pré história do brasil

55
P e d r o P a u l o Funari e Francisco Silva Noelli PRÉ-HISTÓRIA DO BRASIL editoracontexto

Upload: jeremias-silverio-de-moura

Post on 11-Aug-2015

26 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Pré História do Brasil

P e d r o P a u l o F u n a r i e

F r a n c i s c o S i l v a N o e l l i

P R É - H I S T Ó R I A D O B R A S I L

e d i t o r a c o n t e x t o

Page 2: Pré História do Brasil

Sumário

Introdução 9

O s p r i m e i r o s h a b i t a n t e s 2 5

A c r e s c e n t e d i v e r s i d a d e d o s h a b i t a n t e s 6 3

O f u t u r o d a História d o B r a s i l pré-colonial 105

Sugestões d e l e i t u r a e p e s q u i s a 109

Page 3: Pré História do Brasil

Introdução

O B R A S I L , u m a invenção r e c e n t e

O B r a s i l é u m país s u r g i d o e m 1 8 2 2 , c o m m e n o s d e d u z e n t o s a n o s , p o r t a n t o . N o e n t a n t o , e m relação a o u t r o s países, c o m o Itália e A l e m a n h a , o B r a s i l é u m país a n t i g o , t e n d o e m v i s t a q u e esses só formaram seus E s t a d o s n a c i o n a i s a p a r t i r da década d e 1 8 6 0 e d e m o r a r a m m u i t o m a i s t e m p o q u e o B r a s i l pa ra a d q u i r i r , p o r e x e m p l o , u m a língua na-: c i o n a l / Q u a n d o d a Unificação I t a l i a n a , ca lcula-se q u e m e n o s d e 5 % d a população d a Península Itálica soubesse se expressar e r a i t a l i a n o e, após t a n t o s séculos v i v e n d o e m c idades e r e i n o s i n d e p e n d e n t e s , o s i t a l i a n o s d e m o r a r a m a i d e n t i f i c a r - s e c o m o n o v o E s t a d o n a c i o n a l . O B r a s i l , c o m u m a língua n a c i o n a l d i f u n d i d a e m u m i m e n s o territó­r i o , possuía n o português u m f o r t e f a t o r d e u n i d a d e e, nesse s e n t i d o , p o d e d izer- se q u e é u m país dos m a i s a n t i g o s .

O l e i t o r perguntar-se-á p o r q u e , e m u m l i v r o s o b r e a Pré-Histó-r i a , o s a u t o r e s d i v a g a m s o b r e a nação b r a s i l e i r a . M a s c o m o f a l a r e m Pré-História d o B r a s i l , s e m começar p o r esc larecer o q u e é o B r a s i l ? O B r a s i l é u m E s t a d o n a c i o n a l , , u m t i p o d e organização s o c i a l , p o ­lítica e económica m u i t o r e c e n t e , s u r g i d a e m fins d o século x v m e

9

Page 4: Pré História do Brasil

q u e , a q u i , começou a a d q u i r i r f o r m a s c o n c r e t a s e m 1 8 2 2 , c o m a ptmlanutção d a Independência.

4 > u r a n t e a m a i o r p a r t e d a História, a n t e s d o s u r g i m e n t o d o s l i s t a d o s n a c i o n a i s , as pessoas e m g e r a l se i d e n t i f i c a v a m c o m o o r i u n d a s d e suas c i d a d e s , suas pátrias. E m i t a l i a n o , paese s i g n i f i ­ca a n t e s d e t u d o " c i d a d e " , " a l d e i a " (só m u i t o d e p o i s p a s s o u a s i g ­n i f i c a r "país"), c o m o também e m n o s s a língua, a p a l a v r a "país" e r a u s a d a p a r a d e s i g n a r a região o n d e se n a s c e u , c o m s e u d i a l e t o , c o s t u m e s , s a b o r e s e l e i s própriasyAntes d a época d o s E s t a d o s n a ­c i o n a i s , as pessoas também p o d i a m se i d e n t i f i c a r c o m g r a n d e s e s t a ­d o s , impérios, n o s q u a i s se f a l a v a m m u i t a s línguas, c o m c o s t u m e s v a r i a d o s , p o v o s d e o r i g e n s e tradições d i f e r e n c i a d o s . E x e m p l o s d e E s t a d o s i m p e r i a i s f o r a m o Império R o m a n o , o Império E s p a n h o l e o Império Austro-Húngaro, c o m suas miríades d e p o v o s , c u l t u r a s e línguas, e m territórios descontínuos.

O s E s t a d o s n a c i o n a i s , s u r g i d o s n o final d o século x v m , começam a s u b s t i t u i r as a n t i g a s c i d a d e s e os Impérios, c r i a n d o países baseados nas noções d e u m p o v o , c o m u m a língua e u m a c u l t u r a m a i s o u m e n o s homogénea, e m u m território d e l i m i t a d o e, e m g e r a l , c o n ­tínuo. A s s i m é o B r a s i l q u e s u r g e e m 1 8 2 2 . A n t e s d i s s o , o q u e c h a ­m a m o s d e B r a s i l f a z i a p a r t e d e u m Império, c o m a n d a d o p e l o R e i n o d e P o r t u g a l , e s p a l h a d o p e l o s q u a t r o c o n t i n e n t e s ( E u r o p a , África, Ásia e América, p o r o r d e m d e c o n q u i s t a p o r t u g u e s a ) , c o m múlti­p l o s i d i o m a s e m u s o , c o m p o s t o p o r muitíssimos p o v o s d e d i f e r e n t e s o r i g e n s e tradições. N o território d o q u e v i r i a a ser o B r a s i l , n o s três p r i m e i r o s séculos d e colonização p o r t u g u e s a , f a l a r a m - s e m u i t a s línguas (português, m a s também a "língua g e r a l " , u m a l i n g u a g e m q u e m e s c l a português e t u p i , n u m e r o s a s línguas indígenas, línguas a f r i c a n a s , e s p a n h o l , holandês...) e e s c r e v e r a m - s e também e m a l g u ­m a s de la s (português, l a t i m , "língua g e r a l " , e s p a n h o l , holandês...). O s próprios l i m i t e s d o território d o B r a s i l só v i r i a m a ser fixados, a p r o x i m a n d o - s e d o q u e é h o j e , n o Tratado de Madri, d e 1 7 5 0 , e n t r e E s p a n h a e P o r t u g a l .

A g o r a , l e i t o r , começa a ficar m a i s c l a r o q u e o B r a s i l é u m a i n ­venção, p o r a s s i m d i z e r , r e c e n t e e q u e q u a n d o se f a l a e m " B r a s i l c o l o n i a l " , c o m o a p r e n d e m o s n a e sco la e n o s l i v r o s , e s t a m o s t r a n s ­p o n d o p a r a o pas sado u m c o n c e i t o d e nação b r a s i l e i r a q u e é n o s ­so , d e n o s s a época, p a r a u m período e m q u e não e x i s t i a o país.

10

O l e i t o r não se a s sus te , i s so é n a t u r a l , p o i s só p o d e m o s o l h a r p a r a o p a s s a d o p o r n o s s a s próprias l e n t e s , e s e r i a a i n d a m a i s e n g a n o ­s o p e n s a r m o s q u e poderíamos n o s d e s v e n c i l h a r d o p r e s e n t e . É p r e c i s o , n o e n t a n t o , t e r e m m e n t e q u e o B r a s i l não é a n t e r i o r a 1 8 2 2 e q u e s e m p r e q u e u s a r m o s 0 t e r m o " B r a s i l " , e s t a r e m o s n o s r e f e r i n d o a o território q u e h o j e f a z p a r t e d o n o s s o país, e não a o n o s s o E s t a d o n a c i o n a l .

HISTÓRIA e Pré-História d o B r a s i l

E m u m c e r t o s e n t i d o , c o n s i d e r a n d o o q u e v i m o s , a pré-história d o B r a s i l s e r i a t u d o o q u e a n t e c e d e a Independência, e m 1 8 2 2 . N o e n t a n t o , o c o n c e i t o d e Pré-História é o u t r o , s u r g i d o também a p e n a s n o século x i x . D u r a n t e m u i t o s séculos, a c r e d i t o u - s e , n o O c i d e n t e , q u e o m u n d o h a v i a s i d o c r i a d o p o r D e u s há p o u c o s m i ­l h a r e s d e a n o s e q u e o s p r i m e i r o s seres h u m a n o s t e r i a m s i d o Adão e E v a . P o r incrível q u e p o s s a p a r e c e r , essa explicação d a o r i g e m d o h o m e m só f o i c o n t r a p o s t a e m m e a d o s d o século x i x ! N o início d o século, h o u v e já u m a p r i m e i r a t e n t a t i v a d e interpretação d o s p e ­ríodos m a i s r e c u a d o s d a v i d a h u m a n a . A p a r t i r d e 1 8 1 6 , C h r i s t i a n J . T h o m s e n , o p r i m e i r o c o n s e r v a d o r d o M u s e u N a c i o n a l D i n a m a r ­quês, d e u o r d e m às s e m p r e c r e s c e n t e s coleçóes d e a n t i g u i d a d e s . A s s i m o f e z , c l a s s i f i c a n d o - a s e m três i d a d e s , d a P e d r a , d o B r o n z e e d o F e r r o . A i d e i a e r a , r e a l m e n t e , m u i t o s i m p l e s : a n t e s d e o h o m e m a p r e n d e r a u s a r m e t a i s , v i v e r a n u m a i d a d e d a p e d r a e, após t e r a p r e n d i d o , u t i l i z o u - s e d e início, a p e n a s o c o b r e e o b r o n z e , só m a i s t a r d e p a s s a n d o a o f e r r o . A p e n a s c o m a t e o r i a d o E v o l u c i o n i s m o h a v e r i a , n o e n t a n t o , u m a v e r d a d e i r a revolução n o e n t e n d i m e n t o d a questão das o r i g e n s d o h o m e m .

E m 1 8 0 9 , n a s c i a C h a r l e s R . D a r w i n , q u e se f o r m a r i a e m T e o l o ­g i a , e m C a m b r i d g e , e m 1 8 3 1 , e m a i s t a r d e se i n t e r e s s a r i a p o r E n t o ­m o l o g i a e Botânica, t o r n a n d o - s e u m n a t u r a l i s t a , v i a j a n t e d o s rincões m a i s a f a s t a d o s , c o m o o Atlântico S u l e o Pacífico, s e m p r e p e s q u i ­s a n d o a n a t u r e z a . P u b l i c o u d i v e r s a s o b r a s c o m suas considerações s o b r e o q u e c o n h e c e u , c o m o Viagem de um naturalista ao redor do

11

Page 5: Pré História do Brasil

mundo ( 1 8 3 9 ) . E m 1 8 5 9 , D a r w i n p u b l i c o u s e u l i v r o m a i s f a m o -•.«», A origem das espécies, o b r a q u e t e v e u m i m p a c t o e n o r m e , t e n ­d o .sido v e n d i d a t o d a a p r i m e i r a edição, d e 1 . 2 5 0 e x e m p l a r e s , e m u m único d i a ! A s e g u n d a edição, c o m 3 m i l e x e m p l a r e s , e s g o t o u - s e i - n i u m a s e m a n a .

N a introdução d o l i v r o , D a r w i n a f i r m a v a q u e "as espécies não são u i n s t a n t e s , m a s as q u e p e r t e n c e m a u m m e s m o género provêm, e m l i n h a d i r e t a , d e o u t r a s , e m g e r a l já e x t i n t a s , a s s i m c o m o as v a r i e d a ­des r e c o n h e c i d a s d e u m a d e t e r m i n a d a espécie provêm des ta espécie". A espécie h u m a n a p a s s o u a ser v i s t a c o m o p a r t e d o r e i n o a n i m a l e 0 h o m e m c o m o r e s u l t a d o d e u m a evolução e não d e u m a criação p r o n t a e acabada . E m 1 8 7 1 , D a r w i n p u b l i c o u A origem do homem e a sr/t{eiosexual, c o m p l e t a n d o a p r o p o s t a d e u m a interpretação a l t e r n a -l i v a àquela teológica d a o r i g e m h u m a n a .

D e início, a reação a o E v o l u c i o n i s m o d e D a r w i n f o i v i o l e n t a p o r p a r t e d o s clérigos e também d e t o d o s o s q u e não a c e i t a v a m q u e o ser h u m a n o não h a v i a s i d o c r i a d o p o r D e u s já d a f o r m a q u e nós s o m o s . ( ) o m o passar d o t e m p o , e n t r e t a n t o , começou-se a d i f u n d i r a visão d e q u e o ser h u m a n o é u m a n i m a l e, m e s m o p a r a os q u e crêem n o r e l a t o bíblico - e x c e t u a n d o - s e os f u n d a m e n t a l i s t a s - a criação d e Adão e E v a p a s s o u a ser a c e i t a c o m o u m a metáfora, não c o m o u m f a t o histórico. A p e n a s c o m essa revolução n o c o n h e c i m e n t o pôde s u r g i r o i n t e r e s s e e o e s t u d o d o s a n t i g o s vestígios h u m a n o s .

N a E u r o p a , o e s t u d o d o s a n t e p a s s a d o s d o s p o v o s e u r o p e u s já e x i s t i a p o r m e i o d a l e i t u r a d o s a u t o r e s g r e g o s e r o m a n o s q u e a e les se r e f e r i a m . O s g e r m a n o s h a v i a m s i d o c i t a d o s p e l o s g r e g o s e, m a i s e x t e n s a m e n t e , p e l o s r o m a n o s - c o m o n a o b r a clássica Germânia, d o h i s t o r i a d o r r o m a n o Tácito. O s gau le se s f o r a m b e m d e s c r i t o s p e l o g e n e r a l r o m a n o Júlio César e m s u a Guerra das Gálias. N o século x i x , além d e t e x t o s c o m o estes , começaram-se a e s t u d a r o s vestígios m a t e r i a i s , e n c o n t r a d o s n a França e n a A l e m a n h a , d o q u e p a s s a r a m a s e r ^ c h a m a d a s d e c u l t u r a s proto-históricas, " d a p r i m e i ­r a h i .túriaV

I;«»i n o século x i x q u e s u r g i u o c o n c e i t o d e História c o m o u m a ciên­cia v o l t a d a p a r a o e s t u d o d o passado a p a r t i r d o s d o c u m e n t o s e scr i tos . 1 V f i n i n d o q u e a História se faz c o m d o c u m e n t o s escr i tos , c o n v e n c i o ­n o u se q u e a invenção d a escr i t a ser ia o início d a História.

12

E m d i f e r e n t e s regiões d o p l a n e t a , a e s c r i t a começou a ser u s a d a e m d i f e r e n t e s m o m e n t o s , p e l o q u e a História começaria há 5 m i l a n o s n o E g i t o e n a Mesopotâmia e há 3 m i l n a Grécia. P r o t o - H i s -tória r e f e r i a - s e , p o r t a n t o , a o p r i m e i r o m o m e n t o e m q u e sç u s a v a a e s c r i t a e, e m p a r t i c u l a r , o t e r m o f o i u s a d o c o m relação às soc iedades q u e a i n d a não u s a v a m a e s c r i t a ( c o m o n o caso d o s gauleses e d o s g e r m a n o s a n t i g o s ) , m a s q u e f o r a m d e s c r i t a s p o r p o v o s l e t r a d o s .

E o pas sado m a i s d i s t a n t e ? C o m o d e f i n i - l o ? C o m o E v o l u c i o n i s ­m o , começou-se a a c e i t a r a i d e i a d e q u e h a v e r i a re s to s m u i t o m a i s a n t i g o s a s soc iados a o h o m e m . E m 1 8 5 6 , n o v a l e d o r i o N e a n d e r , p e r t o d e Dússeldorf, n a A l e m a n h a , e n c o n t r o u - s e a c a l o t a c r a n i a n a d e u m h o m e m p r i m i t i v o , q u e ficou c o n h e c i d o c o m o o " h o m e m d e N e a n d e r t a l Y E m 1 8 6 5 , s u r g i a m os t e r m o s Paleolítico ( I d a d e d a P e ­d r a A n t i g a ) e Neolítico ( I d a d e d a P e d r a R e c e n t e ) . A b r i a m - s e , a s s i m , as p o r t a s p a r a o e s t u d o d a Pré-História, d e f i n i d a c o m o t o d o o i m e n ­s o período a n t e r i o r à invenção d a e s c r i t a ^ / '

A Pré-História t r a t a d o s últimos 1 0 0 a 2 0 0 m i l a n o s , período e m q u e e x i s t e a espécie h u m a n a , o Homo sapiens sapiens, e também d o s milhões d e a n o s a n t e r i o r e s , e m q u e e x i s t i r a m o s hominídeos, espé­cies q u e a n t e c e d e r a m à nos sa : 9 9 , 9 % d o pas sado , p o r t a n t o . A p e n a s 0 , 1 % d o t e m p o d a existência d o h o m e m e d o s seus a n c e s t r a i s n a c a d e i a evolucionária c o r r e s p o n d e a o período e m q u e e x i s t e a e s c r i t a .

N o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o , e n t r e t a n t o , a definição d e Pré-His­tória t e m c o m o referência t r a d i c i o n a l o período a n t e r i o r à c h e g a d a d o s e u r o p e u s a o c o n t i n e n t e , e m fins d o século x v . O s e u r o p e u s c h a m a r a m a s u a presença n a América d e "história" e r e s e r v a r a m p a r a t o d o o período q u e v e i o a n t e s o t e r m o "pré-história", a i n d a q u e h o j e se s a i b a q u e se- u s a v a a e s c r i t a n a América já a n t e s d a v i n ­d a d o s colonizadoresí^Os m a i a s , civilização q u e se d e s e n v o l v e u n o México e n a América C e n t r a l , possuíam u m a e s c r i t a m u i t o e l a ­b o r a d a , e m b o r a u s a d a q u a s e s e m p r e e m c o n t e x t o r e l i g i o s o , a i n d a p o r ser t o t a l m e n t e d e c i f r a d a . O s i n c a s u s a v a m c o r d a s p a r a r e g i s t r a r e v e n t o s , c h a m a d o s q u i p o s . N a v e r d a d e , m u i t o s p o v o s a m e r i c a n o s t i n h a m s i s t e m a s d e r e g i s t r o s comparáveis à e s c r i t a , c o m o os p o v o s n a m b i q u a r a s e t u p i s , — n a f o r m a d e p i n t u r a s c o r p o r a i s , adereços e decorações d e o b j e t o s - c o m o propôs r e c e n t e m e n t e o a m e r i c a n i s t a britânico G o r d o n B r o t h e r s t o n . ,

Page 6: Pré História do Brasil

A p e s a r d i s s o , g e n e r a l i z o u - s e o u s o d o t e r m o Pré-História d a América p a r a t o d o o período a n t e r i o r a 1 4 9 2 , d a t a d a c h e g a d a d e C o l o m b o a o c o n t i n e n t e . C o m o se e x p l i c a r i a a c o n t i n u i d a d e desse u s o d o t e r m o a i n d a h o j e , s a b e n d o - s e q u e h a v i a e s c r i t a e n t r e o s n a ­t i v o s a n t e s dessa d a t a ?

O s c o n c e i t o s d e Pré-História n a E u r o p a e n a América d i f e r e m m u i t o , apesar d e o s p e s q u i s a d o r e s d o s d o i s l a d o s d o Adântico usa­r e m o m e s m o t e r m o . I s so se e x p l i c a f a c i l m e n t e se b u s c a r m o s as o r i ­g e n s desses e s t u d o s lá e cá.

N a E u r o p a , a Pré-História f o i s e m p r e d e f i n i d a c o m referência à História, c o m o o período a n t e r i o r à e s c r i t a , e s t u d a d o p e l o s "pré-h i s t o r i a d o r e s " , p e s q u i s a d o r e s p r e o c u p a d o s c o m o s próprios a n t e p a s ­sados e u r o p e u s . Daí a b u s c a d o s a n t i g o s g e r m a n o s , m a s também d o s a n t i g o s h o m e n s d o Paleolítico, c o n s i d e r a d o s seus anteces sores .

N o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o , o e s t u d o d a Pré-História s u r g i u e m o u t r o c o n t e x t o . N a s Américas, a v i n d a d o s e u r o p e u s q u a s e s e m p r e s i g n i f i c o u o m a s s a c r e e a escravização d o s ameríndios após d u r a s b a ­t a l h a s e s u r t o s epidêmicos e, m e s m o q u a n d o e o n d e h o u v e g r a n d e miscigenação, c o m o n o caso d o B r a s i l , a referência d o s e s t u d i o s o s s e m p r e f o i a E u r o p a e o s e u r o p e u s . A História e r a e, e m c e r t o s e n ­t i d o , c o n t i n u a s e n d o , a História d a civilização e u r o p e i a ( o u o c i d e n ­t a l ) , não d a indígena. O i n t e r e s s e p e l o c o n h e c i m e n t o d a v i d a d o s indígenas l e v o u , n o século x i x , a o s u r g i m e n t o d e u m a o u t r a ciência, a A n t r o p o l o g i a , v o l t a d a p a r a o e s t u d o das línguas, soc iedades , c o s t u ­m e s e tradições ameríndias. O e s t u d o d o pa s sado dessas soc iedades ficou p o r m u i t o t e m p o a c a r g o d e antropólogos e s p e c i a l i z a d o s n a análise d o s vestígios m a t e r i a i s , o s arqueólogos. N e s s e c o n t e x t o , n o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o a d o t o u - s e o t e r m o Pré-História p a r a se r e f e r i r a o período a n t e r i o r à c h e g a d a d e C o l o m b o .

E , n e s t e l i v r o , o q u e e n t e n d e r e m o s p o r Pré-História d o B r a s i l ? D o n o s s o p o n t o d e v i s t a , não se p o d e f u g i r às definições c o r r e n t e s , m a s , a o m e s m o t e m p o , não se d e v e aceitá-las d e f o r m a acrítica. S e p a r a r a 1 listória d a Pré-História p e l o critério d o " u s o d a e s c r i t a " é i n c o n ­s i s t e n t e , n o caso d a América; a s s i m c o m o é a r t i f i c i a l c a r a c t e r i z a r a P r e - 1 listória c o m o o e s t u d o das o r i g e n s d e " o u t r o s p o v o s " , p o i s , n o caso d o B r a s i l , a o m e n o s u m terço d a população p o s s u i a n t e p a s s a ­d o s indígenas e, além d i s s o , b o a p a r t e das nossas heranças c u l t u r a i s ê ameríndia. A d e m a i s , g r a n d e p a r t e d o q u e h o j e c o n s t i t u i o B r a s i l

14

ficou a l h e i a a o m u n d o d o c o l o n i z a d o r , c o n c e n t r a d o n a c o s t a : a m a i o r p a r t e d a Amazónia ( u m a área i m e n s a ) , m a s m e s m o o q u e c h a m a m o s d e C e n t r o - O e s t e , até a r e c e n t e M a r c h a p a r a o O e s t e , n a década d e 1 9 3 0 .

P o r t u d o i s so , n e s t e l i v r o a d o t a m o s u m a definição m a i s a m p l a e m e n o s r e s t r i t a e c o m p r o m e t i d a d e Pré-História d o B r a s i l , p a r t i n d o das o r i g e n s m a i s r e m o t a s ( o q u e n o s levará a o V e l h o M u n d o ) , o s p e r c u r s o s p e l o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o até o p o v o a m e n t o d o t e r r i ­tório b r a s i l e i r o , p a s s a n d o pe l a s c u l t u r a s q u e a q u i floresceram até c h e g a r m o s aos ameríndios contemporâneos. E essa Pré-História d o B r a s i l c o m p r e e n d e a existência d e u m a c r e s c e n t e v a r i e d a d e l i n ­guística, c u l t u r a l e étnica, q u e a c o m p a n h o u o c r e s c i m e n t o d e m o ­gráfico das p r i m e i r a s l e v a s constituídas p o r u m a s p o u c a s pessoas ( c e n t e n a s o u p o u c o s m i l h a r e s ) q u e c h e g a r a m à região até a l c a n ­çar m u i t o s milhões d e h a b i t a n t e s n a época d a c h e g a d a d a f r o t a d e C a b r a l . Também p r e c i s a m o s c o m p r e e n d e r q u e , p a r a q u e i s so o c o r ­resse , não h o u v e a p e n a s u m p r o c e s s o histórico, m a s n u m e r o s o s , d i s t i n t o s e n t r e s i , c o m múltiplas c o n t i n u i d a d e s e d e s c o n t i n u i d a ­des , t a n t a s q u a n t o às e t n i a s q u e se f o r a m c o n s t i t u i n d o a o l o n g o d o s últimos 3 0 , 4 0 , 5 0 , 6 0 o u 7 0 m i l l o n g o s a n o s d e ocupação h u m a n a das Américas.

C O M O se p o d e c o n h e c e r a Pré-História?

P o d e m o s saber c o m o v i v i a m e o q u e p e n s a v a m o s h o m e n s q u e e x i s t i r a m há m i l h a r e s d e anos? S e r i a possível d e t e r m i n a r c o m o se a c o n c h e g a v a m , c o m o p l a n t a v a m o u caçavam o u e m q u e a c r e d i t a ­v a m ? A r e s p o s t a não é tão s i m p l e s . V a m o s , então, p o r p a r t e s .

E m p r i m e i r o l u g a r , é necessário r e f l e t i r s o b r e q u a i s são as nossas f o n t e s d e informação e q u a i s as evidências q u e possuímos. A p r i n ­c i p a l m a n e i r a d e t e r acesso a o passado pré-histórico é o e s t u d o d o s vestígios m a t e r i a i s q u e c h e g a r a m até nós. O s vestígios m a t e r i a i s as­s o c i a d o s aos h o m e n s são e s t u d a d o s p e l a A r q u e o l o g i a , u m a ciência v o l t a d a , p r e c i s a m e n t e , a o e s t u d o d o m u n d o m a t e r i a l l i g a d o à v i d a e m s o c i e d a d e . P o r m e i o d e prospecções e escavações arqueológicas,

Page 7: Pré História do Brasil

n - c u p e r a m se vestígios q u e p o d e m n o s i n f o r m a r s o b r e os m a i s v a r i a ­d o s a spec tos d a v i d a n o pas sado .

(>s l e s t o s m a t e r i a i s são d e d i f e r e n t e s t i p o s , d e p e n d e n d o , e m espe-i i a l , t ias condições d e preservação q u e os s o l o s o f e r e c e m . E m g e r a l , o q u e m e l h o r se p r e s e r v a são o s a r t e f a t o s f e i t o s d e p e d r a (também c h a m a d o s d e líticos), f e r r a m e n t a s usadas p a r a as m a i s v a r i a d a s t a r e f a s e q u e , p o r i s so , p o d e m n o s i n f o r m a r m u i t o s o b r e a caça, a pesca, a a g r i c u l t u r a e a t e c n o l o g i a p a r a t r a n s f o r m a r m a t e r i a i s b r u t o s e m b e n s m a n u f a t u r a d o s , p a r a c o n s t r u i r habitações o u . p a r a r e m o d e l a r o s t e r r e n o s o n d e e r a m i n s t a l a d a s a lde i a s e c i d a d e s / E m a l g u n s casos, e x i s t e m magníficas e s c u l t u r a s f e i t a s e m p e d r a s - p e q u e n a s r e p r e s e n ­tações d e a n i m a i s e seres h u m a n o s — c h a m a d a s zoólitos, o b j e t o s q u e não e r a m a p e n a s f u n c i o n a i s , m a s possuíam u m p a p e l simbólico o u artístico e q u e p o d e m n o s d i z e r a l g o s o b r e os. v a l o r e s e g o s t o s d e u m g r u p o q u e v i v e u n o pa s sado e o s p r o d u z i u / O s líticos estão e n t r e o s m a i s i m p o r t a n t e s vestígios pré-históricos, t a n t o p o r a c o m p a n h a r e m os h o m e n s p o r t o d a s u a m i l e n a r existência q u a n t o p o r se p r e s e r v a ­r e m m u i t o b e m .

I Q u a n d o n o s r e f e r i m o s a " h o m e n s " , d e v e m o s e sc l a recer q u e esse t e r m o se a p l i c a à n o s s a espécie, c h a m a d a d e Homo sapiens sapiens, s u r g i d a a p e n a s e n t r e 1 8 0 e 9 0 m i l a n o s atrá^l b e m c o m o a t o d o s o s o u t r o s hominídeos a p a r e n t a d o s a o h o m e m q u e d e i x a r a m d e e x i s t i r . N a classificação d o r e i n o a n i m a l , a p r i m e i r a o r d e m d o s mamífe­r o s i n c l u i o h o m e m e o s o u t r o s a n i m a i s q u e p o s s u e m ascendência c o m u m , c o m o o s m a c a c o s e o s lêmures. T a i s a n i m a i s f o r a m a s s i m c l a s s i f i c a d o s já n o século X V I I I e s e u rótulo, " p r i m a t a s " , s i g n i f i c a q u e são c o n s i d e r a d o s o s p r i m e i r o s n a n a t u r e z a , p o i s aí está a es­pécie h u m a n a . S e g u n d o p e s q u i s a s m a i s r e c e n t e s , o s a n c e s t r a i s c o ­m u n s a h o m e n s e m a c a c o s m a i s a n t i g o s e x i s t i r a m há 8 milhões d e a n o s . P o r 6 milhões d e a n o s - até u n s 2 milhões d e a n o s atrás, e x i s t i r a m d i v e r s a s espécies d e p r i m a t a s c h a m a d o s d e p i t e c a n t r o p o s , o u se ja , h o m e n s {ânthropoi) — m a c a c o s (píthekoi), p o s s i v e l m e n t e n o s s o s a n t e p a s s a d o s . C o n h e c e m o s s u a existência p e l a d e s c o b e r t a d e fósseis a f r i c a n o s . O s p r i n c i p a i s p i t e c a n t r o p o s c o n h e c i d o s são o s s e g u i n t e s :

16 17

Page 8: Pré História do Brasil

6 milhões d e a n o s : Orrorin tugenensis 5 milhões e m e i o d e a n o s : Ardipithecus ramidus kadabba 4 milhões d e a n o s : Ramapithecus 4 milhões e m e i o d e a n o s : Ardipithecus ramidus ramidus 4 milhões d e a n o s : Australopithecus anamensis 3 milhões e m e i o d e a n o s : Australopithecus afarensis ( L u c y ) 3 milhões d e a n o s : Australopithecus africanus 2 milhões e m e i o d e a n o s : Australopithecus aethiopicus 2 milhões d e a n o s : Australopithecus boisei 1 milhão e 80Ò m i l a n o s : Australopithecus robustus

A p a r t i r d e 2 milhões e m e i o d e a n o s , s u r g e m as espécies d o gé­n e r o homo ( h o m e m ) :

2 milhões e m e i o d e a n o s : Homo rudolfensis 1 milhão e 8 0 0 m i l a n o s : Homo habilis 1 milhão e m e i o d e a n o s : Homo erectus 5 0 0 m i l a n o s : Homo heidelbergensis 2 0 0 m i l a n o s : Homo sapiens 1 5 0 m i l a n o s : Homo neanderthalensis 1 0 0 m i l a n o s : Homo sapiens sapiens

O t e r m o hominídeo é u s a d o t a n t o p a r a r e f e r i r - s e a essas espécies d e a n i m a i s c h a m a d o s d e homo ( h o m e m ) , c o m o , e m s e n t i d o a m p l o , p a r a t o d o s o s a n t e p a s s a d o s d o h o m e m a t u a l , i n c l u s i v e o s m a i s a n ­t i g o s p i t e c a n t r o p o s . O s hominídeos s e m p r e se v a l e r a m d e i n s t r u ­m e n t o s d e p e d r a e, p o r i s so , d i z - se q u e o h o m e m é d e f i n i d o c o m o o a n i m a l q u e f az u s o d e i n s t t u m e n t o s , s e n d o o s líticos seus a r t e f a t o s m a i s a n t i g o s c o n h e c i d o s p o r nós. M a s eles também u t i l i z a v a m i n s ­t r u m e n t o s d e m a d e i r a .

P o d e m o s d i v i d i r a Pré-História, n o s e n t i d o m a i s a m p l o d o t e r m o , e m sete g r a n d e s períodos:

1 . 5 milhões - 1 milhão: P r i m e i r o s hominídeos australopitecos, d i v e r s o s p r i m i t i v o s t i p o s homo, n a A f r i c a s u b s a a r i a n a ;

2 . 1 milhão - 2 0 0 m i l a n o s : Homo erectus, Homo sapiens arcaico; 3 . 2 0 0 m i l - 6 0 m i l a n o s : neandertal, h u m a n o s m o d e r n o s n a

África, Ásia e E u r o p a d e média l a t i t u d e ;

18

4 . 6 0 m i l - 4 0 m i l a n o s : neandertal final, Homo sapiens sapiens a r c a i c o ( h o m e n s m o d e r n o s ) n a Eurásia;

5 . 1 0 0 m i l - 1 0 m i l a n o s : h o m e n s a n a t o m i c a m e n t e m o d e r n o s : Eurásia, Austrália, Sibéria, Pacífico, Japão, América;

6 . 1 0 m i l - 1 . 5 0 0 d . C . Ártico, O c e a n o Índico, Pacífico O r i e n t a l ; 7 . 1 . 5 0 0 d . C . - p r e s e n t e Atlântico c e n t r a l , Antártida.

/ Além d o s líticos, o u t r o m a t e r i a l q u e se p r e s e r v a m u i t o b e m e c o n s t i t u i u m a das p r i n c i p a i s f o n t e s d e informação s o b r e o h o m e m pré-histórico é a cerâmica, os a r t e f a t o s f e i t o s d e b a r r o c o z i d o -a i n d a q u e o u s o d a cerâmica se ja m u i t o m a i s r e c e n t e d o q u e a p e d r a , a t i n g i n d o u m máximo d e 1 2 o u 1 3 m i l A P ( a n t e s d o p r e s e n ­t e , e q u i v a l e n t e a " a n t e s d e 1 9 5 0 " , c o m o se c o s t u m a u s a r n o e s t u d o d a Pré-História^: O h o m e m a p r e n d e u a c o s e r o b a r r o há a p e n a s a l g u n s m i l h a r e s d e a n o s e a introdução d e s e u u s o v a r i o u d e u m l u g a r a o u t r o , d e m o d o q u e a fabricação d a cerâmica p o d e ser m a i s a n t i g a e m u m l u g a r d o e m q u e o u t r o . A cerâmica p r e s e r v a - s e b e m , m a s q u e b r a - s e c o m c e r t a f a c i l i d a d e , o q u e p o d e l e v a r o s arqueólogos à recuperação d e f r a g m e n t o s m a i s o u m e n o s c o m p l e t o s d e r e c i p i e n ­tes d i v e r s o s , e s t a t u e t a s o u t a b u l e t a s c o m v a r i a d o s t i p o s d e e s c r i t a . A cerâmica p o d e n o s i n f o r m a r s o b r e c o m o as pessoas a r m a z e n a v a m p r o d u t o s o u c o m o c o m i a m , m a s , e m a l g u n s casos , a f o r m a e a d e ­coração também p o d e m n o s d a r indicações a r e s p e i t o d a s i m b o l o g i a e d o s v a l o r e s soc i a i s a d o t a d o s .

A s p i n t u r a s e g r a v u r a s , f e i t a s n a s p a r e d e s d e c a v e r n a s o u e m o u ­t r a s p e d r a s , c o n h e c i d a s c o m o r u p e s t r e s , são também evidências m a ­t e r i a i s q u e m u i t o p o d e m n o s d i z e r s o b r e o pas sado pré-histórico. A l g u m a s de la s , c o m o v e r e m o s a d i a n t e , r e p r e s e n t a m h u m a n o s e a n i ­m a i s e n o s m o s t r a m c o m o se pescava e caçava, a s s i m c o m o r e t r a t a m r i t u a i s e festas , c o n s t i t u i n d o u m a f o n t e d e informação inigualável. O u t r a s r e p r e s e n t a m u m a i m e n s a d i v e r s i d a d e d e s i g n o s a b s t r a t o s , a m a i o r i a a i n d a c o m s i g n i f i c a d o d e s c o n h e c i d o p a r a o s p e s q u i s a d o r e s e a p r e c i a d o r e s .

M u i t o m e n o s f r e q u e n t e s n o s a c h a d o s arqueológicos - p o r não se p r e s e r v a r e m f a c i l m e n t e - , m a s d e i g u a l importância p a r a o s p e s q u i ­s adore s , são os a r t e f a t o s f e i t o s p e l o h o m e m c o m ossos d e a n i m a i s , m a d e i r a o u o u t r o s m a t e r i a i s m a i s perecíveis.

19

Page 9: Pré História do Brasil

O c o n j u n t o dessas informações r e s u l t a n t e s d e a r t e f a t o s p r o d u z i ­d o s o u s i m p l e s m e n t e u t i l i z a d o s p e l o h o m e m , b e m c o m o os l o c a i s q u e t r a n s f o r m a v a m p a r a h a b i t a r , é c o n s i d e r a d o a s u a " c u l t u r a m a t e r i a l " .

Além d a c u l t u r a m a t e r i a l , e x i s t e m o u t r a s i m p o r t a n t e s f o n t e s d e informação p a r a o s p e s q u i s a d o r e s , c o m o é o caso d o s r e s t o s d e es­q u e l e t o s h u m a n o s , q u e p o d e m ser e s t u d a d o s p o r m e i o d e d i v e r s a s técnicas e a b o r d a g e n s . A p a r t i r d e análises desses r e s t o s , p o d e - s e d e s c o b r i r q u a i s doenças a f e t a r a m u m indivíduo específico, c o m q u e i d a d e m o r r e u , q u a i s as suas características morfológicas ( a l t u ­r a , e s t a t u r a ) . P o r m e i o d e análises físico-químicas, p o d e - s e s a b e r a a n t i g u i d a d e d o e s q u e l e t o e n c o n t r a d o e, p e l a análise genética, p o d e -se relacioná-lo a u m o u o u t r o g r u p o h u m a n o c o n h e c i d o ( c o m o o d o s asiáticos o u o d o s a f r i c a n o s ) e m e s m o d e t e r m i n a r seus g r a u s d e p a r e n t e s c o c o m o u t r o s e s q u e l e t o s d o m e s m o sítio arqueológico o u d a m e s m a região.

O u t r a s informações advêm d o c o n t e x t o arqueológico e m q u e se e n c o n t r a r a m o s vestígios a n t i g o s . A p l a n t a d e u m a a l d e i a pré-histórica, p o r e x e m p l o , c o m o s indícios d a localização das a n t i g a s habitações e das suas f o r m a s ( c i r c u l a r e s , r e t a n g u l a r e s e t c . ) e d i m e n ­sões p o d e n o s d i z e r m u i t o s o b r e c o m o e r a u m a a l d e i a c o n c r e t a e, c o m p a r a n d o - s e d i v e r s a s p l a n t a s d e a lde i a s , p o d e - s e r e l a c i o n a r u m a s a o u t r a s . O s arqueólogos também se i n t e r e s s a m pe la s c h a m a d a s áreas d e a t i v i d a d e , l o c a i s o n d e e r a m r e a l i z a d a s as t a re fa s m a i s d i v e r s a s , c o m o c o z i n h a r , e l a b o r a r a r t e f a t o s e b e n s d i v e r s o s , e s t o c a r o b j e t o s e a l i m e n t o s e t c .

Vestígios d e p e q u e n a s dimensões, m u i t a s vezes visíveis a p e n a s c o m o auxílio d e l u p a s e microscópios, também são e s t u d a d o s , a e x e m p l o d o s r e s t o s a l i m e n t a r e s . C e r t a s evidências e m a n c h a s c o m colorações d i s t i n t a s d a c o r d o s o l o d o sítio arqueológico, p e r c e b i ­das s o m e n t e c o m e s t u d o s químicos e geoquímicos, são i g u a l m e n t e a n a l i s a d a s p a r a se d e f i n i r q u a i s m a t e r i a i s se d e c o m p u s e r a m n a q u e l e s espaços e q u e t i p o d e a t i v i d a d e s f o r a m a l i r e a l i z a d a s . A sucessão d o s vestígios m o s t r a c o m o m u d a r a m os a r t e f a t o s e a f o r m a d o a s senta­m e n t o , c o m o passar d o t e m p o .

Para d a t a r vestígios u s a m - s e d i v e r s a s técnicas e m laboratório, c o m o o C a r b o n o 1 4 e ja termoluminescência. A datação p o r m e i o d o c a r b o n o d e m a t e r i a l orgânico é f e i t a p a r t i n d o q u a n t i d a d e d e c a r b o n o 14 r a d i a r i v o q u e contém o fóssil, a m a d e i r a c a r b o n i z a d a

20

O s líticos sáo f o n t e s d e informação q u e s e p r e s e r v a m n o t e m p o . N a ilustração: p o n t a s d e fle­c h a s o u lanças c o n f e c c i o n a d a s c o m p e d r a s . F o n t e : M a r i a C r i s t i n a M i n e i r o S c a t a m a c c h i a e Célia M a r i a C r i s t i n a D e m a r t i n i , Vestígios da ocupação dos antigos habitantes da área de influência do gasoduto BoKvia-Brasit-Trecho Sul Estado de Santa Catarina. Sáo P a u l o , H A E / U S P T G B , s . d , p . 30. F o t o d e W a g n e r S o u z a e S i l v a .

o u o s ossos e n c o n t r a d o s . Esse método é gffípfggâd§ p a r a datações d e até 2 0 m i l a n o s . P a r a períodos m a i s íqngfgqups, a n a l i s a m - s e também substâncias c o m o o urânio e o potássioiti&oativos. A t e r ­moluminescência p e r m i t e d a t a r m a t e r i a i s inorgânicos, c o m o cerâ­m i c a , p o r m e i o d a medição d a q u a n t i d a d e d e l u z q u e e le s l i b e r a m q u a n d o e s q u e n t a d o s e m a p a r e l h o s e s p e c i a i s ; essa técnica t e m s i d o b a s t a n t e e m p r e g a d a . j , j j u . ,,

Além d o s vestígios m a t e r i a i s , o e s t u d o d^gçég|^s^ria n a América, e m p a r t i c u l a r , c o n t a c o m o u t r o s r e c u r s o s , c o m o o e s t u d o d o s d o c u ­m e n t o s históricos q u e se r e f e r e m aos ameríndios desde o s p r i m e i r o s séculos d a colonização e u r o p e i a , os q u a i s n.o>s R e s c r e v e m a v i d a e os c o s t u m e s d e n u m e r o s o s p o v o s d a época.1 Haè/uése t e r c u i d a d o , e n t r e t a n t o , c o m as distorções, voluntárias có\5nfíão,eííe seus a u t o r e s , p o i s m u i t o s não c o n s e g u i a m c o m p r e e n d e r % e m ^ r | u e v i a m e, além d i s s o , p a u t a v a m - s e p o r critérios b a s t a n t e sdtí8feáfS d o s científicos

a . Há q u e Í 21 i o u não, d.I

r b e m o qu>

Page 10: Pré História do Brasil

V

p a i a < o i i s i d e r a r o s p o v o s indígenas. C o m relação aos p o v o s n a t i v o s e i u o n t r a d o s , os e u r o p e u s e s t a v a m i n t e r e s s a d o s e m escravizá-los o u t atequi/á-los, e, m a i s r a r a m e n t e , e m f a z e r alianças, o q u e f az c o m q u e t o d o r e l a t o e l a b o r a d o nessas bases d e v a ser l i d o c o m o d e v i d o espírito crítico. T a i s r e l a t o s c o n s t i t u e m , d e t o d o m o d o , u m a i m p o r ­t a n t e f o n t e d e informação.

A comparação e n t r e g r u p o s étnicos, c h a m a d a d e a n a l o g i a e t n o ­gráfica, é, também, m e t o d o l o g i a útil p a r a se i n t e r p r e t a r as soc iedades e x t i n t a s . E m a l g u n s casos, c o m o v e r e m o s a d i a n t e a o t r a t a r d o s g u a ­r a n i s , a i n d a e x i s t e m g r u p o s étnicos d i r e t a m e n t e r e l a c i o n a d o s àque­les pré-históricos, e m e s m o a s u a comparação c o m p o v o s d e o u t r o s c o n t i n e n t e s e d e o u t r a s épocas p o d e - s e m o s t r a r útil p a r a o avanço d o c o n h e c i m e n t o pré-histórico.

T o d a s essas f o n t e s d e informação m e n c i o n a d a s , c o n t u d o , não s e r v i r i a m p a r a n a d a se não dispuséssemos d e t e o r i a s q u e n o s p e r ­m i t i s s e m a p r e s e n t a r hipóteses s o b r e s u a articulação. N a v e r d a d e , a u t i l i d a d e das próprias f o n t e s d e informação d e p e n d e d a m a n e i r a c o m o nós as p e r c e b e m o s e " i n v e n t a m o s " . ( U m arqueólogo, M i c h a e l S h a n k s , l e m b r o u há p o u c o s a n o s q u e " i n v e n t a r " d e r i v a d o v e r b o l a t i n o inuenire, " i r a o e n c o n t r o " , o u se ja : " d e s c o b r i r " e " i n v e n t a r " s e r i a m d u a s faces d e u m a m e s m a a t i v i d a d e m e n t a l . ) U m p o u c o d e carvão p o d e ser i n t e r p r e t a d o c o m o r e s t o s d e u m a f o g u e i r a f e i t a p e l o h o m e m , a s s i m c o m o p o d e ser c o n s i d e r a d o s i m p l e s resquícios d e u m incêndio n a t u r a l , s e m intervenção h u m a n a . Se o carvão está a o l a d o d e i n s t r u m e n t o s d e p e d r a , p e r t o d e vestígios d e u m a habitação, esse c o n t e x t o arqueológico p e r m i t e s u p o r q u e se t r a t a d e u m a f o g u e i ­r a f e i t a p e l o h o m e m . Se , a o l a d o d o carvão, só e n c o n t r a m o s r e s t o s d e vegetação, p o d e m o s s u p o r q u e se t r a t a d e u m a f o g u e i r a n a t u r a l , s e m intervenção h u m a n a . Não bas ta , p o r t a n t o , d a t a r m o s o carvão, p r e c i s a m o s c o n s t a t a r se t r a t a - s e d e a l g o r e l a c i o n a d o a o ser h u m a n o o u não. D i a n t e d o s m e s m o s e l e m e n t o s , d i f e r e n t e s e s t u d i o s o s p o d e m c h e g a r a conclusões o p o s t a s , o q u e m o d i f i c a m u i t o a "informação". I lá datações m u i t o a n t i g a s d e carvões n o B r a s i l , c o m o 5 0 m i l A P , m a s d i f e r e n t e s arqueólogos têm p r o p o s t o interpretações d i v e r g e n t e s s o b r e essa "evidência". O m e s m o se passa c o m c e r t a s p e d r a s , i n t e r ­p r e t a d a s p o r a l g u n s arqueólogos c o m o a r t e f a t o s f e i t o s p e l o h o m e m , o u seja, líticos, e n q u a n t o o u t r o s as i n t e r p r e t a m c o m o s i m p l e s o b j e -t o s n u n c a t o c a d o s p e l a mão h u m a n a n o pas sado . D e v e m o s c o n c l u i r ,

22

p o r t a n t o , q u e as próprias f o n t e s d e informação só p o d e m ser i n t e r ­p r e t a d a s c o m o auxílio d e m e t o d o l o g i a s i n e v i t a v e l m e n t e m a r c a d a s p o r u m a c e r t a d o s e d e s u b j e t i v i d a d e .

Além d i s s o , a articulação dessas informações e l a b o r a d a s p e l o s es­t u d i o s o s também d e p e n d e d e t e o r i a s . Q u a n d o e n c o n t r a m o s vasos d e cerâmica, c o m a m e s m a datação e c o m o s m e s m o s proces sos d e m a -n u f a t u r a e m m u i t o s sítios arqueológicos e s p a l h a d o s p o r u m a g r a n ­d e área, p o d e m o s i n t e r p r e t a r i s so d e d i v e r s a s m a n e i r a s : u m m e s m o p o v o e s t a r i a e s p a l h a d o p o r essa área; a t r o c a t e r i a l e v a d o o s vasos d e cerâmica p a r a d i f e r e n t e s p o v o s ; os vasos f o r a m p r o d u z i d o s p o r d i v e r ­sos p o v o s q u e a p r e n d e r a m e g o s t a v a m d e e m p r e g a r t a i s técnicas d e produção. O próprio c o n c e i t o d e "sítio arqueológico" é flexível, d e p e n d e d o p o n t o d e v i s t a d o e s t u d i o s o . O arqueólogo a u s t r a l i a n o G o r d o n C h i l d e d e f i n i a , há m a i s d e c i n q u e n t a a n o s , "sítio" c o m o u m l u g a r o n d e se e n c o n t r a m vestígios h u m a n o s i n t e r - r e l a c i o n a d o s e q u e i n d i c a r i a m a t i v i d a d e s h u m a n a s específicas, c o m o habitações, túmulos, f o n t e s d e matéria-prima, santuários, d e s t i n a d a s , r e s p e c t i ­v a m e n t e , à m o r a d i a , e n t e r r a m e n t o , obtenção d e m a t e r i a i s e a o c u l t o r e l i g i o s o . N o e n t a n t o , u m c o n j u n t o d e habitações e santuários p o d e e s t a r n u m a c i d a d e , c o n s i d e r a d a u m g r a n d e sítio arqueológico ( c o m o P o m p e i a , n a Itália). E m se t r a t a n d o d e s o c i e d a d e s a n t i g a s , e s p e c i a l ­m e n t e q u a n d o há p o u c a s o u n e n h u m a f o n f e fsgrífi, t a n t o m a i o r será o p e s o das m e t o d o l o g i a s e t e o r i a s explic§f jy§§. É p o r i s so q u e , n o d e c o r r e r d e s t e l i v r o , s o m o s l e v a d o s a a p r e s e n t a r d ive r s a s i n t e r ­pretações s o b r e d i s t i n t o s a spectos das soc iedades pré-hístóricas. O s e s t u d i o s o s a p r e s e n t a m reconstruções d o pa s sado às,yez|s c o n f l i t a n t e s e contraditórias e caberá a o l e i t o r f o r m a r s e u próprio juízo s o b r e o s t e m a s t r a t a d o s . O s a u t o r e s de s te l i v r o tambéé$ feimeseus p o n t o s d e v i s t a e estes estarão c l a r o s a o l o n g o d o t e x t o , m ^ f t j e r t y t p o r i s so p r i ­v a r e m o s n o s s o s l e i t o t e s d o s a r g u m e n t o s d o s }<arígd^st€jtudiosos d a Pré-História. E s c l a r e c e m o s a i n d a q u e as citações d e o b r a s e s p e c i a l i ­zadas a p r e s e n t a m p e q u e n a s adaptações p a r a faEílkar. a xompreensão d o s l e i t o r e s , s e m a l t e r a r a substância d o o r i g i n a l . , j

° v a r i a d o s esi ;:óes <k r a c i l i t a r a cc

23

Page 11: Pré História do Brasil

O s p r i m e i r o s h a b i t a n t e s

O p e n s a d o r contemporâneo E l i W i e s e l t e m u m a b e l a f ra se s o b r e a o r i g e m d o h o m e m : " D e u s c r i o u o h o m e m , p o r q u e g o s t a v a d e o u ­v i r histórias". D e f a t o , o h o m e m é u m a n i m a l q u e g o s t a d e c o n t a r ( e d e o u v i r ) histórias. O q u e são os r o m a n c e s e c o n t o s , as t e l e n o v e l a s e o s filmes, o s d e s e n h o s a n i m a d o s e as peças d e t e a t r o , se não n a r ­r a t i v a s ? Também o pa s sado só a d q u i r e f o r m a c o m o u m a n a r r a t i v a , e m u m entrelaçar d e d a d o s e a r g u m e n t o s s o b r e a sucessão d o s a c o n ­t e c i m e n t o s . Q u a n t o m a i s r e c u a m o s n o pa s sado , t a n t o m a i o r será a importância d o r e l a t o , q u a s e c o m o se fosse u m a v i a g e m , i m a g i n a d a e c o n t a d a p e l o s e s t u d i o s o s . N e s t e capítulo, a p r e s e n t a r e m o s as d i v e r s a s n a r r a t i v a s s o b r e o s h a b i t a n t e s m a i s a n t i g o s d o n o s s o c o n t i n e n t e .

O S HOMINÍDEOS n o B r a s i l

Há 4 milhões d e a n o s , m u i t o a n t e s d o s u r g i m e n t o d o h o m e m m o d e r n o {Homo sapiens sepiens), já p e r a m b u l a v a p e l a face d a t e r r a o Ramapithecus, u m provável hominídeo a n c e s t r a l d o ser h u m a n o . O Ramapithecus v i v i a e m l a t i t u d e s t r o p i c a i s e e m a l g u m a s z o n a s t e m ­p e r a d a s d e b a i x a a l t i t u d e , a o l o n g o d a l i n h a d o e q u a d o r . A a r c a d a dentária d o Ramapithecus é m u i t o s e m e l h a n t e à d o h o m e m m o d e r n o e c o n t r a s t a c o m a d o chimpanzé, p r i m a t a q u e u t i l i z a m u i t o seus ca­n i n o s s a l i e n t e s n a alimentação, p a r a d i l a c e r a r e d i v i d i r o q u e i n g e r e .

25

Page 12: Pré História do Brasil

P o r q u e a a r c a d a d o Ramapithecus não t e m d e n t e s tão f u n c i o n a i s ? D a r w i n h a v i a f o r m u l a d o , e m suas o b r a s e v o l u c i o n i s t a s , a hipótese d e q u e órgãos e e s t r u t u r a s físicas q u e p e r d e m s u a função t e n d e m a d i ­m i n u i r d e t a m a n h o . A s s i m , o s d e n t e s t e r i a m diminuído e m razão d e os c a n i n o s já não s e r e m tão u s a d o s . M a s p o r q u e os d e n t e s c a n i n o s não e r a m m a i s tão usados? C o m o então o Ramapithecus c o n s e g u i a m a c e r a r o s a l i m e n t o s , s e m o u s o desses d e n t e s ? O u s o d e i n s t r u m e n ­t o s d e m a d e i r a e p e d r a t e r i a p e r m i t i d o p r e c i s a m e n t e i s so .

M a r i a Conceição Beltrão, arqueóloga d o M u s e u N a c i o n a l d o R i o d e J a n e i r o , i n t e r r o g a : p o r q u e , se o Ramapithecus e s t a v a p r e s e n ­t e e m u m cinturão à v o l t a d o E q u a d o r n a Eurásia e n a África, e l e não t e r i a h a b i t a d o também a área t r o p i c a l d o c o n t i n e n t e a m e r i c a ­n o ? P o r q u e as Américas s e r i a m u m a exceção? A r e s p o s t a d e Beltrão p a r a essas indagações é a c e i t a r q u e também n o B r a s i l t e n h a v i v i d o o Ramapithecus. E s s a o u s a d a i d e i a d e Beltrão t o r n a - s e m a i s c o n c r e t a q u a n d o a arqueóloga propõe a hipótese d e q u e o Homo erectus t e n h a c o l o n i z a d o o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o .

C o s t u m a - s e c h a m a r d e Homo erectus u m d e t e r m i n a d o g r u p o d e hominídeos a r c a i c o s , c o m o o sinanthropus ( h o m e m d e P e q u i m ) e o pithecanthropus ( h o m e m d e J a v a ) , e n t r e o u t r o s , t o d o s espécies d o Homo erectus, o q u a l s u r g i u há m a i s d e 1 milhão e m e i o d e a n o s , t e n d o e x i s t i d o até há u n s 3 0 0 o u 4 0 0 m i l a n o s . E r a capaz d e f a b r i c a r utensílios e d o m i n a r o f o g o ; o t a m a n h o d e s e u crânio e r e s p e c t i v o v o l u m e c e r e b r a l já se a p r o x i m a v a m d a q u e l e s d o h o m e m m o d e r n o a t u a l , d a n o s s a espécie, m a s seus ossos e r a m m a i s r o b u s t o s , c o m es ta­t u r a comparável à d o s seres h u m a n o s a t u a i s ( e n t r e 1,5 e 1,7 m e t r o ) . C o m o m u i t o s p r i m a t a s , o Homo erectus e r a u m v i a j a n t e e c o n t a v a c o m m e i o s p a r a de s locar - se d e s e u h a b i t a t o r i g i n a l , n o s trópicos, p a r a l a t i t u d e s t e m p e r a d a s , já q u e d o m i n a v a o f o g o e a fabricação d e a r t e f a t o s d e p e d r a .

( " o r n o o Homo erectus t e r i a c h e g a d o , p r o v e n i e n t e d a Ásia o u d a A f r i c a , à América d o S u l ? Há m u i t o q u e se i m a g i n a q u e a e n t r a d a t l e espécies, e n t r e as q u a i s o s d o s a n c e s t r a i s d o h o m e m m o d e r n o , n o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o t e n h a - s e d a d o p e l o e s t r e i t o d e B e r i n g , l o c a l o n d e q u a s e se e n c o n t r a m Ásia e América d o N o r t e e q u e , n o s p e ­ríodos d e glaciação, u n e p e l o g e l o o s d o i s c o n t i n e n t e s . Mamíferos t e r i a m f e i t o e s s a t r a v e s s i a e, e n t r e e les , p o d e r i a e s t a r o Homo erectus. O u t r a p o s s i b i l i d a d e p a r a a c h e g a d a s e r i a a existência d e u m a p o n t e

26

g e l a d a q u e t e r i a u n i d o , e m a l g u m a época, a África à América d o S u l . Até a q u i , porém, t e m - s e m e n c i o n a d o a possibilidade de presença desses p r i m a t a s : q u a i s s e r i a m as evidências q u e d a r i a m sustentação a t a l afirmação?

Rotas de colonização da América pelo estreito de Bering

F o n t e : Divisão científica d o M A E / U S P .

27

Page 13: Pré História do Brasil

N o i n t e r i o r d o e s t a d o d a B a h i a , n o município d e C e n t r a l , Beltrão c sua e q u i p e e s c a v a r a m o sítio " T o c a d a Esperança", n a r e a l i d a d e u m c o n j u n t o d e três g r u t a s , o n d e e n c o n t r a r a m f o g u e i r a s , a r t e f a t o s ósseos e líticos, c o m datações m u i t o a n t i g a s , a s s i m c o m o vestígios d e a n i m a i s e x t i n t o s há milénios. A " T o c a " t e r i a s i d o o c u p a d a e n t r e 1 milhão e 1 3 0 m i l A P , c o m indicações d e q u e o s seus h a b i t a n t e s u s a ­

v a m r o u p a s e a l i m e n t a v a m - s e d e c a v a l o s e d e t u t a n o . O s a r g u m e n t o s e m defesa d a hipótese d a presença d o Homo erectus são, p o r t a n t o , os s e g u i n t e s :

1 ) há a r t e f a t o s líticos ( o u seja, f e i t o s p e l o h o m e m ) ; 2 ) o s líticos são d e q u a r t z i t o , matéria-prima q u e não se e n c o n t r a

n o l u g a r e q u e t e r i a a l i c h e g a d o p e l a mão d o Homo erectus.; e 3 ) a f a u n a não t e r i a c h e g a d o à g r u t a , d e difícil acesso, s e m a ação

h u m a n a .

O s três a r g u m e n t o s c i t a d o s são questionáveis e f o r a m , e f e t i v a -m e n t e , p o s t o s e m dúvida p o r o u t r o s e s t u d i o s o s . O q u e são líticos p a r a Beltrão e s u a e q u i p e , são v i s t o s c o m o s i m p l e s p e d r a s p o r o u t r o s arqueólogos. A presença d e q u a r t z i t o e d e a n i m a i s , a r g u m e n t a - s e , p o d e r i a se e x p l i c a r , também p o r f a t o r e s n a t u r a i s , já q u e b l o c o s d e q u a r t z i t o p o d e m t e r s i d o t r a n s p o r t a d o s p a r a o l o c a l p e l o s c o n d u t o s calcários d e p o i s d a erosão d a c o b e r t u r a e o s ossos p o d e m t e r c h e g a ­d o t r a n s p o r t a d o s p o r c o n d u t o s a p a r t i r d e o u t r a e n t r a d a o u t e r s i d o t r a z i d o s p o r t i g r e s - d e n t e s - d e - s a b r e .

A g r a n d e m a i o r i a d o s p e s q u i s a d o r e s a i n d a não l e v a m u i t o a sério a p o s s i b i l i d a d e d e u m h o m e m pté-sapiens n a s Américas, e i s so p o r d o i s m o t i v o s : e m p r i m e i r o l u g a r , p e l a f a l t a d e d a d o s c o n c r e t o s . A p e ­nas a publicação d e n o v a s evidências, p r o v e n i e n t e s d e d i v e r s o s sítios, c o m informações m u i t o c l a ra s , p e r m i t i r i a d e t e r m i n a r c o m m a i s c o n ­sistência a presença d e vestígios d e p r i m a t a s a n t i g o s n o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o . M e s m o u m a ciência q u e d e p e n d e , às vezes , d e m u i t o p o u c o s r e s to s , c o m o a A r q u e o l o g i a pré-histórica, baseia-se n o acú­m u l o d e d a d o s e a l g u n s p o u c o s a c h a d o s não b a s t a m p a r a c o n v e n c e r o s e s t u d i o s o s . E m s e g u n d o l u g a r , há objeçóes d e o r d e m lógica c o m o : p o r q u e esses a n t i g o s p r i m a t a s t e r i a m d e i x a d o seus a m b i e n t e s p a r a a v e n t u r a r se p o r regiões geladas?

28

O S U R G I M E N T O d o Homo sapiens sapiens e s u a c h e g a d a à América

T o d o s o s h o m e n s m o d e r n o s q u e v i v e m h o j e n o m u n d o f a z e m p a r t e d e u m a única espécie, a d o Homo sapiens sapiens. Q u a n d o t e ­r i a s u r g i d o essa n o s s a espécie, e o n d e ? Há d u a s m a n e i r a s d e b u s c a r informações e d e t e n t a r r e s p o n d e r a essas p e r g u n t a s : p o r m e i o d a genética e d a p a l e o n t o l o g i a . J u n t a n d o - s e a m b a s as v i a s d e p e s q u i ­sa, o s e s t u d i o s o s têm p r o p o s t o u m a o r i g e m a f r i c a n a r e c e n t e p a r a o Homo sapiens sapiens. E s s a i d e i a opóe-se àquela visão q u e s u s t e n t a q u e o s seres h u m a n o s m o d e r n o s (nós) t e r i a m evoluído d e f o r m a i n ­d e p e n d e n t e e m d i f e r e n t e s áreas d a Eurásia e d a A f r i c a . F l o r e n t i n o A m e g h i n o , e s t u d i o s o a r g e n t i n o d o século x i x , h a v i a s u s t e n t a d o q u e o h o m e m m o d e r n o t e r i a s u r g i d o n a A r g e n t i n a e, d a l i , e s p a l h a d o - s e p e l o m u n d o . E s s a p r o p o s t a f o i c o n t e s t a d a e a b a n d o n a d a n a s p r i m e i ­ras décadas d o século x x . H o j e , a visão p r e d o m i n a n t e d e f e n d e u m a o r i g e m única, n a África.

Q u a n d o s u r g i r a m o s p r i m e i r o s h o m e n s m o d e r n o s ? Não se sabe a o c e r t o , porém ficou c o n s t a t a d o q u e já h a v i a Homo sapiens sapiens f o r a d a África, n a P a l e s t i n a , há 9 2 m i l a n o s . C i e n t i s t a s a n a l i s a r a m o D N A m i t o c o n d r i a l - m a t e r i a l genético e m u m a célula q u e passa

\m modificações d e mãe a filho - d e indivíduos d e d i v e r s a s p a r t e s J d a t e r r a e concluíram q u e t o d a s as pessoas são, e m última instância,

originárias d a África. D e f a t o , h o j e a m a i o r i a d o s e s t u d i o s o s c o n s i ­d e r a q u e o Homo sapiens sapiens - q u e , c o m o f o i e x p l i c a d o , s u r g i u u n i c a m e n t e n a África - não s e r i a m u i t o a n t e r i o r a 1 3 0 m i l A P . N O período e n t r e 6 0 e 4 0 m i l A P t e r i a s u r g i d o a g r a n d e m a i o r i a das manifestações e h a b i l i d a d e s h u m a n a s c o m o a a r t e , o s e n f e i t e s d o c o r p o , o s e n t e r r a m e n t o s d e m o r t o s , as v i a g e n s marítimas e, p r o v a ­v e l m e n t e , a l i n g u a g e m f a l a d a . A emigração d o Homo sapiens sapiens t e r i a o c o r r i d o e n t r e 8 0 e 2 5 m i l A P , c o m u m a d a t a média provável d e 5 2 m i l A P . O Homo sapiens sapiens t e r i a c h e g a d o à O c e a n i a há m a i s d e 5 0 m i l A P .

C o s t u m a - s e d i v i d i r a Pré-História n o s s e g u i n t e s períodos, a p a r t i r d e u m p o n t o d e v i s t a e u r o p e u construído n a p r i m e i r a m e t a d e d o século x x , q u a n d o a i n d a se c o n h e c i a m u i t o p o u c o o pa s sado n o s d e m a i s c o n t i n e n t e s " :

29

Page 14: Pré História do Brasil

Períodos da Pré-história

Paleolítico ou período da Pedra Lascada: 2 milhões a 1 2 0 m i l anos atrás (hominídeos); Paleolítico Médio: 1 3 0 a 3 5 m i l a n o s atrás ( s u r g i m e n t o d o Homo sapiens); Paleolítico Superior. 3 5 a 1 2 m i l A P (época d a colonização h u m a n a d a América); Mesolítico: 1 2 a 9 m i l A P ; Neolítico ou pedra polida: 9 a 5 . 5 0 0 a n o s atrás n a E u r o p a , Ásia e África; 7 a 2 m i l A P n a América.

Na América: Paleoíndio ( a n t e s d e 8 m i l a . C . )

Q u a n d o e c o m o a n o s s a espécie c h e g o u à América? C o m o e r a m esses p r i m e i r o s c o l o n i z a d o r e s ? P o r q u e v i e r a m p a r a o n o v o c o n t i ­n e n t e ? Essas são p e r g u n t a s q u e têm s i d o r e s p o n d i d a s d e d i v e r s a s m a n e i r a s . D e s d e o a b a n d o n o d a hipótese d e a u t o c t o n i a d o h o ­m e m a m e r i c a n o , l e v a n t a d a p o r A m e g h i n o , n o início d o século x x , e s t a b e l e c e u - s e u m a visão p r e d o m i n a n t e d e q u e o h o m e m c h e ­g o u à América, p o r m e i o d a transposição d o E s t r e i t o d e B e r i n g , e m a l g u m d o s três últimos períodos d e glaciação ( 4 0 m i l , 2 5 m i l , 1 4 - 9 m i l A P ) .

S e o b s e r v a r m o s os vestígios h u m a n o s a n t e r i o r e s aos últimos 1 0 m i l a n o s , v e r i f i c a r e m o s q u e a m a i o r i a provém d e savanas e regiões t e m p e r a d a s , o q u e i n d i c a r i a , s e g u n d o a l g u n s , q u e o Homo sapiens sapiens só c o n s e g u i u se a d a p t a r à v i d a e m c l i m a t r o p i c a l m u i t o r e c e n ­t e m e n t e . A s evidências arqueológicas p r o v e n i e n t e s d e áreas t r o p i c a i s a n t e r i o r e s a 1 2 m i l a n o s d e m o n s t r a r i a m q u e h o u v e u m a expansão c o l o n i z a d o r a d o h o m e m d a África s e t e n t r i o n a l e m direção às z o n a s t e m p e r a d a s e f r i a s e , daí, à América d o N o r t e . O g r a n d e pré-histo-r i a d o r C l i v e G a m b l e , e m s e u a m p l o e s t u d o Andarilhos do passado, expõe, d e f o r m a m u i t o didática, essa i d e i a :

i Y>m as f l o r e s t a s t r o p i c a i s , e n c o n t r a m o s u m p a r a d o x o . E m p r i m e i r o l u ­g a r , não s u p o m o s , p o p u l a r m e n t e , q u e d e s c e m o s d a s árvores t r o p i c a i s ? K m s e g u n d o l u g a r , e m a i s i m p o r t a n t e , e s s e s são o s m e i o s a m b i e n t e s m a i s

30

ricos n a íãce d a T e r r a , já q u e r e c e b e m m a i s e n e r g i a s o l a r . P o s s u e m a m a i o r b i o m a s s a e p r o d u t i v i d a d e e a m a i o r d i v e r s i d a d e d e v i d a a n i m a l e v e g e t a l . E , n o e n t a n t o , a conclusão, t a n t o d a evidência histórica c o m o a r q u e o ­lógica é q u e a ocupação h u m a n a d a s áreas d e florestas t r o p i c a i s o c o r r e u m u i t o t a r d i a m e n t e . Não é à t o a q u e a p a l a v r a jangala, e m sânscrito, d a q u a l d e r i v a o inglês jungle ( se lva) , s i g n i f i q u e d e s e r t o . Não é d e a d m i r a r q u e T a r z a n t e n h a ficado c o n t e n t e a o e n c o n t r a r s u a J a n e !

Há, e n t r e t a n t o , d ive r s a s objeções à t e o r i a d a ocupação t a r d i a das áreas t r o p i c a i s . A ausência d e vestígios h u m a n o s m u i t o a n t i g o s n a s áreas t r o p i c a i s não s i g n i f i c a q u e não e x i s t a m e v e n h a m a ser d e s c o b e r t o s , p o i s as áreas t r o p i c a i s f o r a m m u i t o m e n o s p e s q u i s a d a s q u e o s d e m a i s t i p o s d e a m b i e n t e s . D e c e r t o m o d o , a m a i o r i a d o s arqueólogos a c a b o u p e s q u i s a n d o à b e i r a - m a r e e m a m b i e n t e s já d e ­g r a d a d o s p e l a ocupação u r b a n a e r u r a l , c o m m e n o s investigações e m l u g a r e s d i s t a n t e s e c o b e r t o s p o r florestas. S e g u n d o a v e l h a r e g r a , não se p o d e t i r a r conclusões p e l a ausência d e d a d o s , p o i s e les p o ­d e m s u r g i r a q u a l q u e r m o m e n t o : d e v e m o s s e m p r e t e r c u i d a d o , p o i s s e m p r e p o d e m s u r g i r informações n o v a s . E m s e g u i d a , c o m o o h o ­m e m t e r i a c h e g a d o à África a u s t r a l , à O c e a n i a e à América d o S u l , o n d e já e s t a v a há, n o mínimo, 1 2 m i l a n o s , s e m passar p o r áreas t r o p i c a i s ? Além d i s s o , u m o u t r o q u e s t i o n a m e n t o q u e se f a z à t e o r i a d a ocupação t a r d i a d o s trópicos p a r t e d o princípio d e q u e a i d e i a d e q u e a floresta t r o p i c a l é u m i n f e r n o p a r a a v i d a h u m a n a , p o r s e r m a i s difícil d o q u e a v i d a e m c l i m a s f r i o s , p a r e c e tão s u b j e t i v a e c u l ­t u r a l m e n t e e n v i e s a d a q u a n t o a noção " p o p u l a r " d e q u e a v i d a n o s trópicos é m a i s fácil p o r c ausa d a n a t u r e z a pródiga.

E m p a r t e , a i d e i a d e " i n f e r n o v e r d e " d e c o r r e u d o e t n o c e n t r i s m o e u r o p e u e m relação aos d i f e r e n t e s m e i o s d e v i d a n o s a m b i e n t e s t r o ­p i c a i s . P o r m u i t o t e m p o os c i e n t i s t a s g u i a r a m - s e p e l o s e n s o c o m u m , c o n s i d e r a n d o as e c o n o m i a s indígenas c o m o p o b r e s o u a t ra sada s , e m v e z d e considerá-las a p e n a s d i f e r e n t e s d a s u a e c o n o m i a c a p i ­t a l i s t a e u r b a n a . C o m o d i s se , o antropólogo M a r s h a l l S a h l i n s e m u m d o s seus f a m o s o s l i v r o s , Economia da idade da pedra: " H a v e n d o atribuído a o caçador i m p u l s o s b u r g u e s e s e f e r r a m e n t a s paleolíti­cas, j u l g a m o s s u a situação d e s e s p e r a d a p o r antecipação". I s t o é, o s c i e n t i s t a s p e n s a v a m a v i d a n o a m b i e n t e t r o p i c a l s e g u n d o as regra s

31

Page 15: Pré História do Brasil

d a v i d a u r b a n a e u r o p e i a , i m e r s o s e m u m a t r e m e n d a ignorância e m relação às n u m e r o s a s estratégias a d a p t a t i v a s d o s p o v o s indígenas.

Essa ignorância e s teve p r e s e n t e n a formulação d a p r i m e i r a t e o r i a q u e v i s a v a à explicação d a ocupação e d a d i v e r s i d a d e h u m a n a d a América d o S u l e d o B r a s i l . A c h a m a d a t e o r i a d o degeneracionis-mo, m u i t o i n f l u e n t e n o s m e i o s i n t e l e c t u a i s b r a s i l e i r o s até p o u c a s décadas atrás, f o i d i f u n d i d a a p a r t i r das publicações d o n a t u r a l i s t a V o n M a r t i u s , q u e p e r c o r r e u o i n t e r i o r d o país p a r a l e v a n t a r i n f o r ­mações s o b r e a f a u n a e a f l o r a , e n t r e 1 8 1 7 e 1 8 2 0 . V o n M a r t i u s d i v u l g o u s u a s i d e i a s s o b r e o d e g e n e r a d o n i s m o e m 1 8 3 9 , m a s f o i a p e n a s e m 1 8 4 5 q u e es sa t e o r i a p a s s o u a s e r c o n h e c i d a n o B r a s i l , q u a n d o f o i p u b l i ­c a d o o s e u e n s a i o " C o m o se d e v e e s c r e v e r a Histó­r i a d o B r a s i l " , v e n c e d o r d e u m c o n c u r s o r e a l i z a d o p e l o I n s t i t u t o Histórico e Geográfico B r a s i l e i r o .

V o n M a r t i u s a d o t o u as i d e i a s d e c e r t o s círcu­l o s i n t e l e c t u a i s e u r o p e u s , q u e e s t a v a m e m m o d a d e s d e o século x v m , p a r a e x p l i c a r a d i f e r e n ­ça d o s a n i m a i s d a s Amé­r i c a s e m relação a o s d o " V e l h o M u n d o " (África, E u r o p a e Ásia), q u a l i f i -c a n d o - o s c o m o i n f e r i o ­res e aberrações. A p a r t i r d e s s a i d e i a , V o n M a r t i u s f o r m u l o u a t e s e d e q u e as populações indígenas q u e o c u p a r a m as Améri­c a s e r a m o r i g i n a l m e n t e " d e s e n v o l v i d a s " , t e n d o c o m o m o d e l o o s a s t e c a s ,

P e t r o g U f o s r e g i s t r a d o s p o r S p i x e V o n M a r t i u s n o rio Japurá, r e p r o d u z i d o s p o r J e a n B a p s t i s t c D e b r e t . Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, 1834.

32

o s m a i a s e o s i n c a s , e m v i r t u d e das suas a r q u i t e t u r a s m o n u m e n t a i s , das densas populações e d a a g r i c u l t u r a e m l a r g a escala. A o desce­r e m das t e r r a s t e m p e r a d a s , d o s a l t i p l a n o s a n d i n o s , o s i n c a s t e r i a m i n g r e s s a d o n a s áreas d e floresta t r o p i c a l , c o n s i d e r a d a s a m b i e n t e s desfavoráveis p a r a a h u m a n i d a d e , p a s s a n d o a s o f r e r u m contínuo p r o c e s s o d e degeneração das suas capac idades m o r a i s , d e d e s i n t e g r a ­ção d a s u a c u l t u r a m a t e r i a l e d e s u a organização s o c i a l . Além d i s s o , a c r e d i t a - s e q u e o c l i m a cálido e úmido das florestas i n d u z i a as pes­soas a t e r e m u m a v i d a s e x u a l d e s o r d e n a d a , o q u e r e s u l t o u e m u m a contínua formação d e n o v o s p o v o s , c ada v e z m a i s d e g e n e r a d o s e c o m as suas línguas cada v e z m a i s d i f e r e n t e s . I s s o e x p l i c a r i a a i m e n s a dispersão geográfica d o s f a l a n t e s d e várias línguas, a e x e m p l o d o s p o v o s t u p i s e jês. V o n M a r t i u s a c h a v a q u e a semelhança e n t r e as d i s t i n t a s línguas d e v i a - s e a u m a separação r e c e n t e e q u e esses p o v o s não e r a m m u i t o a n t i g o s . E l e também p e n s a v a q u e a degeneração l e v a r i a o s p o v o s indígenas à extinção, tese q u e f o i i m e d i a t a m e n t e a d o t a d a p e l o s i n t e l e c t u a i s b r a s i l e i r o s n o século x i x e q u e p e r d u r o u c o m b a s t a n t e força até a década d e 1 9 7 0 , d o m i n a n d o i n c l u s i v e o p e n s a m e n t o d e antropólogos f a m o s o s , c o m o D a r c y R i b e i r o , e d e órgãos g o v e r n a m e n t a i s , c o m o a F u n a i .

C o m o q u e r q u e seja , s a i b a m o s o u não e x p l i c a r t o d a s as m o t i v a ­ções d o s p r i m e i r o s p o v o a d o r e s , o c e r t o é q u e eles se e s p a l h a r a m c o m r a p i d e z p e l o V e l h o M u n d o e, d a l i , c h e g a r a m à América.

O S M A I S A N T I G O S h a b i t a n t e s e seus vestígios

C o m o s e r i a m os p r i m e i r o s h a b i t a n t e s d o B r a s i l , q u a l a História m a i s a n t i g a d e n o s s a t e r r a ? P a r a c o n h e c e r o s p r i m e i r o s h a b i t a n t e s d o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o , p o d e - s e p e s q u i s a r r e s t o s e s q u e l e t a i s h u m a ­n o s o u m a t e r i a i s q u e se c o n s i d e r a m a s soc iados à presença h u m a n a . V a m o s d e i x a r estes últimos p a r a u m s e g u n d o m o m e n t o , e n o s v o l ­t a r p a r a o s ossos h u m a n o s m a i s a n t i g o s . P a r a t a n t o , r e t r o c e d e r e ­m o s a o início d o século x i x , q u a n d o a América d o S u l e r a u m a das p a r t e s d o g l o b o m e n o s c o n h e c i d a s . E s t i v e r a m p o r a q u i m u i t o s v i a j a n t e s e u r o p e u s , c o m o o s n a t u r a l i s t a s H u m b o l d t , S p i x e V o n

33

Page 16: Pré História do Brasil

M a r t i u s e, a n t e s d e 1 8 4 0 , o próprio D a r w i n . E m 1 8 4 0 , o n a t u r a l i s t a dinamarquês P e t e r W i l h e m L u n d r e a l i z a v a p e s q u i s a s paleontológi-cas n a a n t i g a província d e M i n a s G e r a i s q u a n d o d e s c o b r i u , e m u m a série d e g r u t a s d a região d e l a g o a S a n t a , r e s t o s h u m a n o s a s soc iados a a n i m a i s e x t i n t o s . F o i u m a c h a d o e s p e t a c u l a r e q u e h a v e r i a d e ge­r a r m u i t a polémica, p o i s e m n e n h u m a p a r t e d o m u n d o nessa época se h a v i a e n c o n t r a d o a n i m a i s d e s a p a r e c i d o s contemporâneos a o h o ­m e m . A c o m p a n h e m o s as p a l a v r a s d e L u n d :

A c h e i e s s e s r e s t o s h u m a n o s e m u m a c a v e r n a q u e c o n t i n h a , m i s t u r a d o s c o m e l e s , o s s o s d e d i v e r s o s a n i m a i s d e espécies d e c i d i d a m e n t e e x t i n t a s , circunstância q u e d e v i a c h a m a r t o d a a atenção p a r a e s t a s i n t e r e s s a n t e s relíquias. A d e m a i s , a p r e s e n t a v a m e l e s t o d o s o s c a r a c t e r e s físicos d o s o s ­s o s r e a l m e n t e fósseis. E r a m , e m p a r t e , p e t r i f i c a d o s e , também, p e n e t r a ­d o s d e partículas férreas o q u e d a v a a a l g u n s d e l e s u m l u s t r o metálico, i m i t a n t e a o b r o n z e , a s s i m c o m o u m p e s o extraordinário. S o b r e a r e m o t a i d a d e d e l e s não p o d i a , p o i s , h a v e r dúvida a l g u m a .

H o j e , s a b e m o s , p o r m e i o d e datações p e l o C a r b o n o 1 4 , q u e as i m p o r t a n t e s coleções d e e s q u e l e t o s d a L a g o a S a n t a p o s s u e m m a i s d e 1 0 m i l a n o s . E m 1 9 9 9 , p e s q u i s a d o r e s d a U n i v e r s i d a d e d e M a n c h e s t e r , n a I n g l a t e r r a , reconstruíram a face d o crânio h u m a n o m a i s a n t i g o já e n c o n t r a d o na s Américas, p r o v e n i e n t e d e L a g o a S a n ­t a . A p e l i d a d o , d e f o r m a c a r i n h o s a , c o m o n o m e d e L u z i a , o crânio é d e u m a m u l h e r e t e m cerca d e 1 1 . 6 8 0 a n o s . O crânio e o u t r o s os ­sos d o c o r p o d e L u z i a h a v i a m s i d o d e s c o b e r t o s e m 1 9 7 5 , e m L a g o a S a n t a , p o r u m a e q u i p e f r a n c o - b r a s i l e i r a c o o r d e n a d a p e l a arqueóloga f r a n c e s a A n n e t t e L a m i n g - E m p e r a i r e , e h o j e se e n c o n t r a m n o a c e r v o d o M u s e u N a c i o n a l d o R i o d e J a n e i r o .

O e s t u d o morfológico desse e d e a l g u n s o u t r o s os sos h u m a ­n o s m a i s o u m e n o s contemporâneos l e v o u o s p e s q u i s a d o r e s d a a t u a l i d a d e a p r o p o r n o v a s t e o r i a s s o b r e a ocupação h u m a n a n o n o s s o c o n t i n e n t e . O antropólogo físico e arqueólogo W a l t e r A l v e s N e v e s e s u a e q u i p e q u e e s t u d a m a m o r f o l o g i a h u m a n a a f i r m a m t e r h a v i d o , n a América, há a l g u n s m i l h a r e s d e a n o s , u m a p o p u ­lação não mongolóide. E x p l i q u e m o s m e l h o r : t o d o s o s indígenas a m e r i c a n o s c o n h e c i d o s a p r e s e n t a m semelhanças morfológicas c o m as populações norte-asiáticas mongolóides. O u se ja , o s indígenas

34

das Américas p a r e c e m - s e c o m o s p o v o s mongolóides, c o m o o s a t u a i s c h i n e s e s o u j a p o n e s e s . E s s a semelhança l e v o u a p e n s a r d e m a n e i r a g e n e r a l i z a d a q u e a e n t r a d a d o h o m e m n o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o t e r i a se d a d o p e l o n o r d e s t e d a Ásia p e l o d o E s t r e i t o d e B e r i n g ( o n d e estão e e s t a v a m essas p o ­pulações mongolóides), há p o u c o s m i l h a r e s d e a n o s , p o i s o s u r g i m e n t o das c a rac ­terísticas físicas mongolói­des t e r i a , s e g u n d o a m a i o r i a d o s a n a l i s t a s , u m máximo d e 2 0 m i l a n o s . N e s s e c o n t e x t o , o e s t u d o d o crânio d e L u z i a e d e o u t r o s d a m e s m a época t r o u x e r a m n o v i d a d e s : d a d o s q u e s u g e r e m o u t r a (pré) H i s ­tória e u m o u t r o m o d o d e r e -f l e t i r s o b r e a ocupação h u m a n a d a América.

W a l t e r N e v e s e seus colegas e s t u d a r a m e s q u e l e t o s d e d i f e r e n t e s épocas e regiões d a América d o S u l , c o m p a r a d o s c o m 1 8 p o p u l a ­ções d a h u m a n i d a d e a t u a l , a g r u p a d a s p o r c o n t i n e n t e . D e n t r e esses e s q u e l e t o s , o s c h a m a d o s paleoíndios ( 1 2 a 5 m i l A P ) m o s t r a r a m u m a s u r p r e e n d e n t e diferença e m relação aos g r u p o s p o s t e r i o r e s m o n g o ­lóides e semelhanças c o m populações a t u a i s d a África e d a O c e a n i a . N a s p a l a v r a s desses e s t u d i o s o s :

L u z i a , crânio c u j o e s t u d o t e m l e v a d o a n o v a s e o r i ­g i n a i s interpretações s o b r e a colonização d o B r a s i l pré-histórico.

O s r e s u l t a d o s d e n o s s a s análises m o s t r a m u m a g r a n d e diferenciação e n t r e a s populações pré-históricas suí-americanas d e a n t i g u i d a d e paleoíndia e a q u e l a s m a i s r e c e n t e s , s e j a m d e período histórico o u d o s períodos A r c a i c o (1500-5000 a n t e s d o p r e s e n t e ) e H o r t i c u l t o r (1000 a n t e s d o p r e s e n t e ) . A m o r f o l o g i a c r a n i a n a d o s , paleoíndios s u l - a m e r i c a n o s d e m o n s t r a m a i o r a f i n i d a d e c o m a d e g r u p o s a u s t r a l i a n o s e a f r i c a n o s , e n q u a n t o populações

Page 17: Pré História do Brasil

pré-históricas posteriores e também os grupos etnográficos da Terra do Fogo assodam-se aos asiáticos orientais . Nossos resultados revelam u m a diversida­de considerável da m o r f o l o g i a craniana e m tempos pré-históricos. As populações recentes d o leste da Ásia, l argamente tidas c o m o m o n g o ­lóides, são caracterizadas c o m o portadoras de u m padrão morfológico de faces amplas e altas, crânios mais largos d o que longos e de bases amplas , órbitas e cavidades nasais mai s altas d o que largas. A s séries sul-america-nas pós-Arcaico a l inham-se c o m essas populações, o que parece i n d i c a r que ambos os grupos c o m p a r t i l h a m a m e s m a m o r f o l o g i a craniana . Já os grupos paleoíndios, ao se a l i n h a r e m c o m populações caracterizadas p o r crânios estreitos e longos , faces estreitas e curtas , assim c o m o órbitas e cavidades nasais ma i s curtas, representar iam u m padrão morfológico d i s t i n t o , que a q u i d e n o m i n a r e m o s de não mongolóide. E m s u m a , u m a comparação de m a i o r abrangência t e m p o r a l leva ao resultado recorrente de que te r i a o c o r r i d o n a América a substituição de u m a m o r f o l o g i a não mongolóide p o r u m a t i p i c a m e n t e mongolóide.

Q u a i s as implicações d o s r e s u l t a d o s desses es tudos? E m p r i m e i r o l u g a r , as ide ias t r a d i c i o n a i s s o b r e o s processos d a ocupação h u m a n a d e v e m ser t o t a l m e n t e revis tas . O m o d e l o t r a d i c i o n a l p a r t e d a hipótese d e três grandes e s toques ( o u g r u p o s ) p o p u l a c i o n a i s , p r o v e n i e n t e s d o n o r d e s t e asiático (Sibéria) e r e l a t i v a m e n t e homogéneos n o q u e se re fe re às arcadas dentárias, q u e t e r i a m a d e n t r a d o a América não ante s d e 1 2 m i l a n o s atrás, d a n d o o r i g e m a toda s as populações d o c o n t i n e n t e . A s n o v a s datações c o n t r a d i z e m esse m o d e l o , a s s i m c o m o as recentes aná­lises d o s crânios h u m a n o s . D o s três e s toques m e n c i o n a d o s n a hipótese t r a d i c i o n a l , d o i s t e r i a m ficado r e s t r i t o s a o n o r t e d a América d o N o r t e e apenas u m ser ia a n c e s t r a l d a g r a n d e m a i o r i a d o s g r u p o s ameríndios e d e t o d o s os s u l - a m e r i c a n o s . Essa visão t r a d i c i o n a l f o i m u i t o i n f l u e n ­c i ada p e l a constatação d e q u e a n a t u r e z a mongolóide das populações a t u a i s das Américas é m u i t o c l a ra , b e m c o m o até r e c e n t e m e n t e as úni­cas fontes d e informação. N o e n t a n t o , o n o v o e s t u d o d o s vestígios h u ­m a n o s não c o n f i r m a esse p o n t o d e v i s t a , c o m o v i m o s .

N e v e s e seus c o l e g a s p r o p u s e r a m , então, u m a explicação a l t e r ­n a t i v a p a r a a presença d e h o m e n s d e t i p o africano/oceânico (não mongolóide) n o s períodos m a i s r e c u a d o s : u m a o n d a migratória, também p e l o e s t r e i t o d e B e r i n g , m a s m u i t o a n t e r i o r , d e g r u p o s h u ­m a n o s d o c c n t r o - s u l d a Ásia. O q u e t e r i a o c o r r i d o c o m essa p o p u ­lação d e p r i m e i r o s c o l o n i z a d o r e s d a América? T e r i a m d e s a p a r e c i d o ,

36

substituídos p e l o s p o v o s mongolóides q u e c o n h e c e m o s . T e r i a m s i d o e x t e r m i n a d o s e / o u i n t e i r a m e n t e a s s i m i l a d o s p e l o s mongolóides? N o e s t u d o d a Pré-História, c o m o n a ciência e m g e r a l , n o v o s d a d o s c o s t u m a m t r a z e r , c o m a l g u m a s re spos ta s , m u i t a s n o v a s p e r g u n t a s a s e r e m r e s p o n d i d a s .

N e m t o d o s , c o n t u d o , estão i n t e i r a m e n t e c o n v e n c i d o s c o m as i n ­terpretações desses e s t u d i o s o s d a m o r f o l o g i a d o s crânios h u m a n o s , t a n t o p o r m o t i v o s práticos c o m o teóricos. O número d e crânios a n t i ­gos disponíveis p a r a análise não é m u i t o g r a n d e e apenas o acúmulo d e a c h a d o s n o c o n t i n e n t e virá a f o r n e c e r u m a base m a i s sólida d e c o m p a ­ração. E m s e g u i d a , a r g u m e n t a - s e q u e as diferenças c r a n i a n a s , m e s m o q u a n d o c o m p r o v a d a s , não são explicáveis apenas e tão s o m e n t e p o r migrações d e p o v o s , d e v e n d o - s e a f a t o r e s l i g a d o s a o m e i o a m b i e n t e e à adaptação h u m a n a a t a i s variações. Não p o d e r i a , p o r e x e m p l o , ser o a m b i e n t e t r o p i c a l a e x p l i c a r as características morfológicas " a f r i c a n a s " dessas populações, c o m o é o caso das n a r i n a s a m p l a s , n a d a t e n d o a v e r c o m u m a o r i g e m genérica d i r e t a m e n t e a f r i c ana? S e g u n d o a bióloga b r a s i l e i r a M a r t a L a h r , certas semelhanças e n t r e o s res tos d e paleoíndios e o s aborígenes a u s t r a l i a n o s p o d e m ser e x p l i c a d a s c o m o características q u e a m b o s o s g r u p o s h e r d a r a m d e u m a n c e s t r a l c o m u m , p e r d i d a s p e ­l o s mongolóides n o s últimos 15 o u 1 0 m i l a n o s .

Os tipos humanos

E u r o p o i d e N e g r o i d e Mongolóide

Além d i s s o , há objeções q u a n t o às p r e m i s s a s d e base a d o t a d a s p e l o g r u p o d e N e v e s . E x i s t i r a m m e s m o populações homogéneas n o p a s s a d o , q u e d e i x a r a m u m r a s t r o d e crânios c o m p e q u e n a v a ­riação? O u a variação n o i n t e r i o r d e q u a l q u e r s o c i e d a d e é tão g r a n ­d e q u e i m p e d e t a i s raciocínios? N o p a s s a d o já se u s o u ( e a b u s o u ) d o

37

Page 18: Pré História do Brasil

u s o das características morfológicas, e m p a r t i c u l a r d o s crânios, p a r a d i f e r e n c i a r populações, c o m r e s u l t a d o s m u i t a s v e z e s p o u c o c o n v i n c e n t e s . ( O s j u d e u s t e r i a m crânios d i f e r e n t e s d o s alemães n a z i s t a s , o u a variação, n o i n t e r i o r d a s d u a s "populações", i m p e ­d i r i a q u a l q u e r conclusão o b j e t i v a ? ) P o r último, m a s não m e n o s i m p o r t a n t e , s u p o r q u e a (pré) História se j a f e i t a d e migrações e d e extermínio d e p o v o s p o d e r i a , p e r i g o s a m e n t e , s e r v i r d e j u s t i f i c a t i ­v a ideológica p a r a o extermínio q u e o s e u r o p e u s i m p u s e r a m a o s indígenas a m e r i c a n o s , q u e t e r i a m , p o r s u a v e z , e l i m i n a d o a n t e ­r i o r m e n t e o s a n t i g o s h a b i t a n t e s paleoíndios d o c o n t i n e n t e . Essas dúvidas, d e m o d o a l g u m , a f e t a m a q u a l i d a d e científica d o s e s t u d o s d e N e v e s s o b r e o s vestígios ósseos, n e m q u e s t i o n a m suas intenções q u e , c o m c e r t e z a , não i n c l u e m q u a l q u e r r a c i s m o o u justificação à d e r r o t a e à opressão d o s indígenas.

T o d a v i a , c o m o v e r e m o s n o s e g u n d o capítulo, as t e o r i a s p r o ­p o s t a s p o r N e v e s p o s s i b i l i t a m n o v a s explicações e interpretações g e r a i s d o s r e g i s t r o s arqueológicos d o B r a s i l . E n t e n d e m o s q u e a n o v i d a d e dessas t e o r i a s é a p o s s i b i l i d a d e d e e x p l i c a r a p a s s a g e m e mudança b r u s c a d e u m h o r i z o n t e não c e r a m i s t a e não a g r i c u l ­t o r p a r a o h o r i z o n t e c e r a m i s t a e a g r i c u l t o r . A interpretação c o r ­r e n t e c o n s i d e r a q u e h o u v e p r o c e s s o s e v o l u t i v o s r e g i o n a i s , c o m as populações paleoíndias a d o t a n d o o u c r i a n d o t e c n o l o g i a s e n o ­vas f o r m a s d e subsistência. Após a n a l i s a r o c o n j u n t o das i n f o r m a ­ções s o b o e n f o q u e d e W a l t e r N e v e s concluímos q u e o s p r o c e s s o s e v o l u t i v o s tecnológicos e d e subsistência o c o r r e r a m a p e n a s n a região Amazônica, e q u e n a s d e m a i s regiões b r a s i l e i r a s p r e d o m i ­n o u a substituição d a c u l t u r a m a t e r i a l paleoíndia p e l a a g r i c u l t o r a e c e r a m i s t a , e m decorrência d a substituição das populações não mongolóides p e l a s t i p i c a m e n t e mongolóides.

C o n s i d e r a n d o as p e s q u i s a s das m e d i d a s d o s crânios a m e r i c a ­n o s . N e v e s e c o l e g a s p r o p u s e r a m a e n t r a d a p r i m e i r o d e g r u p o s não mongolóides, e m d a t a não e s p e c i f i c a d a , s e g u i d a das migrações mongolóides m a i s r e c e n t e s .

38

 SAtíA d e P e d r a F u r a d a e a a v e n t u r a d o h o m e m a m e r i c a n o

P o r q u e não se e n c o n t r a m vestígios h u m a n o s c o m m a i s d e 1 2 m i l , i n o s n a América? C o m o se p e r g u n t o u o pré-historiador n o r t e -a m e r k a n o , T o m D i l l e h a y , " o n d e estão o s ossos"? Dillehãy l e m b r a q u e , n o r e s t a n t e d o m u n d o , s e m p r e se e n c o n t r a r a m t a i s vestígios, o q u e d i f i c u l t a e n t e n d e r p o r q u e i s so não se passa n a América.

S e p a r t i r m o s d o p r e s s u p o s t o d e q u e o s h o m e n s a q u i e s t a v a m b e m a n t e s d e 1 2 m i l a n o s atrás, p o d e ser q u e : não c o n s e g u i m o s l o c a l i z a r ainda o s sítios arqueológicos d o s p r i m e i r o s a m e r i c a n o s { o q u e é s e m p r e possível) o u os a n t i g o s a m e r i c a n o s não e n t e r r a v a m seus m o r t o s ( o q u e p a r e c e difícil d e a c e i t a r , já q u e se f a z i a i s so n o V e l h o M u n d o há t e m p o s e t e m o s p r o v a s a m e r i c a n a s dessa prática, c o m o é o caso d e L u z i a ) .

E será q u e o s sítios arqueológicos c o m m a i s d e 1 2 m i l a n o s e x i s t e m n a América? O n d e estão? N a ausência d e ossos h u m a n o s , f o g u e i r a s e líticos c o n s t i t u e m o s p r i n c i p a i s indícios d e presença h u m a n a n o p a s s a d o longínquo, a i n d a q u e a m b o s s e j a m , c o m o já v i m o s n o caso d a hipótese d e Beltrão, d e difícil interpretação. D e n ­t r e o s sítios e n c o n t r a d o s q u e f o r a m d a t a d o s d e várias d e z e n a s d e m i l h a r e s d e a n o s , a l g u n s se d e s t a c a m . F o r a d o B r a s i l , há o a b r i g o p e r u a n o d e P i k i m a c h a y , c o m datações d e até 2 0 m i l a n o s , e M o n t e V e r d e , n o s u l d o C h i l e , c o m datações d e carvão, m a d e i r a e ossos d e m a s t o d o n t e s d e cerca d e 1 2 . 5 0 0 a n o s . U m o u t r o sítio e m M o n t e V e r d e a p r e s e n t a d a t a s d e 3 3 m i l a n o s . Se essas datações e s t i v e r e m c o r r e t a s , p a r a q u e o ser h u m a n o es t ivesse b e m a o s u l d o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o há 3 3 m i l a n o s , d e v e r i a t e r d e i x a d o a Ásia e c r u z a d o o e s t r e i t o d e B e r i n g a l g u m a s d e z e n a s d e m i l h a r e s d e a n o s a n t e s .

O sítio m a i s extraordinário e c o n t r o v e r s o , c o n t u d o , está n o B r a ­s i l , e m P e d r a F u r a d a , n o Piauí. D e s d e a década d e 1 9 7 0 , a arqueó­l o g a b r a s i l e i r a Niède G u i d o n a t u a n o i n t e r i o r d o Piauí, c h e f i a n d o u m a e q u i p e f r a n c o - b r a s i l e i r a . E s t a b e l e c e u a Fundação M u s e u d o H o m e m A m e r i c a n o e r e a l i z o u p e s q u i s a s q u e g a n h a r a m n o t o r i e ­d a d e i n t e r n a c i o n a l . G u i d o n d a t o u d e z e n a s d e r e s t o s d e f o g u e i r a s , a l g u m a s d e l a s c o m 5 0 m i l a n o s , m u i t a s c o m 3 0 o u 4 0 m i l a n o s .

39

Page 19: Pré História do Brasil

A arqueóloga reconstrói a saga desses a n t i g o s p o v o s q u e t e r i a m h a b i ­t a d o a região c o m u m a descrição q u e m e r e c e ser t r a n s c r i t a n a íntegra:

S a b e - s e q u e o h o m e m é o único a n i m a l t e r r e s t r e q u e c o n s e g u i u d i s p e r s a r -s e p o r t o d o o m u n d o . S u a presença é a n t i g a e m t o d o s o s c o n t i n e n t e s , até n a Austrália. O e x e m p l o d e s s e país é e d i f i c a n t e . Até o s a n o s 1970, não s e a d m i t i a q u e o h o m e m aí t i v e s s e p e n e t r a d o a n t e s d e 7 m i l a n o s , p o i s e s s e c o n t i n e n t e , d u r a n t e t o d o o P l e i s t o c e n (1,6 milhão a d e z m i l a n o s atrás) e o H o l o c e n o (10 m i l a n o s atrás e m d i a n t e ) , n u n c a f o i l i g a d o àÁsia. C o m o p r o g r e s s o d a s p e s q u i s a s f o r a m d e s c o b e r t o s sítios q u e d e m o n s t r a r a m q u e o h o m e m já e s t a v a n a Austrália há p e l o m e n o s 50 m i l a n o s , o q u e n o s l e v a a a d m i t i r q u e o h o m e m pré-histórico d o m i n a v a a técnica d a navegação.

O p r e s s u p o s t o d e q u e o h o m e m t e r i a v i n d o [ p a r a a América] u n i c a m e n t e a pé, a t r a v e s s a n d o a Beríngia atrás d o s r e b a n h o s d e a n i m a i s q u e m i g r a ­v a m , não f a z justiça à c a p a c i d a d e i n t e l e c t u a l h u m a n a , r e d u z i n d o o h o ­m e m a m e r i c a n o a u m d e s c e n d e n t e d e u m a n i m a l não m a i s c a p a z q u e o s c a m e l o s , m a s t o d o n t e s e bisões q u e m i g r a v a m p a r a a América. P a r a m i g r a r através d a Beríngia, o s g r u p o s h u m a n o s t e r i a m t i d o d e s e a d a p t a r a o frio i n t e n s o q u e r e i n a v a n e s s a planície g e l a d a . S e r i a m a i s fácil c r i a r u m a t e c n o l o g i a p a r a o f r i o d o q u e u m a p a r a n a v e g a r ? Além d o m a i s , d u r a n t e épocas d e m a r b a i x o [ n o s períodos d e glaciações], o s rosários d e i l h a s q u e e x i s t e m n o Pacífico d e v i a m s e r m a i s e x t e n s o s , o q u e f a c i l i t a r i a a navegação d e g r u p o s q u e avançariam c o l o n i z a n d o i l h a p o r i l h a . P e q u e n a s embarcações p a r a navegação c o s t e i r a p o d e r i a m , p o r c a u s a s n a t u r a i s c o m o tufões e t e m p e s t a d e s , s e d e s g a r r a r e a c a b a r c h e g a n d o a u m a i l h a . O g r u p o p o v o a r i a a i l h a e aí v i v e r i a d u r a n t e séculos o u milénios, até q u e u m n o v o a c i d e n t e o l e v a s s e u m p o u c o m a i s a d i a n t e . Poderíamos i m a g i n a r g r u p o s d i s s i d e n t e s q u e m i g r a r i a m o u também m o v i m e n t o s messiânicos. E s s e s g r u p o s n a v e g a v a m até à América e n t r e 9-10 m i l a n o s , n o mínimo. P o d e - s e p r o p o r q u e o s p r i m e i r o s g r u p o s c h e g a r a m até o c o n t i n e n t e a m e ­r i c a n o há, p e l o m e n o s , 70 m i l a n o s .

G u i d o n a p r e s e n t a - n o s a v i n d a d o h o m e m p a r a a América c o m o u m a a v e n t u r a i m p r e s s i o n a n t e . S e m p r e e m b u s c a d o s o l n a s c e n t e , d e i l h a e m i l h a , i n s p i r a d o p e l o m e s s i a n i s m o , o u s e j a , p e l a crença e m i n d i v i d u a l i d a d e s p r o v i d e n c i a i s o u carismáticas, p a r a o s u r g i m e n t o d e u m a e r a d e p l e n a f e l i c i d a d e e s p i r i t u a l e s o c i a l .

E s t a visão, c o n s i d e r a d a romântica, não t e m e n c o n t r a d o b o a a c o ­l h i d a e n t r e o s e s t u d i o s o s . P o r u m l a d o , a m a i o r i a d o s p e s q u i s a d o r e s

40

i O t H u l e r u q u e as m a i s a n t i g a s f o g u e i r a s d e P e d r a F u r a d a , a s s i m c o m o $ t p e d r a s , são n a t u r a i s , não se d e v e m à ação h u m a n a . P a r a e les , p o r -M f t i n , o sítio não s e r i a tão a n t i g o . A i n d a q u a n t o aos d a d o s empíricos q t w q u e s t i o n a m a hipótese d e G u i d o n , o s e s t u d i o s o s não e n c o n t r a -l H t n vestígios h u m a n o s tão a n t i g o s n a s i l h a s d o Pacífico; s e g u n d o •ií* arqueólogos q u e p e s q u i s a m a região d o Pacífico, as i l h a s m e n o s d i s t a n t e s d a América, c o m o a i l h a d e Páscoa, f o r a m c o l o n i z a d a s há apenas . . . 2 m i l a n o s ! Não há p o i s q u a l q u e r indicação d e q u e a n a v e ­gação p e l o Pacífico p u d e s s e t e r m a i s d e 7 0 m i l a n o s . O m a i s difícil, c o n t u d o , é a c e i t a r as possíveis motivações a p r e s e n t a d a s p o r G u i d o n q u e t e r i a m l e v a d o h o m e n s , há 8 0 m i l a n o s , a v i a j a r , d e i l h a e m i l h a , r u m o a o s o l n a s c e n t e , p o i s o m e s s i a n i s m o é a l g o d o c u m e n t a d o ape­nas c m soc i edades m u i t o r e c e n t e s e q u e n e m s e m p r e e x p l i c a o s fenó­m e n o s migratórios.

T a l v e z p o r ser a visão m a i s romântica e g l o r i o s a d o h o m e m a m e ­r i c a n o , n o B r a s i l , " o h o m e m d a P e d r a F u r a d a " c o n t i n u a p o p u l a r , a j u l g a r p e l o d e s t a q u e q u e recebe n o s l i v r o s didáticos e n o s m e i o s d e comunicação d e m a s s a . N o m e i o científico i n t e r n a c i o n a l , a t e o r i a d e G u i d o n não é p l e n a m e n t e a c e i t a e, n o B r a s i l , a m a i o r i a d o s e s t u ­d i o s o s t a m p o u c o c o n s i d e r a aceitável a a n t i g u i d a d e atribuída p o r essa e s t u d i o s a a o " h o m e m d a P e d r a F u r a d a " .

A B U S C A das o r i g e n s históricas e as contribuições d a Genética e d a Linguística

P o r m u i t o t e m p o c o n s i d e r o u - s e q u e o s ameríndios a p r e s e n t a ­v a m u m a g r a n d e h o m o g e n e i d a d e biológica, a mongolóide. O c r o ­n i s t a A n t o n i o d e U l l o a , e m 1 7 7 2 , a f i r m a v a q u e " v i s t o u m índio d e q u a l q u e r região, p o d e d i z e r - s e q u e se v i r a m a t o d o s , n o q u e se r e f e r e à c o r e à t e x t u r a " . A p e n a s n o s últimos a n o s o s e s t u d o s d a M o d e r n a Genética têm t r a z i d o n o v o s d a d o s a r e s p e i t o d a h e t e r o g e ­n e i d a d e biológica, f o r n e c e n d o n o v a s informações s o b r e a c o l o n i z a ­ção d a América q u e p o d e m p r e c i s a r m e l h o r o g r a u d e d i v e r s i d a d e biológica d o s g r u p o s h u m a n o s d o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o .

4 1

Page 20: Pré História do Brasil

O s e s t u d i o s o s d a genética o b s e r v a m o g r a u d e diferença e n t r e o s g r u p o s h u m a n o s e x i s t e n t e s e , a p a r t i r d e u m a hipótese d e tem­po necessário para que tal diferença tenha podido ocorrer no passa­do, propõem datações p a r a as populações h u m a n a s . S e g u n d o essa m e t o d o l o g i a , a l g u n s e s t u d o s genéticos a f i r m a r a m q u e a e n t r a d a d o h o m e m n a América t e r i a - s e d a d o p e l o e s t r e i t o d e B e r i n g , p o r v o l t a d e 3 0 m i l a n o s atrás, a i n d a q u e a l g u n s g e n e t i c i s t a s , c o m o A n t o n i o T o r r o n i , d a U n i v e r s i d a d e d e R o m a , p r e f i r a m a p o s t a r n u m mínimo d e 5 0 m i l a n o s .

P a r a q u e se t e n h a u m a i d e i a da s interpretações p r o v e n i e n t e s d a genética, a p r e s e n t a m o s as c i n c o p r i n c i p a i s hipóteses genéticas h o j e e m d e b a t e :

• A p r i m e i r a hipótese ( c o m base n a análise d e sequências d e m t D N A ) propõe u m a migração única p a r a a Beríngia, há 3 0 m i l a n o s , c o m u m a p a s s a g e m , p e l o c o r r e d o r d e A l b e r t a , d e populações m o n ­golóides q u e o r i g i n a r i a m os p r i m e i r o s ameríndios. O c o l a p s o d o c o r r e d o r , e n t r e 1 4 e 2 0 m i l a n o s atrás, t e r i a i s o l a d o esse g r u p o d o s o u t r o s .

• A s e g u n d a hipótese ( f u n d a d a n o também e s t u d o das sequências d e m t D N A ) i n d i c a , c o n t r a r i a m e n t e à p r i m e i r a hipótese a existência d e q u a t r o l evas migratórias, a começar d e 1 4 a 2 0 m i l A P .

• U m a t e r c e i r a hipótese e x p l i c a t i v a ( d e r i v a d a d a Genética Clássi­ca) c o n s i d e r a q u e t e r i a h a v i d o p a r a o c o n t i n e n t e s u l - a m e r i c a n o três migrações d i s t i n t a s p r o v e n i e n t e s d a Sibéria: d e mongolóides ( q u e o r i g i n a r a m os ameríndios), d e n a - d e n e s ( q u e o r i g i n a r a m os p o v o s d a América d o N o r t e ) e d e esquimós - 1 1 , 9 e 4 m i l A P , r e s p e c t i v a m e n t e .

• U m a q u a r t a hipótese ( q u e p a r t e d o e s t u d o d o s alótipos d e i m u -n o g l o b i n a s ) c o n s i d e r a q u e t e r i a h a v i d o q u a t r o o n d a s migratórias: não n a - d e n e s d o s u l ( 2 0 m i l ) ; não n a - d e n e s d o n o r t e ( 2 0 m i l ) ; n a -d e n e s ( 1 0 m i l ) ; esquimós ( 8 m i l ) , n a - d e n e s , esquimós ( e m 2 0 , 1 0 e 8 m i l A P ) .

• A q u i n t a hipótese ( d e r i v a d a d o e s t u d o d o s h a p l o g r u p o s m t D N A ) d e f e n d e q u e t e r i a h a v i d o q u a t r o o n d a s migratórias: m o n ­golóides c o m h a p l o g r u p o s A , C e D ( 3 0 m i l A P ) , mongolóides c o m h a p l o g r u p o N ( 1 3 . 5 0 0 m i l A P ) - o u se ja , mongolóides c o m d o i s t i p o s d i f e r e n t e s d e características genéticas - , n a - d e n e s ( 8 m i l A P ) e esquimós.

42

P a r a c o m p l i c a r u m p o u c o o q u a d r o , u m a sex ta hipótese ( d o p o n ­t o d e v i s t a d o e s t u d o d o D N A m i t o c o n d r i a l ) c o n s i d e r a q u e a o r i g e m m a i s provável d o s ameríndios não está n a Sibéria, m a s . . . n o l a g o B a i k a l , a m i l h a r e s d e quilómetros a oe s te ! O r a , u m d o s e l e m e n t o s genéticos u t i l i z a d o s c o m o m a r c a d o r d o s ameríndios não aparece , m o d e r n a m e n t e , n a Sibéria, m a s s i m n a E u r o p a e n a Ásia c e n t r a l , o q u e não é fácil d e e x p l i c a r . O u se ja , há traços genéticos q u e o s a m e ­ríndios c o m p a r t i l h a m c o m p o v o s d a E u r o p a , m a s q u e não e x i s t e m h o j e n o s mongolóides, o q u e i n d i c a r i a u m p a r e n t e s c o c o m e u r o p e u s a n t e r i o r a o s u r g i m e n t o das populações mongolóides.

E m b o r a o e s t u d o d o D N A pareça à p r i m e i r a v i s t a ser d e u m a p r e ­cisão matemática, não é b e m a s s i m , c o m o se p e r c e b e pe l a s hipóteses d i v e r g e n t e s c i t a d a s . N a v e r d a d e , essas pesqu i sa s estão a i n d a e m suas fases i n i c i a i s e p r e c i s a r i a m ser m u i t o aperfeiçoadas, o b r i g a n d o - n o s a ficar e m c o m p a s s o d e espera p e l o s r e s u l t a d o s d o s testes q u e a p o n t a ­rão p a r a a hipótese m a i s c o r r e t a . Também é i m p o r t a n t e c o n s i d e r a r q u e essas evidências, até o p r e s e n t e , f o r a m o b t i d a s d e populações v i v a s ( a i n d a são p o u c a s as a m o s t r a s d e D N A o b t i d a s e m e s q u e l e t o s a r ­queológicos). I s s o q u e r d i z e r q u e fósseis c o m o o d e L u z i a não f o r a m c o n s i d e r a d o s , h a v e n d o nesse m o m e n t o u m d e s c o m p a s s o e n t r e os r e s u l t a d o s das análises genéticas e das análises d e e s q u e l e t o s .

O u t r a l i n h a d e investigação q u e p o d e d a r r e s u l t a d o s satisfatórios é a análise d a d i v e r s i d a d e linguística n a América. O m u n d o t o d o p o s s u i h o j e u m t o t a l d e 2 5 0 g r u p o s linguísticos, s e n d o m a i s d e 1 5 0 ameríndios. O u seja , a t u a l m e n t e e x i s t e m u i t o m a i s d i v e r s i d a d e d e línguas n a América d o q u e e m q u a l q u e r o u t r a p a r t e d o p l a n e t a .

P a r t i n d o d o p r e s s u p o s t o d e q u e u m g r u p o linguístico neces s i t a d e 5 a 8 m i l a n o s p a r a t o r n a r - s e d i s t i n t o d e o u t r o s g r u p o s , J o h a n n a N i c h o l s , l i n g u i s t a d a U n i v e r s i d a d e d a Califórnia, e m B e r k e l e y , p r o ­põe q u e o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o d e v e t e r s i d o c o l o n i z a d o há m u i t a s d e z e n a s d e m i l h a r e s d e a n o s , e n t r e 3 5 e 5 0 m i l a n o s , p a r a q u e desse t e m p o d e s u r g i r e m t a n t a s línguas d i v e r s a s . O p r o b l e m a dessa hipó­tese é q u e a África ( o n d e , a f i n a l , o h o m e m v i v e u de sde o início) é o c o n t i n e n t e c o m m e n o r d i v e r s i d a d e linguística, o q u e l e v o u o u t r o l i n g u i s t a , D a n i e l N e t t l e , d e O x f o r d , a p r o p o r o e x a t o o p o s t o , o u se ja , q u a n t o m a i s a n t i g a a colonização, m e n o r s e r i a a d i v e r s i d a d e

43

Page 21: Pré História do Brasil

linguística. S e g u n d o N e t d e , q u a n d o u m a n o v a t e r r a é c o l o n i z a d a , a população cresce e se d i s p e r s a r a p i d a m e n t e , o q u e l e v a à d i v e r s i ­d a d e linguística. C o n t u d o , q u a n d o a c a p a c i d a d e d e dispersão é a l ­cançada, u m g r u p o c o m frequência passa a crescer, às e x p e n s a s d e línguas minoritárias, o q u e l e v a à extinção dessas línguas. É o q u e p a r e c e t e r a c o n t e c i d o n a África, c o m a expansão d o s p o v o s f a l a n t e s d e línguas d o g r u p o b a n t o (e , t a l v e z , o q u e a c o n t e c i a c o m as línguas t u p i - g u a r a n i s n a América d o S u l , q u a n d o c h e g a r a m o s e u r o p e u s , n o século x v ) . S e g u i n d o essa l i n h a d e raciocínio, a d i v e r s i d a d e d e t r o n c o s linguísticos i n d i c a r i a u m a ocupação r e c e n t e d o c o n t i n e n t e , d e a p e n a s 1 1 m i l a n o s .

A HISTÓRIA d o s paleoíndios n o B r a s i l

O t e r m o "paleoíndio" é h o j e e m d i a m u i t o u s a d o , e p o r i s so t a m ­bém o a d o t a m o s a q u i , e m e s p e c i a l p a r a r o t u l a r as populações m o n ­golóides d a t a d a s d e 1 2 a 5 m i l A P . C o n s i d e r a m o s , n o e n t a n t o , q u e "paleoíndio" é u m a noção ambígua e p o u c o c l a r a . S u r g i u q u a n d o se a c r e d i t a v a q u e t o d o s o s indígenas das Américas e r a m mongolóides, e f o i u t i l i z a d o p a r a d e s c r e v e r as populações d o final d o P l e i s t o c e n o e d o i n i c i o d o H o l o c e n o , s o c i e d a d e s d e caçadores-coletores ( o u se ja , q u e a i n d a não c o n h e c i a m a a g r i c u l t u r a ) . H o j e e m d i a , c o m o v i m o s , d i s c u t e - s e a ocorrência n a América d e populações não mongolóides a n t e r i o r e s às norte-asiáticas mongolóides. Além d i s s o , o u s o d o t e r m o "índio" p a r a d e s c r e v e r o s h a b i t a n t e s das Américas também t e m s i d o q u e s t i o n a d o , já q u e esse f o i u m n o m e d a d o p e l o s e u r o p e u s aos p o ­v o s q u e a q u i e n c o n t r a r a m e q u e s u p u s e r a m , e r r o n e a m e n t e , s e r e m d a índia. P o r t a n t o , c o m o não há relação d i r e t a e n t r e o s h a b i t a n t e s das Américas e o s h a b i t a n t e s d a índia, o u s o d o t e r m o "paleoíndio" também p o r i s so não s e r i a o m a i s a d e q u a d o .

Há a l g u m a s décadas, o s p o v o s da s Américas, O c e a n i a e o u t r a s p a r t e s d a t e r r a o r g a n i z a r a m - s e e m m o v i m e n t o s s o c i a i s e m d e f e ­sa d o s "indígenas", " n a t i v o s " o u "aborígenes". Essas três p a l a v r a s s i g n i f i c a m " n a s c i d o n a t e r r a " e são usadas e m português, inglês e o u t r a s línguas. E n t r e t a n t o , o t e r m o "paleoautóctones" (além d e

44

não ser u s a d o p o r ninguém) não r e s o l v e r i a a questão, p o i s a pró­p r i a noção d e a u t o c t o n i a é problemática: n o c u r t o p r a z o , p o d e m t e r " n a s c i d o e m a l g u m l u g a r " s e j a m o s "indígenas", se ja alguém d e ascendência e u r o p e i a , c o m o é o caso h o j e d o B r a s i l , p o i s a i m e n s a m a i o r i a d a população é n a s c i d a a q u i , m a s não é "índia". N o l o n g o p r a z o , ninguém é autóctone, e m p a r t i c u l a t n a América, p o i s t o ­d o s , i n c l u s i v e o s "índios" ( c o m o t o d o s os seres h u m a n o s ) , v i e r a m d a África!

E o q u e d i z e r d o u s o d o t e r m o "paleoíndio" p a r a c a r a c t e r i z a r u m a f o r m a d e organização s o c i a l e política? S e g u n d o esta , s e r i a m c h a m a ­das d e paleoíndios as populações q u e t e r i a m v i v i d o d a caça d e g r a n ­d e p o r t e ( m e g a f a u n a e x t i n t a , c o m o a preguiça g i g a n t e , o t a t u g i g a n t e e t c ) , nómades e m u m c l i m a m a i s f r i o e seco d o q u e o Holocênico ( a t u a l ) , e m g r u p o s p o u c o n u m e r o s o s , s e m liderança. Teríamos m e i o s p a r a c o m p r o v a r , c o m o s d a d o s arqueológicos disponíveis, esse n o ­m a d i s m o e essa frouxidão d a organização soc ia l ?

E m f a c e d a a t u a l f a l t a d e informações q u e dêem a l g u m a s u b s ­tância a t a i s noções, a explicação dessas i d e i a s ba se i a - se e m d o i s p r e s s u p o s t o s b a s t a n t e discutíveis, à m e d i d a q u e r e f l e t e m a l g u n s p r e c o n c e i t o s m o d e r n o s . P a r a q u e se p o s s a f a l a r e m "caçadores nómades" é p r e c i s o a c e i t a r a noção d e q u e , p o r m i l h a r e s d e a n o s e e m u m território i m e n s o ( t o d o o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o ! ) , t e n h a h a v i d o u m único t i p o d e organização s o c i a l , o q u e não p a r e c e razoável p a r a m u i t o s o u t r o s e s t u d i o s o s d a s s o c i e d a d e s h u m a n a s ( i n c l u s i v e p a r a nós, a u t o r e s d e s t e l i v r o ) . I s s o só p a r e c e m a i s v e -rossímil p e l a distância n o t e m p o , p e l a abstraçáo q u e p e r m i t e a distância d e m i l h a r e s d e a n o s . U m s e g u n d o "senão" l i g a - s e às o r i ­g e n s d a própria classificação s o c i a l d e "caçadores nómades". O a r ­queólogo T h o m a s P a t t e r s o n p u b l i c o u u m b e l o l i v r o p a r a m o s t r a r c o m o , a p a r t i r d o século x v i n , i n v e n t a r a m - s e as noções d e c i v i l i ­zação e barbárie, após a ascensão d o c a p i t a l i s m o e a s u a i d e n t i f i ­cação c o m o t e r m o "civilização". A s o r i g e n s d o s " o u t r o s " , g r u p o s d i s t i n g u i d o s d a e l i t e e u r o p e i a p o r s u a s s u p o s t a s diferenças e m aparência, c o m p o r t a m e n t o , o u essência, l i g a m - s e , n a v e r d a d e , às relações d e p o d e r n a s s o c i e d a d e s m o d e r n a s e m q u e t a i s c o n c e i t o s e m e r g e m . M u i t o s i n t e l e c t u a i s i n t e r p r e t a r a m t r a d i c i o n a l m e n t e o p r o g r e s s o c o m o u m m o v i m e n t o l e n t o , m a s contínuo, d o s i m p l e s ( s o c i e d a d e s indígenas) p a r a o c o m p l e x o ( s o c i e d a d e s c o m E s t a d o ) ,

45

Page 22: Pré História do Brasil

m a r c a d o p o r u m a c r e s c e n t e diferenciação, d a h o m o g e n e i d a d e (das soc iedades p r i m i t i v a s s e m diferenciações i n t e r n a s ) p a r a a h e t e r o g e ­n e i d a d e (das soc i edades c o m classes s o c i a i s ) . O p r o g r e s s o , s e g u n d o t a l p o n t o d e v i s t a , s e r i a m a r c a d o p e l a divisão d o t r a b a l h o e p e l o i n d i v i d u a l i s m o . N e s s e c o n t e x t o , f o r j a m - s e o s estágios d e evolução d a h u m a n i d a d e , c o m o s caçadores nómades n a base, s e g u i d o s d o s p r a t i c a n t e s d a a g r i c u l t u r a , d o s q u e d o m i n a v a m o s m e t a i s , d o s q u e v i v i a m e m c i d a d e s , impérios, até c h e g a r a o ápice tecnológico c o m a indústria c a p i t a l i s t a e a c o n s e q u e n t e c o n q u i s t a d a " l i b e r d a d e econó­m i c a " . O u se ja , e m última análise, o c o n c e i t o d e caçadores nómades é u m a invenção q u e se e x p l i c a p o r u m a c e r t a visão c a p i t a l i s t a d o pas sado d a h u m a n i d a d e .

C o m o q u e r q u e se ja , c o n t u d o , o t e r m o paleoíndio é u s a d o p e l o s e s t u d i o s o s c o m o W a l t e r N e v e s p a r a d e s i g n a r , c o m o o fizemos n a s páginas p r e c e d e n t e s , g r u p o s anteriores e diferentes d o s mongolóides, o u se ja , d e biótipo s e m e l h a n t e aos a f r i c a n o s e a u s t r a l i a n o s .

Então, q u a l a história i n i c i a l d a colonização d e n o s s o c o n t i ­n e n t e ? C o m e c e m o s p e l a questão d a e n t r a d a e ocupação d a Amé­r i c a d o S u l e também d o território b r a s i l e i r o . Q u a n t o t e m p o t e r i a d e m o r a d o p a r a q u e o h o m e m se e s p a l h a s s e p o r t o d a essa área? A s e s t i m a t i v a s d e c r e s c i m e n t o demográfico v a r i a m d e 0 , 1 a 3 , 5% p o r a n o , o q u e d a r i a u m mínimo d e m i l e u m máximo d e 1 0 m i l a n o s . U m e s t u d o r e c e n t e propõe q u e o c o n t i n e n t e t e n h a s i d o p o v o a d o m u i t o r a p i d a m e n t e , e m a l g u n s séculos, p o r v o l t a d e 1 0 m i l a n o s atrás, graças a a l t a s t a x a s d e n a t a l i d a d e , a u m a a p a r e n t e ausência d e doenças epidêmicas d e g r a n d e m o r b i d a d e e à g r a n d e m o b i l i d a d e d o s p o v o a d o r e s . A i d e i a desse rápido c r e s c i m e n t o p o ­p u l a c i o n a l e dispersão p o r t o d a a América, e m p o u c o s m i l h a r e s d e a n o s , n o s l e v a a p e n s a r q u e as datações d e p o v o a m e n t o d o c o n t i n e n t e d e a c i m a d e 1 0 m i l a n o s estão e q u i v o c a d a s ( m e s m o p o r q u e é possível a f i r m a r q u e as condições l o c a i s n o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o t e n h a m a l t e r a d o o r i t m o d e p e r d a d o C a r b o n o r a d i o a t i v o , o q u e e x p l i c a o f a t o d e p e s q u i s a d o r e s t e r e m e n c o n t r a d o datações tão a n t i g a s c o m o 5 0 m i l a n o s o u m a i s ) . D e s s a f o r m a , e s t a r i a r e s ­p o n d i d a a questão d e D i l l e h a y : o s o s s o s a n t e r i o r e s a 1 0 m i l a n o s não t e r i a m m e s m o e x i s t i d o !

46

S e r i a i s so m e s m o ? D o n o s s o p o n t o d e v i s t a , a História é m u i t o m a i s c o m p l e x a d o q u e esses cálculos matemáticos e o n o s s o c o n h e c i ­m e n t o está s e m p r e a u m e n t a n d o , c o m d e s c o b e r t a s q u e p o d e m t r a z e r n o v a s informações. O q u e p o d e m o s d i z e r até o m o m e n t o é q u e a História se f az c o m d o c u m e n t o s e várias pesqu i sa s ( q u e s t i o n a d a s p o r u n s , ace i tas p o r o u t r o s ) têm t r a z i d o d a d o s q u e i n d i c a m u m a g r a n d e a n t i g u i d a d e d a ocupação d o B r a s i l , b e m a n t e r i o r a o s 1 0 m i l a n o s t r a d i c i o n a l m e n t e u s a d o s c o m o l i m i t e .

A HISTÓRIA d a ocupação e o s m o d o s d e v i d a d o s h a b i t a n t e s : a floresta t r o p i c a l

B o a p a r t e d o s e s t u d i o s o s , e n t r e o s q u a i s n o s incluímos, não c o n ­s i d e r a tão provável a p e n a s a colonização rápida d o c o n t i n e n t e ( e n t r e 1 0 e 9 m i l A P ) , n e m d e s c a r t a m datações a n t e r i o r e s a 1 0 m i l a n o s . A g r a n d e m a i o r i a c o n c o r d a ( e x c e t u a n d o - s e Beltrão e G u i d o n , c o m o v i m o s a n t e s ) q u e a e n t r a d a d o h o m e m n a América d o S u l deu- se p e l o i s t m o d o Panamá há, p e l o m e n o s , 1 2 m i l a n o s .

S e g u n d o a visão t r a d i c i o n a l , h a v e r i a d u a s f r e n t e s d e expansão: u m a caçadora, q u e p e n e t r o u p o u c o a p o u c o , p e l o i n t e r i o r d o c o n ­t i n e n t e ; e o u t r a , m a i s rápida, d e p e s c a d o r e s - c o l e t o r e s , q u e avançou pe la s cos tas d o Adântico e d o Pacífico.

A visão t r a d i c i o n a l c o n s i d e r a q u e o s p o v o s mongolóides q u e o r i g i ­n a r a m os paleoíndios - m a i s a n t i g o s h a b i t a n t e s d a América d o S u l -v i e r a m d o e s t r e i t o d e B e r i n g , avançaram p e l o c e n t r o d a América d o N o r t e e d e s c e r a m p e l o s A n d e s , s e m p r e p r o c u r a n d o p e l o h a b i t a t a b e r t o d e c l i m a t e m p e r a d o e caçando o s g r a n d e s a n i m a i s t e r r e s t r e s . N e s t e caso , a colonização d o B r a s i l se d a r i a d a c o s t a p a r a o i n t e ­rior ( n o l e s te ) e d o s A n d e s p a r a o c e n t r o - s u l d o B r a s i l q u e , n o final d o P l e i s t o c e n o , e r a m a i s f r i o d o q u e h o j e . A floresta amazônica e r a m e n o r d o q u e n a a t u a l i d a d e e o c l i m a , m a i s t e m p e r a d o a t i n g i a b o a p a r t e d o i n t e r i o r d o B r a s i l , m e s m o e m l a t i t u d e s t r o p i c a i s , c o m o e m M i n a s G e r a i s , e m razão d a a l t i t u d e .

N o s últimos a n o s , essas d u a s interpretações têm s i d o c r i t i c a ­das e m o d i f i c a d a s e m v i r t u d e d e n o v a s evidências. D e s c o b r i r a m - . s e

47

Page 23: Pré História do Brasil

sítios m u i t o a n t i g o s n o i n t e r i o r d a Amazónia, o q u e r e f u t a a i d e i a d e u m a colonização c e n t r a d a a p e n a s e m áreas t e m p e r a d a s e c l i m a f r i o . A d e m a i s , a i d e i a d e q u e o s p o v o s p r o c u r a m c l i m a s t e m p e r a d o s e e v i t a m o s trópicos l i g a - s e tão c l a r a m e n t e a u m a visão etnocêntrica b a s e a d a n a experiência d o s n o r t e - a m e r i c a n o s e e u r o p e u s b u r g u e s e s , q u e t e m s i d o c o n s i d e r a d a p o r d e m a i s s u b -j e t i v a . O s trópicos, c o m o v i m o s a n t e r i o r m e n t e , não são n e m o céu, n e m o i n f e r n o !

O u t r o s p e s q u i s a d o r e s têm d e f e n d i d o u m a visão m e n o s h o m o ­génea das s o c i e d a d e s paleoíndias. P a r a e le s , d e s d e m u i t o c e d o , n o s primórdios d a colonização d o B r a s i l , d e v e m t e r e x i s t i d o m u i t a s c u l t u r a s r e g i o n a i s , c o m características d i s t i n t i v a s m a r c a n t e s ; p o r e x e m p l o , u m a s c o m m a i s diferenças s o c i a i s d o q u e o u t r a s . P a r a o s e s t u d i o s o s dessa l i n h a , n e m s e m p r e as áreas t e m p e r a d a s t e r i a m t i d o as m a i s p r e c o c e s manifestações d e estratificação s o c i a l e d o d e s e n v o l v i m e n t o d e técnicas, t a l c o m o p r o p o s t o p o r a q u e l e s q u e e n f a t i z a m a o r i g e m d o s avanços técnicos e d a h i e r a r q u i a s o c i a l n o c l i m a f r i o . T a m p o u c o s e r i a m a p e n a s as diferenças d e m i c r o a m -b i e n t e s q u e e x p l i c a r i a m essas distinções c u l t u r a i s , p o i s e m u m a m e s m a área t r o p i c a l , c o m o a Amazónia, p o d i a m c o n v i v e r d i v e r s a s c u l t u r a s . O " d e t e r m i n i s m o ecológico", s e g u n d o o q u a l é o m e i o a m b i e n t e a d e t e r m i n a r a c u l t u r a , t e m s i d o c a d a v e z m a i s p o s t o e m c a u s a , t a n t o c o m o m o d e l o e x p l i c a t i v o c o m o p e l o s n o v o s d a d o s e n c o n t r a d o s p e l o s e s t u d i o s o s .

Porém, a n t e s d e questioná-lo, c o m e c e m o s p o r e x p l i c a r m e l h o r o q u e s e r i a o m o d e l o d e t e r m i n i s t a a m b i e n t a l . N o período i m e d i a ­t a m e n t e p o s t e r i o r à S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l ( 1 9 3 9 - 1 9 4 5 ) , vários e s t u d i o s o s e s t a v a m imbuídos d e u m p o n t o d e v i s t a n e o c o l o n i a l s o b r e a v i d a n o s trópicos, então c o n s i d e r a d o s d e b i l i t a d o r e s b i o ­lógicos e c u l t u r a i s , i m p r o d u t i v o s e m t e r m o s económicos. P o r i s so t u d o , d o p o n t o d e v i s t a e u r o p e u e n o r t e - a m e r i c a n o , os trópicos s e r i a m u m h a b i t a t i n a d e q u a d o p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o c u l t u r a l . A floresta t r o p i c a l s u l - a m e r i c a n a , também c o n h e c i d a c o m o floresta amazônica, f o i c o n s i d e r a d a p o b r e e m r e c u r s o s n a t u r a i s , c o m s o l o s impróprios p a r a o c u l t i v o , b e m c o m o i n a d e q u a d a p a r a pe sca e caça i n t e n s i v a s . C o m o conclusão, a p e s a r d a f a l t a d e d a d o s , propôs-se

48

q u e a floresta t r o p i c a l t e r i a i m p e d i d o ocupações s u b s t a n c i a i s e d u ­r a d o u r a s , a s s i m c o m o o d e s e n v o l v i m e n t o d e c u l t u r a s c o m p l e x a s n a s c h a m a d a s T e r r a s B a i x a s (áreas não a n d i n a s ) d a América d o S u l . A s s i m , d a m e s m a f o r m a q u e n a t e o r i a d e g e n e r a c i o n i s t a , p a r t i a - s e d o p r e s s u p o s t o d e q u e t o d a s as inovações tecnológicas e d e s u b s i s ­tência t e r - s e - i a m o r i g i n a d o n o s A n d e s c e n t r a i s , n a s z o n a s m a i s f r i a s o n d e t e r i a s u r g i d o , p o r e x e m p l o , a a g r i c u l t u r a i n t e n s i v a . Q u a l q u e r característica c u l t u r a l v a l o r i z a d a p e l o s e s t u d i o s o s , c o m o a práti­ca d a a g r i c u l t u r a o u d a cerâmica e n c o n t r a d a n a s t e r r a s b a i x a s , e r a atribuída, p o r t a n t o , a o i n f l u x o e x t e r n o p r o v e n i e n t e da s áreas t e m ­p e r a d a s - c o m o a área a n d i n a - o u a a l g u m a influência das g r a n d e s civilizações d a América C e n t r a l .

O d e t e r m i n i s m o ecológico t e v e influências d a t e o r i a d o d i f u s i o -n i s m o ( e m v o g a e n t r e o s i n t e l e c t u a i s e u r o p e u s d o s a n o s 1 9 2 0 ) , d e o n d e t i r o u inspiração p a r a e x p l i c a r o s m e c a n i s m o s d a distribuição geográfica das invenções a n d i n a s p a r a o r e s t a n t e d o c o n t i n e n t e . O d i f u s i o n i s m o a p l i c a d o aos p o v o s s i t u a d o s n o B r a s i l t e v e a s u a f o r ­mulação m a i s i n f l u e n t e a p a r t i r das sínteses d e A l f r e d Métraux, etnó­l o g o suíço d e n t r e o s m a i s de s t acados e s t u d i o s o s d o s p o v o s indígenas s u l - a m e r i c a n o s n a p r i m e i r a m e t a d e d o século x x . Métraux a p l i c o u o d i f u s i o n i s m o a o B r a s i l , p a r t i n d o d o princípio d e q u e o s o b j e t o s e as i d e i a s e r a m t r a n s m i t i d o s e n t r e h a b i t a n t e s d e regiões d i s t i n t a s m e d i a n t e a t r o c a d e informações e m a t e r i a i s d e u m a região a o u t r a . Méttaux baseava-se n o p r e s s u p o s t o d e q u e as T e r r a s B a i x a s d o c o n ­t i n e n t e e r a m i n i c i a l m e n t e h a b i t a d a s p o r p o v o s caçadores-coletores c o m u m b a i x o d e s e n v o l v i m e n t o tecnológico e s o c i a l , e q u e o s p o v o s d e c u l t u r a t u p i , t e n d o a p r e n d i d o as técnicas d e a g r i c u l t u r a e cerâmi­ca d o s p o v o s a n d i n o s , as d i f u n d i r a m , a o se e x p a n d i r e m p o r q u a s e t o d o o território b r a s i l e i r o e p a r t e s d o U r u g u a i , A r g e n t i n a , P a r a g u a i , Bolívia e P e r u . A s s i m , e r a possível e x p l i c a r c o m o p o d e r i a h a v e r t a n ­ta s semelhanças e m t e r m o s m a t e r i a i s o u simbólicos e m distâncias geográficas tão g r a n d e s , a e x e m p l o d a p e d r a p o l i d a , d a a g r i c u l t u r a , d a cerâmica, d a língua e das m i t o l o g i a s . O d i f u s i o n i s m o f o i u m a das explicações m a i s usadas p e l o s e s t u d i o s o s d o passado pré-histórico q u e e s t u d a r a m o território b r a s i l e i r o e, e m vários casos, a i n d a pers i s ­t e c o m o f e r r a m e n t a teórica.

U m o u t r o a s p e c t o q u e l i g a o d i f u s i o n i s m o a o d e t e r m i n i s m o e c o ­lógico é o p e n s a m e n t o e v o l u c i o n i s t a . O e v o l u c i o n i s m o , a p l i c a d o

49

Page 24: Pré História do Brasil

à Pré-História, s e m p r e foi a c i o n a d o p a r a e x p l i c a r t a n t o a d i f e r e n ­ça q u a n t o a mudança, p a r t i n d o d a i d e i a d e q u e as s o c i e d a d e s i a m d e estágios m a i s s i m p l e s aos m a i s c o m p l e x o s m u d a n d o d e t e c n o l o ­g ias e d e hábitos a l i m e n t a r e s e soc i a i s p o r intermédio d a adoçáo d e b e n s e i d e i a s d i f u n d i d o s d e região e m região. A difusão s e r i a o m e i o p e l o q u a l u m a s o c i e d a d e m u d a v a , evoluía d e u m estágio a o u t r o , p o r m e i o d a aquisição o u d a cópia d e c e r t o s a r t e f a t o s , a l i m e n t o s , c o m p o r t a m e n t o s s o c i a i s e políticos. A História, nessa p e r s p e c t i v a , é a u t o m a t i c a m e n t e e n c a r a d a c o m o a p a s s a g e m d e soc iedades m a i s s i m p l e s p a r a m a i s c o m p l e x a s .

P r o p o n e n t e m a i s i n f l u e n t e d o d e t e r m i n i s m o ecológico, o a n ­tropólogo n o r t e - a m e r i c a n o J u l i a n S t e w a r d d e u u m a n o v a l i n g u a ­g e m e c o n c e i t o s a o d e g e n e r a c i o n i s m o ( e m b o r a n u n c a t e n h a c i t a d o V o n M a r t i u s , c u j a s i d e i a s já v i m o s ! ) , d e s e n v o l v e n d o a i d e i a d e q u e as áreas t r o p i c a i s e r a m u m a b a r r e i r a aos seres h u m a n o s . S t e w a r d d i v i d i u as áreas t r o p i c a i s s u l - a m e r i c a n a s e m " f l o r e s t a t r o p i c a l " e "áreas m a r g i n a i s " , p o r s u a v e z s u b d i v i d i d a s e m a m b i e n t e s d e "vár­z e a " e d e " t e r r a firme", c u j a m a i o r extensão está s o b r e o B r a s i l . P a r t i u d o princípio d e q u e o s o c u p a n t e s h u m a n o s não p o d i a m ser n u m e r o s o s , não p o d i a m p e r m a n e c e r p o r m u i t o t e m p o n o m e s ­m o território, p o i s não t i n h a m a l i m e n t o s n a q u a n t i d a d e necessá­r i a e , p o r t a n t o , não p o d i a m alcançar u m a c o m p l e x i d a d e s o c i a l e política, s e n d o q u e s u a s criações m a t e r i a i s d e p e n d i a m d o s p o v o s a n d i n o s , " m a i s evoluídos" nesses a s p e c t o s p o r v i v e r e m e m l o c a i s c o m o c l i m a e o s s o l o s m a i s favoráveis. E m r e s u m o , p a r a S t e w a r d , as áreas d e " f l o r e s t a t r o p i c a l " e as "áreas m a r g i n a i s " s e r i a m m e n o s p r o d u t i v a s e m t e r m o s a l i m e n t a r e s d o q u e as áreas t e m p e r a d a s d o s A n d e s , forçando seus h a b i t a n t e s a o m a i s b a i x o nível d a pirâmide e v o l u t i v a . A l g u n s a n o s m a i s t a r d e , a arqueóloga n o r t e - a m e r i c a n a B e t t y M e g g e r s , discípula d e S t e w a r d , a c r e s c e n t o u , e m v a s t a o b r a , à t e o r i a d o m e s t r e a i d e i a d e q u e o s s o l o s e r a m o s f a t o r e s q u e d e ­t e r m i n a v a m a evolução das s o c i e d a d e s . N a s d u a s g r a n d e s "áreas m a r g i n a i s " e d e " f l o r e s t a t r o p i c a l " , o s s o l o s s e r i a m m a i s p o b r e s e não t e r i a m a c a p a c i d a d e d e s u p o r t a r plantações p o r l a r g o s perío­d o s , p o i s se e s g o t a v a m e m p o u c a s c o l h e i t a s , o b r i g a n d o - s e g u n d o o s d e t e r m i n i s t a s - a migração p a r a o u t r o s territórios. E s s a t e o r i a s e r v i a a o s arqueólogos, p o r e x p l i c a r a g r a n d e dispersão e q u a n t i ­d a d e d e sítios arqueológicos n o território b r a s i l e i r o .

50

Além d i s s o , a g r a n d e influência d o d e t e r m i n i s m o ecológico m o d e l o u q u a s e t o d o s o s e s t u d o s s o b r e a d e m o g r a f i a e o s t i p o s d e organização s o c i a l da s populações indígenas, a s s i m c o m o d a Pré-História d o B r a s i l . N a m a i o r i a d o s e s t u d o s , s e g u i u - s e a te se d a limitação a m b i e n t a l p a r a e x p l i c a r o t a m a n h o da s populações, p a r t i n d o d o princípio d e q u e a p e n a s n a várzea, o n d e "se p r e s u ­m i a e x i s t i r e m m a i s a l i m e n t o s e m razão d a m a i o r o f e r t a d e r e c u r ­sos p e s q u e i r o s e d e c o l e t a d e m o l u s c o s , h a v e r i a condições p a r a s u s t e n t a r populações m a i s d e n s a s . N a c h a m a d a t e r r a firme, m a i s a f a s t a d a d o s r e c u r s o s aquáticos, a equação d e S t e w a r d p r e v i a q u e as populações " s e r i a m " m e n o r e s e m razão d a p r e s u m i d a p e q u e n a o f e r t a d e caça. A d i c i o n e a te se d e q u e nesses d o i s t i p o s d e a m b i e n ­te s a a g r i c u l t u r a p r o d u z i a p o u c o e o s s o l o s o b r i g a v a m a mudança c o n s t a n t e d o l o c a l da s roças e , l o g o , o b t e m o s c o m o r e s u l t a d o a compreensão d e q u e o número d e c o m p o n e n t e s d e c a d a u m d o s a g r u p a m e n t o s h u m a n o s só p o d e r i a ser r e d u z i d o .

O d e t e r m i n i s m o f o i a a l t e r n a t i v a teórica p a r a s u b s i d i a r o p o n t o d e v i s t a p t e d o m i n a n t e d e q u e o s p o v o s indígenas s e m p r e f o r a m p o u c o n u m e r o s o s , u m a v e z q u e s u a explicação possuía coerência o b j e t i v a e m relação a o q u e se o b s e r v a v a n o s territórios indígenas d o s séculos x i x e x x , e m g e r a l p o v o a d o s c o m m u i t o p o u c a g e n t e . O s r a r o s e s t u d i o s o s d a d e m o g t a f i a , até p o u c a s décadas, t a m p o u c o d a v a m crédito a o q u e r e l a t a v a m o s c r o n i s t a s e o s d o c u m e n t o s d a b u r o c r a c i a d o s t e m p o s c o l o n i a i s e m relação à existência d e r e ­giões e d e c e r t a s l o c a l i d a d e s d e n s a m e n t e p o v o a d a s p o r "índios". D e s s e m o d o , s e m t e r p e s q u i s a d o d e f o r m a sistemática t o d a s as f o n t e s p u b l i c a d a s e inéditas, região p o r região, o s p e s q u i s a d o r e s p o r m u i t o t e m p o r e s t r i n g i r a m - s e às explicações d e g e n e r a c i o n i s t a s e d e t e r m i n i s t a s p a r a e s t i m a r o t a m a n h o d a população indígena n o B r a s i l n o início d o século x v i , c h e g a n d o a u m número d e c e r c a d e 8 milhões d e pessoas n a m a i o r c o n t a g e m , p u b l i c a d a e m 1 9 4 9 . E s s a c o n t a deverá ser s u p e r a d a q u a n d o as p e s q u i s a s r e g i o n a i s e l o c a i s começarem, s e n d o provável q u e e l a d o b r e , t r i p l i q u e o u se ja m u i t o m a i o r d o q u e se i m a g i n a v a , p o i s t o d o s o s q u e p r o p u s e r a m e s t i m a t i v a s demográficas s e m p r e d i s s e r a m q u e suas c o n t a s e r a m " c o n s e r v a d o r a s " o u q u e e r a m " c h u t e s " b a s e a d o s e m p e q u e n a f r a -ção d e f o n t e s d o c u m e n t a i s .

51

Page 25: Pré História do Brasil

E n f i m , p o d e m o s d i z e r q u e , d a p e r s p e c t i v a d o d e t e r m i n i s m o a m ­b i e n t a l , o ser h u m a n o vê-se r e d u z i d o a u m m e r o s u b p r o d u t o das condições a m b i e n t a i s . Também p o d e m o s o b s e r v a r q u e , se as t e o r i a s e x p l i c a t i v a s e n c o n t r a m - s e s e m p r e i m b r i c a d a s n a s o c i e d a d e q u e as o r i g i n a , está c l a r o q u e o d e t e r m i n i s m o a m b i e n t a l i n s e r e - s e e m u m a c e r t a visão d e m u n d o c o l o n i a l i s t a . B e t t y M e g g e r s , g r a n d e p r o p u g -n a d o r a dessa a b o r d a g e m , n o prefácio a s e u l i v r o i n t i t u l a d o América Pré-Histórica, p u b l i c a d o n o B r a s i l e m 1 9 7 8 , não disfarçava esse viés i m p e r i a l i s t a a o a t r i b u i r às condições geográficas o d e s e n v o l v i m e n t o d o s E s t a d o s U n i d o s e o s u b d e s e n v o l v i m e n t o d a América L a t i n a :

E s t e l i v r o e n f a t i z a o c o n t r a s t e e n t r e a América pré-histórica e a América m o d e r n a , responsável p o r p r o b l e m a s n a c i o n a i s e i n t e r n a c i o n a i s d e d e s e n ­v o l v i m e n t o . U m rápido e x a m e d o m a p a d e áreas fisiográficas e c u l t u r a i s m o s t r a regiões c o m características s i m i l a r e s e m a m b o s o s hemisférios. N o n o r t e e n o s u l e x i s t e m florestas, c a m p o s , d e s e r t o s , c o s t a s d o Pacífico e áreas m a r g i n a i s . D u r a n t e o período pré-histórico, a existência d e r e c u r s o s s e m e l h a n t e s c r i o u configurações n o t a v e l m e n t e s i m i l a r e s t a n t o n a Amé­r i c a d o S u l c o m o d o N o r t e , e m b o r a p o u c a o u n e n h u m a comunicação h o u v e s s e e n t r e e l a s . C o n s i d e r e - s e a diferença e n t r e o s l i m i t e s d e s s a s áreas ecológicas e o s d a s nações m o d e r n a s . N a América d o N o r t e , o s E s t a d o s U n i d o s e s t e n d e m - s e d e o c e a n o a o c e a n o , p o r florestas, c a m p o s e d e s e r t o s . N a América d o S u l , e m contraposição, a s m o d e r n a s divisões c o i n c i d e m m a i s d e p e r t o c o m a s z o n a s ecológicas. O B r a s i l é p r i n c i p a l m e n t e floresta; a A r g e n t i n a , c a m p o ; o C h i l e , c o s t a d o Pacífico; Colômbia e V e n e z u e l a são z o n a intermediária. E s s a diferença é s i g n i f i c a t i v a . S e a América d o N o r t e t i v e s s e s i d o d e s m e m b r a d a e m m u i t o s países, u m o c u p a n d o a floresta, o u t r o o s c a m p o s , o u t r o o d e s e r t o e o u t r o a c o s t a d o Pacífico, a situação s e r i a c o m ­parável à d a América d o S u l e o s p r o b l e m a s d e d e s e n v o l v i m e n t o s e r i a m p r o v a v e l m e n t e análogos. N o p r e s e n t e , o s p e s q u i s a d o r e s estão c o n s e g u i n ­d o , a p a r t i r d e e s t u d o s l o c a i s e r e g i o n a i s , c o m p r e e n d e r q u e h a v i a o u t r o s p a n o r a m a s s o c i a i s , económicos, demográficos e políticos m u i t o d i s t i n t o s d a s predições d e t e r m i n i s t a s . E m l u g a r d a s previsões d e t e r m i n i s t a s , c a d a v e z m a i s s e b u s c a a História e o s d o c u m e n t o s q u e n o s p e r m i t a m c o m p r e ­e n d e r c o m o f o i c o n c r e t a m e n t e a ocupação d o n o s s o território.

A o contrário d o q u e a f i r m a v a m V o n M a r t i u s e o u t r o s d e g e n e -r a c i o n i s t a s , c u j a s p r i n c i p a i s t e o r i a s p o d e m ser l i d a s n o b e l o l i v r o d e

52

A n t o n e l l o G e r b i , O mundo novo, p u b l i c a d o n o B r a s i l e m 1 9 9 6 , a v i d a n a floresta t r o p i c a l não r e s u l ­t o u e m estagnação o u decadência. Aliás, a o contrário d a interpretação d e q u e pessoas m a i s "evoluídas" t e r i a m e n t r a d o n a floresta e dege­n e r a d o , a c r e d i t a m o s , j u n t a m e n ­t e c o m o u t r o s e s t u d i o s o s , q u e a r i q u e z a d o s a m b i e n t e s das z o n a s t r o p i c a i s d a América d o S u l p r o ­p i c i o u a criação e a d e s c o b e r t a d e n u m e r o s o s a l i m e n t o s e o b j e t o s d e u s o c o t i d i a n o e r i t u a l q u e m a i s t a r ­d e s e r v i r i a m aos q u e construíram o império i n c a i c o , p o r e x e m p l o . Além das coisas m a t e r i a i s , é m u i t o P i g u r a s h u m a n a s c o m c a b e ç a s ^ e n . provável q u e a história v i v i d a p e l o s c o n t r a d a s e r a M o n t e A l e g r e ( M G ) .

p o v o s q u e o c u p a r a m e se a d a p t a ­r a m à floresta t e n h a p o s s i b i l i t a d o a criação e a variação d e m u i t a s práticas soc ia i s , políticas e económicas, i n c l u i n d o a criação d e r i c o s a c e r v o s mitológicos e d e u m a v a r i a d a c o s m o l o g i a .

A s críticas a o d e t e r m i n i s m o a m b i e n t a l , c o m o t e o r i a e x p l i c a t i v a , v i e r a m t a n t o d e c o r r e n t e s antropológicas, i n s a t i s f e i t a s c o m t a i s a r g u ­m e n t o s , q u a n t o d e e s t u d i o s o s d a a t u a l i d a d e , a t e n t o s à j u s t i f i c a t i v a d a exploração d a América L a t i n a , t r a v e s t i d a d e " d e s t i n o ecológico" c o m o i m a g i n a r a m o s d e t e r m i n i s t a s . N o q u e se r e f e r e à ocupação pré-histórica d o c o n t i n e n t e s u l - a m e r i c a n o , o s vestígios arqueológicos têm m o s t r a d o u m q u a d r o q u e c o n t r a d i z , a b e r t a m e n t e , t a i s t e o r i a s d e t e r m i n i s t a s . A história d a ocupação d a floresta t r o p i c a l p a r e c e ser o e x e m p l o m a i s i n s t i g a n t e , c o m o v e r e m o s a q u i .

D e s d e o século x x x , u m g r a n d e número d e c a v e r n a s e a b r i g o s s o b r o c h a f o i e n c o n t r a d o n a Amazónia, m u i t o s d e l e s p i n t a d o s c o m figuras e s t i l i z a d a s d e a n i m a i s , seres h u m a n o s e d e s e n h o s d e f o r m a geométrica. P e s q u i s a s r e c e n t e s d a e q u i p e d a e s t u d i o s a a m e r i c a n a A n n a C . R o o s e v e l t m o s t r a m q u e p i n t u r a s r u p e s t r e s , e m p l e n a flo­r e s t a t r o p i c a l , e m M o n t e A l e g r e , f o r a m f e i t a s há m a i s d e 1 1 m i l a n o s e estão e n t r e as m a i s a n t i g a s já e n c o n t r a d a s n a s Américas. A s figuras

53

Page 26: Pré História do Brasil

geométricas p o d e m m u i t o b e m t e r s i d o métodos p a r a c o n t a g e m , e n q u a n t o i n s e t o s c o m braços e p e r n a s h u m a n o s e h o m e n s c o m cabeças s o l a r e s p a r e c e m r e p r e s e n t a r seres mitológicos. A d u l t o s e crianças d e i x a r a m impressões d e suas mãos n a s p a r e d e s . E n c o n -t r a r a m - s e , a i n d a , r e s t o s d e u m a c a m p a m e n t o m u i t o b e m d a t a d o , t a n t o p e l o C a r b o n o 1 4 c o m o p e l a termoluminescência, e n t r e 1 0 e 1 1 m i l a n o s atrás.

C o m o t e r i a m v i v i d o esses p i o n e i r o s d a floresta t r o p i c a l ? U s a v a m p o n t a s d e lança d e p e d r a b i f a c i a i s t r i a n g u l a r e s e se a l i m e n t a v a m t a n t o d a pesca e caça c o m o d a c o l e t a d e frutos e v e g e t a i s . C o m i a m p e i x e s , r o e d o r e s , m o r c e g o s , m o l u s c o s , j a b u t i s , pássaros, anfíbios, m a s também c o b r a s e g r a n d e s mamíferos t e r r e s t r e s . Não p r e s c i n ­d i a m d o s f r u t o s d a p a l m e i r a , d a castanha-do-pará e d e várias espé­cies d e l e g u m i n o s a s .

U m a das implicações d a d e s c o b e r t a dessas ocupações tão a n t i g a s c o n s i s t e e m r e v e r t e r a visão d o s trópicos c o m o área deletéria p a r a o h o m e m . A floresta t r o p i c a l s e r v e c o m o u m e x c e l e n t e h a b i t a t p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o h u m a n o , c o m o a África já n o s d e v i a s u g e r i r . A l i também, as florestas t r o p i c a i s d e v e m t e r s e r v i d o c o m o f o c o s c u l t u ­r a i s e t a l v e z a P a l e o n t o l o g i a e a A r q u e o l o g i a t e n h a m - s e i l u d i d o a o c o n c e n t r a r suas pe squ i sa s e m áreas d e s a v a n a o u c e r r a d o , i g n o r a n d o o i m e n s o p o t e n c i a l d o s trópicos.

O u t r a possível decorrência desses a c h a d o s amazônicos tão a n t i g o s c o n s i s t e n o r o m p i m e n t o d a lógica, já m e n c i o n a d a , q u e i n d i c a r i a u m a direção unívoca d o s i m p l e s ( m a i s a n t i g o ) p a r a o c o m p l e x o ( m a i s r e c e n t e ) e a h o m o g e n e i d a d e c u l t u r a l da s m a i s a n t i g a s ocupações. O u s o a n t i g o d a cerâmica n a floresta t r o p i c a l e as p i n t u r a s r u p e s t r e s e l a b o r a d a s não i n d i c a m , p o r t a n t o , u m es­tágio s u p e r i o r e p o s t e r i o r d e d e s e n v o l v i m e n t o h u m a n o - já q u e m i l h a r e s d e a n o s depois o u t r o s g r u p o s não u s a v a m esses r e c u r s o s . N e m s u a presença e m u m sítio i n d i c a q u e não h o u v e s s e o u t r o s t i p o s contemporâneos d e ocupação d a Amazónia. A s s i m , é possí­v e l a c r e d i t a r m o s q u e h a v i a , n u m m e s m o m e i o a m b i e n t e , e s p a l h a ­d o s p e l o território d a floresta t r o p i c a l , c e r a m i s t a s e não c e r a m i s ­t a s , p i n t o r e s r u p e s t r e s e p o v o s d e s i n t e r e s s a d o s e m p i n t a r . N e m s e m p r e o m a i s a n t i g o é m e n o s e l a b o r a d o , n e m s e m p r e o m e s m o a m b i e n t e t r o p i c a l p r o d u z as m e s m a s preocupações c u l t u r a i s e r e ­d u n d a n o s m e s m o s t i p o s d e adaptação.

54

A s r e c e n t e s d e s c o b e r t a s n a Amazónia têm r e v e l a d o a i n d a o u t r a s i m p o r t a n t e s s u r p r e s a s . E m b o r a p o s t e r i o r e s , o s vestígios d o H o l o c e n o i n d i c a m q u e , e m sítios d o b a i x o A m a z o n a s , se p r o d u z i a cerâmica já a 7 . 5 0 0 m i l A P , s e n d o , p o r t a n t o , a área e m q u e se p r o d u z i u v a s i l h a s cerâmicas m a i s a n t i g a ( d e s c o b e r t a até o m o m e n t o ) d a América e u m a das áreas m a i s p recoces n o m u n d o c o m vestígios desse t i p o .

E n f i m , t o d o s esses a c h a d o s i n d i c a m m a i o r d i v e r s i d a d e d e s i t u a ­ções d o q u e se p r e s s u p u n h a a n t e r i o r m e n t e e e x i g e m u m a n o v a f o r m a d e explicação p o r p a r t e d o s arqueólogos, c u j o s m o d e l o s t r a d i c i o n a i s estão ficando r a p i d a m e n t e anacrónicos.

Divisão da América por áreas ambientais

Contmte Tro/iMittântlco

55

Page 27: Pré História do Brasil

Q U E M M A T O U o s a n i m a i s g igante s ?

M e n c i o n a m o s a existência d e d i v e r s o s a n i m a i s g i g a n t e s q u e se e x t i n g u i r a m n o s últimos milénios e, também s o b r e i s so , há d i v e r s a s opiniões d o s e s t u d i o s o s . N o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o , v i v i a m a n i m a i s g i g a n t e s c o s , c o n h e c i d o s c o m o m e g a f a u n a , c o m o é o caso das p r e g u i ­ças g i g a n t e s e d o s g l i p t d o n t e s , n o território b r a s i l e i r o .

P o r q u e e les d e s a p a r e c e r a m ? A l g u n s e s t u d i o s o s a t r i b u e m a s u a extinção à mudança climática q u e l e v o u a o c l i m a d o H o l o c e n o , e n t r e 8 e 1 0 m i l A P , a ficar m a i s q u e n t e e p a r e c i d o c o m o a t u a l . O u t r o s p e s q u i s a d o r e s , s e m d e s c a r t a r a importância d a mudança climática, m e n c i o n a m a p o s s i b i l i d a d e d e doenças t e r e m o c a s i o ­n a d o g r a n d e s m o r t a n d a d e s e n t r e o s g r a n d e s a n i m a i s . N e s s e c a s o , o h o m e m p o d e r i a t e r contribuído, p o i s p o d e t e r i n t r o d u z i d o n a América a n i m a i s domésticos q u e c o n t a m i n a r a m a n i m a i s s e l v a ­g e n s c o m suas doenças. N o século x i x , c e r t a s regiões d a África t e s t e m u n h a r a m p r e c i s a m e n t e esse fenómeno, q u a n d o a i n t r o ­dução d e g a d o e u r o p e u a c a b o u l e v a n d o à extinção d e espécies a f r i c a n a s n a t i v a s d e antílopes e o u t r o s b i c h o s . U m t e r c e i r o f a t o r p o d e t e r s i d o a caça p r e d a d o r a q u e t e r i a l e v a d o à extinção desses a n i m a i s d e dimensões d e s c o m u n a i s . E s s a última hipótese e n c o n ­t r a reforço e m p e s q u i s a s r e c e n t e s r e a l i z a d a s e m o u t r o c o n t i n e n ­t e , a O c e a n i a . Lá, c o n s t a t o u - s e q u e n a d a m e n o s q u e 5 5 espécies d e v e r t e b r a d o s , c o m o c a n g u r u s g i g a n t e s e pássaros d o t a m a n h o d e p e r u s , d e s a p a r e c e r a m p o r v o l t a d e 4 6 m i l a n o s atrás, o u s e j a , c e r ­ca d e 5 a 1 0 m i l a n o s d e p o i s d a c h e g a d a d o s e r h u m a n o àquele c o n t i n e n t e . A m e s m a correlação e n t r e a c h e g a d a d o h o m e m e a extinção d a m e g a f a u n a p o d e se r c o n s t a t a d a n a N o v a Zelândia e e m Madagáscar.

N o caso d a América, a c r e d i t a m o s q u e p o d e t e r o c o r r i d o u m a c o n ­fluência d o s três f a t o r e s , p o i s h o u v e , e f e t i v a m e n t e , mudança climá­t i c a , c o m a diminuição d a área d o s c a m p o s e c e r r a d o s - o s h a b i t a t s o r i g i n a i s desses g r a n d e s a n i m a i s - c o n c o m i t a n t e m e n t e à expansão d a ocupação h u m a n a , q u e p o d e t a n t o t e r e s p a l h a d o doenças c o m o e x t i n g u i d o o número desses a n i m a i s p o r m e i o das caçadas. S e g u n d o a l g u n s e s t u d o s r e a l i z a d o s c o m o auxílio d e simulação c o m m o d e l o s c o m p u t a c i o n a i s , e m a p e n a s m i l a n o s a caça excess iva s e r i a o s u f i c i e n ­t e p a r a acabar c o m a l g u m a s espécies d e a n i m a i s .

56

O h o m e m c o n v i v e u c o m a n i m a i s e x t i n t o s c o m o o megaténo (à e s q u e r d a ) e o g l i p t o d o n t e (à d i r e i t a ) . A s proporções físicas f o r a m m a n t i d a s n a ilustração.

C o m o q u e r q u e se ja , o fim d a m e g a f a u n a f o i a m a i s s i g n i f i c a t i v a extinção d e a n i m a i s d o p l a n e t a de sde a época d o s d i n o s s a u r o s , p o ­d e n d o ser c o n s i d e r a d a i m p o r t a n t e p o r t e r s i d o contemporânea d o ser h u m a n o e, p o r t a n t o , p o s s i v e l m e n t e r e l a c i o n a d a à ação d e s t e . E n ­t r e t a n t o , s e r i a m e s m o c o r r e t o a t r i b u i r a o h o m e m essa destruição, o u s e r i a a p e n a s n o s s a consciência p e s a d a a s u g e r i r t a i s hipóteses? Não s a b e m o s , m a s o e s t u d o d a m e g a f a u n a e x t i n t a , p o r essa ligação u m b i ­l i c a l c o m o ser h u m a n o , p r o m e t e c o n t i n u a r a c o n c e n t r a r a atenção d o s p e s q u i s a d o r e s d o pas sado pré-histórico e a g e r a r n o v o s c o n h e c i ­m e n t o s coevolucionários e n t r e h u m a n o s e a n i m a i s .

A HISTÓRIA d a ocupação d o território b r a s i l e i r o

A s pesqu i sa s arqueológicas têm r e v e l a d o q u e e n t r e 1 2 e 5 m i l A P , o s g r u p o s h u m a n o s v i v i a m d e d i f e r e n t e s f o r m a s , e m d i f e r e n t e s l u ­gares , e m q u a s e t o d o o território d o B r a s i l . A s áreas s e m evidências d e ocupação h u m a n a são, d e f a t o , espaços o n d e não f o i r e a l i z a d a n e n h u m a p e s q u i s a .

O s o c u p a n t e s m a i s f a m o s o s p e s q u i s a d o s , d e s d e o século x i x , são o s " h o m e n s d e L a g o a S a n t a " , e m M i n a s G e r a i s . S e u m o d o d e v i d a , e n t r e 1 0 e 8 m i l a n o s atrás, é c o n h e c i d o p o r d i v e r s a s esca­vações. E m S a n t a n a d o R i a c h o (também M G ) , e n c o n t r a r a m - s e e s q u e l e t o s fletidos, d e p o s i t a d o s e m r e d e s , às vezes s a l p i c a d o s c o m

57

Page 28: Pré História do Brasil

pó v e r m e l h o e a d o r n a d o s p o r c o l a r e s d e c o n t a s v e g e t a i s . E n t r e o s r e s t o s d e a l i m e n t o s , há cascas d e p e q u i e jatobá, c o q u i n h o s d e l i c u r i e ossos d e a n i m a i s . C o n s t a t o u - s e q u e o s h o m e n s u s a v a m utensílios líticos e ósseos. D e v i a m p r a t i c a r caça d e p o r c o - d o - m a -t o , t a t u s e r o e d o r e s , c o m abundância d e alimentação v e g e t a l q u e l e v a v a à cárie dentária, r a r a e m época tão r e c u a d a . P e l o e s t u d o d o s os sos h u m a n o s , f o i possível s a b e r também q u e h a v i a f a l t a d e a l i ­m e n t o e até f o m e n o período d e c r e s c i m e n t o c o r p o r a l d e crianças e a d o l e s c e n t e s , além d a presença d e doenças inflamatórias.

N o V a l e d o r i o São F r a n c i s c o , a i n d a e m M i n a s G e r a i s , também e n ­c o n t r a r a m - s e vestígios dessa m e s m a época, c o m o atesta u m a p e r n a d e preguiça g i g a n t e t r a b a l h a d a p e l o h o m e m e t r a n s f o r m a d a e m u m arteíato.

A s p r i m e i r a s ocupações registradas n o Alto-Médio t i o São F r a n c i s c o , e n t r e 9 e 1 2 m i l a n o s atrás, também estão, b e m c laras n a L a p a d o B o q u e t e , n o r i o Peruaçu. Esses o c u p a n t e s a l i m e n t a v a m - s e , c o n f o r ­m e o s vestígios e scavados , d e c o q u i n h o s , m o l u s c o s d e água d o c e , p o r c o - d o - m a t o e v e a d o .

N o N o r d e s t e b r a s i l e i r o , há d i v e r s o s sítios c o m datações a n t i g a s -n o Piauí e n a B a h i a - q u e t e r i a m s i d o o c u p a d o s há m i l h a r e s e m i l h a ­res d e a n o s , a l g u n s c o m ocupação contínua, s e g u n d o seus e s c a v a d o ­res , c o m o v i m o s , a o t r a t a r d o s u p o s t o Homo erectus ( B A ) e da s hipó­teses l e v a n t a d a s e m P e d r a F u r a d a ( P I ) . O S vestígios d o período e n t r e 1 2 e 8 m i l a n o s , q u e n o s i n t e r e s s a m a q u i , não a p r e s e n t a m t a m p o u c o características c laras e ace i tas c o m u n a n i m i d a d e p e l o s e s t u d i o s o s . N o caso d o Piauí, o s e scavadores q u e lá a t u a m propõem u m a c o n t i n u i ­d a d e c u l t u r a l i m p r e s s i o n a n t e , se a a c e i t a r m o s :

O s vestígios d a c u l t u r a m a t e r i a l d e s c o b e r t o s i n d i c a m a existência, d u ­r a n t e milénios [ e n t r e 50 e 12 m i l a n o s atrás], d e u m a única c u l t u r a , q u e i n o v o u t e c n i c a m e n t e e f e z e s c o l h a s e n t r e o s r e c u r s o s n a t u r a i s disponí­v e i s . N o período pleistocênico, a s populações já f a z i a m g r a v u r a s n a s p a r e d e s . Mudanças c u l t u r a i s começaram a s e r d e s e n v o l v i d a s p e l a s p o p u ­lações i n s t a l a d a s n a região e n t r e 12 e 3.500 m i l A P . T r a t a - s e d o s m e s m o s g r u p o s étnicos q u e a p o v o a r a m d u r a n t e o período pleistocênico e q u e s e a d a p t a r a m às n o v a s exigências d o m e i o a m b i e n t e . E s s a s populações são c o n h e c i d a s [ n a A r q u e o l o g i a ] c o m o p o v o s d a Tradição N o r d e s t e . D u r a n t e 9 m i l a n o s d e s e n v o l v e r a m u m a c u l t u r a m a t e r i a l c o m técni­c a s c a d a v e z m a i s a p r i m o r a d a s . A e s t r u t u r a económica d o s g r u p o s d a

58

Tradição N o r d e s t e p e r m a n e c e u a m e s m a q u e d o m i n o u d u r a n t e o perío­d o pleistocênico: a s f o n t e s a l i m e n t a r e s e r a m a caça d e a n i m a i s d e p e ­q u e n o p o r t e e a c o l e t a d e f r u t o s e f o l h a s . A caça e r a a s s a d a . U m c a c o d e cerâmica d a t a d o e m 8.900 A P e n v e l h e c e o a p a r e c i m e n t o d a cerâmica n o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o . A permanência d e s s a tradição é d e 6 m i l a n o s . ( A n n e M a r i e P e s s i s ) .

A i d e i a d a manutenção d e u m a população i s o l a d a e q u e e v o l u i n o m e s m o l u g a r p o r m i l h a r e s e m i l h a r e s d e a n o s p a r e c e problemá­t i c a , p o i s o s g r u p o s h u m a n o s t e n d e m a m o v e r - s e e a m o d i f i c a r s u a c u l t u r a , m e s m o q u e aos p o u c o s , d e f o r m a q u e , a l o n g o p r a z o , s u a transformação p o d e ser m u i t o g r a n d e . Se a c e i t a r m o s a hipótese d e Pess is , c o n t u d o , reforçamos o q u a d r o d e múltiplas c u l t u r a s , e m d i f e r e n t e s p a r t e s d o B r a s i l , já q u e populações p o d e r i a m m a n t e r - s e i s o l a d a s p o r m i l h a r e s d e a n o s , c a d a u m a c o m suas características. T o d a v i a , o c o n j u n t o da s evidências c o n h e c i d a s s u g e r e q u e h a v i a u m a a p a r e n t e u n i f o r m i d a d e e n t r e populações d e d i v e r s a s regiões, a o m e n o s e m t e r m o s d e c u l t u r a m a t e r i a l e d e estratégias d e s u b s i s ­tência, e esse fenómeno n o s f a z p e n s a r q u e não h a v i a i s o l a m e n t o , u m a v e z q u e es te c o n d u z à diferença. A s semelhanças e n t r e g r u ­p o s h u m a n o s i n d u z e m - n o s a c o n s i d e r a r q u e h a v i a a reprodução d e c o m p o r t a m e n t o s e d e e s t i l o s tecnológicos q u e r e s u l t a v a m d e comunicação e d e c o n t a t o . Além d i s s o , c o n s i d e r a n d o o r e l e v o d o l e s t e d a América d o S u l , não h a v i a n e n h u m a b a r r e i r a geográfica q u e i so las se as populações.

A ocupação d o C e n t r o - O e s t e também é m u i t o a n t i g a , c o m a l ­g u m a s datações e n t r e 1 5 e 2 2 m i l A P , n o M a t o G r o s s o , s u c e d i d a s p o r b o m número d e sítios a n t e r i o r e s a 7 m i l a n o s . E m Goiás, as m a i s a n t i g a s ocupações, c h a m a d a s c o m o "tradição Paranaíba", e x i s t i r a m e n t t e 1 0 . 7 0 0 e 9 m i l A P , d o m i n a n d o as áreas d e c e r r a d o . A m a i o r i a desses sítios d e caçadores-coletores a n t i g o s e n c o n t r a -se e m a m b i e n t e s f e c h a d o s , c o m o a b r i g o s e g r u t a s ( m a s i s s o p o d e i n d i c a r não t a n t o q u e o c u p a r a m a p e n a s esses l o c a i s m a s q u e a p e s q u i s a arqueológica c e n t r o u - s e nesses l u g a r e s o u a i n d a q u e são o s q u e m e l h o r se c o n s e r v a r a m ) . O s caçadores-coletores q u e h a b i ­t a r a m essa região e s t a r i a m o r g a n i z a d o s e m p e q u e n o s g r u p o s d e a p e n a s a l g u m a s famílias. U t i l i z a v a m técnicas d e f o r r a g e i o

59

Page 29: Pré História do Brasil

( co le ta ) n a exploração d e p l a n t a s e a n i m a i s e v i v i a m d a caça g e n e r a l i z a d a , a i n d a q u e a p e n a s e s t u d o s m a i s d e t a l h a d o s p o s s a m s u b s t a n c i a r essas i d e i a s .

O e s t u d o d a ocupação d o l i t o r a l , e m períodos r e c u a d o s , e n c o n -tra-se m u i t o p r e j u d i c a d o p e l o a u m e n t o d o nível d o m a r , n o H o l o c e -n o , q u e a c a b o u p o r f a z e r c o m q u e a c o s t a a t u a l e s te j a a m u i t o s q u i ­lómetros a oes te e m relação a o q u e e r a há a l g u n s m i l h a r e s d e a n o s .

E x i s t e m a i n d a sítios m u i t o a n t i g o s e m d i v e r s o s l u g a r e s d o B r a s i l , c o m o n o i n t e r i o r d e São P a u l o (sítio A l i c e Bõer, n a região d e R i o C l a r o ) , q u e a t e s t a m a ocupação há 1 4 . 2 0 0 A P .

N o S u l d o B r a s i l p r e d o m i n a r i a m s o c i e d a d e s d o t i p o caçador-co-letor , c u j o c o n j u n t o d e a r t e f a t o s f o i d e n o m i n a d o "Tradição U m b u " , dos a t u a i s e s tados d e São P a u l o , Paraná, S a n t a C a t a r i n a e R i o G r a n ­de d o S u l . V i v i a m d a caça e d a c o l e t a n o s g r a n d e s d e s c a m p a d o s sul is tas , daí s e r e m c h a m a d o s d e caçadores d o c a m p o . E s s a tradição t e m seus sítios m a i s a n t i g o s d a t a d o s a p a r t i r d e 1 2 m i l A P e t e r i a p e r ­s i s t i d o até m i l a n o s atrás. D u r a n t e t o d o esse l o n g o período, u s a r a m a r t e f a t o s d e p e d r a m u i t o s e m e l h a n t e s , c o m d e s t a q u e p a r a a e l a b o ­ração d e p o n t a s de flecha lítica. N a m e s m a região e x i s t e u m a o u t r a tradição tecnológica, c h a m a d a d e "Tradição Humaitá", q u e o c u p o u a m b i e n t e s d e floresta e n t r e 9 e m i l A P e q u e p r o d u z i u g r a n d e s a r t e ­fa tos b i f a c i a i s ( p . e x . , flechas, lâminas c o m d o i s g u m e s ) . A oposição e n t r e c a m p o / f l o r e s t a e p o n t a s d e flecha/instrumentos b i f a c i a i s é q u e d e t e r m i n o u a classificação dessas evidências arqueológicas e m d o i s c o n j u n t o s d i s t i n t o s .

A caracterização d e p o v o s d o p a s s a d o a p a r t i r d e a l g u n s p o u ­cos traços m a t e r i a i s , e m p a r t i c u l a r d e s u a indústria lítica o u d o a m b i e n t e d e inserção, c o m o se t e m f e i t o n o S u l d o B r a s i l , t e m e n c o n t r a d o c r e s c e n t e resistência p o r p a r t e d e c e r t o s g r u p o s d e es­t u d i o s o s d e n o s s a história pré-colonial, t a n t o p e l a constatação d e evidências q u e p a r e c e m q u e s t i o n a r a existência dessas diferenças m a t e r i a i s , c o m o p o r m o t i v o s d e o r d e m antropológica e histórica. R e c e n t e m e n t e , n o v o s e s t u d o s a p o i a d o s e m l a r g a base estatística e o u t r o s f u n d a m e n t o s teóricos se a f a s t a m d a interpretação o r i g i n a l , m o s t r a n d o q u e a m b a s as "tradições", U m b u e Humaitá, p o s s u e m g r a n d e s semelhanças e m t e r m o s tecnológicos. Essas n o v a s p e r s ­p e c t i v a s v i n c u l a m - s e a o s m a i s r e c e n t e s e s t u d o s das s o c i e d a d e s h u ­m a n a s , q u e têm a f i r m a d o q u e o s p o v o s e c u l t u r a s não p o d e m ser

60

d e f i n i d o s a p e n a s p e l a c u l t u r a m a t e r i a l e , m u i t o m e n o s , p o r a l g u n s i t e n s "diagnósticos" c o m o as p o n t a s d e flecha. Es sa concepção d a existência da s d u a s tradições p r e d o m i n a n t e s n o s u l b r a s i l e i r o t e m s i d o m u i t o c r i t i c a d a , p o i s s a b e m o s , p o r m e i o d e pe squ i sa s etnográ­ficas, q u e o s m e s m o s t i p o s d e o b j e t o s p o d e m ser u s a d o s p o r p o v o s e c u l t u r a s d i f e r e n t e s ( e , até m e s m o , e m c o n f l i t o ) e q u e , a o contrário, o b j e t o s d e d i v e r s o s t i p o s p o d e m ser u s a d o s p o r u m m e s m o p o v o , e m d i f e r e n t e s l u g a r e s . N a m e s m a l i n h a d e raciocínio, o u s o d e o b j e t o s s e m e l h a n t e s p o r m i l h a r e s d e a n o s não i m p l i c a , o b r i g a t o r i a m e n t e , c o n t i n u i d a d e étnica o u c u l t u r a l , p o i s g r u p o s o s m a i s v a r i a d o s p o d e m u s a r o s m e s m o s t i p o s d e a r t e f a t o s e m q u e c o m p a r t i l h e m o s m e s m o s traços c u l t u r a i s .

P o d e c o n c l u i r - s e q u e o período pleistocênico t a r d i o n o B r a s i l , e n t r e 1 2 e 1 0 m i l A P , a p r e s e n t a d i v e r s i d a d e d e indústrias líticas. O s d a d o s disponíveis h o j e , a i n d a m u i t o f r a g m e n t a d o s e e spar sos , têm l e v a d o a g r a n d e v a r i e d a d e d e interpretações, contraditórias e n t r e s i .

D o n o s s o p o n t o d e v i s t a , t e r i a h a v i d o u m a g r a n d e d i v e r s i d a d e tecnológica, económica e s o c i a l e n t r e o s h a b i t a n t e s d a América d o S u l já e n t r e 1 2 e 1 0 m i l a n o s atrás, r e s u l t a d o d e u m a c o l o n i ­zação a n t e r i o r a 1 2 m i l a n o s , p o r m u i t o s g r u p o s étnicos, o q u e está n a ba se d a g r a n d e d i v e r s i d a d e d o s períodos p o s t e r i o r e s d e n o s s a Pré-História.

O s d a d o s disponíveis e a explicação dessa d i v e r s i d a d e estão a i n d a m u i t o i n c o m p l e t o s e t e m o s , p o r i s so , d e r e c o r r e r a explicações h i ­potéticas e, m u i t a s vezes , d e caráter genérico. N o e n t a n t o , o e s t u d o d a n o s s a história pré-colonial, a n t e s d a c h e g a d a d o s d e s c o b r i d o r e s p o r t u g u e s e s , t e m avançado m u i t o n o s últimos a n o s e, c o m o ficou c l a r o n e s t e capítulo, já p o d e m o s r e c o n s t r u i r as g r a n d e s l i n h a s dessa trajetória histórica. E x p l o r a r e m o s , n o próximo capítulo, a c r e s c e n t e d i v e r s i d a d e c u l t u r a l da s populações pré-históricas até a v i n d a d o s e u r o p e u s p a r a a América d o S u l , n o século x v i .

61

Page 30: Pré História do Brasil

A c r e s c e n t e d i v e r s i d a d e d o s h a b i t a n t e s

MUDANÇAS HISTÓRICAS e o s e l e m e n t o s i n d i c a d o r e s d a d i v e r s i d a d e

O s e s t u d i o s o s d e n o s s a história pré-colonial, a p a r t i r das evidências arqueológicas, p o d e m a f i r m a r q u e a m a i o r i a das regiões b r a s i l e i r a s f o i b a s i c a m e n t e o c u p a d a p o r p o v o s não c e r a m i s t a s até 3 o u 2 m i l a n o s atrás. A região S u l d o B r a s i l t e r i a s i d o domínio e x c l u s i v o d e p o p u ­lações classif icadas c o m o das tradições U m b u e Humaitá, e n t r e 1 2 e 2 m i l A P , e, n o l i t o r a l , d o s g r u p o s s a m b a q u i e i r o s ( c o n s t r u t o r e s d e s a m ­b a q u i s q u e são montões d e c o n c h a s , re s tos d e c o z i n h a e d e e s q u e l e t o d e p o s i t a d o s e m pra i a s , r i o s e t c ) , e n t t e 8 e 2 m i l A P . A região S u d e s t e f o i d o m i n a d a pelas m e s m a s populações, m a s c o m u m a ocupação m a i s a n t i g a q u e c h e g a aos 1 4 . 2 0 0 A P e m São P a u l o e médias d e 1 2 m i l A P e m M i n a s G e r a i s . N a região C e n t r o - O e s t e , as datas m a i s recuadas a l c a n ­çam 2 2 m i l A P . N o N o r d e s t e , e x i s t e m várias datas e n t r e 1 1 e 8 m i l A P , além d e n u m e r o s a s e n t r e 1 4 e 3 5 m i l A P . N a Amazónia os sítios m a i s a n t i g o s alcançam até 1 2 m i l A P . M a s e m t o d a s essas regiões as datas poderão ser a i n d a m a i s recuadas , c o m o avanço das pesquisas .

A interpretação d o a m p l o c o n t e x t o arqueológico d o B r a s i l , à l u z d a t e o r i a d e W a l t e r N e v e s , n o s p e r m i t e s u g e r i r q u e h o u v e três e tapas d e ocupação h u m a n a d o território.

A p r i m e i r a e t a p a , a i n d a m u i t o p o u c o c o n h e c i d a , t e r i a s i d o f e i t a pe l a s populações paleoíndias q u e p r e d o m i n a v a m e m g r a n d e p a r t e d o B r a s i l até 1 2 m i l A P .

63

Page 31: Pré História do Brasil

A s e g u n d a e t a p a i n i c i o u - s e c o m a colonização mongolóide, f e i ­t a a p a r t i r d o n o r o e s t e d a América d o S u l , q u e se e s p a l h o u m a i s r a p i d a m e n t e p e l o l i t o r a l s u l - a m e r i c a n o , r e p r e s e n t a d a p e l a s p o p u ­lações s a m b a q u i e i r a s , a p a r t i r d e 1 0 - 9 m i l A P , e m a i s l e n t a m e n t e p e l o i n t e r i o r , c l a s s i f i c a d a s s o b d i v e r s o s rótulos p e l o s arqueólogos (tradição I t a p a r i c a , tradição I t a i p u . . . ) . S e u s e q u i p a m e n t o s líticos e a f o r m a das a l d e i a s q u e f o r m a r a m n o i n t e r i o r p o s s u e m m a i s se­melhanças c o m o s p r o d u z i d o s p e l o s paleoíndios d o q u e c o m o s mongolóides p o s t e r i o r e s , f a t o q u e l e v o u o s p e s q u i s a d o r e s a i n t e r ­p r e t a r e m o s r e g i s t r o s m a t e r i a i s c o m o p r o d u t o d e u m único t i p o d e população, m a s o s d a d o s não são s u f i c i e n t e s p a r a u m p o s i c i o ­n a m e n t o a esse r e s p e i t o .

A t e r c e i r a e t a p a t e v e o r i g e m c o m os p o v o s mongolóides q u e o r i g i ­n a l m e n t e se fixaram n a Amazónia e c r i a r a m a a g r i c u l t u t a , a cerâmica e n o v o s padrões demográficos e c u l t u r a i s d e e c o n o m i a e organização s o c i a l , a p a r t i r d e 1 0 - 9 m i l A P . Esses p o v o s e r a m s e m e l h a n t e s e m t e r m o s físicos aos d a s e g u n d a e t a p a , porém, p r o d u z i a m u m a c u l t u r a m a t e r i a l m u i t o d i s t i n t a , e m razão d o c r e s c i m e n t o demográfico, d a modificação das f o r m a s das a lde i a s , d o acréscimo d a cerâmica a p a r ­t i r d e 7 m i l A P e d e n o v o s e q u i p a m e n t o s líticos, c o m o o r a l a d o r , o pilão e o m a c h a d o p o l i d o , e n t r e o u t r o s .

N e s s e l o n g o período, e s p e c i a l m e n t e e n t r e 4 e 2 m i l A P , s e g u n ­d o o s arqueólogos D o n a l d L a t h r a p e José B r o c h a d o , u m a g r a n d e explosão demográfica n a Amazónia c a u s o u a expansão geográfica d e p o v o s c e r a m i s t a s e a g r i c u l t o r e s . E s sa expansão g a n h o u i m p u l ­so c o m o i n c r e m e n t o d a alimentação q u e a a g r i c u l t u r a d e u a essas populações. J u n t o c o m essa n o v a f o r m a d e subsistência f o r a m d e ­s e n v o l v i d a s n o v a s m a n e i r a s d e se o r g a n i z a r s o c i a l e p o l i t i c a m e n t e , (organização s o c i a l m a i s h i e r a r q u i z a d a e c o m lideranças d e f i n i d a s ) c o m m a i o r c a p a c i d a d e p a r a c o n q u i s t a r e m a n t e r n o v o s territórios. Essas n o v i d a d e s p r o p i c i a r a m u m a v a n t a g e m geopolítica s o b r e as p o ­pulações caçadoras-coletoras paleoíndias e mongolóides a n t e r i o r e s , q u e f o r a m s e n d o g r a d u a l m e n t e i n c o t p o r a d a s , e x p u l s a s o u destruídas e m seus territórios, c e d e n d o l u g a r aos p o v o s a g r i c u l t o r e s . E n t e n d e ­m o s q u e a p r i n c i p a l diferença f o i o t a m a n h o m a i o r das populações a g r i c u l t o r a s q u e p e s o u n a d i s p u t a t e r r i t o r i a l , p o i s as evidências a r ­queológicas a p o n t a m p a r a u m a d e m o g r a f i a m e n o r na s populações caçadoras-coletoras.

64

Essas mudanças, e m t e r m o s arqueológicos, são r e p r e s e n t a d a s p e l a modificação b r u s c a n a sequência d e ocupação d o s h o r i z o n t e s arqueológicos a p a r t i r d e 3 o u 2 m i l A P , q u a n d o áreas típicas d e g r u p o s não c e r a m i s t a s são o c u p a d a s p o r p o v o s c e r a m i s t a s . N a fase d e domínio d o s p o v o s não c e r a m i s t a s , as evidências arqueológicas são s i m i l a r e s e as diferenças i n d i c a m variações a d a p t a t i v a s e m v e z d a modificação c a u s a d a p o r n o v a s populações o u p o r n o v o s d e ­s e n v o l v i m e n t o s tecnológicos. A p a r e n t e m e n t e as ocupações m o n ­golóides d a s e g u n d a e t a p a não c a u s a r a m diferenças s i g n i f i c a t i v a s n o âmbito d o s a r t e f a t o s líticos e d o s t i p o s d e habitação. N a s regiões S u l , C e n t r o - O e s t e , S u d e s t e e N o r d e s t e as sequências d e ocupação são c a r a c t e r i z a d a s p o r repetições d o s t i p o s d e a r t e f a t o s e d e h a b i t a ­ção a o l o n g o d e 1 0 o u 1 2 m i l a n o s . A diferenciação m a i s m a r c a n t e nessas regiões, d u r a n t e esse período, são o s sítios d o t i p o s a m b a q u i q u e começaram a ser construídos n o l i t o r a l atlântico e n o b a i x o rio A m a z o n a s a o r e d o r d e 8 m i l A P . E a p e n a s n a Amazónia q u e as sequências d e ocupação m o s t r a m s i n a i s d e mudanças g r a d a t i v a s , i n d i c a n d o d i f e r e n t e s p r o c e s s o s d e d e s c o b e r t a e invenção e m t e r m o s d e subsistência e d e c u l t u r a m a t e r i a l .

E s se fenómeno demográfico e geopolítico, c o m o passar d o s úl­t i m o s q u a t r o milénios, t r a n s f o r m o u o tetritório b r a s i l e i r o e m u m espaço e m q u e p a s s o u a p r e d o m i n a r a d i v e r s i d a d e s o c i a l e c u l t u r a l e n t r e o s p o v o s indígenas.

P a r a se t e r u m a i d e i a d a m a g n i t u d e d a d i v e r s i d a d e d o s p o v o s indígenas, n a a t u a l i d a d e e x i s t e m a p r o x i m a d a m e n t e 2 0 0 p o v o s d i s ­t i n g u i d o s p o r suas línguas, t o t a l i z a n d o m a i s d e 3 5 0 m i l pessoas , p o d e n d o c h e g a r até 5 0 0 m i l , c o n f o r m e o último dossiê Populações Indígenas no Brasil ( 1 9 9 6 - 2 0 0 0 ) . Esses p o v o s p o d e m ser constituí­d o s p o r u m p e q u e n o g r u p o v i v e n d o e m u m a única a l d e i a o u p o r m i l h a r e s v i v e n d o e m a l d e i a s d i f e r e n t e s e o c u p a n d o i m e n s o s t e r r i ­tórios. Q u a n d o C a b r a l c h e g o u a o B r a s i l , u m a só língua p o d e r i a ser f a l a d a p o r até m a i s d e u m milhão d e pessoas d e u m a m e s m a c u l t u ­r a , q u e r e s i d i a m e m a l d e i a s s eparadas e t i n h a m histórias d i s t i n t a s e p o d e r i a m também se c o n s i d e r a r d i f e r e n t e s e n t r e s i . O l e i t o r d e v e t e r e m m e n t e q u e esse p r o c e s s o tão c o m p l e x o e v a r i a d o d e d i f e r e n ­ciação s o c i a l começou c o m p o u c a s pessoas a o t e m p o das p r i m e i r a s ocupações d a América d o S u l e , vários milénios d e p o i s , a o t e m p o

65

Page 32: Pré História do Brasil

e m q u e C a b r a l c h e g o u a q u i , e r a m milhões a o c u p a r p r a t i c a m e n t e t o d o s os espaços d o B r a s i l .

A r y o n R o d r i g u e s , u m g r a n d e e s p e c i a l i s t a e m línguas indígenas, a p o i a d o e m d o c u m e n t o s históricos, propôs u m a e s t i m a t i v a s o b r e a q u a n t i d a d e d e línguas fa ladas p o r p o v o s d i f e r e n t e s n o território b r a ­s i l e i r o n a época das p r i m e i r a s penetrações d o s e u r o p e u s , c o m p r o -jeçóes f e i t a s c o m base n a d e n s i d a d e linguística das áreas o n d e há m e l h o r informação histórica. A projeção alcançada f o i d a o r d e m d e 1 2 0 0 línguas n o início d o século x v i , s e g u n d o a comparação c o m d a ­d o s r e f e r e n t e s à variação linguística e m o u t r a s regiões das Américas, d a África e d a Ásia. N o s séculos s e g u i n t e s à c h e g a d a d e C a b r a l , t e r i a h a v i d o u m a drástica redução das línguas indígenas n o B r a s i l , p r i n c i ­p a l m e n t e e m v i r t u d e d a m o r t e d e m u i t o s milhões d e pessoas , n a o r ­d e m d e m a i s d e 8 0 % , u m a p e r d a incomensurável d e d i v e r s i d a d e c u l -t u t a l . E m t e r m o s demográficos, i s so s i g n i f i c a u m a t r i s t e c o n t a a i n d a a ser f e i t a , e s p e r a n d o p o r pe squ i sa s q u e p o s s a m r e v e l a r a dimensão d o genocídio indígena. O d e s a p a r e c i m e n t o das línguas n a t i v a s está o c o r r e n d o e m t o d o o m u n d o d a d o o p r o c e s s o d e globalização, c o m 9 5 % das línguas v i v a s e m r i s c o d e extinção p o r causa d a m o r t e d o s f a l a n t e s e d o a b a n d o n o d a língua n a t i v a e m f a v o r d e línguas d o m i ­n a n t e s , c o m o o inglês, o francês, o e s p a n h o l , o português, o h i n d i e o chinês.

A d i v e r s i d a d e c u l t u r a l d o s p o v o s pré-históricos n o B r a s i l d e v e ser c o n s i d e r a d a e m vários aspectos . D e s t a c a r e m o s o s q u e têm s i d o m a i s c o m u m e n t e e m p r e g a d o s n a s pesqui sa s s o b r e a História pré-colonial d o B r a s i l .

A diferenciação e n t r e as línguas é u m d o s f a t o r e s d a d i v e r s i d a d e c u l t u r a l , q u e t r a d u z u m a série d e o u t r a s mudanças q u e o c o r r e m a o l o n g o d a história da s s o c i e d a d e s . O u t r a v e z c i t a r e m o s A r y o n R o d r i g u e s , q u e r e s u m e c o m o p o d e ser o p r o c e s s o d e diferenciação linguística:

E m b o r a constituída a p a r t i r d e princípios e p r o p r i e d a d e s c o m u n s , a s lín­g u a s estão s u j e i t a s a g r a n d e número d e f a t o r e s d e i n s t a b i l i d a d e e variação, q u e d e t e r m i n a m n e l a s f o r t e tendência à c o n s t a n t e alteração. E s s a t e n ­dência é n o r m a l m e n t e contrabalançada p e l a n e c e s s i d a d e d e mútuo a j u s ­t e e n t r e o s indivíduos d e u m a m e s m a c o m u n i d a d e s o c i a l , a j u s t e s e m o q u a l não se c u m p r i r i a a finalidade básica d a língua, q u e é a comunicação

66

explícita e , q u a n t o possível, fácil. Q u a n d o as v i c i s s i t u d e s d e u m a c o m u ­n i d a d e h u m a n a a c a r r e t a m s u a divisão e m d u a s o u m a i s s u b c o m u n i d a d e s o u n o v a s c o m u n i d a d e s , r e d u z - s e o c o n t a t o e n t r e a s p e s s o a s p a r a d a s nesszs n o v a s c o m u n i d a d e s e , e m consequência, d i m i n u i a n e c e s s i d a d e d e a j u s t e e a u m e n t a a diferenciação linguística e n t r e o s g r u p o s h u m a n o s c o r r e s ­p o n d e n t e s . S e a s n o v a s c o m u n i d a d e s r e s u l t a n t e s d a divisão d o q u e foi a n t e s u m a só c o m u n i d a d e c o m u m a só língua, d i s t a n c i a m - s e n o espaço geográfico e p e r d e m d e t o d o o c o n t a t o e n t r e s i , d e s a p a r e c e i n t e i r a m e n t e a n e c e s s i d a d e d e a j u s t e c o m u n i c a t i v o e n t r e e l a s . N e s s e c a s o , a s alterações linguísticas q u e o c o r r e m e m c a d a c o m u n i d a d e não serão m a i s r e a j u s t a d a s e m c o m u m e , p o r não c o i n c i d i r e m m u i t o s c a s o s , vão c o n s t i t u i r d i f e r e n ­ças e n t r e s u a s f a l a s . E s t a s s e tornarão línguas d i f e r e n t e s , c a d a v e z m a i s d i f e r e n t e s à m e d i d a q u e o c o r r e r d o t e m p o e x p u s e r u m a a o u t r a às c i r ­cunstâncias m a i s v a r i a d a s .

A separação e n t r e c o m u n i d a d e s , a o m e s m o t e m p o q u e p o d e r e ­s u l t a r e m n o v a s línguas, também poderá f o r m a r múltiplas diferenças e m t e r m o s m a t e r i a i s , económicos, soc i a i s , políticos e cosmológicos (visões d e m u n d o ) . É provável q u e a l g u m a s c o m u n i d a d e s t e n h a m r e p r o d u z i d o p o r m u i t o t e m p o as m e s m a s características m a t e r i a i s e simbólicas, e n q u a n t o o u t r a s p o d e m t e r t i d o condições p a r a m o d i f i -car-se a t a l p o n t o q u e ficaram m u i t o d i f e t e n t . e s e n t r e s i .

A o r i g e m dessa d i v e r s i d a d e p o s s u i m u i t a s causas, i n c l u i n d o a combinação aleatória d e f a t o r e s c o m o o c o n t a t o interétnico, as invenções tecnológicas, a adaptação a d e t e r m i n a d o s a m b i e n t e s , a d e s c o b e r t a o c a s i o n a l o u i n t e n c i o n a l d e p l a n t a s e m i n e r a i s úteis, as t r o c a s económicas, as t r o c a s m a t r i m o n i a i s e as t t o c a s simbólicas, aos p roces so s históricos p a r a l e l o s e d i f e r e n c i a d o s d e c a d a p o v o .

V a m o s c i t a r o caso d a d i v e r s i d a d e e n t r e o s p o v o s f a l a n t e s das línguas t u p i , c o m o u m e x e m p l o d e n t r e o s p o v o s indígenas m a i s c o ­n h e c i d o s p e l o s e s p e c i a l i s t a s . A interpretação m a i s a c e i t a , c o m base n a análise d e vários a spec to s fonéticos e g t a m a t i c a i s , é a d e q u e u m a língua o r i g i n a l , c h a m a d a d e " p r o t o t u p i " , p r i m e i r o d i v i d i u - s e e m se te línguas e n t r e 6 e 3 m i l A P , q u e d e r a m o r i g e m às "famí­l i a s linguísticas". E n t r e 4 e 2 5 0 0 A P essas famílias d i v i d i r a m - s e e m p e l o m e n o s 4 1 línguas ( s e m c o n t a r as q u e f o r a m e x t i n t a s a n t e s d o s e s t u d o s linguísticos). E s s a diversificação o c o r r e u n o d e c o r r e r d o p r o c e s s o d e c r e s c i m e n t o demográfico e expansão das p o p u laçóes amazônicas q u e m e n c i o n a m o s . A m a i o r i a d o s p o v o s t u p i

67

Page 33: Pré História do Brasil

p e r m a n e c e u n a região amazônica, n a região a o s u l d o g r a n d e r i o A m a z o n a s ; m a s a l g u n s p o v o s t u p i , e s p e c i a l m e n t e d a família t u p i -g u a r a n i , r e a l i z a r a m g r a n d e s expansões geográficas e m razão d o c r e s c i m e n t o demográfico q u e p e r m i t i u a c o n q u i s t a d e e n o r m e s porções d e t e r r a a t i n g i n d o m i l h a r e s d e quilómetros d e distância d a Amazónia. O s f a l a n t e s das línguas tupinambás, d a família t u p i - g u a -r a n i , o c u p a r a m a m a i o r p a r t e d a c o s t a b r a s i l e i r a e n t r e o Ceará e São P a u l o , e as regiões a d j a c e n t e s d o s p r i n c i p a i s r i o s q u e d e s a g u a m n o m a r , c o m o o Paraíba, o D o c e , o São F r a n c i s c o e o u t r o s t a n t o s d e m e n o r p o r t e . O s f a l a n t e s d o g u a r a n i , o u t r o r a m o d o t u p i - g u a r a n i , d o m i n a r a m e x t e n s a s regiões n o i n t e r i o r d o B r a s i l , na s bac ias d o s r i o s P a r a g u a i , Paraná, U r u g u a i e d o s seus m a i o r e s a f l u e n t e s , b e m c o m o d o l i t o r a l e n t r e o Paraná e o R i o G r a n d e d o S u l .

P o v o s f a l a n t e s d e o u t r a s línguas também p a s s a r a m p o r fenóme­n o s s i m i l a r e s d e c r e s c i m e n t o demográfico e variação linguística, c o n q u i s t a n d o territórios e m áreas d i s t a n t e s d a Amazónia e n t r e 6 e 2 m i l A P . É o caso d o s f a l a n t e s da s línguas macro-jê, c o n s i d e r a d a s m a i s a n t i g a s q u e as línguas t u p i , das línguas k a r i b , a r u a k e m u i ­t a s o u t r a s q u e f o r m a m c o n j u n t o s i s o l a d o s o u d e p o u c a s línguas. O s f a l a n t e s d e t o d a s essas línguas e x p a n d i r a m - s e s i m u l t a n e a m e n t e graças a o s u p o r t e d a a g r i c u l t u r a , a l g u m a s vezes c o m p e t i n d o p e ­l o s m e s m o s espaços, m a s s e m p r e c o n q u i s t a n d o o s territórios d o s p o v o s q u e e r a m s o m e n t e caçadores-coletores. O s p o v o s macro-jê o c u p a r a m b a s i c a m e n t e a S e r r a G e r a l e p a r t e s d o l i t o r a l , t e n d o s i d o a p r i m e i r a g r a n d e v a g a d e expansão amazônica pós 7 m i l A P . A s e g u i r , o s p o v o s t u p i , q u e o c u p a r a m as áreas já m e n c i o n a d a s e d i s p u t a r a m c o m os p o v o s macro-jê d i v e r s a s áreas d a S e r r a G e r a l , c o m o o s v a l e s d o s r i o s São F r a n c i s c o , D o c e e o u t r o s d e m e n o r g r a n d e z a . A expansão a r u a k se i n i c i o u a o r e d o r d e 6 m i l A P , d a Amazónia c e n t r a l p a r a a Colômbia e V e n e z u e l a até o C a r i b e e, p o s t e r i o r m e n t e , p a r a a l g u m a s áreas d a b a c i a d o s r i o s P a r a g u a i e Paraná. Também h o u v e a expansão d o s p o v o s k a r i b , a p a r t i r d e 6 o u 5 m i l A P , c u j a s concentrações m a i s s i g n i f i c a t i v a s estão s i t u a d a s a o n o r t e d o r i o A m a z o n a s e e m a l g u m a s áreas d a Amazónia c e n t r a l e l e s t e . Teríamos a i n d a d e c o n s i d e r a r a consequência dessas e x p a n ­sões s o b r e p o v o s " m e n o s e x p r e s s i v o s " d e m o g r a f i c a m e n t e , f a l a n t e s d e n u m e r o s a s línguas " i s o l a d a s " .

s r >

Esse m o d e l o linguístico é m u i t o s u g e s t i v o p a r a o d e s e n v o l v i m e n ­t o d e explicações e p a r a r e f l e t i r s o b r e a v a s t a c c o m p l e x a g a m a d e c o n t i n u i d a d e s e mudanças históricas o c o r r i d a s n o cenário das o c u ­pações e d a História das populações indígenas. N a v e r d a d e , e s t a m o s d i a n t e d e u m pa s sado a i n d a m u i t o p o u c o c o n h e c i d o , c u j a s pesqui sa s a i n d a estão p r a t i c a m e n t e n o início.

D i a n t e d o estágio a t u a l e m q u e se e n c o n t r a m as pesqui sa s , c o m base n a c u l t u r a m a t e r i a l , p o d e m o s c o n s i d e r a r d u a s fases m a r c a n t e s d o s p roces so s d a ocupação h u m a n a d o B r a s i l . A p r i m e i r a fase v a i d o início d a ocupação h u m a n a ( c o m a c h e g a d a d o s p r i m e i r o s h o m e n s ) até a p r o x i m a d a m e n t e 6 - 7 m i l A P ( e m a l g u m a s regiões, c o m o o S u l d o B r a s i l , até 2 - 1 m i l A P ) . A s e g u n d a fase i n i c i a p o r v o l t a d e 8 - 7 m i l A P e v e m até o p r e s e n t e .

A p r i m e i r a fase f o i a d o predomínio das populações caçadoras-co­l e t o r a s paleoíndias e mongolóides. E m t e r m o s m a t e r i a i s , f o i m a r c a d a p o r u m a a p a r e n t e e contínua reprodução d e a r t e f a t o s s e m e l h a n t e s , d e padrões d e a s s e n t a m e n t o p a r e c i d o s e p o r u m padrão d e d i e t a r e l a t i ­v a m e n t e c o n s t a n t e . E m d i v e r s o s l u g a r e s , após a extinção d o s g r a n d e s mamíferos, v e r i f i c o u - s e q u e essa c o n t i n u i d a d e m a n t e v e - s e c o n s t a n t e p o r m a i s d e 9 - 8 m i l a n o s ( m a i s o u m e n o s e n t r e 1 0 e m i l A P ) .

A i n d a não s a b e m o s , n o e n t a n t o , se essa incrível c o n t i n u i d a d e t a m ­bém o c o r r i a n a organização s o c i a l , n a c o s m o l o g i a e e m o u t r o s aspec­t o s dessas soc iedades , p o i s , a i n d a q u e r e p r o d u z i n d o a m e s m a c u l t u r a m a t e r i a l , m u i t o s aspectos simbólicos p o d e m ter- se m o d i f i c a d o s e m q u e as pesqui sas a i n d a t e n h a m c o n s e g u i d o c o n s t a t a r t a i s mudanças.

A s e g u n d a fase f o i , c o m o v i m o s , a das g r a n d e s expansões d o s p o ­v o s amazônicos, graças aos m u i t o s processos d e criação e inovação m a t e r i a l o c o r r i d a e n t r e 1 0 e 5 m i l A P e m a r c a d a p o r u m a mudança r a d i c a l n a m a i o r p a r t e d o tetritório d o B r a s i l . H o u v e o d e s e n v o l v i ­m e n t o d a a g r i c u l t u r a e das t e c n o l o g i a s m a t e r i a i s ( p . ex . , a cerâmica) e u m c r e s c i m e n t o demográfico g e n e r a l i z a d o . A s populações e n v o l v i d a s nesses múltiplos e c o m p l e x o s processos m u d a r a m o p a n o r a m a a n ­tropológico d o B r a s i l à m e d i d a q u e se e x p a n d i a m s o b r e as áreas q u e e r a m o c u p a d a s p e l o s caçadores o u p e s c a d o r e s - c o l e t o r e s . N e s s e p r o ­cesso, m u i t a s das populações q u e v i v i a m c o n f o r m e o padrão m a t e r i a l d a e c o n o m i a d e caçadores o u pe scadore s f o r a m a b s o r v i d a s o u e l i m i n a d a s p e l a i m e n s a o n d a d e expansão das populações a g r i c u l t o r a s .

(.a

Page 34: Pré História do Brasil

T e n d o e m v i s t a as p e s q u i s a s m a i s r e c e n t e s , d e f e n d e m o s a hipó­tese d e q u e não o c o r r e u , p o r t a n t o , o d e s e n v o l v i m e n t o g e n e r a l i z a d o d e n t r o d o s parâmetros e v o l u c i o n i s t a s . A s populações caçadoras e p e s c a d o r a s d e f o r a d a Amazónia não d e s e n v o l v e r a m n o v a s t e c n o l o ­g ias , n e m c r i a r a m n o v o s a r t e f a t o s e f o r m a s soc i a i s q u e c a r a c t e r i z a ­r a m a s e g u n d a fase , p o i s a p a r e n t e m e n t e v i v e r a m e m equilíbrio e s e m a concorrência d e m o d o s d i s t i n t o s d e v i d a p o r m u i t o s milénios -até as expansões e a c h e g a d a d o s p o v o s a g r i c u l t o r e s e c e r a m i s t a s q u e as s o b r e p u j a r a m .

Se o n o v o m o d e l o q u e W a l t e r N e v e s e seus co legas a p r e s e n t a m e s t i v e r c o r r e t o , e l e lança u m a n o v a compreensão e a p o s s i b i l i d a d e d e u m a explicação m a i s c l a r a d a Pré-História d o B r a s i l . S e r i a u m p r o c e s s o , g u a r d a d a s as d e v i d a s proporções, p a r e c i d o c o m a expansão d o Homo sapiens s o b r e a E u r o p a d o m i n a d a p e l o Homo neandertha-lensis, q u e c u l m i n o u c o m a c o m p l e t a substituição d o s últimos p e l o s p r i m e i r o s . Também n a E u r o p a , há d u a s hipóteses s o b r e esse p r o ­cesso. A m a i o r i a d o s e s t u d i o s o s a c r e d i t a q u e o s n e a n d e r t a i s t e n h a m s i d o substituídos p e l o s Homo sapiens, a i n d a q u e a l g u n s p e s q u i s a d o ­res d e f e n d a m o c r u z a m e n t o e n t r e o s d o i s t i p o s d e a n t r o p o i d e s . Nós p r e f e r i m o s a d o t a r a orientação g e r a l desse n o v o m o d e l o e u r o p e u - o d a substituição - c o m p a r t i l h a n d o a interpretação c o m a m a i o r p a r t e d o s p e s q u i s a d o r e s .

E m q u a s e t o d o o B r a s i l não amazônico, a mudança n o e s t i l o d e v i d a d o s h a b i t a n t e s d o território, e x c e t u a n d o a região d o s s a m b a q u i s e a l g u m a s áreas p e q u e n a s d o i n t e r i o r , é r a d i c a l , s e m estágios i n t e r m e ­diários q u e a t e s t e m gradações d e d e s e n v o l v i m e n t o e n t r e o m o d e l o típico caçador-coletor e o m o d e l o a g r i c u l t o r . I s so f o i v e r i f i c a d o e m t o d o o B r a s i l e n a América d o S u l , p o i s o e s t u d o sistemático d e t o d a s as informações o b t i d a s r e v e l a mudanças n a Amazónia a p a r t i r d e 8 m i l a n o s atrás, q u e p a r e c e m t e r c h e g a d o p o r v o l t a d e 2 o u m i l A P nas áreas m e r i d i o n a i s b r a s i l e i r a s . A s mudanças s e g u e m u m a direção m a i s o u m e n o s contínua, d o n o r o e s t e d a América d o S u l p a r a as d e ­m a i s regiões, c o n s i d e r a n d o q u e n a Amazónia está a o r i g e m d a a g r i ­c u l t u r a e d a cerâmica, q u e r e p r e s e n t a m a m a i o r diferença m a t e r i a l e n t r e e s s e s p o v o s e o s caçadores e pescadore s .

70

A HISTÓRIA d a expansão d a a g r i c u l t u r a

T o d a s as soc i edades h u m a n a s , e m m a i o r o u m e n o r g r a u , v a l e r a m -se das p l a n t a s c o m o a l i m e n t o , remédio e matérias-primas, p a r a c o n ­f e c c i o n a r o s seus o b j e t o s , r e d u n d a n d o n a asserção d e q u e o Homo sapiens s e m p r e p e s q u i s o u p a r a c o n h e c e r a u t i l i d a d e das p l a n t a s . D i ­versas p r o v a s arqueológicas r e v e l a r a m q u e m u i t a s espécies, c o n s i d e ­rada s e s s e n c i a l m e n t e agrícolas, já e r a m c o n s u m i d a s p o r soc iedades c o m m o d a l i d a d e s económicas d o t i p o "caçador-coletor" a n t e s q u e se c o n f i g u r a s s e a a g r i c u l t u r a típica d a floresta t r o p i c a l , r e a l i z a d a e m c l a r e i r a s a b e r t a s n o i n t e r i o r d a m a t a .

O s d a d o s m a i s r e c e n t e s a p o n t a m p a r a a área Amazônica - P e r u , E q u a d o r , Colômbia e V e n e z u e l a e B r a s i l - c o m o a região o r i g i n a l d a a g r i c u l t u r a n a América d o S u l . E x i s t e a t u a l m e n t e u m c e r t o c o n s e n s o d e q u e a a g r i c u l t u r a d a América d o S u l f o i c r i a d a e d e s e n v o l v i d a e m v i r t u d e das condições geradas p e l a d i v e r s i d a d e d a flora t r o p i c a l e p e l a s o m a g r a d u a l d e c o n h e c i m e n t o s construídos e m várias p a r t e s d a Amazónia. P o d e r i a , também, d e u m p o n t o d e v i s t a m a i s c o n t r o v e r s o nesse m o m e n t o , ser f r u t o d e u m n o v o m o d e l o d e se r e l a c i o n a r e e x p l o r a r o s r e c u r s o s n a t u r a i s , d e s e n v o l v i d o d e a c o r d o c o m a e n t r a d a das populações mongolóides. I s t o é: essas populações t e r i a m u m a r e ­lação d i s t i n t a c o m a vegetação, c o n s i d e r a n d o - a e e x p l o r a n d o - a c o m o u t r a s p e r s p e c t i v a s q u e t e r m i n a r a m p o r c o n f i g u r a r os vários s i s t e m a s a g r o f l o r e s t a i s r e c o n h e c i d o s e n t r e as populações n a t i v a s n a América d o S u l . I s so não s i g n i f i c a , e n t r e t a n t o , q u e os paleoíndios p r a t i c a s s e m a a g r i c u l t u r a , m a s q u e eles c e r t a m e n t e c o n s u m i a m v e g e t a i s e d e ­v i a m m a n e j a r a l g u m a s espécies. E n q u a n t o as populações mongolói­des d e s e n v o l v i a m seus c o n h e c i m e n t o s botânicos, d e s c o b r i a m n o v o s a l i m e n t o s e c r i a v a m e q u i p a m e n t o s p a r a processá-los, as populações paleoíndias s e g u i a m r e p r o d u z i n d o seus padrões d e subsistência apa­r e n t e m e n t e m a i s r e s t r i t o s e m t e r m o s d e produção a l i m e n t a r a p a r t i r d e v e g e t a i s .

A p a r e n t e m e n t e , o hábito d e " p e s q u i s a r " m a i s a flora s e r i a u m a v a n t a g e m d e c i s i v a p a r a o c o n s t a n t e c t e s c i m e n t o demográfico e p a r a a diversificação c u l t u r a l d o s p o v o s mongolóides, c o n t r a p o s t a a o u t r o t i p o d e relação q u e o s p o v o s paleoíndios t i n h a m c o m as p l a n t a s . E m u i t o provável q u e t e n h a h a v i d o u m a distinção i n i p o r t a n t e e n t r e o s p o v o s q u e p a r t i c i p a r a m d o d e s e n v o l v i m e n t o t i a

71

Page 35: Pré História do Brasil

a g r i c u l t u r a e o s q u e ficaram à m a r g e m d e l a . Q u a n d o a a g r i c u l t u r a a s s u m i u a f o r m a h o j e c o n h e c i d a , e n t r e 6 e 5 m i l A P , a c o m p a n h a d a d e u m d e s e n v o l v i m e n t o tecnológico específico p a r a t r a n s f o r m a r e p r o c e s s a r seus e s t o q u e s a l i m e n t a r e s , as populações q u e d e l a se b e n e f i c i a r a m c r e s c e r a m m u i t o e t o r n a r a m - s e c a d a v e z m a i s s e d e n ­tárias, p o i s não t i n h a m m a i s t a n t a n e c e s s i d a d e d e se d e s l o c a r e m b u s c a d o a l i m e n t o . M u d a r a m também as suas e s t r u t u r a s societárias e políticas. A c r e d i t a m o s q u e a p r i n c i p a l mudança s o c i a l e política d e c o r r e u d a n o v a n e c e s s i d a d e d e d o m i n a r e m a n e j a r territórios d e ­finidos, e n q u a n t o o s paleoíndios t e r i a m o u t r a s f o r m a s d e se o r g a ­n i z a r p a r a a d m i n i s t t a r seus territórios ( q u e a i n d a d e s c o n h e c e m o s ) . I s t o é, m u d a n d o s a z o n a l m e n t e d e territórios, o s g r u p o s paleoíndios t e r i a m u m a organização s o c i a l q u e se f r a g m e n t a v a o u reconstituía d e a c o r d o c o m a época d o a n o , r e s u l t a n d o q u e e m c e r t o s m e s e s d o a n o - e m d e t e r m i n a d o s l u g a r e s - o s a g r u p a m e n t o s s e r i a m m a i o r e s o u m e n o r e s . O s p o v o s sedentários, mongolóides, m a n t i n h a m u m a constância n o t a m a n h o das suas populações e n a f o r m a da s suas organizações s o c i a i s .

É n e s s e período e n t r e 6 a 4 m i l A P q u e o s l i n g u i s t a s s u g e r e m q u e se t e n h a i n i c i a d o a diversificação linguística, e m decorrência d e múltiplos p r o c e s s o s d e separação e diferenciação d e p o p u l a ­ções o r i g i n a i s , a e x e m p l o d o s p o v o s f a l a n t e s das línguas jê, t u p i , a r u a k e k a r i b . A diversificação o c o r r e u n a Amazónia, s i m u l t a ­n e a m e n t e a o d e s e n v o l v i m e n t o d a a g r i c u l t u r a e a o c r e s c i m e n t o demográfico, s e n d o provável q u e u m a t e n h a i n f l u e n c i a d o a o u t r a ( m a s a i n d a d e s c o n h e c e m o s d e t a l h e s d a história e d a c o m p l e x i d a ­d e desses p r o c e s s o s ) .

O r e f l e x o desse c r e s c i m e n t o demográfico f o i a expansão d o s p o ­v o s mongolóides s o b r e o s paleoíndios. R a r a s áreas, p o r c o n t a d e limitações a m b i e n t a i s , d e i x a r a m d e passar p o r essas substituições, c o m o a l g u m a s porções d o p a m p a gaúcho e d e o u t r a s p a r t e s d o B r a s i l e m q u e a e s t r u t u r a d o s s o l o s não p e r m i t i a a existência d e c o b e r t u r a arbórea e a r b u s t i v a d e g r a n d e p o r t e , c o n d i c i o n a n t e s p a r a a prática d a a g r i c u l t u r a d e floresta t r o p i c a l .

A s populações mongolóides e n c o n t r a r a m n a América d o S u l as condições v e g e t a i s i d e a i s q u e f a v o r e c e r a m o d e s e n v o l v i m e n t o d a a g r i c u l t u r a d e floresta t r o p i c a l . P r o v a v e l m e n t e t r a z i a m o s m e s m o s e l e m e n t o s c u l t u r a i s p r e s e n t e s n o p r o c e s s o d e mongolização n a s

72

d e m a i s regiões t r o p i c a i s d o Pacífico e d a Ásia. O s g r u p o s m o n g o ­lóides t e r i a m n a base d a s u a e s t r u t u r a as m e s m a s práticas c u l t u r a i s q u e l e v a r a m à criação e a o d e s e n v o l v i m e n t o d a a g r i c u l t u r a e m t o d a essa i m e n s a região, a p a r t i r d e 1 0 - 9 m i l A P . E s s a p e c u l i a r i ­d a d e t e r i a f o r n e c i d o o s a s p e c t o s m a i s c o m u n s , c o m o as técnicas e f e r r a m e n t a s u s a d a s p a r a c o n s t r u i r umaroça, q u e f o r a m e n c o n t r a ­d o s n o s d i v e r s o s c e n t r o s " i n d e p e n d e n t e s " d e criação d a a g r i c u l t u ­r a típica d a floresta t r o p i c a l a o r e d o r d o m u n d o .

D e q u a l q u e r m o d o , o f a t o é q u e o s paleoíndios possuíam u m a m a n e i r a d i s t i n t a d e se r e l a c i o n a r c o m a vegetação, s e m manejá-la d o m e s m o m o d o e c o m a m e s m a i n t e n s i d a d e e m p r e g a d o s na s práticas d o s mongolóides q u e , p o s t e r i o r m e n t e , r e s u l t a r a m n a a g r i c u l t u r a d e floresta t r o p i c a l p t a t i c a d a n a América d o S u l . Não t e m o s , porém, i n f o r m a ­ções prec i sa s d o p r i m e i r o u s o das p l a n t a s , se o s paleoíndios f a z i a m a p e n a s a c o l e t a o u se já p r a t i c a v a m a l g u m a m o d a l i ­d a d e d e m a n e j o , c o m o a c o n ­centração d e cer ta s espécies. S a b e m o s , e n t r e t a n t o , q u e não u s a r a m os m e s m o s e q u i p a m e n ­t o s q u e o s mongolóides p a r a p r o c e s s a r as p l a n t a s , p o i s a r t e ­f a t o s típicos p a r a o processa­m e n t o d e v e g e t a i s só começam a a p a r e c e r a p a r t i r d e 7 m i l A P .

A s p l a n t a s "típicas" d o s p o v o s a g r i c u l t o r e s já e r a m e x ­p l o r a d a s p o r m e i o d a c o l e t a e c o n s u m i d a s a n t e s d e a a g r i c u l t u r a d e floresta t r o p i c a l t e r s i d o " i n v e n t a d a " . O c o n s u m o d e p l a n t a s não se c o n f u n d e , p o r t a n t o , c o m a a g r i c u l t u r a .

O q u e e x p l i c a r i a a existência d e g r u p o s c o m práticas d i f e r e n t e s : e n t r e o s q u e a p e n a s c o l e t a v a m c e r t a s p l a n t a s e o s q u e c u l t i v a s o u

Pilão e mão d e pilão u s a d o s p a r a p r o c e s s a r a l i m e n ­t o s . F o n t e : M a r i a C r i s t i n a M i n e i r o S c a t a m a c c h i a e Célia M a r i a C r i s t i n a D e m a r t i n i , Vestígios da ocupação dos antigos habitantes da área de influên­cia do gasoduto BoUvia-Brasil - Trecho Sul Estado de Santa Catarina. São P a u l o , M A E / U S P T G B , s . d , p . 34. F o t o d e W a g n e r S o u z a e S i l v a .

73

Page 36: Pré História do Brasil

essas m e s m a s p l a n t a s ? A explicação e s t a r i a n o s d i f e r e n t e s s i s t e ­m a s c u l t u r a i s , u m a v e z q u e o s paleoíndios t e r i a m à s u a d i s p o s i ­ção as m e s m a s condições a m b i e n t a i s e a l g u m a s das p l a n t a s q u e as populações p o s t e r i o r e s . S e u s d i f e r e n t e s s i s t e m a s c u l t u r a i s d e s u b ­sistência d e r a m r e s p o s t a s d i s t i n t a s , d e s e n v o l v e r a m relações d e s i ­g u a i s c o m as f o n t e s d e subsistência, c o m o a m b i e n t e e c o m o u t r o s a s p e c t o s d e o r d e m tecnológica. O u se ja , e m b o r a as populações paleoíndias c o n h e c e s s e m a função das p l a n t a s e as e x p l o r a s s e m , t i n h a m estímulos e razões próprias p a r a se r e l a c i o n a r e m c o m as p l a n t a s d e u m a f o r m a c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n c i a d a das p o p u l a ­ções mongolóides. C o n t u d o , a i n d a não s a b e m o s d e t e r m i n a r a r a ­zão dessa diferença e não q u e r e m o s f a z e r afirmações d o t i p o "e l e s não s a b i a m q u e p o d i a m ser p l a n t a d a s " o u "não se i n t e r e s s a r a m e m plantá-las". C o m o v i m o s n o capítulo a n t e r i o r , não p a r e c e razoável s u p o r q u e a p e n a s o s f a t o r e s geográficos e ecológicos e x p l i q u e m o c o m p o r t a m e n t o d o s g r u p o s h u m a n o s , p o i s e m condições m u i t o s e m e l h a n t e s c r i a m - s e m o d o s d e c o m p o r t a m e n t o s o c i a l e d e u t i l i ­zação d a n a t u r e z a m u i t o v a r i a d o s .

E possível, m e s m o q u a n d o p o s t u l a m o s a hipótese d e u m a d i ­ferença r a d i c a l e n t r e o s s i s t e m a s paleoíndios e mongolóides, q u e t e n h a o c o r r i d o t i p o s d i f e r e n t e s d e relações interétnicas, q u e o s g r u p o s paleoíndios t i v e s s e m t r a n s m i t i d o seus c o n h e c i m e n t o s b o ­tânicos aos p o v o s mongolóides à m e d i d a q u e estes e n t r a v a m n a América d o S u l e n o B r a s i l . É provável q u e , e m t o d a s as regiões, t e n h a m e x i s t i d o o p o r t u n i d a d e s e i n t e r e s s e s p a r a t r o c a s d e c o n h e ­c i m e n t o s e experiências. Esses n o v o s c o n h e c i m e n t o s , s o m a d o s aos saberes t r a d i c i o n a i s q u e o s mongolóides já d o m i n a v a m , e s t a r i a m n a o r i g e m das técnicas d e m a n e j o a g r o f l o r e s t a l , n a base d a a g r i c u l ­t u r a d e floresta t r o p i c a l e n o q u e h o j e c o n h e c e m o s c o m o florestas "antropogênicas" ( r e s u l t a d o d a ação h u m a n a s o b r e a vegetação d e d e t e r m i n a d a s áteas).

C o m a manipulação das n o v a s p l a n t a s , f o i necessário o d e s e n v o l ­v i m e n t o d e n o v o s e q u i p a m e n t o s e técnicas d e p r o c e s s a m e n t o d o s vege ta i s , c o m o v a s i l h a s cerâmicas, pilões, p r e n s a s d e m a n d i o c a , r a l a ­d o r e s , o c o z i m e n t o e a torração. Teríamos também o s u r g i m e n t o d e d i f e r e n t e s s i m b o l o g i a s r e l a c i o n a d a s a essas n o v a s d e s c o b e r t a s , a e x e m ­p l o d e m i t o s s o b r e a o r i g e m d a a g r i c u l t u r a , b e m c o m o mudanças

74

n a s esferas soc i a i s , económicas, políticas e r e l i g i o s a s , r e s u l t a n d o e m modificações n o s a r r a n j o s soc ia i s e políticos t r a d i c i o n a i s t e n d o e m v i s t a o m a i o r g r a u d e s e d e n t a r i s m o e circunscrição t e r r i t o r i a l . À m e d i d a q u e a u m e n t a v a a permanência e m u m m e s m o l o c a l e q u e a população cresc ia , n o v o s t i p o s d e organização s o c i a l f o r a m c r i a d o s p a r a h a r m o n i z a r a relação e n t r e as pessoas, c o m o r e s p o s t a às n o v a s f o r m a s d e d o m i n a r os espaços.

A hipótese s o b r e a exploração contínua d a pesca e m a l g u m a s áreas c o n s i d e r a q u e a redução d a circulação e m b u s c a d e a l i m e n t o s t e r i a a u m e n t a d o o t e m p o d e permanência e m c e r t o s l o c a i s . A t u a l m e n t e o s p e s q u i s a d o r e s p e n s a m q u e essa permanência p o s s i b i l i t o u o p o r t u ­n i d a d e s p a r a q u e as p l a n t a s f o s s e m e s t u d a d a s c o m m a i o r d e t a l h e a r e s p e i t o d a s u a u t i l i d a d e , e c o l o g i a , conservação, reprodução e a p e r ­feiçoamento genético.

A s d e s c o b e r t a s das últimas três décadas vêm a p o n t a n d o p a r a a comprovação d a hipótese o r i g i n a l d e D o n a l d L a t h r a p , a p a r t i r d e e x e m p l o s v e r i f i c a d o s n a s áreas t r o p i c a i s d a América L a t i n a , África e Ásia, s o b r e a ocorrência d e u m estágio a n t e r i o r à a g r i c u l t u r a , c o m p l a n t i o s f e i t o s n o q u i n t a l das habitações. P a r a a l i s e r i a m l e v a d a s as p l a n t a s c o l e t a d a s n a floresta, e m u m a c r e s c e n t e v a r i e d a d e d e es­pécies usadas p a r a d i v e r s o s fins, r e s u l t a n d o n a nece s s idade d e a b r i r c l a r e i r a s específicas p a r a c u l t i v a r p e r t o das m o r a d i a s , f o r m a n d o as p r i m e i r a s roças d e c o i v a r a , cu j a s evidências m a i s a n t i g a s alcançam 5 . 7 0 0 a n o s ( m a s d e v e alcançai m a i o r a n t i g u i d a d e ) .

Após a e s c o l h a d o l o c a l d o p l a n t i o , o p r i m e i r o passo é a d e r r u b a ­d a d a vegetação, q u e fica s e c a n d o p o r u m c u r t o período até e s t a r e m condição d e ser q u e i m a d a p a r a q u e se l i m p e a superfície d o t e r r e n o o n d e será f e i t o o p l a n t i o . Es sa técnica também é c o n h e c i d a c o m o "roça d e c o i v a r a " e a s u a extensão v a r i a c o n f o r m e o t a m a n h o d a p o ­pulação e as diferenças e n t r e cada p o v o .

O p r i n c i p a l a s p e c t o desse t i p o d e c u l t i v o é a concentração d e espécies v i s a n d o a u m a p r o d u t i v i d a d e m a i o r e m u m m e s m o espaço. O c u l t i v o d e p a l m e i r a s d e v e t e r s i d o p i o n e i r o e m t e r m o s d e c o n c e n ­tração, e m razão das múltiplas o f e r t a s q u e as suas v a r i a d a s espécies p r o p i c i a m : f r u t o s e p a l m i t o s , b e m c o m o matérias-primas p a r a a c o n ­fecção d e u m a a m p l a g a m a d e a r t e f a t o s d e u s o c o t i d i a n o .

75

Page 37: Pré História do Brasil

A s espécies m a i s c o m u n s n a a g r i c u l t u r a d e floresta t r o p i c a l são d i v i d i d a s e m d o i s g r u p o s gera i s : as t u b e r o s a s e as graníferas. A t u a l -m e n t e , a m a i o r p a r t e dessas p l a n t a s é c o n s i d e t a d a d o m e s t i c a d a , o u seja , d e p e n d e m d o s h u m a n o s p a r a s u a reprodução e m a n e j o e m u i ­tas de l a s estão f r e q u e n t e m e n t e p r e s e n t e s n a s nossas mesas .

A s t u b e r o s a s m a i s i m p o r t a n t e s são a m a n d i o c a {Manihot escu-lenta), a b a t a t a - d o c e (Ipomoea batatas), o taiá {Xanthosoma sagittifo-lium), o cará (Dioscorea trifida), a c a l a t e i a o u caeté {Calathea albuia) e a a r a r u t a (Maranta arundinacea). A s graníferas m a i s c o m u m e n t e c u l t i v a d a s são o m i l h o (Zea mays), o feijão (Phaseolus lunatus), a f a v a {Canavalia ensiformis), o a m a r a n t o {Amarantus s p p . ) , a q u i n a {Chenopodium s p p . ) , o a m e n d o i m (Arachis hypogaea), o pimentão (Capsicum annuum) e a p i m e n t a (Capsicum s p . ) .

U m a l a r g a q u a n t i d a d e d e f r u t a s , i n c l u i n d o as abóboras (Cucurbita s p p . ) , também e r a c u l t i v a d a na s roças d e n o s s o s a n c e s t r a i s pré-his-tóricos, c h e g a n d o a c e n t e n a s d e espécies r e g i o n a i s o u c o n t i n e n t a i s .

M u i t a s dessas espécies a p r e s e n t a v a m m a i s d e u m a v a r i e d a d e , e m m u i t o s casos r e s u l t a d o d e m e l h o r a m e n t o genético. H o j e , e m a l g u ­m a s p a r t e s d a Amazónia, p o d e m ser e n c o n t r a d o s m a i s d e 1 0 0 v a ­r i e d a d e s d e m a n d i o c a não tóxica n a s roças d o s p o v o s A g u a r u n a s e U a m b i s a s ( P e r u ) . E m u m c o n j u n t o d e a l d e i a s d o s T u k a n o s , n o r i o Uapés, f o r a m e n c o n t t a d o s até 1 3 7 c u l t i v a r e s d e m a n d i o c a a m a r g a . O m i l h o c h e g a a t e r 2 5 0 v a r i e d a d e s , o a m e n d o i m , m a i s d e c e m e a b a t a t a - d o c e , m a i s d e 2 0 0 . O s g u a r a n i s p o r e x e m p l o , possuíam n o século x v n p e l o m e n o s 2 1 c u l t i v a r e s d e b a t a t a - d o c e , 1 3 d e m i l h o , 7 d e a m e n d o i m e 1 6 d e feijões - i s so p o s s i b i l i t a v a várias c o l h e i t a s a o l o n g o d o a n o , p r o p i c i a n d o u m equilíbrio n a ingestão a n u a l d e a l i m e n t o s graças à contínua produção agrícola.

Há e x e m p l o s n u m e r o s o s d a v a r i e d a d e d e espécies d e p l a n t a s p o r t o d a a América d o S u l . B a s e a d o s n a s informações d a magnífica sín­tese das arqueólogas D o l o r e s P i p e r n o e Débora P e a r s h a l l , n o l i v r o As origens da agricultura nas terras baixas neotropicais, d i v e r s o s vestí­g i o s das p l a n t a s m e n c i o n a d a s a s e g u i r f o r a m e n c o n t r a d a s e m sítios arqueológicos a n t i g o s , alcançando d a t a s d e até 1 0 m i l A P e r e v e ­l a n d o q u e elas e r a m c o n s u m i d a s m u i t o a n t e s d a configuração d a a g r i c u l t u r a indígena d e floresta t r o p i c a l t a l c o m o é c o n h e c i d a h o j e .

A m a n d i o c a já está d a t a d a e m cerca d e 8 4 0 0 a n o s n o v a l e d e Z a n a , região n o r o e s t e d o l i t o r a l d o P e r u , a p a r t i r d e re s tos macrobotânicos

76

e d e partículas d e a m i d o s o b r e i m p l e m e n t o s u s a d o s p a r a ralá-la. C o r p o s d e sílica p r e s e n t e s n o caeté f o r a m e n c o n t r a d o s e m sítios arqueológicos d a t a d o s e m até 1 0 m i l a n o s atrás n o E q u a d o r e n o Panamá e, há cerca d e 9 6 0 0 a n o s , n a Colômbia. Partículas d e taiá, b a t a t a - d o c e e m a n d i o c a também f o r a m e n c o n t r a d a s e m i n s t r u m e n ­t o s u s a d o s p a r a r a l a r , n o s u d o e s t e d a Colômbia, v a l e d e C a u c a , d a ­t a d o s e n t r e 1 0 e 9 5 0 0 a n o s . P e d r a s u s a d a s p a r a r a l a r a p r e s e n t a r a m resíduos d e a r a r u t a n o v a l e d e C a u c a , n o s u d o e s t e d a Colômbia, d a t a d o s e n t r e 1 0 e 9 5 0 0 a n o s . O a m e n d o i m f o i d a t a d o n o P e r u a p a r t i r d e 8 4 0 0 a n o s . A s f ava s a t i n g e m 5 m i l e 5 0 0 a n o s d e a n ­t i g u i d a d e n a península d e S a n t a H e l e n a , E q u a d o r . O m i l h o m a i s a n t i g o f o i e n c o n t r a d o n a c o s t a d o E q u a d o r , d a t a d o e n t r e 1 0 e 7 m i l a n o s , m a s d e v e t e r figurado c o m o p l a n t a agrícola n a Amazónia após 5 3 0 0 a n o s .

T a i s evidências i n d i c a m c l a r a m e n t e q u e essas p l a n t a s e r a m c u l ­t i v a d a s s i s t e m a t i c a m e n t e , m e s m o q u e d e m o d o i s o l a d o , d e s d e há p e l o m e n o s 6 m i l a n o s . I m a g i n a m o s q u e o p r o c e s s o d e c o n t a t o e n t r e as populações paleoíndias e mongolóides e a t r o c a d e informações c u l m i n o u n a contínua agregação dessas espécies d e p l a n t a s , d e m o d o a c o n f i g u r a r as roças t a l c o m o são c o n h e c i d a s n a a t u a l i d a d e , f o r m a n ­d o u m consórcio d e d i v e r s a s p l a n t a s c u l t i v a d a s a o m e s m o t e m p o e m c l a r e i r a s n o m e i o d a floresta.

Após alcançar s u a f o r m a d e f i n i t i v a , q u a n t o à s u a e s t r u t u r a e conteúdo, r e s u l t a d o d e p e l o m e n o s 5 m i l a n o s d e d e s e n v o l v i m e n ­t o histórico e t r o c a d e experiências, as roças c h e g a r a m a c o n s t i t u i r u n i d a d e s d e produção agrícola capazes d e m a n t e r g r a n d e s p o p u ­lações. O c u l t i v o a p a r t i r desse período não e r a r e a l i z a d o a p e n a s e m u m espaço, m a s e m vários, a b e r t o s a c a d a a n o , d e m o d o a g a t a n t i t produções p a r a l e l a s d e a l i m e n t o s e m roças n o v a s e m a i s v e l h a s . H a v i a a roça d o a n o e o u t r a s roças a b e r t a s e m a n o s a n t e ­r i o r e s . A a n u a l o u "roça n o v a " p r o d u z i a , e m p a r t i c u l a r , as espécies m e n c i o n a d a s ( e n t r e o u t r a s ) , e n q u a n t o as m a i s a n t i g a s p r o d u z i a m a p e n a s a l g u m a s das p l a n t a s a r r o l a d a s . À m e d i d a q u e a roça ficava m a i s a n t i g a , g r a d u a l m e n t e r e c e b i a o p l a n t i o d e espécies q u e p r o ­d u z i a m remédios e matérias-primas d i v e r s a s q u e , m u i t a s v e z e s , s e r i a m c u l t i v a d a s c o m as d e m a i s p l a n t a s d e a g r i c u l t u r a . Essas áreas p o d i a m ficar e m p o u s i o p o r a l g u n s a n o s , 1 0 , 2 0 , 3 0 o u m a i s a n o s , p o r c a u s a d a recuperação d o s o l o e d o c r e s c i m e n t o d e espécies q u e

77

Page 38: Pré História do Brasil

d e m o r a v a m a m a t u r a r seus f r u t o s o u p r o d u z i r o u t r o s p r o d u t o s d e s e j a d o s . M u i t a s dessas áreas d e p o u s i o a c a b a v a m p o r t o r n a r - s e a p e n a s áreas d e c o l e t a n o m e i o d a floresta. U m g r a n d e e x e m p l o d e q u e c e r t o s g r u p o s d o p a s s a d o d i s t a n t e d e s e n v o l v e r a m a c a p a c i ­d a d e d e previsão a l o n g o p r a z o é castanha-do-pará, c u j o s f r u t o s só são c o n s u m i d o s p e l o s n e t o s d o s q u e a p l a n t a r a m . Há n u m e r o s o s o u t r o s e x e m p l o s p a r e c i d o s , p r o p o r c i o n a i s à i m e n s a v a r i e d a d e d e p l a n t a s t r o p i c a i s úteis p a r a a h u m a n i d a d e .

A s roças n o v a s p r o d u z i a m e m média p o r até q u a t r o o u c i n c o a n o s , m a s e v e n t u a l m e n t e p o d i a m p r o d u z i r p o r m a i s t e m p o d e a c o r ­d o c o m o s o l o o u c o m as espécies c u l t i v a d a s . I s so s i g n i f i c a q u e , m u i t a s vezes , as populações p o d i a m t e r várias roças " a n u a i s " p r o ­d u z i n d o o s u f i c i e n t e p a r a a alimentação, a s s i m c o m o e x c e d e n t e s p a r a a realização d e festas e p a r a t r o c a s e n t r e as a l d e i a s . A s roças, e m g e r a l , p e r t e n c i a m às famílias n u c l e a r e s ( p a i , mãe, filhos), q u e c o m ­p u n h a m as c o m u n i d a d e s , c u l t i v a n d o u n i d a d e s e n t r e 2 a 5 h e c t a r e s d e área. C a d a família t e r i a e m média u m a u n i d a d e d e roça n o v a a b e r t a p o r a n o , m a s , d e p e n d e n d o d e i n t e r e s s e s pessoa i s o u relações s o c i a i s , a l g u m a s famílias p o d e r i a m t e r várias roças n o v a s / a n o . A s famílias poligâmicas ( h o m e m c o m várias m u l h e r e s e filhos) t e r i a m u n i d a d e s d e roça r e l a t i v a m e n t e m a i o r e s , c o m 8 , 1 0 o u m a i s h e c t a ­res . A s s i m , c a d a família n u c l e a r p o d e r i a , c o m f a c i l i d a d e , alcançar até 2 0 o u m a i s h e c t a r e s / a n o p a r a p r o d u z i r a l i m e n t o s p a r a s i e p a r a as fes tas e t r o c a s (as famílias poligâmicas t e r i a m esse a u m e n t o d e m o d o p r o p o r c i o n a l ) .

Além das áreas específicas d e roça, o u t r o s espaços também f o ­r a m c u l t i v a d o s , v i s a n d o a m a x i m i z a r t a n t o a v a r i e d a d e c o m o a q u a n t i d a d e d e produção d e p l a n t a s úteis a o l o n g o d o a n o . E r a m a p r o v e i t a d o s o s pátios das habitações, as t r i l h a s , c l a r e i r a s a b e r t a s p e l a q u e d a d e g r a n d e s árvores e o u t r o s n i c h o s . Esses s i s t e m a s a g r o -florestais q u e a i n d a h o j e são m a n t i d o s d e v e m t e r s i d o c o n f i g u r a d o s n o p a s s a d o d i s t a n t e , c o m a criação d a a g r i c u l t u r a .

Só p a r a q u e se t e n h a u m a i d e i a d a dimensão desses c u l t i v o s f o r a d a roça, u s a m o s as informações q u e D a r r e l P o s e y r e g i s t r o u n o final d a década d e 1 9 7 0 e m u m a da s t r i l h a s construídas p e ­l o s G o r o t i r e s , s u b g r u p o Kayapó q u e a t u a l m e n t e v i v e n o P a r q u e N a c i o n a l d o X i n g u e q u e p o d e m n o s d a r u m a b o a i d e i a d a v i d a d o s h o m e n s a n t e s d a c h e g a d a d o s e u r o p e u s :

78

[...] as margens desses c a m i n h o s c o n f o r m a m zonas de c u l t i v o . C o m efei­t o , é c o m u m e n c o n t r a r faixas l impas de árvores c o m 4 m de largura . Torna-se difícil calcular a extensão dessas t r i l h a s [ . . . ] . U m a e s t imat iva conservadora aval ia e m 500 k m a extensão dos c a m i n h o s abertos pelos gorot ires [...] m e d i n d o cerca de 2,5 m de largura . C o m o se vê, a área remanejada é ponderável. A s margens das t r i lha s são plantadas c o m n u ­merosas variedades de i n h a m e s , batata-doce, marantáceas, cupá, z ingibe-ráceas, aráceas e outra s plantas tuberosas não identif icadas. Centenas de plantas medic ina i s e árvores frutíferas também c o n t r i b u e m para d iver s i f i ­car essa flora p lantada . V e j a m o s u m e x e m p l o : o l e v a n t a m e n t o f e i t o n u m a t r i l h a de 3 k m [...] c o n s t a t o u a existência de: 1) 185 árvores plantadas, representando pe lo m e n o s 15 espécies diferentes ; 2) a p r o x i m a d a m e n t e 1500 plantas med ic ina i s pertencentes a u m número i n d e t e r m i n a d o de espécies; 3) cerca de 3500 plantas alimentícias de u m número i g u a l m e n t e não ident i f i cado de espécies.

Além das p l a n t a s e m s i , as áreas c u l t i v a d a s f u n c i o n a v a m c o m o v e r d a d e i r o s a t r a t i v o s p a r a a n i m a i s d i v e r s o s , e m v i r t u d e d a c o n c e n ­tração d e a l i m e n t o s . I s so a m p l i a v a a c a p a c i d a d e das populações a g r i ­c u l t o r a s d e o b t e t c o m i d a , e s p e c i a l m e n t e s o b a f o r m a d e proteínas e lipídios essencia i s p a r a a sobrevivência. C o m m a i o r o u m e n o r i n t e n ­s i d a d e e r a m e s p a l h a d o s d i v e r s o s e e n g e n h o s o s t i p o s d e a r m a d i l h a s p a r a c a p t u r a r a n i m a i s , desde os m a i o r e s mamíferos ( a n t a s , v e a d o s , c a t e t o s , c a p i v a r a s ) até os m e n o r e s ( r o e d o r e s d i v e r s o s ) , aves e répteis. A pesca também e r a o u t r a f o n t e d e r e c u r s o s a l i m e n t a r e s , h a v e n d o várias m o d a l i d a d e s d e c a p t u r a d e p e i x e s c o m a r m a s , c o m o a lança e o a r c o e flecha, c o m v e n e n o s , redes e a r m a d i l h a s v a r i a d a s i n s t a l a d a s e m c o r r e d e i r a s e l o c a i s d e a f u n i l a m e n t o das águas, p r o p i c i a n d o a obtenção d e até várias t o n e l a d a s d e p e i x e s . A c o l e t a d e m o l u s c o s e i n s e t o s ( f o r m i g a s , c u p i n s , l a r v a s d e b o r b o l e t a s e o u t r o s ) , a s soc iada a o c o n s u m o d e d e t e r m i n a d a s p l a n t a s e f u n g o s , também p r o p o r c i o n a v a q u a n t i d a d e s consideráveis d e a l i m e n t o s p r o t e i c o s .

Além d o c o n s u m o i m e d i a t o d e v e g e t a i s e a n i m a i s , também e x i s t i a a p o s s i b i l i d a d e d e estocá-los, c o n s e r v a n d o - o s p o r m e i o d o m o q u e a -m e n t o . M o q u e a r c o n s i s t e e m d e f u m a r o a n i m a l até q u e e l e es te ja a p t o p a r a ser g u a r d a d o p o r vários m e s e s . O s v e g e t a i s também p o ­d i a m ser e s t o c a d o s s o b a f o t m a d e f a r i n h a , b o l o s e massas f e r m e n t a d a s , t a n t o a o a r l i v r e q u a n t o e m s i l o s subterrâneos o u aquáticos. E s s a c a p a c i d a d e d e o b t e r e c o n s e r v a r a l i m e n t o s c e r t a m e n t e r e s u l t o u

79

Page 39: Pré História do Brasil

d a contínua t r o c a d e informações e n t r e as populações d u r a n t e u m período q u e d e v e pe rpa s s a r os últimos 1 0 m i l a n o s , c o n s t i t u i n d o tradições imemoráveis.

A HISTÓRIA das diferenciações soc i a i s e as v a s i l h a s cerâmicas

O s u r g i m e n t o e a ampliação das diferenciações soc i a i s e n t r e os p o v o s s u l - a m e r i c a n o s m a r c o u u m a e t a p a i m p o r t a n t e d a n o s s a H i s ­tória m a i s a n t i g a . C o m o p o d e m o s saber s o b r e a diferenciação s o c i a l , se não t e m o s d o c u m e n t o e scr i tos? O p e s q u i s a d o r , p a r a t a n t o , d e v e u t i l i z a r - s e d e u m a f o n t e histórica d e p r i m e i r a o r d e m , a cerâmica, u m a invenção q u e se p o d e as soc iar à c r e s c e n t e d i v e r s i d a d e n o i n t e ­r i o r das c o m u n i d a d e s . A i n d a q u e a invenção das v a s i l h a s cerâmicas não es te j a a s soc iada d i r e t a m e n t e à o r i g e m d a a g r i c u l t u r a , l iga-se a o d e s e n v o l v i m e n t o da s técnicas d e transformação d o s a l i m e n t o s p o r m e i o d o c o z i m e n t o , f e r v u r a e torração.

A n i m a i s e v e g e t a i s f o r a m p r o c e s s a d o s e m v a s i l h a s cerâmicas p o r populações p e s c a d o r a s e c o l e t o r a s d o b a i x o rio A m a z o n a s , n a s áreas d e T a p e r i n h a e M o n t e A l e g r e ( P e d r a P i n t a d a ) d e s d e há p e l o m e ­n o s 7 6 0 0 a n o s , c o n f o r m e as r e c e n t e s pesqui sa s d e A n n a R o o s e v e l t . N e s s a região d a Amazónia e s t a r i a o l o c a l o n d e começou a a p a r e c e r o u s o dessa t e c n o l o g i a (caso não apareçam e m o u t r a s regiões n o v a s d e s c o b e r t a s s e n s a c i o n a i s c o m o a d a T a p e r i n h a , a t u a l m e n t e a cerâmi­ca m a i s a n t i g a d o Hemisfério O c i d e n t a l ) . R e s t a , a g o r a , a g u a r d a r a definição d e se f o i apenas d a l i q u e se d i f u n d i u a p r i m e i r a t e c n o l o g i a p a r a p r o d u z i r v a s i l h a s cerâmicas o u se e x i s t e m o u t r o s l u g a r e s o n d e também o c o r r e u u m proce s so s i m i l a r , m a s i n d e p e n d e n t e , d e criação d e v a s i l h a s cerâmicas.

O d e s e n v o l v i m e n t o histórico d a a g r i c u l t u r a e a d e s c o b e r t a d e n o v a s p l a n t a s a c a b a r a m e n c o n t r a n d o n a produção d e a r t e f a t o s ce­râmicos u m m e i o a d e q u a d o p a r a d i v e r s i f i c a r os métodos d e p r o c e s ­s a m e n t o e transformação d o s v e g e t a i s e m a l i m e n t o s a d e q u a d o s a o c o n s u m o h u m a n o . A s p l a n t a s m e n c i o n a d a s p o d e r i a m ser c o n s u m i ­das após p r o c e s s a m e n t o s s i m p l e s , assadas s o b r e t r e m p e s d e g a l h o s , c o z i d a s e m b o l s a s d e c o u r o o u d e n t r o d e cabaças e t o r r a d a s d i r e ­t a m e n t e s o b r e o f o g o o u s o b t e p e d r a s pré-aquecidas, q u e d i s p e n ­s a v a m o s a r t e f a t o s cerâmicos. C o n t u d o , a utilização d e cerâmica

8 0

Yapepó = p a n e l a d e c o z i n h a

p e r m i t i u o d e s e n v o l v i m e n t o d e a l g u m a s técnicas q u e f a v o r e c e r a m u m a ampliação n a s m a n e i r a s d e t r a n s f o r m a r a l i m e n t o s c r u s e m p r a ­t o s n u t r i t i v o s e a p e t i t o s o s .

A s s a r , c o z e r e t o r r a r p a r e c e m t e r s i d o as p r i m e i r a s funções culiná­r i a s d o s utensílios cerâmicos q u e , e m p o u c o s séculos, f o r a m s e n d o d i s s e m i n a d o s a o l o n g o d a região amazônica a p a r t i r d o b a i x o A m a z o ­n a s , e m v a s i l h a s q u e p a s s a r a m a t e r f o r m a t o s e decorações d i s t i n t a s . A cerâmica s e r v i u também p a r a a confecção d e e n f e i t e s , a e x e m p l o das t a n g a s d e b a r r o d e marajó, c o m o também d e b r i n q u e d o s , c o m o as b o n e c a s Carajás e d e o b j e t o s r i t u a i s , c o m o v a ­s i l h a t a u v a r u k a i a , u s a d a a p e n a s p a r a rituais e n t r e o s A s u r i n i s d o X i n g u .

O u s o de vasi lhas c o m o u r n a s funerárias também é m u i t o c o n h e c i d o . A l ­g u m a s e r a m c o n f e c c i o ­n a d a s e d e c o r a d a s a p e n a s p a r a e n t e r r a r o s m o r t o s , c o m o as f a m o s a s u r n a s m a r a j o a r a s . O u t r a s u r ­n a s funerárias t i n h a m a função secundária d e v a ­s i l h a s f e i t a s , e m p r i m e i r o l u g a r , p a r a c o z i n h a r a l i ­m e n t o s o u f e r m e n t a r b e ­b i d a s alcoólicas, c o m o é o ca so das cerâmicas u t i ­litárias d o s p o v o s t u p i -g u a r a n i s , s o b r e t u d o as v a s i l h a s d o s t i p o s yapepó e c a m b u c h i .

A confecção d a s v a s i ­l h a s v i s a v a a vários fins, t a n t o p a r a o c o t i d i a n o q u a n t o p a r a r i t u a i s e celebrações específicas.

Cambuchi . t a l h a p a r a líquidos

J . _ _

ftaèá, naêtá - caçarola p a r a c o z i n h a r

8 1

Page 40: Pré História do Brasil

O e x e m p l o das v a s i l h a s c o n f e c c i o n a d a s p e l o s p o v o s f a l a n t e s d a língua g u a r a n i p o d e i l u s t r a r essa d u p l a finalidade. D e s e n v o l v i d o p o r José B r o c h a d o , o e s t u d o d a s v a s i l h a s atqueológicas g u a r a n i s e m c o n ­j u n t o c o m u m a série d e informações históricas r e v e l o u u m padrão tecnológico e f u n c i o n a l b a s t a n t e s i m i l a r e n t r e essas populações a o l o n g o d e p e l o m e n o s 2 m i l a n o s n o B r a s i l m e r i d i o n a l . E m t e r m o s arqueológicos, v e r i f i c a - s e q u e essas v a s i l h a s f o r a m e l a b o r a d a s d e n t r o d e padrões r i g i d a m e n t e d e t e r m i n a d o s , c o m características m a t e r i a i s e f o r m a i s c o n s t a n t e s p a r a c a d a classe d e v a s i l h a . Essas c o n s t a n t e s i n d i c a m u m s i s t e m a e l a b o r a d o d e transmissão d e c o n h e c i m e n t o s e técnicas p a r a e l a b o r a r as v a s i l h a s , o b e d e c e n d o a r e q u i s i t o s f u n c i o ­n a i s p r e e s t a b e l e c i d o s n o âmbito d a c u l t u r a g u a r a n i . Também r e v e l a u m a c o n s t a n t e t r o c a d e informações e c o n t a t o s interaldeãos e i n t e r -r e g i o n a i s , senão essas características c o n s t a n t e s t e r i a m se m o d i f i c a d o c o m o p a s s a r d o t e m p o e n t r e as d i f e r e n t e s regiões o c u p a d a s p o r essas populações.

O e s t u d o das informações históricas, s o b r e t u d o d o século X V I I , p e r m i t i u a definição d a relação e n t r e a função e a f o r m a d e cada clas­se d e v a s i l h a . Essas informações também p e r m i t i r a m a d e s c o b e r t a d e u m a t a x o n o m i a , o u classificação, p a r a c a d a t i p o d e v a s i l h a . A p a n e l a , p o r e x e m p l o , e r a c h a m a d a d e yapepó p e l o s p o v o s d e f a l a g u a r a n i . E r a u s a d a p r i n c i p a l m e n t e p a r a c o z i n h a r os a l i m e n t o s , p o d e n d o alcançar e m média 8 0 - 9 0 centímeoros d e a l t u r a , p o r 6 0 - 8 0 centímetros d e diâmetro máximo ( a l g u m a s u l t r a p a s s a v a m b a s t a n t e essas dimensões médias). P o d i a m c o n t e r b e m m a i s d e 1 0 0 l i t r o s e e r a m , e m princí­p i o , usadas p o r u m a família n u c l e a r . A f r i g i d e i r a e r a d e n o m i n a d a naetá, s e n d o u s a d a p a r a f r i t a r , assar e t o r r a r . E m g e r a l e r a m a i s l a r ­g a d o q u e a l t a , p o s s u i n d o diâmetros q u e p o d i a m u l t r a p a s s a r 7 0 - 8 0 centímetros, c o m a l t u r a s q u e alcançavam 3 0 centímetros. O p r a t o e r a c h a m a d o d e naé, s e n d o u m a variação f o r m a l e m m e n o r esca­l a d o naetá. P o d i a ser i n d i v i d u a l o u c o l e t i v o , a t i n g i n d o diâmetros médios d e 3 0 e máximos d e 5 0 - 6 0 centímetros e a l t u r a s médias d e 1 5 - 2 5 centímetros. O s c o p o s d e b e b e r e r a m c h a m a d o s d e cambuchi caguabá, d i s t i n g u i n d o - s e d o s p r a t o s p o r possuírem b o r d a s c a r e n a d a s ( i n c l i n a d a s p a r a d e n t r o , a p a r t i r d o diâmetro máximo), g e r a l m e n t e d e c o r a d a s c o m p i n t u r a s d e gregas v e r m e l h a s o u p r e t a s , o u a m b a s , s o b r e f u n d o b r a n c o . S e u i n t e r i o r também p o d e r i a ser d e c o r a d o c o m essas p i n t u r a s . E m g e r a l e r a m m e n o r e s d o q u e o s p r a t o s , m a s a l g u n s

82

p o d e r i a m a t i n g i r até 6 0 centímetros. O s cambuchi caguabã s e r i a m u s a d o s n o s r i t u a i s e n a s celebrações, s e n d o q u e n o c o t i d i a n o s e r i a m u t i l i z a d o s c o p o s f e i t o s c o m p a r t e s d e cabaças d e lagenárias (espécie d e c u i a ) . Essas diferenças d e t a m a n h o e m a t e r i a l e n t r e o c a m b u c h i e cabaças p o d e m i n d i c a r níveis d i f e r e n c i a d o s d e h i e r a r q u i a s o c i a l , n o s q u a i s , s e g u n d o f o n t e s históricas, as lideranças políticas e pessoas d e g r a n d e prestígio p o d e r i a m e x e r c e r u m a prática d e g r a n d e c o n s i d e r a ­ção e n t r e o s G u a r a n i s , q u e e r a b e b e r g r a n d e q u a n t i d a d e de cauim, n o c a b u m c h i s e m ficar bêbado. O cauim e r a u m a b e b i d a f e r m e n t a d a a l ­coólica f e i t a a p a r t i r d e d i v e r s o s v e g e t a i s , c o m o a m a n d i o c a , o m i l h o , o a b a c a x i e o u t t a s p l a n t a s . P o r vezes p o d e r i a ser a d i c i o n a d o d e m e l , p a r a a u m e n t a r s e u p o t e n c i a l alcoólico. E l e e r a c o n s u m i d o e m d i v e r ­sas ocasiões, t a n t o e m celebrações q u a n t o e m r i t u a i s e m e s m o t o d o s o s d i a s , e m cer ta s épocas d o a n o . O cauim e r a p r e p a r a d o e r a u m a v a ­s i l h a específica c h a m a d a d e cambuchi, q u e p o d e r i a c o n t e r b e m m a i s d e 1 0 0 l i t r o s , c o m a l g u n s e x e m p l a r e s a t i n g i n d o m a i s de 2 2 0 l i t r o s . O cambuchi t e m u m f o r m a t o p a r e c i d o c o m o d o yapepó, m a s g u a r ­d a a l g u m a s diferenças, c o m o a p i n t u r a a c i m a d o diâmetro m a i o r , b o r d a s reforçadas e o a c a b a m e n t o d e superfície g e r a l m e n t e a l i s a ­d o ( o a c a b a m e n t o d a superfície d o yapepó g e r a l m e n t e é e n r u g a d o ) . O cambuchi p o d e r i a u l t r a p a s s a r u m m e t r o d e a l t u r a e t e r 7 0 - 8 0 centímetros d e diâmetro máximo.

Es sa diversificação e a t a x o n o m i a das classes d e v a s i l h a s e r a c o ­m u m a vários p o v o s d a família linguística t u p i - g u a r a n i , r e v e l a n d o p a r t e d e u m a e s t r u t u r a c u l t u r a l c o m u m q u e se m a n t e v e a o l o n g o d o s t e m p o s , apesar d a separação geográfica e t e m p o r a l e n t r e as d i v e r s a s e t n i a s t u p i s e g u a r a n i s . A t a b e l a a s e g u i r e x e m p l i f i c a a relação e n t r e t a x o n o m i a e função das v a s i l h a s e n t r e a l g u m a s das populações f a l a n ­tes das línguas t u p i - g u a r a n i :

83

Page 41: Pré História do Brasil

P o v o , localização P a n e l a T a l h a C o p o P r a t o

G u a r a n i , S u l d o B r a s i l ,

b a c i a d o P r a t a Yapepó Cambuchi

Cambuchi

caguabã

ftaé,

naembé

Tupinambá, l i t o r a l B r até

São P a u l o Nhaêpepô Camuci Caguaba Nhaen

A s u r i n i , X i n g u Japepaí - - Ja'è

Kayabí, X i n g u lapepó - - -W i r a f e d , M a d e i r a Yapepoí - - -

P a r i n t i n t i n , Tapajós Nhapepo Kamambuí - -C h i r i g u a n o , Bolívia Yapepo Cambuchi Cagua Nae

Apiacá, Tapajós Nhepepó - - -Tembé, G u r u p i Zapèpo Kamuti

A HISTÓRIA d a ocupação e d o s a s s e n t a m e n t o s h u m a n o s

A s populações h u m a n a s construíram d i v e r s o s t i p o s d e l o c a i s p a r a h a b i t a r e p a r a o u t r o s fins, c o m dimensões e f o r m a s v a r i a d a s , c u j o s vestígios são u s u a l m e n t e c h a m a d o s p e l o s arqueólogos d e a s s e n t a m e n t o .

N o B r a s i l são c o m u n s o s a s s e n t a m e n t o s a céu a b e r t o , r e p r e s e n ­t a d o s p o r f o r m a t o s , m a t e r i a i s c o n s t r u t i v o s e e s t i l o s tecnológicos b a s t a n t e v a r i a d o s . E x i s t e m t a n t o a s s e n t a m e n t o s a céu a b e r t o q u e p o d e r i a m t e r a b r i g a d o u m p e q u e n o g r u p o , c o m cerca d e 1 0 pes­soas , q u a n t o a l g u n s q u e c o m p o r t a r i a m até populações c o m 3 m i l o u m a i s h a b i t a n t e s , c o m variações e n t r e esses t a m a n h o s . O a s p e c t o

e x t e r n o d o s a s s e n t a m e n t o s e n c o n t r a d o s também v a t i a , d a c o n f i g u ­ração d e u m a p e q u e n a meia-água ( c o m o a d e u m a b r i g o temporá­r i o d e u m g r u p o d e caçadores n o i n t e r i o r d a floresta) a u m a a l d e i a , c o m e l a b o r a d a s casas c o b e r t a s còm f o l h a s d e p a l m e i r a s , cascas d e árvores o u sapé.

Também há os c h a m a d o s " a b r i g o s s o b r o c h a " , reentrâncias e m formações r o c h o s a s q u e f o r a m a p r o v e i t a d a s c o m o m o r a d i a o u c o m o espaço p a r a r i t u a i s , " d e c o r a d o s " p o r d i f e r e n t e s t i p o s d e g r a f i s m o s r u p e s t r e s . O t a m a n h o desses a b r i g o s v a r i a d e u n s p o u c o s m e t r o s até m a i s d e 4 0 0 m e t r o s q u a d r a d o s , c o n f i g u r a n d o a m p l o s espaços ca­pazes d e a b r i g a r u m a o u várias famílias. A l g u n s a b r i g o s p o s s u e m quedas-d'água n o s e u i n t e r i o r o u n a s u a a b e r t u r a , o u t r o s estão até m a i s d e u m quilómetro d e distância d e q u a l q u e r f o n t e d e água. C e r ­tas p i n t u r a s r u p e s t r e s e r e l a t o s etnográficos i n f o r m a m - n o s q u e o s a b r i g o s possuíam " p o r t a " o u u m a ce rca d e proteção c o n t r a a n i m a i s . N o s e u i n t e r i o r , d i v e r s a s a t i v i d a d e s e r a m r e a l i z a d a s , t a i s c o m o a p r e ­paração d e a l i m e n t o s , a fabricação d e i n s t r u m e n t o s e a r t e f a t o s d e p e d r a , m a d e i r a , fibras, além d a e s t o c a g e m d o s a l i m e n t o s e m s i l o s . É m u i t o provável q u e o u t r a s a t i v i d a d e s d e t r a b a l h o e d e v i d a s o c i a l f o s s e m r e a l i z a d a s n o l a d o e x t e r n o d o s " a b r i g o s s o b r o c h a " .

A l g u m a s habitações a céu a b e r t o t i n h a m a c a b a m e n t o s d e c o r a t i ­v o s m u i t o e l a b o r a d o s e c o l o r i d o s , t a n t o n a s u a p a r t e i n t e r n a c o m o n a e x t e r n a , c o m p i n t u r a s , e s c u l t u r a s e o u t r o s t i p o s d e a d o r n o s . O u t r a s não t i n h a m e l e m e n t o s d e c o r a t i v o s visíveis, m a s o s seus c o m p o n e n t e s m a t e r i a i s e divisões espac ia i s r e c e b i a m u m a série d e a t r i b u t o s e a n a ­l o g i a s c o m p a r t e s d o c o r p o h u m a n o : a e n t r a d a s e r i a a b o c a ; a p o r t a d e saída, o ânus; p a r t e s d o t e l h a d o , a cabeça e o s cabe lo s ; o i n t e r i o r , o a p a r e l h o d i g e s t i v o , e a s s i m p o r d i a n t e . E m cer ta s casas, as pessoas f r e q u e n t a v a m a p e n a s espaços específicos, r e s t r i t o s s e g u n d o o s e x o (às vezes c o m p o r t a s e x c l u s i v a s p a r a h o m e n s o u m u l h e r e s ) , h a v e n d o o l u g a r das m u l h e r e s a d u l t a s , o l u g a r das crianças, d o s a d o l e s c e n t e s e d o s g u e r r e i r o s , o l u g a r d o pajé e d o s v e l h o s , e m c l a r a manifestação d a existência d e distinções o u d e hierarquização s o c i a l . E m a l g u m a s a l d e i a s h a v i a u m a "casa d o s h o m e n s " , g e r a l m e n t e v e d a d a às m u l h e ­res e o u t r o s t i p o s d e construções p a r a i s o l a r pessoas q u e c u m p r i a m c e r t o s r i t o s d e p a s s a g e m .

O s a s s e n t a m e n t o s p o d e r i a m ser fixos o u não, d e a c o r d o c o m o t i p o d e organização s o c i a l , das estratégias d e captação d e r e c u r s o s

84 85

Page 42: Pré História do Brasil

e das relações c o m as populações v i z i n h a s . E m g e r a l , os g r u p o s q u e não possuíam u m l o c a l fixo d e m o r a d i a c i r c u l a v a m e m territórios d e ­t e r m i n a d o s a c o m p a n h a n d o as o f e r t a s s a z o n a i s d e c e r t a s espécies d e p l a n t a s , d o s c i c l o s d e p i r a c e m a (época d a d e s o v a d o s p e i x e s ) , d o s d e s l o c a m e n t o s d e a l g u n s a n i m a i s , a d a p t a n d o - s e às p e c u l i a r i d a d e s d e c a d a t i p o d e e c o s s i s t e m a . D e f a t o , à m e d i d a q u e os h a b i t a n t e s c o n h e ­c i a m o calendário a n u a l dessas o f e r t a s , c r i a v a m vários a s s e n t a m e n ­t o s o n d e p e r m a n e c i a m p o r períodos variáveis, u n s p o u c o s d i a s , u m mês o u m a i s t e m p o . E m a l g u n s casos, as relações soc ia i s e políticas também p o d e r i a m d e f i n i r a circulação d e u m g r u p o e m m o m e n t o s d e tensão q u a n d o d a competição p o r a l g u m r e c u r s o n a t u r a l o u p o r a l g u m a área c o m s i g n i f i c a d o ritual o u r e l i g i o s o .

A s populações d e n o m i n a d a s caçadoras-coletoras a d o r a v a m a es­tratégia d e c i r c u l a r p e l o s territórios, não p r a t i c a v a m a a g r i c u l t u r a e, e m g e r a l , constituíam g r u p o s c o m p o u c o s m e m b r o s .

Á o f e r t a c o n t i n u a d a d e cer ta s espécies v e g e t a i s o u a n i m a i s , c o m o o pinhão d a araucária, o a r r o z s e l v a g e m , os p a l m i t o s , os p e i x e s o u m o l u s c o s p o s s i b i l i t a v a a instalação d e u m a sede fixa, c o m u m g r a u m a i s e l e v a d o d e s e d e n t a r i s m o . A a g r i c u l t u r a , m u i t a s vezes , s e r i a a responsável p o r u m a permanência d e f i n i t i v a d o s a s s e n t a m e n t o s n u m m e s m o l o c a l , m e s m o q u a n d o e m c e r t a s épocas d o a n o a l g u m a s p a r ­celas d a c o m u n i d a d e se a f a s t a v a m p a r a d e t e r m i n a d a s áreas e m b u s c a d e m a i s caça, pesca, c o l e t a o u lazer . O s a s s e n t a m e n t o s d o s p o v o s a g r i c u l t o r e s são c o m u m e n t e r o d e a d o s p o r u m a série d e l o c a i s m e ­n o r e s , f u n c i o n a n d o c o m o áreas satélites, c o m o o s a c a m p a m e n t o s n a s roças, o p o r t o das c a n o a s , as áreas d e extração d e a r g i l a p a r a cerâmica o u d e p e d r a s p a r a confecção d e a r t e f a t o s e as áreas d e c o ­l e t a o u d e caça. M a s n e m s e m p r e a a g r i c u l t u r a d e t e r m i n a v a u m a única estratégia e m relação à permanência sedentária o u à m o b i l i ­d a d e estratégica. A l g u n s p o v o s , c o m o o s guatós, o s arawetés, e o s k a i n g a n g u e s , r e a l i z a v a m seus c u l t i v o s e m d e t e r m i n a d a s áreas, m a s não d e i x a v a m d e c i r c u l a r p o r o u t r o s territórios a c o m p a n h a n d o o s c i c l o s d e a l a g a m e n t o / e s v a z i a m e n t o d o P a n t a n a l , a t e m p o r a d a das c h u v a s o u a o f e r t a d e pinhões, c o m u m a m o b i l i d a d e s i m i l a r à d o s p o v o s caçadores-coletores.

M u i t a s v e z e s , o s a s s e n t a m e n t o s f o r a m p o s i c i o n a d o s e m áreas estratégicas, e m v i r t u d e d o s r e c u r s o s n a t u r a i s disponíveis. O d o ­mínio d e c e r t o s r e c u r s o s p o d e r i a d e t e r m i n a r o t a m a n h o d o s

86

a s s e n t a m e n t o s e s u a importância hierárquica e m relação a o u t r o s sítios, e m t e r m o s políticos e demográficos. T a i s h i e r a r q u i a s r e g i o ­n a i s p o d e r i a m ser d e f i n i d a s pe l a s f o n t e s d e a r g i l a p a r a cerâmica, d e p e d r a s p a r a c o n f e c c i o n a r d e t e r m i n a d o s a r t e f a t o s , f e r r a m e n t a s o u e n f e i t e s ; f o z e c o r r e d e i r a s d e r i o s o n d e há p i r a c e m a s ; refúgios d e aves c u j a s p e n a s são o b j e t o de a l t o v a l o r ; b a n c o s d e m o l u s c o s u s a d o s c o m o a l i m e n t o o u f o n t e s d e matéria-prima p a r a f a z e r c o l a r e s , b r a ­ce le tes e o u t r o s e n f e i t e s ; florestas m o d i f i c a d a s p e l o h o m e m , r icas e m p l a n t a s d e c o l e t a ; áreas s i m b o l i c a m e n t e i m p o r t a n t e s o n d e e s t a v a m e n t e r r a d o s a n t e p a s s a d o s o u o n d e " v i v i a m " e n t i d a d e s s i g n i f i c a t i v a s p a r a a c o s m o l o g i a , e n t r e o u t r o s a s p e c t o s . E m a l g u m a s regiões, o domínio desses r e c u r s o s d a v a l u g a r a r e d e s d e comércio, c o m o já f o i c o n s t a t a d o e m d i v e r s o s sítios arqueológicos e f o i r e g i s t r a d o e m vários r e l a t o s c o l o n i a i s d a Amazónia e d a b a c i a P l a t i n a . E m o u t r a s áreas, h a v i a g u e r r a s contínuas p e l a p o s s e desses l u g a r e s , i m p l i c a n d o a formação d e e x t e n s a s r ede s r e g i o n a i s d e aliança p a r a a t a c a r o u d e f e n d e r .

O s a s s e n t a m e n t o s a céu a b e r t o p o d e m ser d i v i d i d o s e m vários t i ­p o s . O s m a i s c o m u n s s e r i a m os constituídos p o r casas e o u t r o s t i p o s d e e s t r u t u r a s c o b e r t a s c o m p a l h a s , c o m o s m a i s d i f e r e n t e s t a m a n h o s , f o r m a t o s e a c a b a m e n t o s . O s a s s e n t a m e n t o s d o t i p o s a m b a q u i o u c o n c h e i r o s , casas semissubterrâneas e o s a t e r r o s p o d e r i a m r e p r e s e n ­t a r a adaptação a a m b i e n t e s e c l i m a s específicos.

E m relação a o s e u t a m a n h o , s e g u n d o a q u a n t i d a d e d e h a b i ­t a n t e s , a interpretação d o s a s s e n t a m e n t o s s o f r e u u m a mudança s i g n i f i c a t i v a n o s últimos a n o s . Até p o u c o t e m p o , m u i t o s arqueó­l o g o s não d a v a m crédito às informações demográficas r e l a t a d a s p e l o s c r o n i s t a s c o l o n i a i s , d e s c o n s i d e r a n d o a p o s s i b i l i d a d e d e r e a ­l i z a r e s t u d o s d e história indígena n o B r a s i l , e s p e c i a l m e n t e s o b r e o s últimos 5 0 0 a n o s . M u i t o s p e s q u i s a d o r e s a c r e d i t a v a m q u e o padrão demogtáfico d o século x i x até 1 9 5 0 r e p r e s e n t a v a a me­d i a c o n s t a n t e d o q u e t e r i a s i d o o t a m a n h o d a população indígena p o r a s s e n t a m e n t o , constituídos p o r a l d e i a s d e n o máximo 3 0 0 o u 4 0 0 pessoas . I s s o d i f i c u l t o u a percepção d a v a r i e d a d e demográlu a e e l i m i n o u o e s t a b e l e c i m e n t o d e f u m a reflexão s o b r e o s p r o c e s s o s

87

Page 43: Pré História do Brasil

históricos v i v e n c i a d o s p e l o s p o v o s indígenas, e m e s p e c i a l após a c h e g a d a d e C a b r a l , q u a n d o p a s s o u a h a v e r u m a redução n o t a m a ­n h o da s populações e d o s seus a s s e n t a m e n t o s . E s s a p o s t u r a d e c o n ­s i d e r a r as populações d o p a s s a d o c o m o i g u a i s às d o p r e s e n t e , s e m l e v a r e m c o n t a as p a r t i c u l a r i d a d e s históricas d e c a d a u m a , p a s s o u a ser r e v i s t a c o m a introdução das p e s q u i s a s arqueológicas e c o m a r e t o m a d a d o s e s t u d o s da s f o n t e s e s c r i t a s p e l o s c o l o n i z a d o r e s d e s d e o século x v i .

U m e x e m p l o dessa mudança v e m d o e s t u d o f e i t o n o i n t e r i o r d a Amazónia, d o a l t o r i o X i n g u , o n d e a t u a l m e n t e o s K u i k u r o s o c u p a m a lde i a s d e a p r o x i m a d a m e n t e 2 7 5 m e t r o s d e diâmetro e p o s s u e m u m a população c o m cerca d e 3 2 0 pessoas e m c a d a a l d e i a . H o j e , a l g u m a s dessas a l d e i a s estão s o b r e g r a n d e s sítios arqueológicos d o s seus a n t e p a s s a d o s , c o m o o arqueólogo M i c h a e l H a c k e n b e r g e r r e v e ­l o u há p o u c o t e m p o . O s m a i o r e s p o s s u e m cerca d e 5 0 h e c t a r e s d e área c e r c a d a p o r fos sos e scavados c o m até 4 m e t r o s d e p r o f u n d i d a d e e p o d e r i a m t e r s i d o h a b i t a d o s p o r até 2 . 5 0 0 pessoas. O u se ja , q u a s e d e z vezes m a i o r e m t e r m o s espacia i s ! H a c k e n b e r g e r também a p r e ­s e n t a as causas dessa redução: a população e n t r o u e m c o l a p s o há cerca d e 3 0 0 a n o s , p r o v a v e l m e n t e p o r influência das e p i d e m i a s i n ­t r o d u z i d a s p e l o s e u r o p e u s e pe las a t i v i d a d e s e scrav i s ta s p o r t u g u e s a s n o b a i x o A m a z o n a s .

E s s e é u m e x e m p l o d e m e t o d o l o g i a d e p e s q u i s a a ser s e g u i d o e m o u t r a s regiões, p o i s c o n s i d e r a r o p r o c e s s o histórico, v a l e n d o -se d a A r q u e o l o g i a , E t n o l o g i a e História, t e m - s e r e v e l a d o a f o r m a m a i s a d e q u a d a p a r a se o b t e r as informações m a i s c o m p l e t a s e as interpretações m a i s a c e r t a d a s s o b r e as s o c i e d a d e s h u m a n a s n o pas ­s a d o , além d e i n c r e m e n t a r n o s s a percepção das diferenças e d o s d i s t i n t o s p r o c e s s o s históricos v i v e n c i a d o s p e l o s p o v o s indígenas e m p a r t i c u l a r .

O u t r o e x e m p l o i n t e r e s s a n t e v e m d a b e i r a d o r i o A m a z o n a s , o n d e os r e l a t o s d o s p r i m e i r o s c r o n i s t a s s o b r e as a lde i a s d a região estão s e n d o c o n f i r m a d o s pe las pesqui sa s arqueológicas. N o s séculos x v i e x v i i , o s espanhóis e p o r t u g u e s e s q u e p o r lá t r a n s i t a r a m r e l a t a r a m a existência d e e x t e n s o s a s s e n t a m e n t o s e m d i v e r s a s p a r t e s d o r i o , p o ­v o a d o s p o r densas populações, o r g a n i z a d a s s o b a f o r m a d e " r e i n o s " . U m de le s , o c u p a d o p e l o s Tapajós, o n d e h o j e está s i t u a d a a c i d a d e d e Santarém, possuía u m c o m p r i m e n t o d e p e l o m e n o s 6 quilómetros

8 8

e u m a l a r g u r a c o m cerca d e 2 quilómetros, t a l c o m o i n d i c a m o s p r i m e i r o s r e s u l t a d o s das pesqui sa s arqueológicas d e A n n a R o o s e v e l t e s u a e q u i p e . O u t r o desses g r a n d e s a s s e n t a m e n t o s - d e s c o b e r t o e m e s t u d o s l i d e r a d o s p e l o arqueólogo E d u a r d o Góes N e v e s - está s i t u a d o d i a n t e d e M a n a u s , p o s s u i quase 5 quilómetros d e extensão e f o i d e n o m i n a d o C o m p l e x o d e Açutuba.

E n t r e t a n t o , g r a n d e s a s s e n t a m e n t o s e densa s populações indíge­nas não e x i s t i a m a p e n a s à b e i r a d o A m a z o n a s . N o i n t e r i o r d o B r a s i l , n o r i o Paraná, e n t r e a f o z d o r i o P i q u i r i e a f o z d o r i o P a r a n a p a n e m a , jesuítas r e l a t a r a m a existência d e a lde i a s c o m m a i s d e m i l pessoas. R e c e n t e m e n t e , u m d o s a u t o r e s d e s t e l i v r o ( F r a n c i s c o N o e l l i ) , j u n ­t o c o m s u a e q u i p e d a U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e Maringá ( U E M ) , e n c o n t r o u n a m e s m a área sítios arqueológicos c o m até 1,5 quiló­m e t r o d e c o m p r i m e n t o . Jesuítas e c r o n i s t a s r e l a t a m a existência d e a l d e i a s g r a n d e s , c o m até 2 . 5 0 0 pessoas , e m o u t r a s p a r t e s d o Paraná e S a n t a C a t a r i n a .

S o b r e a c o s t a d o B r a s i l d o século x v i , há vários t e s t e m u n h o s d e a s s e n t a m e n t o s c o m m a i s d e m i l pessoas, c o m o m o s t r a o sociólogo F l o r e s t a n F e r n a n d e s e m s u a o b r a Organização social dos tupinambá.

A consideração d e informações históricas, b e m c o m o o s e x e m ­p l o s das pesqu i sa s arqueológicas m e n c i o n a d a s , a b r e espaço p a r a q u e n o v a s e i m p o r t a n t e s d e s c o b e r t a s s e j a m f e i t a s , c o n t r i b u i n d o p a r a r e ­p e n s a r a d i v e r s i d a d e e o t a m a n h o das populações indígenas n a época e m q u e C a b r a l c h e g o u a o B r a s i l .

A HISTÓRIA d a ocupação c o s t e i r a

Os habitantes da costa e os sambaquis

N a a t u a l i d a d e , o s l i t o r a i s d o S u d e s t e e S u l d o B r a s i l , c o m m a i o r concentração d e vestígios, a p r e s e n t a m e m s u a p a i s a g e m c o s t e i r a n u m e r o s o s montões d e c o n c h a s , r e s t o s d e c o z i n h a e e s q u e l e t o s , às vezes c o m d e z e n a s d e m e t r o s d e a l t u r a e c e n t e n a s d e m e t r o s d e ex tensão, q u e s o b r e s s a e m e c h a m a m a atenção: são o s s a m b a q u i s . S e u n o m e d e r i v a d e u m a expressão t u p i , tamba ( m a r i s c o ) e ki ( a m o u t o a m e n t o ) são c o n h e c i d o s também c o m o c o n c h e i r o s , p o r sere i i i u m acúmulo a r t i f i c i a l , h u m a n o , d e c o n c h a s d e m o l u s c o s , vestígios

89

Page 44: Pré História do Brasil

a l i m e n t a r e s d e g r u p o s indígenas. O s s a m b a q u i s a p r e s e n t a m u m a g r a n d e q u a n t i d a d e d e vestígios pré-históricos e c o n s t i t u e m , p o r ­t a n t o , u m a i m p o r t a n t e f o n t e d e informações s o b r e o n o s s o p a s s a d o . P o r i s so , a l g u n s d e l e s f o r a m t o m b a d o s c o m o patrimônio c u l t u r a l e são, p e l o m e n o s t e o r i c a m e n t e , p r o t e g i d o s d a destruição p o r l e i f e d e r a l . C o n t u d o , d e s d e o início d a colonização p o r t u g u e s a m u i t o s sítios desse t i p o têm s i d o destruídos p a r a a obtenção d e c a l . E s s a depredação a c e n t u o u - s e a p a r t i r d a década d e 1 9 4 0 , e m v i r t u d e d o u s o d e suas c o n c h a s c o m o m a t e r i a l p a r a pavimentação d e r u a s e e s t r ada s d u r a n t e a expansão u r b a n a p a r a o l i t o r a l , n a s p r a i a s d e v e r a n e i o , a s s i m c o m o p a r a o u t r o s fins i n d u s t r i a i s . A motorização c r e s c e n t e d o país a c e l e r o u o r i t m o d e destruição d o s s a m b a q u i s , m a s , a i n d a a s s i m , e les c o n s t i t u e m u m a presença c o n s t a n t e e m regiões d o l i t o r a l , c o m o g r a n d e s baías e a o l o n g o d o s m a n g u e s , c o m o e m Iguapé e C a n a n e i a , Itanhaém, e m São P a u l o , n a s baías d e G u a r a t u b a , Paranaguá ( P R ) e São F r a n c i s c o d o S u l ( s c ) , n a região d e J o i n v i l l e ( s c ) até m a i s a o s u l , e n t r e T o r r e s e Tramandaí ( R S ) . Também e x i s t e m s a m b a q u i s m e n o r e s a o s u l d e Tramandaí, até a região d e M o n t e v i d e o , n o U r u g u a i .

A c r e d i t a - s e q u e o s s a m b a q u i s s e j a m b a s t a n t e a n t i g o s , p r e s e n t e s t a l v e z já há 8 m i l a n o s , t e n d o a t i n g i d o s u a m a i o r difusão e n t r e 5 e 3 m i l a n o s atrás, d e c l i n a n d o e m s e g u i d a e d e s a p a r e c i d o c o m a c h e ­g a d a d o s p o v o s jê e t u p i à c o s t a .

C o m o v i v i a m o s seus c o n s t r u t o r e s e p o r q u e f o r m a v a m esses i m e n s o s m o n t e s a r t i f i c i a i s ? Essas são questões q u e há m u i t a s décadas têm g e r a d o g r a n d e controvérsia e n t r e o s e s t u d i o s o s . E m p a r t e , i s so se d e v e à f a l t a d e publicações e à escassez d e pesqu i sa s , q u e só r e c e n t e ­m e n t e t i v e r a m n o v o i m p u l s o a p a r t i r d e p r o j e t o s interuniversitários e i n t e r n a c i o n a i s d i r i g i d o s p o r p e s q u i s a d o r e s d o e i x o Rio-São P a u l o ( v e r l i v r o d e M a d u G a s p a r , c i t a d o n a s Sugestões de leitura). Além d i s s o , as interpretações p r o p o s t a s , c o m o v e r e m o s a s e g u i r , r e m e t e m a t e o r i a s antropológicas e m v o g a e m c a d a período d a História r e c e n t e e p r e c i s a m ser e n t e n d i d a s c o m o t e n t a t i v a s d e explicação, m a i s d o q u e c o m o revelações d e f i n i t i v a s .

E n c o n t r a r a m - s e , e m s a m b a q u i s , e s t r u t u r a s d e habitação, c u l i ­nária, combustão e funerárias, a s s i m c o m o a r t e f a t o s líticos o s m a i s v a r i a d o s , desde m a c h a d o s e p o l i d o r e s até o b j e t o s e m f o r m a d e a n i ­m a i s , c h a m a d o s d e zoólitos, c u j a b e l e z a não n o s d e i x a d e e n c a n t a r ,

90

C o n c h a s , o s s o s h u m a n o s e d e o u t r o s a n i m a i s e líticos são e n c o n t r a d o s e m s a m b a q u i s . N o d e t a ­l h e : u m s a m b a q u i e m S a n t a C a t a r i n a .

m i l h a r e s d e a n o s d e p o i s de sua confecção. E m b o r a fiquemos a d m i ­r a d o s c o m s u a s u a v i d a d e plástica, s e r i a m artísticos d o p o n t o d e v i s t a d a q u e l e s q u e o s fizeram? O g r a n d e e s t u d i o s o francês André P r o u s , e m u m l i v r o d e d i c a d o a essas representações, c o n s i d e r a p o u c o provável q u e se possa t r a t a r d e o b r a s d e a r t e s e m o u t r a finalidade, m a s s i m c o m u m caráter simbólico. Então, q u a l s e r i a o s i m b o l i s m o ? O q u e se q u e r i a c o m essas figuras? D e s d e o século x i x , c o n s i d e r a - s e q u e as r e p r e s e n ­tações p o d e m p o s s u i r u m caráter mágico, r e l i g i o s o , c o m o se a r e p r e ­sentação d e u m a n i m a l , p o t e x e m p l o , favorecesse s u a caça. A l g u m a s figuras, c o m o a d e u m a cópula d e p o m b a s o u a m u l e t o s e m f o r m a de t a l o s (pênis e r e t o s ) , p a r e c e m c o n f i r m a r q u e , a o m e n o s nesses casos, esses o b j e t o s t i n h a m u m a f o r t e conotação simbólica, propiciatória, l i ­g a d a à f e r t i l i d a d e e à reprodução a i n d a q u e P r o u s não c o n s i d e r e q u e t a m p o u c o isso se possa i n f e r i r desses o b j e t o s . P r o u s a f i r m a q u e p o d e ­r i a m se r e f e r i r a u m a e s t r u t u r a s o c i a l o u m e s m o ser o s i n a l d a existên c i a d e u m a h i e r a r q u i a soc i a l . . . não fosse o f a t o , l e m b r a o p e s q u i s a d o r , q u e p o u c o s a b e m o s s o b r e c o m o f u n c i o n a v a a q u e l a soc iedade !

Essas observações l e v a m - n o s às hipóteses m a i s r e c o r r e n t e s s o b r e as soc iedades d o s s a m b a q u i e i r o s . Já n o século x r x se f a z i a m p r o p o s t a s s o b r e o t e m a , q u a n d o d e u m l a d o e s t a v a m o s e s t u d i o s o s majoritários,

91

Page 45: Pré História do Brasil

q u e c o n s i d e r a v a m o s s a m b a q u i s a r t i f i c i a i s , f e i t o s p e l o h o m e m , e d e o u t r o o s q u e d e f e n d i a m q u e o s s a m b a q u i s e r a m u m fenómeno n a ­t u r a l . E n t r e o s q u e a c e i t a v a m a açáo h u m a n a , começaram a s u r g i r t e o r i a s q u e t e n t a v a m e x p l i c a r o s c o n c h e i r o s a f i r m a n d o s e r e m esses a c a m p a m e n t o s d e i n v e r n o d e p o v o s q u e v i n h a m d o i n t e r i o r p a r a v i v e r d o s r e c u r s o s marítimos n o período f r i o . N o século x x , as d i s ­cussões s o b r e o caráter n a t u r a l o u a r t i f i c i a l d o s s a m b a q u i s t o m a r a m n o v o s c a m i n h o s , até p r e v a l e c e r a noção d e q u e formações d e c o n ­chas n a t u r a i s e s a m b a q u i s não se c o n f u n d e m . A s décadas d e 1 9 5 0 a 1 9 7 0 t e s t e m u n h a r a m u m número c r e s c e n t e d e pesqui sa s d e c a m p o e c o l e t a d e d a d o s s o b r e os s a m b a q u i s , p r e o c u p a d o s c o m a descrição d o s a c h a d o s e c o m a apresentação d e p r o p o s t a s d e t i p o l o g i a e c r o ­n o l o g i a d e sítios. A p a f t i r desse p o n t o , o s e s t u d o s s o b r e os r e s t o s d e f a u n a e d e seres h u m a n o s e n c o n t r a d o s n o l o c a l m o s t r a r a m q u e a q u a n t i d a d e d e d a d o s p r o v e n i e n t e s d e s a m b a q u i s p o d e r i a s e r v i r p a r a c o n h e c e r m e l h o r o s h a b i t a n t e s d a co s t a .

N a última década, a l g u n s e s t u d o s têm p r o p o s t o q u e a o c u p a ­ção h u m a n a d o l i t o r a l b r a s i l e i r o deu- se n u m p r o c e s s o d e c r e s c e n ­t e a u m e n t o das h i e r a r q u i a s e d a geração d e e x c e d e n t e s . A s s i m , u m s i s t e m a d e subsistência f u n d a d o n o s r e c u r s o s m a r i n h o s f a v o r e c e u a sedentarização, o c r e s c i m e n t o p o p u l a c i o n a l e p e r m i t i u , c o m a ge­ração d e e x c e d e n t e s , a mobilização d a população p a r a a realização d e g r a n d e s o b r a s c o m o a construção d o s s a m b a q u i s , g r a n d e s m o ­n u m e n t o s comparáveis, e m o u t r o c o n t e x t o histórico, a pirâmides egípcias. Esses g r a n d e s m o n u m e n t o s e x i g e m , p a r a s u a construção, u m t r a b a l h o d e e q u i p e , c o o r d e n a d o p o r lideranças e, p o r i s so , p o d e -se s u p o r q u e t e n h a m s i d o o r e s u l t a d o d e u m a c r e s c e n t e estratificação e hierarquização s o c i a l , necessárias p a r a q u e a população fosse m o b i ­l i z a d a . A s s i m c o m o e m o u t r a s épocas e l u g a r e s , as d e s i g u a l d a d e s s o ­c i a i s l e v a r a m à produção d e o b j e t o s d e a r t e , c o m o o s zoólitos, belas e s c u l t u r a s e m p e d r a o u o s so d e a n i m a i s , c o m g r a n d e r e b u s c a m e n t o artístico. P a r a q u e se pos sa t e r a r t e e l a b o r a d a é necessária a e s p e c i a l i ­zação d a mão d e o b r a , c o m o s u r g i m e n t o d e artesãos e s p e c i a l i z a d o s , c o m status d i f e r e n c i a d o . P o d e - s e c o n c l u i r q u e u m a e l i t e d o m i n a v a essas soc iedades litorâneas e, m e s m o s e m a a g r i c u l t u r a , m o s t r a v a m u m a c o m p l e x i d a d e notável.

N e m t o d o s c o n c o r d a m c o m essa interpretação, h o j e b a s t a n t e d i ­f u n d i d a , s o b r e o s a n t i g o s h a b i t a n t e s d a c o s t a b r a s i l e i r a . D e f a t o , d o

92

n o s s o p o n t o d e v i s t a , a i n d a não t e m o s d a d o s s u f i c i e n t e s p a r a saber se o p r o c e s s o d e ocupação d a c o s t a e a configuração das soc i edades lá i n s t a l a d a s se d e u d a f o r m a d e s c r i t a a c i m a . A s pesqui sa s têm-se i n t e n s i f i c a d o e podetão f o r n e c e r indicações m a i s precisas n o f u t u r o . Além d i s s o , t e m o s dúvidas q u a n t o à u t i l i d a d e d a noção d e c r e s c e n t e c o m p l e x i d a d e s o c i a l , p o i s t o d a s as soc i edades são c o m p l e x a s e a p r e ­s e n t a m c o n f l i t o s i n t e r n o s . E m v e z d e t e n t a r c la s s i f i car soc i edades e m mais o u menos c o m p l e x a s , o i n t e r e s s a n t e s e r i a p r o c u r a r c a r a c t e r i z a r c a d a u m a de las d a m e l h o r m a n e i r a possível, a p a r t i r d o m a i o r núme­r o d e informações q u e p u d e r m o s o b t e r .

A i n d a há m u i t o q u e c o m p r e e n d e r s o b r e o s c o n s t r u t o r e s d o s s a m b a q u i s e , também p o t i s so , é i m p o r t a n t e a preservação desses vestígios. E m m u i t o s l u g a r e s n a a t u a l i d a d e , o s s a m b a q u i s estão e m áreas m a r g i n a i s , c o m o m a n g u e s , q u e a t r a e m populações p o b r e s e m ocupações precárias. R a r a s vezes há u m a política d e integração desse patrimônio arqueológico à c o m u n i d a d e l o c a l , p o r m e i o d e p r o g r a m a s e d u c a t i v o s e p a r t i c i p a t i v o s o c o n t e x t o d e exclusão s o c i a l , e m q u e a população não t e m acesso aos m e i o s mínimos d e saúde, educação e lazer , t o r n a a preservação desses s a m b a q u i s u m a t a r e f a m u i t o árdua. Além d i s s o , à m e d i d a q u e o s c o n c h e i r o s r e f e r e m - s e à população indígena, s e m p r e c o n s i d e r a d a d e f o r m a d e p r e c i a t i v a p e l a c u l t u r a d o m i n a n t e , p r e s e r v a r s a m b a q u i s p a r e c e ser u m . . . " p r o g r a m a d e índio"! E m o u t r o s t e r m o s , a destruição d o s re s tos m a t e r i a i s d o s a n t i g o s o c u p a n t e s acaba p a r e c e n d o " n o r m a l " e, até m e s m o , "dese­jável". P a r a q u e os s a m b a q u i e i r o s façam s e n t i d o p a r a as populações l o c a i s , é necessária u m a inserção desses b e n s n a c o m u n i d a d e , a o m o s t r a r q u e a h u m a n i d a d e a l i p r e s e n t e não é e s t r a n h a o u i n f e r i o r , p o i s t a m p o u c o esses excluídos d e v e m a c e i t a r q u e s e j a m d e s p i d o s d e s u a h u m a n i d a d e . O resgate d o s s a m b a q u i s c o m o história d e h o m e n s c o m o nós passa, n e c e s s a r i a m e n t e , p e l o r e c o n h e c i m e n t o d a i m p o r ­tância d e t o d o s os seres h u m a n o s .

As casas semissubterrâneas no interior

N a t e t m i n o l o g i a técnica i n t e r n a c i o n a l d a A r q u e o l o g i a , as casas semissubterrâneas são denominadaspi t -houses . E s se t i p o d e h a b i t a çáo é u m c l a r o e x e m p l o d a adaptação d e n o s s o s a n t e p a s s a d o s aos a m ­b i e n t e s m a i s f r i o s d o B r a s i l , s o b r e t u d o n a s áreas d e m a i o r a l t i t u d e

93

Page 46: Pré História do Brasil

c o m o as a l t a s e n c o s t a s e o s p l a n a l t o s d a S e r r a G e r a l , q u e alcançam a l t i t u d e s s u p e r i o r e s aos 8 0 0 m e t r o s a c i m a d o nível d o m a r e o n d e a t e m p e r a t u r a p o d e d e s c e r vários g r a u s a b a i x o d e z e r o . Além d a a l t i t u d e , as t e m p e r a t u r a s médias m a i s b a i x a s e m 3 o u 4 g r a u s q u e as d a a t u a l i d a d e , s o b r e t u d o e n t r e o s séculos I e X V I I I d a n o s s a E r a , d e v e m t e r i n f l u e n c i a d o esse t i p o d e adaptação e n c o n t r a d a a p e n a s e n t r e o s p o v o s jê, u m a v e z q u e o u t r a s populações, h a b i t a n d o l u g a ­res c o m c l i m a i g u a l m e n t e f r i o , não r e a l i z a r a m construções s e m e ­l h a n t e s . O s geólogos d e n o m i n a r a m u m a p a r t e desse l o n g o período e n t r e o início d o século x v e o início d o século x i x , c o m o a "última i d a d e d o g e l o " . N o s séculos x v u e x v i i i , f o r a m p r o d u z i d o s n u m e ­r o s o s r e l a t o s s o b r e n e v e e nevasca s n o s e s t a d o s d o S u l d o B r a s i l . P o r v o l t a d e 1 6 1 6 , o p a d r e Antônio R u i z d e M o n t o y a , n o i n t e r i o r d o a t u a l d e e s t a d o d o Paraná, r e g i s t r o u a designação g u a r a n i p a r a n e v e : roy pyá. Também e x i s t e u m a designação p a r a n e v e n a língua d o s k a i n g a n g u e s , d e s c e n d e n t e s d o s c o n s t r u t o r e s das casas s e m i s ­subterrâneas, c o l h i d a p o r Úrsula W i e s e m a n n n o s e u dicionário Kaingang-Português: kukryrèn.

A s s e n t a m e n t o s arqueológicos c o m casas semissubterrâneas f o r a m e n c o n t r a d o s d e s d e M i n a s G e r a i s até o R i o G r a n d e d o S u l , n o v a l e d o r i o Jacuí. O s m a i s a n t i g o s sítios arqueológicos f o r a m d a t a d o s n o R i o G r a n d e d o S u l , a o r e d o r d e m i l e 8 0 0 A P .

Também e x i s t e m d o c u m e n t o s históricos r e f e r e n t e s a habitações desse t i p o n a f r o n t e i r a litorânea e n t r e São P a u l o e R i o d e J a n e i r o , n a B a h i a , a s s i m c o m o n a s áreas m a i s a l t a s d o r i o X i n g u , baseados e m r e l a t o s míticos d o s xikrin-kayapós.

U m a p a r t e d a ca sa ficava a b a i x o d a superfície d o s o l o , q u e e r a e s c a v a d o c o m essa f i n a l i d a d e . A c i m a d a superfície f i c a v a o t e l h a d o , q u e d e v e r i a t e r a f o r m a côncava, c o m u m a a b e r t u r a s e r ­v i n d o c o m o p o r t a e o u t r a , c o m o chaminé. U m relatório e s c r i t o p e l o p a d r e jesuíta Antônio R u i z d e M o n t o y a , e m 1 6 2 8 , r e t r a ­t a a aparência e x t e r n a d e a l g u m a s dessas casas l o c a l i z a d a s o n d e h o j e é o o e s t e p a r a n a e n s e : "são r e d o n d a s , c o m o f o r n o s " . O u s e j a , o s t e l h a d o s e r a m s e m e l h a n t e s a o s f o r n o s semiesféricos f e i t o s d e t i j o l o s e b a r r o , c o m o a q u e l e s p a r a assar pão o u f a z e r carvão. A i n ­d a não s a b e m o s c o m o e r a a e s t r u t u r a d o t e l h a d o , m a s c o n h e ­c e m o s a s u a base d e sustentação, f e i t a c o m a l i c e r c e d e a l g u n s b l o c o s d e p e d r a p a r a s u p o r t a r s e u p e s o . I s s o n o s f a z d e d u z i r q u e

94

o t e l h a d o e r a constituído p o r u m a e s t r u t u r a d e m a d e i r a c o b e r t a c o m a r g i l a e , p o s s i v e l m e n t e , gramíneas p a r a m e l h o r a r a i m p e r ­meabilização e o i s o l a m e n t o térmico - a e x e m p l o d e habitações semissubterrâneas e n c o n t r a d a s e m o u t r a s regiões t e m p e t a d a s d o m u n d o r e d u z i n d o a p o s s i b i l i d a d e d e q u e o t e l h a d o f o s s e c o ­b e r t o a p e n a s c o m p a l h a , c o m o d e d u z i r a m o s p e s q u i s a d o r e s q u e t r a t a r a m d a questão até o p r e s e n t e .

O s a s s e n t a m e n t o s são constituídos e m média p o r d u a s o u três casas, m a s e x i s t e m vários e x e m p l o s c o m m a i s d e 1 0 habitações, a l g u n s alcançando 6 8 . S u a s dimensões são variáveis, c o m as m e ­n o r e s m e d i n d o a o r e d o r d e 2 m e t r o s d e diâmetro e as m a i o r e s a t i n g i n d o até 2 0 m e t r o s . A p r o f u n d i d a d e também v a r i a d e p o u ­c o m a i s d e 1,5 m e t r o até 8 m e t r o s , h a v e n d o formidáveis casas q u e p o d e m a t i n g i r até 2 2 m e t r o s . A l g u m a s casas f o r a m escavadas e m s o l o r o c h o s o d e b a s a l t o o u a r e n i t o , s e m e l h a n t e a o q u e se f az e m u m a p e d r e i r a , i m p l i c a n d o m u i t o s d i a s d e t r a b a l h o . A p a r e d e a b a i x o d a superfície d o s o l o g e r a l m e n t e é v e r t i c a l , r e s u l t a n d o q u e , n a m a i o r i a da s casas c o n h e c i d a s , h a v i a n e c e s s i d a d e d e i n s t a l a r es­cadas p a r a a u x i l i a r a saída d o i n t e r i o r .

M u i t a s vezes o s a s s e n t a m e n t o s c o m casas semissubterrâneas t a m ­bém p o s s u e m o b r a s m o n u m e n t a i s , c o m o o s c h a m a d o s dançadores ( l o c a i s p l a n o s c e r c a d o s p o r u m a m u r e t a d e t e r r a o n d e e r a m r e a l i z a d a s cerimónias d i v e r s a s ) e o s montículos o n d e e r a m e n t e r r a d o s o s m o r ­t o s . E m m u i t o s casos, t o p o s d e m o r r o s f o r a m a p l a n a d o s p a r a a i n s t a ­lação d o s dançadores, c h e g a n d o a l g u n s aos 2 0 0 m e t r o s d e diâmetro. Vários dançadores estão cercados p o r m u r e t a s , a t e r r o s c o m cerca d e 5 0 - 7 0 centímetros d e a l t u r a , q u e t a l v e z s e r v i s s e m c o m o b a n c o s o u p a r a d e l i m i t a r esses espaços. O s montículos mortuários v a r i a v a m d e t a m a n h o , p o d e n d o u l t r a p a s s a r os 2 0 m e t r o s d e diâmetro e 4 m e t r o s d e a l t u r a , c o n f o r m e o prestígio d o f a l e c i d o .

A i n d a não se sabe c o m d e t a l h e s c o m o e r a o i n t e r i o r dessas h a ­bitações, m a s n o século x v i o português G a b r i e l S o a r e s d e S o u s a , e m s e u Tratado descritivo do Brasil ( 1 5 8 7 ) , r e l a t o u h a v e r " f o g o d e n o i t e e d e d i a e f a z e m suas c a m a s d e r a m a s e p e l e s " . A s escavações arqueológicas irão r e v e l a r m a i s d e t a l h e s s o b r e c o m o s e r i a o c o n t e x t o e a distribuição i n t e r n a d o s b e n s dessas habitações. I a m bém não s a b e m o s b e m c o m o e r a a f o r m a dessas a l d e i a s , se t e r i a m o u t i a s construções e x t e r n a s e se, n o verão, o s seus h a b i t a n t e s

95

Page 47: Pré História do Brasil

p e r m a n e c i a m o c u p a n d o o i n t e r i o r das casas semissubterrâneas o u se i r i a m t e m p o r a r i a m e n t e p a r a casas a c i m a d a superfície d o s o l o .

Os aterros no interior

O s d i f e r e n t e s t i p o s d e a t e r r o s são c o n h e c i d o s c o m o tesos , m u r u n -d u s e c e r r i t o s na s t e t m i n o l o g i a s r e g i o n a i s d o B r a s i l e c o m o mounds n a t e r m i n o l o g i a técnica d a A r q u e o l o g i a . São o b r a s h u m a n a s e p o s ­s u e m dimensões e f o r m a t o s v a r i a d o s , g e r a l m e n t e construídos d e n t r o o u n a m a r g e m d e áreas alagadiças. A decisão d e o c u p a r esses l u g a r e s d e v i a - s e a p e l o m e n o s d o i s m o t i v o s . P o d e r i a ser e m razão d a o f e r t a d e r e c u r s o s p a r a alimentação, u m a v e z q u e esses a m b i e n t e s alagadiços são riquíssimos e m q u a n t i d a d e e v a r i e d a d e faunística - p e l o m e n o s e m cer ta s épocas d o a n o , q u a n d o há elevação d o nível das águas; também p o d i a ser e m v i r t u d e d o a u m e n t o d a d e n s i d a d e p o p u l a c i o ­n a l n a região q u e e n v o l v i a as próximas às áreas alagadiças, o b r i g a n d o a ocupação d e t a i s espaços.

A construção d o s a t e r r o s i m p l i c a v a a extração e t r a n s p o r t e d e v o l u m e s consideráveis d e t e r r a e , d e p e n d e n d o d o ca so , e q u i v a l i a a v e r d a d e i r a s o b r a s m o n u m e n t a i s , e m decorrência d a m o v i m e n t a ­ção d e m u i t o s m i l h a r e s d e m e t r o s cúbicos d e s e d i m e n t o s . A l g u n s

Reconstituição t i a a l d e i a d o T e s o d o s B i c h o s , i l h a d e Marajó, a p a r t i r d a s p e s q u i s a s arqueológicas d e A n n a R o o s e v e l t (Moundbuilden ofthe Amazon. N e w Y o r k : A c a d e m i c P r e s s , 1991, p . 337).

9 6

a u t o t e s c o n s i d e r a m q u e , e m cer ta s regiões, a construção d o s a t e r r o s f o i e x e c u t a d a s o b u m a direção q u e c e n t r a l i z a r i a a organização d o s t r a b a l h o s , e v i d e n c i a n d o a existência d e níveis d i s t i n t o s d e h i e r a r q u i a s o c i a l , c o m líderes c o o r d e n a n d o as construções, e m contraposição à i d e i a g e n e r a l i z a d a d e q u e não h a v i a distinções soc ia i s e políticas e n t r e o s p o v o s indígenas s i t u a d o s n o B r a s i l . M a s também é possível q u e essas construções f o s s e m r e a l i z a d a s s e m u m a divisão s o c i a l d o t r a b a l h o , c o m t o d o o g r u p o ( o u a p e n a s o s h o m e n s ) e n t r a n d o c o m a mão d e o b r a .

D e n t r e os m a i s c o n h e c i d o s a t e r r o s arqueológicos d o B r a s i l p o ­d e m o s c i t a r os te sos o u m u r u n d u s d a i l h a d e Marajó, o s a t e r r o s d o P a n t a n a l e os c e r r i t o s d o R i o G r a n d e d o S u l e U r u g u a i . O s tesos e r a m o c u p a d o s a o l o n g o d o a n o , e n q u a n t o o s a t e r r o s e o s c e r r i t o s e r a m o c u p a d o s s a z o n a l m e n t e , s e g u i d o a o f e r t a d e r e c u r s o s a s soc i ada a mudanças climáticas o u a modificações d o r e g i m e hídrico ( c h e i a s / secas). N o caso d o s a t e r r o s , eles e r a m o c u p a d o s n a época d e c h e i a e d e s o c u p a d o s n a v a z a n t e , q u a n d o seus proprietários i a m p a r a o u t r o s a s s e n t a m e n t o s n a m a r g e m d o s r i o s p e r e n e s d o P a n t a n a l . N o caso d o s c e r r i t o s , e s p e c i a l m e n t e os q u e e r a m e s t a b e l e c i d o s próximos das l a ­goas e cursos-d*água, a ocupação o c o r r i a n o s mese s m a i s q u e n t e s d o a n o , q u a n d o h a v i a m a i o r abundância d e r e c u r s o s aquáticos. E r a m d e s o c u p a d o s n o i n v e r n o , q u a n d o s u a população se d i v i d i a p a r a o b ­t e r r e c u r s o s e m áreas afas tadas , n o i n t e r i o r .

E m t e r m o s d e dimensão, o s m a i o r e s tesos d e Marajó p o d e m a l ­cançar cerca d e 2 5 5 m e t r o s d e c o m p r i m e n t o , p o r 3 0 m e t r o s d e l a r g u r a e 1 0 m e t r o s d e a l t u r a . São c e r c a d e 4 0 0 sítios c o n h e c i d o s , u m a fração d o t o t a l q u e e x i s t e , s e g u n d o A n n a R o o s e v e l t , d i v i d i n d o -se e m g r u p o s c o m u m a q u a n t i d a d e média d e três a c i n c o tesos (às vezes , há m a i s t e s o s r e u n i d o s ) . E s t e s s e r v i r i a m t a n t o p a r a e scapar das c h e i a s q u a n t o p a r a de fesa , o n d e h a v e r i a a l d e i a s q u e p o d e r i a m a b r i g a r u m mínimo d e m i l pessoas , t e n d o s i d o construídos e n t r e 1 . 4 0 0 e 4 0 0 A P .

N o P a n t a n a l , e x i s t e m m i l h a r e s d e a t e r r o s construídos d e m o d o t o t a l o u p a r c i a l , c o m dimensões q u e alcançam cerca d e 3 0 0 m e t r o s d e c o m p r i m e n t o , 1 2 0 m e t r o s d e l a r g u r a e até 3 m e t r o s d e a l t u r a . E m m u i t o s casos , os c o n s t r u t o r e s p a r t i a m d e elevações n a t u r a i s s o ­b r e a planície d e inundação p a r a d a r início à construção d o s a t e r r o s . E n q u a n t o n o s t e s o s m a r a j o a r a s h a v e r i a a p e n a s habitações, o s a t e r r o s

9 7

Page 48: Pré História do Brasil

p a n t a n e i r o s t e r i a m m e n o s habitações e o c u p a n t e s , m a s se d i f e r e n ­c i a r i a m p e l a inclusão d o s capões a r t i f i c i a i s d e m a t o f o r m a d o s p o r p l a n t a s alimentícias, d r o g a s v e g e t a i s e matérias-primas i n t r o d u z i d a s , f o r m a n d o v e r d a d e i r a s " i l h a s d e r e c u r s o s " i m p l a n t a d a s n o m e i o das planícies c a m p e s t r e s alagáveis. O s m a i s a n t i g o s a t e r r o s c o n h e c i d o s até o m o m e n t o começaram a ser construídos e n t r e 4 1 4 0 a n o s e 3 9 2 0 a n o s A P , s e n d o o c u p a d o s até o p r e s e n t e .

A o r e d o r d o s c o m p l e x o s l a c u n a r e s d o l i t o r a l Atlântico e d e a l ­g u m a s áreas d a região d a C a m p a n h a e n t r e o R i o G r a n d e d o S u l e o U r u g u a i também e x i s t e m m i l h a r e s d e c e r r i t o s . São s i m i l a r e s aos a t e r r o s p a n t a n e i r o s , m a s f o r a m construídos p o r populações d i s ­t i n t a s , a p a r t i r d e 5 m i l A P . T u d o i n d i c a q u e seus o c u p a n t e s não p r a t i c a v a m a a g r i c u l t u t a d a m e s m a m a n e i r a q u e n o P a n t a n a l , m a s informações c o n h e c i d a s até o p r e s e n t e r e v e l a m q u e seus c o n s t r u ­t o r e s c u l t i v a v a m m a t a s d e p a l m e i r a s , p r i n c i p a l m e n t e d e butiá, e m áreas não alagáveis da s c e r c a n i a s . Há casos d e c o n j u n t o s d e d o i s , três, q u a t r o o u m a i s c e r r i t o s construídos próximos u n s d o s o u t r o s .

O S A N T I G O S h a b i t a n t e s , suas expressões estéticas e as nossas inteipretações

Já d i s s e m o s q u e o s a n t i g o s h a b i t a n t e s d e n o s s a t e r r a não u s a v a m a e s c r i t a t a l c o m o a c o n c e b e m o s . N e m p o r i s so , c o n t u d o , d e i x a r a m d e m o s t r a r , d e m u i t a s m a n e i r a s , seus s e n t i m e n t o s e f o r m a s d e expressão artística. Não se t r a t a d e a r t e n o s e n t i d o contemporâneo d o t e r m o , d e u m a " f i n a l i d a d e s e m fim", m a s d a a r t e c o m o e n g e n h o h u m a n o . Já o s gregos e os r o m a n o s d e f i n i a m a criação h u m a n a c o m o tekbné e ars a u m só t e m p o técnica e a r t e e o s a n t i g o s h a b i t a n t e s d o B r a s i l f o r a m m u i t o profícuos e m s e u a r t e s a n a t o . Essas manifestações c u l ­t u r a i s não d e i x a m d e ser estéticas, n o s e n t i d o o r i g i n a l , d e a l g o a q u e a p e l e aos s e n t i d o s . A a r t e r u p e s t r e t a l v e z se ja a m a i s i m p r e s s i o n a n ­t e manifestação artística, das m a i s a n t i g a s a t e r e m c h e g a d o até nós. Também e m o u t r o s c o n t i n e n t e s , c o n s i d e r a - s e q u e a a r t e r u p e s t r e t e n h a m a r c a d o u m m o m e n t o i m p o r t a n t e n a formação c u l t u r a l d o Homo sapiens sapiens. O B r a s i l c o n s t i t u i u m d o s m a i o r e s repositórios d e t a i s representações.

9 8

E m g e r a l , d i v i d e m - s e as representações e m p i n t u r a s o u p i c t o -g r a f i a s , f e i t a s c o m p i g m e n t o s o u t i n t a , e g r a v u r a s o u p e t r o g l i f o s , r e s u l t a d o d e incisões - a m b a s c o n h e c i d a s p o p u l a r m e n t e c o m o i t a -c o a t i a r a s , d e r i v a d a d o t u p i ita ( p e d r a ) e coatiara ( d e c o r a d a ) . M u i ­tas dessas i m a g e n s p r e s e r v a m a recordação d e a t i v i d a d e s soc ia i s i m p o r t a n t e s p a r a o s a n t i g o s h a b i t a n t e s d o B r a s i l , c o m o as e m q u e a p a r e c e m seres h u m a n o s e m d i v e r s a s açóes i n d i v i d u a i s o u c o l e t i -v a s : h o m e n s c o m o c o r p o d e c o r a d o , e m d i v e r s a s posições, c o m o u s e m i n s t r u m e n t o s c o m o o a t c o e a flecha. O u t r a s veze s , m o s t r a m -se h o m e n s e m b a r c o s , g r u p o s d e pessoas d e mãos d a d a s , e m r o d a , caçando o u l u t a n d o . M u i t o s p e t r o g l i f o s são e n c o n t r a d o s às m a r ­g e n s d a água e há q u e m os r e l a c i o n e a u m c u l t o das águas. E m ge­r a l , as explicações m a i s r e c o r r e n t e s p a r a essas i m a g e n s d o s h o m e n s pré-históricos r e l a c i o n a m - n a s a o m u n d o r e l i g i o s o o u mágico, às cerimónias r i t u a i s , e m b a l a d a s p o r p l a n t a s alucinógenas.

N o s últimos a n o s , e s t u d i o s o s têm m o s t r a d o q u e a interpretação das i m a g e n s d e p o v o s s e m u m a e s c r i t a c o m o a n o s s a e x i g e a o m e n o s d u a s a t i t u d e s , a i n d a i n c i p i e n t e s n o q u e se r e f e r e a o e s t u d o d a a r t e r u ­p e s t r e d e n o s s o país. E m p r i m e i r o l u g a r , é necessário o l e v a n t a m e n t o d e u m c o n j u n t o m u i t o a m p l o dessas i m a g e n s , f o r m a n d o u m corpus o u coleção p o r l o c a l d e a c h a d o , c o m t o d o s o s e l e m e n t o s c o n t e x t u a i s q u e p u d e r e m ser a d i c i o n a d o s . A l g u n s p e s q u i s a d o r e s têm p r o c u r a d o , d e f o r m a i n o v a d o r a , m o s t r a r q u e os m o t i v o s q u e a p a r e c e m nas p i n ­t u r a s c o r p o r a i s também estão n a cerâmica d e c e r t o s p o v o s indígenas, o q u e p o d e n o s a j u d a r a e n t e n d e r o s i g n i f i c a d o desses símbolos.

U m e x e m p l o d e interpretação d a figuração pré-histórica p o d e ser e n c o n t r a d o n o e s t u d o d a cerâmica m a r a j o a r a . N a i l h a d o Marajó, f o z d o A m a z o n a s , f o r a m p r o d u z i d a s u r n a s funerárias c o m decoração p i n t a d a e i n c i s a c o n s i d e r a d a s , c o m justiça, u m a das m a i s o r i g i n a i s d o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o . A s u r n a s a p r e s e n t a m f o r m a s h u m a n a s es­t i l i z a d a s , c o m m o t i v o s d e c o r a t i v o s geométricos u s a d o s e m c o n t e x t o s rituais. Além d e as representações h u m a n a s não s e r e m c o m u n s e m o u t r o s l u g a r e s , u m a s p e c t o e m p a r t i c u l a r t e m c h a m a d o a atenção d o s e s t u d i o s o s : a predominância d e m u l h e r e s . M a i s d e 9 0 % das u r ­n a s c o m i m a g e n s h u m a n a s são d e m u l h e r e s , o q u e dá o q u e pensa r .

A q u i cabe u m parêntese s o b r e o predomínio d e interpretações f e i ­tas p o r p e s q u i s a d o r e s d o séxô m a s c u l i n o n o e s t u d o d a Pré-História

9 9

Page 49: Pré História do Brasil

e m g e r a i e d o B r a s i l , e m p a r t i c u l a r . O e s t u d o d o pa s sado e s teve , p o r l o n g a tradição, a s s o c i a d o aos p o n t o s d e v i s t a d o m i n a n t e s , das e l i t e s m a s c u l i n a s . M e s m o q u a n d o as m u l h e r e s e s t u d a r a m t e m a s h i s ­tóricos, m u i t a s vezes o fizeram s e g u i n d o as tradições historiográficas d o m i n a n t e s , também elas m a s c u l i n a s . N o s últimos t e m p o s , c o n t u ­d o , t e m s u r g i d o u m a crítica a t a i s p r e s s u p o s t o s , i n c o n s c i e n t e m e n t e t r a n s m i t i d o s n o i n t e r i o r d a ciência.

N e s s e c o n t e x t o , p a r e c e - n o s a p r o p r i a d o a p r e s e n t a r u m a i n t e r p r e ­tação d e u m a e s t u d i o s a d e t a i s u r n a s , A n n a R o o s e v e l t .

R o o s e v e l t l e m b r a q u e f o n t e s d o século x v i e x v n r e l a t a m a existên­c i a d e soc i edades amazônicas n a s q u a i s as m u l h e r e s t i n h a m g r a n d e d e s t a q u e . N a q u e l e m o m e n t o , m u l h e r e s e r a m líderes e s a c e r d o t i s a s , a s s i m c o m o e r a m as deusas as m a i s i m p o r t a n t e s n o panteão, f u n d a ­d o r a s d e l i n h a g e n s . A s m u l h e r e s s e r i a m m a i s p o d e r o s a s q u e o s h o ­m e n s , o q u e a c a b o u p o r se r e f l e t i r também e m ttadições indígenas amazônicas c o n h e c i d a s q u e , p r o v a v e l m e n t e , l e v a r a m o s e u r o p e u s a i d e n t i f i c a r e m a q u e l a s populações c o m as mitológicas " a m a z o n a s " d a l e n d a g r e g a .

E s t a s o c i e d a d e c a r a c t e r i z a v a - s e p o r u m a população e m cres ­c i m e n t o , a g r i c u l t u r a i n t e n s i v a , a r t e s a n a t o e s p e c i a l i z a d o , a s s i m c o m o c o m u m a e s t r u t u r a s o c i a l h i e r a r q u i z a d a e m a t r i l i n e a r , e m q u e as m u l h e r e s t i n h a m posição d e d e s t a q u e . P a r a a f i r m a r t u d o i s s o , R o o s e v e l t r e c o r r e u a o e s t u d o das u r n a s cerâmicas. P a r a e l a , a predominância f e m i n i n a p o d e r i a ser e x p l i c a d a d e d i v e r s a s f o r m a s , p a r t i n d o d o p r e s s u p o s t o d e q u e a a r t e m a r a j o a r a m a n i f e s t a v a , d e f o r m a simbólica, a existência d e estiatificação s o c i a l , d e s i g u a l d a d e s s o c i a i s e a presença d e lideranças, n o q u e e l a c h a m a d e " c a c i c a d o " . S u g e r e q u e a m a i o r i a d e i m a g e n s f e m i n i n a s r e f l e t i r i a u m s i s t e m a s o c i a l b a s e a d o n a mãe, d e f o r m a q u e as m u l h e r e s d o s v a s o s r e p r e ­s e n t a r i a m c h e f e s d e clãs o u figuras míticas f u n d a d o r a s d e famílias. A localização d e o u t r o s vestígios m a t e r i a i s também i n d u z a e s t u ­d i o s a a c o n s i d e r a r q u e p o d e r i a t e r e x i s t i d o u m s i s t e m a n o q u a l o s h o m e n s se d i r i g i a m aos l u g a r e s e s t a b e l e c i d o s pe l a s m u l h e r e s . A ênfase n a s representações e s t a r i a n a s m u l h e r e s e e m seus a t r i b u ­t o s r e p r o d u t i v o s , c o m o i n d i c a m , p o r e x e m p l o , as explicitações d o s órgãos g e n i t a i s f e m i n i n o s , c o m d e s t a q u e p a r a o útero. E s s a i d e o ­l o g i a e n f a t i z a v a a reprodução, b e m d e a c o r d o c o m u m a s o c i e d a d e c o m h i e r a r q u i a s c e n t r a d a s n a m u l h e r .

100

Cerâmica m a r a j o a r a c o m representação d e u m a figura f e m i n i n a .

N e m t o d o s o s arqueólogos e etnólogos a c e i t a r i a m t a i s i n t e r p r e ­tações, m a s é a própria R o o s e v e l t q u e m e n f a t i z a a n e c e s s i d a d e d e m a i s p e s q u i s a s arqueológicas n a Amazónia p a r a se p o d e r o b t e r d a ­d o s q u e p o s s a m s u b s t a n c i a r , o u e n f r a q u e c e r , suas hipóteses. C o m o q u e r q u e se ja , a s s i m c o m o n a a r t e r u p e s t r e , também nesse ca so fica c l a r o q u e , p a r a se p r o p o r interpretações das i m a g e n s , é n e ­cessário a c u m u l a r d a d o s e e s t a r a b e r t o a m o d e l o s i n t e r p r e t a t i v o s . O acúmulo d e informações d e p e n d e d e publicações d e coletâneas d o c u m e n t a i s , d e r e l a t o s d e t r a b a l h o s d e c a m p o , d e p e s q u i s a s d e t o d o t i p o . Além d i s s o , u m a profusão d e a b o r d a g e n s p e r m i t e a f o r ­mulação d e hipóteses m a i s e l a b o r a d a s e m e n o s c o m p r o m e t i d a s c o m p o n t o s d e v i s t a e n v i e s a d o s , c o m o n o ca so d a a b o r d a g e m f e m i ­n i n a q u e a c a b a m o s d e a p r e s e n t a r . E m b o r a a i n d a e m s u a infância, o e s t u d o d o s a s p e c t o s simbólicos p r o m e t e g r a n d e s p e r s p e c t i v a s p a r a o c o n h e c i m e n t o d e n o s s a Pré-História.

101

Page 50: Pré História do Brasil

A S N O V A S p e r s p e c t i v a s n a História d o B r a s i l pré-colonial

Além das n o v i d a d e s empíricas e teóricas m e n c i o n a d a s , a História d o B r a s i l pré-colonial está d i a n t e d e u m g r a n d e d e s a f i o , q u e é es ta­b e l e c e r a c o n t i n u i d a d e e n t r e as populações indígenas c o n h e c i d a s a p a r t i r d a c h e g a d a d e C a b r a l e as evidências arqueológicas d e seus a s c e n d e n t e s . Já e x i s t e m a l g u m a s relações e s t abe lec ida s , e m p a r t i c u l a r o n d e há f o n t e s e scr i t a s de sde o século x v i , m a s a i n d a há m u i t o p a t a fazer , p o i s , c o m o m a n i f e s t o u J o h n M o n t e i r o , e s t u d i o s o d a história indígena n o B r a s i l , " s a b e m o s p o u c o s o b r e a história desses p o v o s e, p i o r , o imaginário b r a s i l e i r o c o n t i n u a p o v o a d o d e graves distorções e p r e c o n c e i t o s a r e s p e i t o dessas populações".

Essas g raves distorções já h a v i a m s i d o d i a g n o s t i c a d a s n o início d o século x x p e l o polémico M a n o e l B o m f i m , u m d o s g r a n d e s a n a ­l i s t a s d a história das i d e i a s n o B r a s i l . E l e já d e m o n s t r a v a c l a r a m e n t e q u e não h a v i a e n t r e o s b r a s i l e i r o s o i n t e r e s s e e m c o n h e c e r a questão indígena, p o r c a u s a d o f o r t e p r e c o n c e i t o e d o r a c i s m o q u e excluíam os p o v o s indígenas e a f r i c a n o s d a versão académica q u e p r e d o m i ­n a v a n a construção d a História d o B r a s i l . A o m e s m o t e m p o , m o s ­t r a v a q u e h o u v e m u i t a manipulação e subtração d e informações p a r a c o n s t r u i r esse p e n s a m e n t o q u e , h o j e s a b e m o s , t i n h a p o r m e t a a perpetuação d o status quo das e l i t e s e a j u s t i f i c a t i v a d o extermínio, d a exploração d o t r a b a l h o e d o r o u b o das t e r r a s indígenas. B o m f i m , e m s e u l i v r o d e 1 9 2 9 , O Brasil na América: caracterização da socie­dade brasileira, e screve , a r e s p e i t o d a importância das s o c i e d a d e s indígenas n a história c o l o n i a l :

[...] o s h i s t o r i a d o r e s d e profissão não s e detêm n e s s e s a s p e c t o s g e r a i s ; a p e n a s d e i x a m e n t r e v e r t a i s c o i s a s . E n f a r t a d o s d e erudição m o r t a , e l e s a b a f a m , q u a s e , a r e a l i d a d e . Q u a n d o , porém, e s t i m u l a d o s p e l o q u e s e entrevê n a s s u a s histórias, p r o c u r a m o s interpretá-las e s u r p r e e n d e r o s l a n c e s d e v i d a , v e m o s a p r i m e i r a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a i n f u n d i d a n a m a s s a d o g e n t i o , e a lógica d o s s u c e s s o s n o s f a z c o m p r e e n d e r q u e e s s e g e n t i o , t e c i d o v i v o e m q u e s e e n x e r t o u o português, f o i a própria m a s s a , n a s o c i e d a d e q u e d e r i v o u d a colonização. Então, a o espírito s e impõem a convicção: a nação q u e s e d e s e n v o l v e u s o b r e e s s a p r i m i t i v a s o c i e d a d e , e q u e n e l a s e a f i r m o u , guardará p a r a s e m p r e o c u n h o d a s s u a s p o d e r o s a s o r i g e n s . O s b r a s i s v a l i a m d e v a l o r próprio, e v a l i a m m u i t o , p o r q u e e r a m m u i t o s e m u i t o s .

102

D e u m l a d o , essas afirmações a b r e m a p e r s p e c t i v a a i n d a p o u c o c o n s i d e r a d a p e l o s arqueólogos - a s s i m c o m o p e l o s próprios h i s t o r i a ­d o r e s - q u e t r a t a d a participação e f e t i v a das populações indígenas n o s processos r e g i o n a i s d e formação d o s núcleos c o l o n i a i s construídos p e l o s e u r o p e u s . O q u e a c o n t e c e u ? Q u a n t a g e n t e e s t a r i a e n v o l v i d a nesses processos? P o r e x e m p l o , e m áreas c o m o a B a i x a d a S a n t i s t a , o l i t o r a l c a t a r i n e n s e , o i n t e r i o r d o Paraná, o l i t o r a l d o N o r d e s t e e a vár­zea d o r i o A m a z o n a s , c o m o f o i o p r o c e s s o histórico q u e t r a n s f o r m o u territórios d e n s a m e n t e p o v o a d o s p o r indígenas e m áreas t i p i c a m e n t e e u r o p e i z a d a s ? Q u a i s os processos q u e l e v a r a m à transformação d e p o ­v o s indígenas e m p o v o s m a r g i n a i s , " s e m - t e r r a " e fave lados?

D e o u t r o l a d o , é p r e c i s o c o n h e c e r q u a i s f o r a m os a n c e s t r a i s dessas populações, c o m p r e e n d e r c o m m a i o r nível d e d e t a l h e c o m o eles e r a m e v i v i a m , q u a i s as suas histórias, c o m o se r e l a c i o n a r a m populações d i f e r e n t e s , q u a i s o s i n d i c a d o r e s q u e a t e s t a m a c o n t i n u i d a d e e as m u ­danças nessas populações?

N e s s a direção, a m e s m a d e B o m f i m e M o n t e i r o , José B r o c h a d o , arqueólogo b r a s i l e i r o , já e m 1 9 8 4 a f i r m a v a q u e a " A r q u e o l o g i a d o l e s t e d a América d o S u l d e v e ser v i s t a c o m o a Pré-História das p o p u ­lações indígenas históricas e a t u a i s " . E l e também a r g u m e n t a v a q u e , se as relações e n t r e as manifestações arqueológicas e as populações q u e o s p r o d u z i r a m não f o s s e m d e l i b e r a d a m e n t e p e s q u i s a d a s , " o m a i s i m p o r t a n t e terá se p e r d i d o " .

B r o c h a d o p r o p u n h a a modificação d e u m a m e t o d o l o g i a p r e d o ­m i n a n t e n o B r a s i l , q u e c o n s i d e r a v a a p e n a s as evidências arqueológi­cas, s e m b u s c a r relacioná-las aos p o v o s q u e as fizeram. O u se ja , e l e q u e r i a d e i x a r d e basear as pesqui sa s a p e n a s n a descrição e n a datação d o s vestígios m a t e r i a i s , v o l t a n d o - s e à construção d e u m a v e r d a d e i r a História das soc iedades indígenas e à compreensão d o s seus m o d o s d e v i d a , das suas organizações soc ia i s e políticas.

T u d o o q u e f o i p e s q u i s a d o até o p r e s e n t e c o n s t i t u i a p e n a s a p o n t a d e u m i m e n s o iceberg, constituído p o r múltiplas histórias d e milhões d e pessoas , t a n t o d o s p o v o s q u e a p a r e c e r a m n a s cróni­cas c o l o n i a i s e contemporâneas q u a n t o d o s q u e não f o r a m a i n d a e s t u d a d o s o u m e n c i o n a d o s . S e c o n s i d e r a r m o s q u e , n o século x v i , e r a m f a l a d a s m a i s d e 1 . 2 0 0 línguas d i f e r e n t e s , a p e r s p e c t i v a <• a d e q u e a i n d a há m u i t o p o r se d e s c o b r i r e m relação a populaçúcs

103

Page 51: Pré História do Brasil

d i s t i n t a s e n t r e s i . D e f a t o , s a b e m o s m u i t o p o u c o e m t e r m o s especí­ficos e m u i t o e m t e r m o s genéricos e, c o m o disse c o m p r o p r i e d a d e o antropólogo C a r l o s F a u s t o , " v i v e m o s e m u m a i l h a d e c o n h e c i m e n t o r o d e a d a p o r u m o c e a n o d e ignorância".

A p e n a s n o s últimos a n o s o s p e s q u i s a d o r e s começaram a t e r c o m o preocupação o e s t u d o d o p a s s a d o das populações indígenas q u e c o ­n h e c e m o s , das f o n t e s e s c r i t a s p e l o s c o l o n i z a d o s e u r o p e u s e das q u e estão v i v e n d o até a a t u a l i d a d e . O s avanços têm s i d o b a s t a n t e s i g ­n i f i c a t i v o s , e m v i r t u d e d a p o s s i b i l i d a d e d e c o n j u g a r informações arqueológicas, etnográficas, históricas e linguísticas, p e r m i t i n d o q u e se p e r c e b a o m o v i m e n t o , a c o m p l e x i d a d e , a v a r i a b i l i d a d e d o s p r o c e s s o s históricos. A s s i m , é possível p e r c e b e r as c o n t i n u i d a d e s e mudanças n a trajetória das populações, e m v e z das i m a g e n s está­t i c a s , imutáveis q u e as descrições e as interpretações t r a d i c i o n a i s d a Pré-História e d a História c o l o n i a l l e g a r a m a o público. Várias dessas populações d e s c e n d e m d e c o m p l e x o s p roces so s d e c o l o n i z a ­ção e ocupação q u e c u l m i n a r a m n o domínio d e t o d o o território b r a s i l e i r o , e q u e o s e s t u d i o s o s a i n d a estão t e n t a n d o c o m p r e e n d e r e e x p l i c a r c o m m a i o r precisão.

O f u t u r o d a História d o B r a s i l pré-colonial

E m a l g u m a s d e z e n a s d e páginas, v i a j a m o s p o r u m pa s sado d e m i l h a r e s d e a n o s , das p r i m i t i v a s populações q u e e n t r a r a m n o c o n ­t i n e n t e a m e r i c a n o , até o s p o v o s q u e i n i c i a r a m o c o n t a t o c o m o s e u r o p e u s , n o final século x v . P r o c u r a m o s m o s t r a r q u e há m u i t a s questões e m a b e r t o , d i v e r s o s p o n t o s d e v i s t a e q u e as d e s c o b e r t a s arqueológicas t r a z e m s e m p r e n o v o s d a d o s , o q u e f a v o r e c e a p r o l i f e ­ração d e n o v a s interpretações.

A g o r a , a o final de s te l i v r o , t a l v e z o l e i t o r e s t e j a se p e r g u n t a n d o so­b r e c o m o c o n t r i b u i r p a r a m e l h o r c o n h e c e r m o s a n o s s a Pré-História, o u t a l v e z , m e s m o e n t u s i a s m a d o p a r a pôr a mão n a m a s s a e p a r t i c i p a r d e a l g u m t r a b a l h o arqueológico. A essa inquietação r e s p o n d e m o s : s e m p r e e x i s t e m vagas p a r a voluntários n a A r q u e o l o g i a . . .

Q u a i s s e r i a m , h o j e , o s d e s a f i o s d o e s t u d o d a Pré-História n o n o s s o país? E m p r i m e i r o l u g a r , p a r a q u e se p o s s a e s t u d a r o p a s s a d o é necessário q u e t e n h a m o s acesso a e l e e , e m n o s s o ca so , i s s o d e ­p e n d e b a s i c a m e n t e d a preservação d o s vestígios m a t e r i a i s . A des­truição d o patrimônio arqueológico t e m s i d o m u i t o g r a n d e , c o m o v i m o s n o caso d o u s o d o s s a m b a q u i s c o m o matéria-prima p a r a o b r a s d i v e r s a s . I m e n s a s áreas d o B r a s i l têm s i d o i n u n d a d a s p a r a a construção d e r e p r e s a s , c o m a p e r d a , q u a s e irreversível, d e i n f o r mação s o b r e as a n t i g a s populações q u e a l i v i v e t a m p o r milénios. O r i t m o a c e l e r a d o d e construções u r b a n a s e d e utilização d e : u n p i a s áreas p a r a a a g r i c u l t u t a também têm contribuído p a r a d e s t r u i i n u m e r o s o s sítios arqueológicos q u e n u n c a m a i s serão r e c u p e r a d o s . C o m o e n f r e n t a r essa situação?

105

Page 52: Pré História do Brasil

Não se p r e s e r v a senão o q u e é i m p o r t a n t e p a r a nós, o q u e n o s d i z a l g o e, p o r i s so , é i m p o r t a n t e d i f u n d i r m u i t o m a i s o c o n h e c i ­m e n t o s o b r e o p a s s a d o pré-histórico e, a o m e s m o t e m p o , e n v o l v e r a população b r a s i l e i r a nesse p r o c e s s o d e apropriação d e s e u p a t r i ­mônio. H o j e , há n o B r a s i l c e rca d e t r e z e n t o s arqueólogos, u m nú­m e r o m u i t o r e d u z i d o , se c o n s i d e r a r m o s o n o s s o i m e n s o território e a g r a n d e q u a n t i d a d e d e sítios arqueológicos e vestígios m a t e r i a i s já a r m a z e n a d o s e m m u s e u s e o u t r a s instituições. E m c u r s o s s u p e ­r i o r e s d e História e A n t r o p o l o g i a , r a r o s são o s c u r s o s d e Pré-His­tória, t a n t o p o r f a l t a r e m e s t u d i o s o s , c o m o p o r f a l t a d e «adição e m c o n t r a t a r p r o f e s s o r e s p a r a essas áreas, a i n d a q u e h a j a u m g r a n d e i n t e r e s s e p o r p a r t e d o s e s t u d a n t e s universitários. Essas deficiên­cias r e f l e t e m - s e n o p o u c o c o n h e c i m e n t o d o t e m a p o r p a r t e d o s p r o f e s s o r e s d e e n s i n o f u n d a m e n t a l e médio e n o escasso espaço d e d i c a d o , e m l i v r o s didáticos, aos t e m a s pré-históricos. Também nesse ca so , não é difícil c o n s t a t a r q u e o g r a n d e i n t e r e s s e d o s a l u n o s p e l o t e m a a c a b a i n s a t i s f e i t o p e l a f a l t a d e informações. Não é à t o a q u e , q u a n d o r e v i s t a s o u j o r n a i s t r a t a m d e L u z i a o u da s p i n t u r a s r u p e s t r e s , t o d o s , a d u l t o s e crianças, p r o f e s s o r e s e e s t u d a n t e s , ficam e n c a n t a d o s e q u e r e n d o s a b e r m a i s . F a l t a , p o r t a n t o , informação e educação. São necessários m a i s e s t u d o s e e s t u d i o s o s , e m b o r a não f a l t e m i n t e r e s s e e voluntários.

O quê e c o m o e s t u d a r n o s s a Pré-História? C o m o v i m o s n o s capítulos a n t e r i o r e s , é p r e c i s o p e s q u i s a r sítios arqueológicos t a n t o o s ameaçados d e destruição c o m o o u t r o s m a i s b e m p r e s e r v a d o s -q u e p o d e m t r a z e r m u i t a informação se e s t u d a d o s n o c o n t e x t o d e p r o j e t o s d e p e s q u i s a q u e p r o c u r e m r e s p o n d e r a questões i n ­t e r p r e t a t i v a s e l a b o r a d a s e c o m p l e x a s . C o m o se v i v i a n u m s a m ­b a q u i ? C o m o esse t i p o d e sítio se t r a n s f o r m o u c o m o t e m p o ? O q u e c o m i a m seus h a b i t a n t e s ? C o m q u e i d a d e m o r r i a m e e m q u e condições físicas? C o m o se p i n t a v a m as paredes ? C o m q u e figuras e p a r a q u e s e r v i a m ? São a p e n a s a l g u n s e x e m p l o s d o s inú­m e r o s t e m a s a s e r e m t r a t a d o s .

O e s t u d o d a Pré-História d e p e n d e também d e u m a a b o r d a g e m n e c e s s a r i a m e n t e i n t e r d i s c i p l i n a r , p o i s se d e v e c o n h e c e r História, A n t r o p o l o g i a , Linguística, G e o g r a f i a e B i o l o g i a , p a r a c i t a r a p e n a s a l g u m a s d i s c i p l i n a s . O c o n h e c i m e n t o d o s avanços n o s e s t u d o s pré-históricos n o cenário i n t e r n a c i o n a l também é m u i t o i m p o r t a n t e ,

106

p o i s a p e n a s a inserção d o e s t u d i o s o b r a s i l e i r o n a ciência m u n d i a l permitirá q u e conheça r e a l i d a d e s s e m e l h a n t e s e p r o p o s t a s i n t e r p r e ­t a t i v a s q u e serão úteis p a r a o caso b r a s i l e i r o .

P a r a c o n h e c e r m o s a Pré-História, o t t a b a l h o arqueológico é m u i t o i m p o r t a n t e . N a foto: t r a b a l h o d e c a m p o n o Sítio Arqueológico P i r a c a n j u b a . L o c a l i z a d o e m P i t a j u (SP) , e s t e sítio t e s t e m u n h a u m a s s e n t a m e n t o g u a r a n i o c o r r i d o há a p r o x i m a d a m e n t e 300 a n o s . A área e v i d e n c i a d a é u m p i s o d e habitação (núcleo d e s o l o antropogênico), c o m m u i t o s f r a g m e n t o s d e cerâmica e r e s t o s d e f a u n a . F o t o g e n t i l m e n t e f o r n e c i d a p o r José L u i z d e M o r a i s .

E o q u e f a l t a p a r a q u e t u d o i s so aconteça e q u e a Pré-História n o B r a s i l t e n h a a importância q u e m e r e c e ? S e há t a n t o i n t e r e s s e - c o m o há - o q u e n o s f a l t a ? E m última instância, o q u e se p r e c i s a é v a l o r i z a r a d i v e r s i d a d e c u l t u r a l e a importância d e n o s s o pa s sado pré-colonial. O s últimos 5 0 0 a n o s o c u p a m q u a s e t o d a s as páginas d e n o s s o s l i v r o s didáticos, r e l e g a n d o o s m i l h a r e s d e a n o s d a Pré-História a u m a pe­q u e n a introdução, p o r q u e nossas o r i g e n s r e m o t a s são, a i n d a , p o m o c o n s i d e r a d a s . E m b o r a m a i s d e 4 0 milhões d e b r a s i l e i r o s t e n h a m a n tepas sados indígenas, essa herança é m a l c o n h e c i d a e m e s m o re je i­t a d a , p o r ser c o n s i d e r a d a p a r t e d e u m a c u l t u r a i n f e r i o r . N o e n t a n t o , essas populações, e m s u a e n o r m e v a r i e d a d e , construíram soc iedades c o m c u l t u r a s riquíssimas e s e u c o n h e c i m e n t o p e r m i t e q u e e n t e n d a m o s , d e u m a c e r t a m a n e i r a , a nós m e s m o s , p o i s t o d o s s o m o s •.< i . ••

107

Page 53: Pré História do Brasil

h u m a n o s e a d i v e r s i d a d e d e c o m p o r t a m e n t o s , u s o s e c o s t u m e s c o n s ­t i t u e m os m a i o r e s t e s o u r o s d a h u m a n i d a d e .

T a l v e z p o s s a m o s , a s s i m , c o n c l u i r q u e o f u t u r o d a n o s s a Pré-His­tória d e p e n d e d o e n v o l v i m e n t o das c o m u n i d a d e s , das populações, d e t o d o s , n a valorização desse pa s sado c o m o p a r t e d e n o s s a própria v i d a , p o i s s o m o s tão seres h u m a n o s c o m o esses a n t i g o s h a b i t a n t e s d e n o s s a t e t r a . C a d a l e i t o r de s te l i v r o p o d e c o n t r i b u i r p a r a i s so e espe­r a m o s q u e n o s s o v o l u m e t e n h a não só d e s p e r t a d o o i n t e r e s s e , c o m o i n c e n t i v a d o o l e i t o r a t r i l h a r s e u próprio c a m i n h o nessa a v e n t u r a d o c o n h e c i m e n t o .

108

Sugestões d e l e i t u r a e p e s q u i s a

E x i s t e m b o a s o b r a s s o b r e a Pré-História d o B r a s i l . A p r e s e n t a m o s , a s e ­g u i r , sugestões d e l e i t u r a d e a c o r d o c o m o s t e m a s d e s e n v o l v i d o s n o s d i v e r ­s o s capítulos.

A Pré-História e s e u e s t u d o : m e t o d o l o g i a e o b r a s gera i s

B R O T H E R S T O N , G o r d o n . La América Indígena en su Literatura: l o s l i b r o s d e i c u a r t o m u n ­d o . México: F o n d o d e C u l t u r a Económica, 1997.

C H I L D E , V . G . Introdução à Arqueologia. L i s b o a : Europa-América, 1 9 6 1 . D A N I E L , G l y n . Introdução à Pré-História. R i o d e J a n e i r o : J o r g e Z a h a r , 1964. F U N A R I , E . G . N e v e s e I . P o d g o r n y ( o r g s . ) . Anais da I Reunião Internacional de Teoria

Arqueológica na América do Sul. São P a u l o : M A E - U S P / I F C H - U n i c a m p / F a p e s p , 1999.

F U N A R I , P e d r o P a u l o A . Introdução à arqueologia. São P a u l o : A n n a b l u m e , 2 0 0 2 . G A S P A R , M a r i a D u l c e . Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. R i o d e J a n e i r o : J o r g e

Z a h a r , 2000 . M A R T Í N , G a b r i e l a . Pré-História do Nordeste. R e c i f e : E d i t o r a d a U F P E , 1995 . P I N S K Y , J a i m e . As primeiras civilizações. São P a u l o : C o n t e x t o , 2 0 0 1 . P R O U S , André. Arqueologia brasileira. Brasília: E d i t o r a d a U n B , 1992. R O D R I G U E S , A r y o n . Línguas brasileiras. São P a u l o : L o y o l a , 1986. S I L V A , A r a c y L o p e s e G R U P I O N I , Luís D . B e n z i . ( o r g s . ) . A temática indígena na escola. No­

vos subsídios para professores de l°e 2a graus. São P a u l o : M E C / M a r i / U n e s c o , 1995. T E N Ó R I O , M a r i a C r i s t i n a ( o r g . ) . Pré-História da Terra Brasilis. R i o d e J a n e i r o : E d i t o r a d a

U F R J , 1999.

O s p r i m e i r o s h a b i t a n t e s e a c r e s c e n t e d i v e r s i d a d e d a s populações

B E L T R Ã O , M a r i a d a Conceição et alii. " A A n t i g u i d a d e d o h o m e m a m e r i c a n o " . Revis ta do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v o l u m e 148, n° 354-357 , 1987, p p . 178-200.

F A U S T O , C a r l o s . Os índios antes do Brasil. R i o d e J a n e i r o : J o r g e Z a h a r , 2000 . G O M E S , D e n i s e C a v a l c a n t e . Cerâmica Arqueológica d a Amazónia: v a s i l h a s d a Coloçá"

Tapajônica M A E - U S P . São P a u l o , E d u s p / F a p e s p 2002 . G U I D O N , Niède. " A s Ocupações Pré-Históricas d o B r a s i l ( e x c e r u a n d o a A n i a / j > n i . i ) " . In

C U N H A , M . C . d a ( o r g . ) . História dos índios no Brasil. São P a u l o : F a p i s p . S M t /< u d a s L e t r a s , 1992.

A R N O A . K e r n ( o r g . ) . Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. P u n o A I < T , I < - - M . > c a d o A b e r t o , 1 9 9 1 .

109

Page 54: Pré História do Brasil

M C E W A N , C o l i n ; B A R R E T O , C r i s t i a n a ; N E V E S , E d u a r d o ( o r g s . ) . Unknown Amazon. L o n d r e s : B r i t i s h M u s e u m , 2 0 0 1 .

M E G G E R S , B e t t y . América pré-histórica. R i o d e J a n e i r o : P a z e T e r r a , 1979. M E S G R A V I S , L a i m a e P I N S K Y , C a r l a B a s s a n e z i . O Brasil que os europeus encontraram. São

P a u l o : C o n t e x t o , 2000 . N E V E S , W a l t e r A l v e s ( o r g . ) . "Dossiê A n t e s d e C a b r a l " , Revista USP, 44 . São P a u l o : U S P ,

1999-2000. N E V E S , W a l t e r A l v e s ( o t g . ) . "Dossiê s u r g i m e n t o d o h o m e m n a América", Revista USP,

34. São P a u l o : U S P , 1997. R E I S , José A l b e r i o n e d o s . Os buracos do bugre. P o r t o A l e g r e , 2 0 0 1 . P A T T E R S O N , T h o m a s C . Inventing Western Civilization. N o v a Y o r k : M o n t h l y R e v i e w

P r e s s , 1997.

O f u t u r o d a História d o B r a s i l pré-colonial

F U N A R I , P e d r o P a u l o A . e P I N S K Y , J a i m e ( o r g s . ) . Turismo epatrimônio cultural. São P a u l o : C o n t e x t o , 2 0 0 1 .

F U N A R I , P e d r o P a u l o A . " O s d e s a f i o s d a destruição e conservação d o património c u l t u r a l n o B r a s i l " , Trabalhos de Antropologia e Etnologia. P o r t o , v o l u m e 4 1 (1-2), p p . 23-32.

S i t e s

v v v v w . u s p . b r / g e r a l / c u i t u r a / m u s e b l i . h t m l , a p r e s e n t a links p a r a o M u s e u d e A r q u e o l o g i a e E t n o l o g i a ( M A E ) d a U n i v e r s i d a d e d e São P a u l o ( U S P ) e M u s e u P a u l i s t a .

w w w . u o l . c o m . b r / c i e n c i a h o j e , r e p r o d u z t e x t o s d a r e v i s t a Ciência Hoje, órgão d a S o c i e d a d e B r a s i l e i r a p a r a o P r o g r e s s o d a Ciência ( S B P C ) , c o m referências r e g u l a r e s a t e m a s d a Pré-História d o B r a s i l .

h t t p : / / h e . n e t / - a r c h a e o l / , informações s o b r e a " R e v i s t a A m e r i c a n a d e A r q u e o l o g i a " .

Documentários

Um foco na arqueologia, vídeo d a S o c i e d a d e d e A r q u e o l o g i a B r a s i l e i r a , c o o r d e n a d o p o r A r n o A l v a r e z K e r n , 1995, 10 m i n u t o s .

Brasil500 Séculos, vídeo d a S T V - R e d e S e s c / S e n a c d e Televisão, 2000, 150 m i n u t o s .

M u s e u s

M u s e u d e A r q u e o l o g i a e E t n o l o g i a d a U S P , São P a u l o , S P ; M u s e u N a c i o n a l d o R i o d e J a n e i r o , R i o d e J a n e i r o , R J ; M u s e u P a r a n a e n s e Emílio G o e l d i , Belém, P A ; M u s e u d o S a m b a q u i d e J o i n v i l l e , S C .

110

Page 55: Pré História do Brasil

h u m a n o s e a d i v e r s i d a d e d e c o m p o r t a m e n t o s , u s o s e c o s t u m e s c o n s ­t i t u e m o s m a i o r e s t e s o u r o s d a h u m a n i d a d e .

T a l v e z p o s s a m o s , a s s i m , c o n c l u i r q u e o f u t u r o d a n o s s a Pré-His­tória d e p e n d e d o e n v o l v i m e n t o das c o m u n i d a d e s , das populações, d e t o d o s , n a valorização desse pas sado c o m o p a r t e d e n o s s a própria v i d a , p o i s s o m o s tão seres h u m a n o s c o m o esses a n t i g o s h a b i t a n t e s d e n o s s a t e r r a . C a d a l e i t o r de s te l i v r o p o d e c o n t r i b u i r p a r a i s so e espe­r a m o s q u e n o s s o v o l u m e t e n h a não só d e s p e r t a d o o i n t e r e s s e , c o m o i n c e n t i v a d o o l e i t o r a t r i l h a r s e u próprio c a m i n h o nessa a v e n t u r a d o c o n h e c i m e n t o .

108

Sugestões d e l e i t u r a e p e s q u i s a

E x i s t e m boas obras sobre a Pré-História d o Bra s i l . A p r e s e n t a m o s , a se­gu i r , sugestões de l e i t u r a de acordo c o m os t emas desenvolv idos nos d i v e r ­sos capítulos.

A Pré-História e s e u e s t u d o : m e t o d o l o g i a e o b r a s gera i s

B R O T H E R S T O N , G o r d o n . La América Indígena en su Literatura: l o s l i b r o s d e i c u a r t o m u n ­d o . México: F o n d o d e C u l t u r a Económica, 1997.

C H I L D E , V . G . Introdução à Arqueologia. L i s b o a : Europa-América, 1 9 6 1 . D A N I E L , G l y n . Introdução à Pré-História. R i o d e J a n e i r o : J o r g e Z a h a r , 1964. F U N A R I , E . G . N e v e s e I . P o d g o m y ( o r g s . ) . Anais da I Reunião Internacional de Teoria

Arqueológica na América do Sul. São P a u l o : M A E - U S P / l F C H - U n i c a m p / F a p e s p , 1999.

F U N A R I , P e d r o P a u l o A . Introdução à arqueologia. São P a u l o : A n n a b l u m e , 2 0 0 2 . G A S P A R , M a r i a D u l c e . Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. R i o d e J a n e i r o : J o r g e

Z a h a r , 2000 . M A R T Í N , G a b r i e l a . Pré-História do Nordeste. R e c i f e : E d i t o r a d a U F P E , 1995 . P I N S K Y , J a i m e . As primeiras civilizações. São P a u l o : C o n t e x t o , 2 0 0 1 . P R O U S , André. Arqueologia brasileira. Brasília: E d i t o r a d a U n B , 1992. R O D R I G U E S , A r y o n . Línguas brasileiras. São P a u l o : L o y o l a , 1986. S I L V A , A r a c y L o p e s e G R U P I O N I , L u i s D . B e n z i . ( o r g s . ) . A temática indígena na escola. No­

vos subsídios para professores de 1" e 2° graus. São P a u l o : M E C / M a r i / U n e s c o , 1995. T E N Ó R I O , M a r i a C r i s t i n a ( o r g . ) . Pré-História da Terra Brasilis. R i o d e J a n e i r o : E d i t o r a d a

U F R J , 1999.

O s p r i m e i r o s h a b i t a n t e s e a c r e s c e n t e d i v e r s i d a d e das populações

B E L T R Ã O , M a r i a d a Conceição et alii. "A A n t i g u i d a d e d o h o m e m a m e r i c a n o " . Revis ta do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v o l u m e 148, n° 354-357 , 1987, p p . 178-200.

F A U S T O , C a r l o s . Os índios antes do Brasil. R i o d e J a n e i r o : J o r g e Z a h a r , 2000 . G O M E S , D e n i s e C a v a l c a n t e . Cerâmica Arqueológica d a Amazónia: v a s i l h a s d a ( "o lc< , . in

Tapajônica M A E - U S P . São P a u l o , E d u s p / F a p e s p 2002 . G U I D O N , Niède. " A s Ocupações Pré-Históricas d o B r a s i l ( e x c e t u a n d o a Amazónia)". ///

C U N H A , M . C . d a ( o r g . ) . História dos índios no Brasil. São P a u l o : F a p c s p . S M i 7< u d a s L e t r a s , 1992.

A R N O A . K e r n ( o r g . ) . Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. P o r t o A l q - . n ' 1 . 1 c a d o A b e r t o , 1 9 9 1 .

109