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Prazer e Sofrimento no Trabalho de Religiosos Diretores de Colégios Raimundo Nonato Oliveira Barros (Faculdade Novos Horizontes) irbarros@uol.com.br Marília Novais da Mata Machado (Faculdade Novos Horizontes) [email protected] Resumo As organizações são conjuntos sociais complexos intencionalmente construídos para atingir objetivos específicos, podendo ser tratadas segundo diferentes abordagens teóricas. No presente estudo, optou-se por tratá-las como instituições totais e como sistemas culturais, simbólicos e imaginários. Considerando o trabalho de religiosos católicos na direção de colégios, esta pesquisa teve por objetivo identificar como esses religiosos descrevem a relação trabalho/missão e como essa relação pode ser geradora de prazer e/ou de sofrimento. Palavras-chave: Organização religiosa, Missão, Trabalho e vida religiosa, Trabalho/prazer. Trabalho/sofrimento 1. INTRODUÇÃO No atual cenário de grandes mudanças econômicas e políticas, as organizações religiosas católicas sofrem as mesmas influências que afetam outras organizações. O mercado cobra eficiência e otimização de recursos e elas precisam aderir a esse movimento, sob o risco de não conseguirem sobreviver e cumprir sua missão. Os religiosos precisam desempenhar diversas atividades voltadas para o negócio da organização, preservando o direito próprio da vida religiosa e suas implicações missionárias. Esse processo pode levar ao adoecimento. Trabalho e missão têm um ponto de interseção, no qual o religioso encontra o seu lugar de atuação. Mas as linhas que marcam esse espaço não são bem definidas. Tendo em vista beneficiar tanto as organizações como os seus membros, a questão que norteou esta pesquisa foi: Para os religiosos que assumem a atividade de direção de colégios, qual é a relação que se estabelece entre trabalho e missão e como essa relação pode ser geradora de prazer e/ou sofrimento? Buscou-se identificar como religiosos diretores de instituições de educação descrevem em suas atividades de direção a relação trabalho–missão e como essa relação pode ser geradora de prazer e/ou de sofrimento. Além disso, buscou-se identificar instâncias em que a relação trabalho-missão se apresenta como geradora de prazer e/ou sofrimento. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2. 1. Organizações Goffman (1967) apresenta as instituições totais como possuidoras de um caráter envolvente ou totalizante, sintetizado pela barreira ao intercâmbio social com o mundo exterior. Para ele essas instituições podem ser vistas em agrupamentos de acordo com o público atendido: asilos e abrigos, sanatórios e leprosários, prisões, quartéis, mosteiros e conventos. Um dos agrupamentos traz as instituições destinadas ao retiro do mundo ou lugar de formação de religiosos (mosteiros, conventos, seminários, etc.). É nesse que o foco da pesquisa se concentra, uma vez que os indivíduos pesquisados fazem parte de congregações religiosas que formam os seus membros em estruturas que guardam características de instituições totais, isto é, todos os aspectos da vida são conduzidos no mesmo lugar e sob a mesma autoridade; as atividades diárias dos membros são desenvolvidas na companhia de um grupo maior; há uma programação com atividades em cadeia e com regras explícitas; o conteúdo das atividades desenvolvidas é unificado. Enriquez (1997) concebe as organizações como sistema cultural, simbólico e imaginário. Cultural porque oferece uma cultura, valores e normas que orientam a conduta, e estabelece papéis e hábitos

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Page 1: Prazer e Sofrimento no Trabalho de Religiosos Diretores de ... · Os religiosos precisam desempenhar diversas atividades voltadas para o negócio da organização, ... mosteiros e

Prazer e Sofrimento no Trabalho de Religiosos Diretores de Colégios

Raimundo Nonato Oliveira Barros (Faculdade Novos Horizontes) [email protected]

Marília Novais da Mata Machado (Faculdade Novos Horizontes) [email protected]

Resumo

As organizações são conjuntos sociais complexos intencionalmente construídos para atingir objetivos específicos, podendo ser tratadas segundo diferentes abordagens teóricas. No presente estudo, optou-se por tratá-las como instituições totais e como sistemas culturais, simbólicos e imaginários. Considerando o trabalho de religiosos católicos na direção de colégios, esta pesquisa teve por objetivo identificar como esses religiosos descrevem a relação trabalho/missão e como essa relação pode ser geradora de prazer e/ou de sofrimento.

Palavras-chave: Organização religiosa, Missão, Trabalho e vida religiosa, Trabalho/prazer. Trabalho/sofrimento 1. INTRODUÇÃO No atual cenário de grandes mudanças econômicas e políticas, as organizações religiosas católicas sofrem as mesmas influências que afetam outras organizações. O mercado cobra eficiência e otimização de recursos e elas precisam aderir a esse movimento, sob o risco de não conseguirem sobreviver e cumprir sua missão. Os religiosos precisam desempenhar diversas atividades voltadas para o negócio da organização, preservando o direito próprio da vida religiosa e suas implicações missionárias. Esse processo pode levar ao adoecimento. Trabalho e missão têm um ponto de interseção, no qual o religioso encontra o seu lugar de atuação. Mas as linhas que marcam esse espaço não são bem definidas. Tendo em vista beneficiar tanto as organizações como os seus membros, a questão que norteou esta pesquisa foi: Para os religiosos que assumem a atividade de direção de colégios, qual é a relação que se estabelece entre trabalho e missão e como essa relação pode ser geradora de prazer e/ou sofrimento? Buscou-se identificar como religiosos diretores de instituições de educação descrevem em suas atividades de direção a relação trabalho–missão e como essa relação pode ser geradora de prazer e/ou de sofrimento. Além disso, buscou-se identificar instâncias em que a relação trabalho-missão se apresenta como geradora de prazer e/ou sofrimento. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2. 1. Organizações Goffman (1967) apresenta as instituições totais como possuidoras de um caráter envolvente ou totalizante, sintetizado pela barreira ao intercâmbio social com o mundo exterior. Para ele essas instituições podem ser vistas em agrupamentos de acordo com o público atendido: asilos e abrigos, sanatórios e leprosários, prisões, quartéis, mosteiros e conventos. Um dos agrupamentos traz as instituições destinadas ao retiro do mundo ou lugar de formação de religiosos (mosteiros, conventos, seminários, etc.). É nesse que o foco da pesquisa se concentra, uma vez que os indivíduos pesquisados fazem parte de congregações religiosas que formam os seus membros em estruturas que guardam características de instituições totais, isto é, todos os aspectos da vida são conduzidos no mesmo lugar e sob a mesma autoridade; as atividades diárias dos membros são desenvolvidas na companhia de um grupo maior; há uma programação com atividades em cadeia e com regras explícitas; o conteúdo das atividades desenvolvidas é unificado. Enriquez (1997) concebe as organizações como sistema cultural, simbólico e imaginário. Cultural porque oferece uma cultura, valores e normas que orientam a conduta, e estabelece papéis e hábitos

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em favor da coletividade. Simbólico porque necessita segregar um ou mais mitos unificadores que farão parte da memória coletiva, desenvolvendo um controle afetivo e intelectual. Imaginário porque é essa a base para que o simbólico e o cultural se estabeleçam. Atuando no imaginário, as organizações podem desenvolver a forma enganadora, aquela que prende os indivíduos nas diversas armadilhas dos próprios desejos narcisistas, protegendo-os do risco da quebra de identidade, e a forma motora, apostando no imaginário criativo, sem que o indivíduo se sinta reprimido por regras imperativas. A análise das organizações feita por Enriquez (1997) usa o que ele chama “instâncias”, que servem para compreender as organizações nos seus mais diversos papéis: instância mítica (não existe sociedade sem um discurso inaugural, ou mítico), social-histórica (a regência social é feita pela resposta única, a ideologia), institucional (busca-se a estruturação das relações sociais mascarando conflitos para se chegar à harmonia e canalizando a agressividade para se chegar às pulsões altruístas), organizacional (a organização é o lugar da tentativa de regulação e do político, das lutas e estratégias), grupal (o conflito entre o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento assume que o indivíduo exprime não somente o seu desejo próprio, mas quer ser reconhecido como membro de um grupo), individual (as organizações não podem impedir a existência de desviantes e marginais) e pulsional (perpassa todas as outras e as conseqüências mais perigosas para as organizações são a negação e a exclusão e, nesse contexto, a realidade não será jamais percebida pelo que ela é). Para Antunes (2006), nas últimas décadas a sociedade contemporânea tem passado por profundas transformações, tanto de materialidade quanto de subjetividade, dadas as complexas relações entre as formas de ser e de existir. A crise do capital tem trazido profundas mudanças no interior do mundo do trabalho. Presenciam-se formas transitórias de produção, cujos desdobramentos são também agudos no que diz respeito aos direitos do trabalho. Essas constatações levam a diversas perguntas: A categoria trabalho não é mais dotada de estatuto de centralidade no universo da práxis humana existente na sociedade contemporânea? O trabalho não é mais elemento estruturante de uma nova forma de sociabilidade humana? Não é mais protoforma da atividade humana? 2. 2 Psicodinâmica do Trabalho: Prazer e Sofrimento Chamada inicialmente de psicopatologia de trabalho, a psicodinâmica do trabalho teve início na França e se afirmou nos anos de 1950. Buscava destacar e descrever as doenças mentais ligadas ao trabalho. A partir dos anos de 1980 o campo da psicopatologia amplia-se e busca compreender como os indivíduos conseguem driblar a doença mental, apesar das pressões organizacionais. Avança-se ainda na investigação e análise do prazer no trabalho. Como objetivo, a psicodinâmica visa a estudar as relações dinâmicas entre a organização do trabalho e o processo de subjetivação (atribuição de sentido baseado na relação do trabalhador com sua realidade de trabalho, expresso no modo de pensar, sentir e agir individual ou coletivo), que se manifesta na vivência de prazer-sofrimento. Segundo Dejours (1992), um bom equilíbrio entre a organização do trabalho e a estrutura mental do trabalhador cria situações favoráveis ao prazer. Quando as exigências intelectuais, motoras e psicossensoriais da tarefa estão de acordo com as necessidades dele, quando o conteúdo do trabalho é fonte de satisfação, o resultado é o trabalho gerador de prazer. O prazer surge da gratificação pulsional, resultante da consonância entre a subjetividade do trabalhador e o que é oferecido pelo contexto do trabalho, podendo ser visto por meio de indicadores como: valorização, reconhecimento, liberdade, realização, gratificação, orgulho no trabalho, capacidade de aprendizagem e sentido no trabalho.

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O sofrimento distingue a situação de doença da de saúde e implica o bloqueio do espaço de liberdade do trabalhador sobre a própria organização do trabalho. É o bloqueio da relação homem–organização que desencadeia o domínio do sofrimento. “Quando o rearranjo da organização do trabalho não é mais possível, quando a relação do trabalhador com a organização é bloqueada, o sofrimento começa” (DEJOURS, ABDOUCHELI e JAYET, 1994, p. 29). Como características diretas do sofrimento enfrentado pelo trabalhador, Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) apontam: atitudes agressivas, preocupação em relação a certas situações de trabalho, esperas, morosidade, sentimento de não reconhecimento dos méritos, vivência de injustiça, tensão entre equipes, destruição da confiança, desenvolvimento de individualismo, etc. Além do individualismo, Dejours (1992), afirma que, para fugir da angústia causada pela distância entre o real e o prescrito, para corresponder às expectativas da organização e não adoecer, o indivíduo desenvolve estratégias de enfrentamento contra o sofrimento. A utilização dessas estratégias de defesa propicia proteção e equilíbrio do sofrimento, funcionando como meios de modificar, transformar e minimizar a percepção da realidade que faz sofrer. Na estratégia de defesa, o trabalhador busca equilíbrio e luta contra a doença mental (DEJOURS, 1996). 2.3 Trabalho e missão na vida religiosa A contribuição da vida religiosa à missão da Igreja deve ser explicada a partir da identidade teológica e do lugar que ocupa a missão, apresentada por Rodriguez e Casas (1994) como ponto essencial do carisma da vida religiosa. Missão é parte constitutiva da própria vida religiosa enquanto vocação fundamental que especifica e particulariza o chamado ao seguimento de Jesus na comunhão-fraternidade, na diaconia do reino e na relação com as outras criaturas. O sentido do trabalho para os religiosos está diretamente ligado ao serviço à humanidade e ao cumprimento da vocação divina, tendo a missão como conjunto estruturante da relação com o trabalho. A humanidade tem a ver com oblatividade e “ser oblativo é ser-para-os-outros; é doar; é doar-se e entregar a vida em favor do próximo” (VITÓRIO, 2008, p. 13). O religioso exerce uma missão que, em primeiro lugar, está vinculada ao trabalho religioso e ao ideal de plenitude no serviço das coisas divinas. Portanto, o trabalho adquire nas organizações religiosas uma conotação que ultrapassa a noção puramente laica das outras organizações. No exercício do seu trabalho-missão, o religioso também utiliza o sistema de estratégias defensivas para fugir do sofrimento causado pelo serviço religioso. Pertencer a uma organização religiosa e viver 24 horas do dia o preceito religioso que, em princípio, serviria como fonte de prazer, não exime os religiosos de experimentarem o sofrimento. 3 METODOLOGIA Para a coleta de informações, foram entrevistados cinco religiosos diretores, escolhidos intencionalmente entre os 12 religiosos diretores de colégios jesuítas no Brasil. Com as entrevistas cuidadosamente transcritas (corpora), a análise do discurso foi feita por meio de leituras exaustivas dos corpora, seguidas do destaque de seqüências discursivas relativas ao trabalho/ missão/ prazer/ sofrimento. Essas seqüências foram agrupadas em seis grupos: relato de um dia de trabalho, missão e obediência, prazer, lazer e descanso, sofrimento e estratégias de defesa. Na análise, levaram-se, também, em conta as condições de produção do discurso, obtidas nas entrevistas e por meio de questionário. São informações sobre o contexto dos colégios e da vida dos entrevistados. 4 RESULTADOS

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Diferente do proposto no objetivo da pesquisa, a relação apresentada por todos os diretores é missão/trabalho e não trabalho-missão. Isso pode ser visto por meio de seqüências discursivas em que a missão aparece como o elemento que justifica as atividades desenvolvidas:

“Eu nunca desejei, nunca pedi para ser diretor. Agora, eu aceitei como missão que a Companhia de Jesus confiou”. “Ser administrador é uma missão também. Segue uma via, uma ponte”. “Eu sou diretor, enviado aqui pela Companhia de Jesus”. “Depois de lá, era para voltar para Salvador. Aí me mandaram pra cá. [...] Você fica lá depois assume [...]”.

Como se percebe, todos os diretores colocam a missão na frente do trabalho. O contexto da organização à qual os entrevistados se vinculam propicia essa percepção. O sentido do trabalho para eles é posterior ao da missão, pois essa tem o caráter integrador do compromisso vocacional. É, segundo Vitório (2008), ligada ao doar-se aos outros e organizadora da vida, porque se inscreve como um bem divino. A missão é totalizante e adquire características das instituições totais apresentadas por Goffman (1967), como atestado pela fala do entrevistado: “A minha vida toda, meus horários, minhas preocupações, tudo, tudo, está completamente determinado pelo meu trabalho e pela minha missão. Então, eu não posso pular fora da minha sombra”. Essa missão, ligada essencialmente ao aspecto religioso e vocacional, pode ser vista também sob a perspectiva apresentada por Enriquez (1997) quando trata das instâncias mítica e organizacional das organizações. Para ele, a presença do mito está ligada à origem das coisas, estruturando o mundo e as pessoas, agrupando-as ao redor de uma narrativa identificadora. Nas organizações religiosas, a narrativa identificadora está presente nos princípios repassados durante todo o processo de formação dos novos religiosos e reafirmados constantemente por meio da estrutura organizacional. Assim, a missão reúne um caráter totalizante enquanto ligada ao mundo religioso, e esse é responsável por garantir uma oblação de vida. Tem também um forte apelo cultural quando congrega indivíduos em torno de um discurso unificador capaz de dar segurança e conformidade. O voto de obediência tem papel muito importante na definição da percepção da relação trabalho–missão. Os diretores têm na obediência o elemento unificador do seu discurso:

“Que é obediência? Eu renuncio a decidir sozinho. [...] mas eu acredito nisso também: Não decidir sozinho significa que Deus decide por mim e tem os mediadores, superiores e tal”. “Quer dizer, nunca passou pela minha cabeça ser diretor de escola, mas por obediência e também pode ser até mesmo por uma necessidade da província”. “Eu não posso dizer que eu não aceitei [...] eu não tinha muito como recusar, da maneira como tinham colocado, tendo feito os últimos votos”.

A partir dessas falas, é possível afirmar que existe um discurso sobre a obediência, e esse leva, diretamente, à missão. Os entrevistados colocam a obediência como o meio que leva o religioso a assumir a missão que é central para a organização religiosa. O religioso obedece, e por isso assume uma missão, e esta compreende o desenvolvimento de diversas atividades, como no caso dos diretores de colégios entrevistados, formando o tripé obediência–missão–trabalho, que leva à aquisição de identidade social e ao reconhecimento pelos pares e pela sociedade. Quanto à relação trabalho/prazer, nas entrevistas feitas, chama atenção o fato de não haver citação explícita da palavra prazer. A ausência da palavra não implica que os religiosos entrevistados não experimentem prazer no desenvolvimento de suas atividades, como se pode ver nas seguintes falas que mostram situações em que há expressão de reconhecimento, valorização, gratificação, alegria e motivação, indicadoras de prazer (DEJOURS, 1992):

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“Estou aqui até agora, feliz da vida!” “Então, eu digo: Eu estou fascinado com o potencial da instituição, com a qualidade de muita gente que trabalha na instituição”. “Tudo o que a gente faz aqui, todo mundo colabora. Os setores interagem e tudo acontece da melhor forma possível. Realmente, eu estou muito feliz. [...] Realmente, eu estou muito tranqüilo, muito feliz com essa equipe”.

Há, assim, um discurso de realização, e este é, segundo Dejours (1992), indicador do prazer no trabalho. Essa realização implica o equilíbrio entre a organização do trabalho e a estrutura mental do trabalhador e pode levar o indivíduo a desenvolver atividades criativas. A instância que aparece como fonte geradora de prazer está situada na relação com as pessoas: “Qualquer jesuíta que vier trabalhar aqui no meu lugar, com essa equipe, não vai ter nenhuma perturbação”. A relação trabalho/sofrimento tem sua expressão na sobrecarga de atividades, observada a partir da descrição de um dia de trabalho dos entrevistados:

“Eu levanto [...], procuro vir logo cedo pra cá, mesmo antes de tomar café”. “E quando é ali pelas 6h da tarde, nós temos a missa da comunidade. Então a gente dá um jeito e se manda. Tem que marcar a nossa missa lá. O almoço, não dá para ser certinho assim, ao meio-dia”. “Tem dia que a gente vai meio-dia, tem dia que vai meio dia e meia, tem dia que vai uma hora! Ontem de manhã, cheguei aqui, tive também missa às 6h30 e sai daqui 9h da noite. Então, o dia de ontem... é muito variado”. “Muitas vezes, eu tenho que entrar pela noite, e fico assim 7h, 8h da noite [...]. Então, é uma agenda assim pesada, que eu tenho que rever do ponto de vista do tempo”.

Essa sobrecarga retrata o que Libanio (2005) apresenta como impacto da realidade contemporânea sobre a vida religiosa. Segundo ele, existe uma confusão entre vocação e trabalho, e o religioso se vê envolvido na busca por credibilidade por meio de estudos e especializações, correndo o risco de entrar na ciranda da busca por êxito meramente comercial. Essa confusão pode desencadear o que Dejours (1992) chama de “sofrimento no trabalho”. Para ele, o sofrimento chega ao indivíduo quando o espaço de liberdade sobre a organização do trabalho é bloqueado e pode se manifestar por meio do sofrimento mental e físico. Outro indicador de sofrimento são as estratégias de defesa usadas pelos indivíduos no exercício das suas atividades. Para Dejours (1992) a existência delas aponta o sofrimento e busca de proteção e equilíbrio:

“Eu, pessoalmente, desde o primeiro dia não trato disso. [...] Também pra evitar uma imagem... porque quando procuram um diretor jesuíta, já vêm em nome do evangelho, da caridade, da bondade”. “O máximo que pode fazer é não dar certo. Eu não vim com um peso. E assim, se não der certo, eu não vou ficar frustrado”. “Então, eu decidi o seguinte: no primeiro ano eu vou arriscar. A instituição é sólida. Se eu errar alguma coisa, não vai desmoronar, não é possível”.

Nessas seqüências discursivas, é possível captar a existência do sofrimento, expresso seja por meio da racionalização, da passividade ou do individualismo no trato com o desenvolvimento das atividades. É uma estratégia de defesa baseada na justificação. Existe, ainda, um sofrimento que é percebido em outras falas:

“Eu não tenho curso de administração, mas aprendi que só sai o que entra. Isso é a regra básica. Não pode sair mais do que entra”. “A dificuldade, digamos assim, secundária, é que eu não sou da área da educação”. “Da parte administrativa eu tenho um certo faro, que sem ter nenhuma preparação específica consigo dar a impressão que tenho, e às vezes dá certo”.

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Essas três seqüências discursivas apresentam um tema que é muito importante na definição do sofrimento: a diferença entre a realidade e as exigências das atividades. Dejours (1992), diz que o sofrimento se dá pela distância entre o real e o prescrito pela organização do trabalho e que quanto maior essa distância, maior o grau de sofrimento para o indivíduo. Ao dizer que não possuem formação para o trabalho, os entrevistados estão mostrando que há uma distância entre a realidade e as exigências da missão. Essa distância, segundo Libanio (2005), é uma característica da pós-modernidade, que exige o desempenho de tarefas sem a devida preparação dos indivíduos que estão responsáveis pela execução. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Perguntar sobre trabalho na vida religiosa, sobre o impacto da realidade atual nas organizações religiosas e sobre o sentido do trabalho compôs o quadro norteador da pesquisa. Dessa forma, é possível afirmar que os objetivos foram alcançados de forma clara por meio da análise do discurso feito sobre os corpora construídos com as entrevistas e considerando o contexto ou condições discursivas em que elas foram produzidas. Foi possível encontrar um discurso da missão em que o trabalho aparece como subordinado à missão, levando a uma inversão na formulação feita nos objetivos iniciais, que buscavam a relação trabalho–missão. As informações levantadas apontaram a importância maior atribuída à missão, sugerindo a inversão para missão–trabalho, o que não é meramente um efeito de posição na grafia dos termos. É definidora de uma relação que se estabelece pelo princípio religioso, mostrando uma forma própria de ver o mundo e as relações firmadas entre as diferentes áreas de atuação dos religiosos. Ao colocar na frente a missão, o religioso sinaliza para algo que vai além da simples execução de atividades, chegando ao comprometimento da vida como um todo. Essa percepção só pode ser interpretada levando-se em conta o caráter vocacional, totalizante e cultural aí implicado. A missão, como elemento integrador, é constitutiva do ser religioso. É capaz de unificar os discursos, o modo de viver, a visão de mundo e, principalmente, a forma de atuação dos membros das organizações religiosas. Se a missão é o discurso integrador, a obediência apareceu como o discurso unificador, e aqui se encontra uma descoberta do presente trabalho. A obediência faz parte de um conjunto formado ainda pela pobreza e castidade, de valores evangélicos que os indivíduos professam quando da entrada numa organização religiosa e objetivam deixar o religioso livre para o trabalho missionário. A missão integra e a obediência unifica. Esse discurso encontrado na fala dos diretores entrevistados mostra uma sutileza muito grande, porque tanto a integração como a unificação fazem parte do mesmo universo totalizante que é a vida religiosa, embora cada um traga consigo especificidades que só podem ser captadas por meio de uma análise detalhada dos determinantes do discurso. Para os diretores entrevistados, a obediência unifica, porque é ela que imprime o caráter de ser enviado, e muitas das seqüências discursivas destacadas na análise mostram esse aspecto. Para cumprir a missão, é preciso ser enviado, e o envio é por meio da obediência, que, em última análise, é feita a Deus. Portanto, sendo o trabalho subordinado à missão, é necessário analisá-lo não somente por meio da sua execução, mas, principalmente, pela via espiritual e religiosa, na qual se encontra. De forma sintética pode-se dizer que, explicitando o discurso dos diretores entrevistados, os objetivos da pesquisa foram totalmente alcançados. Descobriu-se que a principal relação é aquela estabelecida entre missão–trabalho, e não entre trabalho–missão, como havia sido proposto nos objetivos. Surgiu um discurso que tipifica as atividades desenvolvidas como missão, que são aquelas que têm a sua base no caráter espiritual e religioso, marcada pela obediência.

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