prÁticas escolares alternativas no ensino bÁsico ... · da década de 1930 e do início dos anos...
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PRÁTICAS ESCOLARES ALTERNATIVAS NO ENSINO BÁSICO: PRODUZINDO
SIGNIFICADOS SOBRE IDENTIDADES E DIFERENÇA NO ESTUDO DOS POVOS
INDÍGENAS
Isabel Cristina Fraga Dier1
Instituto de Educação Olívia Lham Hirt
Laura Nelly Mansur Serres2
Colégio de Aplicação/UFRGS
Tanise Müller Ramos3
Colégio de Aplicação/UFRGS
A partir dos documentos legais que orientam o Ensino Básico, somados aos aportes
teóricos oriundos do campo dos Estudos Culturais, este artigo pretende ser uma contribuição
para refletir acerca do modo como o estudo dos povos indígenas vem sendo desenvolvido
durante décadas na escola moderna ocidental centrado na reprodução de estereótipos e
preconceitos. Pretendemos mostrar que atualmente existem, no âmbito da educação, tentativas
de tratar esse assunto de um modo alternativo, diferenciando-se desses enfoques anteriores. A
análise é feita à luz dos aportes teóricos que visam ao respeito das diferenças culturais, num
intento para contribuir com um mundo mais harmônico e solidário. Para isso, apresentamos,
de modo sucinto, possíveis estratégias que possibilitem contextos mais significativos de
aprendizagem, contribuindo para a quebra de estereótipos e preconceitos, tarefa essa que
parece começar a tomar força no âmbito educativo atual com o apoio de diferentes aportes
teóricos, estudos e pesquisas de campo.
Introdução
1 Pedagoga no Instituto Estadual de Educação Olivia Lham Hirt – Igrejinha /RS. Professora da Sala de Recursos das Escolas Municipais de Igrejinha. Pós-graduação em Psicopedagogia Clínica. Especialização em Atendimento Educacional Especializado AEE. E-mail: [email protected] 2 Professora de Espanhol do CAp/UFRGS. Mestre. em Letras, na área da Literatura Infanto-Juvenil pela PUCRGS. Especialista em Integração e Mercosul pela UFRGS. Licenciada em Comunicação Social pela Universidad Nacional de Córdoba – UNC. E-mail: [email protected] 3 Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected]
No contexto educacional brasileiro decorrente da lei 11.645/2008, a qual tornou
obrigatório o ensino de história e cultura indígena nas escolas, constatamos que um assunto
que hoje deve compor o currículo do Ensino Básico é o estudo dos povos indígenas,
despertando uma ampla gama de interrogantes sobre como abordar esse estudo em sala de
aula, além do questionamento acerca de quais recursos pedagógicos utilizar, dentre os quais
estariam os livros didáticos e outros materiais impressos e de relevância social.
Citando como exemplo, uma possibilidade para este trabalho seria o uso de textos
provenientes de revistas, mas é possível perceber, com base nos aportes teóricos de Bonin e
Ripoll (2015), que embora essas publicações tenham adquirido status de material adequado
para o trabalho em sala de aula, o professor precisa atentar para os conteúdos divulgados
nesses veículos massivos, já que contamos com estudos que demonstram que há
intencionalidade no tratamento das informações, influenciando modos de pensar o “outro” e o
“diferente”. As representações presentes nesses materiais, muitas vezes tomando como
referência o espaço social e cultural em que estamos inseridos, apresentam modos de vida
únicos e fixos como verdades, dificultando a possibilidade de pensar as diferenças culturais.
Este artigo pretende, então, motivado por essas e outras questões acerca da inclusão do
estudo dos povos indígenas no currículo, constatar que os alunos vem construindo alguns
estereótipos e preconceitos na escola, ou seja, algumas ideias pré-concebidas sobre aquele que
é diferente quanto ao seu pertencimento cultural.
Assim, pretendemos focar nas práticas pedagógicas que o docente poderia desenvolver
ao incluir o estudo dos povos indígenas em suas aulas, delineando ações que tendam a
contribuir para a quebra dos estereótipos e preconceitos já arraigados ao cotidiano escolar.
Desse modo, pensando que o professor dispõe de diferentes materiais impressos para o seu
trabalho, dentre eles revistas que trazem representações acerca dos povos indígenas, alertamos
para o fato de que muitos desses materiais podem ser tendenciosos, reforçando os estereótipos
e sedimentando a discriminação. Como alternativa, valorizaremos estratégias que permitam
aproximar o aluno dos contextos vividos pelos povos indígenas, de modo que ao aluno seja
possível vivenciar realidades alheias ao seu cotidiano, como é, por exemplo, a visita a uma
aldeia indígena, que permitiria ao aluno por ele mesmo construir algumas conclusões,
contrapondo a interferência dos discursos prévios que reforçam imagens estereotipadas e
preconceitos.
Objetivamos mostrar que esse tipo de estratégia consiste em práticas pedagógicas
alternativas para aquelas que historicamente caracterizam a escola tradicional, constituindo
assim um aporte à consecução de um mundo mais plural e solidário, com base no respeito às
identidades e diferenças culturais. Apresentaremos também uma breve sondagem feita a
professores e alunos acerca de suas representações sobre o enfoque dado aos povos indígenas
na escola, corroborando com os depoimentos contidos nos trabalhos de Bonin (2008), ao
demonstrar que existe uma responsabilidade docente no tratamento dado aos povos indígenas
na escola, traçando possibilidades e dificuldades para a implementação da lei 11.645/2008.
A interculturalidade e o respeito às diferenças na escola: uma tarefa que vem se
construindo
Para desenvolver a reflexão que propomos, é conveniente lembrar que o nacionalismo
da década de 1930 e do início dos anos 1940 contribuiu tanto para a expansão do sistema de
ensino básico no Brasil e em outros países, como para uma reapropriação da figura dos índios
pelos Estados nacionais, em particular do continente americano (FUNARI, 2011). Um dado
importante para ser resgatado é que em abril de 1940, reuniu-se em Patzcuaro, no México, o
Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, tendo sido o dia 19 de abril sugerido por
representantes indígenas como data comemorativa do índio para todo continente americano.
Essa data coincidia com festividades ligadas à primavera no Hemisfério Norte e sugeria, de
alguma maneira, o renascimento da temática indígena em todo o continente.
Foi por tais motivações que, em plena ditadura do Estado Novo no Brasil (1937-1945),
o presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei nº5540/1943, declarando o dia 19 de abril
como Dia do Índio. Com isso, a temática indígena, antes quase ausente, foi introduzida no
calendário escolar brasileiro. A partir de então, e até hoje, a data é comemorada nas escolas
com diversas atividades, gerando discussões teóricas sobre as implicações pedagógicas que o
tratamento do tema no espaço escolar gera e a repercussão desse trabalho na representação
social do índio.
Considerando as ideias já expostas, pensamos que discutir esses assuntos requer não
apenas problematizar o que se consolidou na escola e na sociedade acerca dos povos
indígenas, mas também propor novas maneiras de representar esse segmento social.
Nesse sentido, um trabalho pedagógico alternativo que aborde a questão indígena
precisa, em primeiro lugar, considerar a interculturalidade como um processo real da vida,
uma tomada de posição ética a favor da convivência com as diferenças, permitindo um
enriquecimento mútuo das culturas em diálogo. Pensadores latino-americanos, como Fornet-
Betancourt (2010) e Paulo Freire (1967), ao valorizarem o diálogo como forma de interação
entre os povos, nos auxiliam a pensar a interculturalidade e o respeito às diferenças como um
caminho de esperança.
Para Santos (2007), temos o direito de sermos iguais quando a nossa diferença nos
inferioriza, e temos o direito de ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza.
Enfim, temos o direito de ser diferentes na igualdade. Por isso, é preciso encontrar um diálogo
que respeite as diferenças, tal como expressa Santos: “É preciso encontrar outro tipo de
diálogo entre as diferentes filosofias, e também aqui aparece o desafio. É preciso conversar
muito mais, dialogar muito mais, buscar outra metodologia de saber, de ensinar, de aprender.”
(SANTOS, 2007, p. 57).
Nesse sentido, para construirmos uma prática pedagógica que seja capaz de incluir o
estudo da história e cultura indígena, problematizando estereótipos e preconceitos, é preciso
haver uma nova relação entre o reconhecimento das identidades e das diferenças e o combate
à desigualdade. Assim, a Educação pode ser vista como uma busca incessante e sem prazo
pela emancipação dos povos indígenas que ainda são invisibilizados na sociedade, numa luta
pelo reconhecimento da diferença e também pela igualdade dos sujeitos. Em outras palavras,
em uma luta pelo direito às identidades culturais dos diferentes povos indígenas.
Acreditamos, pois, que os encontros interculturais fortalecem os laços entre as
culturas, cooperando assim para a consecução de um mundo plural e solidário. Nesse
contexto, é importante incentivar o aluno a se aproximar das práticas de outras culturas,
vivenciando, por exemplo, a língua do outro, os costumes do outro, o modo de ser e de pensar
do outro, em um ambiente de imersão real, promovendo que o diálogo entre povos seja
possível, estabelecendo vínculos duradouros.
Pensamos que uma experiência dessa natureza, ou seja, do encontro entre culturas,
pode permitir ao aluno reconhecer os diferentes pontos de vista, concepções de mundo e
perspectivas, o que pode ser potencializado quando o aluno expressar suas vivências de modo
escrito, produzindo textos significativos para ele. Desse modo, o estudante pode construir um
retrato da diversidade vivenciada, permitindo que faça reflexões significativas para o
estabelecimento de relações humanas baseadas no respeito, compreensão e aceitação das
diferenças. As apreciações dos alunos, suas impressões e dúvidas podem ser representadas em
trabalhos escolares que permitam exercitar a oralidade e a escrita de modo contextualizado,
isto é, a partir de um assunto em estudo que seja significativo para ele.
Portanto, valorizamos a necessidade de se construir um olhar pedagógico focado
numa educação para a interculturalidade, reconhecendo a responsabilidade docente implicada
nesse processo e o papel da escola no combate aos estereótipos e à discriminação. Parece-nos
que o estudo dos povos indígenas, nesse sentido, colabora para essa mudança de paradigmas,
ao colocar como uma demanda pedagógica a valorização das identidades e diferenças no
espaço escolar.
Estereótipos e discriminação: o papel da escola
Segundo Babo (2007), através da socialização o indivíduo está em contato permanente
com estereótipos e preconceitos. Salienta que os estereótipos chegam por meio da publicidade,
cinema, televisão, internet, imprensa escrita e literatura. A autora reflete sobre a importância da
desmontagem ou desconstrução deles, ou seja, diz que se faz necessário desfazer pela análise o
que se encontra estruturado.
Babo afirma ainda que estereótipo e preconceito são dois conceitos distintos, mas que
se confundem frequentemente. Assim, no conceito de estereótipo, segundo a
autora, predomina a dimensão de classificação, sendo um juízo redutor falseado ou mesmo
contraditório. Salienta também que quase sempre possui uma carga depreciativa, feita com
desconhecimento de causa e referente a um determinado grupo e seus elementos. Já o
preconceito é apresentado como o elemento afetivo mais intenso, encerrando uma implicação
avaliativa quase sempre negativa e se referindo a um objeto ou a um grupo social.
Decorrente destes processos, temos ainda a discriminação, que é descrita
como comportamentos lesivos das capacidades e dos direitos do outro e é representada por
um ou vários indivíduos pertencentes a um grupo étnico, nacional, sexual, religioso ou etário.
Desse modo, podemos deduzir que no ambiente escolar, tanto professores como
alunos convivem com certos estereótipos e isso não significa que existam necessariamente
preconceitos e, em consequência, discriminação. Mas é importante que o docente saiba
detectar esses elementos para conseguir delinear caminhos que ajudem o aluno a respeitar as
identidades e diferenças, valorizando as particularidades das culturas que convivem no mundo
atual. Ou seja, um trabalho possível, nesse sentido, no Ensino Básico, poderia consistir em
analisar estereótipos que os alunos possuem em relação a uma outra cultura, como pode ser a
cultura de um povo indígena, e observar se eles (os estereótipos) vem carregados de
preconceitos e discriminação. A partir desses dados, pensamos que o docente poderá fazer
uma leitura que aporte subsídios para delinear as estratégias necessárias, em vistas de um
trabalho que aponte à integração e respeito às identidades e diferenças culturais.
A opção de usar revistas como material didático: algumas problematizações
Considerando que existem várias revistas ao alcance dos alunos do Ensino Básico, é
possível que em alguns momentos o professor escolha matérias desses meios de comunicação
massivos para tratar em aula e decida usá-las como material didático.
A partir disso, pensamos que é importante lembrar as ideias de Bonin (2008) em
relação a esses materiais de ampla difusão, antes de levá-los para a sala de aula. A autora faz
referência às representações que esses materiais constituem sobre os povos indígenas. Analisa
diversas reportagens sobre as comunidades indígenas e o modo como o jornalismo trata esse
assunto, afirmando que a revista, muitas vezes, constrói e coloca em circulação representações
que servem para corroborar com as ideias de “atraso”, “barbárie” e de “manipulação” dos
povos indígenas. Salienta que determinadas revistas conferem destaque à representação do
“índio que dá certo”, justamente quando em articulação com o agronegócio (ibidem, p .167).
A autora prossegue dizendo que, “[...] a noção de “progresso”, aplicada ao plano econômico,
funde-se ao social quando a revista defende, por exemplo, que os índios bem-sucedidos
seriam aqueles alinhados ao modo de produção agrícola mecanizado em larga escala.” (Bonin,
2008, p. 167).
A pesquisadora refere em suas análises que observa uma “ênfase no entendimento da
terra como um recurso importante, seja para a manutenção dos estilos de vida indígena [...],
seja para a expansão das fronteiras agrícolas e ampliação da lucratividade” (Bonin, 2008, p.
170 - 171). E ainda complementa, afirmando que
Os conflitos de terra descritos nas reportagens analisadas são representativos de
diferentes modelos em disputa [...] constroem uma espécie de transição entre as
práticas indígenas e as práticas de agronegócio, na qual as primeiras figuram como
ultrapassadas, como algo indesejável, a superar, e as do agronegócio seriam “o ponto
de chegada”, o desejável “progresso”, que permitiria aos índios escapar de seu suposto
destino trágico. (ibidem, p.171)
Bonin e Ripoll (2015) salientam que os embates dos povos indígenas pela posse e
destinação das terras também são temas frequentes nas revistas, onde a imagem de um índio
“invasor”, “ganancioso” e “insatisfeito” com as terras que já possui é construída e perpetuada.
Corroborando com tais afirmações, Oliveira (2008) refere-se também a algumas
revistas e livros didáticos, estudando como esses materiais constroem a identidade dos povos
indígenas. Explica que os livros deixaram de ser o único recurso didático disponível nas
escolas e que as revistas tem sido utilizadas até receberem um status de material de consulta
para a elaboração de trabalhos escolares. A autora entende que
[...] os discursos que circulam nas revistas devem ser tomados como um “dispositivo
pedagógico”, pois ensinam a olhar e a dizer como somos e como são os outros, além
de pretenderem ensinar a solução a “problemas” financeiros, sentimentais, escolares,
familiares, religiosos, enfim, para todas as questões (OLIVEIRA, 2008, pág. 28, grifos
do autor).
A citada autora observa que “várias são as representações de identidade indígena, que
se distribuem diferentemente entre livros didáticos e revistas” (OLIVEIRA, 2008, página 28).
A autora, no seu trabalho, procura destacar alguns discursos que se articulam e mostram os
indígenas como selvagens e ameaçadores. Dá exemplos do tratamento informativo que mostra
um índio atual “comprometido” com práticas “monstruosas” do passado, ensinando assim, a
olhar o índio como irracional e desprovido de sensibilidade humana.
Desse modo, as fotos, por exemplo, mostrando o índio esticando um arco, como se
fosse atirar uma flecha, assim como uma oca, fixam um modo de vida como único, reforçando
estereótipos presentes também em outros textos, como os livros didáticos. Muito
esclarecedora é a apreciação da citada autora quando diz:
Relembramos que mostrar a casa constitui uma das formas através das quais os livros
narram os “diferentes”, os que “fogem à normalidade”. Além disso, a “oca” tem sido
um dos ícones para marcar a singularidade indígena [ ] mas também outros discursos
apontam para formas de comportamento dito selvagem, como a vida na mata, o
“estilo” das habitações, os instrumentos de trabalho, as vestimentas, a forma como
obtém e utilizam os recursos, etc. Eles tendem a universalizar associações do tipo:
índios usam arco e flecha, moram em ocas, furam o corpo para colocar objetos
“estranhos” como ossos e pedaços de madeira considerados enfeites, andam nus (ou
seminus), enfim, são diferentes e… assustadores. (OLIVEIRA, 2008, página 30).
Novos caminhos e algumas mudanças
Depois das reflexões realizadas, consideramos interessante apresentar brevemente
algumas experiências práticas já efetivadas. Destacamos o projeto pedagógico realizado nos
Anos Iniciais do Colégio de Aplicação da UFRGS e alguns depoimentos sobre o estudo dos
povos indígenas de alunos e professores do Instituto de Educação Olívia Lham Hirt de
Igrejinha/RS. Ambas as experiências nos levam à reflexão sobre a presença de estereótipos,
preconceitos e discriminação na escola, o que leva à consideração da responsabilidade
docente na desconstrução desses elementos historicamente presentes no ambiente escolar.
No ano de 2016, o Colégio de Aplicação da UFRGS desenvolveu um projeto
pedagógico com as crianças dos Anos Iniciais, envolvendo o estudo dos povos indígenas. O
trabalho fez parte dos estudos de Iniciação Científica das crianças e tinha como objetivo, além
do estudo dos povos indígenas, a introdução no pensamento científico, ajudando as crianças a
formular perguntas e elaborar hipóteses sobre diferentes temáticas relacionadas aos povos
originários. Contrapondo o uso já tradicional de revistas e livros didáticos nas escolas, nesse
projeto foi feita a escolha de visitar com os alunos a aldeia indígena guarani Pindó Mirim,
localizada na cidade de Viamão (RS). A descrição dessa saída de campo, preparação dos
alunos, recepção na aldeia, impressões dos alunos, assim como os questionamentos deles
encontram-se registrados em material audiovisual e foi enviado para a aldeia visitada, a fim de
estabelecer um diálogo com a comunidade guarani. Não temos como objetivo detalhar todo o
trabalho realizado aqui neste espaço, pois somente citaremos alguns elementos que ajudam a
dar suporte e ilustrar as reflexões teóricas contidas no presente artigo, corroborando-as.
Neste sentido, cabe destacar algumas cenas significativas. Antes da saída de campo,
foi proposto para os alunos (em fase de alfabetização) que desenhassem o que eles achavam
que encontrariam no lugar que visitariam. O objetivo dessa etapa do trabalho era observar
quais estereótipos estariam presentes nos desenhos para depois, na volta da visita, analisar
com as crianças sobre se essas representações coincidiram ou não com o que fora vivenciado
na comunidade visitada. Esses desenhos dariam subsídios para saber por quais caminhos
realizar o estudo dos povos indígenas, partindo dos estereótipos presentes que precisariam ser
desconstruídos, sempre apontando à consecução de um trabalho intercultural que ajudasse as
crianças a olhar as diferenças com respeito.
Para tal fim, foi entregue para cada criança uma folha de papel A4 com a seguinte
consigna: “Faça um desenho sobre o que você espera encontrar na aldeia indígena que
visitaremos. Por exemplo: As roupas que os indígenas usam; o almoço deles; as brincadeiras
das crianças; como é a sua escola; como são as suas festas; outros costumes que você acha
que eles tem”.
A partir dessa proposta, alguns elementos que apareceram nos desenhos e escritas
foram: arco, flecha, oca, penas na cabeça, natureza, animais, vida ao ar livre, partes do corpo
nuas. Os desenhos permitiram interpretar que os alunos possuíam ideias pré-concebidas em
relação aos povos indígenas que muito tem a ver com as imagens difundidas por alguns livros
didáticos e revistas (Figura 1). Nesse sentido, citaram conteúdos midiáticos, como desenhos
animados, além de cenas escolares que estavam embasando suas hipóteses, o que reforça a
nossa tese de que os estereótipos e preconceitos são também ensinados na escola.
Figura 1- Desenhos das crianças antes da visita à aldeia indígena
Na volta da saída de campo à aldeia, foi solicitado para as crianças que desenhassem o
que viram lá e os resultados indicaram a presença de outros elementos: pessoas reunidas em
grupos ou em torno de uma mesa, muitas pessoas parecidas com as próprias crianças do
Colégio, trajando roupas “como as nossas”, sem a presença de penas como adornos para o
corpo, pessoas brincando, pessoas conversando com sorriso no rosto, vida ao ar livre,
corações vermelhos em volta de pessoas felizes, algumas palavras em guarani (Figura 2).
Figura 2 – Desenhos das crianças depois da visita à aldeia indígena
A comparação dos desenhos permitiu observar que vários dos elementos desenhados
antes da visita à aldeia não foram recorrentes nos desenhos realizados posteriormente à visita.
Isso permitiu iniciar uma conversa com os alunos sobre como, em alguns casos, temos ideias
sobre pessoas e lugares que na verdade não correspondem quando temos oportunidade de ter
vivências pessoais (e não somente por meio de livros e revistas).
Nossa intenção com essa proposta foi reconhecer alguns dos estereótipos dos alunos,
tentando problematizá-los por meio de um contato real com uma comunidade indígena,
realizando atividades que não se esgotaram na simples visita. Pudemos observar a surpresa de
muitas crianças, ao se depararem pela primeira vez com uma comunidade indígena real,
despojada das representações sociais comumente apresentadas nos veículos midiáticos e
escolares. Afirmamos, assim, a necessidade de uma proposta pedagógica intercultural,
baseada no diálogo e na desconstrução dos estereótipos e preconceitos para o respeito das
diferenças culturais.
Outra experiência que selecionamos para destacar foi desenvolvida no Instituto de
Educação Olívia Lham Hirt, situado em Igrejinha/RS, onde foi solicitado para alguns
professores e alunos que relatassem alguma lembrança sobre atividades e/ou materiais usados
no estudo dos povos indígenas, na ocasião em que foram alunos da Educação Básica. A
proposta partia de algumas perguntas orientadoras: “O que você lembra sobre como era
festejado o dia do índio há alguns anos atrás? Como é festejada e trabalhada atualmente essa
data nas escolas?”.
De modo geral, as respostas dos professores a respeito de suas lembranças escolares
incluíram: uso de cocares de penas, indumentária indígena, pintura no rosto com tinta verde e
amarela, confecção de colares, trabalhinhos e musiquinhas, confecção de utensílios indígenas.
Algumas falas exemplificam essas constatações:
No meu tempo de escola, não se trabalhava muito, alguns professores faziam cocar.
Há alguns anos atrás (quando eu estudava), o dia do índio era trabalhado de forma lúdica, com
confecção de colar com sementes, cocares de penas, arco e flecha, etc.
Faziam-se cocares e se pintava a cara com tintas verde e amarela.
Dentre os alunos entrevistados, podemos destacar os seguintes elementos presentes na
abordagem dada ao tema atualmente: trabalhos sobre a cultura indígena, como comem, como
vivem, suas tradições, debates, estudo da sua cultura, explorando diversas áreas do
conhecimento, atividades criativas, uso da tecnologia pelo índio.
Podemos observar que entre as respostas dos professores e as respostas dos alunos
existe uma diferença de enfoque dado ao estudo dos povos indígenas. Parece-nos haver um
deslocamento da abordagem de um indígena aprisionado em estereótipos que o relaciona a
arcos, flechas, pinturas, penas e cocares para um indígena marcado pela diversidade cultural,
apontando várias possibilidades para o enfoque dado ao trabalho. Chamamos a atenção para o
fato de os alunos entrevistados terem tido experiências escolares sobre os povos indígenas que
os relacionavam à sua história e cultura, modo de vida, participação na formação da cultura
brasileira, uso da tecnologia, dentre outros, mostrando que as respostas dos alunos foram
capazes de destacar vivências mais plurais em relação às experiências escolares que seus
professores tiveram quando crianças4.
4 Algumas experiências citadas pelos alunos: debates em torno de documentários, leitura de textos, discussão sobre leis, imagens, pesquisas, músicas, notícias, visitas a aldeias, entrevistas com lideranças indígenas.
Desse modo, podemos observar que existe diferença quanto à abordagem dos povos
indígenas na escola, especificamente na época escolar dos professores que em 2016 estavam
em exercício no Instituto Instituto de Educação Olívia Lham Hirt e o modo como essa questão
é tratada nos dias de hoje na mesma instituição com os alunos do Ensino Médio. Observa-se
que os elementos das respostas dos professores reforçam estereótipos, limitando-se a pintar o
rosto, fazer colares, cantar musiquinhas. Em contrapartida, os alunos foram capazes de citar
outros elementos que incluem estudos da cultura e história dos povos indígenas, numa
abordagem contextualizada e menos estereotipada. Acreditamos que é justamente a
desconstrução desses estereótipos e preconceitos que estaria criando condições para o diálogo
e para uma educação intercultural.
Conclusão
As experiências realizadas tanto no Colégio de Aplicação como no Instituto de
Educação Olívia Lham Hirt constituíram um modo de abordar o estudo dos povos indígenas
de forma alternativa às práticas tradicionais, baseadas na leitura de livros didáticos e revistas.
Sem a intenção de desmerecer a utilidade desses materiais nas atividades pedagógicas, o
estudo permitiu ampliar as possibilidades desse trabalho, não sendo restringido a somente um
dia ou a uma semana do índio. Pelo contrário, foi possível observar que a estratégia de visitar
a aldeia desencadeou um trabalho de diálogo cultural que se estendeu ao longo de um ano
letivo, comprovando que a desconstrução de estereótipos e preconceitos necessita de tempo
pedagógico para acontecer.
Nossa conclusão, portanto, é a de que já podemos visibilizar na escola atual estratégias
pedagógicas que possibilitam contextos mais significativos de aprendizagem, contribuindo para a
quebra de estereótipos e preconceitos e, de forma mais abrangente, viabilizando uma proposta de
educação intercultural, baseada no diálogo e no respeito à diferença.
Podemos afirmar, a partir dessas constatações, que a implementação do estudo dos povos
indígenas na escola necessita da criação de práticas alternativas àquelas tradicionalmente arraigadas ao
espaço escolar, tais como o uso de livros didáticos e outros materiais impressos geralmente
veiculadores de estereótipos e preconceitos. Atividades como saídas de campo à aldeia, entrevistas
com lideranças indígenas, leituras de imagens, uso de vídeos produzidos por indígenas, dentre outras,
tem servido como iniciativas para o estabelecimento do diálogo com vistas à concretização de uma
educação intercultural.
REFERÊNCIAS
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BONIN, Iara Tatiana; Ripoll, Daniela. “Um olhar que aprisiona o outro...”: os povos
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
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