post human tantra projeto multimidia scci-fi ambient by edgar silveira-franco
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18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Transversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahia
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POSTHUMAN TANTRA: PROJETO MULTIMÍDIA SCI-FI AMBIENT
Dr. Edgar Franco Faculdade de Artes Visuais & Mestrado em Cultura Visual / UFG
Resumo
O Posthuman Tantra é um projeto multimídia baseado na “Aurora Pós-humana” - universo ficcional inspirado pelas possibilidades futuras dos avanços da tecnociência e a possível emergência transumana, além de aspectos tecnognósticos desse futuro hipertecnológico. Ele foi criado em 2004 pela necessidade de gerar ambiências sonoras para os meus trabalhos artísticos em múltiplas mídias e acabou tornando-se um novo canal de expressão artística que funde música experimental de base digital, criação de imagens híbridas, vídeos, HQtrônicas e web arte. Esse artigo destaca os conceitos básicos geradores dos processos criativos envolvidos na produção das obras do Posthuman Tantra, sobretudo o primeiro CD “Neocortex Plug-in” lançado pela gravadora suíça Legatus Records. Palavras-chave: Arte e tecnologia, Pós-humano, Ficção Científica, Música Eletrônica, HQtrônica. Abstract
Posthuman Tantra is a multimedia project based on the "Posthuman Dawn" - a fictional universe inspired by the future possibilities technoscience's advances bring about and the possible transhuman rise and technognostic aspects of this hypertechnological future. It was created in 2004 by the necessity of generating sound environments for my artistic work in multiple medias, and turned out to be a new channel of artistic expression which mends experimental music of digital basis to the creation of hybrid images, videos, HQtrônicas (Electronic Comics) and web art. This article underlines the basic concepts that generate the creative processes involved in the production of Posthuman Tantra's work, specially its first CD "Neocortex Plug-in", released by the Swiss label Legatus Records. Key words: Art & Technology, Posthuman, Science Fiction, Electronic Music, e-comics.
O Posthuman Tantra no contexto da “Aurora Pós-humana”.
O Posthuman Tantra pretende ser um casamento constante entre as criações
artísticas em múltiplas mídias de Edgar Franco & o universo da música
eletrônica. Desde sua criação o projeto já participou de dezenas de
compilações em três continentes e lançou álbuns em parceria com a banda
francesa Melek-tha, além dos CDs Pissing Nanorobots (Independente, 2004) e
Neocortex Plug-in, lançado pelo selo suíço Legatus Records em 2007, sendo
que o Posthuman Tantra foi um dos primeiros projetos de música eletrônica
ambient do Brasil a assinar com um selo europeu. A one-man-band tem
recebido resenhas positivas em importantes veículos como na revista Judas
Kiss da Inglaterra, no site bielorusso The Machinist (no qual Pissing
Nanorobots recebeu nota 9) e na revista brasileira Rock Hard Valhalla (a qual
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incluiu entrevista e resenha de Neocortex Plug-in – também com nota 9).
Atualmente o Posthuman Tantra está finalizando o seu novo álbum que, além
das músicas, envolve um trabalho conceitual plástico nas ilustrações do CD,
um vídeo clipe exclusive e faixa multimídia composta por uma nova narrativa
híbrida hipermídia (HQtrônica).
O trabalho será lançado pela Legatus Records (Suíça) em 2009. O estilo
musical praticado pelo projeto pode ser classificado como Sci-Fi Ambient, ou
seja, “música ambiental de ficção científica”. Toda a música é gerada
digitalmente a partir de múltiplos softwares e plug-ins musicais, além de
teclados controladores.
O Posthuman Tantra surgiu de minha necessidade intrínseca de pensar todos
os aspectos relativos à “Aurora Pós-humana”, um universo ficcional multimídia
inspirado pela emergência transumana e criado para ambientar minhas
criações artísticas em múltiplas mídias, das histórias em quadrinhos à
instalação interativa. A partir de uma experiência anterior com música e do
encontro com as sonoridades eletrônico-digitais decidi criar um projeto musical-
multimídia que gerasse as ambiências sonoras para minha ficção e que
corroborasse a visão prospectiva sobre esse futuro pós-humano em sua
concepção lírica.
O projeto iniciou como algo menor no contexto de minha produção artística
multimídia, mas aos poucos foi crescendo e atualmente é um trabalho para o
qual dedico muito de meu tempo. É importante esclarecer que desde o início o
projeto nasceu com uma proposta multimidiática, não é simplesmente a música
experimental eletrônico-digital que o engendra, a parte visual composta por
minhas ilustrações, cards que acompanham os CDs e toda uma performance
multimídia – construída a partir de meus desenhos e narrativas intermídia –
comporá as apresentações ao vivo do projeto que estão em fase de
preparação. A faixa multimídia presente no primeiro CD Neocortex Plug-in é um
exemplo importante dessa minha proposta – ela não é simplesmente um vídeo
clipe, é em si um trabalho de arte conceitual interativo, uma HQtrônica.
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O nome Posthuman Tantra apresenta esse paradoxo poético curioso: qual
seria a dinâmica energético-sexual tântrica para essas novas criaturas híbridas
pós-humanas? Também funde tecnologia & transcendência, numa espécie de
“tecnomística”, como destaca Erik Davis:
A tecnologia tem ajudado a desmistificar o mundo, forçando as redes simbólicas ancestrais a abrirem caminho para os confusos e seculares planos de desenvolvimento econômico e progresso material. Mas os velhos fantasmas e questionamentos metafísicos não desapareceram, muitas vezes eles estão mascarados no underground infiltrando-se na cultura, psicologia e motivações mitológicas que formam o mundo moderno. Os impulsos místicos, algumas vezes estão incorporados nas muitas tecnologias que supostamente ajudariam a livrar-se deles. Esses são os impulsos tecnomísticos, muitas vezes sublimados, ou mascarados nos detritos pop da ficção científica e dos videogames (DAVIS, 1998:5).
A “Aurora Pós-humana” é um universo ficcional futurista inspirado por artistas,
cientistas e filósofos que refletem sobre o impacto das novas tecnologias:
bioengenharia, nanotecnologia, robótica, telemática e realidade virtual sobre a
espécie humana. A base bibliográfica para o desenvolvimento da “Aurora Pós-
humana” envolve o estudo das obras e artigos de artistas como Stelarc, Roy
Ascott, Natasha Vita-more, Eduardo Kac, Mark Pauline, Orlan, H.R.Giger,
Diana Domingues; de filósofos, cientistas e sociológos como Max More, Ray
Kurzweil, Laymert Garcia, Hans Moravec, Vernon Vinge, James Lovelock,
Teilhard de Chardin, Maturana e Varella, Stanislav Grof, entre outros. Para sua
criação também me inspirei no reflexo desses questionamentos na cultura de
massa, com o surgimento de filmes (Matrix, 13º Andar, Gattaca, A.I. –
Inteligência Artificial) e de seitas como as dos “Extropianos”, “Prometeístas”,
“Transtopianos” e “Raelianos”. Esses últimos, por exemplo, crêem na clonagem
como possibilidade de acesso à vida eterna, nos alimentos transgênicos como
responsáveis futuros pelo fim da fome no planeta, e na nanotecnologia e
robótica como panacéia que eliminará o trabalho humano, liderados pelo
pseudo-guru Raël, um hedonista que constrói todo seu discurso a partir das
previsões mais otimistas da ciência.
As discussões levantadas por filósofos e cientistas sociais tomam muitas vezes
como base os vislumbres da ficção científica e muitos movimentos que têm
aflorado no seio da cibercultura chamam de estágio “transhumano” o momento
que estamos atravessando com destino à pós-humanidade. Uma das
características principais desses movimentos é o seu caráter dogmático,
demonstrando que ao contrário do que possa parecer, a cibercultura é um
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campo fértil para o desenvolvimento de novas visões místicas e
transcendentes. Como bem ressalta Francisco Rüdiger:
De Hans Moravec e Danny Hillis a Ray Kurzweil e Olliver Dyens não tem faltado pregadores cada vez menos disfarçados de cientistas defendendo que, num futuro próximo, a experiência humana registrada pelo córtex cerebral será transferida para os computadores. O cérebro, defendem, deverá se tornar a interface da rede. A síntese dialética entre cultura e natureza se dará com nosso ingresso no estágio da vida artificial: caberá à máquina a condição de morada do ser da qual falava Heidegger (RÜDIGER, 2002: 35).
A idéia básica da “Aurora Pós-humana” foi imaginar um futuro, não muito
distante, no qual a maioria das proposições da tecnociência de ponta
tornassem-se uma realidade trivial, e a raça humana já tivesse passado por
uma ruptura brusca de valores, de forma (física) e conteúdo
(ideológico/religioso/social/cultural). Imaginei um futuro em que a transferência
da consciência humana para chips de computador seja algo possível e
cotidiano. Nele milhares de pessoas abandonarão seus corpos orgânicos por
novas interfaces robóticas; imaginei também que neste futuro hipotético a
bioengenharia tenha avançado tanto que permita a hibridização genética entre
humanos, animais e vegetais, gerando infinitas possibilidades de mixagem
antropomórfica, seres que em suas características físicas remetem-nos
imediatamente às quimeras mitológicas. Finalmente imaginei que estas duas
"espécies" pós-humanas tornaram-se culturas antagônicas e hegemônicas
disputando o poder em cidades estado ao redor do globo enquanto uma
pequena parcela da população, uma casta oprimida e em vias de extinção,
insiste em preservar as características humanas, resistindo às mudanças.
Dessas três espécies que convivem nesse planeta terra futuro, duas são o que
podemos chamar de pós-humanas, sendo elas os "Extropianos" (seres
abiológicos, resultado do upload da consciência para chips de computador) e
os "Tecnogenéticos" (seres híbridos de humano e animal, frutos do avanço da
biotecnologia e nanoengenharia), tanto “Extropianos”, quanto “Tecnogenéticos”
contam com o auxílio respectivamente de "Golens de Silício" – robôs com
inteligência artificial avançada (alguns reivindicam a igualdade perante as
outras espécies) e "Golens Orgânicos" – robôs biológicos, serventes dos
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“Tecnogenéticos”. A última espécie presente nesse contexto é a dos
"Resistentes", seres humanos no "sentido tradicional", espécie em extinção
correspondendo a menos de 5% da população do planeta.
Este universo tem sido aos poucos detalhado com dezenas de parâmetros e
características, trata-se de um work in progress que toma como base todas as
prospecções da tecnociência e das artes de ponta para reestruturar seus
parâmetros, a partir dele já foram desenvolvidos uma série de trabalhos
artísticos em diversas mídias e suportes e atualmente outras obras estão em
andamento.
Já foram criados para a hipermídia: o site “Neomaso Prometeu (Menção
honrosa no 13º Festival Videobrasil), o trabalho em CD-ROM “Ariadne e o
Labirinto Pós-humano” (integrante da mostra SESC SP de artes - 2005), o site
de vida artificial “O Mito Ômega” (em desenvolvimento), a faixa multimídia
“Game-o-tech 2.0” (incluída no CD Neocortex Plug-in). Nos quadrinhos
desenvolvo a trilogia “BioCyberDrama” (parceria com o quadrinhista Mozart
Couto), com o primeiro álbum lançado pela editora Opera Graphica (que
recebeu o prêmio Ângelo Agostini de melhor desenho de 2003) e também a
revista em quadrinhos “Artlectos e Pós-humanos” que já teve 3 números
publicados. Atualmente estou desenvolvendo, em parceria com os artistas
Fábio Oliveira Nunes e Soraya Braz, a ciberinstalação “Alice 2.0”. Além desses
trabalhos, todos os lançamentos do Posthuman Tantra são obras conceituais
que tomam como base aspectos diversos da “Aurora Pós-humana”.
Pissing Nanorobots: Ensaio sonoro-digital sobre sexualidades pós-humanas.
Pissing Nanorobots (Figura 1) foi o primeiro CD demo do Posthuman Tantra
lançado de forma independente em 2004. O trabalho foi concebido como uma
reflexão conceitual sobre as possíveis sexualidades renovadas e reformatadas
no contexto da “Aurora Pós-humana”, incluindo 14 faixas. Em meu universo
conceitual pós-humano a evolução tecnológica e da consciência possibilitou a
migração psicossexual dos desejos da atual era Freudiana - estruturada sobre
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traumas e tabus sexuais, além dos desejos reprimidos -, avançar para uma era
Junguiana - acesso ao inconsciente das espécies -, e finalmente mergulhar em
uma era Grofiana (Stanislav Grof), caracterizada pela penetração no
inconsciente universal. Mas nos estágios iniciais de aceleração tecnológica a
sexualidade em transformação produzirá novas perversões e múltiplas
insanidades como robô-copulações doentias, a criação de andróides escravos
sexuais e a degeneração de alguns humanos que vibram só nas baixas
freqüências. Mas ao longo das décadas a liberação sexual pós-humana terá
resultados positivos, pois liberará a humanidade do estigma Freudiano.
Figura 1 – Capa do CD Pissing Nanorobots. Fonte: O Autor (2004).
No Japão os robôs de companhia estão sendo desenvolvidos e existe uma
grande preocupação em duplicar expressões humanas neles, fazê-los quase
humanos, ou seja, humanóides. Mas na falocracia norte americana a maioria
dos robôs continuam inumanos e burros, monstros metálicos feitos para a
guerra. Na “Aurora Pós-humana” é do extremo oriente que surgem os primeiros
escravos sexuais pós-humanos, robôs como no filme A.I. (2001, EUA,
Spielberg & Kubrick). Em minha ficção, nos primórdios transumanos ainda
existe uma grande resistência à clonagem e criação biotecnológica, portanto as
bonecas biotecnológicas sexuais – de carne e osso – mas com o cérebro
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positrônico, surgem apenas em uma segunda fase. Em minha FC tento
projetar-me no futuro, realizar um verdadeiro salto quântico para vestir a pele
desses seres que habitam um mundo hipotético, ao mesmo tempo refletir
metaforicamente sobre a realidade contemporânea da imbricação homem-
tecnologia. Eu coloco um pouco de mim e de todos os meus questionamentos,
incertezas, vicissitudes e contradições em cada um de meus seres, minhas
personagens são múltiplas frações de minha alma, retratos fractais holográficos
daquilo que está no meu interior.
No contexto da “Aurora Pós-humana” a sexualidade das criaturas é a mais
variada e iconoclasta. Imagine que existem os mais diversos humanimais,
como híbridos de mulher e golfinho, homem e cavalo, e todos podem ser
hermafroditas, possuindo múltiplos órgãos sexuais masculinos e femininos.
Você pode colocar um pênis de asno em sua testa e sua parceira uma vagina
de baleia entre os olhos. Na “Aurora Pós-humana” a genética está tão
avançada que consegue produzir essas aberrações e irrigá-las, além de gerar
novas conexões neuronais múltiplas, ampliando a região cerebral responsável
pelo orgasmo. Os tabus e taras sexuais podem ser quebrados e vividos
livremente. No contexto de meu universo essa total liberação sexual propõe
que as amarras sexuais nunca foram um problema real, toda a moral era
simplesmente um bloqueio ancestral baseado em dogmas arcaicos. E com a
liberação e realização completa dos desejos sexuais as criaturas podem
finalmente concentrar seu pensamento e desejo em uma verdadeira evolução
da consciência na busca da transcendência.
O álbum Pissing Nanorobots parte dessa concepção de sexualidades pós-
humanas como conceito instigador para a geração das músicas, faixas como
Cum Nanochips e Cloneborg Chamaleon’s Body traduzem em sons industriais
ambientais as múltiplas formas de copulação nesse contexto ficcional pós-
humano. A faixa Penetrate the Virgin Bioport é um tema deliberadamente
criado com inspiração no filme eXistenZ (Canadá, 1999) do cineasta
canadense David Cronenberg, nele, a “bioborta” é um orifício aberto na base
da coluna vertebral para receber o plugue de um game biológico que é
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alimentado a partir do sangue do jogador que flui através dele. No filme a
bioporta tem esse duplo sentido, ao mesmo tempo que abre a conexão para
esse mundo de ilusões virtuais também é um novo orifício corpóreo com
conotações sexuais, algo como um segundo ânus. Existe algo de grotesco e ao
mesmo tempo curioso nessa fascinação de Cronenberg por orifícios
tecnológicos, uma espécie de tecnofetichismo que também aparece em outro
de seus grandes filmes Videodrome (Canadá, 1983). Penetrate the Virgin
Bioport é uma elegia musical inspirada por esse fetichismo pós-humano.
Também em Pissing Nanorobots existe outra homenagem explícita a
Cronenberg, a faixa Allegra Geller’s Memorial, composta em memória da
programadora de jogos do filme eXistenZ que se chama Allegra - em um de
seus jogos você literalmente é Deus, esse é o seu papel no game - uma
estranha e brilhante proposta de neo-transcendência, viver como Deus em um
universo de realidade virtual, passar toda sua vida lá, numa matrix divinatória.
A boa repercussão de Pissing Nanorobots permitiu ao Posthuman Tantra
assinar o contrato com a gravadora suíça Legatus Records para o lançamento
de Neocortex Plug-in, primeiro álbum oficial do projeto.
Neocortex Plug-in: Tecno-transcendência.
Neocortex Plug-in (Figura 2), primeiro álbum oficial do Posthuman Tantra, foi
lançado na Suíça pela gravadora Legatus Records. O Posthuman Tantra já
havia lançado uma demo e participado de coletâneas na Itália, Austrália e
Brasil, além de ter produzido em parceria com a lendária banda francesa de
death ambient Melek-Tha os álbuns Kelemath Trilogy & Asylum of Slaves,
lançados na França. Com a boa recepção desses trabalhos o projeto assinou
contrato com a Legatus Records para o lançamento de seu debut, tornando-se
uma das primeiras bandas brasileiras do gênero ambient a assinarem contrato
com um selo europeu. Neocortex Plug-in é o primeiro full-lenght do Posthuman
Tantra e conta com uma produção excelente tendo sido masterizado na Suíça
no renomado estúdio BWS, onde foram masterizados álbuns de bandas como
Lordren, Rod's'in Molly, Scush, Gargula Valzer, Infinite Dreams, Black Jade,
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Morgat, Delirium, Dark Moon & Chapter Seven. O álbum conta com
participações muito especiais de músicos da cena darkwave e industrial como
Lord Evil do Melek-Tha, e o músico e renomado escritor cyberpunk japonês
Kenji Siratori, além de Mike Vonlanthen da respeitada banda suíça de EBM
TransZendenZ, entre outros convidados especiais como o quadrinhista autoral
brasileiro Gazy Andraus que colobora brevemente nos vocais de uma faixa.
Figura 2 – Capa do CD Neocortex Plug-in. Fonte: O Autor (2007).
A temática de todas as músicas do CD envolve o embate entre os possíveis
caminhos da nossa relação com os avanços tecnológicos e a transcendência.
O álbum sofreu forte influência conceitual da obra de artistas visionários que
refletem sobre a iminente condição pós-humana, como Orlan, H. R. Giger,
Mark Pauline, Natasha Vita-More, Stelarc, Roy Ascott, Diana Domingues,
Eduardo Kac, David Cronenberg, e alguns aspectos de movimentos como The
Extropy, Transhumanism & Immortalism. Já a visão tecno-transcendentalista é
inspirada por pensadores como R.A.W., Terence MacKenna, Buckminster
Fuller, Teilhard de Chardin, Aldous Huxley, Madame Blavatsky, John C. Lilly,
Tim Leary, Giordano Bruno, John Dee, Gurdjief, A.O.Spare, William Blake,
Rupert Sheldrake, Ken Wilber, P.K.Dick, Crowley, Stanislav Grof, entre outros.
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Toda a concepção lírica de Neocortex Plug-in parte do universo ficcional da
“Aurora Pós-humana”, apresentando múltiplas possibilidades para esse futuro
hipertecnologizado. Aliadas a esses aspectos ficcionais eu incluo minhas
investigações e experiências de transcendência e tecnognose, além de minhas
buscas como magista caótico. Cada faixa envolve um conceito principal dentro
desse contexto. Abaixo destaco os conceitos que engendraram os aspectos
líricos e sonoros de todas as faixas presentes no álbum, inclusive a HQtrônica
Game-o-tech 2.0:
1 - The Omega Neocortex: Faixa que abre o CD, com forte clima onírico &
transcendente. Música instrumental na qual tentei capturar a essência da
proposta do visionário Teilhard de Chardin, ele anteviu o surgimento de uma
rede global que conectaria a consciência de todos os homens e seres vivos do
planeta, chamou essa rede de “Noosfera”. Quando ela estiver completa Gaia
acordará como um planeta consciente e nós seremos seus trilhões de
neurônios, neurônios do grande “Neocortex ômega de Gaia”.
2 - Visions From The Abyssal Neurogenetic Circuit: Faixa instrumental baseada
nas possibilidades de transe através de realidades virtuais computacionais,
transes tecnológicos semelhantes aos dos enteógenos. Transes que poderão
fazer com que alcancemos as verdades universais através de nosso circuito
neurogenético (presente no DNA). Trata da possível descoberta da consciência
cósmica com auxílio da tecnologia. É inspirada nas reflexões de Roy Ascott &
Robert Anton Wilson.
3 - Glorification of our Nanotechpain: Música densa e obscura com várias
participações vocais (entre elas a de Kenji Siratori – escritor cyberpunk
Japonês & Mike, mentor da banda suíça TransZendenZ). O conceito que a
engendrou trata das ameaças possíveis como a criação de nanorobôs que
inicialmente serão gerados para erradicação de doenças, mas depois passarão
a ser produzidos em larga escala de forma clandestina para inocular novas
doenças e fazer uma poderosíssima indústria farmacêutica do futuro lucrar com
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a venda de “nanorobôs antídoto”. É o continuísmo, a alta tecnologia aliada ao
velho mercantilismo e egoísmo humano.
4 - Downloading my Universal Conscience Through Cyber Pulmonary's
Pranayama: A técnica milenar do “Pranayama” utilizada em conexão com os
novos dispositivos de imersão em realidades virtuais objetivando o alcance da
consciência universal. É mais uma faixa tecnognóstica que propõe estas
possibilidades.
5 - Biotech Antenna to Receive Morphic Resonances from the Mu Continent:
Esta faixa - que funde atmospheric, noise e industrial em sua sonoridade - trata
de implantes biotecnológicos, unindo chips de silício a conexões neuronais. A
criação de dispositivos tecnológicos que simulem realidades vegetais e
possibilitem uma ligação neuroatómica com os circuitos ancestrais da
humanidade, bebendo do conhecimento das primeiras raças cônscias que
habitaram o planeta Terra, como a raça do extinto continente de Mu, descritas
por Madame Blavatsky. Também envolve o conceito de “ressonância mórfica”
definido pelo biólogo inglês Rupert Sheldrake.
6 - The Biocybershamans' Cosmic Vortex Cult: Essa é sobre xamanismo
tecnológico, buscas de minha estrutura de pensamento como magista caótico.
Para mim é uma das faixas mais densas e hipnóticas de Neocortex Plug-in, foi
composta quase que instantaneamente, numa espécie de transe criativo.
7 - My Eternal Avatar: Uma criatura digital que nos represente em um mundo
de realidade virtual poderá viver eternamente, continuar existindo, carregando
nossas memórias e desejos mesmo depois que nosso corpo biológico fenecer.
É a faixa mais antiga do álbum e também a mais curta, foi a primeira que
gravei, trabalhei em meus vocais por algum tempo para chegar à textura que
desejava.
8 - Revelations of the Absinthe Simulator's Nanochip: Essa trata também de
possibilidades de fuga através de universos virtuais, a degradante busca
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tecnológica de simular sensações primitivas e corruptoras do sistema nervoso
central. O escapismo que sempre esteve ligado ao universo da maioria das
drogas sendo repetido pelos processos tecnológicos, é uma faixa “nigredo”,
abissal, mostra o lado obscuro da tecnologia, seu continuísmo egóico, o
caminho que poderá levar a humanidade à extinção.
9 - Hymn in Praise of the New Hyper Conscience Receptacles - The Flesh
Rottens and Disappears, Image and Memory Still Remain: Às vezes sentimos
uma estranha distância entre o que fomos no passado e o que somos agora.
Olhamos fotos, ouvimos nossa voz gravada e não nos reconhecemos. A cada
sete anos nossos átomos são substituídos completamente, nossa matéria não
contém mais nada do que éramos, mas a memória permanece e nos dá
identidade. Se conseguirmos transplantar essa memória e a mente com sua
rede de ressonâncias mórficas universais, poderemos viver eternamente.
Talvez seja minha faixa preferida de todo o álbum, abre com uma gravação que
recuperei de uma velha fita cassete, eu e meu pai conversando no ano de
1976, eu tinha 5 anos de idade. Fecha com minha mãe entoando uma das
canções que adorava cantar quando eu era criança. No meio dela ainda incluí
as risadas de minha esposa – uma das coisas mais agradáveis do mundo para
mim. Não consigo escutar essa faixa sem me emocionar.
10 – Insonho: Esta faixa surgiu a partir de um poema quântico-alquímico que
havia escrito há algum tempo, ele é dividido em 5 partes. A música tem algo de
mantrico e foi construída segundo meus princípios pessoais de magia do caos.
É a mais longa do álbum e a única cantada em português. Segue a letra,
incluindo suas subdivisões: (Parte 1) O Taciturno Tabulador de Falsas
Realidades: Hemisférios amarrados / sinapses guardiãs do ilusório / neurônios
cegos / hipotálamo reacionário / montículos de carne no cerne da matéria /
tabulando realidades / obstruindo a essência / sempre? (Parte 2) O
Inconquistável Reino da Verdade Indefinível: A nossa fantasia de carne / não
mais possui olhos / eles foram perfurados pelo apelo mesquinho da existência/
esquecidos pelo brinquedo chamado consciência. (Parte 3) Os Mistérios
Insondáveis das Falsas Coincidências: Ao mesmo tempo/ mil borboletas azuis /
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pousaram sobre a testa de mil garotas virgens / nos mais distantes pontos da
terra / e ninguém percebeu. (Parte 4) A Ninfa-desejo da Pseudo-realidade
Contra a Interna Pureza Eterna: Sonho que sonha sonhando / sonho que
antecede o sonhador / sonho que persiste ao sonhador / sonho que não é /
insonho. (Parte 5) Sincrônica Sinfonia: Antes do delírio do Big-Bang / além da
ilusão curva do Universo / através dos quarks e das infinitas partículas que os
engendram / dentro da geratriz dos fractais / paralelamente às chaves do DNA /
sobre a ilusão da consciência / sob o magma obtuso da morte / cantam
abraçados em uma cópula eterna o nada e o tudo / procriando jovens
realidades tão voláteis quanto doces.
11 - The Immortalist’s New Horizon: Faixa instrumental que fecha a parte
musical do álbum (já que a faixa 12 é uma experiência multimídia). Traz uma
atmosfera meio espacial, algo setentista com ecos de Vangelis e Klaus
Schulze. É simplesmente uma homenagem a todos os iconoclastas grandes
pensadores das possibilidades de expansão da consciência e dos arautos da
pós-humanidade. No CD cito todos os homenageados pela faixa que são fonte
de inspiração para meu trabalho artístico: Dimas Franco (meu pai e eterno
guru), R.A.W., Terence MacKenna, Buckminster Fuller, Teilhard de Chardin,
Aldous Huxley, Madame Blavatsky, John C. Lilly, Tim Leary, Giordano Bruno,
John Dee, Gurdjieff, A.O.Spare, William Blake, Rupert Sheldrake, Ken Wilber,
P.K.Dick, Crowley, Stanislav Grof, Orlan, H. R. Giger, Mark Pauline, Max More,
Stelarc, Roy Ascott, Eduardo Kac, David Cronenberg, Enki Bilal, Caza, Wilhelm
Reich, Gunther Von Hagens, Arcimboldo, André Carneiro, M.C. Escher, Joseph
Campbell, Hans Moravec, Ray Kurzweil, Vernon Vinge & Francisco de Assis.
12 – Game-o-tech 2.0 (Faixa Multimídia): Trata-se de uma faixa interativa
criada a partir de meus desenhos e montada no software Flash, no trabalho
contei com o auxílio do web artista Fábio FON e ainda com participações
especiais na guitarra e vocais. O título é um trocadilho/neologismo – utilizando
o termo “brinquedoteca” e trocando o “Q” pelo “G”, criando Game-o-tech
(brinGuedoTeCA em português – em uma versão do trabalho incluída na
revista multimídia objeto “Nóisgrande”), no qual as letras G, T, C & A fazem
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referência explícita às bases de nucleotídeos do DNA - guanina, timina, citosina
e adenina. Já o 2.0 refere-se à essa nova versão de uma brinquedoteca infantil
– um playground pós-humano.
No trabalho as criaturas híbridas “humanimais” e os andróides são
apresentados como produtos, objetos vivos patenteados para servirem como
brinquedos para as crianças nesse contexto futuro. As brincadeiras desse novo
playground são sádicas e cruéis, envolvendo sofrimento e dor das criaturas
vivas – meros objetos de diversão para seus interlocutores – eles metaforizam
os brinquedos tecnológicos contemporâneos, sobretudo o universo dos games
de computador tão repleto de violência sanguinolenta coreografada.
A destruição sádica dos avatares inimigos nos games é substituída na
brinGuedoTeCA pela vivissecação dos novos brinquedos biotecnológicos
patenteados pelas multinacionais. As antigas coreografias virtuais tornam-se
novas experiências de crueldade divertida para essas crianças de moralidade
reestruturada pelos processos tecnológicos. No final o prazer do poder sobre
as “vidas híbridas coisificadas” confunde-se com um orgasmo.
O trabalho reflete sobre a aceleração da coisificação da vida através dos
processos de criação e patenteamento de seres vivos híbridos, trata também
de possíveis reestruturações na ordem moral e ética humana a partir dos ditos
avanços tecnológicos.
Considerações Finais.
O que procuro retratar na maioria das letras e conceitos das músicas do
Posthuman Tantra são as incessantes contradições da espécie humana.
Muitas vezes apresento um mundo ficcional hiper-tecnologizado do futuro no
qual os problemas básicos continuam os mesmos: ódio racial, pretensa
superioridade cultural e religiosa, desamor, assassinatos e egoísmo-
egocentrismo. Estou refletindo até que ponto os avanços da tecnociência não
continuarão sendo apenas avanços superficiais que não modificarão a
18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
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consciência da espécie. Por outro lado, em muitas músicas proponho
possibilidades de alcançarmos a transcendência através dos processos
tecnológicos. Essas possibilidades são sugeridas nas reflexões de pensadores
como R.A.W. & Ray Kurzweil.
Particularmente acredito que temos a possibilidade de reverter a tendência
entrópica da espécie humana através de nossa produção de conhecimento - a
aceleração tecnológica, só que para isso será preciso acordarmos o sentimento
mais nobre e valoroso que existe: o amor. Amor por nossa espécie, amor pelo
planeta, amor pela galáxia, amor pelo Universo. O racionalismo cartesiano
afastou o conhecimento do amor, desconectando o homem da natureza, o
resultado é uma técnica/tecnologia sem ética.
A música do Posthuman Tantra procura demonstrar como a tecnologia presa
ao mundo cartesiano irá sempre levar-nos ao eterno uroboros (a cobra que
morde o rabo) da autocomiseração e autodestruição, mas ao mesmo tempo
propõe de forma poética as possibilidades de escaparmos a essa entropia da
espécie (tendência à total aniquilação). Isso dependerá da forma como nos
desvencilharmos dos velhos paradigmas mecanicistas racionalistas, aliando
uma visão transcendente holística da vida e do Universo aos avanços da
tecnologia. Sem essa união a tecnologia continuará inócua e atendendo aos
interesses egóicos de indivíduos e corporações.
Referências Bibliográficas:
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18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
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SANTAELLA, Lucia. Culturas e Artes do Pós-Humano: Da Cultura das Mídias à
Cibercultura, São Paulo: Paulus, 2003.
Edgar Silveira Franco é mestre em multimeios pela Unicamp e doutor em artes
pela USP. Autor do livro “HQtrônicas”, sua pesquisa de doutorado,
“Perspectivas Pós-Humanas nas Ciberartes”, foi premiada no programa Rumos
2003 do Itaú Cultural SP. Além disso, é artista multimídia com trabalhos em
múltiplos suportes e professor do Mestrado em Cultura Visual da UFG.