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JONAS WILSON PEGORARO Posturas Municipais nas Ilhas Atlânticas do Império Português Açores – séculos XVII e XVIII Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Magnus Roberto de Mello Pereira CURITIBA 2004

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JONAS WILSON PEGORARO

Posturas Municipais nas Ilhas Atlânticas do Império Português Açores – séculos XVII e XVIII

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Magnus Roberto de Mello Pereira

CURITIBA

2004

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JONAS WILSON PEGORARO

Posturas Municipais nas Ilhas Atlânticas do Império Português Açores – séculos XVII e XVIII

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Magnus Roberto de Mello Pereira

CURITIBA

2004

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TERMO DE APROVAÇÃO

JONAS WILSON PEGORARO

Posturas Municipais nas Ilhas Atlânticas do Império Português – Açores – séculos XVII e XVIII

Monografia aprovada como requisito parcial à conclusão do curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Magnus Roberto de Mello Pereira

Curitiba, dezembro de 2004.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, meus pais Rosemari Mendes de Morais Pegoraro e Wilson Pegoraro

que com amor, paciência, apoio, cobrança, incentivo e compreensão conseguiram em sua

história criar este filho que só tem a agradecer. Em especial a minha mãe, que me ensinou lutar

pelos meus sonhos e por amor a vida – jamais lhe esquecerei. A minha irmã Mariangela.

Aos membros do CEDOPE. Faltam-me palavras para descrever os anos que

tenho participado deste Centro de Documentação. Professor Antonio César de Almeida

Santos por abrir as portas desta casa a um bolsista refugiado; Professor Magnus Roberto

de Mello Pereira pelo incentivo e esclarecimentos; Professor Sergio Odilon Nadalin

pelas conversas, espírito histórico empreendedor e organização e em especial a

Professora Maria Luiza Andreazza que ensinou, acrescentou e fortaleceu o ‘proto-

historiador’ que em mim habitava. Obrigado a todos pelo exemplo.

Aos amigos e companheiros desta jornada, dentro e fora das dependências

acadêmicas: Milton Stanczyk Filho, Hilton Costa, César Otavio Cundari da Rocha

Santos, André Castelo Branco Machado, Valesca Xavier Moura Jorge, Luis Otavio da

Costa Linhares, Fernando Marcel Kowalski, André Cavazzani, Rafael “Billy” Galvão,

Bruno de Macedo Zorek, Camila Jansen Santana, Ana Luiza, Cláudio Augusto “Guga”

Rovel, Luiz Rafael Xavier Vicente, Leonardo Marquez, Diosmar de Almeida, Leonardo

Marcos, Raphaell “Ph” Ramos, Rodrigo Rojas Duarte, Ariel Feldman, Ana Emilia,

Sandro Vieira Gomes, Leandro “Madureira”, Rogério “Socaba” Alvarenga, Rafael

Benthien, Natalia de Santanna Guerellus, Marcos Garcez, Helder, Rodrigo Turin, Luiz

Cláudio Werner Jr., Maikon “Magoo” Delgado. Todos vocês marcaram de alguma

forma minha vida e por isso agradeço e muito pelos apoios, perseveranças, conversas,

festas, caronas, exemplos, incentivos, empréstimos...

Aos demais professores: José Roberto Braga Portella por estes passos finais,

Carlos de Medeiros Lima pelas conversas, Luiz Geraldo pela exigência, Judite Trindade

pelas verdades.

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À Claudia Petry por trilhar comigo este caminho de 5 anos de Universidade,

onde passamos juntos e nos formamos juntos, você é meu “porto seguro”. Agradeço o

amor e as horas de paciência dispensadas.

Por fim, agradeço a pessoa que inventou o e-mail, pois sem este artifício esta

monografia nunca se realizaria.....

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`a Rosemari Mendes Morais Pegoraro

Muitas Saudades...

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................08

CAPÍTULO I – Um passo à frente: Portugal e o Oceano..........................................10

1.1 Historiografia da expansão.....................................................................10

1.2 Uma visão sobre os descobrimentos.......................................................14

CAPÍTULO II – As Ilhas Atlânticas e o Laboratório Insular.....................................19

2.1 As Ilhas Atlânticas..................................................................................19

2.1.1 Madeira....................................................................................................21

2.1.2 Cabo Verde..............................................................................................22

2.1.3 São Tomé.................................................................................................23

2.1.4 Açores......................................................................................................24

2.2 Laboratório Atlântico..............................................................................25

CAPÍTULO III – Açores...............................................................................................29

3.1 Câmaras Municipais...............................................................................29

3.2 Posturas Açorianas.................................................................................34

CONCLUSÃO................................................................................................................39

ANEXOS.........................................................................................................................41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS........................................................................42

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INTRODUÇÃO Poucas são as obras historiográficas que chegam a nosso alcance sobre as ilhas

atlânticas e reflitam a importância destes espaços no estabelecimento do Império

Ultramarino Português.

Ao destacar a contrição dos arquipélagos atlânticos para a formação de um

universo ultramarino, Fernand Braudel, na obra O Mediterrâneo e o Mundo na Época

de Felipe II impulsiona estudos históricos voltados aos espaços insulares e tendo o

oceano atlântico como palco.

Provavelmente seguindo os passos de Braudel, Pierre Chaunu, em seu trabalho

intitulado Sevilha e o Atlântico (1504 – 1650), traz reflexões acerca dos espanhóis e seu

contato com o oceano, assim como Frédéric Mauro o faz para as navegações

portuguesas na obra Portugal, Brasil e o Atlântico.

Luiz Felipe Alencastro também evidencia a importância das ilhas atlânticas

como a primeira sociedade colonial ultramarina, compreendida como o primeiro

“sistema atlântico” – formada através das relações ibero-africanas nas Canárias,

Madeira, Açores, Cabo Verde, e São Tomé.

A colonização de tais ilhas proporcionou aos portugueses a realização de uma

experiência-modelo levando a adaptação prévia aos trópicos e ao escravismo em larga

escala. Experiências que seriam, mais tarde, desenvolvidas na América e África.

Contudo, estudos de fôlego e específicos sobre cada região insular ficam, por

vezes, trancados em redutos acadêmicos, não proporcionando, com isso, o diálogo e a

comparação de técnicas e estruturas colonizadoras para os espaços que vieram a formar

o Império Português.1

Em coletânea de publicações sobre 1492, o editorial Mapfre, proporcionou a

ruptura deste vazio historiográfico levando a outros pontos acadêmicos a interface de

pensamentos sobre a expansão européia, a exploração do mundo atlântico e a relação de

Portugal com as ilhas do atlântico, porém tal iniciativa é a única que mereça destaque.

No que consiste ao pensamento sobre o Império Ultramarino Português, este

trabalho monográfico procurou estabelecer, ao longo de seus capítulos iniciais, uma

composição de como se estabeleceu a expansão portuguesa e como os colonizadores

lusitanos formaram e consolidaram o universo insular através do valor econômico.

1 Por mais que tais estruturas sejam, basicamente, as mesmas no caso da colonização portuguesa no universo atlântico.

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No entanto, o real objeto desta pesquisa, vem a ser como as vilas do arquipélago

açoriano respondiam às necessidades do “justo e conveniente”2 no cotidiano colonial,

mais especificamente durante os séculos XVII e XVIII. Ou seja, analisou-se, como as

esferas urbanas do arquipélago produziam e regiam suas legislações localistas – as

posturas municipais.

Contrapondo, por vezes, a legislação portuguesa central – o Código Filipino – as

posturas municipais inserem-se na discussão de direito local. E graças ao teor localista

destas posturas, é possível identificar as mudanças e permanências do cotidiano insular.

Entretanto, estas ricas fontes primárias são pouco aproveitadas pelos historiadores.

As posturas municipais seriam, a grosso modo, normas que regiam uma

localidade. Possuíam força de lei e, no interior de sua jurisdição, as posturas municipais

padronizavam os costumes que seriam considerados o “bem-viver” em sociedade, bem

como previam, para o que não se “enquadrasse”, punições geralmente pecuniárias.

Os reflexos das mudanças sociais, políticas e econômicas das vilas e cidades,

estão presentes nas posturas municipais. Assim, coloca-se em cheque a possibilidade da

ação da legislação central sobre as localidades, já que tais registros poderiam conter os

mais variados tópicos e alteravam-se ao sabor das necessidades específicas de seu

tempo.

Enfim, percebeu-se que, na sociedade açoriana, estas posturas buscavam

padronizar o ambiente urbano das cidades e vilas coloniais. Neste prisma, a questão do

“bem viver” em sociedade, nos levou a um paralelo com os estudos desenvolvidos por

Norbert Elias. No momento em que, este autor, evidencia as mudanças que formaram a

sociedade de corte na modernidade.

2 VIEIRA, Alberto. As Posturas Municipais da Madeira e Açores dos Séculos XV a XVII (análise comparada e sistematização do direito local). Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol XLIX, 1991, p. 11.

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AS armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;

(Os Lusíadas, Canto I, Luis de Camões). Capítulo I – Um passo à frente: Portugal e o Oceano. 1.1 Historiografia da expansão.

A produção historiográfica lusitana tradicional esteve, por anos, associada a um

discurso nacionalista dos feitos de seus antepassados. Isto se deve talvez, pelo forte

valor que as escritas de Luis de Camões exerceram sobre a população portuguesa e a

exaltação de seus feitos no Atlântico. Porém, ao longo do século XX, tal vínculo

nacionalista vai se transformando no interior da historiografia portuguesa, já que alguns

autores referem-se à expansão marítima como decorrência do renascimento comercial

europeu medieval.

A eclosão de novos pensamentos históricos nas primeiras décadas do século XX

contribuiu para o trabalho desenvolvido por Antônio Sérgio sobre a expansão marítima

portuguesa. Na obra Breve interpretação da história de Portugal, Antônio Sérgio

defende “reformas das mentalidades” na cultura portuguesa, além de mostrar como a

revolução de 1383-1385 teve características burguesas preparando os portugueses para

sua “missão”3 – os descobrimentos.

Sérgio vai sugerir que a expansão ultramarina se motivou no intuito de resolver

o problema do abastecimento alimentício português e restabelecer o comércio com o

Oriente4, com isso estrutura suas análises no pensamento historiográfico que ligava o

renascimento comercial às expansões. Deste modo, a conquista de Ceuta, em 1415,

3 SÉRGIO, Antônio. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa : Sá da Costa, 1988. p. 33. 4 Restabelecer o contato comercial com o Oriente, já que as antigas rotas terrestres foram “fechadas” pelo avanço do Império Otomano no oriente próximo.

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serviu para o abastecimento de trigo, necessário para a sobrevivência da população

portuguesa. Contudo, o objetivo do Infante Dom Henrique era chegar à Índia.5

Assim, Antônio Sérgio exalta os feitos portugueses e afirma que os

descobrimentos foram um plano visionário e cauteloso. Para o autor:

... os descobrimentos do século XV foram uma façanha de gente metódica, dotada de clara inteligência política, de visão lúcida, muito precisa, dos escopos práticos a que tendia, e do estudo minucioso dos meios adequados a tais escopos: em suma, um visto plano de conjunto, capacidades raras de organização: nada que se assemelhe ao aventurismo inconsciente com que a pintaram ...6

Jaime Cortesão na obra História da expansão portuguesa, será mais um autor

que, assim como Sérgio, concebe a expansão portuguesa como fruto do renascimento

comercial. Obra de estilo narrativo e descritivo destaca a figura do infante Dom

Henrique como grande articulador da expansão portuguesa. Contudo, o autor não se

prende somente a tal agente da expansão, vai observar outros aspectos que são

igualmente importantes para o desenrolar do processo dos descobrimentos.

Cortesão agrega o caráter religioso ao econômico, além de entender também que

as rotas comerciais mediterrâneas vêm a ter sua relevância na expansão, por colocarem

Portugal como ponto de conexão de centros comerciais europeus. O autor procura

analisar valores políticos que também possuem importância, como a Revolução de Avis,

que seria uma das formadoras do nacionalismo português.7 Ceuta, para ele, também,

assim como para Sérgio, será o marco primordial do plano português já traçado para

chegar as Índias.

Os dois autores reconhecem, o avanço náutico portugueses, como um grande

feito para a época, e contribuem para a historiografia por romperem com o prisma

nacionalista que pairava na literatura a respeito do “heroísmo” lusitano.

Ao apresentarem a conquista de Ceuta como marco inicial da expansão8, os

autores tratam a expansão como um plano “finalista”, isto é, o objetivo de Portugal seria

a chegada às Índias. Para tal audacioso plano, Portugal utiliza-se do cientificismo da

época, para promover o périplo da costa africana a caminho das Índias.

5 Tal afirmação “teleológica” gerou na historiografia mais recente uma postura de refutar a obra de Sérgio, que apesar de clássica sobre a expansão lusitana se tornou “pobre” em sua abordagem. Ver THOMAZ, Luis Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa : Difel, 1994. 6 Ibid., p. 44. 7 CORTESÃO, Jaime. História da expansão portuguesa. Lisboa : Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993. p. 20-28. 8 Fator comum na historiografia sobre a expansão marítima portuguesa é balizar a conquista de Ceuta como sendo o marco inicial das viagens lusitanas pelo atlântico.

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Outro historiador que voltou seus estudos à expansão foi Vitorino Magalhães

Godinho. Em suas obras, ligadas profundamente ao movimento dos Annales, analisa

como as rotas marítimas e a importância mercantil vão configurar a expansão marítima.

Godinho expõe uma gama de abordagens que fazem menção ao “conflito”

existente entre ocidente–oriente, fortificando as motivações religiosas e políticas, tais

como a cruzada contra os mouros e a consolidação da política do Estado português,

além da busca de valores econômicos (ouro) para a solidificação do império ultramarino

português.

Historiador também de destaque sobre tal temática é Charles Boxer. No livro O

Império Marítimo Português, este levanta possibilidades para o pioneirismo lusitano nas

navegações do século XV com cunho expansionista.

Boxer vem a apresentar, de forma tácita, como diversos fatores auxiliaram na

composição de poderio ultramarino português. Sua posição geográfica, a tolerância

racial, as camadas sociais que compunham a sociedade portuguesa, a urbanização, o

comércio, enfim, transita por diversas áreas, não restringindo seu pensamento a respeito

do pioneirismo português. Ele argumenta como o geográfico (ponto estratégico); o

econômico (Lisboa e o Porto centros de comércio marítimo, o ouro da África); o

religioso (busca de Preste João, um impulso pela cruzada contra os muçulmanos) e o

político (constituição do Estado e ação estatal na figura do infante Dom Henrique) vão

ser fontes propulsoras para os primeiros passos de Portugal no oceano Atlântico.

Sensível ao enfoque que daria a expansão do Império e a dificuldade de isolar as

razões para o feito português, Boxer os apresenta em conjunto:

... a ‘Era dos Descobrimentos’ sem dúvida surgiram de uma mistura de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos, é claro que nem sempre dosados nas mesmas proporções (...) Correndo o risco de uma simplificação exagerada pode-se, talvez, dizer que os quatro motivos principais que inspiraram os dirigentes portugueses (reis, príncipes, nobres ou comerciantes) foram, em ordem cronológica, mas sobrepostos e em diversos graus: (1) o fervor empenhado na cruzada contra os muçulmanos; (2) o desejo de se apoderar do ouro da Guiné; (3) a procura por Preste João; (4) a busca de especiarias orientais.9

Boxer, nesse trabalho de fôlego, apresenta uma noção abrangente de como o

Império Ultramarino vai se configurando desde a tomada de Ceuta, em 1415, e as

explorações através do Atlântico nos anos subseqüentes. O autor assimila muitas teses

de Godinho, porém faz reflexões mais profundas, por exemplo, no que consiste a

9 BOXER, Charles. O Império Marítimo Português (1415-1825. São Paulo : Companhia das Letras, 2002. p. 33-34.

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tolerância racial dos portugueses. Um tanto reticente faz menção a Gilberto Freyre e que

a tolerância seria devido à presença muçulmana na Península Ibérica.

O autor aglutina hipóteses para as motivações da expansão, ressalta o ímpeto das

cruzadas contra os muçulmanos e a persistência do Infante Dom Henrique, porém não

esquece do impulso econômico para o início da expansão. Boxer transita em uma linha

cronológica para a consolidação e retração do Império, suas diversas motivações e as

causas para sua retração oriental.

Advinda de uma produção historiográfica mais recente, a obra De Ceuta a Timor

de Luís Filipe Thomaz vem contra as posições de Antônio Sérgio, procurando

consolidar, aos olhos da mais nova historiografia, antigos problemas que cercam a

expansão marítima.

Esse historiador português aborda por um viés político os avanços marítimos,

colocando em cheque a afirmação da expansão ser resultado do renascimento comercial.

No início de seu livro produz uma classificação de acordo com os fatos levantados

acerca da expansão marítima. Para Thomaz, o legado árabe, o desenvolvimento do

comércio e da marinha e o encontro de técnicas de navegação e construção naval são

“causas instrumentais relevantes, mas não suficientes para a produção do evento”.10 A

posição geográfica portuguesa, fatores políticos estruturais, tais como a centralização do

poder régio e a nacionalidade são determinadas por ele como: “condições prévias, mas

não determinantes”.11 Outros fatores, como encontrar o reino de Preste João ou as minas

de ouro, são considerados pelo autor como anacrônicos.

Segundo Thomaz, alguns autores consideram que o impulso para o início das

navegações seria seu objetivo de chegar as Índias, assim como na tese de Sérgio.

Contudo, Thomaz considera tal tese como teleológica e que esse objetivo só teria fôlego

anos depois.12

Thomaz problematiza também a conquista de Ceuta como marco expansionista,

advertindo para os vários propósitos da conquista da cidade, tais como: uma base de

ataque a Granada e ponto estratégico para o controle do comércio no Mediterrâneo.

10 THOMAZ, Luis Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa : Difel, 1994. p. 6. 11 Ibid., p. 7. 12 Idib, p. 43.

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Portanto, através destes autores percebemos que a expansão marítima pertence a

uma dinâmica ampla, que vem responder, ressaltando a sensibilidade de Boxer, a uma

conjuntura “de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos”.13

1.2 Uma visão sobre os descobrimentos

Se tomarmos “partido” sobre os motivos da expansão portuguesa, voltar-nos-

íamos ao pensamento de Boxer, ou seja, a interligação de diversos fatores que acabaram

por produzir o movimento expansionista. Com isso, primeiramente, desviamo-nos, com

o auxilio de Luis Krus, a estruturar uma análise sobre a mentalidade e a religiosidade

cristã do século XII em Portugal:

... histórias do prior do mosteiro régio de Coimbra refletiam como o Portugal primordial, o reino nascido da expansão rural e senhorial, se aproximava da forma como a Cristandade continental, guerreira e monástica, tendia a conceber as suas distantes fronteiras marítimas. Tratava-se, sobretudo, de imagens nascidas e difundidas durante a Alta Idade Média, quando o litoral europeu, tanto o mediterrâneo como o atlântico fora progressivamente invadido e ocupado por povos não cristãos, primeiro os muçulmanos e depois os escandinavos. Sendo o mar a sua estrada e, em certa medida, o seu modo de vida, ele passou a comungar da destruição e da impiedade que lhes eram atribuídas.14

Assim, as “mentalidades” dos portugueses “rurais e senhoriais” dos séculos

precedentes ao descobrimento refletiam o pensamento clerical a respeito do mar. Porém,

Krus adverte que tal pensamento não é generalizado por todas as regiões de Portugal,

diz ele:

Mas se a biografia conimbriense de S. Teotônio reflete como nos finais dos anos 60 do século XII os meios político-letrados próximos da realeza portuguesa se sintonizavam com uma visão negativa e sobressaltada do mar, suas gentes, fainas e atividades, essa representação mental não seria tão marcante entre a comunidade estabelecida no litoral do Entre Minho e Tejo, identificando este último rio, nessa época, a retaguarda da fronteira lusa com o Islão hispânico. Com efeito, na maioria das povoações onde o trabalho do mar complementava o labor dos agros e o pastoreio, o oceano ultrapassava o simples registro de símbolo de um mundo caótico e maléfico. Para os camponeses-pescadores das aldeias e vilas do litoral atlântico, o mar era uma realidade bem presente e integrada nos quotidianos sociais. Definia um meio de subsistência explorado pelo pesca e pela extração do sal. Correspondia a um elemento natural cuja periculosidade e imprevista mutabilidade não impediam a navegação costeira e as práticas de cabotagem. Era mesmo, sobretudo nas costas da cidade de Lisboa, concebido como um desafio à aventura capaz de trazer fama, conhecimento, proveito e riqueza.15

13 BOXER, Charles. Op. Cit., p. 33. 14 KRUS, Luis. O Imaginário Português e os Medos do Mar. In: NOVAES, Adauto (org.). A Descoberta do homem e do mundo. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. p. 96. 15 Ibid., p. 96-97.

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Portanto, Lisboa vêm a se beneficiar com as navegações atlânticas. Navegações

que:

[ofereceram] à cidade prosperidade e riqueza, e como o oceano representava algo bem diverso do que se fazia crer na nortenha vida de S. Teotônio. Assim, ao contrário de um antimundo caótico, imprevisível e ímpio, o Atlântico era susceptível de ser pensado como realidade capaz de ser conhecido e navegável, percorrida e rentabilizada pelas comunidades litorais que com ele podiam contar (...) Assim, será a partir da segunda metade do século XIII, quando Portugal rural e guerreiro começa a ocupar o atual Sul do país, o Alentejo e Algarve, passando a dominar as povoações portuárias do litoral meridional atlântico e mediterrâneo, que as novas representações do mar se tornarão mais significativas, impondo-se à medida que a realeza fazia das cidades, do comércio e da moeda as bases da afirmação de um poder centralizado e centralizador, acima dos poderes regionais detidos pela nobreza e pelo clero do Norte senhorial16.

Pois bem, o autor vem a promover junto às mentalidades um cunho de

rentabilidade nas navegações, deste modo, o prisma de Krus, assim como demais

autores, vêm a fortalecer a leitura econômica dos motivos para a expansão lusitana.

Outro fator dos descobrimentos renascentistas se diz respeito à contribuição

“tecnológica” para possibilitar tal feito. A convergência de culturas e o avanço náutico

tornam Portugal em um “centro de excelência” nas práticas navais. Porém, para tornar-

se tal centro os lusitanos necessitavam de rentabilidade para colocar seus navios “nas

águas atlânticas”, com isso, mais uma vez, o ponto de convergência para os demais

agentes da expansão é o valor econômico.

Assim, durante o século XV, Portugal se encontrava sem saídas mediante ao

fechamento das portas comerciais ao Oriente e necessitando de contato com o rico

comércio nas Índias. Portugal revelar-se-á audaz e capaz de dominar “o medo sobre o

mar”17, e pela prematura consolidação de seu Estado18, parte na tentativa de achar um

caminho para as Índias através do périplo africano.

Considerado o tradicional marco do início da expansão lusa, a conquista de

Ceuta, em 1415, o Atlântico se abre para o europeu. Paul Teyssier adverte assim a

importância da conquista:

A 21 de agosto de 1415, Dom João I, rei de Portugal, à frente de uma poderosa esquadra, apodera-se de Ceuta, cidade marroquina situada na margem sul do estreito de Gilbraltar. Essa conquista dá início, na história portuguesa, ao período das navegações e dos descobrimentos. Atravessando o estreito para tomar Ceuta, esse monarca começa uma expansão que, em pouco

16 Idem, p. 98. 17 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo : Companhia das Letras, 1989. A respeito de viagens anteriores as européias no atlântico Ver CASTILLO, Guillermo Céspedes del. La Exploración Del Atlántico. Madrid : Editorial Mapfre, 1991. 18 Em comparação aos outros paises europeus.

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mais de um século, levará navegadores, comerciantes, administradores e missionários portugueses através de imensas extensões do globo.19

Manuel Múrias também faz a observação que Ceuta era vantajosa aos

portugueses, afirma ele que:

Não foi difícil ver que a conquista de Ceuta só poderia trazer vantagem para toda a Península. A cidade africana fazia frente a Gibraltar e a posse de ambas as posições dava aos mouros verdadeiramente a fiscalização do Estreito. Daqui vinha do resto a importância visível da cidade marroquina; mas sabia-se também que Ceuta era a testa de uma das grandes estradas do comércio com o Norte da África e com o deserto, até ao Golfo da Guiné.20

Contudo, Guillermo Castillo analisa a conquista com sendo um fracasso, prisma

este desenvolvido pelo fato de que:

La conquista de Ceuta constituyó sin duda un éxito militar, pero también un fracaso político y económico. La ciudad, asediada por los musulmanes, se convirtió en un pozo sin fondo que se tragó vidas y dinero en cantidades desproporcionadas a las ventajas obtenidas. Esfuerzos y gastos continuarían volcándose en la región con verdadera tenacidad por parte del monarca y de la nobleza lusitana; algunos se destinaron a organizar asentamientos y colonizaciones, pero en su mayoría se invirtieron en expediciones militares de conquista o en golpes de mano dirigidos a obtener botín.21

Voltado-nos ao mar, gradualmente os portugueses desvendam os mistérios do

oceano atlântico, os ventos, as correntes marítimas e o abandono do imaginário místico

nas águas atlânticas.22 Auxiliado por seu processo histórico particular e dos “fatores

religiosos, econômicos, estratégicos e políticos”, Portugal sai na frente para a conquista

das rotas comerciais atlânticas.23

Portugal, impulsionado pelo infante Dom Henrique (1394-1460), o navegador24,

vai aglutinar em seus esforços no aperfeiçoamento naval. O desenvolvimento náutico

19 TEYSSIER, Paul. O Século Glorioso. In CHANDEIGNE, Michel (org.). Lisboa Ultramarina: 1415 – 1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992, p. 13. 20 MÚRIAS, Manuel. História Breve da Colonização Portuguesa. Lisboa : Editorial Verbo, 1961, p. 26. 21 CASTILLO, Guillermo Céspedes del. Op. Cit.,. p. 131. 22 Junto aos lusos, outras civilizações se projetavam ao mar no mesmo período, como os chineses e árabes que fizeram explorações pelo Índico, Mar da Arábia, Golfo Pérsico e Mar Vermelho. 23 A única saída para os portugueses, na busca por especiarias, seria o oceano Atlântico, já que, como dito acima, a expansão muçulmana – Império Otomano – fechara as rotas comerciais terrestres pelos Bálcãs e a navegação no Mediterrâneo tornou-se impraticável. 24 “A glória de ter preparado esse empreendimento [as expansões marítimas] foi, durante longo tempo, associada quase exclusivamente à figura do Infante D. Henrique. Ao lado de outros dois filhos do primeiro monarca da casa de Avis, D. Duarte e D. Pedro, teria ele participado das tentativas iniciais para a expansão oceânica de Portugal: é significativo que já por ocasião da captura de Ceuta, fora o seu primeiro estandarte real a penetrar no recinto da praça. É para melhor dirigir esse movimento marítimo que o Infante se fixará na ponta de Sagres, no Algarve. Para esse lugar dirigem-se, de vários recantos da

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foi uma das peças fundamentais para a conquista lusa sobre o Atlântico, todavia esse

aprimoramento contou com o auxilio “na arte de navegar” de diversas nacionalidades.25

... los genoveses ya habían logrado diversificar sus negocios extendiendo sus actividades por todo el Mediterráneo occidental, a veces en colaboración con marinos y mercadores de las Coronas de Aragón o de Francia, aunque generalmente en dura competencia con ellos. Un buen número de genoveses se asentaron en ciudades portuarias de Aragón, Castilla del Sur y Portugal como armadores, navegantes, mercaderes o agentes financieros. Entroncaron con familias locales que no tardaron en asimilarlos, pero conservaron sus relaciones con casas comerciales o bancarias de Génova. Así fue como las técnicas mercantiles, navales y financieras de Italia se difundieron por el litoral de la Península, cuyos marinos y comerciantes las adaptarían después para la exploración del Atlántico y el comercio con el Nuevo Mundo.26

Independentemente da controvérsia história que cerca a Escola de Sagres os

portugueses vieram a fortificar sua “arte de navegar”.

Com isso, os portugueses irão, durante o século XV, na medida em que descem a

costa africana, descobrir as ilhas da Madeira (1418), Açores (1431) e de Cabo Verde

(1444), além de transpor o Cabo Bojador (1434) o Cabo da Boa Esperança (1488) e

chegar às Índias (1498). Muitas controvérsias estão presentes quanto às datas dos

descobrimentos, principalmente sobre as Ilhas Atlânticas, por isso muitos autores

consideram que as ilhas não foram descobertas, mas sim redescobertas.27

Para executar o ambicioso plano de chegar as Índias, os portugueses

necessitaram de, como dito acima, aperfeiçoamento naval e de instrumentos. Assim,

mapas, caravelas, astrolábio, quadrante, bússola foram de fundamental importância para

o plano expansionista português.

Depois de se desenvolver graças aos italianos, a cartografia virou a ciência portuguesa por excelência, assim chamada pelo visconde de Santarém. Produziu seus primeiros atlas de oito mapas no século XVI. Outra segurança: as diferentes caravelas que substituíram aquelas barcas com as quais Gil Eanes dobrara o cabo Bojador em 1434. Dispondo de uma superfície de velas duas vezes maior do que a usada até então, as caravelas podiam navegar à bolina, isto é, manobrar constantemente o velame para avançar em ziguezague, contra o vento se necessário.

Europa, homens doutos e práticos na arte da navegação. E ainda que não chegasse propriamente a fundar ali uma escola náutica, segundo crença longamente acredita, foi eminentíssimo o seu papel no desenvolvimento das explorações marítimas”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Do descobrimento à expansão territorial. Tomo I 1º vol. 3 ed. São Paul : Difusão Européia do Livro, 1968. p. 28. 25 “Como é sabido, os investimentos privados efetuados nos primeiros tempos das Descobertas não eram exclusivamente portuguesas. Excetuando-se certos monopólios, os estrangeiros católicos, residentes ou não em Portugal, obtinham privilégios análogos aos dos nacionais para transacionar com as colônias”. ALENCASTRO, Luis Felipe. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo : Companhia das Letras, 2000. p. 22. 26 CASTILLO, Guillermo Céspedes del. Op. Cit., p. 119. 27 Ver. CHANDEIGNE, Michel (org.). Lisboa Ultramarina: 1415 – 1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992.

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Com o surgimento dos galeões, mais espaçosos e adaptados à guerra no mar, Portugal tornou-se o centro europeu da construção naval.28

Ao obter avanços nas conquistas marítimas, Portugal solicitou junto ao papado o

monopólio sobre os descobrimentos, principalmente após transpor o Cabo Bojador em

1434. “Texto fundador do direito colonial lusitano, a bula Romanis pontifex (1455)

previa a excomunhão dos que furassem o monopólio ultramarino outorgado pelo papa

Nicolau V ao rei d. Afonso V e ao infante d. Henrique. Vez por outra esse recurso

repressivo era reativado de encomenda”.29

Enfim, entendemos que os portugueses, que solicitaram e ganharam o

monopólio ultramarino, tinham vários motivos para a expansão náutica que se

desenvolveu no século XV, porém, mesmo que em diferentes níveis, o valor econômico

sempre se fez presente para o impulso aos descobrimentos.

28 FERRO, Marc. História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX. São Paulo : Companhia das Letras, 1996. p. 44. 29 ALENCASTRO, Luis Felipe. Op. Cit.,. p. 23.

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“Las islas del Atlántico funcionaron como Auténticos laboratorios de experiencias humanas

que promovieron la adaptación de hombres y cultivos a nuevos ambientes y

al establecimiento de un vivo diálogo entre las gentes de Europa y África...”

Francisco Tenreiro, 1961. Capítulo II – As Ilhas Atlânticas e o Laboratório Insular.

2.1 As Ilhas Atlânticas

A adaptação aos trópicos, a prática escravista em larga escala e o

estabelecimento do comércio marítimo atlântico são características que os espaços

insulares atlânticos promovem aos lusitanos. Portanto, há a realização de um

“laboratório”, um projeto-piloto, para as ações que vieram, mais tarde, a ser adotadas

em África e América.

O sistemático processo de expansão e conquista do Atlântico acarretou, aos

portugueses, a tarefa de explorar o oceano. Portanto, Portugal depara-se com os diversos

arquipélagos localizados no Atlântico oriental.

Ao discutir e afirmar que não há consenso na historiografia sobre os

descobrimentos insulares, Alberto Vieira30 insere os arquipélagos no interior dos

descobrimentos do século XV, excluindo as ilhas Canárias que foram foco de embates

entre portugueses e castillanos ainda no século XIV.

Vieira vê neste embate um processo de transformação européia, onde o local de

ação, tanto comercial quanto militar das nações européias, passa do Mediterrâneo ao

Atlântico. Deste modo, o autor corrobora aos apontamentos de Fernand Braudel sobre

esta migração de atividades. Marc Ferro solidifica tal análise: “Conforme mostrou

Fernand Braudel, por volta de 1580, as atividades essenciais do comércio e da política

passaram do Mediterrâneo para o Atlântico”31.

Com tais apontamentos nos deparamos com a discussão do capítulo anterior, isto

é, na medida em que as ilhas são descobertas e colonizadas, passam a inserir-se, através

do viés econômico, na dinâmica do império português em ascensão. Portanto, o valor

econômico será o agente que solidificou as expansões européias. 30 VIEIRA, Alberto. Portugal y las islas del Atlántico. Madri : Editorial Mapfre, 1992. 31 FERRO, Marc. Op. Cit,. p. 22.

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Assim, as ilhas de colonização portuguesa que vêm a compor este capítulo estão

inseridas na dinâmica do império voltada à captação de recursos. Portanto, ao descobrir

as ilhas de Madeira (1418), Açores (1431), Cabo Verde (1444) e de São Tomé (1470),

Portugal utiliza-as para servirem como afirmação das navegações lusas no oceano

Atlântico, e promovem os primeiros passos da colonização portuguesa no espaço

insular, os “laboratórios” atlânticos.

Claro está, para historiografia, o valor estratégico que as ilhas atlânticas

fornecem. Além de estarem localizadas as portas do “novo mundo”; são portos de

abastecimento e apoio para a colonização, o comércio e exploração da costa africana. Se

voltarmo-nos ao conflito entre portugueses e castillanos pelo controle das Canárias

observamos tais valores estratégicos dos arquipélagos.

Las Canarias, que en un primer momento eran imprescindibles para el apoyo a la navegación y comercio en el litoral africano, se perdieron a favor de Madeira o de las factorías recién creadas en la costa africana, como fue el caso de Arguim (1455). Además de esto, los avances en la técnica náutica y construcción naval permitían una mayor autonomía de las embarcaciones dejando de ser necesaria esta escala.(...) La proximidad de Madeira al archipiélago canario en consonancia con el rápido surgir de población y la valorización económica del suelo madeirense orientaron las atenciones de los primeros colonos hacia una activa intervención en la disputa al lado del infante [Dom Henrique].32

Portugal, através de acordos diplomáticos, deixa de lutar pelas Canárias – ponto

estratégico de colonização da África – pois descobre (ou redescobre) o arquipélago da

Madeira. Vemos, com tal afirmação de Vieira, o significado que a inserção das ilhas

atlânticas tem para a solidificação do oceano Atlântico como rota comercial.

O caminho que aqui percorremos vem da necessidade de suprir e identificar o

valor de tais espaços para a consolidação dos descobrimentos, além de colocar um

contraponto com o nosso foco de estudo – os Açores – e as demais ilhas atlânticas

colonizadas pelos lusitanos. Ressaltamos, contudo, que ficamos aquém do forte debate

historiográfico sobre os descobridores das ilhas. Procuramos sim, retratar as ilhas

inseridas na dinâmica ultramarina de exploração e tais espaços exercendo a importante

atividade no “laboratório” para a ação portuguesa na colonização nos continentes

americano e africano.

32 VIEIRA, Alberto. Op. Cit,. p. 39.

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2.1.1 Madeira

Localizada entre as ilhas Canárias e Portugal, o arquipélago da Madeira seria o

pioneiro na ocupação efetiva européia no Atlântico, mediante a utilização de capitanias

hereditárias, servindo de modelo para a colonização das outras regiões, tornando-se,

assim como Ceuta, um marco referencial no processo de expansão marítima do século

XV. Ainda que não fosse o foco central para as ações lusas, ocupou um lugar de

destaque para a solidificação da expansão.

La colonización se inició a partir de 1420 y los primeros colonos tuvieron a su disposición numerosas condiciones propicias para el éxito de la iniciativa. Era una isla que estaba abandonada, abierta a cualquier iniciativa de poblamiento, rica en maderas y agua y con buenas ensenadas para su abordaje (...) Madeira merece una referencia especial, dado que sirvió de modelo para las demás actividades de ocupación llevadas a cabo por portugueses y castellanos en el espacio atlántico.33

Na questão do descobrimento do arquipélago, segundo Alberto Vieira, o

imbróglio historiográfico constrói uma margem para quatro versões que serviram de

base à historiografia do século XIX e XX. Pontualmente, Vieira as coloca desta

maneira:

1. La relación de Francisco Alcoforado atribuye el descubrimiento de la islã al inglés Roberto Machim y el reconocimiento y ocupación a los marineros del infante [Dom Henrique]. 2. La relación de Diogo Gomes considera el hecho como iniciativa Del piloto portugués Afonso Fernandes, manteniendo el poblamiento como una tarea henriquina. 3. Gomes Eanes de Zurara, en la crónica, atribuye a João Gonçalves Zarco y Tritao Vas la triple misión de hallazgo, reconocimiento y ocupación. 4. Cadamosto prefiere dejar vaga la referencia a la autoría, siendo concreto sólo en cuanto a los pobladores.34

Assim, ainda absorvendo os apontamentos de Vieira, o autor conclui que é

plausível o descobrimento anterior ao clamor dos portugueses que, na afirmação de

Vieira, são ‘redescobridores’ e povoadores dos espaços.

Contudo, a ilha da Madeira consolida-se nos intuitos do império como um porto

que servira para a exploração da costa africana e mais tarde como rota para o “novo

mundo”. Abastecendo as embarcações e “de acuerdo com Zurara, Madeira emerge, a

partir de 1445, como el principal puerto de escala para las navegaciones a lo largo da

33 Ibid., p. 53. 34 Ibid., p. 41.

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costa occidental africana”35. Esta função, de porto as navegações, perdurou até Cabo

Verde conquistar o ponto de abastecimento. Porém, além desta função para a expansão

do império, Madeira forneceu produtos agrícolas, construindo em seu território um

espaço para o desenvolvimento econômico dos povoadores. Os colonos da ilha também

vieram a irradiar, em um segundo momento, povoamentos em outras ilhas do império

como Cabo Verde e Açores.

2.1.2 Cabo Verde

Inserido juntamente com São Tomé em um “segundo momento” da expansão

pelo atlântico36, o arquipélago de Cabo Verde localiza-se na zona sub-saheliana,

formando dois agrupamentos segundo a sua posição em relação aos ventos dominantes

do nordeste: As ilhas de Barlavento: Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São

Nicolau, Sal e Boavista, e os ilhéus Branco e Raso. As ilhas de Sotavento: Maio,

Santiago, Fogo e Brava, e os ilhéus Grande, Luís Carneiro e Cima.

El descubrimiento portugués de las islas de Cabo Verde y São Tomé tendrá lugar mucho más tarde, en un momento en que el poblamiento de Madeira ya en una fase avanzada. Las islas del primer archipiélago son visitadas por los marineros del infante don Henrique, todavía en vida de éste, siendo el resultado del avance de los viajes hacia el sur. El reconocimiento de Cabo Verde (1444) y después de la costa hasta Sierra Leona (1460) conduciría al encuentro de las islas próximas a la costa, que asumieron el nombre del cabo en cuestión.37

Segundo Jaime Cortesão, ilhas como a Sal e Boavista, as mais orientais do

Arquipélago, já eram conhecidas. Contudo, delega-se a Antonio de Noli38 e Diogo

Gomes, navegador português, a ‘descoberta’ e reconhecimento das ilhas.

O tipo inicial de povoamento que veio a ser adotado, à semelhança das outras

ilhas atlânticas, Açores e Madeira, foi um povoamento europeu que falhou. No entanto,

ao receber as ilhas em doação, D. Fernando recebeu, simultaneamente, o direito de as

povoar. Para recompensar os ‘descobridores’ do arquipélago, a ilha de Santiago, a

primeira a ser povoada, foi partilhada em duas capitanias: uma para Antonio de Noli,

outra para Diogo Afonso. A eles, foi-lhes atribuído o cargo de capitães-donatários,

conquistando assim, privilégios econômicos para a região a ser colonizada e extensos 35 Ibid., p. 42. 36 Com o progresso português na exploração ao longo da costa africana e a colonização de Madeira e Açores em estágios avançados 37 VIEIRA, Alberto. Op. Cit., p. 48. 38 Genovês ao serviço do Infante D. Henrique.

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poderes de jurisdição, embora limitados pelo Tribunal do Reino em relação às causas

penais.

Embora tal colonização indireta e menos custosa aos cofres régios, fora, a

princípio, satisfatórios nos demais arquipélagos, Cabo Verde sofreu verdadeiros

entraves à fixação de colonos. Assim, para promover a imigração européia e poder

recorrer à mão-de-obra escrava, é concedido o direito perpétuo de fazer o comércio e o

tráfico de escravos em todas as regiões da então Costa da Guiné, excetuando a feitoria

de Arguim, cuja exploração estava reservada à Coroa.

Por tal medida, mercadores reinóis e estrangeiros fixaram-se à volta do porto da

Ribeira Grande, dando início à formação de uma próspera comunidade de moradores e

vizinhos. Contudo, foram os originários da Madeira que forneceram o maior número de

indivíduos no processo de formação do povo caboverdiano.

Pela sua posição privilegiada, a meio caminho entre os três continentes e para

mais, em frente da dita Costa dos Escravos, Santiago tornou-se ‘centro’ da navegação

transatlântica: ponto de escala e de aprovisionamento dos navios, ponte de penetração

portuguesa no continente, entreposto de escravos posteriormente exportados para a

Europa - particularmente para Portugal e Espanha - e para as Américas. Durante os dois

primeiros séculos de colonização, os escravos representaram, seguramente, a

mercadoria mais importante das exportações caboverdianas39.

Baseadas na mão-de-obra escrava foram organizadas, essencialmente em

Santiago, as grandes plantações agrícolas de cana de açúcar e algodão.

2.1.3 São Tomé

Desconhece-se, assim como os demais arquipélagos, a data exata que os

portugueses descobriram São Tomé e Príncipe. A versão corrente é que teria sido por

João de Santarém e Pêro Escobar, em 1470, a encargo do mercador Fernão Gomes,

arrendatário dos direitos reais do exclusivo do comércio da costa da Guiné. A primeira

ilha a ser descoberta teria sido São Tomé (1470) e no ano seguinte a do Príncipe.

Sua ocupação, a exemplo das demais, não foi imediata, só ocorrendo em 1493 a

fixação dos primeiros colonos, tendo este dedicado ao cultivo da cana de açúcar

39 Nos primeiros tempos, os escravos eram trazidos de toda a dita Costa. Mas, com a entrada em cena de outras potências coloniais (França, Holanda, Inglaterra), a reserva de escravos da Coroa ficou reduzida aos limites da Guiné Bissau.

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importada da Madeira. No século XVI desenvolvem-se grandes plantações de açúcar,

para as quais são importados escravos do continente africano.

Tais ilhas assumem uma enorme importância estratégica para os portugueses

como ponto de escala nas rotas de navegação, mas também para o próspero comércio de

escravos do Congo e Angola. A sociedade escravista conheceu em São Tomé uma etapa

decisiva de adaptação no ultramar, constituindo-se como espaço de redirecionadora de

escravos. São Tomé tornou-se o grande entreposto ao comércio de escravos apanhados

em toda a região do Golfo da Guiné e exportados para o Brasil.

Essas ilhas, ao assumirem grande importância para os portugueses no tráfico do

comércio escravo, toma de Cabo Verde o posto de ponto de escala nas rotas de

navegação. Com isso, A Madeira, Cabo Verde e depois S. Tomé abrem espaço para o

progressivo conhecimento do mundo tropical e ao uso de mão de obra escrava em larga

escala.

2.1.4 Açores

Composto de nove ilhas: São Miguel, Pico, Terceira, Santa Maria, São Jorge,

Graciosa, Faial, Flores e Corvo, os Açores se inserem no contexto do império luso que

se estrutura a partir do século XV.

O arquipélago açoriano localiza-se a meio caminho entre a Europa e a América,

fazendo com que se transformasse num ponto de apoio para a colonização portuguesa

no atlântico. Graças à sua excelente posição estratégica foi uma importante base para a

navegação atlântica, os navios que vinham da África, da Índia, do Brasil e da América

Central passam pelo arquipélago, para se reabastecerem e devido aos ventos favoráveis.

Porém, ao contrário do arquipélago da Madeira, os Açores resultaram à coroa

portuguesa um maior trabalho para a povoação. O movimento de colonização, por mais

fluida que seja sua data, inicia-se Frei Gonçalves Velho, o mesmo que sob ordens do

Infante Dom Henrique, avistou e reconheceu as ilhas pela primeira vez, em 1431.

O fato é que a colonização do arquipélago não se consolida nos primeiros anos.

Somente em 1474, com o capitão-donatário Rui Gonçalves da Câmara, que redutos

populacionais se estabeleceram na ilha de São Miguel.

Isto porque, por mais indireta que seja a colonização40, esta não se consolidava

devido à presença de atividade vulcânica e abalos sísmicos que auxiliam para afugentar

40 Já que os primeiros esforços de colonização foram através das capitanias hereditárias.

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prováveis colonos. Assim, muitos dos que para lá seguiam, e que consolidariam o

povoamento das ilhas, eram estrangeiros e/ou provenientes da ilha da Madeira, já

habituados com este tipo de terreno.

Como mencionado, do mesmo modo que Madeira, a iniciativa de colonização

dos Açores aconteceu através das capitanias hereditárias. A política de “desterro”

também foi utilizada para a povoação das ilhas.

La política moderna de destierro como forma de incentivo a la población de los lugares desérticos no era novedad, pues venía siendo utilizada para la colonización del litoral del Algarve y zonas fronterizas de Castilla. La corona, de acuerdo con su interés, ordenaba a los corregidores el destino de los desterrados. Después del Algarve, vinieron Ceuta y las islas atlánticas. Él primer sentenciado a destierro hacia Madeira del que quedó noticia fue João Anes, que huirá a Ceuta y en 1441, pasados once años, solicitará el perdón real. Para los Azores el envío de los deportados pasó a ser hecho por petición expresa del infante don Henrique en el período de la regencia de don Pedro.41

Os estrangeiros são, desde o inicio, agentes importantes de povoamento dos

Açores, imprescindíveis para o povoamento das ilhas de Faial, Terceira, Pico e Flores.

Na figura de Jose Huerter, capitão da ilha do Pico e Faial, os flamencos contribuíram

para impulsionar o povoamento das ilhas centrais do arquipélago. Podemos, além

destes, destacar a importação de escravos para a agricultura do açúcar.

“É no reinado de D. Manuel que termina o sistema dos donatárias, passando o

Estado a exercer domínio direto sobre as ilhas. Pela excelente posição geográfica de que

os Açores desfrutam, tiveram um papel histórico de grande relevo, não só nacional

como até internacional”.42

2.2 Laboratório Atlântico

A adaptação prévia aos trópicos e ao escravismo em larga escala nos espaços

insulares contribuíram para experiências de técnicas portuguesas e luso-africanas de

colonização, que mais tarde seriam aplicadas na América portuguesa e no continente

africano. Portanto, as ilhas serviram, no que se refere ao tipo de colonização, de

laboratório para as ações portuguesas.

Em um primeiro momento, as capitanias hereditárias foram um exemplo do

início de colonização. Em um segundo, à formação de redutos populacionais e a

41 VIEIRA, Alberto. Op. Cit,. p. 73. 42 COELHO, José Augusto B. Os Açores. Lisboa : Colecção Educativa, 1974. p. 25.

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elevação de tais redutos a vilas e cidades, promovem o resgate da Coroa da

‘distribuição’ da justiça através das câmaras municipais.

Sobre o primeiro momento Arno Wehling nos expõe que:

as condições concretas da colonização das ilhas atlânticas determinaram a delegação do poder real a senhores, no que já foi visto como um ‘novo vigor’ do regime senhorial e uma fraqueza da administração real. O processo iniciou-se quando o rei D. Duarte, em 1443, doou vitaliciamente ao irmão, infante D. Henrique, as ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas, e este, por sua vez, sub-rogou com novas doações (capitanias) a senhores (donatários) parte desse patrimônio. Tanto o infante, senhor das ilhas, como os donatários tinham, por delegação real, ampla jurisdição civil e criminal, exceto, nesta, as penas de morte e mutilação. A única restrição expressa ao poder judicial dos donatários era o direito de correição atribuído ao infante, que acabou absorvido pelo poder real.43 Portanto, através dos forais e cartas de doação, as capitanias foram abrigo da

justiça concedida aos donatários, que por sua vez, no interior de sua jurisdição,

possuíam amplos poderes na esfera civil e criminal, criando, com isso, uma colonização

indireta.

Nos Açores, nosso objeto de estudo, esta colonização foi mais do que indireta.

Dom Henrique, irmão do rei, grande senhor ducal da casa de Beja, grão mestre da

ordem de cristo, promoveu no arquipélago uma concreta colonização senhorial

medieval em estreito sentido. Entretanto, a justiça, por estar sob o poder direto de um

donatário senhorial, não favorecia a atração de colonos para as áreas, pois estes

acabavam por não ter a acesso às justiças próprias.

Se estendermos nossas observações como uma “via de mão dupla”, podemos

retratar as capitanias hereditárias por um caminho inverso, ou seja, utilizando os estudos

que aqui se voltam a esta questão para tocarmos as ilhas atlânticas, já que a

historiografia que aqui chega sobre a história das ilhas é escassa.

Virginia Maria de Assis44, ao analisar os capitães donatários de Pernambuco, nos

ressalta que tal agente colonial era “útil” à coroa, pois na rede clientelista de formação

colonial as trocas entre donatário e coroa, em um primeiro momento, eram benéficas

aos dois lados. A historiadora mostra ainda, em outro artigo45, a permanência de

43 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro : Renovar, 2004. p 34-35. 44 ASSIS, Virginia Maria de. O “útil” dos Capitães Donatários de Pernambuco. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, n. 22, p. 67-74, 2002. 45 ASSIS, Virginia Maria de. As Capitanias Hereditárias ecos de um Sistema Senhorial (uma contribuição ao debate historiográfico).Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, n. 21, p. 65-72, 2001.

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características do Senhorio feudal tardio português que perpassa as Capitanias

Hereditárias.

Enfim, Guillermo del Castillo sintetiza desta forma a colonização das ilhas atlânticas:

El inicio del poblamiento de los archipiélagos atlánticos es tan incierto como las fechas de su descubrimiento, (...) Dado que las islas se incorporaron a la Corona portuguesa, que no disponía de suficientes recursos económicos para costear el poblamiento, éste fue impulsado y organizado por el príncipe don Enrique mediante concesiones de tierras en señorío a todo individuo digno de confianza que se comprometiera a jurar fidelidad al rey de Portugal, llevar pobladores y emprender la colonización a su costa. Las islas se dividieron en distritos llamados capitanías o donatarias, y se otorgaron con carácter hereditario. Como compensación a sus esfuerzos y gastos, el capitão o donatario recibe de la Corona poderes delegados para administrar justicia en su señorío, recaudar tributos, nombrar representantes de su autoridad, mantener el orden en el territorio y defenderlo, pudiendo exigir para ello servicios militares a los pobladores. Éstos reciben como estímulo ciertos privilegios, tales como exenciones de impuestos, derechos exclusivos de comercio en ciertas rutas o áreas geográficas, etc. Todas las estipulaciones se consignan en un documento llamado, al igual que en la Península, foral o fuero. El sistema señorial así definido, de corte completamente medieval, supone por parte de la Corona la delegación completa de funciones económicas y colonizadoras, pero no completa – y revocable en ciertos supuestos – de jurisdicción y autoridad judicial y gubernativa. Tales delegaciones de poderes y servicios eran ya tradicionales en la Península, e inevitables hasta que los reyes pudieron disponer de una burocracia propia y suficientemente numerosa. El régimen de donatarias se completaba con autorizaciones a comerciantes lusitanos – y también extranjeros – a emprender toda suerte de operaciones mercantiles en el Atlántico y la costa africana, que después de la muerte de don Enrique llegarán a la concesión de monopolios comerciales de carácter temporal. Tales licencias tenían como contrapartida el derecho de la Corona a percibir una parte de los beneficios, o bien un tanto alzado por el tiempo que dura el privilegio. En ocasiones, el mercader agraciado asume la obligación de llevar a cabo, a su costa, descubrimientos o exploraciones en beneficio del Estado, que será titular de la soberanía sobre las tierras descubiertas. Por supuesto que tales licencias se otorgaban respetando los privilegios comerciales previamente concedidos a los colonos isleños. De esto modo, en las empresas de poblamiento la Corona adquiría territorios sin gasto alguno, y en las comerciales se aseguraba ingresos, bien en forma de impuestos, de participación de beneficios o de derechos de arriendo. El sistema aplicado por don Enrique se generalizó después de su muerte. En 1466, las islas de Cabo Verde obtuvieron del rey su foral correspondiente y la isla de Santiago iba a quedar dividida en dos capitanías con objeto de fomentar el poblamiento que se inició de inmediato. São Tomé y las demás islas del golfo de Guinea seguirían el mismo camino pocos años después de su descubrimiento, aproximadamente en 1472-1474.46

Contudo, é no segundo momento, com a retomada dos poderes delegados aos

donatários pelas câmaras municipais que esta pesquisa se enfoca.

Por mais que a justiça fosse,

desde pelo menos o século XIII, o mais importante atributo da realeza (...) A consolidação do poder absoluto das monarquias da Europa ocidental teve o controle da justiça pelo soberano como aspecto fundamental. A criação de um funcionalismo mais ou menos especializado nas diferentes funções judiciais e a existência de uma legislação quem gradativamente, aumentava as atribuições reais em detrimento dos costumes e de outros direitos locais foram fatores que contribuíram para definir ema esfera de atuação da monarquia.47

46 CASTILLO, Guillermo Céspedes del. Op. Cit., 191-192. 47 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Op. cit,. p. 28-29.

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As câmaras municipais exerceram uma grande participação na elaboração dos

direitos localistas até pelo menos o século XIX.

Capítulo III – Açores. 3.1 Câmaras Municipais

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A historiografia desenvolvida ao longo do século XX veio a observar e inserir,

na discussão histórica, o valor e a pertinência que estudos voltados à administração

colonial podem acrescentar na compreensão da complexa estrutura social configurada

em terras ultramarinas do Império Português.

São estudos que acabaram desenvolvendo um determinado “consenso

historiográfico” sobre a temática da estrutura administrativa, judiciária e política

aplicada à colônia, principalmente ao corroborar a idéia de uma transposição das

estruturas político-administrativas metropolitanas para as colônias.

São importantes nesta linha obras como as de Antonio Manuel Hespanha sobre a

consolidação das instituições portuguesas48; Graça Salgado, que reconstrói a malha

administrativa colonial, observando, principalmente na Brasil, como o corpo burocrático

foi formado na colônia49; José Damião Rodrigues, que analisa a constituição e a

consolidação do poder municipal em Ponta Delgada, qual grupo – oligarquia dirigente –

e como se relacionam no interior do espaço urbano50; Nulo Gonçalo Monteiro, que

levanta apontamentos de “circularidade” para a comunicação entre instituições de poder

no Antigo Regime português51; Magnus Roberto de Mello Pereira, cujos estudos

procuram preencher os vazios historiográficos sobre a cidade de origem portuguesa,

alicerçadas no período colonial52; Antonio César de Almeida Santos, que observa as

construções dos espaços administrativos e a composição de seus quadros53; Maria

48 HESPANHA, Antonio Manuel. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime. In: _________. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 49 SALGADO, G. (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1985. 50 RODRIGUES, José Damião. Poder Municipal e Oligarquias Urbanas. Ponta Delgada no Século XVII. Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994. 51 Nuno Gonçalo. Os conselhos e as Comunidades. In: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. Quarto Volume. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa : Estampa. 1998. p. 269-295. 52 PEREIRA, Magnus Roberto de M. Semeando iras rumo ao progresso : ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829-1889. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996. _________. Cortesia, Civilidade, Urbanidade: conversando com Norbert Elias sobre a conformação do espaço e das sociabilidades na cidade medieval portuguesa. História: Questões & Debates, Curitiba, PR : Editora da UFPR, v. 16, n. 30, jan./jun. 1999, p. 111-146. PEREIRA, Magnus R. M. de; SANTOS, Antonio C. de A. O poder local e a cidade : a Câmara Municipal de Curitiba, séculos XVII a XX. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. _________. Códigos de Posturas Municipais. In: PEREIRA, M. R. de M. (org.). Posturas municipais Paraná, 1829 a 1895. Curitiba : Aos Quatro Ventos, 2003. ____________. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. In: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (org.). Provimentos do ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá (1721). Monumenta, inverno 2000, Curitiba, vol. 3, nº 10 : Aos Quatro Ventos, 2001. 53 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (org.). Provimentos do ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá (1721). Monumenta, inverno 2000, Curitiba, vol. 3, nº 10 : Aos Quatro Ventos, 2001.

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Fernanda Baptista Bicalho, autora que vem analisa a dinâmica das câmaras com o

império português54; Alberto Vieira, autor que observa a inserção das ilhas atlânticas e a

dinâmica municipal das vilas que configuram tais espaços.

Enfim, são inúmeros os estudos que têm observado o lado administrativo e/ou

jurídico do Estado português e sua extensão para a colônia. Antonio Manuel Hespanha

atenta para o fato da importância dos ofícios de justiça que estavam à disposição das

elites, não somente pelos rendimentos que eram recebidos, mas pela centralidade desses

ofícios num ambiente político-cultural. Ambiente onde o Império, centrado e dirigido

unilateralmente pela metrópole, parece ser insustentável. Nesse sentido Hespanha

considera que:

Os documentos escritos eram decisivos para certificar matérias decisivas, desde o estatuto pessoal aos direitos e deveres patrimoniais. As cartas régias de doação (v.g., de capitanias) ou de foral, as concessões de sesmaria, a constituição e tombo dos morgados, as vendas e partilhas de propriedades, os requerimentos de graças régias, a concessão de mercês, autorizações diversas (desde a de desmembrar morgados até a de exercer ofícios civis), processos e decisões judiciais, tudo isto devia constar de documento escrito, arquivado em cartórios que se tornavam os repositórios da memória jurídica, social e política. Tudo aquilo que importava nesta sociedade tinha de deixar traços aí. Em contrapartida, a preservação, extravio, manipulação ou falsificação de documentos tinha um enorme significado político. Nesse contexto, pode-se imaginar a amplitude das lutas para o controle dos arquivos e dos cargos da justiça, bem como os investimentos que os poderosos estariam interessados em fazer em sua compra ou arrendamento, quer para desempenho próprio, quer para beneficiar apaniguados. De fato, parece que muitas compras se destinavam justamente à remuneração de favores ou a atos de proteção; com que, além do mais, se recebia em troca a garantia de que os papéis, cômodos ou incômodos, estavam em boas mãos

55.

Por outro lado, a historiografia brasileira que tem privilegiado a temática da

estrutura jurídico-administrativa transposta para a colônia americana56, se irradia dos

estudos de Arno e Maria José Wehling. Encontram-se, nesses autores, as principais

vertentes metodológicas para os estudos sobre direito e justiça colonial57.

SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; SANTOS, Rosângela Maria Ferreira (orgs.). Eleições da Câmara Municipal de Curitiba (1748 a 1827). Curitiba : Aos Quatro Ventos, 2003. 54 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As camaras e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2001. 55 HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2001. 56 Neste caso coloca-se a perspectiva de “via de mão-dupla”, pois as ilhas eram os “laboratórios atlânticos”. 57 Esses Autores, juntamente com Graça Salgado e Stuart Schwartz, basearam seus estudos e influíram no entendimento de que a formação do aparelho burocrático na colônia se deu ao redor da ordem jurídica.

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Arno e Maria José Wehling estabelecem uma classificação levando em

consideração as nuanças jurídicas58, no intuito de facilitar o entendimento sobre a

justiça colonial e seus agentes. Mas, sobretudo, ressaltam a existência de outras forças

que reafirmaram a estrutura jurídica na modernidade. Tal “reforço afirmativo jurídico”

partiu, mais efetivamente, do “despotismo esclarecido”, tornando-se um “esforço

administrativo e legislativo a favor da centralização”59. Contudo, a justiça colonial

portuguesa, na classificação de Arno e Maria José Wehling, compreendeu a justiça real

diretamente exercida e a justiça concedida60.

No primeiro momento, a justiça concedida pelos forais ou cartas de doações

coloca um amplo poder nas mãos dos donatários e nos ouvidores nomeados por aqueles.

Em outro momento, ocorrido no setecentos, consolida-se à justiça real diretamente

exercida. “Essa justiça real de caráter ordinário tinha funções muito mais amplas do que

as judiciais. (...) para além delas [das judiciais], funções de governo e funções

administrativas, correspondendo ao modelo concentrado dos cargos públicos definidos

na tipologia weberiana: a um cargo correspondiam múltiplas funções61.” Ao lado do

caráter ordinário da justiça, estabelecia-se também um caráter especializado, qual seja, o

da aplicação da justiça propriamente dita.

A partir destes autores, podemos entender que o as câmaras estariam inseridas

no segundo momento, abarcando diversas funções administrativas e judiciais. Desse

modo, a Coroa tinha por objetivo, no setecentos, viabilizar uma política centralizadora e

“civilizacional”. Entretanto,

O lugar das câmaras na administração local parece ser, até ao fim do antigo regime político, a contrapartida do absolutismo que o caracteriza no topo. A desaparição das cortes impede talvez que se preste a atenção que merece a esse vigor relativo das autoridades locais. Mas não deixa de ser verdade que nos escalões inferiores da administração o absolutismo perde uma grande parte do seu sentido, por não dispor aí dos meios materiais para se exercer

62.

Se voltarmos um pouco no tempo, ao longo do século XV, traços jurídico-

administrativos foram transmitidos à colônia através dos donatários, com vistas a levar a

58 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Op. Cit., 2004. p. 36-48. 59 Ibid., p. 37. 60 Idem. 61 Ibid., p. 38. 62 SILBERT, Albert Apud MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os conselhos e as Comunidades. In: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. Quarto Volume. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa : Estampa. 1998. p. 269.

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justiça/civilização63 às possessões ultramarinas. Assim, um incipiente aparelho

burocrático já vinha surgindo além das porções territoriais de Portugal.

A reforma do antigo Código Manuelino português64 gerou uma compilação

legislativa bastante completa, porém mais simples e atualizada: as Ordenações Filipinas,

promulgadas em 160365. De tal modo que, mesmo com a posterior restauração

portuguesa e a ascensão da dinastia de Bragança, em 1640, o código filipino continuou a

ser usado como “espinha dorsal” do direito luso.

Tamanha extensão territorial necessitou de ferramentas para que o “processo

civilizador” se consolidasse. A máquina jurídico-administrativa foi reestruturada e um

corpo burocrático especializado formado.

En realidad las instituciones insulares fueron resultado Del transplante de las estructuras institucionales peninsulares y de las innovaciones generadas por el nuevo medio. Fue a partir de la primera e incipiente forma de estructura social iniciada en Madeira como ésta se desarrolló y fundamentó. Al contrario de lo que se pueda imaginar, nada de esto fue predeterminado, todo emergió de acuerdo con las necesidades del momento.66

Ocorreu, portanto, uma gradativa retomada dos poderes “legítimos” ao rei, o

qual se utiliza o “mais importante atributo da realeza”67 – a justiça. Com isso, a realeza,

através de seu funcionalismo especializado, vai inserir-se nos espaços de sociabilidades

antes permeados por poderes localistas. Esta ação teve por finalidade o exercício de um

controle mais efetivo sobre a população que constituía o Império Ultramarino. Assim, os poderes jurídicos e administrativos são atrelados a burocracia estatal

que buscava recuperar suas prerrogativas na colônia, redistribuiu seu poder pela

estrutura do aparelho administrativo e reforçando os laços sociais68.

A realeza portuguesa, no intuito de exercer um maior controle social

monístico69, vai, através de um corpo burocrático especializado, se afirmar na colônia.

63 Considera-se no processo civilizacional o papel da Igreja. 64 “(...) oportunidade em que os Habsburgos procuraram demonstrar aos portugueses o seu apreço pelas tradições lusitanas.” Cf. DICIONÁRIO DO BRASIL COLONIAL (1500-1808). Op. Cit. p. 436. 65 Compilação de leis que regeria, somente, as possessões portuguesas e suas extensões coloniais. Assim, não sendo estabelecida para todo o Império Espanhol. 66 VIEIRA, Alberto. Op. Cit,. p. 206. 67 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Op. cit,. p. 28. 68 Ver SALGADO, Graça (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira. HESPANHA, Antonio Manuel. Op. Cit., 1984. FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Porto Alegre : Editora Globo, 1958. SCHWARTZ, Stuart. Op. Cit. WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Op. Cit., 2004. 69 Isto é, a Coroa unificando o antigo conjunto de poderes jurídico-administrativos existentes na colônia, remodelando as sociabilidades coloniais.

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Contudo, “as cidades têm privilégios e liberdades e são senhoras da sua ordem

interior e, dado importante, os seus governos não são impostos a partir do exterior70”.

Nesta linha de autonomia das vilas e cidades que as posturas municipais vão se inserir.

A normatividade que constitui a ordem social tem dupla origem: por um lado, a regulamentação formal que provém da autoridade reconhecida publicamente como governo; por outro, as práticas de convivência que, ou podem ser moldadas e respeitarem a regulamentação formal (a lei), ou podem adaptá-la a condições possíveis de efetividade, ou podem desconhece-la e ignora-la. Assim, percebendo a dinâmica de constituição e funcionamento da ordem social, pode-se concluir que as leis e diretivas emanadas da autoridade política cumprem papel que não pode ser ignorado ou minimizado. O arcabouço jurídico da ordem social decorre da normatividade política, de tal modo que a ‘desobediência civil’ ou a ‘frouxidão do governo’, por exemplo, só podem ser identificadas por referencia às leis e diretivas da administração pública. O que é normatizado por lei, que é o dictum do Estado, varia historicamente. O universo das relações sociais regulamentadas pelo poder político constitui o espaço público da convivência. Nesse caso, o governo constituído como poder de controle social torna-se responsável pela efetivação da lei e da vigilância de seu cumprimento. Assim sendo, institui-se o coletivo como referencia para o comportamento e transações diversas entre indivíduos, passando para segundo plano o interesse e preferência de cada um, se formulados sem referencia ao contexto normatizado em que serão buscados. É nessa perspectiva que se coloca a reflexão sobre o papel que representa a formação jurídica de uma formação social no processo de reconhecimento e realização de direitos de indivíduos e estratos sociais. Parte-se aqui do pressuposto de que os direitos individuais e coletivos só existem de fato como normas formais estruturadoras da convivência social. Portanto, expressam-se como leis ou diretivas que servem à autoridade pública como referencia para administrar o coletivo e julgar pendências que surjam entre os governos.71

Deste modo, para as ilhas atlânticas, “ la afirmación de la estructura de poder

municipal fue una de las respuestas más adecuadas a la omnipresencia del capitán

[donatario]. Pero esta comunión de intereses no siempre prosperó junto al señorío y,

después, a la corona72”. Assim, os conflitos entre donatários e os poderes municipais

foram claros nas localidades açorianas, sendo exemplos a vila Franca do Campo e Ponta

Delgada ambas na ilha de São Miguel.

Como se pode ver em anexo a passagem do direito de justiça, que antes estavam

em poder dos donatários, passam para as câmaras e os capitães. Contudo, as mudanças

não foram tão profundas assim, pois, ao considerar os poderes localistas, os antigos

donatários mantiveram seus prestígios nas regiões insulares e influências sobre as

câmaras municipais, quando não participavam propriamente destes redutos jurídico-

administrativos.

70 RODRIGUES, José Damião. Poder Municipal e Oligarquias Urbanas. Ponta Delgada no Século XVII. Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994. p. 23. 71 CUNHA, Paola Andrezza Bessa; SILVA, Vera Alice Cardoso. A Estruturação Jurídica da Sociedade Colonial Brasileira: Direitos de Indivíduos e Grupos Regulamentados nos Instrumentos Normativos do Estado Portuguës. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, n. 21, p. 65-72, 2001. 72 VIEIRA, Alberto. Op. Cit., p. 209.

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En todas las islas la política de creación de nuevos municipios obedeció a determinados principios: primero se estableció para cada capitanía un municipio que después se subdividió, de acuerdo con el progreso de las localidades emergentes del aislamiento y de la capacidad reivindicativa de los municipios. El poder municipal adquirió plena pujanza sólo en la primera mitad del siglo XVI. Sólo entonces le fue concedida mayor legitimidad gubernativa. Data también de este siglo la subdivisión de las capitanías en más de un municipio. (...) en la islã de São Miguel, um poço mayor que Madeira, el primitivo município de Vila Franca do Campo dio lugar a otros cinco: Ribeira Grande (1507), Nordeste (1514), Água de Pau (1515), Lagoa (1522) y Ponta Delgada (1546).73

Portanto, com as criações das diversas vilas açorianas, a elaboração e

promulgação de suas posturas começam. Porém, ressaltamos novamente que indiferente

de terem surgido de um conglomerado maior, as vilas eram autônomas ente si.

3.2 Posturas Açorianas.

As posturas municipais enquadram-se na tradição legislativa portuguesa,

inserindo-se no “campo quase imutável, da administração local, que se evidencia

especialmente nas medidas de controle do ambiente e atividades urbanas adotadas pelas

câmaras municipais74”.

Magnus Roberto Pereira denota em artigo que dos muitos vazios e

generalizações com que a historiografia trata sobre as cidades portuguesas, as posturas

municipais, seriam apenas mais um. “Tais registros, que assinalam a passagem do

direito oral ao escrito, são fragmentos remanescentes do direito consuetudinário, em

uma época em que se recorria a ele para dirimir as demandas entre os moradores das

cidades75”. O autor, ao trabalhar com posturas para a Curitiba colonial, retira tal objeto

de estudo do foco comum de generalizações e da “simples existência de um código

cheio de minúcias é prova de uma suposta modernidade burguesa76”.

Antonio César Santos e Rosangela Maria Santos demonstram suas preocupações

sobre a documentação das câmaras municipais nas primeiras linhas de artigo sobre as

eleições no Brasil colonial. “A documentação produzida pelas câmaras municipais

brasileiras durante o período colonial ainda é, por muitos, considerada como sendo um

73 Ibid., p. 219. 74 PEREIRA, M. R. de M.; SANTOS, A. C. de A. Op. Cit., 2003, p. 4. 75 Idem. 76 Ibid., p. 3.

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mero reflexo da máquina administrativa do estado português, registrando apenas atos

rotineiros, de pouco interesse para a historia77”.

Pois bem, com as posturas açorianas notamos bem estes “atos rotineiros” e o

colocamos à luz da história. Observando, primeiramente, as posturas municipais no

interior do tempo histórico de longa duração.

Como elucida Magnus Pereira, as posturas já vêm de longa data. Era obrigatório

em meado do século XV, desde as Ordenações Afonsinas, existir nas câmaras

municipais um “livro específico para o registro das posturas78”. Pereira ainda corrobora

com os demais autores no que consiste na autonomia das cidades para suas legislações

locais sem perder de foco a longa duração das posturas. Diz ele:

Mantiveram-se [as posturas], até o século XVIII, como espaço de manifestação da autonomia municipal e do pacto com o rei. Em princípio, elas não podiam ser alteradas por ordem de nenhuma autoridade judiciária ou administrativa do reino. Corregedores e ouvidores não podiam criar ou alterar posturas; suas competências resumiam-se em verificar o cumprimento das mesmas e em ordenas a sua atualização. Nenhuma das instancias ou tribunais intermediários do reino tinham alçada em processos que envolvessem o descumprimento deste tipo de legislação. Ultrapassado o âmbito das câmaras, o foro exclusivo de recursos contra as posturas era o próprio rei.79

Com tais palavras, Pereira demonstra a importância de tal legislação. Códigos

que demonstram o cotidiano colonial e normaliza o “bem viver” em sociedade e

reservados a específica localidade em que a câmara municipal estende jurisdição.

Ao depararmos com a questão normativa urbana das posturas, lembramos do

celebre estudo de Norbert Elias, que ao tratar da formação da corte na modernidade

utiliza os códigos de etiqueta para localizar um “processo civilizador”. O Controle

promulgado por terceiros transformando-se em autocontrole.

O processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito especifica. Mas, evidentemente, pessoas isoladas no passado não planejaram essa mudança, essa ‘civilização’, pretendendo efetiva-la gradualmente através de medidas conscientes, ‘racionais’, deliberadas. Claro que ‘civilização’ não é, nem o é a racionalização, um produto da ‘ratio’ humana ou o resultado de um planejamento calculado a longo prazo. (...) Na verdade, nada na história indica que essa mudança tenha sido realizada ‘racionalmente’, através de qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou de grupos. A coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem. (...)

77 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; SANTOS, Rosângela Maria Ferreira (orgs.). Op. Cit., 2003. p. 1. 78 PEREIRA, M. R. de M.; SANTOS, A. C. de A. Op. Cit., 2003, p. 5. 79 Idem.

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Ainda assim, embora não fosse planejada e intencional, essa transformação não constitui uma mera seqüência de mudanças caóticas e não-estruturadas

80.

Voltando-nos a nossa fontes, as posturas açorianas, percebemos, em tais

códigos, questões das mais variadas. Assim, como em outras regiões do Império, as

posturas estavam permeadas de direito localista. Os agentes de tal direito, racional ou

irracionalmente, procuravam não ferir a legislação de outra jurisdição. Tal situação

podemos analisar no extrato de fonte que segue.

Que todas as couzas comestivas que entrarem nesta Ilha, digo, jurisdiçam se não poderam vender ((/)) vender sem licença expecial dos officiais da Câmara para asim se ivitarem os levantamentos e excessos dos preços; com penna de quatro mil reis para a Câmara.

81

Portanto, como em outras localidades, a Vila de Madalena, na ilha do Pico,

utilizanda sua autonomia municipal, reservava as posturas um cunho local, sem estender

sua legislação a outros pontos.

Também de fácil percepção é a permanência em alguns assuntos, juntamente

com aspectos de uma possível “circularidade” no interior do espaço insular e da urbe.

Como podemos notar, no extrato de fonte a seguir, tempos e espaços diferentes para

uma mesma postura.

“Que toda a pessoa que for achada em vinha, pomar, ou horta para tomar alguma coisa, será

condenada em quinhentos reis, para o que bastará uma testemunha e juramento de seu dono,

pagos da cadeia82

”.

“4ª,, Postura Acerca dos que entram em vinhas, terras ortas ou pumares tapadas contra vontade de seus donos ou sam achados com lenha ou furtos Acordam que nenhuma pesoa em nenhum tempo do anno entre em vinhas terras pumares ou ortas tapadas nem atravese ou fasa atalhos por ellas de penem com alimarias nem as destape nem leve o que nellas estiver sem consentimento de seus donos com pena de mil reis para obras destte Conseilho e donos das propriedades demandando esta penna em termo de trinta dias para cuja condenasam e prova bastara so o juramento do dono da propriedade, a que satisfaram tambem ((/)) tambem a perda que se lhes fizer,,______________________,,Item se alguem for achado com lenhas furttas ou outras novidades sem mostrar onde se lhe deram pagara para o Conseilho e obras delle quinhentos reis e outo dias de cadeia onde os podera levar quem os achar e sem a dita satisfasam nam seram solttos sem pagarem a dita pena e comprirem o ditto tempo de prizam e na ditta penna emcorrera

80 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1994. p. 193-194. 81 Posturas Municipais da Vila de Madalena Ilha do Pico, 1798 – Arquivo Histórico Ultramarino ACL-SEMU AÇORES,Cx.34,D.24. negrito nossos. 82 Post. Munc. da Cidade de Ponta Delgada desta Ilha de São Miguel, 1718. Acervo do Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Dominios Portugueses. CEDOPE/UFPR.

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todo aquele tambem que for achado em quintas ou cazas alheias sem animo de furttar e que nellas estiver porque sendo comprehendido em furto ou outro algum maleficio sera ponido comforme as ordenasoens e leis deste Reino,,____________,,83”

“Foi acordado etc. que nas ortas vinhas ou pomares alheios que forem vallados ou tapados nenhua pessõa de qualquer qualidade que seja colha canas nem ervas nem outra couza com pena de que sendo achadas ou seja da parte de fora ou da parte de dentro colhendo as ditas canas ou ervas ou outras couzas semilhantes pagar quinhentos reis para o Conselho, e toda a perda, e dano a seu dono_________________,,

84”

“Acordaram os ditos senadores e mais homens buns da respublica que todas as pesoas daninas e de má nota que forem vistas em vinhas de qualquer pesoa sendo vistas com huma so testemunha digna de fe, pagara de postura mil reis = Metade para os donos dos ditos vinhos e a outra a metade para quem acusar, menos os rendeiros que mostrarem ter rematado sem esa comdiçam e a outra a metade para as obras do Comçeilho = Acordaram mais que qualquer pesoa que nam for de ma, nota que atravesar as ditas vinhas sendo vista somente com huma testemunha dygna, de fe pagara de postura sem reis metade para quem acuzar e a outra metade para obras do Comseilho85”. “Posturas para esta Villa de Santa Cruz e sua jurisdiçam = Nenhuma pessoa de qualquer qualidade que seja entre em pumares, vinhas arrenque arvores apanhe uvas em parras contra a vontade de seus donos com penna de dous mil reis aplicados para obras do Concelho e acuzador = 2$000

86”.

“Toda a pesoa que for rabiscar á vinha alheia, e entrar sem licença de seo dono, e furtar uvas, figos, frutas, ou trancas, e vides pagará duzentos reis por cada vez para a Camara e Conselho; e o que desepar ou destranquar vinha pague quatro mil reis para a dita Câmara

87”.

Observa-se assim, que ao levantarmos questões como “circularidade” e

permanência as posturas municipais são úteis para a pesquisa histórica e a busca na

estruturação de um ambiente “civilizado”. Onde seria necessária a permissão do dono

da terra, o quesito de “bem viver” em sociedade.

Por mais cuidado que possamos tomar, uma visão teleológica recai sobre as

posturas, tanto para esta pesquisa quanto para as demais que se detiveram com estas

fontes.

Outros aspectos que podemos levantar seria, no interior das posturas, a tentativa

de divisão entre o urbano e o rural, reservando a cada um seus ambientes.

Que se não traga gado as vinhas, e terras

83 Posturas Municipais da Villa Franca do Campo, e seu termo Ilha de Sam Miguel, 1768. Arquivo Histórico Ultramarino - ACL_SEMU_AÇORES,Cx.34,D.41. 84 Posturas Municipais da Villa Franca do Campo, e seu termo Ilha de Sam Miguel, 1768. Arquivo Histórico Ultramarino ACL_SEMU_001,Cx37,D46. 85 Posturas Municipais da Vila do Nordeste e seu termo dela Ilha de Sam Miguel, 1773. Arquivo Histórico Ultramarino ACL_SEMU_AÇORES,Cx37,D.43. 86 Posturas Municipais da Villa de Santa Cruz e sua jurisdiçam desta Ilha Gracioza, 1784. Arquivo Histórico Ultramarino ACL_ ACL_SEMU_AÇORES,Cx34,D5. 87 Posturas Municipais da Vila de Madalena Ilha do Pico, 1798. Arquivo Histórico Ultramarino ACL_SEMU_AÇORES,Cx.34,D.24.

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Ordenaram mais, que os moradores da freguesia de S. João e lugar de S. Bartolomeu, não tragam ovelhum, e cabrum pelas vinhas, entrando o mês de Março, como também, nas terras dos milhos, os levantarão do primeiro dia do mês de Março em diante; pena de quinhentos reis, para o concelho e acusador, visto o notável dano que dão nas novidades; e isto mesmo se entenderá nos mais fogos desta jurisdição88.

Portanto, as estruturas do poder locais, as câmaras municipais, inseriam-se no

ambiente através das posturas.

Outra constatação, sobre as posturas, se reserva a punição dos infratores. Cuja

penalidade se alicerçava no econômico, isto é, ao pagamento de multas, sendo raros

aqueles que dão outro tipo de punição.

Enfim, as posturas ao retratarem questões do universo urbano colonial e a

preocupação com a manutenção da ordem social e de um ambiente coeso, possuem

importância ao transmitirem em suas páginas as cidades coloniais e seus cotidianos.

As posturas do arquipélago açoriano inserem-se na dinâmica social que busca a

distinção do urbano e o rural, a preocupação com o abastecimento e a manutenção de

uma economia interna, além de manter o “bem viver” em sociedade, o que entendemos

sendo o mais importante na construção de uma “civilitè”.

88 Posturas Municipais da Vila das Lages da Ilha do Pico, 1723. Acervo do CEDOPE.

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CONCLUSÃO

Voltando-nos a pensar sobre as posturas e sua intrínseca relação com o meio que

a produz, podemos constatar que tais “mecanismos de auto-regulação” sociais, mediante

ao seu processo de “longa duração”, apresentam-se como um momento “fluido” na

transitoriedade de dois momentos distintos da sociedade. Tais momentos seriam: o

primeiro, onde o homem e seu passado imemorial de tradições estariam mais ligados

com o meio que os cerca, concentrando-se no direito consuetudinário suas relações,

passando a um segundo, onde as leis, já escritas em códices, manifestam quais seriam as

relações de “bem viver” em sociedade, onde, diferentemente da ordem anterior

configurada, o homem necessitaria de tais códices para sua inter-relação social.

Por mais que tentemos fugir de pragmatismos históricos e de “carmas”

hegelianos, vemo-nos colocados, assim como Norbert Elias e seu estudo sobre a

formação cortesã, em uma situação onde a configuração do conceito sobre o “processo

civilizador” provoca uma visão teleológica a respeito do processo histórico. Na análise

das posturas açorianas, caímos, semelhantemente a Elias, na mesma armadilha histórica

teleológica, colocando as posturas, mesmo sem um agente de autoria pragmática, na

consolidação de uma ordem e uma civilidade urbana.

As posturas de sete vilas açorianas foram aqui analisadas: Lages do Pico, Ponta

Delgada, vila do Nordeste, vila Franca do Campo, vila de Ribeira Grande, vila de Santa

Cruz e vila de Madalena. Independente da questão de uma jurisdição autônoma a cada

vila, nota-se uma grande semelhança entre os temas abordados pelas posturas. Assim,

constatamos que, independente de seus locais de produção, as posturas demonstram

relações entre si para a consolidação de “bem viver”.

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Outro fator, não muito conclusivo, porém de relevância, foi a constatação, que

pouco é apresentada na bibliografia, das punições para os infratores das posturas,

aquelas alicerçadas fortemente no viés econômico, sendo poucas as referentes a degredo

ou outro tipo punitivo.

Evidentemente, muitos são os aspectos que podem ser abordados e pesquisados

através das posturas municipais, sobretudo sua relação de permanência, o embate entre

o direito localista e a legislação central, além de questões sobre o cotidiano colonial do

Império. Entretanto, os apontamentos aqui proferidos vêm da emergência de uma

melhor atenção voltada a estes documentos, tão pouco explorados pela literatura

especializada. Assim, por mais que esforços sejam direcionados com intuito de suprir tal

carência historiográfica, ficam para os porões da História tais ricas e produtivas fontes.

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ANEXOS

* Estrutura Administrativa dos arquipélagos dos Açores, Cabo Verde e Madeira.

Apud. VIEIRA, Alberto. Portugal y las islas del Atlántico. Madri : Editorial

MAPFRE, 1992. p. 218.

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