etnogeogrficas da economia indgena,

    denncias insistentes e penosamente documentadas imprensa, uma exaustiva atividade nas

    ONGs de apoio causa indgena, nada disso impediu o co-autor branco deste livro de fazer

    apostas ambiciosamente criativas, fora do diapaso assistencialista ou ativista, como a do

    encontro entre os xams yanomami e um grupo de artistas ocidentais de vanguarda

    patrocinado pela Fundao Cartier em 2003 (Albert e Kopenawa 2003). Recusar aos ndios

    uma interlocuo esttica e filosfica radicalmente horizontal com nossa sociedade,

    relegando-os ao papel de objetos de um assistencialismo terceirizado, de clientes de um

    ativismo branco esclarecido, ou de vtimas de um denuncismo desesperado, recusar a eles

    sua contemporaneidade absoluta. Nosso tempo o tempo do outro, para glosarmos, e

    invertermos, a bandeira que Johannes Fabian agitava em 1983.37 Pois os tempos so outros. E o

    outro, mais ainda.

    ***

    No caberia, em todos os sentidos, resumir aqui a narrativa de Davi Kopenawa, cujo interesse

    extravasa de muito as questes e querelas antropolgicas acima expostas. Pois o que

    realmente importa como este livro pode dar a pensar aos no antroplogos; o que conta o

    que Davi Kopenawa tem a dizer, a quem souber ouvir, sobre os Brancos, sobre o mundo e

    caberia obviamente epigrafar-se a si mesmo; segundo, que o personagem totmico maior da formao terica e da sensibilidade etnolgica de Bruce Albert , j o dissemos, Claude Lvi-Strauss. Como ele o , alis, do autor deste prefcio; o generoso convite a escrev-lo, tenho a veleidade de imaginar, talvez seja um sinal de reconhecimento dessa fraternidade clnica. Os numerosos estigmas de estruturalismo dispersos no aparelho de notas e comentrios de A queda do cu no deixaro de intrigar, e muito possivelmente irritar, certos leitores antroplogos, que permanecem incapazes de entender a afinidade profunda entre a concepo e a prtica da antropologia por Lvi-Strauss, de um lado, e o projeto etno(bio)grfico, o engajamento existencial e o ativismo poltico do co-autor francs do presente livro, de outro lado. 37.Fabian 1983.

  • sobre o futuro. Que seu seu repertrio conceitual e seu universo de referncias sejam muito

    estranhos ao nosso s torna mais urgente e inquietante sua profecia xamnica, cada vez

    menos apenas imaginria e cada vez mais parecida com a realidade. Como observou Bruno

    Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catstrofe ambiental planetria a ela

    associada, assistimos hoje a um [r]etorno progressivo s cosmologias antigas e s suas

    inquietudes, as quais percebemos, subitamente, no serem assim to infundadas (Latour

    2012: 452). Ressalve-se apenas o antigas na frase acima pois o que percebemos,

    subitamente, que elas so nossas contemporneas; se precederam as nossas, nunca

    deixaram de coexistir com elas e, como j dissemos, no impossvel que sobrevivam a elas.

    No faltam indcios da pertinncia, cujo localismo potico s torna mais inquietantes, das

    previses do xam Yanomami. Para quem estiver interessado, tomemos apenas um exemplo

    entre muitos, em uma traduo cientfica (i.e. culturalmente normal para os Brancos) das

    observaes de Davi a respeito dos comedores de terra, os queixadas monstruosos ou os

    tatus gigantes que devoram a substncia do planeta, uma leitura do estudo recente de Ugo

    Bardi (2014) sobre o esgotamento das reservas minerais mundiais altamente recomendvel.

    H, entretanto, duas pequenas passagens de A queda do cu que me tocam

    especialmente, por resumirem de modo epigramtico o que eu chamaria a diferena indgena.

    A primeira uma citao, em epgrafe ao captulo XVII, Falar aos Brancos, de um dilogo

    havido no dia 19 de abril de 1989 (o Dia do ndio) entre o General Bayma Denis, ministro-

    chefe da Casa Militar durante o governo Sarney sempre ele e Davi Kopenawa. Quase

    conseguimos ouvir o tom arrogante e complacente com que o dignitrio militar, provavelmente

    obrigado a jogar conversa fora com um ndio qualquer durante aquela tediosa efemride,

    pergunta a Davi:

    O povo de vocs gostaria de receber informaes sobre como cultivar a terra?

    Ao que o impvido xam replica:

    No. O que desejo obter a demarcao de nosso territrio.

    Pano rpido... O que me fascina neste dilogo, alm, naturalmente, da soberba indiferena

    farda demonstrada por Kopenawa, a presuno do general, que imagina poder ensinar aos

    senhores da terra como cultiv-la convicto de que, povo da natureza, os ndios no

    entendiam nada de cultura, Bayma Denis devia pensar que os Yanomami eram nmades ou

    algo assim; que acredita, ademais, que os pobres ndios estavam sequiosos de beber dessa

    cincia agronmica possuda pelos Brancos, a cincia que nos abenoa com pesticidas

    cancergenos, fertilizantes qumicos e transgnicos monopolistas, enquanto os Yanomami se

    empanturram com o produto de sua roas impecavelmente agrobiolgicas. Mais fascinante

  • ainda, porm, a total inverso de conceitos proposta por Davi em sua rplica, verdadeiro

    contragolpe de mestre espadachim. O general fala em terra, quando deveria estar falando

    em territrio. Fala em ensinar a cultivar a terra, quando o que lhe compete, como militar a

    soldo de um Estado nacional, topogrfico e agro-nomocrtico, demarcar o territrio. Bayma

    Denis no sabe do que sabem os Yanomami; e, alis, o que sabe ele de terra? Mas Kopenawa

    sabe bem o que sabem os Brancos; sabe que a nica linguagem que eles entendem no a da

    terra, mas a do territrio, do espao estriado, do limite, da divisa, da fronteira, do marco e do

    registro. Sabe que preciso garantir o territrio para poder cultivar a terra. Faz tempo que ele

    aprendeu a regra do jogo dos Brancos, e nunca mais esqueceu. Veja-se esta sua entrevista ao

    Portal Amaznia, concedida exatamente 26 anos aps o colquio com o General:

    Quem ensinou a demarcar foi o homem branco. A demarcao, diviso de terra, traar fronteira costume de branco, no do ndio. Brasileiro ensinou a demarcar terra indgena, ento a gente passamos a lutar por isso. Nosso Brasil to grande e a nossa terra pequena. Ns, povos indgenas, somos moradores daqui antes dos portugueses chegarem.

    Lutei pela terra Yanomami para que o meu povo viva onde eles nasceram e cresceram, mas o registro de demarcao daterra Yanomami no est comigo, est nas mos do Governo. Mesmo diante das dificuldades, o tamanho da nossa terra suficiente para ns, desde que seja mesmo somente para ns e no precisamos dividir com os garimpeiros e ruralistas.38

    A segunda passagem, e aqui transcrevo (no conseguiria fazer melhor...) trs pargrafos

    do comentrio que Deborah Danowski e eu tecemos sobre ela em H mundo por vir?,39

    equivale a um tratado inteiro de contra-antropologia dos Brancos:

    Os brancos nos tratam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. No consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. [...] Ficam sempre bebendo cachaa e cerveja, que lhes esquentam e esfumaam o peito. por isso que suas palavras ficam to ruins e emaranhadas. Ns no as mais queremos ouvir. Para ns, a poltica outra coisa. So as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. So as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois so nossas mesmo. Os brancos no sonham to longe quanto ns. Dormem muito, mas s sonham consigo mesmos. [supra p. ???. Eu sublinho.

    O vo desejo de ignorar a morte est ligado, segundo Kopenawa, fixao dos Brancos

    na relao de propriedade e na forma-mercadoria. Eles so apaixonados pelas mercadorias,

    s quais seu pensamento permanece completamente aprisionado. Recordemos que os

    38. Pontes 2015.39. Ver Danowski & Viveiros de Castro 2015: 98-ss. Este livro, como tantos outros textos recentes de minha [co-]autoria, faz largo uso das palavras de Davi Kopenawa e do apoio de Bruce Albert. Apenas por isso isso os cito de modo to imodestamente abundante neste prefcio.

  • Yanomami no s valorizam ao extremo a liberalidade e a troca no-mercantil de bens, como

    destroem todas as posses dos mortos.40

    E ento, a volta do parafuso: Os Brancos dormem muito, mas s sonham consigo

    mesmos. Este , talvez, o juzo mais cruel e preciso at hoje enunciado sobre a caracterstica

    antropolgica central do povo da mercadoria. A desvalorizao epistmica do sonho por

    parte dos Brancos vai de par com sua autofascinao solipsista sua incapacidade de

    discernir a humanidade secreta dos existentes no-humanos e sua avareza fetichista to

    ridcula quanto incurvel, sua crisofilia. Os Brancos, em suma, sonham com o que no tem

    sentido.41 Em vez de sonhar com o outro, sonhamos com o ouro.

    interessante notar, por um lado, que h algo de profundamente pertinente do ponto

    de vista psicanaltico no diagnstico de Kopenawa sobre a vida onrica ocidental sua

    Traumdeutung de fazer inveja a qualquer pensador freudo-marxista , e, de outro lado, que

    seu diagnstico nos paga com nossa prpria moeda falsa: a acusao de uma projeo

    narcisista do Ego sobre o mundo algo a que os Modernos sempre recorreram para definir a

    caracterstica antropolgica dos povos animistas Freud foi, como se sabe, um dos mais

    ilustres defensores desta tese. No entender desses que chamamos animistas, ao contrrio,

    somos ns, os Modernos, que, ao adentrarmos o espao da exterioridade e da verdade o

    sonho , s conseguimos ver reflexos e simulacros obsedantes de ns mesmos, em lugar de

    nos abrirmos inquietante estranheza do comrcio com a infinidade de agncias, ao mesmo

    tempo inteligveis e radicalmente outras, que se encontram disseminadas pelo cosmos. Os

    Yanomami, ou a poltica do sonho contra o Estado: no o nosso sonho de uma sociedade

    contra o Estado, mas o sonho tal como ele sonhado em uma sociedade contra o Estado.

    ***

    Comeamos este prefcio evocando a relao complexa de A queda do cu com Tristes

    trpicos. Voltemos ento a este ltimo, recordando um episdio clebre onde Lvi-Strauss

    conta seu dilogo com Luis de Sousa Dantas, o embaixador brasileiro em Paris, s vsperas de

    40.A morte o fundamento, no sentido de razo, da economia da troca simblica dos Yanomami. Tudo isto se acha desenvolvido no artigo seminal de Albert (1993) sobre a crtica xamnica da economia poltica da natureza veiculada no discurso de Kopenawa, crtica esta que inclui uma apreciao sarcstica do fetichismo da mercadoria prprio dos Brancos, bem como de sua relao intrnseca com o canibalismo.41. O sonho, particularmente o sonho xamnico induzido pelo consumo de alucingenos, a via rgia do conhecimento dos fundamentos invisveis do mundo, para os Yanomami como para muito outros povos amerndios. Ver Viveiros de Castro 2007.

  • embarcar para So Paulo, nos idos de 1934. No decorrer de um jantar de cerimnia, o jovem

    futuro professor da USP indaga do embaixador do do pas para onde se dirigia sobre os ndios

    do Brasil. ento que ouve, perplexo e consternado, da boca do diplomata,:

    ndios? Hlas, meu caro senhor, h muitos lustros que eles desapareceram, todos. Esta uma pgina muito triste, muito vergonhosa da histria de meu pas. [...] Como socilogo, o senhor ir descobrir coisas apaixonantes no Brasil, mas ndios, nem pense nisso, o senhor no encontrar um s (Lvi-Strauss 1955: 51)

    Estou convencido de que o Sr. Luis de Sousa Dantas realmente no sabia que ainda havia

    ndios no pas que representava uma ignorncia to vergonhosa quanto a histria dos

    massacres evocada pelo pobre embaixador.42 E naturalmente que Lvi-Strauss, como se sabe,

    encontrou ndios no Brasil. Se chegasse hoje, encontraria muitos mais; pois eis que agora,

    oitenta anos mais tarde, no s h cada vez mais ndios no Brasil, como estes constituram

    seus prprios embaixadores, nas figuras de Raoni, Mrio Juruna, Ailton Krenak, Alvaro Tukano,

    Maral de Sousa, Angelo Kret e tantos outros entre os quais, il va sans dire, brilha Davi

    Kopenawa.

    A queda do cu , com efeito, um documento exemplarmente diplomtico. O pacto

    etnogrfico de que fala Albert indistinguvel do pacto xamnico que transparece em todas

    as pginas da narrativa de Davi. Para ns, a poltica outra coisa recordemos a frase,

    tirada da citao de Davi mais acima. Como registra Albert em seu Post Scriptum, a estrutura

    enunciativa deste livro altamente complexo envolve uma pluralidade de posies: a do

    narrador, que adota diferentes registros em diferentes momentos de sua narrativa; a de seu

    sogro indgena, que de certa forma o salvou dos Brancos, ao inici-lo no xamanismo; a dos

    xapiri de quem fala o narrador e que falam pela sua boca; a do intrprete branco que, falando

    em yanomami, procura navegar entre a lngua do narrador, as numerosas expresses em

    portugus que pontuam seu discurso e o francs em que traduz a narrativa... Na verdade, estas

    palavras de um xam yanomami subtitulo de A queda do cu so mais que isso: so

    palavras xamnicas yanomami, so uma performance xamnico-poltica, por outras palavras,

    uma performance cosmopoltica ou csmico-diplomtica (para ns a politica outra coisa),

    onde pontos de vista ontologicamente heterogneos so comparados, traduzidos, negociados e

    avaliados. O xamanismo, aqui, a continuao da poltica pelos mesmos meios. A queda do

    cu uma sesso xamnica, um tratado (no duplo sentido) poltico, e um compndio de

    filosofia yanomami, a qual como talvez se possa dizer de toda a filosofia amaznica

    essencialmente um onirismo especulativo, onde a imagem tem toda a fora do conceito, e

    42.Massacres posto na conta exclusiva dos portugueses, em um distante e brutal sculo XVI, como se l na passagem integral acima resumida.

  • onde a experincia ativamente extrospectiva da viagem alucinatria ultracorprea ocupa o

    lugar da introspeco asctica e meditabunda.

    Muitos estudos antropolgicos ganhariam insuspeitos sentido e relevncia ao serem

    tratados pela sesso xamnica encenada em A Queda do Cu. Mas tomo a liberdade de

    sugerir ao leitor que a mais alta significao potica deste livro excepcional, significao que

    em nada diminui, muito pelo contrrio, sua verdade histrica, etnogrfica, ecolgica e

    filosfica, talvez se torne ainda mais comovedora isto , capaz de nos pr em movimento

    junto com ela se, ao fech-lo, abramos o conto O recado do morro, que est no Corpo de

    baile de Guimares Rosa. O ttulo deste prefcio, O recado da mata foi-nos, de resto,

    inspirado por uma aluso de Jos Miguel Wisnik (2014) ao conto de Rosa. Todos se recordaro

    que naquela narrativa desfila uma caravana de personagens literalmente excntricos,

    exteriores, nmades ou eremitas, trogloditas, loucos, profetas, andarilhos, uma gente que ouve

    inquietantes mensagens da natureza a que permanecemos surdos esquecidos, diria Davi. O

    recado do morro (a mensagem foi originalmente emitida pelo Morro da Gara, marco

    geogrfico central na paisagem do conto), ouvido primeiro pelo bizarro eremita Gorgulho,

    avisa de sinistra conspirao, anuncia uma morte traio; mas tudo vem vazado em uma

    linguagem mtica e apocalptica (constantemente deformada e transformada medida em que

    vai circulando pelo serto), que parece puramente delirante a todos os demais personagens

    civilizados, entre os quais um padre e um naturalista exceto a um poeta-cantador, que

    percebe epifanicamente a transcendental importncia do que transdito naquela algaravia

    herldica e hieroglfica, e a sublima em um romance cantado. As palavras do romance

    finalmente penetram no esprito um tanto curto e obscuro da vtima da morte anunciada,

    Pedro Orsio, um campons livre, geralista de pura e poderosa cepa, um terrano dos ps

    cabea, que acaba por entender o recado e escapa, no ltimo segundo, da cilada assassina

    movida por seus rivais amorosos. Imagine ento o leitor que o xam-narrador dA queda do

    cu fosse como uma sntese do Gorgulho e de Nominedmine; que Pedro Orsio fosse o

    brasileiro o caboclo terrano que todos, no fundo, somos quando sonhamos, to

    raramente, com um outro ns-mesmos, e que o antroplogo-escriba fosse como um anlogo

    do cantador Laudelim, o nico a penetrar no a referncia da mensagem cifrada, mas, muito

    mais importante, seu sentido.

    Davi o elo crucial da rede, o ponto final da srie de personagens excntricos dO

    recado do morro com efeito, quem mais fora do centro e do Um, da fumaa das cidades e

    do brilho assassino do metal, do que um ndio, um selvagem do fundo do mato que firmou

    um pacto xamnico com as legies de duplos invisveis da floresta com os xapiri que

    transmitem o recado cifrado da mata? Um recado, recordemos, ominoso. Um aviso. Uma

    advertncia. Uma ltima palavra.

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