predestinação a tentativa de uma releitura

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PREDESTINAÇÃO UMA RELEITURA A doutrina da predestinação (ploorismos) foi e será uma temática que sempre produzirá muita celeuma. Infelizmente seu ensino sempre imprimiu um tônus gravoso de beligerante divergência no seio da cristandade e entre seus maiores vultos, criando escolas teológicas visceradamente antagônicas (agostinianos, pelagianos, calvinismo, arminianismo ou remostrante). Para alguns, suas supostas incoerências e terríveis implicações, tais como: anulação da responsabilidade humana, comprometimento do livrearbítrio, autoria divina do pecado, enfim, são de natureza tal que não podem ser superadas. Para esses predestinação é doutrina do Diabo e heresia do inferno cheia do toda contradição. Outros, entretanto, compreendem que as tais altissonantes implicações e contradições atribuídas à predestinação, se vistas de modo mais particular e detido, na verdade não passam de um grandioso paradoxo, ou seja, uma junção de dois pensamentos que aparentemente se manifestam como contraditórios, mas que de fato não são. No caso material, esse paradoxo recai nas realidades aparentemente irreconciliáveis da soberania divina sobre os atos contingentes dos seres humanos, notadamente os da salvação e as livres escolhas humanas e seus de desdobramentos: a responsabilidade moral e espiritual. Reconhecendo as Tensões Na verdade, independentemente da posição que se tome frente o debate acerca dessa doutrina é impositivo, sob

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  1. 1. PREDESTINAO UMA RELEITURA A doutrina da predestinao (ploorismos) foi e ser uma temtica que sempre produzir muita celeuma. Infelizmente seu ensino sempre imprimiu um tnus gravoso de beligerante divergncia no seio da cristandade e entre seus maiores vultos, criando escolas teolgicas visceradamente antagnicas (agostinianos, pelagianos, calvinismo, arminianismo ou remostrante). Para alguns, suas supostas incoerncias e terrveis implicaes, tais como: anulao da responsabilidade humana, comprometimento do livrearbtrio, autoria divina do pecado, enfim, so de natureza tal que no podem ser superadas. Para esses predestinao doutrina do Diabo e heresia do inferno cheia do toda contradio. Outros, entretanto, compreendem que as tais altissonantes implicaes e contradies atribudas predestinao, se vistas de modo mais particular e detido, na verdade no passam de um grandioso paradoxo, ou seja, uma juno de dois pensamentos que aparentemente se manifestam como contraditrios, mas que de fato no so. No caso material, esse paradoxo recai nas realidades aparentemente irreconciliveis da soberania divina sobre os atos contingentes dos seres humanos, notadamente os da salvao e as livres escolhas humanas e seus de desdobramentos: a responsabilidade moral e espiritual. Reconhecendo as Tenses Na verdade, independentemente da posio que se tome frente o debate acerca dessa doutrina impositivo, sob pena de total obscurantismo intelectual reconhecer duas assertivas estruturais: a primeira a real tenso que a predestinao impe sobre o honesto estudante da palavra de Deus (no h espao aqui para os meros sofistas debatedores). Ao adentrar os meandros bblicos que apresentam esse ensino no d pra dissimular o incmodo que surge diante de indagaes como: Ser que temos livrearbitrio para tomarmos decises, ou ser que de alguma forma todas s coisas j foram decididas por Deus? At que ponto Deus soberano em relao a tudo o que ocorre no mundo e quais as linhas limtrofes da responsabilidade do homem por seus atos? Tal desconforto que inapelavelmente atinge todos os que se defrontam com esse magno tema constri uma estrutura de resistncia grantica, um ponto ssmico de difcil categorizao, pois, a Bblia faz afirmaes slidas tanto acerca do exerccio soberano da ao de Deus sobre a existencia humana (Ef 1.11; Rm 9.19). Como sobre a absoluta responsabilidade dos homens em suas aes (Mt 16.27).
  2. 2. Esse modo dual de conceber o tema no sentido da superao da prpria dualidade arremessa os estudiosos da predestinao em uma deciso binria, ora em rejeio como consumada heresia, ora aceitao resignada do mistrio divino da predestinao, orientao, que de passagem estimulada por Joo Calvino paladino da predestinao: E se evidente que da vontade de Deus depende que a uns seja oferecida gratuitamente a salvao e que outro se lhes negue, da nascem grandes e muitos rduos problemas, que no possvel explicar nem solucionar se os fiis no compreenderem o que devem com respeito ao mistrio da eleio e da predestinao (Calvino,Joo, SP, 2007 VL 2, p.375). A segunda assertiva preliminar a natureza inescapavelmente bblica da predestinao. Isto , independente da posio que se assuma quanto interpretao da predestinao matria de fato que ela est dentro das afirmaes textos-doutrinais da Revelao (Rm 8.29-30; Ef 1.5,11; At 13.48; Pv 21.1; Es 7.27; x 3.21; Pv 15.21 entre outros). De fato, muito do que se ouve sobre a predestinao mais subproduto da interpretao da mesma do que as afirmaes que os autores bblicos fizeram. As Predestinaes Da que do que foi estabelecido at o momento fica claro que a predestinao um tema de natureza constitucionalmente escriturstica, ao mesmo tempo tambm fica consignado que temos verses sobre a predestinao que so veculos de um tipo de predestinacionismo que nada tem haver com a predestinao bblica, so sim, frutos de olhares teolgicos sobre esta, construindo vertentes conceituais polarizadas que designo de predestinaes. obvio, e longe de qualquer disputa que muito do debate atual sobre a predestinao est calcado nessas subdescries teolgicas derivativas. A Superpredestinao A primeira dessas percepes marcadamente ditadas pelo equivoco a superpredestinao, ou como ficou conhecida: dupla predestinao (praedestinatio gemina). Conforme a lgica dessa argumentao, Deus de modo positivo decidiu o destino salvifico dos homens determinando uns para o cu e positivamente rejeitando outros, tornando assim certo sua ida para o inferno. Vejam o ncleo dessa posio encartada na declarao de seu maior expoente, Chamamos predestinao ao decreto eterno de Deus pelo qual determinou o que quer fazer de cada um dos homens. Porque Ele no os cria com a mesma condio, mas antes ordena a uns para vida eterna, e a outros, para a condenao perpetua (Calvino,2007, p.380). O contedo e a forma dessa doutrina so biblicamente delineados em textos da bblia onde Deus visto como o autor absoluto tanto da salvao como da perdio do homem (Rm 9.19-24; Sl 115.3; Pv 16.4; Is 10.15; 45.9; Jr 18.6 entre outros). O problema aqui que esses textos no abordam a predestinao em sentido estrito, mas tratam da soberania (superomnia) absoluta de Deus sobre os destinos da humanidade por ele criada em sentido amplo, lato, visto
  3. 3. que tanto a salvao como a perdio de suas criaturas no acontecem fora do centro gravitacional da sua vontade soberana, quer em sentido comissivo (comissii), quer em sentido permissivo, pois, em todas estas coisas vontade e o poder de Deus tambm se tornam manifestos e sua soberania absoluta revelada (Bavinck, 2012, p.403). decisivo compreender, que conquanto, a soberania, decreto, conselho, providencia, eleio e predestinao se relacionem de modo mtuo dependente, elas enquanto realidades tpicas so fenmenos distintos. De maneira que a predestinao est contida nos decretos e, por conseguinte os decretos na soberania de Deus como a superestrutura que a tudo engloba. No considerar isso, que leva os signatrios da dupla predestinao v-la provada nos textos em questo. Alm disso, a bblia atribui a reprovao humana, no sentido de sua gnese no h uma determinao positiva de Deus, mas ao pecado do prprio homem (Rm 1.18-32; 3.9-23; Jr 23.9-12; Ef 2.1-3; Rm 6.23 entre outros), nesse particular colho as achegas do telogo holands Herman Bavinck como descrito em sua opus magna, A Dogmtica Reformada: Inteiramente errada, portanto, a noo de que o conselho de Deus em geral e o decreto da reprovao em particular so uma s deciso nua e crua da vontade divina a respeito de destino eterno de uma pessoa. errado conceber o decreto como se ele apenas determinasse o fim de uma pessoa e a forasse nessa direo independente do que ela fizer (Bavinck, Herman, SP, 2012, VL 2, p.406). Por outro lado, quando vista de maneira nuclear a predestinao como via de expediente instrumental do plus divino est diretamente relacionada aos eleitos de Deus e o modus operandis da redeno destes, como bem nos apresenta Paulo: 4 assim como nos escolheu, nele, antes da fundao do mundo, para sermos santos e irrepreensveis perante ele; e em amor 5 nos predestinou para ele, para a adoo de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplcito de sua vontade, (Ef 1.4-5). Vejam, que o apostolo particiona a eleio ( eklgomai) como declarao definitiva de Deus concernente a f em Cristo (A.T. Robertson, p.596)), da predestinao, no sentido em que torna esta viabilizadora dos objetivos daquela. A forma como Paulo enxergava a predestinao, desabona qualquer interpretao que tente incluir nela o ato positivo, comissivo da reprovao, pois, no seu modo de encarar, ela agencia proficiente da formao (symmrphous) de Cristo no eleito, desta maneira uma poltica executiva de Deus completamente afirmativa: 28 Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que so chamados segundo o seu propsito. 29 Porquanto aos que de antemo conheceu, tambm os predestinou para serem conformes imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primognito entre muitos irmos. (Rm 8.28-29). Portanto, no agasalha um agir divino que diretamente reprove baseado no simples ato de reprovar, assim se expressou Bavinck quanto a esse pensamento: Um problema final que ele faz que a punio eterna dos rprobos seja um objeto da vontade divina do mesmo modo e no mesmo sentido que a salvao eterna dos eleitos e que, alm disso, faz do pecado, que conduz punio eterna, um meio, do mesmo modo e no mesmo sentido que a redeno em Cristo o meio para salvao (Bavinck, Herman, SP, 2012, VL 2, p.396).
  4. 4. . A dupla predestinao uma excrescncia interpretativo-teolgica porque inevitavelmente sequestra da predestinao como esboada na palavra de Deus seu lugar prprio de estabilizadora e garantidora do plano redentivo, do sistema da salvao, pois, esta se bem compreendida determina o destino do eleito nas mos da criatividade divina por via da autodeterminao deste, ou seja, sua liberdade finita. A predestinao metafsica Outra apresentao da predestinao que em todos os sentidos arbitrria em sua forma e precria em seu contedo, engrossando assim o coro das predestinaes aquela que determina sua fonte, seu nascedouro numa deliberao divina antes da criao ou mesmo a queda. Essa posio foi consignada na histria da teologia como supralapsarianismo. Essa corrente do predestinismo foi magistralmente definida pelo afamado telogo de Princeton em sua Teologia Sistemtica, Charles Hodge: Segundo esse ponto de vista, Deus, a fim de manifestar sua graa e justia, selecionou dentre homens criveis (ou seja, dentre os homens a serem criados) a certo nmero como vasos de misericrdia, e a outros como vaso de ira. Na ordem do pensamento, a eleio e a reprovao precedem o propsito de criar e de permitir a queda. A criao tem como fim a redeno. Deus cria uns para serem salvos, e outros para serem perdidos. Este esquema recebe o nome de supralapsariano porque pressupe que os homens como no cados, ou antes, da queda, so os objetos da eleio para vida eterna, e de preordenao para morte eterna (Hodge, Charles, SP, 2001, p.719). Exatamente nesse ponto arejado por Hodge da atuao predestinativa de Deus pr- temporal e pr-queda (lapso) que reside o ponto nevrlgico de comprometimento do sistema, onde a conta, por maior esforo que empreendam seus proponentes no fecha. No fecha porque no leva em considerao o carter altamente retoricizado, hiperblico da argumentao paulina sobre a predestinao. Note bem, no que ela em si fosse para ele objeto de exibio retrica, mas que ao utilizar-se de expresses do tipo: Antes da fundao do mundo Paulo estava retoricamente assinalando no a condio ultratemporal da predestinao, como se ela no fosse concebida no tempo e administrada na histria; ao contrrio, a realidade desta na mente divina, no seu plano. No h uma predestinao metafsica, mas ela nasce e contingenciasse no universo emprico da experincia dos falantes como ato singularssimo que no permite nenhum libi, como destacou Franois Turretine:
  5. 5. Aqueles que se pem antes da queda (supra lapsum) ou da criao, para determinar o objeto da predestinao, creem que vrios decretos que so concebidos por ns acerca do estado do homem devem ser organizados de tal modo que o decreto da predestinao preceda ao da permisso da queda. Acreditam que Deus contemplou a manifestao de sua gloria no exerccio da misericrdia e da justia quanto condenao dos homens antes de haver contemplado a criao do homem ou a permisso de sua queda (...) embora essa ordem nada contenha de absolutamente repulsivo ao fundamento da salvao e da analogia da f (e tem agradado grandes homens e pessoas que merecem o bem-querer da igreja), varias objees impedem sua aceitao (Franois, Turretine, SP, 2011, VL 1, p.532). Portanto, um ensino que propague uma predestinao in abstrato que nada se importe com o estado alienado da raa humana, no pode prosperar em sentido algum, visto que est eivado de todo tipo de praga, sendo a pior delas a autoria divina, no apenas do pecado como das desventuras humanas, ou seja, a caixa de Pandora no foi aberta por Ado, mas pelo prprio Deus, o que sem dvidas uma caricatura e conscurpao da personalidade divina como salientou doutor Hodge: Uma objeo ao sistema supralapsario relaciona-se ao fato de que ele inconsistente com a exibio bblica do carter de Deus. Ele declarado como Deus de misericrdia e de justia. Mas no compatvel com esses atributos divinos que os homens sejam predestinados desgraa e morte eterna como inocentes, ou seja, antes que houvessem apostatado de Deus. Se so deixados de lado e predestinados morte por seus pecados, isso se deveria ao fato de que, na predestinao, eles so considerados criaturas culpadas e apostatadas (Hodge, Charles, SP, 2001, p.722). Predestinao uma nova olhada Est alm de qualquer contestao que a atmosfera de repulsa doutrina da predestinao por parte do pblico mais leigo variante da mescla, do mix do discurso academicista rido e impolfero, da veiculao de verses deturpadas sobre a predestinao e, claro, dos problemas de Ego, sofridos pelo pecador cado ao ser sumariamente retirado dos holofotes da ateno, no que concerne a sua salvao por parte dessa doutrina. Do ponto de vista das abordagens distorcidas da predestinao seu enorme mal reside no fato de no enfatizar os aspectos prticos que a destacam no todo orgnico da salvao (soteria) como meio de deflagrao da onipotncia divina, conduzindo pecadores redimidos glorificao mxima do Deus Eterno (El Olam) ao estamparem a plena imagem (imago) do santo cordeiro de Deus, Jesus em suas vidas e relacionamentos. Ser predestinado nesse
  6. 6. prisma, no ser violado em nossa integridade humana, mas sim a garantia executivodivina de sermos efetivamente salvos na existencia, da existencia para a eternidade (Jd 1.24-25). Da que nessa forma de discernir a predestinao, falar dela no , portanto, falar de agresso ao bem jurdico da liberdade humana, ao contrrio a efetivao real dessa liberdade (Rm 8.32-36). Tratar da predestinao no discutir sobre responsabilidade humana versos soberania de Deus, mas sublinhar o soberano poder divino de construir uma nova humanidade comprometida com os altos iderios da redeno como plano-piloto do reino dos cus (Cl 3.12- 17; Ef 4.17-24). Difundir o ensino da predestinao no arruinar a busca pela santificao em uma vida de humildade e f, mas desvelar o pano de fundo de tais processos (Hb 10.10- 18).Proclamar a predestinao no desencorajar a misso da igreja, longe disso enfatizar o Fiat divino que impulsiona e sustenta essa gloriosa e inestimvel misso (At 4.23-31;1.8; Mt 28.18-20). Soli Deo Gloria! Prof Rev Marcus Barbosa V.D.M Psicanalista, Telogo, Conferencista, professor de Direito e filsofo existencialista