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9 a 12 de novembro de 2010 – Corumbá - MS

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Posse da Terra e Reforma Agrária no Pantanal Mato-Grossense - Brasil 1

Onélia Carmem Rossetto2, Eduardo Paulon Girardi

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Resumo: A estrutura fundiária do Pantanal Matogrossense caracterizou-se desde o século XVIII pela presença de grandes propriedades rurais onde se desenvolvia a pecuária extensiva e o manejo da pecuária de forma tradicional. A transmissão da posse da terra apresentava singularidades que possibilitavam o domínio de grandes extensões de terras entre várias gerações de uma mesma família. Com a intensificação dos movimentos socioterritoriais de luta pela terra e da política nacional de reforma agrária, a região pantaneira tem passado por uma reorganização territorial através da criação de assentamentos rurais, entretanto, tal ação ainda é insuficiente para a desconcentração significativa da terra. Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo principal apresentar alguns apontamentos sobre o processo de reestruturação fundiária e as transformações nas identidades sociais pantaneiras. A metodologia de análise e coleta de dados está centrada na pesquisa social e na abordagem qualitativa. Os resultados apontam para que a posse da terra perde o valor simbólico associado à família assumindo o valor de mercadoria e as identidades sociais passam a assumir novos papéis no contexto da estrutura produtiva. Palavras-chave: Estrutura fundiária, identidades sociais, Pantanal Matogrossense, reforma agrária

Land tenure structure and agrarian reform in Pantanal Matogrossense4 – Brasil1 Abstract: The land tenure structure of the Pantanal Matogrossense has been characterized since the eighteenth century by large ranchs to develop extensive livestock farming using traditional manangement methods. The transfer of land ownership had peculiarities that made possible the dominance of large tracts of land among several generations of one same family. With the intensification of socio-territorial movements that struggle for land and the national policy on land reform, the the region has been through a territorial reorganization through the creation of rural settlements, but still not enough for meaningful devolution of the land. In this context, this paper's main objective is to present some notes on the process of agrarian restructuring and the changing social identities in the Pantanal Matogrossense. The methodology and data collection focuses on social research and qualitative approach. The results indicate that possession of land loses its symbolic value associated with the family takes the value of goods and social identities are taking on new roles in the production structure. Keywords: Land tenure structure, social identities, Pantanal Matogrossense, agrarian reform.

Introdução

Até 1996 a política de reforma agrária influenciou de forma incipiente o Pantanal Mato-grossense, nesse sentido, é oportuna a leitura de Rossetto (2004) que enfatiza a influência das famílias pantaneiras no processo de reorganização fundiária. Até meados da década de 90 do século XX, era usual que, após a morte de um dos proprietários, não se consolidassem inventários

1 Projeto desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e Conservação da Biodiversidade do Pantanal – GECA/UFMT apoiado pelo Instituto Nacional de Áreas Úmidas – INAU e pelo Centro de Pesquisas do Pantanal – CPP. 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia- UFMT; Pesquisadora do GECA/INAU/CPP. Universidade Federal de Mato Grosso. Departamento de Geografia/ICHS. Av. Fernando Correia s/n. Coxipó. Cuiabá/MT. CEP 78.000 000 [email protected] 3 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia -UFMT; Pesquisador do GECA/INAU/CPP. Universidade Federal de Mato Grosso. Departamento de Geografia/ICHS. Av. Fernando Correia s/n. Coxipó. Cuiabá/MT. CEP 78.000 000 [email protected] 4 The portion of the Brazilian Pantanal (chaco – wetland) belonging to Mato Grosso Estate.

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para legitimar a posse das terras pelos herdeiros, assim evitava-se despesas de separação judicial da propriedade que continuava concentrada nas mãos de uma única família evitando inclusive sua comercialização e mantendo a concentração da terra. Por ocasião dos casamentos, os descendentes diretos e suas respectivas famílias residiam na mesma casa. Nas famílias mais abastadas economicamente os filhos e filhas casados eram mantidos em regime patrilocal por alguns anos, até que formassem sua própria fazenda. Já nas famílias mais pobres, todos permaneciam sob o mesmo teto por tempo indeterminado.

Quanto às relações sociais de produção, os empregados e seus familiares geralmente moravam na mesma fazenda dos patrões, às vezes até na mesma casa por gerações consecutivas, todos congregados sob o regime do proprietário e desempenhando a função de agregados. Este tipo de relação vem diminuindo, mas pode ser verificada com freqüência na região. Além desses empregados diretos, há um tipo específico de trabalhador das fazendas pantaneiras que não é nem empregado nem agregado. Este sujeito se estabelece com sua família em áreas das fazendas com a anuência do proprietário, tendo acesso à terra, moradia e ao empréstimo de animais. Nesta forma de relação de produção surgem relações pessoais de confiança, compadrio e subserviência. Em contrapartida aos favores recebidos, em momentos em que o fazendeiro precisa de mão-de-obra suplementar, este trabalhador é solicitado e, quando é recompensado diretamente pelo seu trabalho, geralmente não recebe em forma de dinheiro, mas de produtos. Este sujeito é, na verdade, um camponês dependente e sem terra. Nesta relação, cada proprietário impõe as condições; alguns desses camponeses podem plantar roças e criar gado, entretanto, têm a obrigação de atender ao chamado do fazendeiro em caso de necessidade. Esse grupo social permaneceu por longas décadas habitando as propriedades rurais pantaneiras mas, tem declinado em virtude da maior observância da legislação trabalhista.

Esta relação de produção, presente nas origens da produção capitalista das fazendas de gado do Pantanal, configura a contradição do desenvolvimento do capitalismo na pecuária pantaneira, de forma que a produção cria e faz uso de relações não-capitalistas de produção criando, recriando e mantendo o campesinato de forma subordinada, privando-o da terra. Desta forma, no que concerne ao desenvolvimento do capitalismo no campo, o Pantanal não é uma exceção à regra brasileira, estando também em sua base as formas capitalistas exploratórias das formas não-capitalistas para o seu estabelecimento.Com o domínio da terra por poucas famílias, grande quantidade de áreas devolutas e de titulação questionável e a existência subjugada de uma grande população de agregados, trabalhadores e camponeses, o Pantanal é uma das regiões de Mato Grosso com maior atuação de movimentos sociais camponeses sem terra e por isso também a região tem sido contemplada com quantidade significativa de assentamentos rurais.

Material e Métodos

A metodologia utilizada para coleta e análise de dados está centrada na pesquisa social e na abordagem qualitativa. As técnicas consistiram de levantamento historiográfico em bibliografia pertinente e compilação e análise das estatísticas dos Censos Agropecuários 1996 e 2006 (IBGE) e do Banco de Dados da Luta Pela Terra (Dataluta). As informações primárias refletem a coleta de dados em campo, por meio de instrumentos de pesquisa semi-estruturados e observações diretas que congregaram grandes proprietários e assentados da reforma agrária nos municípios pantaneiros de Cáceres e Poconé – MT.

Resultados e Discussão

O processo da posse da terra nas áreas rurais do Pantanal Matogrossense pelos habitantes não índios remete ao sistema político de doação das sesmaria,s vigente no país a partir de 1532 e em Mato Grosso a partir de 1727. Tal sistema permitia a posse de grandes extensões de terras de forma gratuita por pessoas que comprovassem condições financeiras para nelas trabalhar, ou seja, cidadãos com bens e escravos, elementos que na época sustentavam a base econômica do território brasileiro. A sazonalidade climática e as condições do relevo que impõe a inundação de parte das propriedades durante determinadas épocas do ano influenciava no tamanho das

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propriedades e legitimava a grande extensão das fazendas no Pantanal, que comumente não tinham cercas divisórias entre os estabelecimentos. Os proprietários raramente possuíam os títulos de posse como documento material, entretanto suas divisas eram respeitadas pelos vizinhos e marcadas por acidentes geográficos.

Entre 1892 e 1930, as terras públicas de Mato Grosso passaram à condição de propriedade privada através do processo de regularização das concessões das sesmarias e legitimação das posses; concessões gratuitas a imigrantes nacionais e estrangeiros e concessões especiais a colonizadoras e empresas particulares; arrendamento e aforamento para indústria extrativa de vegetais e contrato de compra e venda de terras devolutas. Este processo manteve a concentração da terra, priorizando a grande propriedade através de mecanismos de burla por meio de corrupção das formas mais variadas, como mostra o trabalho de Moreno (2007). Apesar disso, os governos federais e estaduais imprimiam o discurso de que a regularização fundiária era parte de uma reforma agrária nacional e regional.

Em 1973, novas ações de regularização fundiária incidem sobre a região pantaneira através da política do INCRA, que estabeleceu uma espécie de zoneamento do Estado, criando projetos fundiários para seis regiões, entre elas a de Cáceres. Tais projetos representavam instrumentos denominados de reforma agrária pelo governo militar, possuíam autonomia administrativa e eram geridos por recursos federais. Em meados da década de 1980, o INCRA voltou a atuar com intervenções para a reorganização fundiária do Pantanal e, alguns camponeses adquiriram a titulação legitima das terras que habitavam, entretanto, permaneceram atrelados a uma posição subalterna, necessitando do trabalho acessório com a venda da mão-de-obra na condição de diaristas nas grandes propriedades.

Os municípios considerados pertencentes ao Pantanal Matogrossense, segundo Vila da Siva; Abdon (1998) são Barão de Melgaço, Cáceres, Itiquira, Lambari D’Oeste, Nossa Senhora do Livramento, Poconé e Santo Antônio do Leverger. Segundo os dados do Dataluta ,entre 1988 e 2008 foram registradas 8.162 famílias em ocupações de terra nos sete municípios estudados, o que representa 20,2% de todas as famílias em ocupações de terra em Mato Grosso no mesmo período.

Como resultado da luta dos movimentos camponeses, foram criados nesses municípios 148 assentamentos rurais, em 371.788 hectares onde foram assentadas 12.165 famílias. Somente o município de Lambari D’Oeste não possui assentamentos. Como no Estado de Mato Grosso a maior parte dos assentamentos estão no bioma Amazônia, que tem na origem a colonização e não na luta pela terra, os assentamentos criados no Pantanal representam 13,8% dos assentamentos, 3,4% da área dos assentamentos e 6,7% das famílias assentadas em Mato Grosso, o que é bastante significativo.

Se tomarmos para análise os dados dos Censos Agropecuários do IBGE, a tendência geral nos municípios investigados foi a concentração fundiária. Esta tendência acompanha ritmo do Brasil, cujo índice de Gini da estrutura fundiária variou em apenas -0,010 entre 1992 e 2003, segundo os dados do INCRA, mas a terra continuou concentrada nas mãos de uma minoria. Os dados do IBGE, apontam que nos municípios pantaneiros o índice de Gini passou de 0,856 em 1966 para 0,872 em 2006. Também Mato Grosso apresentou, segundo o IBGE, pequena desconcentração, passando de 0,870 em 1996 para 0,865 em 2006.

Em 2006 a estrutura fundiária dos municípios do Pantanal Matogrossense estudados totalizava 4,2 milhões de hectares, de forma que os 371.788 ha dos assentamentos rurais desses municípios representam apenas 9% da área total dos estabelecimentos agropecuários.

Os assentamentos criados nos municípios do Pantanal Matogrossense entre 1996 e 2006 totalizam 200 mil hectares, contudo, mesmo com essas medidas da política agrária, como pode ser visto na tabela 01, a concentração da terra nos municípios pantaneiros apresentou uma redução bastante tímida.

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Tabela 01. Assentamentos no Pantanal Matogrossense – 1988-2008

Município Assentamentos criados

Famílias Assentadas

Área dos Assentamentos (ha)

Barão de Melgaço 6 477 10.374

Cáceres 45 5.752 194.834

Itiquira 2 160 11.388

Lambari D’Oeste 0 0 0 Nossa Senhora do Livramento

45 2.236 56.765

Poconé 28 1.786 48.690

Santo Antônio do Leverger 22 1.754 49.737

TOTAL PANTANAL 148 12.165 371.788

TOTAL MATO GROSSO 1.076 182.901 11.094.872 Fonte: Dataluta - Banco de Dados da Luta Pela Terra

O acesso à terra proporciona alterações substanciais nos papéis desempenhados pelas identidades sociais pantaneiras no contexto da estrutura produtiva, interferindo nas relações de trabalho e alterando as formas de convivência na família e no grupamento de vizinhança. O referido fato, somado às mudanças na base técnica de manejo da pecuária extensiva tradicional resulta em desemprego pois, atividades relacionadas aos rodeios e doma do gado baguá, aos serviços nos extensos campos e demais tarefas típicas da lida cotidiana dos tradicionais peões pantaneiros são cada vez mais desnecessárias. Assim, aos trabalhadores rurais pantaneiros, restam três alternativas: qualificar-se para desempenhar novas funções, o que é raro, migrar para as áreas urbanas ou integrar as fileiras dos movimentos socioterritoriais que lutam pela reforma agrária. A última alternativa tem se mostrado mais adequada e próspera.

Conclusões As transformações observadas na estrutura fundiária sob investigação estão atreladas a

processos macroeconômicos tais como os diversos programas/políticas públicas direcionados ao pantanal e ao seu entorno e estão relacionadas à dinâmica atual de reprodução e expansão do modo capitalista de produção. Nessa perspectiva, as transformações na estrutura fundiária do pantanal via reforma agrária possibilitam o acesso à terra para muitos camponeses pantaneiros que deixam parcialmente a condição de agregados, peões ou posseiros e passam a deter a posse da terra, se inserindo de forma menos submissa nas relações regionais.

Referências DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra. Presidente Prudente: Unesp, 2010. Disponível em: <http://www.fct.unesp.br/nera> . INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censos Agropecuários 1996 e 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http;//www.ibge.gov.br>. MORENO, Gislaine. Terra e Poder em Mato Grosso. Cuiabá: EdUFMT, 2007. ROSSETTO, Onélia Carmem. “Vivendo e mudando junto com o Pantanar...”: um Estudo das Relações entre as Transformações Culturais e a Sustentabilidade Ambiental das Paisagens Pantaneiras. 2004. Tese. (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável), Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília. VILA DA SILVA, J..; ABDON, M.M. Delimitação do Pantanal Brasileiro e suas Sub-regiões. Revista Pesquisa Agropecuária Brasileira, v. 33. n. especial, p.1703-11, 1998.