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Pra Lá e Pra Cá vem meu boi dançar! Gisele Lourençato Faleiros da Rocha 1 Resumo: Esse artigo analisa a manifestação de Reis de Boi presente na cidade de São Mateus/ES. Busco relacionar tempo e ações rituais presentes no Ciclo dos Reis de Boi, no ato de “brincar o Reis”. Apresento resultados de pesquisa participativa, enquanto pesquisadora e brincante de Reis de Boi. Palavras-chaves: Reis de Boi, Brincar os Reis, Pesquisa Participativa, Ritual, Ciclo de Reis de Boi. Os Santos Reis e os Reis de Boi È marcante a presença do boi no imaginário de várias regiões do mundo, constituindo velhas tradições. Dotado de significado místico, o boi é símbolo de bondade e de calma.[...] São muitas as representações do boi em todo mundo, o que nos torna possível afirmar que ele está presente na mitologia clássica e na religiosidade popular de vários países dos cinco continentes, ligado também aos períodos sazonais. No Brasil, o boi aparece em várias manifestações culturais, sendo tema de cantigas, brincadeiras, danças, representações dramáticas, rodeios e vaquejadas 2 . Esse artigo traz referências de vivências pessoais e resultados de pesquisas atuais para minha tese de doutorado. Minhas experiências e lembranças dos Santos Reis vêm da infância, das visitas recebidas e das cantorias realizadas na casa de meus avôs, nos dias do Natal e Ano Novo. Assim ainda acontece em muitas cidades do interior de São Paulo onde passei minha infância e em todo nosso país, com uma variedade de festejos de Santos Reis em homenagem aos Reis Magos, em busca de donativos e expressões de fé. Denominações distintas são encontradas para essa manifestação: Terno de Reis, Folia de Reis, Reisado, Cia de Reis, Reis de Boi, sendo em sua maioria cortejos de caráter religioso popular3 . 1 Doutorada em Imagem e Cultura do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. Técnica da Cultura e Técnica do Núcleo de Formação Regional (CEFOPE/SEDU) da Superintendência Regional de Educação de São Mateus. Integrante do Grupo de Pesquisa NESCAFE (Núcleo de Pesquisas em Estudos Carnavalescos e Festividades CNPq). 2 FREITAS, Enelita de Sousa. Rituais do boi nos espaços da oralidade e da escrita. Salvador: EDUNEB, 2013. 3 PORTO, Guilherme. As folias de Reis no sul de Minas. Rio de Janeiro: MEC-SEC; FUNARTE: Instituto Nacional de Folclore, 1982.

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Pra Lá e Pra Cá vem meu boi dançar!

Gisele Lourençato Faleiros da Rocha1

Resumo: Esse artigo analisa a manifestação de Reis de Boi presente na cidade de São

Mateus/ES. Busco relacionar tempo e ações rituais presentes no Ciclo dos Reis de Boi,

no ato de “brincar o Reis”. Apresento resultados de pesquisa participativa, enquanto

pesquisadora e brincante de Reis de Boi.

Palavras-chaves: Reis de Boi, Brincar os Reis, Pesquisa Participativa, Ritual, Ciclo de

Reis de Boi.

Os Santos Reis e os Reis de Boi

È marcante a presença do boi no imaginário de várias regiões do mundo,

constituindo velhas tradições. Dotado de significado místico, o boi é símbolo

de bondade e de calma.[...] São muitas as representações do boi em todo

mundo, o que nos torna possível afirmar que ele está presente na mitologia

clássica e na religiosidade popular de vários países dos cinco continentes,

ligado também aos períodos sazonais. No Brasil, o boi aparece em várias

manifestações culturais, sendo tema de cantigas, brincadeiras, danças,

representações dramáticas, rodeios e vaquejadas2.

Esse artigo traz referências de vivências pessoais e resultados de pesquisas atuais

para minha tese de doutorado. Minhas experiências e lembranças dos Santos Reis vêm

da infância, das visitas recebidas e das cantorias realizadas na casa de meus avôs, nos

dias do Natal e Ano Novo. Assim ainda acontece em muitas cidades do interior de São

Paulo onde passei minha infância e em todo nosso país, com uma variedade de festejos

de Santos Reis em homenagem aos Reis Magos, em busca de donativos e expressões de

fé. Denominações distintas são encontradas para essa manifestação: Terno de Reis,

Folia de Reis, Reisado, Cia de Reis, Reis de Boi, sendo em sua maioria cortejos de

“caráter religioso popular” 3.

1 Doutorada em Imagem e Cultura do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas

Artes da UFRJ. Técnica da Cultura e Técnica do Núcleo de Formação Regional (CEFOPE/SEDU) da

Superintendência Regional de Educação de São Mateus. Integrante do Grupo de Pesquisa NESCAFE

(Núcleo de Pesquisas em Estudos Carnavalescos e Festividades – CNPq). 2 FREITAS, Enelita de Sousa. Rituais do boi nos espaços da oralidade e da escrita. Salvador:

EDUNEB, 2013. 3 PORTO, Guilherme. As folias de Reis no sul de Minas. Rio de Janeiro: MEC-SEC; FUNARTE:

Instituto Nacional de Folclore, 1982.

Os cultos e as homenagens aos Santos Reis4 acontecem de diferentes maneiras,

tendo cada festejo particularidades próprias em diferentes regiões do Brasil. Além de

diferentes denominações, os festejos de devoção aos Santos Reis apresentam também

diferentes variações, algumas utilizam bandeiras, palhaços (mascarados ou não), com

roupas específicas ou não, musicalidades, ambas com a lembrança, a memória do

“nascimento de Jesus”. No Espírito Santo, encontramos formas e diferenciações dessa

devoção. Nesse estudo especificamente, analisamos os Reis de Boi.

A intenção nesse artigo é relacionar o conjunto de ações rituais presentes no

Ciclo dos Reis de Boi e no ato de “brincar o Reis”. De forma específica trago imagens,

descrições, análises, descobertas a partir do acompanhamento do Grupo de Reis de Boi

dos Laudêncios, escolhido entre os 15 grupos5 atuantes na cidade de São Mateus/ES.

Entretanto, em alguns momentos farei referências às ações e acontecimentos comuns a

todos os grupos, conforme experiências em campo.

Reis de Boi: que são eles?

A manifestação de Reis de Boi, objeto deste estudo, integra-se ao conjunto de

expressões da cultura popular brasileira que prestam devoção aos Santos Reis. Sendo

4 A religiosidade e contemplação dos Reis Magos encontra-se associada a adoração do Menino Jesus, à

passagem bíblica que traz referências da visita dos Reis Magos. [...] nascido o menino Jesus na cidade de

Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém e

perguntaram: “Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Nós vimos a sua estrela no oriente e viemos

para prestar-lhe homenagem”. Ao saber disso, o rei Herodes ficou alarmado, assim como toda cidade de

Jerusalém. Herodes reuniu todos os chefes dos sacerdotes e os doutores da Lei, e lhes perguntou onde o

Messias deveria nascer. Eles responderam: “Em Belém, na Judéia porque assim está escrito por meio do

profeta: E você, Belém, terra de Judá, não é de modo algum a menor entre as primeiras cidades de Judá,

porque de você sairá um chefe, que vai apresentar Israel, meu povo.” Então Herodes chamou

secretamente os magos e investigou junto a eles sobre o tempo exato em que a estrela havia aparecido.

Depois os mandou a Belém dizendo: “Vão e procurem obter informações exatas sobre o menino e me

avisem quando o encontrarem, para que também eu vá prestar-lhes homenagem”. Depois que ouviram o

Rei, eles partiram. E a estrela, que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que parou sobre o lugar

onde estava o menino. Ao verem de novo a estrela, os magos ficaram radiantes de alegria. Quando

entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele e lhe prestaram

homenagem. Depois abriram seus cofres e ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra. Avisados em

sonho para não voltarem a Herodes, partiram para a região deles, seguindo por outro caminho. Fonte:

Evangelho segundo Mateus (Capítulo 2, versículos 1-22) - Bíblia Sagrada. Brasília: Paulus, 1991. 5 Manifestação recorrente de forma mais intensa nos municípios de Conceição da Barra, Itaúnas e São

Mateus, estado do ES. Entre a variedade de grupos que marcaram a passagem dos Reis de Boi em São

Mateus destacam-se: Reis de Boi de Juca e Mateus Nascimento, Reis de Boi de Elvácio e Hermenegildo,

Reis de Boi de Elvácio e Hermenegildo, Reis de Boi de Ailton de Luzia, Reis de Boi Mirim Projeto

Araçá, Reis de boi Mirim Pedra D água, Reis de Boi de José Bernardo, Reis de Boi dos Laudêncios I,

Reis de Boi dos Laudêncios II, Reis de Boi de Maria Justina, Reis de Boi Antônio Galdino, Reis de Boi

de Ernesto/Lino, Reis de Boi dos Machados, Reis de Boi dos Machados, Reis de Boi do Palmitinho, Reis

de Boi do Joventino, Reis de Boi de Barreiras, Reis de Boi de Valentim, Reis de Boi Tião de Véio, Reis

de Boi de Paixão, Reis de Boi de Barros, Reis de Boi de Juca, Reis de Boi do Zozó.

caracterizado como um folguedo. Os Reis de Boi inserem-se nessa classificação na

medida em que representam grupos folclóricos de composição variada e personagens

diversificados, com funções singulares dentro do conjunto, geralmente vestidos a caráter

ou com insígnias identificadoras, que se exibe em dramatizações dinâmicas ao som de

instrumentos musicais, com falas e gestual específico6.

No caso dos Reis de Boi os festejos de devoção aos Santos Reis (Fig.1)

acontecem conjuntamente com o auto do boi (Fig.2), o que de forma singular

caracteriza essa manifestação como um folguedo de “Reis” (com homenagens aos

Santos Reis) e um auto, associado à presença do “Boi” com brincadeiras, dramatizações,

sonoridades e encenações7.

Figura 1: Procissão de Santos Reis/2013 Figura 2: Auto do Boi – Reis de Boi/2013

Então é isso, também temos uma brincadeira de boi? Sim, é entre rezas e cantorias

que acontece o auto do Reis de Boi, um momento rico em visualidades, imaginários,

simbologias e religiosidades. Por isso, em pesquisa de campo, acompanhando,

registrando, também fui brincando (Fig.3). Vejo minha ação de pesquisa inserida em

uma “experiência vivida”, como uma teoria em ação8, o que me ofereceu a possibilidade

6. Atlas do folclore capixaba, op.cit, p.172. Nas palavras de Carneiro (1974) os folguedos são fruto das

contribuições africanas, indígenas, portuguesas, a que acrescentar como elemento novo o qual vieram a se

somar à nossa composição étnico-cultural. CARNEIRO, Edson. Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro:

GB, 1974. 7 Reconhecido como “bicho nacional por excelência”, inspirou festas em diferentes Estados Brasileiros.

A origem do boi estaria associada às culturas ibéricas, com a síntese das três matrizes étnicas formadoras

do povo brasileiro: portuguesa, africana e indígena, como afirmava: “era comovente observar que em

apenas três bases étnicas o povo celebra secularmente em suas danças dramáticas”. ANDRADE, Mário

de. Danças dramáticas do Brasil. Belho Horizonte: Martins Fontes, Itatiaia, 1982. Em seus estudos,

Cascudo refere-se ao boi como um animal motivador de festividades populares, em especial nos locais

onde a pecuária está presente. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São

Paulo: Global, 2001. 8 PEIRANO, Marisa. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumara, 1995.

de participar ativamente, produzir registros fotográficos e audiovisuais, coletar

entrevistas, brincar, cantar, dançar e praticar a devoção aos Santos Reis.

Figura 3: Brincando os Reis de Boi/2013

As narrativas, os brincantes e o “brincar” dos Reis de Boi instauram um processo

de ritualização mediado por devoção, plasticidades e ações dos personagens: mestres,

marujos, violeiros, sanfoneiros, vaqueiros, catirina, bichos e demais animais:

O Reis de boi que vimos ali representado assemelha-se aos Bumbas-meu-Boi

do norte e do nordeste. Claramente se verifica que a Catirina deve ser a

mesma Tia Catarina do Bumba baiano e a Mãe Catarina do Bumba do

Maranhão. Mas o ponto de referência mais estreito está no Boi – figura

central nos dois autos populares. Como nos Bumbas-meu-Boi, o animal do

Reis de boi entra em cena, dança, cabrioleia, dá marradas e, lá pras tantas

morre. [...]. Num e noutro folguedo, o Boi ressuscita, e torna a dançar e a dar

marradas nas figuras e nos assistentes9.

9 As brincadeiras envolvendo os autos do boi constituem-se composições da produção cultural das classes

populares e de acordo com Freitas (2013) reflete as condições vividas pelos negros e índios, vítimas da

opressão e da submissão decorrentes do poder de mando dos senhores. FREITAS, op cit. Essas mesmas

influências culturais são descritas por Cascudo (1984), sendo a brincadeira do boi parte da identidade

A presença do boi é marcante nos Reis de Boi, ele é também o personagem mais

esperado nas apresentações dos Reis de Boi.

Rituais em Cena: as jornadas dos Reis de Boi

Cada grupo de Reis de Boi em suas jornadas revive encontros e desencontros,

sendo suas apresentações e visitações “a alma do rito ou, pelo menos, sua parte

nuclear” 10

. Com isso ao descrever processos rituais dessa manifestação, estabelecemos

de forma imediata relações entre tempo e espaço, sobre como acontecem os ensaios,

quais as dificuldades encontradas para a sua realização, quando iniciam as

apresentações, como são elaborados os roteiros ou escolhidas nas casas que serão

visitadas, quais as alterações e modificações das narrativas a cada ano, qual o número de

residências visitadas durante o período de apresentações, durante o tempo festivo, de

que maneira os brincantes são recebidos nas residências, o que acontece no interior das

casas durante as visitações, como acontece a entrada do grupo de Reis de Boi em uma

casa, se existe uma sequência pré-definida na realização das apresentações, ou seja,

todos esses aspectos estão relacionados no processo ritual da manifestação.

O ciclo dos Reis de Boi

O homem sempre cria ritos. As diversas manifestações folclóricas tem seus

ritos. As folias de Reis também tem os seus. Por trás de todos os ritos, há

sempre um espírito que os anima e motiva. Nas folias esse espírito é

eminentemente religioso. O espírito de fé e a disposição para o sacrifício

animam todas as atividades de um folião11

.

As manifestações em devoção aos Santos Reis em sua grande maioria acontecem em

um período de tempo compreendido entre 31 de dezembro e 6 de janeiro, sendo o

período anual dos festejos12

. Cronologicamente, nos Reis de Boi encontramos um

nacional, um misto das culturas negra, indígena e européia. CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral

no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1984. 10

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas: Papirus, 1996. 11

PORTO, Guilherme. As folias de Reis no sul de Minas Gerais. Rio de Janeiro: MEC-SEC:

FUNARTE; Instituto Nacional de Folclore, 1982. 12

BRANDÃO, op. cit.

período distinto, iniciando-se no dia 6 de janeiro, dia dos Santos Reis e finalizando no

dia 6 de fevereiro, dia de São Brás13

.

Desde 2010, em campo pude verificar que essa jornada é realizada com outras

relações temporais, realizada em um período entre 30 e 45, com pequenas variações de

um ano para o outro. Para a maioria dos grupos de Reis de Boi as apresentações

começam nos primeiros dias do mês de janeiro, com destaque para a primeira sexta-

feira que antecede a Festa anual no bairro Pedra D’Água e o dia de Santos Reis. Desse

momento em diante a atuação dos grupos é intensa, com muitas visitações.

De maneira geral as visitações acontecem nos finais de semana, concentrando-se nos

dias na sexta-feira, sábado e domingo. Na maioria das vezes as apresentações começam

no final do dia, estendendo-se até o anoitecer. Apenas no ano de 2011 pude participar de

uma apresentação ocorrida durante o dia, era uma tarde de domingo, fazia muito calor e

após a brincadeira de Reis, moradores, brincantes e visitantes entregaram à dança e um

forró de sanfona (Fig.4).

Figura 4: Apresentação na Casa do Sr. Sebastião / 2011.

É mesmo a noite que as jornadas se realizam, um tempo possível para a adaptação

das atividades de trabalho, da vida cotidiana e estabelecimento de novos tempos para os

Reis de Boi. Integrantes, brincantes de vários grupos relataram que antigamente

brincavam nas roças, durante o dia tocavam e dançavam Reis, “agora é tudo

diferente”14

.

Um grupo pode visitar em média 6 locais diferentes e no final do ciclo ter realizado

entre 20 e 25 visitações distintas. Nesse sentido, considero ser esse um dos fatores

13

Para os católicos o dia 6 de janeiro representa o dia de devoção, de veneração aos “Reis Magos” pela

visita ao menino jesus em virtude de seu nascimento. No dia 3 de fevereiro é comemorado o dia de São

Brás, conhecido como protetor da garganta. 14

Relato brincante de Reis de Boi, em 08 de janeiro de 2011 (Festa em Pedra D’Água).

motivadores importantes na manutenção e permanência dos Reis de Boi: a existência de

pessoas que organizem os grupos de Reis de Boi e que realizem apresentações, bem

como pessoas que os recebam15

.

Diferentes processos rituais podem ser identificados na manifestação de Reis de

Boi, dentro totalidade do Ciclo de Reis de Boi (Fig.5). Esses processos se consolidam

através de uma mediação de ações coletivas e por uma permutação de trocas materiais,

espirituais, gestuais, espaciais, estáticas, simbólicas entre os Reis de Boi e religiosos,

visitantes, donos de residências, turistas, pesquisadores e demais participantes das

apresentações.

Primeiramente busco estabelecer uma relação temporal, cronológica dentro do

Ciclo, para posterior compreensão desses diferentes momentos. Acompanhando os Reis

de Boi percebo e existência de um encadeamento de processos e acontecimentos16

,

princípios estruturais, ordenações que os organizam, quase sempre em realização

coletiva. Há uma recorrência cíclica, que se repete continuamente, de maneira dinâmica

ocasionando certa renovação, circularidade e trocas ocorridas dentro dos grupos e entre

os grupos.

CICLO DO REIS DE BOI

Figura 5: Ciclo do Reis de Boi

15

Nesse aspecto indico a possibilidade de estudos posteriores, um acompanhamento e levantamento das

visitações realizadas por todos os grupos na cidade de São Mateus. Com essa informação teríamos um

entendimento sobre a abrangência dos Reis de Boi na vida cultural e religiosa na cidade de São Mateus.

Temos entre 10 e 15 grupos ativos na cidade, ainda sem considerar os Reis de Boi existentes em

Conceição da Barra e Itaúnas. Tendo em média a realização de 20 visitações por grupos, com 10 grupos

ativos, seriam pelo menos 300 residências compartilhando da devoção e das práticas dos Reis de Boi. 16

TURNER, op cit.

A compreensão dos Ritos: a preparação dos Reis de Boi

Rituais, folguedos e danças são manifestações folclóricas e, como tais, são de

natureza comunitária. Em alguns casos se constituem pela vivência de

populações de diversas origens étnicas que trouxeram as matrizes de seus

lugares de origem17

.

Os preparativos para as festividades de Reis de Boi acontecem gradativamente,

em momentos durantes o ano, aos poucos os bichos vão sendo imaginados, recriados.

Brincantes se encontram eventualmente e a organização da brincadeira inicia-se

efetivamente em meados do mês de Novembro. O mestre vai compondo novas

narrativas, ele convida os amigos e vai confirmando quem vai brincar em seu grupo.

Ao longo desses anos, depois que me tornei brincante o mestre me encontrava na

rua, em meio às atividades cotidianas e me perguntava “você vai participar da

brincadeira?”. Outros brincantes, os marujos também ajudavam nesse processo e nós

íamos informando e perguntando uns aos outros, avisando se iriamos ou não participar.

As primeiras reuniões são agendadas, na casa do mestre, momento em que

versos tirados começam a ser apresentados. O sanfoneiro e violeiro vão compondo as

musicalidades em pequenos trechos, os quais posteriormente serão agrupados. De

maneira geral, o Mestre é o dono do Reis, ele é quem “tira a brincadeira”.

Acompanhando o Reis de Boi dos Laudêncios desde 2010, vi diferentes situações na

organização das apresentações e da “brincadeira”, o que suponho ter sido um dos

prováveis motivos de intensa discórdia, o que desencadeou na recomposição do grupo

nos anos 2012-2013 e posteriormente 2014-2015.

O status de Mestre e de Dono do Reis é algo que pode gerar desentendimento

dentro dos grupos, bem como arrecadação de recursos, quando direcionados de forma

unilateral. Até o ano de 2012 o Grupo dos Reis dos Laudêncios era coordenado pelo Sr.

Zeca, com imenso apoio de seu filho Vadinho, Sr. Paixão, sanfoneiro e o viloeiro,

demais brincantes contribuíam, um grupo sempre unido. Acompanhei intensamente esse

grupo, e sem envolvimento direto presenciei momentos de discussão, o que

17

De acordo com Benjamin (2004) encontramos formas de expressão em linguagens orais, gestuais,

micro gestuais, codificadas segundo a cultura de cada grupo. BENJAMIN, Roberto. Espetacularização da

cultura e refuncionalidade dos grupos folclóricos. In: Congresso Brasileiro de Folclore. Anais do 10º.

CONGRESSO BRASILEIRO DE FOLCLORE. Recife: Comissão Nacional de Folclore. São Luiz:

Comissão Maranhense de Folclore, 2004.

inevitavelmente ocasionou um desmembramento do Grupo. Esses conflitos foram

refletidos nos versos das apresentações do Grupo, em toda a temporada de festividades.

Essa cisão deu origem ao Grupo de Reis de Boi dos Laudêncios I e Grupo de

Reis de Boi dos Laudêncios II. O Sr. Zeca continuou com o seu grupo até o ano de

2014, agora chamado de Reis de Boi dos Laudêncios I, tendo o apoio e a continuidade

dos brincantes, e seu sobrinho Luiz fundou o Grupo de Boi dos Laudêncios II, com

novos integrantes e performance diferenciada.

Na organização das apresentações do ano de 2014 o grupo de Reis de Boi dos

Laudêncios I vivencia mais um conflito, o Sr. Paixão desejava atuar nas apresentações

como Mestre do grupo, mas o dono do Reis, Sr. Zeca não autorizou. Em função desse

acontecimento, o Sr. Paixão não dançou Reis de Boi, não compôs as brincadeiras e não

disponibilizou o uso dos bichos que possuía, todos de sua criação. O grupo de Reis de

Boi dos Laudêncios I fez suas apresentações, e no ano posterior é novamente

reconfigurado.

Para as apresentações de 2015, o Sr. Paixão compõe a sua própria brincadeira,

deseja ser o mestre e convida os brincantes do grupo de Reis de Boi dos Laudêncios I

para o acompanharem. O grupo de Reis de Boi dos Laudêncios I é desfeito a agora

temos uma nova configuração e denominação: Grupo de Reis de Boi do Paixão.

O Sr. Paixão sempre foi um dos principais atuantes na composição da

brincadeira, “eu que tiro a brincadeira, eu quero ser o mestre”18

. Além de compor a

brincadeira, Sr. Paixão é um grande artista, cria diferentes bichos e personagens para os

Reis de Boi. Ao seu lado temos a sua esposa, que auxilia na construção dos bichos,

costura roupas, adereços, o que entendo como “ritos de criação” para os Reis de Boi.

A saída do grupo de Reis de Boi em 2015 foi marcada pela construção da

brincadeira, criação dos bichos, um adereço em vermelho, o qual foi confeccionado para

se colocado no punho das roupas dos brincantes, uma forma de diferenciação do grupo

anterior. O Sr. Paixão compôs vários versos, depois transpôs para um rascunho e foi

ensinando ao violeiro, sanfoneiro e brincantes como cantar (Fig.6).

18

Relato do brincante no ano de 2014.

Figura 6: Composição de versos/2015

Ele também convidou a todos os brincantes para estarem na sua casa, momento

que seria primeiro ensaio do Grupo e realização das primeiras para as apresentações do

ano de 2015. Nesse momento distribui os bichos e mostra suas novas criações e

personagens e confere as roupas de todos os brincantes (Fig.7).

Figura 7: Preparação dos Reis de Boi /2015

Ritual de Visitação a uma casa

Ritos de visitação a uma casa envolvem ações de chegada, consulta aos

moradores da casa, entrada na casa, louvação, apresentação dos Reis de Boi, encenação

do auto do Boi, encerramento.

Figura 8: Visitação/2015

Ritual de preparação e realização das Festividades em Pedra D’água

Ritos de preparação e realização das festividades em Pedra D’água: preparação

do Local (Fig. 9b), decoração e Arranjo dos Santos Reis (Fig. 9a), Chegada dos Grupos,

Santa Missa, Procissão (Fig. 9c), Apresentações na Igreja de Santos Reis, Apresentação

para a Comunidade; finalização, festividades.

Figura 9a: Decoração e Arranjo dos Santos Reis/2015.

Figura 9b: Preparação do Local /2015

Figura 9c: Procissão /2015

Em 09 de janeiro de 2010, aconteceu a minha primeira visita em campo, na

anual festa em Pedra D’água. Nesse momento, registrei a presença de muitos brincantes,

apenas pude distingui-los entre os grupos que possuíam vestimentas diferentes.

Todos usavam chapéus sendo esse um elemento de identificação coletiva e com

aspectos formais e estéticos bem semelhantes. Iniciava-se uma celebração e integrantes

de Reis de Boi cantavam (Fig. 10): “Boa noite minha gente. Santos Reis minha alegria,

ele vem me alegrar. Se você chorar eu choro, se você cantar eu canto. Santos Reis hoje

é seu dia, nós viemos festejar” 19.

Figura 10: Festa em Pedra D’Água

O padre inicia a santa missa invocando a santíssima trindade, “esta comunidade

presente em cristo, os Reis Magos que vamos ora reverenciar”. Nesses trechos e orações me

recordo das referências do catolicismo, evocadas constantemente no decorrer da missa “Para

louvar e agradecer vem dizer e adorar, estamos aqui senhor ao seu dispor”20

.

Percebo a crença de que os Reis de Boi abençoam as casas com cantorias, versos,

o que provoca anualmente a espera pela visitação. A festa em Pedra D’Água também é

um compromisso de devoção, realizada anualmente com a participação de dez grupos

de Reis de Boi, com apoio de secretaria de cultura do município, de turismo e demais

entidades envolvidas. Em ambos os locais o ambiente é sempre muito acolhedor e

familiar, sendo nas residências ou na festa.

19

Festa em Pedra D'Água - Reis de Boi (09 de janeiro de 2010) - Pesquisa de campo. “Boa noite minha gente”. Gravação audiovisual de minha autoria, coletada em pesquisa de campo em 09 de janeiro de 2010. Fonte:https://www.youtube.com/watch?v=SRnhZvlnuPQ&feature=youtu.be, postado em 27 de junho de 2015. 20

Invocando a Trindade Santa. Gravação audiovisual de minha autoria, coletada em pesquisa de campo em 09 de janeiro de 2010.Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=rdzYynINx-g&feature=youtu.be, publicado em 27 de junho de 2015.

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