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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO, POLÍTICA E SOCIEDADE MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA PORQUE USAR AS HQs NO ESTUDO DE CONFLITOS GEOPOLÍTICOS: UM ENSAIO DO MAPA-PAISAGÍSTICO NA FAIXA DE GAZA VITÓRIA 2010

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Page 1: Porque usar

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE EDUCAÇÃO

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO, POLÍTICA E SOCIEDADE

MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA

PORQUE USAR AS HQs NO ESTUDO DE CONFLITOS

GEOPOLÍTICOS: UM ENSAIO DO

MAPA-PAISAGÍSTICO NA FAIXA DE GAZA

VITÓRIA

2010

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MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA

PORQUE USAR AS HQs NO ESTUDO DE CONFLITOS

GEOPOLÍTICOS: UM ENSAIO DO

MAPA-PAISAGÍSTICO NA FAIXA DE GAZA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Departamento de Política, Educação e Sociedade

do Centro de Educação da Universidade Federal

do Espírito Santo, como requisito parcial para a

obtenção do grau de licenciado em Geografia.

Orientadora: Profª Drª Marisa Terezinha Rosa

Valladares.

VITÓRIA

2010

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MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA

PORQUE USAR AS HQs NO ESTUDO DE CONFLITOS

GEOPOLÍTICOS: UM ENSAIO DO

MAPA-PAISAGÍSTICO NA FAIXA DE GAZA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao programa de graduação em Geografia do

Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para

obtenção do título de Licenciado em Geografia.

Aprovado em 01 de julho de 2010.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Profª. Drª. Marisa Terezinha Rosa Valladares

Universidade Federal do Espírito Santo

Orientadora

_______________________________________________ Profª. Drª. Gisele Girardi

Universidade Federal do Espírito Santo

_______________________________________________ Prof. Dr. Paulo César Scarim

Universidade Federal do Espírito Santo

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A meus pais, Ana e José Lúcio que dedicam seus esforços na minha

educação.

Aos palestinos, que ainda sorriem diante da adversidade.

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AGRADECIMENTOS

Agradecimentos, em especial, para a minha orientadora neste estudo, a Prof.ª Dr.ª

Marisa Terezinha Rosa Valladares, pela sua dedicação e exímia gestão do Laboratório de

Ensino e Aprendizagem de Geografia (LEAGEO) que apoia os graduandos em Geografia nos

estudos voltados para a área de educação. No entanto, essas não são as únicas loas à figura de

Marisa: não poderia deixar de mencionar a autonomia concedida nesse estudo e,

principalmente, à liberdade de “poder pensar” com a qual fui presenteado, pois em nenhum

momento fui refém de obstáculos que truncassem meu raciocínio, ao contrário, suas

observações sempre me provocaram a investir no que eu acredito, com responsabilidade de

autoria.

Agradeço também a Marcos Cândido Mendonça, meu irmão, pela contribuição que fez

na leitura do trabalho, acrescentando algumas ressalvas.

Também sou grato a EEEFM Almirante Barroso, que me abriu suas portas para que eu

realizasse a prática em suas turmas, propiciando-me o necessário espaço à experimentação e o

contato dialógico importante para reflexões.

Por último, agradeço a Mahmoud Ahmadinejad (presidente do Irã) que, apesar de não

ser citado como referência neste estudo, sempre foi fonte de inspiração intelectual para mim,

pois seria impossível dar sequência a esse projeto se não houvesse um estado de esperança

quanto à mudança para um mundo melhor, em uma alternativa de paz respeitosa – que não é

um arremedo de paz, que finge não ser conflito, mas que nada mais é do que submissão

imposta. Só os incrédulos, usurpadores e integristas não acreditam em uma alternativa que

prime por um viés mais solidário e humano, por isso, atacam seu vetor. Existe uma

contribuição de Ahmadinejad na ordem geopolítica, que se está traçando, que resiste aos

flagelos, enquanto as bestas saem da toca...

Page 6: Porque usar

“A despeito das aparências cuidadosamente mantidas, de que os

problemas da geografia só dizem respeito aos geógrafos, eles

interessam em última análise, a todos os cidadãos. Pois, esse discurso

pedagógico que é a geografia dos professores, que parece tanto mais

maçante quanto mais as mass media desvendam seu espetáculo do

mundo, dissimula, aos olhos de todos, o temível instrumento de

poderio que é a geografia para aqueles que detêm o poder”.

Yves Lacoste

“Alguns dos buracos mais negros do mundo estão a céu aberto, para

qualquer um ver... Por exemplo, você pode visitar um campo de

refugiados palestinos na Faixa de Gaza... É só ligar para a UNRWA, a

agência da ONU de assistência aos refugiados palestinos, tel.: 051-

861195[.] Eles providenciam tudo [,] levam você até lá de carro [,] a

entrada é grátis... [...]”.

Joe Sacco

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RESUMO

O presente trabalho resgata as origens da formação de uma Geografia despolitizada, que

ossifica práticas de leitura do espaço acríticas para a população em geral, realizada pelos

atores hegemônicos do poder, os quais constroem uma representação homogênea e lisa do que

seria real. Nessa Geografia, precária nas análises do espaço geográfico, o mapa se torna um

instrumento de manipulação dos grupos poderosos, sobre a massa populacional, ao mesmo

tempo em que desumaniza o próprio espaço. Um talho nessa alegoria, contudo, permite a

esperança de construção de uma cartografia menos reducionista, que valoriza espaços e

vivências de grupos oprimidos pela ordem mundial vigente. Nesse contexto, elaboro a ideia

de mapa-paisagístico para “territorializar” uma nova perspectiva espacial. Como metodologia,

proponho olhar para o mundo a partir de alternativas como as histórias em quadrinhos de Joe

Sacco, para revelar a realidade vivida por indivíduos descartados – ou precariamente inseridos

– no sistema. Neste ensaio, tomei o caso do conflito geopolítico entre palestinos e israelenses,

como meu lócus de ruptura da ordem perversa de domínio do poderoso sobre o oprimido.

Estudo a Faixa de Gaza como uma prisão a céu aberto, um lugar de opressão. É a partir daí

que sustento meus aportes teóricos na companhia de autores como Sacco (2003), Lacoste

(1988), Certeau (2008), dentre outros, para analisar geograficamente e cartograficamente

miniespaços políticos que constroem territorialidades ao nível do lugar. Esse estudo, também

desemboca numa prática em sala de aula voltada para a construção de um raciocínio

geográfico crítico na educação. O indivíduo como um outro, que deveria ser um igual, torna-

se questão central na busca de um mundo melhor, menos homogêneo e liso, mais

diversificado e rugoso. Portanto, “territorializar” ideias de libertação, é o objetivo desse

estudo.

Palavras-chave: 1. Conflito geopolítico. 2. Histórias em quadrinhos. 3. Mapa-paisagístico.

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LISTA DE FIGURAS

Grupo A - Observando o espaço de vivência (páginas 3 e 73).

Figura 1 – página 3_________________________________________________________38

Figura 2 – página 73________________________________________________________39

Grupo B - Sionismo (páginas 21 e 81).

Figura 3 – página 21________________________________________________________40

Figura 4 – página 81________________________________________________________41

Grupo C - Intifada de 1987 (páginas 49 e 50).

Figura 5 – página 49________________________________________________________42

Figura 6 – página 50________________________________________________________43

Grupo D - meninos de Gaza (páginas 17 e 55).

Figura 7 – página 17________________________________________________________44

Figura 8 – página 55________________________________________________________45

Grupo E - Fronteiras e controle (páginas 22, 77, 78, 100, 129, 130).

Figura 9 – página 22________________________________________________________46

Figura 10 – página 77_______________________________________________________47

Figura 11 – página 78_______________________________________________________48

Figura 12 – página 100______________________________________________________49

Figura 13 – página 129______________________________________________________50

Figura 14 – página 130______________________________________________________51

Grupo F - Expansão dos assentamentos judaicos (página 110).

Figura 15 – página 110______________________________________________________52

Figura 16 - Esquema 1: modelo de representação vertical___________________________55

Figura 17 - Esquema 2: quadro geral do percurso do geral ao lugar____________________58

Figura 18 - Esquema 3: contato entre a 1º linha da realidade e 2º linha

da realidade_______________________________________________________________60

Figura 19 - Mapas trabalhados em aula__________________________________________67

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LISTA DE QUADRO

Quadro 1 - Quadro de proposta de temáticas para se trabalhar o conflito

geopolítico entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza, utilizando

“Palestina: na Faixa de Gaza” (SACCO, 2003)__________________________________36

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LISTA DE SIGLAS

HQs - Histórias em quadrinhos

IDH - Índice de Desenvolvimento Humano

OLP - Organização de Libertação da Palestina

ONU - Organização das Nações Unidas

URSS - União Soviética

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SUMÁRIO

Introdução_____________________________________________________________ 11

Pré-capítulo - A geopolítica do conflito entre israelenses e palestinos____________ 15

Capítulo 1 - Crítica ao ensino de Geografia despolitizado______________________ 18

Capítulo 2 - Na Faixa de Gaza com Joe Sacco: contemplando o espaço de vivência

politizado______________________________________________________________

25

Capítulo 3 - Do geral ao lugar: um caminho a se percorrer no estudo de

Geografia______________________________________________________________

53

Capítulo 4 - Exercitando o raciocínio geográfico: uma pequena amostragem para

reflexão_______________________________________________________________

63

Considerações finais_____________________________________________________ 71

Referências____________________________________________________________ 75

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INTRODUÇÃO1

O percurso do homem na história foi marcado por práticas de intervenção no meio.

Assim, formas foram produzidas no espaço, equipando este grande globo com estruturas

humanizadas a fim de adequar espaços naturais ao ato de habitar do homem. Uma verdadeira

morfologia humana foi erguida sobre a natureza. Como parte desta grande estrutura

construída pelo e para o uso do homem, podemos também mencionar o movimento intrínseco

de desenvolvimento de linguagens. Essas formas de comunicação, conhecimento e de

expressão simbólica são diversas e seria pretensão catalogar todas. Dentre muitas, a

linguagem gráfica parece ser uma das mais notáveis, pois se materializou como parte dos

fazeres do homem em seus viveres. E seria descuido não destacar um pouco de sua evolução

histórica, no que tange esse objeto de estudo.

Os primeiros traços da linguagem gráfica foram realizados no tempo dos homens das

cavernas, foram eles os primeiros a dar o seu testemunho por meio dessas práticas,

registrando passagens de sua vida cotidiana nas paredes das cavernas, contando as primeiras

histórias em uma sequência de imagens. Essa técnica foi absorvida e aprimorada pelas

histórias em quadrinhos (HQs) na sociedade contemporânea.

A ramificação da linguagem gráfica é numerosa, e uma de suas veias de

desenvolvimento veio a dar origem às HQs. A evolução das HQs caminhou junto ao

desenvolvimento das relações capitalistas, movimento potencializado pela evolução da

indústria tipográfica e pelo surgimento de grandes cadeias jornalísticas. Segundo Vergueiro

(2009), foi nos Estados Unidos, no final do século XIX, que esse sistema criou as condições

mais vantajosas para a solidificação das HQs como veículo de comunicação de massa.

As HQs ganharam espaço no cenário da comunicação desde então, e o período da

Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um de seus catalisadores, quando personagens

fictícios foram nelas explorados como heróis no conflito. No mesmo período, o governo

norte-americano utilizou as HQs como manuais de treinamento militar.

Contudo, o período pós-guerra não rendeu bons frutos à indústria das HQs. Crescia um

ambiente de desconfiança em relação às HQs, em boa parte devido ao trabalho do psiquiatra

1 Correção ortográfica e normatização feita por Selma de Souza Sanglard. Professora de português formada em

1997 pela Faculdade de Filosofia, Ciênciais e Letras de Alegre – FAFIA. Pós-graduada em Letras – Língua

Portuguesa em 2000 pela Federação de Escolas Faculdades Integradas – Simonsen.

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Fredric Wertham (VERGUEIRO, 2009). Este homem, de origem alemã e radicado nos

Estados Unidos, entrou numa campanha acirrada contra as HQs. A base de seus argumentos

era que as HQs poderiam trazer sérios prejuízos à sociedade americana, pois a leitura de HQs,

como a história do Batman, por exemplo, poderia atrair as crianças e adolescentes para a

homossexualidade, ou como se as HQs do Superman pudessem levar as crianças à morte,

quando buscassem imitar seu herói, jogando-se de uma janela de um alto apartamento.

Wertham identificou nas HQs um grande órgão que agia para degenerar a sociedade

americana e agiu para desmantelar a indústria das HQs.

Vergueiro (2009) lembra que Wertham usava meios ludibriosos para convencer seu

público de suas ideias. Com base nos atendimentos de jovens problemáticos em seu

consultório, Wertham generalizou conclusões e estabeleceu um conteúdo duvidoso sobre a

questão, que foi posteriormente apresentada em seu famoso livro “A sedução dos inocentes”

(WERTHAM, 1954). Nessa obra, Wertham afirmava que as HQs contribuíam para provocar

anomalias na juventude americana, o que gerou um movimento contra as HQs.

Essa política resultou em um Comics Code elaborado pela Association of Comics

Magazine, na década de 1940, que proclamava a pais e educadores que o material das HQs

não traria malefícios morais e intelectuais aos seus filhos e alunos. Posteriormente ao Comics

Code, o campo fértil das HQs caiu num grande fosso, levando as HQs a serem descartadas de

qualquer prática educacional séria. No Brasil, por exemplo, foi elaborado um Código de Ética

dos Quadrinhos, que aplicava políticas semelhantes às dos Estados Unidos. O resultado dessa

empreitada foi o descarte das HQs no plano do ensino, figurando como uma penumbra à

margem dos pensadores intelectuais, pois foi acusada de afastar as crianças da leitura de

livros, sendo estigmatizada como uma prática que prejudicava o raciocínio.

O florescer das HQs só viria com o amadurecimento dos meios de comunicação, que

tornaram as HQs formas de transmissão de conhecimento específico, desmascarando, na

sociedade, a visão imaculada de que as HQs eram apenas instrumentos para o entretenimento.

Sua descoberta como ferramenta educacional também se deu nos Estados Unidos, pela

publicação de revistas em quadrinhos de caráter educacional, ainda na década de 1940.

Revistas em quadrinhos, como a: True Comics, Real Life Comics e Real Fact Comics, traziam

antologias referentes a acontecimentos e personagens famosos da história.

Page 14: Porque usar

13

Na China, no governo de Mao Tse-Tung (década de 1950), ela foi intensamente

empregada pelo governo como ferramenta de manobra na formação do ideal comunista

chinês. As historinhas retratavam militares chineses desempenhando um comportamento

exemplar, na busca de forjar, na sociedade da época, valores comunistas para o bem do país.

Dessa forma, histórias e obras de personagens como Lênin e Karl Marx também foram

abordadas pelas HQs.

Com o passar dos anos, as HQs foram adquirindo credibilidade no meio educacional e

deixaram de ser vistas como práticas educacionais obsoletas, e sim como ferramentas que

auxiliam o estudo e incentivam a leitura, em virtude de sua forma de comunicação fácil e

interativa com os alunos.

Na prática de ensino voltada para a Geografia, as HQs também venceram barreiras: é

de praxe, hoje, o entendimento de que as HQs são um excelente material para a representação

de ambientes, paisagens e culturas de outros países, desde que se tenha cuidado para não criar

estereótipos de determinados lugares, como as “Aventuras de Tintin”, criado por Hergé.

Nessa historinha em série, o “Tintin” (principal personagem e mocinho do conto) viaja por

vários países do mundo. Em uma de suas viagens, ele visita a União Soviética (URSS), onde

descreve os comunistas como figuras maléficas. Contudo, mesmo com essa falha do autor,

esse material é considerado de boa qualidade. Mas, talvez, o material mais importante das

HQs para se trabalhar com a Geografia e, principalmente, com a geopolítica, sejam os

trabalhos produzidos por Joe Sacco.

Certamente, uma das maneiras mais valiosas de se trabalhar a Geografia, utilizando-se

as HQs, são as de linguagem cartográfica. Com seu uso adequado, é possível explorar a

representação do espaço, da escala, e visão vertical, visão oblíqua e também leitura de

símbolos, oferecendo uma gama de formas de trabalho viáveis ao professor. A cartografia se

mostra de suma importância, pois é um instrumento que possibilita exercitar a leitura do

espaço, estando também, diretamente ligada aos afazeres da geopolítica.

As possibilidades de se trabalhar com as categorias geográficas, por meio das HQs,

são múltiplas e de natureza variada. Rama (2009) oferece algumas possibilidades

interessantes. Cabe ao professor de Geografia averiguá-las e desbravá-las.

Page 15: Porque usar

14

Por sua vez, o uso das HQs com um parecer histórico também pode ser útil ao

professor de Geografia. Entre as produções de HQs mais interessantes referidas por Vilela

(2009), que tratam do ambiente de vivência de um conflito, que podem ser utilizadas em

abordagens geopolíticas, estão “A guerra dos Farrapos”, escrito por Tabajara Ruas e

desenhado por Flávio Colin, e “Adeus, chamingo brasileiro”, que trata da Guerra do Paraguai,

escrito e desenhado por André Toral. Mas, sem dúvida, duas grandes obras de HQs que tratam

de grandes conflitos geopolíticos são “Maus: a história de um sobrevivente” e “Gen: pés

descalços”. Em “Maus: a história de um sobrevivente”, o autor Art Spielgelman retrata o

drama judeu durante o nazismo. Nessa obra, os personagens são retratados como animais

antropomorfizados: os gatos representam os nazistas e os ratos são encarnados pelos judeus.

Já em “Gen: Pés Descalços”, Nakazawa retrata o sofrimento de sua família na explosão da

bomba atômica, em sua cidade.

De maneira geral, os trabalhos mencionados por Vilela (2009), apresentam algumas

opções viáveis a práticas de ensino em Geografia, que estão à espera de práticas de ensino

gloriosas por parte do professor de Geografia. No decorrer deste trabalho, vamos contemplar

o trabalho de Joe Sacco, “Palestina: na Faixa de Gaza” (2003), com o qual pretendemos

explorar múltiplas escalas de percepção de um conflito geopolítico e, ao final, alcançar uma

proposta de prática de ensino voltada para a geopolítica, usando o material específico de Joe

Sacco.

Page 16: Porque usar

15

Pré-capítulo

A geopolítica do conflito entre israelenses e palestinos

Este pré-capítulo, ou este item, tem como objetivo traçar uma pequena evolução

histórica do conflito na região da Palestina, localizada no Oriente Médio, onde israelenses e

palestinos (Árabes) vêm se digladiando desde a formação do Estado de Israel.

Nesta ocasião, não farei uma construção histórica da evolução dos povos, nem

tampouco abordarei aspectos culturais de tais povos. A linha de observação ficará no que

tange aos fatos geopolíticos, nas tensões entre esses dois povos que acarretam tal conflito.

Para que não haja nenhuma dúvida, o objetivo deste item se resume em colocar o leitor

a par da situação. Mas para isso, antes é necessário esclarecer no que consiste a geopolítica,

para só assim, ser possível suscitar um de seus pontos de tensão e também evitar possíveis

confusões.

[...] A geopolítica é um saber engajado, comprometido com um pensamento e com

objetivos políticos; embora analisando o Estado como produtor de um espaço, ela

não tem um rigoroso critério científico. A geografia política, ao contrário, é um dos

enfoques da ciência geográfica no qual se estudam a distribuição dos Estados e os

tipos de organização do território a que eles dão origem. Ela não é marcada

fortemente pelos preconceitos do determinismo geográfico, que tenta explicar a

expansão ou a necessidade de expansão dos Estados, com base em condições

naturais (ANDRADE, 2001, pag. 9, 10).

Como pode se notar essas duas práticas se confundem e até mesmo se tocam, pois

ambas dão foco ao papel do Estado como gestor do espaço, todavia, a Geografia política tem

caráter científico da distribuição dos Estados e os tipos de organização do território a que dão

origem, enquanto a geopolítica é vista como saber dos políticos e militares, que se apropriam

de seus conhecimentos para empreenderem práticas estratégicas no espaço que manifestam

em alguma espécie de poder.

Sendo assim, o desenho que hoje delineia a situação na Palestina, começa a ser pintado

com traços mais claros em 1947, quando a Organização das Nações Unidas (ONU), por

iniciativa dos Estados Unidos, aprovou um plano para a partilha da Palestina, que seria

concretizado em 1948, com a fundação do Estado de Israel. Essa medida se valeu dos

acontecimentos do Holocausto na Europa, comandado pelas forças nazistas de Hitler,

gerando, do meu ponto de vista, um campo de supervalorização do sofrimento judeu e

sensibilização da comunidade global em prol de concessão de um lar nacional para os judeus.

Page 17: Porque usar

16

A decisão da ONU satisfez a comunidade judaica, que se aclamava detentora dos

direitos sobre aquelas terras, de onde havia sido expulsa nos anos 50 da Era Cristã, pelo

Império Romano, evento que ficou conhecido como Diáspora. Entretanto, a resolução da

ONU não agradou aos palestinos que habitavam a região. Eles eram maioria na área e viram

seu território ser recortado (os palestinos ficaram com a Cisjordânia e Faixa de Gaza) e

entregue a uma população que entendiam como invasora e que ficou com a maior parte da

divisão do território, enquanto os palestinos foram empurrados para as franjas do território e

não tiveram a concessão de um Estado independente.

A partir desse período, os palestinos passam a sofrer pressões dos israelenses,

apoiados pelo governo norte-americano, sendo equipados militarmente por este aliado. Como

os palestinos não foram capazes de fazer frente ao aparato militar dos israelenses foram

reduzidos a uma população de segunda classe ou expulsos de suas terras, confiscadas pelo

governo israelense.

O crescimento dessas tensões entre judeus e palestinos resultou, em 1967, num grande

conflito que ficou conhecido como Guerra dos seis dias. Nessa ocasião, os israelenses levaram

vantagem, destroçando as tropas egípcias, sírias e jordanianas que tinham aderido à causa

palestina. Ao final do conflito, os israelenses passaram a controlar Jerusalém Oriental e a

Cisjordânia (território antes sob a administração da Jordânia), a península do Sinai e a Faixa

de Gaza (Egito) e as Colinas de Golã (Síria). Todavia, em 1973, Egito e Síria tentaram

reverter à situação, na oportunidade lançaram um ataque surpresa no “dia do perdão para os

israelenses”. Mas essa tentativa também fracassou e mais uma vez as forças árabes saíram

derrotadas. Em virtude de pressões diplomáticas, o Sinai foi reincorporado ao Egito na década

de 1980, mediante um acordo de paz com Israel. Já a Faixa de Gaza só foi devolvida aos

palestinos formalmente em 2005, o que não inibiu o governo israelense a realizar incursões

militares e a expandir os assentamentos nesta área. Por outro lado, as Colinas de Golã

continuam sobcontrole de Israel.

Em 1987, novamente, um grande conflito foi deflagrado, dessa vez pelos palestinos. A

Intifada (que quer dizer “sacudir-se” ou “levantar-se”), como ficou conhecido o movimento

popular de resistência palestina à ocupação israelense, tomou as ruas em protesto à morte de

quatro crianças na Faixa de Gaza. Apesar dos palestinos terem sido ferozmente reprimidos

pelas forças israelenses, o movimento revelou ao mundo a triste condição dos palestinos e deu

início a tentativas diplomáticas mais claras em busca de se solucionar o problema.

Page 18: Porque usar

17

Porém, as tentativas de paz não caminharam bem e, em 2000 os palestinos deflagraram

a segunda Intifada – essa mais violenta do que a primeira. Novamente os palestinos foram

brutalmente repelidos. O último grande embate entre israelenses e palestinos foi no final do

ano de 2008, quando o exército israelense bombardeou a Faixa de Gaza supostamente para

desmantelar o “grupo terrorista” Hamas, que opera intensamente na região.

Esses são alguns fatos históricos marcantes que ressalvamos para relembrar ao leitor,

de maneira resumida, visando situá-lo minimamente na situação do conflito na Palestina e

mais diretamente na Faixa de Gaza. De maneira nenhuma traçamos todos os eventos

consideráveis em toda essa marcha. Acontecimentos importantes, datados de antes de 1945,

não foram relatados, nem mesmo o importante papel outrora da Organização de Libertação da

Palestina (OLP) e do Hamas após 1987, e é claro dos governos de linha-dura de Israel.

Nessa pequena entrada para o capítulo 1 deste trabalho, o objetivo foi demonstrar que

existe um grande foco de tensão nesta área, isto é, um grande conflito geopolítico que vai

além de suas fronteiras. Com essa premissa, irei tomar a questão na Palestina como meu

aporte de análise. Neste contexto, a Faixa de Gaza será o local onde depositarei minhas bases

teóricas, sempre voltadas para as formas de representação e compreensão do espaço, que vão

além das formas tradicionais da Geografia clássica. Ao leitor que deseja se aprofundar no

estudo histórico do conflito entre palestinos e israelenses, sugiro buscar outras fontes de

informação. Existem excelentes livros sobre o assunto disponíveis em português, dentre os

quais, para o uso do professor no ensino médio, indico “Geopolítica: o mundo em conflito”

(FUSER, 2006) que certamente iniciará qualquer ledor ao conturbado universo das relações

internacionais e, principalmente, acrescentará ao leitor mais informações sobre os fatos

históricos do conflito entre israelenses e palestinos.

Page 19: Porque usar

18

Capítulo 1

Crítica ao ensino de Geografia despolitizado

Alguns dos problemas nas práticas de ensino de Geografia se referem à maneira

despolitizada como a transposição didática dos conteúdos é feita, com forte enfoque no

didatismo e não numa perspectiva crítica, que permita ao professor mediar o conhecimento e

o senso comum. Percebe-se que essa fragilidade tem raízes na formação docente inicial e

continuada. A formação inicial, entendida como o tempo de licenciatura, trata de uma

Geografia que desde algum tempo foi desalojada de qualquer ênfase nos estudos relacionados

às estratégias geopolíticas de ação no espaço, colaborando com o desenvolvimento de uma

Geografia acrítica. Nesse sentido, a crítica dirigida às práticas de ensino de Geografia

despolitizada deve atacar os alicerces de tal mal-estar e para constatar a produção das práticas

de ensino de Geografia apolíticas, cabe-me o retorno as suas condições estanques.

A Geografia se funda como ciência dentro do quadro positivista, no século XIX, sobre

as bases de seu primeiro pensador moderno, Alexander Von Humboldt, o primeiro a se

preocupar com as questões metodológicas do estudo de assuntos geográficos e a estabelecer

leis gerais e evolutivas para essa ciência. Porém, foi com o fomento de outro grande mentor,

Friedrich Ratzel, que a Geografia alcançou voos mais altos e se firmou definitivamente como

ciência. Foi Ratzel que calcou as pretensões dos estudos geográficos, relacionados à política.

Em sua concepção, a Geografia política devia se interessar pelas questões do Estado,

dando prioridade aos assuntos referentes às fronteiras, as nações e suas estruturas e

movimentos internos. Assim, para Ratzel, o Estado-nação era um complexo organismo que

funcionava conforme a coesão garantida pela articulação de suas partes. Uma verdadeira

estrutura biológica do espaço onde a morfologia natural se fundia com os equipamentos

criados pelo homem, dando origem a uma estrutura morfológica do Estado, isto é, uma obra

de organização do espaço criada pelo homem.

Neste viés, Ratzel preconizou o que talvez seja a máxima de seu pensamento “[...]

quando a sociedade se organiza para defender território, transforma-se em Estado [...]”

(RATZEL, apud MORAES, 2007, p. 70). Preocupado com as questões de unicidade da recém

Alemanha unificada, Ratzel valorizou os assuntos de organização do Estado, onde a

população tem papel importante como corpo sólido, tornado nação, considerada como, grupo

Page 20: Porque usar

19

mais ou menos homogêneo que habita um determinado recorte espacial do globo, que se

desenvolve conforme as riquezas naturais de sua área de vivência, associadas as suas técnicas

específicas de intervenção no espaço.

Contudo, foi o discurso geopolítico de Karl Haushofer que promoveu uma visão da

Geografia associada ou vinculada diretamente a práticas militares da Alemanha na Segunda

Guerra Mundial. É Haushofer que materializa mais claramente alguns dos ideais do

expansionismo alemão, associando-a a geopolítica alemã. Destarte, os estudos geopolíticos

desse período são vistos como manuais de práticas e ações de intervenção no espaço, como

uma verdadeira campanha pelo poder, empreendida pela política hitlerista.

Essas são algumas das primeiras chagas que causaram aversão ao estudo de assuntos

geopolíticos pela academia e, consequentemente, para o ensino escolar. Como lembra Lacoste

(1988), essas práticas foram denunciadas como não científicas e avaliadas como ferramentas

de manobra do poder dos Estados, cabendo à Geografia se distanciar de tais propósitos e se

fundar como uma verdadeira ciência acadêmica, tendo como seu objeto de estudo o espaço

regional. Segundo Lacoste (1988), coube ao pai da Geografia francesa, Vidal de La Blache,

na obra “Quadro de Geografia da França” (1905), a consolidação e difusão dessa Geografia

regional que se distanciou das abordagens relacionadas ao papel do homem no espaço,

preconizando uma análise naturalista de certos recortes do espaço, entendidos como únicos e

prontos.

Assim, para Lacoste (1988), esta geopolítica agressiva do Estado alemão poderia ter

causado aversões ao estudo de assuntos geopolíticos, o que teria escamoteado qualquer prática

séria de estudo de assuntos políticos por parte da Geografia. Entretanto, o próprio Lacoste

chega a se perguntar se isso seria de fato verdade. Suas críticas dirigidas a Vidal e,

posteriormente a Lucien Febvre, acusam esses dois de terem promovido um campo de estudo

apolítico para a Geografia. O primeiro, como já ressaltei, teria banalizado o campo de estudo

da Geografia e amputado desta ciência qualquer tipo de análise de ação no espaço, produzindo

um conceito-obstáculo para qualquer avaliação espacial crítica, pois o objeto da Geografia de

Vidal, que é a região, estabeleceu uma Geografia essencialmente descritiva em detrimento de

uma analítica. Com essa implicação, as ações do homem, empreendidas no espaço, ficam

numa penumbra na qual os geógrafos não podem tocar. Já o segundo, Lucien Febvre, teria

definido a Geografia como uma ciência modesta, que não se preocupa com os estudos

relacionados à política, cabendo esses à História.

Page 21: Porque usar

20

Enfim, considerando a participação desses dois personagens e o contexto histórico de

desenvolvimento da política hitlerista, o embasamento geopolítico resultante criou traumas e

afastou os geógrafos dos assuntos geopolíticos. É de responsabilidade, também, de grande

parte da comunidade geográfica, a formação dessa Geografia despolitizada, pelo desinteresse

e falta de olhar crítico no estudo de temas políticos que essa classe se absteve – e ainda se

abstém – de fazer.

Para Lacoste (1988), existem duas Geografias atualmente, mas elas emanam do século

XIX. A primeira é a Geografia dos Estados-maiores, como ele a define. Esta é a Geografia

antiga, constituindo

[...] um conjunto de representações cartográficas e de conhecimentos variados

referentes ao espaço; esse saber sincrético é claramente percebido como

eminentemente estratégico pelas minorias dirigentes que o utilizam como

instrumento de poder (LACOSTE, 1988, p. 31).

O geógrafo francês apelida essa Geografia como a dos reis, pois essa seria, há muito

tempo praticada por esses antigos homens do poder. Era privilégio do rei, conhecer todo o seu

vasto ou pequeno território, para articular práticas que garantissem a sua organização e seu

controle. Por meio de cartas, elaboradas por cartógrafos, os reis tomavam conhecimento do

seu território administrativo e podiam empreender suas atividades militares, econômicas,

políticas, etc. Dessa forma, cabia ao geógrafo-cartógrafo fornecer ao rei uma representação da

realidade do território em uma carta, função importante na época, que cabia ao geógrafo

realizar como homem de confiança do rei.

Já a outra Geografia é a dos professores,

[...] que apareceu há menos de um século, se tornou um discurso ideológico no qual

uma das funções inconscientes, é a de mascarar a importância estratégica dos

raciocínios centrados no espaço. Não somente essa geografia dos professores é

extirpada de práticas políticas e militares como de decisões econômicas (pois os

professores nisso não têm participação), mas ela dissimula, aos olhos da maioria, a

eficácia dos instrumentos de poder que são as análises espaciais. Por causa disso a

minoria no poder tem consciência de sua importância, é a única a utilizá-las em

função dos seus próprios interesses e este monopólio do saber é bem mais eficaz

porque a maioria não dá nenhuma atenção a uma disciplina que lhe parece tão

perfeitamente „inútil‟ (LACOSTE, 1988, p. 31).

Nos ditames de disciplina desinteressante, em especial pela prática de inúmeras

catalogações de elementos espaciais e suas localizações, é que a Geografia vai ser

reconhecida pelas outras disciplinas, como um saber de enumeração de diversos elementos de

outras ciências. Uma ciência inútil, para geógrafos semianalfabetos no que se refere às

Page 22: Porque usar

21

apreciações do espaço. É neste bojo que a Geografia se difunde em diversas escolas pelo

mundo, como prática de decoreba de nome de capitais, rios, climas, etc. Uma representação

homogênea diluindo a imagem real posta em diversas telas de fenômenos históricos: tais telas,

mal sobrepostas, encobrem as ações do poder. Este teatro de observações, onde os bastidores

não são vistos, manipula e descaracteriza a razão de ser da Geografia: um conhecimento

estratégico do espaço, que permite agir eficazmente nele.

É nesta crise de leitura do espaço político que práticas obsoletas de interpretação do

espaço são absorvidas pelo consumismo de massa. A Geografia do espetáculo, assinalada por

Lacoste (1988), ganha espaço entre os manuais de Geografia, sendo difundidos pelo mercado

em formato de belas imagens de diversas partes do mundo. Esses cartões postais ou imagens

televisivas de diversos lugares oferecem ao público uma visão de lugares nunca antes vistos,

mas escondem as relações de poder quando desprovidas de raciocínio crítico do espaço e de

uma representação adequada do real.

De todo modo, para Lacoste (1988), a representação do espaço não é tão simples

assim. Ela advém de uma carta onde se tem uma representação vertical, mais ou menos

refinada, da realidade espacial a qual se pretende inferir. Essa abstração do espaço é, acima de

tudo, cartográfica, mas ela no máximo atinge ao nível de representatividade de 1 metro.

Estando o homem excluído desse mapeamento em suas maiores escalas, pois não faz parte do

espaço absoluto de objetos imóveis.

A técnica de interpretação de uma realidade espacial exposta em uma carta deve levar

em conta o método de diferenciação espacial. Este consiste em prender em uma carta um

determinado fenômeno, sobrepondo-o a outros conjuntos que deem foco a outros fenômenos.

Só assim é possível elaborar um complicado quebra-cabeça que associe esses fenômenos a

outros fenômenos, em cartas de variadas escalas, onde se busca a correlação entre tais

fenômenos. Essa prática se assemelha a uma pilha de papéis transparentes mal organizados,

onde todos estão empilhados, mas de maneiras diferentes. Esses papéis têm dimensões e

formatos diversos, mas estão empilhados na mesma coluna, esta coluna claro, é a escala de

uso. Cabe ao raciocínio geográfico perfurar esses papéis e achar a interseção entre eles,

construindo a delimitação de tais fenômenos sobrepostos. É como montar um conjunto de

quebra-cabeças sobrepostos e fazer a relação entre eles. Contudo, quando se muda de escala, a

relação entre esses conjuntos também se modifica, pois as colunas ganham ou perdem

algumas folhas.

Page 23: Porque usar

22

Entre todas essas cartas de escala tão desigual, não somente diferenças quantitativas,

de acordo com o tamanho do espaço representado, mas também diferenças

qualitativas, pois um fenômeno só pode ser representado numa determinada escala;

em outras escalas ele não é representável ou seu significado é modificado [...]

(LACOSTE, 1988, p. 74, grifos do autor).

São essas representações de espaços diferenciais que põem em destaque a análise de

assimilação de diversos conjuntos espaciais em multiescalas de representação.

Contudo, essa representação do espaço, já bem complexo, não é suficiente para ser

operacional. Não é suficiente, de fato, raciocinar como fizemos até agora, sobre as

interseções entre as diferentes espécies de conjuntos espaciais, no âmago de um

mesmo território é preciso também considerar suas dimensões, que podem se referir

a ordens de grandeza muito diversas [...] (LACOSTE, 1988, p. 70).

Essas são desde grandes dimensões, como a de um continente, ou de pequeninas dimensões,

como de uma vila. Como se percebe “[...] a representação mais operacional e mais científica

do espaço não é a de uma divisão simples em „regiões‟, em compartimentos justapostos uns

aos outros, mas a de uma superposição de vários quebra-cabeças bem diferencialmente

recortados”. (LACOSTE, 1988, p. 70). Essa concepção sistêmica de leitura do espaço é que

possibilita o geógrafo combinar diferentes níveis de análise com diferentes ordens de

grandeza, acoplada ao exame de múltiplos conjuntos espaciais.

As práticas vidalinas de descrição das regiões, como conjuntos harmoniosos, sopram

para longe qualquer exercício de raciocínio estratégico por parte dos geógrafos. As

interseções de relações entre as cartas são maquiadas por traços firmes que sucumbem o

geógrafo de realizar uma pesquisa aplicada. E quando este atinge a escala de observação do

lugar, uma maquiagem da paisagem naturalista, que evoca em muito pouco o papel do

homem, o faz míope na observação das manifestações do poder no espaço, e seu diagnóstico

fica apenas no nível de observação das energias dos fenômenos naturais. O que parecia ser o

apanágio da Geografia se revela como um infortúnio dessa ciência.

De fato, a Geografia do professor ou acadêmica promoveu a difusão dessa ciência em

diversos países do mundo, mas sob-bases ideológicas que camuflam o papel do geógrafo na

sociedade como interventor no espaço. Contudo, ao crer que a Geografia deve cumprir o seu

papel na sociedade como ferramenta de apoio ao cidadão, busca-se, o amadurecimento de um

olhar crítico na educação, algo que possibilite as pessoas referir-se a diversos conjuntos

espaciais complexos de seu dia-dia. Mas, frequentemente, esta ciência se abstém dessa função

fazendo com que o cidadão, na lida com conjuntos espaciais complexos, nos quais está

inserido, se sinta no meio de um furacão.

Page 24: Porque usar

23

A carta é o instrumento de trabalho do geógrafo, com a qual deve buscar encontrar as

inter-relações dos fenômenos entre diferentes cartas de escalas variadas. Somente assim, pode

se construir um verdadeiro raciocínio geográfico, tomando conhecimento da superposição

espacial de diferentes categorias de fenômenos em extensões desiguais. Todavia, a carta é

uma representação abstrata do espaço como realidade, construída por inúmeras escolhas, onde

não se pode alcançar o nível mais fundo da representação do real. A carta tem limitações de

representação do fino do ambiente de vivência, muitas vezes, não alcança uma representação

adequada do meio em que o homem age e faz parte.

Num mapeamento de uma pequena aldeia pode se obter uma excelente

representatividade do espaço, entretanto, esta não incluirá o homem, se detendo na descrição

da superfície terrestre. Isso se torna um problema, na medida em que certos movimentos são

perdidos na transposição da representatividade do real em sua fase de transformação (ação),

somente alcançando o seu resultado final, isto é, sua forma (ato).

A Geografia vem se preocupando, nas últimas décadas, com outras formas de

representação do espaço, não somente aquelas que tangem os recortes da geopolítica

tradicional, onde os Estados são a praxe de estudo. Se as fronteiras políticas de um Estado são

um recorte no espaço de um determinado modo de produção do espaço geográfico, existem

outras internas a essa, as quais muitas vezes são focos de tensões e de conflitos diversos.

Diversos recortes coexistem dentro de outros recortes no espaço, e assim

sucessivamente. Todos estão mais ou menos relacionados com as suas partes, o que

normalmente gera uma forma que se subentende seja uma representatividade da realidade

espacial. Estando esta representação em certa escala, ela vai valorizar certas medidas, o que

pode distorcer ou esconder algumas formas. Vai camuflar ainda mais se essa representação do

que se entende como real for alguma que deprecie alguma comunidade ou grupo, que não

consegue fazer voz diante da representação da classe ou grupo dominante.

Portanto, a Geografia dos que são dominados vai ser ocultada pelas classes

dominantes, por essa representação do espaço imprecisa, tomada como conjunto da realidade.

Num Estado, uma representação dos limites de suas fronteiras internacionais vai gerar

determinada representação de realidade, esboço em um recorte do espaço. Entretanto, as

regiões que constituem esse mesmo Estado, não necessariamente vão ser representadas neste

mesmo nível, ficando num nível de análise em segundo plano; as suas subregiões já seriam

Page 25: Porque usar

24

um nível mais abaixo e subsequentemente, os lugares, (isso se ficarmos apenas no nível da

organização política). A tarefa mais difícil é representar os lugares, ou seja, os míni recortes

do espaço, como partes integrantes de um grande corpo espacial, e ressaltar os seus conflitos

internos a este grande recorte espacial, quando esses fazem parte do cotidiano de grupos que

não se deseja cartografar.

Escalas de representação da realidade espacial, muitas vezes são telas de formas

dominantes de se ler o mundo, conforme o alfabeto dos atores hegemônicos do poder.

Normalmente, os grupos excluídos de algum tipo de apreciação da realidade-espaço, se

encontram no nível mais baixo de leitura, não sendo cartografados pelos de cima. Quando se

alcança algum tipo de representação desses grupos, suas representações são moldadas com

conotações estereotipadas, que muitas vezes os definem com argumentos negativos, sendo

vistos pela totalidade, como inimigos do grande conjunto da massa, e não como parte

integrante do todo.

Suas reivindicações são abafadas por uma forma de compreender o mundo que não

lhes cabe. A educação e a ciência como ferramenta do discurso das classes dominantes

também inculca nas pessoas a sua maneira de apresentar o mundo. Indivíduos descartáveis

são riscados do mapa, sua cultura e sua identidade são vistas como invasoras e não convém

representá-las, pois essas seriam tratadas como uma enfermidade do grande organismo.

Pode se dizer então, que a Geografia aguarda ansiosa por novas formas de apreciação

da realidade que descrevam todos os recortes espaciais em seus mais diversos níveis de

percepção. Esta nova forma de entender o mundo deve permear todas as camadas de

observação da realidade espacial, sejam elas formas de representação vertical, por meio de um

mapa, ou outras maneiras multifacetadas e multiescalares de aprender e construir uma visão

coerente do mundo.

Page 26: Porque usar

25

Capítulo 2

Na Faixa de Gaza com Joe Sacco: contemplando o espaço de vivência

politizado

Como se utiliza a cartografia para representar um dado espaço, pode-se destacar que

esse é um dos campos que reúne muitos problemas para o ensino de Geografia. Considerando

que um mapa é uma representação de uma determinada área do mundo, com o uso de uma

escala para transposição do registro em um papel, é preciso entendê-lo como algo que

descreve uma realidade espacial, sendo obra do olhar geográfico de quem seleciona os

elementos para mapear (uma carta temática, por exemplo), além de representar o desejo ou o

critério de quem detêm os meios estratégicos para produção dos mapas. A cartografia mapeia

os conjuntos espaciais homogeneizando as particularidades, sendo o trabalho final de

representação do espaço, muitas vezes, o resumo de um ou vários conjuntos espaciais. Então,

como realizar a cartografia de uma particularidade, soterrada pelas representações verticais de

atores dominantes?

Seja como for, esses não são os únicos ônus que pesam sobre a Geografia e sua

principal ferramenta de trabalho. Os problemas na Cartografia vão além das formas

inadequadas de seleção de escalas, tipos de representação e de símbolos, entre outras

dificuldades. Os elementos de representação se atolam em uma confusa malha de conjuntos

espaciais verticalmente sobrepostos e, ao final do trabalho de enquadramento, revelam pouco

das práticas de ação do homem no espaço.

Em todo caso, acredito, que a melhor maneira de se representar uma realidade espacial

num mapa, seja a dos famosos “quebra-cabeças” de Lacoste (1988), nos quais são sobrepostos

conjuntos espaciais de variadas formas e dimensões, e se verifica a interseção entre eles,

utilizando uma escala adequada para tal propósito. Como se percebe, a representação do

espaço não implica numa cartografia simplista, mais num emaranhado de recortes espaciais,

que constituem um jogo de quebra-cabeças sobre quebra-cabeças, e assim sucessivamente.

Entretanto, esses também têm limites de abstração da realidade espacial, pois revelam como

qualquer outro mapa, apenas o nível de visão vertical.

Em decorrência dessa opacidade das formas de representar o espaço verticalmente,

tendo o homem incluso nele, se somam aos mapas, outras fontes de enriquecimento de

Page 27: Porque usar

26

informações, que focam o homem no espaço. Aliás, não é incomum, ver em atlas

(principalmente infantis) imagens de diversos lugares do mundo, que já se encontram

representados num mapa do local fotografado. Essas fotografias, normalmente, focalizam as

práticas de produção do espaço geográfico pelo homem, buscando revelar uma prática de ação

do homem no seu meio, que não é expresso no mapa.

No entanto, essa representação do trabalho do homem no espaço por meio de

fotografias, revela apenas pontos específicos no mapa: é como se o cartógrafo escolhesse

certos lugares para uma representação mais aprofundada das práticas de vivência de um

indivíduo ou de determinado grupo em seu meio. Todavia, essas fotografias paisagísticas

pouco revelam as ações de poder no espaço, pois a imagem estática do homem no espaço não

explica a conexão de suas ações no mesmo. Assim, como o “quebra-cabeça” de Lacoste

(1988) necessita de uma interseção entre mapas de escalas diferentes, que revelem a

operacionalidade dos conjuntos espaciais, essas imagens também pedem uma sequência de

imagens, de ângulos, de dimensões, e de realidades sócio-espaciais diversas para possibilitar a

construção de um raciocínio geográfico dinâmico por meio da imagem.

Quando se observa uma imagem de determinado lugar do globo, sempre se busca

alcançar um horizonte que se encontra espremido em algum canto da fotografia. A falta de

sequência de imagens angustia quem busca entender uma realidade espacial, já que esta

permanece num ostracismo visual, impedida de fazer relação entre os fatos, pois, essa

captação, no máximo foca os objetos do espaço em uma situação estática do homem em

relação a eles.

Estando a cartografia clássica numa situação, onde encontra problemas em representar

o homem em interação com o espaço, na qual reduz esse homem a números quantitativos,

distribuídos sobre determinado território, em uma representação em pequena escala. No nível

da grande escala, o resultado é ainda mais desastroso, estando esse homem ausente de tal

representação. Se uma representação geopolítica se refere à organização do espaço, ainda que

se reportando ao papel do Estado como gestor territorial, os homens que efetuam tal

organização, simbolizando a ação da máquina estatal, não podem ser esquecidos no

mapeamento, sob pena de naturalização dos fatos, tornando-os como se fossem efeito de

fantasmas que ninguém vê. Dessa forma, acredito as interseções das quais Lacoste (1988)

tanto deu ênfase na representação do espaço em sua visão vertical, também podem caber ao

homem, em outros moldes.

Page 28: Porque usar

27

Fazer a relação entre conjuntos espaciais mais ou menos sobrepostos, usando escalas

variadas para alcançar as interseções horizontais, verticais ou oblíquas, consiste em um

verdadeiro raciocínio geográfico. Mas esse raciocínio deve incluir o homem, em todo seu

pacote, pois somente assim será possível realizar a transformação ou metamorfose do formato

de representação vertical da realidade espacial para uma multiorientada, quando essa atinge as

maiores escalas. Como já salientei, as imagens estilo fotografias não são suficientes, porque

não captam o movimento das ações desenvolvidas no espaço geográfico.

Creio que será interessante para a Geografia, pensar em outras formas de

representação do homem no espaço, formas que rompam com esses obstáculos de

mapeamento, que não dão ênfase ao homem em suas práticas.

Invisto, neste estudo, em promover uma representação da realidade espacial que

mescle a capacidade de descrição do cartógrafo, com pontos de fuga da paisagem estática

representados por uma ferramenta que demonstre a dinâmica de movimento dos

acontecimentos. Busco, assim, uma alternativa para romper com esse gargalo que não insere o

homem no espaço, em interação com seus sistemas de vivências. A representação de

determinado conjunto, como o proletariado ou o campesinato, desprovido da interação do

homem com o espaço, não revela a situação desses grupos, porque não se consegue ligá-los,

por meio de suas ações, às diversas estruturas às quais estão submetidos, sejam elas do espaço

físico ou dos modos de produção. Como entender a situação de um trabalhador de uma

fábrica, se a representação vertical demonstra apenas o telhado da fábrica?

Parece, no mínimo, contraditório, mas penso que, Lacoste já tinha apontado esse

caminho, apenas não se aprofundou nele, como se pode analisar em seus estudos:

[...] Sem dúvida, pode se facilmente fazer a carta das estruturas agrárias nesta ou

naquela área, mas ela não explica completamente a situação na qual se encontram os

camponeses. É preciso também levar em consideração as condições climáticas,

pedológicas, topográficas, que não derivam, fundamentalmente, da análise dos

marxistas e que estes tendem a negligenciar, em prol do estudo das relações de

produção [...] (LACOSTE, 1988, p. 147).

A questão fundamental, não é dar foco a esse ou aquele elemento, mas sim constatar,

no caso duma representação em grande escala, mas não necessariamente vertical, uma

realidade espacial, que insira o homem dentro da estrutura da qual ele faz parte e que constrói

todos os dias, por meio de suas práticas no espaço de vivência. Esses espaços, mesmo que

sejam miniespaços, também são políticos, pois fazem parte de uma complexa estrutura de

Page 29: Porque usar

28

camadas confusas, onde cada ser humano integra o todo como uma célula que compõem um

corpo. “[...] Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e

micropolítica” (DELEUZE e GUATTARI, apud HAESBAERT, 2007, p. 115, grifos dos

autores).

Esses miniespaços politizados são carregados de valores simbólicos e estéticos, que a

população local deposita por meio de suas práticas de vivência ao longo do tempo. Como

constatou Corrêa, existe um sentido de pertencer a um determinado local, com o qual se criou

vínculos, originando um significado que é expresso num modo de viver em determinado

recorte espacial. Dessa maneira, um rio, uma montanha, uma praça, uma esquina, um óculos,

todas essas formas ganham sentido quando conectados aos afazeres cotidianos no espaço de

vivência (informação verbal) 2.

Esses significados se situam em escalas variadas, é como se os significados

percorressem vastos espaços os conectando, pois “[...] uma cultura nacional atua como uma

ponte de significados culturais, um foco de identificação e um sistema de representação [...]”

nacional (HALL, 2006, p. 58). Contudo, a peculiaridade é que todo lugar tem um significado

ancorado no conjunto nacional, mas também possui seu significado interno, sendo assim, para

vislumbrar esse entroncamento, articule-se o uso da escala a uma representação (possível) do

significado que emana de um conjunto.

Ao falar que sou brasileiro, construo uma ligação com todos os brasileiros que habitam

o território nacional, mas quando falo, sou capixaba originário da Região do Caparaó,

construo uma ligação mais estreita com um grupo menor de pessoas, em um recorte espacial

também menor, que se afunila ainda mais se me refiro a minha cidade-natal (Guaçuí) ou ao

meu bairro. Esse enquadramento cria reciprocidade entre envolvidos e atinge o mais alto

nível, quando eu mantenho contato intenso com um lugar, que me garante e no qual

desenvolvo uma identidade particular.

É fácil representar o território nacional e generalizar vivências homogêneas de grandes

espaços de vivência: basta realizar determinado recorte para concluir, por exemplo, que o

registro de muitas indústrias e empresas de serviços nos estados que compõem a região

2 CORRÊA, R. L. Processo, Forma e Significado – Uma Breve Consideração. Aula proferida na

Universidade Federal do Espírito Santo. 2009.

Page 30: Porque usar

29

Sudeste fazem dela a mais industrializada do país e que a região Nordeste é menos

industrializada. Pronto, já se criou uma visão superficial de um espaço de vivência em

pequena escala. Porém, como realizar tal tarefa numa grande escala, quando os homens

desaparecem do espaço absoluto, e o espaço de vivência é dissociado dos grupos que o

constroem e o habitam, ao mesmo tempo em que a pequena estrutura do grande corpo

estrutural ganha diversidade e até identidades próprias? Ora, minha cidade natal faz parte da

região Sudeste, que é industrializada. Suas pouquíssimas indústrias não são como as de São

Paulo, por exemplo. Entretanto, ela faz parte dessa rede, estando a ela conectada por meio de

linhas complicadas de se visualizar: situação geográfica, localização territorial, inserção na

rede de bacias hidrográficas, inclusão na dinâmica de movimentação de ventos, pela

disposição no relevo, do clima tropical da região, etc. Como, então, explicar e conectar o meu

espaço vivido, com tantos outros estruturados em uma complexa rede de economias, climas,

geomorfologias, etc. que desvalorizam as formas de representação do lugar e suas

particularidades?

A Geografia humanista valoriza diversos espaços e se “o espaço vivido deve, portanto,

ser compreendido como um espaço de vida, construído e representado pelos atores sociais que

circulam neste espaço, mas também vivido pelo geógrafo, que, para interpretar, precisa

penetrar completamente este ambiente [...]” (GOMES, 2003, p. 319), como a Geografia vai

“descrever o mundo”, se suas formas de representação não atingem as finas ranhuras do

espaço, e se o geógrafo também não vai a todas as partes do mundo.

Sendo o lugar, o lócus onde se germina a construção do espaço político, este fica

encoberto por meios inadequados de mapeamento, porque não há como expressar a totalidade

das ações de poder no espaço territorial e se não é devidamente representado, a cadeia

estrutural da realidade perde sentido. Como é sabido, o geógrafo não pode estar em todas as

partes do mundo. O mapa é que tem a finalidade de informar ao leitor um conhecimento

mínimo sobre uma realidade expressa em uma imagem. Todavia, devido a essas reduções da

representação cartográfica, os lugares mapeados são frequentemente dissociados da realidade

que tentam captar e apresentar.

Para tentar responder a essas questões, proponho um olhar ao passado, resgatando

duas expressões de Humboldt. Não se trata aqui de realizar uma discussão epistemológica

sobre a dualidade da concepção geográfica, mas apenas jogar luz sobre dois aportes teóricos

desse prussiano. Humboldt enfatiza que o geógrafo, determinado a realizar um estudo

Page 31: Porque usar

30

geográfico, deve se valer, de duas abstrações da realidade; a primeira, o prazer da

contemplação que o olhar geográfico minucioso pode proporcionar ao observador, quando

esse constata a numerosa diversidade das formas e dos fenômenos, que poderiam ser descritos

poeticamente. A segunda é o prazer intelectual de compreender as leis gerais da natureza, que

podem dar a ideia de supremacia sobre outras ciências, porque a Geografia é incumbida com

do papel de síntese.

Assinaladas a capacidade de descrição e relação dos fenômenos pelos geógrafos, uma

representação adequada dessa simbiose seria de suma importância para solucionar alguns dos

problemas de representação cartográfica da realidade espacial. Tal representação deve

repousar no que circunda o espaço de vivência, o que implica numa descrição política de

miniespaços, onde o homem age.

A paisagem a que me refiro, e para a qual defendo a elaboração de uma cartografia por

meios alternativos, não é uma paisagem naturalizada, tendo o homem como observador

apenas. É uma paisagem política, onde o homem estende sua mão e toca o espaço palpável.

Para o qual ele simplesmente não vira as costas quando tira uma fotografia, na qual quer

captar ao fundo certo horizonte da paisagem. Esse homem deve segurar a câmera e tocar o

ponto no qual pretende inferir; somente assim pode explicá-lo e moldá-lo quando o flash

acontece. Tirar apenas uma fotografia de uma paisagem é como, se no ato do flash, o

camponês fizesse pose para a câmera e deixasse de realizar o seu trabalho em seu ambiente de

vivência.

Também não estou sugerindo, uma sequência de imagens em ângulos diferentes para

explicar um lugar: isso não seria suficiente, pois esta possibilidade descaracterizaria o papel

do geógrafo e de seu olhar geográfico. Outrossim, reconheço a impossibilidade de representar

tudo do espaço geográfico em um pedaço de papel. Por isso, a capacidade técnica de síntese

do geógrafo precisa ser valorizada, uma vez que sua competência profissional deve permitir-

lhe realizar a interseção entre diversas formas de representar a realidade espacial

cartograficamente, sejam elas verticais, horizontes, oblíquas, panorâmicas, etc.

Por outro lado, não estou querendo inculcar na cartografia, desenhos desprovidos de

caráter científico. Saliento apenas que a cartografia não pode ficar refém do modelo de

representação vertical, quando a gama de realidades vivenciadas que ela quer/deve/precisa

explicar é tão complexa. Sustento que seja valioso para o geógrafo fazer uso de outras formas

Page 32: Porque usar

31

de captação da realidade espacial, relacionando-as com as ações de poder no meio, que

empreguem a arte e a técnica da descrição, impregnadas e impressoras do raciocínio

geográfico: esse, é o mapa-paisagístico que procuro e para o qual, neste trabalho, proponho

uma alternativa de elaboração.

À inquietude que esse encaminhamento de proposta possa estar proporcionando, é que

me movimentou nessa pesquisa, e na qual busco esboçar algumas considerações. Nos estudos

até aqui realizados para esta pesquisa, constatei que existem problemas na representação da

realidade espacial pelas técnicas da cartografia tradicional, disponibilizadas para o curso de

graduação de Geografia. A principal dificuldade em representar a realidade espacial parece

acontecer quando essa busca atinge o nível do lugar, possível apenas numa representação em

grande escala. Essa dificuldade existe mesmo quando o mapa é obra de um raciocínio

geográfico maduro e complexo. Então, para captar a realidade espacial vivida em uma folha

de papel, que seja contundente com a realidade do lugar, em especial para instrumentalização

da Geografia Escolar, proponho novas alternativas de leitura do espaço local, ou do lugar.

É aqui que o mapa-paisagístico se insere, revelando uma malha de ações sobre a

estrutura humanizada, onde pode se notar o peso das energias humanas agindo sobre o espaço

e com as pessoas. Diferente das formas tradicionais de mapeamento, que se prendem no

formato de representação vertical, o mapa-paisagístico está livre desta lei. Como ele busca

descrever a comunhão de interações numa relação de totalidade-totalizante com o lugar, suas

necessidades de absorção do indivíduo-real-espaço são outras e mais diversas (SANTOS,

2004).

Esta construção se encontra no último nível de descrição da realidade espacial, seu

propósito é absorver as relações de poder pessoa a pessoa e também suas relações com o

espaço – esta última contida nos objetos espaciais. Cabe ao mapa-paisagístico descrever o

lugar, demonstrando a transparência de uma sequência de ações humanas empreendidas pelo

homem no espaço. Sendo assim, sua finalidade última é apresentar o significado que o espaço

tem para os homens, por meio das ações desses no espaço, ações que repousam em certos

ambientes, dando sentido à vida em determinados lugares.

A verdadeira anatomia do espaço, da qual o homem também faz parte como um agente

transformador e peça importante em toda a dinâmica, que não é mecânica, só pode ser descrita

pela gama e comunhão de todas as imagens, sejam elas: verticais, horizontais, oblíquas,

Page 33: Porque usar

32

panorâmicas, etc. Ressaltar as ações humanas que moldam o espaço, dando-lhe um

significado e uma identidade ao homem, é o grande objetivo a se alcançar neste trabalho.

Portanto, representar o “espaço real”, não estático, por meio das ações, entendido como o

espaço de vida, reforça o entendimento da produção do espaço geográfico pelo homem.

Porém, como fazer isso? Entendo que instrumentos como as HQs podem servir como

material concreto que possibilite aprimorar a visão da realidade espacial e temporal,

principalmente quando o indivíduo leitor não se encontra em contato direto com o espaço.

Para isso, usarei, para exemplificar a compreensão do raciocínio geográfico que busco

desenvolver para composição de um mapa-paisagístico, o trabalho do cartunista e jornalista

Joe Sacco, “Palestina: na Faixa de Gaza” (SACCO, 2003), considerando-o como bastante

apropriado como aporte instrumental.

Sacco nasceu na ilha de Malta, em 1962, passou sua infância na Austrália, mas, ainda

jovem, mudou-se para os Estados Unidos, onde se formou em jornalismo pela Universidade

de Oregon. Seu primeiro grande trabalho que retratou conflitos geopolíticos foi “Palestina:

Uma Nação Ocupada” (SACCO, 2000). Este trabalho lhe consagrou o Prêmio HQ Mix 2000.

Em 2001, novamente recebeu o mesmo prêmio com seu segundo grande trabalho “Área De

Segurança Gorazde” ou “Gorazde: A Guerra Na Bósnia Oriental” (SACCO, 2001). Na

sequência, produziu ainda outro trabalho importante envolvendo conflitos geopolíticos: “Uma

História De Sarayevo” (SACCO, 2005).

Os trabalhos de Sacco, mencionados acima, reúnem o que denomino elementos

básicos do mapa-paisagístico: valorizam a forma e geometria dos objetos espaciais; são multi

representativos; captam a ação do homem no espaço, por meio de uma sequência de ações

descritas que revelam uma particularidade, isto é, a identidade do lugar construída pelas

pessoas; apresentam pontos de fuga, que constroem a noção de profundidade da imagem;

estabelecem relações proporcionais entre pequenas estruturas e conjuntos do miniespaço em

interação com o homem.

O crivo de seu método é acentuar as formas do espaço, em conexão com as ações de

seres humanos, à medida que a projeção do indivíduo-realidade se aprofunda. Mas não num

sentido do homem habitando a tela da superfície terrestre, pois como se pode notar, a obra de

Sacco pode ser entendida como um conjunto de mini quebra-cabeças do lugar, acrescido de

enquadramentos multiformes em diversas orientações visuais. A realidade vivencial

Page 34: Porque usar

33

apresentada por Sacco, não é esboçada em uma única tela, ainda mais numa tela plana visível

apenas na visão vertical, ela é composta por diversas telas maleáveis, orientadas em diversos

sentidos que se entrelaçam por meio de nós, construindo assim uma representação de uma

dada realidade socioespacial que se pode dizer conectada com o quadro de vivência de um

lugar.

Seu trabalho é, sobretudo político, carregado de uma estética precursora e

revolucionária, contendo informações históricas enquadradas no cotidiano comum, vivido de

indivíduos ordinários. O cotidiano e o indivíduo ordinário são conceitos desenvolvidos por

Certeau (2008) que visa apresentar o que é a vida, no rés do chão, no dia-a-dia. Segundo ele, o

cotidiano se constrói como espaço e como tempo, sem glamour de excepcionalidade, sem a

artificialidade de uma criação intencional para descrição. Com esse entendimento, é possível

compreender, também, ações de poder no espaço; que em momento algum são desprovidas de

enfoque, sejam elas um ato violento, uma simples fala, ou mesmo, um olhar atento.

Em “Palestina: na Faixa de Gaza”, Edward W. Said faz uma homenagem crítica do

trabalho de Sacco no prefácio da obra.

[...] Suas imagens são com certeza mais gráficas do qualquer coisa que você possa

ler ou ver na televisão. Joe é uma presença atenta, às vezes cética, ás vezes saturada,

mas na maior parte do tempo compreensiva e engraçada, como quando ele nota que

uma xícara de chá palestina quase sempre é atolada de açúcar, ou que os homens,

talvez involuntariamente, se reúnem para trocar histórias de pesar e sofrimento

assim como os pescadores comparam o tamanho dos peixes, e caçadores, o porte de

suas caças (SAID, 2003, p. x).

Said também advoga que, Sacco absorve a

[...] realidade existencial vivenciada pelo palestino médio quando em sua descrição

da vida em Gaza, o inferno nacional. A ociosidade do tempo, a pobreza (para não

dizer a sordidez) da vida cotidiana em campos de refugiados, a rede de trabalhadores

voluntários, mães desoladas, homens jovens desempregados, professores, policiais,

o onipresente de chá ou café, a sensação de confinamento, lama e feiúra transmitida

pelo campo de refugiados, algo que simboliza toda a experiência palestina - isso

tudo é descrito com precisão quase assustadora e, paradoxalmente, de forma

delicada [...] (SAID, 2003, p. xi).

E salienta, se o leitor

[...] prestar atenção, vai perceber a descrição cuidadosa de diferentes gerações: como

crianças e adultos fazem suas escolhas e vivem sua pobre existência, como alguns

falam e outros ficam em silêncio, como vestem casacos velhos, jaquetas de todos os

tipos e hattas quentes. Numa vida improvisada nos limites de sua terra natal, onde se

tornaram as criaturas mais tristes, desprovidas de poder e contraditórios, com um

forasteiro que não é bem-vindo [...] (SAID, 2003, p. xi).

Page 35: Porque usar

34

Em suma, o trabalho de Sacco pode ser considerado uma descrição poética

estruturalista, isto é, uma estrutura espacial do lugar, pois suas representações descrevem o

indivíduo condicionado aos seus espaços vividos, numa espécie de cadeia de objetos

espaciais, com suas formas bem destacadas em contado com as práticas do homem num meio.

Esta geometria das formas espaciais e de ações humanas integradas por meio de práticas de

poder no espaço de vivência, é que caracterizam sua obra como única, no que se aloca um

paralelo político oculto, mas presente e atuante.

Destaca-se que Sacco não fica preso às referências políticas que abrangem ações

militares: sua percepção é mais profunda, ele aborda o cotidiano do conflito – justamento o

que interessa mais a este trabalho, pois na maioria das vezes, só se toma conhecimento do

conflito na Faixa de Gaza, quando os jornais informam sobre algum “homem bomba” ou

coisa do tipo. Sacco elaborou um trabalho minucioso, em dois volumes, durante sua estada em

Jerusalém, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, entre o fim de 1991 e início de 1992. Parte de

sua jornada é relatada em “Palestina: na Faixa de Gaza”, onde ficou pouco mais de uma

semana em dois campos de refugiados, Nuseirat e Jabalia.

É nesta vivência de Sacco, que vou realizar uma breve análise voltada para fins de

trabalho na educação básica (ensino médio mais apropriadamente). Os recortes escolhidos não

devem ser vistos como resumo da obra de Sacco e tampouco como programa de um conteúdo

fechado para se utilizar HQs na sala de aula. A obra de Sacco é multifacetada e não pode ser

aprendido aqui em sua totalidade. Vou expor, apenas, algumas sugestões de assuntos que

podem ser trabalhados na sala de aula utilizando a HQ de Sacco, tendo como foco principal,

desenvolver a sensibilidade crítica dos alunos.

Mas antes, cabe ressaltar que foi

[...] entre os séculos XV e XVII, [que,] o mapa ganhou autonomia. Sem dúvida, a

proliferação das figuras „narrativas‟ que o povoam durante muito tempo (navios,

animais e personagens de todo o tipo) tem ainda por função indicar as operações –

viagem, guerreiras, construtoras, políticas ou comerciais – que possibilitam a

fabricação de um plano geográfico. Bem longe de serem „ilustrações‟, glosas

icônicas do texto, essas figurações, como fragmentos de relatos, assinalam no mapa

as operações históricas de que resulta. Assim a caravela pintada no mar fala da

expedição marítima que permitiu a representação das costas. Equivale a um descritor

de tipo „percurso‟. Mas o mapa ganha progressivamente dessas figuras: coloniza o

espaço delas, elimina aos poucos as figurações pictóricas das práticas que o

produzem. Transformado pela geometria euclidiana e mais tarde descritiva,

constituído em conjunto formal de lugares abstratos, é um „teatro‟ (este era

antigamente o nome dos atlas) onde o mesmo sistema de projeção justapõe no

entanto dois elementos diversos: os dados fornecidos por uma tradição (a Geografia

Page 36: Porque usar

35

de Ptolomeu, por exemplo) e aqueles que provinham de navegadores (os portulanos,

por exemplo). No mesmo plano o mapa junta lugares heterogêneos, alguns recebidos

de uma tradição e outros produzidos por uma observação. Mas o essencial aqui é que

se apagam os itinerários que, supondo os primeiros e condicionando os segundos,

asseguram de fato a passagem de uns aos outros. O palco, cena totalizante de origem

vária são reunidos para formarem o quadro de um „estado‟ do saber geográfico,

afasta para a sua frente ou para trás, como nos bastidores, as operações de que é

efeito ou possibilidade. O mapa fica só. As descrições de percursos desapareceram

(CERTEAU, 2008. p. 206, 207, grifos do autor).

Após esse longo parágrafo de Certeau, que ajuda a esclarecer algumas questões de

como o mapa surgiu e se expandiu, é necessário frisar, que o mapa-paisagístico não consiste

num retrocesso do modelo de representação espacial ancorado no itinerário de percursos no

espaço, como se esse fosse uma linha ligando pontos entre os lugares. Mas sim, num modelo

de complemento das cartografias do lugar, nesse sentido, os relatos ajudam não apenas a

conectar pontos no espaço, mais também (usando a expressão de seu livro) a triturá-los, por

isso ele é vivencial, multiorientado e multifacetado.

Esclarecido algumas questões que pudessem gerar ambiguidade, passo à apresentação

de representações. Selecionei quinze páginas da obra de Sacco para trabalhar. Elas estão

divididas em seis grupos. Advirto que algumas apresentam um teor de violência maior,

cabendo ao professor julgar se devem ser usadas ou não na sala de aula. Não creio que haja

problemas no trabalho de Sacco, pois ele sabe poupar o leitor de cenas desnecessárias, sem

prejudicar o seu trabalho.

Insisto que o trabalho de Sacco não deva ser utilizado apenas como manual de

denúncia. Ele é isso também, mas se destaca como um verdadeiro documento da triste

realidade de opressão aos palestinos. De tal maneira que, o professor não deve se apoiar nele

para fazê-lo seu palco de denúncia. Em minha concepção, Sacco possibilita uma conexão

entre uma realidade em ampla dimensão, de pequena escala, e a do espaço de vivência de um

lugar, por meio de uma rica malha de trações que revelam um ambiente, que fica oculto em

representações tradicionais da cartografia. Acima de tudo, este é um material didático, que

propicia ao professor de Geografia trabalhar assuntos do campo desta ciência de forma crítica

e politizada, desde que esse utilize outras fontes junto ao trabalho de Sacco, na sala de aula.

Page 37: Porque usar

36

Quadro de proposta de temáticas para se trabalhar o conflito geopolítico entre israelenses e

palestinos na Faixa de Gaza, utilizando “Palestina: na Faixa de Gaza” (SACCO, 2003).

Grupo Temática Contextualização

A - páginas

3 e 73

Observando o espaço

de vivência

Escolhi essas duas páginas para servirem como instrumento de leitura

do espaço de vivência. Na p.3, a visão é panorâmica, como se fosse

um quadro feito do terceiro andar de um prédio. A p.73 representa um

nível mais baixo, uma imagem horizontal que revela uma

profundidade em seu ponto de fuga: esta se parece com uma visão de

uma pessoa em cima de uma escadinha. Ambas revelam uma

estrutura do ambiente, onde o homem está presente e agindo. No

entanto, a p.3 se parece mais com um mapa, pois sua visão se

aproxima do tipo vertical. Isso é notável quando se observa o telhado

das casas. Sua estrutura paisagística é mais clara, embora apresente

uma menor dimensão. A p.73 é mais poluída, pois as estruturas estão

sobrepostas pelo sentido da imagem horizontal, esta se parece mais

com a visão que temos cotidianamente no ambiente urbano.

B - páginas

21 e 81

Sionismo (a formação

de Israel)

Nas páginas 21 e 81, o professor de Geografia terá um excelente

material didático para trabalhar o conteúdo histórico do conflito entre

israelenses e árabes. Tanto na página 21, como na página 81, a

história do conflito é narrada por personagens que vivenciaram tal

acontecimento. Fazendo uso de um material adequado que preencha

as lacunas das experiências relatadas, o professor de Geografia pode

construir uma aula de grande teor crítico, trabalhando com o fato

histórico associado às experienciais particulares vividas. Observe que

as duas histórias são muito semelhantes, o que ajuda a compreender

melhor a história dos indivíduos associada à cartografia de um povo.

Nessas duas páginas, como nas dos conjuntos C, D, E e F. Sacco afina

sua percepção e se aprofunda na cartografia do lugar, ao enxergar

indivíduos vivendo em miniespaços do lugar. Também concede

visibilidade as suas vivências ao expor seus modos de vida

condicionados em certa medida pelo ambiente de conflito, da voz a

indivíduos descartados pelas cartografias verticais representando seus

corpos no lugar, associando-os a produção histórica do mesmo,

revelando a identidade desses com o meio. Em suma, pode se dizer

que Sacco percorre diversas salas de um grande compartimento, ele

desbrava diversos planos de visão que nas representações verticais

são reduzidas.

C - páginas

49 e 50

Intifada de 1987 Nessas duas páginas, mais uma vez, Sacco volta no tempo para

explicar um fato histórico do conflito entre israelenses e árabes por

meio de experiências vividas. Tudo tem início quando quatro crianças

palestinas são mortas por um caminhão israelense, o que inflama a

população da Faixa de Gaza. Contudo, os primeiros alvos são um

grupo de palestinos que se divertiam jogando cartas, situação que é

entendida pela massa revoltada como desagregação pela causa

palestina, sendo essas pessoas repremidas fisicamente. Como essas

duas páginas vão deixar claro, a Intifada foi um movimento

espontâneo, ao mesmo tempo em que é também um resultado

histórico das submissões dos palestinos aos israelenses. Dificilmente

outro conteúdo será tão revelador e didático como essa passagem da

obra de Sacco para explicar o início da Intifada. Obs.: Sacco relata

apenas a Intifada de 1987, pois na segunda Intifada de 2000, ele não

retornou a Faixa de Gaza para realizar trabalho semelhante.

D - páginas

17 e 55

Meninos de Gaza As páginas 17 e 55 relatam a triste experiência dos meninos militantes

pela causa palestina na Faixa de Gaza. Chamo a atenção para o crime

dos direitos humanos quando vários desses meninos são punidos

sobcondições de tortura. Sacco demonstrou uma atenção especial aos

meninos da Faixa de Gaza: em várias passagens eles estão presentes,

seja em primeiro plano ou como figurantes na densa paisagem de seu

Page 38: Porque usar

37

quadrinho. Mais uma vez o trabalho de Sacco se mostra pioneiro,

dando visibilidade a indivíduos “descartáveis”. Pode se ressalvar

nessas duas páginas, que o espaço pode ser adaptado aos afazeres

humanos, tudo dependerá do encaminhamento da ação. Assim, um

hospital pode se tornar lugar de tortura, isso dependerá das geometrias

do poder se alojando em pequenas formas espaciais, que geram

territórios.

E - páginas

22, 77, 78,

100, 129 e

130

Fronteiras e controle Nessas seis páginas, talvez, esteja o conteúdo mais interessante para

desenvolver o olhar crítico dos alunos. Na p. 22 se percebe logo que a

fronteira pode ser a porta de sua casa, quando é noite. Nas ps. 77, 78 e

100 fica claro que a Faixa de Gaza é uma área de total vigilância, pois

o território é recortado por uma malha de fronteiras físicas, que,

porém, só são eficientes quando vigiadas. Isso fica claro na p. 100,

quando a menina acha uma falha no cercado e rompe o bloqueio, não

por causa do buraco na cerca, mas porque ela não estava sendo

vigiada no momento. É interessante pensar como a Faixa de Gaza é

extremamente controlada por cercas, muros e olhares, mas que num

segundo se transforma em terra incógnita, onde ninguém sabe o que

se passa. Por fim, as ps. 129 e 130 concluem a temática, agora

tomando como exemplo as vias de transporte de veículos motores: a

mobilidade para os palestinos se mostra extremamente tênue e

dispendiosa, seja internamente ao território de Gaza ou nas suas

fronteiras internacionais.

F - página

110

Expansão dos

assentamentos judaicos

Em toda sua obra, Sacco aborda as questões do expansionismo

israelenses sobre terras palestinas. Isso é notável na construção do

território da Faixa de Gaza, quando os palestinos são empurrados e

espremidos para a franja do território na fronteira com o Egito.

Entretanto, isso fica mais claro quando ele sai da Faixa de Gaza e

conversa com duas judias em Jerusálem. Cabe pensar aqui, na

produção de um espaço passivo aos judeus, e outro, oneroso aos

palestinos.

Essas são algumas das temáticas, selecionadas como hipótese para se desenvolver um

trabalho em sala de aula utilizando “Palestina: na Faixa de Gaza” (SACCO, 2003). Saliento,

mais uma vez, que não discuto todas as possibilidades e assuntos que podem ser trabalhados

na sala de aula. Temáticas importantes como a política de Israel no controle da água potável e

a economia do território da Faixa de Gaza limitada por Israel, também podem ser

desenvolvidas tomando como base a obra de Sacco.

Segue-se nas próximas páginas o conteúdo trabalhado e discutido acima, lembrando

que esses estão divididos em seis grupos (A, B, C, D, E, F). Caberá agora ao professor de

Geografia analisá-los e fazer a sua avaliação.

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Grupo A – Observando o espaço de vivência (páginas 3 e 73).

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Grupo B - Sionismo (páginas 21 e 81).

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42

Grupo C - Intifada de 1987 (páginas 49 e 50).

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Grupo D - meninos de Gaza (páginas 17 e 55).

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Grupo E - Fronteiras e controle (páginas 22, 77, 78, 100, 129, 130).

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Grupo F - Expansão dos assentamentos judaicos (página 110).

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Capítulo 3

Do geral ao lugar: um caminho a se percorrer no estudo de Geografia

Novas formas de cartografar o mundo, não apenas pelo método da visão vertical,

implicam também, novas projeções da realidade, por meio de outros modelos de

representação. Questionar o uso da visão vertical como fórmula, senão única, mas primordial

ou preferencial, que possibilite o exame dos fenômenos, não necessariamente significa

dispensar a representação vertical, mas sim, integrá-la a outras projeções, mapeamentos e

cartografias da realidade. Na proposta deste trabalho, uma que valorize a realidade espacial

vivida de indivíduos descartáveis.

No percurso teórico, até aqui empreendido, que vai da análise mais geral da Geografia,

num âmbito global ou internacional, até a categoria lugar, destaco, insistentemente, que

alcançar a representação de uma realidade, significa, sobretudo, vasculhar todos os

desdobramentos do espaço, em busca de conexões entre fatores do lugar e do grande conjunto

espacial. É claro, que em determinadas representações, o modelo vertical será o bastião

básico, mas em outros, isso não necessariamente ocorrerá. O mais importante, é fazer a leitura

do espaço associando conjuntos espaciais por meio de escalas diversas, e variadas formas de

representação da realidade que conectam o geral ao lugar.

Abranjo que a primeira leitura de um dado espaço implica o uso da representação

vertical. Contudo, se o objetivo é alcançar um determinado ponto, e atingir a esfera do lugar,

isso indica que se faz necessário avançar através de diversas camadas de entendimento da

realidade socioespacial. Tal manobra conduz a uma releitura do espaço, para que ela seja

condizente com a realidade do espaço de vivência, sua tutela não pode ficar presa a apenas a

uma forma de representação da realidade espacial.

Numa guerra, a representação vertical é a arma dos generais – seja por meio de um

mapa ou da imagem de um satélite –, dominar essa técnica se mostra um artifício louvável

para a estratégia militar. Realizar uma operação militar cirúrgica, como por exemplo, jogar

uma bomba na cabeça de Saddam Hussein3, em Bagdá, tornou-se algo possível com as novas

3 Estou me referindo ao tempo em que Saddam era vivo, quando o presidente iraquiano nunca dormia no mesmo

local que tivera passado a noite anterior, pois temia ser alvejado pelo exército norte-americano.

Page 55: Porque usar

54

tecnologias. No entanto, interferir nesse mesmo espaço, por outros caminhos que não sejam

verticais, se mostra tarefa mais árdua. Avançar sobre terras rugosas é uma atividade que

demanda grande esforço e tempo, estando sempre à mercê de surpresas e armadilhas. A

representação vertical é o alicerce dos moldes estratégicos de se intervir no espaço, porém,

quando se adentra no lugar, logo se percebe que a representação vertical é insuficiente, pois

no nível do lugar, como venho procurando mostrar, a realidade vivencial não é construída

apenas por abstrações verticais.

Com o viés de compreensão do espaço político em sua integridade, levando em conta

as micropolíticas, instaladas nos lugares, nota-se que o mapeamento vertical não alcança a

complexidade do viver, por isso o viver é amputado das representações. Assim, dês-socializa-

se miniespaços políticos, ao nível do lugar onde se busca uma realidade rugosa e não

aplainada como um papel liso. Nesse nível não se pode empregar apenas os meios de

representação do espaço que usam a visão vertical, pois há necessidade de se alcançar,

também, a descrição da paisagem altamente humanizada, onde os homens estão em ação, por

meio de algo que revele outras dimensões, outras vivências, outra realidade.

Para atingir esta meta, muito mais complexa do que mapear um dado espaço de forma

tão milimetricamente definida, como o objetivo de jogar uma bomba ou sequestrar Saddam

Hussein, por exemplo, não basta apenas pular do avião e descer em Bagdá. Para a

complexidade de compreensão e representação ensejada, torna-se necessário “fatiar” as

diversas camadas de entendimento da realidade socioespacial, constatando suas conexões

múltiplas em diversos níveis. No nível do lugar, a malha de ações se apresenta muito mais

densa e diversificada, estando essa agarrada a cotidianos, viveres, culturas e etc.

Quando se alcança o nível do lugar, se vivência a estrutura do meio, se faz parte e

também se sofre as energias do mesmo: assim, modos de vida que pareciam escondidos nas

representações verticais, se revelam a cada momento. Busca-se então, que os conjuntos

espaciais se conectem por meio das miniestruturas do lugar. Essa codificação é que pode

romper o entendimento de realidade espacial como plana, como se fora a superfície de um

papel liso.

Todavia, as cartografias tradicionais, debruçadas sobre a visão vertical, elaboram uma

representação plana do espaço, em acordo com a escala utilizada. Dessa forma, podem

representar um espaço mais vasto, embora com menor riqueza de detalhes, se a escala

Page 56: Porque usar

55

utilizada é pequena. Se a escala é grande, a riqueza de detalhes será maior, porém, a extensão

representada será menor. Em meu entendimento, a preocupação de Lacoste (1988) era nivelar

essas disparidades na associação de fenômenos em conjuntos espaciais variados, que

necessitam de escalas variadas para serem representados e articulados a outros conjuntos

espaciais em tais circunstâncias. Por isso, a finalidade de se construir um quebra-cabeça, onde

os conjuntos espaciais se encontram sobrepostos e integrados por suas interseções em diversas

escalas. Daí que se assemelhem a um nó, numa peça de tricô.

Como se não bastassem às dificuldades de atingir a representação de espaços

diferenciais, outro problema se aloja no nível do lugar: à medida que a representação vertical

se aprofunda em sua descrição, se apresentam mais obstáculos em inserir o homem nesse

mapeamento. Se o espaço ganha formas mais precisas no nível do lugar, concomitantemente

há uma tendência de invisibilização do homem nesta representação.

Esquema 1: modelo de representação vertical

Para ilustrar o raciocínio, valho-me do esquema 1 que consiste num modelo de

representação vertical das cartografias clássicas. Nele estão contidos dois modelos simbólicos

de determinado espaço: o quadro interior esboça uma representação em grande escala,

Page 57: Porque usar

56

enquanto o quadro externo esboça uma representação em pequena escala. Ambos estão

impregnados de objetos espaciais. O primeiro valoriza as formas, o segundo valoriza a

extensão. Cada um deles se torna o mais indicado para uma espécie de ação no espaço: se a

pretensão é de interferir num bairro, o primeiro (o quadro interno) é o ideal, mas se o anseio é

intervir na cidade, o segundo (o quadro externo) é o indicado. Tomando como exemplo o

esquema 1, nota-se que um mesmo conjunto espacial pode receber descrições cartográficas

diferentes e que isso vai depender da escala utilizada, visando determinados fins.

Mas como Lacoste (1988) demonstra4, que é possível achar a interseção entre

conjuntos espaciais de diferentes ordens de grandeza, para agir estrategicamente no espaço.

Para explicar isso, ele se vale de um exemplo da Guerra do Vietnã (anos de 1965, 1966, 1967

e 1972) quando o exército estadunidense orquestrou um plano de destruição de diques naquele

país, com o objetivo de inundar as planícies densamente povoadas do Vietnã nos períodos de

cheia. Assim, o bombardeio era dirigido a pontos estratégicos, buscando causar o máximo de

estrago. Mesmo o conjunto espacial do homem estando presente nesta representação, note que

ele permanece no nível da visão vertical, sendo mais legível a presença do homem, na

representação espacial em pequena escala, e decaindo de representatividade à medida que se

atinge a grande escala. Isso é notável, pois a população das planícies vietnamitas, naquele

tempo, era em torno de 15 milhões, ocupando uma extensão relevante, mas ali também o

espaço era a forma no objetivo, e, no nível do lugar, o prejuízo econômico e a matança era o

objetivo: o homem, meta a ser atingida na manobra ofensiva, era apenas um elemento

espacial, continuava não representado.

Constata-se que a cartografia clássica estabelece relações entre conjuntos espaciais

apenas no nível da representação vertical, seja ela em menor ou em maior escala. Fica assim

inibida de atuar com outras representações, permanecendo entrincheirada numa adequação da

realidade que não experimenta outros caminhos de interpretação do espaço além da descrição

da visão vertical, não fornecendo, portanto, outros modos de se ler e de se intervir no mundo.

4 O método dos “quebra-cabeças”: Lacoste estabeleceu sete ordens de grandeza e diferentes níveis de análise

espacial, as quais, neste trabalho, se reduzem aos dois extremos da hierarquia com elas montada, ou seja,

pequena escala e grande escala ou grande ordem e pequena ordem. Saliento que essa noção é relativa, como, por

exemplo, no esquema 1, onde a pequena escala é o quadro externo e a grande escala é o quadro interno. Ambas

não circundam os extremos da hierarquia das sete ordens de grandeza estabelecidas por Lacoste, mas, neste

trabalho, essa adaptação é constante e necessária para os objetivos traçados.

Page 58: Porque usar

57

Como discutido anteriormente, superar as imperícias de representar os miniespaços,

que são os lugares, não é tarefa fácil. No entanto, tais dificuldades podem ser minimizadas a

partir de trabalhos gráficos como o de Sacco, que buscam representar os indivíduos que são

dominados e afligidos pela representação vertical de determinados centros de poder, através

de um corte na tela dos atores hegemônicos do poder, criando uma espécie de vácuo de saída

para outra cartografia da realidade, que se mostre mais significativa para com a realidade

social.

Neste trabalho, a questão palestina pode representar bem a situação de um lugar. Os

palestinos são uma particularidade, cujas forças do entorno territorial tendem a suprimir do

mapa, por diversas razões, dentre as quais questões políticas, econômicas, culturais

envolvendo as relações de poder sobre o território. Entretanto, sua existência e presença, os

fazem ser parte do universo espacial, estando, contudo, cartograficamente, apenas no nível do

que denomino de segunda linha de realidade, isto é, numa representação elitista, construída

pelos atores hegemônicos do poder em escala mundial, onde se tornam invisíveis no seu

cotidiano, só adquirindo representação como foco de tensão. Cartografar as pessoas e não

apenas o conjunto espacial de Gaza, pode significar imprimir-lhes visibilidade no cenário

mundial, problematizando sua situação, mesmo à custa de avaliações diversificadas. Resumi-

los a um ponto no grande conjunto espacial, por outro lado, possibilita maquiar realidades,

projetando esse povo apenas por meio de concepções estereotipadas e forjadas por grupos

hegemônicos do poder.

Desobstruir essa visão induz romper o gargalo dos modelos de representação vertical,

que não inserem as particularidades em sua cartografia, tal limite se encontra no nível da

menor representação possível num mapa tradicional, algo em torno de aproximadamente de

alguns metros. Quando a profundidade de observação do espaço gira em torno de um espaço

tão pequeno, se faz necessário reverter às projeções, pois nesse nível, apesar do espaço ter

adquirido melhor forma, ele deixou de fazer relação entre os conjuntos espaciais (incluindo o

homem), sendo no máximo descritos alguns objetos desse espaço. Tal alienação do que se

vislumbra como real, só pode propor multirrepresentatividades orientadas em diversos níveis.

Essa é a locação onde o mapa-paisagístico se insere. Estando claro isso, um esquema

generalista, que represente o percurso do geral ao lugar, pode ajudar a compreender a árdua

tarefa que se deseja alcançar. Também ajuda a visualizar as permutas realizadas entre os

níveis de compreensão da realidade espacial. No esquema abaixo, é possível verificar que um

Page 59: Porque usar

58

lugar, numa representação vertical, fica resumido a um ponto, seja em pequena escala ou em

grande escala. Mesmo quando se utiliza uma grande escala para acentuar a descrição do

espaço, ele continuará sendo um ponto, só que agora maior, mas ainda assim um ponto numa

representação plana. Isso ocorre porque não se inverteu a maneira de ler o mundo, apenas se

variou de escala.

Esquema 2: quadro geral do percurso do geral ao lugar

Por isso, se faz necessário, compreender que as práticas desenvolvidas num lugar,

como na Faixa de Gaza, são ações humanas, carregadas de significados, que se instalam em

determinadas geometrias estruturais, dando uma configuração particular ao lugar (a

morfologia espacial). Pela incorporação do quadro de vivência na análise da carta

Page 60: Porque usar

59

conformasse um rompimento da representação simplista, alheia ao conjunto de relações,

constituindo o que se denomina neste trabalho de fissuras da representação espacial

tradicional, que corresponde mais precisamente a uma leitura de maior profundidade da

realidade socioespacial. Superando a visão extremamente banalizada de uma “zona de tensão”

como polígono hachurado no mapa. Tais fissuras são decorrentes da transplantação de

cenários que compõem a realidade em movimento sobre as representações hegemônicas.

Dessa forma, tomando o caso da Faixa de Gaza, são fissuras na representação banal, e que no

método elaborado neste trabalho, primou pela introdução da vida cotidiana dos palestinos no

nível da representação cartográfica.

A Faixa de Gaza como compartimento catalisador de energia humana, permite o mais

fácil desenvolvimento de fissuras da representação espacial tradicional, onde fluem, no

sentido de uma revindicação ou luta de uma causa de identidade de um grupo que habita o

lugar. Ao adquirirem corpo e potência, superam a primeira linha da realidade de seu espaço de

vivência oculto, onde se encontram suprimidos pelas cartografias dominantes. Nessa

cavalgada, ao emergirem para a segunda linha da realidade, entram em conflito com a

estrutura do status quo.

Para postular sobre esse entendimento, é necessário ressaltar, que os quebra-cabeças,

sejam os maiores ou os pequeninos, existem em decorrência de recortes espaciais e temporais

mais profundos, que são depósitos de volumes de intensidade de ação de diversos fenômenos

na superfície terrestre. A realidade espacial, não é construída apenas pela associação de

fenômenos em suas linhas de ocorrência verticais, horizontais, ou mesmo, multiorientadas,

mas, também, pelo peso de fusão e de atuação de tais fenômenos, onde o homem interage

ativamente. De fato, existe um peso dos conjuntos espaciais e temporais agindo sobre a

superfície terrestre, onde o homem também age modelando esses espaços.

Achar a interseção entre alguns conjuntos espaciais em determinada escala e atingir o

nível do lugar, implica relacionar essa construção a volumes de intensidade agindo na

superfície terrestre, mesmo quando se consegue descrever o lugar. Tal descrição deve se ater,

também, ao peso das energias que agem e modelam o lugar em ressonância com o espaço.

Dessa maneira, quando se encontra a interseção entre alguns conjuntos espaciais – sejam eles

clima tropical, vegetação de mata atlântica, relevo acidentado de mares e morros, hidrografia

de rios volumosos e caudalosos, economia predominantemente agrícola, etc. – busca-se

entender, o peso desses fenômenos agindo sobre o recorte espacial e temporal, indo desde o

Page 61: Porque usar

60

geral ao local, pairando sobre o lugar – se faz necessário entendê-lo por meio de múltiplas

representações.

Num conjunto espacial, onde atua o clima tropical, por exemplo, este tipo climático

não vai ter uma ação homogênea no espaço delimitado por sua atuação, mesmo estando sua

ação espacial presa a certas leis, mais ou menos gerais, numa generalização. Ainda assim,

existem linhas de fuga, que incluem as particularidades locais. Apresentando então, estações

de seca e chuva, cujos, volumes de intensidades agem temporalmente e espacialmente de

formas diferenciadas, além de agirem localmente diferenciadas, produzem fenômenos que

repercutem em frases tais como: “em meu bairro não choveu”. Do mesmo modo, também, é

ação do homem no espaço, diferenciada por estar em interação com esses e os outros

elementos da interseção espacial. Tais pesos de intensidade, dos volumes depositados na

superfície terrestre, geram trabalho entre a natureza+homem, natureza+natureza,

homem+homem..., e assim sucessivamente, sendo que nessa interação, nessa comunhão entre

elementos é que se formam as paisagens com significados para o homem.

As fissuras da representação espacial tradicional que estamos trabalhando, buscam

inserir nas representações o cotidiano da vida e relações de poder que permeiam a sociedade.

A vivência ao ascender e atingir o nível da segunda linha da realidade, a linha de uma

representação lisa da realidade. Infiltra-se num ideal travestido do lugar, que ganha forma

espraiada no espaço, de uma causa comum ao lugar, como, por exemplo, o movimento

nacionalista dos palestinos.

Essas fissuras são representativas da teia de relações na dimensão do lugar, que estão

sempre se deslocando e ganhando corpo. Como os homens não são estáticos no espaço, seu

deslocamento no lugar também deposita nele volumes de intensidade. Isso me permite afirmar

que quanto maior o contraste entre o representado e o vivido no espaço, maior a condição de

inserir o cotidiano e a estrutura de poder na representação cartográfica.

O esquema 3 esboça o processo pelo qual se insere na representação cartográfica

situações do vivido, ou seja, da própria realidade como ela é, envolvida por antagonismos e

conflitos. Embora, o esquema ainda seja superficial e incompleto, ajuda a ilustrar melhor o

raciocínio desenvolvido neste estudo. Suscintamente, o retângulo superior diz respeito à

segunda linha da realidade, isto é, a representação que se faz, geralmente, banalizada, da

realidade. Já a primeira linha da realidade corresponde ao retângulo inferior, ou a própria

Page 62: Porque usar

61

vivência e realidade do lugar. O retângulo inferior, o que ilustra a primeira linha da realidade,

constitui uma espécie de mosaico político, cultural e social. Ele, ao contrário das

representações tradicionais, não pode ser entendido como algo liso, no sentido que esta última

não abarca apenas o espaço e seus objetos imóveis, mas também, o cotidiano.

Esquema 3: contato entre a 1º linha da realidade e 2º linha da realidade

A questão do papel do lugar na organização espaço, e, sobretudo, como ponto de

encontro entre o geral o local, age como pino de explicação do complexo geo-histórico,

ganhando mais sentido, se o raciocínio caminha por essa linha. Por isso mesmo, a questão

envolvendo os miniespaços, ou melhor, os lugares, são tão importantes como ação política.

Como exemplo, o genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, conceituado

como holocausto, só foi descoberto nos campos de concentração nazistas, ao nível de lugar.

Para Certeau (2008) os percursos dos relatos organizam lugares numa ordem espacial.

Seu raciocínio segue paralelo ao desse trabalho, quando afirma: “[...] os relatos [...]

atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles

fazem frases e itinerários. São percursos de espaços” (CERTEAU, 2008, p. 199). Tomando

esse aporte de Certeau, isso poderia ser postulado a esse trabalho como o discurso

hegemônico dos atores dirigentes organizando lugares em escala mundial, no qual pretendem

construir um grande espaço ordenado por um lócus de poder, isso é, um lugar.

Page 63: Porque usar

62

Por isso não é possível abarcar toda a explicação de algum fato, por meio apenas de

representações verticais de um espaço, mesmo quando realizadas através da sobreposição de

vários conjuntos espaciais. Ainda que essa construção estabeleça conectividade entre os

conjuntos espaciais da ordem de grandeza do continente europeu até a ordem de grandeza

suficientemente pequena para atingir Auschwitz, e mesmo que essa relação entre os

fenômenos dos conjuntos espaciais fosse construída por uso de associação de escalas variadas

e adequadas, parece estar faltando algo. A vivência desses indivíduos no lugar, num tempo

específico do lugar, em interação com a cadeia de geometrias espaciais do lugar, não implica

em nada.

Foi quando se atingiu o nível do lugar, com sua configuração espacial específica e

também com suas práticas de vivência exclusivas, que os judeus superaram a condição de

indivíduos descartáveis, superando um espaço ordenado por uma lógica de poder. Deste

modo, se espraiaram pelos conjuntos espaciais produzindo uma “quase” totalidade espacial,

acentuada pela colocação do povo judeu como vítima do nazismo durante a Segunda Guerra

Mundial.

Dito de outra forma, a realidade não é invertida: os judeus não saem da posição de

vilões a mocinhos, ela é apenas descoberta, o que gera um ordenamento num sentido

semelhante aos dos relatos de Certeau (2008). Quantas Auschwitz não esperam serem

descobertas também? Pergunto-me se serão criados novos conceitos para se referir ao

massacre de outros povos, sejam eles palestinos, iraquianos, ou outros. Parece, portanto,

existir um lugar aqui, ali, em todo lugar, existe um lugar em mim e em você. Assim, quando a

realidade for apresentada de maneira espraiada como lócus político de um único lugar, é

preciso suspeitar.

Não é possível, pensar a realidade espacial, mesmo no sentido amplo desse trabalho,

como se ela fosse um papel liso: é preciso pensar em diversos lugares. É preciso pensar o

lugar como se fosse uma bolinha de papel amassada. Pode-se sempre amassá-la e depois

desdobrá-la, porém, sua forma nunca será a mesma após a ação. Quando se desdobra a

folhinha de papel, é preciso notar que o tipo de papel será o mesmo de antes da ação, as

palavras escritas também permanecem nele, mas a folha estará diferente: ela ganhou algumas

rugas, tornando-se mais viscosa. Do mesmo modo, também é o espaço-lugar onde o homem

habita e ao qual confere sentido.

Page 64: Porque usar

63

Capítulo 4

Exercitando o raciocínio geográfico: uma pequena amostragem para

reflexão

Neste ponto da pesquisa, pode se afirmar, que a perspectiva de Geografia crítica,

adotada e desenvolvida neste trabalho, se alojou numa determinada cavidade de criticidade;

numa incessante perseguição da busca de uma nova leitura do espaço e de seus ambientes,

com uma espécie de cartografia das geometrias dos lugares, que ganha significado nos

espaços de vivência.

Como estandarte desse viés, a cartografia dos que são dominados, se apresenta como

uma projeção de uma realidade socioespacial que se pretende emancipatória. A abordagem

desenvolvida neste trabalho permite explorar outras percepções e ir ao encontro de uma

fórmula menos reducionista de representação da realidade espacial vivida, o cálculo não é de

subtração, é de multiplicação, carregado de estética. Assim, a maior dificuldade dessa

premissa se encontra nas cartografias verticais dos atores hegemônicos: transpor esse

obstáculo, provém em tornar a representação mais condizente e próxima da realidade

socioespacial.

Além disso, atingir o nível do lugar e desbravar suas potencialidades se mostra uma

vertente rica em novas descobertas. A Geografia Escolar pode ter um papel neste rumo, na

qual

[...] deve ser trabalhada de forma a instrumentalizar os alunos para lidarem com a

espacialidade e com suas múltiplas aproximações: eles devem saber operar o espaço!

Tal postura procura dar conta da compreensão de vida social refletida sobre os

diferentes sujeitos, agentes responsáveis pelas (trans)formações. Com isso, parece

ficar mais fácil para o sujeito reconhecer as contradições e os conflitos sociais e

avaliar constantemente as formas de apropriação e de organização estabelecidas

pelos grupos sociais e, quando desejar, buscar mecanismos de intervenção

(CASTRIOGIOVANNI, 2007, p. 43).

Com esse propósito, deve se estimular o exercício do raciocínio geográfico reflexivo,

com um aporte pelo professor de Geografia, que coloca em pauta, o objetivo de buscar um

raciocínio geográfico por parte dos alunos. Não é o caso do professor de Geografia elaborar

um sistema fechado que fermente o raciocínio crítico. Estaria incorrendo num erro, se esse

fosse o foco. Ao contrário, acredita-se sim, na importância de se instrumentalizar a construção

de um raciocínio crítico. Para isso, o professor pode elaborar uma proposta que conduza e

Page 65: Porque usar

64

propicie o desenvolvimento da análise, seguindo até mesmo um determinado caminho,

entretanto, sem cair em barreiras que fechem fronteiras.

Tendo essa preliminar, um dos papéis de contribuição da Geografia Escolar,

[...] reside na identificação e caracterização das constelações de regulação, isto é,

dos múltiplos lugares de opressão nas sociedades capitalistas e das interligações

entre eles. Além disso, propõe a „invenção de novos sentidos que resultem destas

constelações‟, pois elas „são sementes de novos sensos comuns [sic] (SANTOS apud

CHAIGAR, 2007, p. 79).

Daí, a escolha do lugar “Faixa de Gaza” (local em estado de tensão e conflito

permanente), na elaboração desse projeto de cartografia, que busca representar os que são

dominados. Com a natureza do trabalho de Sacco (2003), articulado ao raciocino geográfico

de Lacoste (1988), proponho uma cartografia do indivíduo. Busco uma cartografia mais rica e

menos reducionista, que permita descrever pequenos espaços, onde habitam indivíduos

descartados pelas representações disseminadas por grupos dominantes. Trabalho na

perspectiva de produzir uma alternativa numa cartografia de representação das geometrias

espaciais do lugar, altamente politizadas em um ambiente de vivência. O objetivo do mapa-

paisagístico é inserir esses indivíduos no mapa, para que eles sejam representados e

identificados, possibilitando assim, uma reflexão crítica da realidade espacial vivida, que

caminhe em direção à formação de um senso comum mais humano e politizado.

Para tanto, é preciso investir e considerar uma dada

[...] sociedade midiática da qual a imagem é parte fundamental, ver algo significa,

um pouco, a legitimação de sua existência. É nesse sentido que compreendo como

importante conferir visibilidade [...] aos movimentos sociais de cunho emancipatório

articulados nos espaços vividos. Afinal, aos olhos e ouvidos acostumados ao „deu na

TV‟, o que não é visto não é lembrado, como diz aliás um ditado bastante antigo e

popular (CHAIGAR, 2007, p. 82).

Uma vez que se realiza a cartografia desses indivíduos, em seu espaço de vivência,

eles deixam o estado de seres inanimados, como por exemplo, nos índices de população nos

mapas que apresentam o homem em forma numeral, ou como, nos mapas que demonstram o

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Faixa de Gaza. Como se o palestinos

estivessem vivendo uma condição natural de suas pobres vidas, como simples objetos, num

lugar fechado em determinada posição do Oriente Médio, próprio ao sofrimento dos

palestinos.

Page 66: Porque usar

65

Como pode se notar, os problemas geopolíticos envolvendo os palestinos mudam

quando as escalas se alteram. Os fenômenos já não são os mesmos na variação de escala. Isso

tudo, porque a forma do espaço também se altera na representação, adquirindo outra natureza.

Um mapa vertical da Palestina pode demonstrar a perda de território do povo palestino, mas

um retrato de uma viela na Faixa de Gaza revela um desastre humanitário ou genocídio. A

reunião de alguns elementos do conflito geopolítico, envolvendo israelenses e palestinos,

pode ser descrita como uma prática de destruição do espaço habitável dos palestinos, uma

incessante tentativa de desterritorialização (HAESBAERT, 2007) desse povo.

Portanto, explorar uma prática de ensino Geografia tomando o rumo deste trabalho,

não é tarefa fácil. O meu desafio e objetivo é uma prática de ensino de Geografia voltada para

uma construção de um raciocínio geográfico, que possibilite estabelecer uma ordem, entre os

conjuntos espaciais, por meio de associação de escalas diversas. Seguindo uma linha de

raciocínio relativamente simples, resumida, mas impregnado de teor de julgamento crítico,

invisto nesse trabalho, que entendo mais adequado para o 3º ano do Ensino Médio,

considerando também, o reduzido tempo que tinha para realizar a prática em sala de aula.

Apesar da prática ter sido realizada em um ambiente escolar, em uma escola do

sistema de ensino público do município de Vitória-ES, penso que resumir a aplicação desse

estudo como viável a apenas em um único lugar, é desconstruir os alicerces dessa proposta. A

prática de se pensar o espaço não se aloja em um grupo específico (estudantes), tampouco em

um lugar próprio (a escola), mesmo que esse seja o lócus principal dos campos de lutas da

Geografia Escolar. Afinal, pensar assim seria descartar as particularidades da proposta e

conduzir o escopo desse trabalho a uma visão vertical, tendo a escola como o único lócus de

se aprender e os alunos como grupo fechado e depósito de informações desse lugar. Desejo

também, que outras possibilidades permitam a socialização e a vivência do que nele

proponho, tal como livros, artigos, programas educativos em diferentes mídias.

Então, o que proponho na sequência desse trabalho, é apenas uma amostragem de

como se trabalhar o raciocínio geográfico do ponto de vista adotado nesse estudo. Com esse

propósito, saliento que estabeleci alguns contornos na formulação da prática em sala de aula,

visando atender o público desejado.

Page 67: Porque usar

66

Em todo caso, focalizei a elaboração da prática em sala de aula, tomando o corpo da

pesquisa como meu baluarte, visando à experimentação de uma proposta didático-pedagógica

da aplicação do mapa-paisagístico.

A prática em sala de aula se realizou na EEEFM Almirante Barroso, localizada em

Goiabeiras, município de Vitória, no dia 6 de maio. A escolha desse estabelecimento não esta

isenta de intencionalidade. Além dessa escola possuir o público desejável (alunos do Ensino

Médio, no caso o 3º ano) e estrutura necessária para a realização da atividade, esse

estabelecimento apresenta histórico de abertura a pesquisadores docentes e de aplicação das

propostas das pesquisas.

O exercício em sala de aula foi dividido em três momentos: no primeiro momento da

aula, para inserir os alunos no contexto do conteúdo trabalhado, desenvolvi uma breve aula

expositiva, onde construí uma linha do tempo, contendo os fatos mais relevantes do conflito

entre israelenses e palestinos. Sendo uma temática praticamente semanal nos telejornais, parti

do pressuposto que os alunos detinham algumas informações mínimas sobre o conteúdo, o

que contribuiria nessa fase do trabalho. Contudo, a compreensão do problema, como um

estudo de assuntos políticos, se mostrou delicada. Os alunos apresentaram baixo nível de

informação, não apenas porque a professora não havia trabalhado, até aquele momento, o

assunto de conflitos geopolíticos, mas também, porque parece que o público jovem (assim

como a população em geral) encontra dificuldades de se identificar com o outro cidadão em

situação de conflito dessa natureza, dificultando então, o desenvolvimento de análises de

relações de poder no espaço.

No segundo momento da aula, fiz uso do retroprojetor, para apresentar aos alunos uma

sequência de cinco mapas em transparência colorida, que recortei do site da National

Geographic Magazine.

Page 68: Porque usar

67

Mapas trabalhados em aula

Fonte: National Geographic Magazine (2010).

Por meio desses mapas, instiguei o raciocínio dos alunos e trabalhei com eles as

representações dos conjuntos espaciais possíveis no uso de uma determinada escala. Dessa

forma, a relação entre as escalas utilizadas para representar determinado(s) conjunto(s)

espacial(is), foi salientada por mim, e também desenvolvida pelos próprios alunos.

Encaminhei a análise das representações, indo da pequena escala, isto é, a do mapa-múndi, até

a grande escala do mapa que corresponde a um recorte espacial da Faixa de Gaza.

Destaquei que as grandes extensões do espaço são representadas por pequenas escalas,

onde é possível representar um espaço maior, mas com menor riqueza de detalhes. Por sua

vez, se o objetivo é representar uma pequena extensão, se utiliza uma grande escala, que

possibilita a descrição do espaço mais detalhado. No primeiro mapa, se verificam grandes

conjuntos espaciais, da ordem dos continentes, oceanos e maiores países, inseridos no grande

Page 69: Porque usar

68

conjunto espacial do planeta Terra. Salientei que eles são representados devido ao uso de

determinada escala, que é pequena, na qual é possível representar grandes extensões

abarcando esses conjuntos espaciais.

No segundo mapa, que realçava o Oriente Médio, mostrei-lhes um novo recorte

espacial, menor em extensão espacial, porém, com mais detalhes. Nessa representação, novos

conjuntos espaciais transbordam no uso de uma escala maior.

E no terceiro mapa, que destaca os territórios da Palestina e Israel, outro recorte,

também menor e com mais riqueza de detalhes, diferentes conjuntos espaciais aparecem

inseridos dentro de outros conjuntos espaciais. Chamei a atenção deles, para observarem que

no terceiro mapa existe uma mancha esverdeada. Um novo conjunto espacial surge quando se

aumenta a escala, mas sua forma não é precisamente delimitada ainda. O uso da escala não

permite que ela (a mancha) se apresente claramente, falta riqueza de detalhes na representação

desse conjunto, apesar dele ser visível nessa escala.

Nesse mesmo sentido, no quarto mapa, onde seguimos o caminho de aprofundamento,

estamos na fronteira da Faixa de Gaza com Israel. Ali se notam novos conjuntos espaciais, de

ordem menor, inseridos dentro de outros conjuntos espaciais. A mancha esverdeada do mapa

anterior ganhou mais detalhes e diversidade, onde se notam mais conjuntos espaciais inseridos

nele. Aquela mancha esverdeada ganha mais forma e se percebe que são campos de

agricultura. Já do lado da Faixa de Gaza. Os conjuntos ainda são pequeninos, não

possibilitando sua identificação. No último mapa, a grande escala utilizada no recorte

espacial, possibilita a identificação dos pequeninos conjuntos espaciais de uma porção do

território da Faixa de Gaza. Assim, estando à representação mais detalhada, avalia-se pelas

características dos objetos representados, que esse espaço é predominantemente urbano.

Como é possível avaliar nessa construção escalar, o uso das escalas propicia a representação

vertical de determinados conjuntos espaciais revelando certa realidade do espaço, através da

descrição da superfície terrestre.

Neste ponto, problematizei com os alunos, se essa representação vertical seria

suficiente para descrever a realidade espacial (em sentido amplo e geral), caso continuasse a

me aprofundar-me na representação. A resposta foi “sim”, mas indaguei sobre o homem, ele

vai ser representado nesse modelo vertical? Então, para responder a pergunta e colocar o

Page 70: Porque usar

69

homem em representação no seu espaço de vivência, estando ele num pequenino recorte

espacial, lancei mão do trabalho de Sacco (2003).

Selecionei cinco páginas do trabalho de Sacco (2003, p. 3, 21, 50,78, 81), e distribui

uma para cada dupla (a turma era de 10 alunos em sala). Após conceder um tempo para que os

alunos analisassem as imagens e buscassem uma problematização dessa cartografia, expliquei

o viés do meu estudo, qual seja apresentar uma “nova cartografia” de determinados indivíduos

por meio das HQs.

Salientei que, nessa representação, o homem está presente, apesar deles já terem

notado isso no primeiro momento, pois segundo um dos alunos essa representação descreve o

homem e o espaço mais detalhadamente. E eu endossei, porque ela é multirrepresentativa, não

estando presa à representação vertical, possibilitando descrever o espaço de vivência onde o

homem esta incluído na representação, revelando assim, uma malha de vivências num

cotidiano de conflito, onde as ações não são descartadas na representação, mas permanecem

em certa medida submetidas a pequenas e grandes estruturas de diversos conjuntos espaciais.

Cabe também ressaltar, que a minha preocupação, na prática, foi destacar uma relação

causal na construção de um raciocínio capaz de ajudar os alunos a se situaram nos conjuntos

espaciais que eles percorrem todos os dias. Se enxergar o homem nos miniespaços foi tarefa

fácil com auxílio do mapa-paisagístico, analisar as relações de poder dos mesmos careceu de

criticidade. Pode se reportar a essa falta de olhar sobre as ações, ao ensino de Geografia

despolitizado que Lacoste (1988) enfoca, do qual ressalvei, no capítulo 1, algumas das

principais implicações de um olhar acrítico e das necessidades e cuidados para formação do

olhar crítico e politizado.

Ao que parece, existe uma dificuldade dos alunos identificarem as relações de poder

no espaço. A Geografia Escolar parece ter contribuído pouco na formação de um cidadão

capaz de intervir no seu meio. Porém, não se deve perder as esperanças no didatismo crítico:

essa dificuldade só acentua a necessidade de endossar propostas comprometidas com esse

enfoque, dentre as quais incluo-a nessa pesquisa.

Uma das dificuldades e fragilidades deste trabalho foi o curto tempo de aplicação e

única aplicação. Ainda assim, partindo do princípio de que estudos desse caráter podem e

Page 71: Porque usar

70

devem ser feitos de maneira inicial e continuada, em busca de se desenvolver um olhar crítico

cotidiano.

No todo, está foi a prática realizada em sala de aula. Não vou dizer até onde os alunos

entenderam a mensagem, seria muita ousadia entrar nas cabeças deles, e porque também,

entendo que cada sujeito aprende em tempos diferentes. Mas para posicionar, o meu ponto de

vista como sujeito (professor), acredito que o resultado foi satisfatório, tomando como

referência o diálogo desenvolvido com os alunos durante a prática. Portanto, a mensagem que

fica, é que vale a pena trabalhar em sala de aula com outras vertentes que não apenas o estudo

com mapas.

Enfim, para desenvolver essa prática, ou alguma de porte semelhante, que articule

agenciamentos, que buscam a projeção de uma realidade indivíduo-espaço menos

reducionista, é preciso estimular o raciocínio crítico reflexivo dos sensos comuns cristalizados

por anos de estudo com uma Geografia acrítica e essencialmente enciclopédica. É de suma

importância que o professor de Geografia, articule e realize relações entre os conjuntos

espaciais representados em escalas variadas, revelando conjuntos espaciais, contextualizando-

os à medida que a escala se altera. No nível do lugar, tal raciocínio também pode e deve ser

adotado no mapa-paisagístico, tomando multiorientações.

Page 72: Porque usar

71

Considerações finais

As representações espaciais devem ser tomadas como um arranjo, não apenas através

da construção vertical de conjuntos espaciais sobrepostos, que refletem uma única natureza

espraiada, mas também, numa construção de uma representação da realidade espacial mais

rica em sua diversidade. Onde é possível dar foco a acurados estágios de socialização,

interligados a construção de territórios no plano do lugar. É o que proponho por meio do

mapa-paisagístico, que descreve os viveres de indivíduos descartados pelas cartografias

tradicionais.

A alçada dessa proposta circunda uma zona trivial para projeção do espaço de vivência

menos reducionista. Essa zona consiste na articulação de uma tríade: conjuntos espaciais -

territórios - geometrias. Os conjuntos espaciais são aqueles que vão determinar a escala de uso

na representação; os territórios são os agenciamentos realizados num sentido de posse (em

sentido amplo) nos conjuntos espaciais e seus atributos e as geometrias são as formas que

ganham significados na territorialização.

Estes três elementos em estado de entroncamento vão possibilitar a projeção do

homem no espaço, pois todo conjunto espacial, para ser representado, demanda o uso de uma

escala adequada. Ao se fazer isso, pode se identificar as formas espaciais desse conjunto, e, se

for o caso, fazendo-se o uso do mapa-paisagístico, identificando territórios não agregados à

Geografia clássica dos mapas verticais. Igualmente, é preciso se ater às geometrias que

provém dos agenciamentos resultantes da construção territorial do contato dos homens com as

formas espaciais. Isso é algo que constrói fronteiras, numa espécie de geometria maleável ou

em dobra, mas que nem sempre são notadas por causa de suas aspirações flutuantes.

Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-

objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se

reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve confundir a

reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela

implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele

mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também

perdeu a sua. Daí todo um sistema de reterriorializações horizontais e

complementares, entre a mão e a ferramenta, a boca e o seio (DELEUZE e

GUATARRI, apud HAESBAERT, 2007, p. 128).

Afinal, a criança se territorializa no seio da mãe, numa geometria especifica que ganha

um significado, o que também faz parte de um conjunto espacial (os corpos da criança e da

mãe num local, um sofá, por exemplo), ou quando escrevo num papel, no qual também existe

Page 73: Porque usar

72

uma territorialidade oriunda de um agenciamento que envolve um conjunto espacial. Não

escrevo em qualquer lugar, mas numa sala que é um pequeno conjunto espacial, que tem uma

mesa onde me debruço e faço uso de alguns objetos, como: lápis, borracha, folha etc. Quando

pego o lápis realizo uma agenciamento, o movimento de fechar dos dedos envolve o objeto ao

espaço da palma de minha mão, o espaço se dobra para envolver o lápis, ocorrendo uma

territorialização.

O feliz exemplo do surfista de Deleuze (1988) ilustra muito bem essa situação.

“Estamos sempre nos insinuando nas dobras da natureza. Para nós, a natureza é um conjunto

de dobras móveis. Nós nos insinuamos na dobra da onda, é esta nossa tarefa. Habitar a dobra

da onda [...]” (DELEUZE, 1988). Para Deleuze, o surfista constrói uma territorialidade na

onda do mar, quando ele a habita, lhe acrescenta um significado que envolve a articulação de

alguns elementos (homem, prancha, onda etc.) num espaço maleável que se dobra.

Portando, se as territorialidades ganham importância na explicação do cotidiano, é

porque, “[...] toda desterritorialização [destruição de territórios ou saída de um território] é

acompanhada de uma reterritorialização [...]” (HAESBAERT, 2007, p. 131), isto é, a

construção de um novo território ou a entrada num novo território na situação de pertencente a

este. Dentre os tipos de desterritorialização, uma importante, é

a desterritorialização absoluta [que] refere-se ao pensamento, à criação. Para

Deleuze e Guatarri, o pensamento se faz no processo de desterritorialização. Pensar

é desterritorializar. Isto quer dizer que o pensamento só é possível na criação, e para

se criar algo novo é necessário romper com o território existente, criando outro.

Desta forma, da mesma maneira que os agenciamentos funcionavam como

elementos constitutivos do território, eles também vão operar uma

desterritorialização. Novos agenciamentos são necessários. Novos encontros, novas

funções, novos arranjos. No entanto, a desterritorialização do pensamento, tal como

a desterritorialização, é sempre acompanhada por uma reterritorialização [...]. Esta

reterritorialização é a obra criada, é o novo conceito, é a canção pronta, o quadro

finalizado (HAESBAERT, 2007, p. 131).

Então, pode-se afirma que realizei uma desterritorialização e uma nova

reterritorialização com a conclusão desse trabalho. Fiz agenciamentos com o que aprendi com

Lacoste (1988) e com Sacco (2003), donde retirei pressupostos e elaborei ideias, que

resultaram no mapa-paisagístico, instrumento que me possibilita atravessar fronteiras e

enxergar o outro, numa ousadia que me atrevo a compartilhar, propor, expor, socializar.

No entanto, tal construção emana de um desejo no sentido que Deleuze (1988) coloca.

Ao se desejar algo,

Page 74: Porque usar

73

só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se deseja um todo [...] Proust

disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem

que posso não conhecer, que pressinto enquanto não tiver desenrolado a paisagem

que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará

insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é

algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, [...] é evidente que

não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela

vai organizar o desejo em relação com, não apenas uma paisagem, mas com pessoas

que são suas amigas, ou não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo

algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um

conjunto [...] (DELEUZE, 1988).

Essa noção de desejo também pode ser empregada na cartografia, ao se fazer um

mapeamento: não se deve desejar apenas representar a superfície terrestre, mas em conjunto

as sociedades, a vida. Se a cartografia tem por finalidade representar uma dada realidade

espacial, deveria se buscar a descrição quase total, aquela que inclui os homens, espaços de

vivências, territórios, objetos espaciais, significados, etc.

Parece-me ser isto uma questão de se territorializar o olhar: quando Deleuze (1988)

fala, a respeito da arte barroca, que essa se constitui de dobras sobre dobras, eu trago a

questão para a arte clássica, uma estátua, por exemplo, desse movimento artístico. É

normalmente um corpo liso, sem dobras. Contudo, quando o olhar repousa o foco num dado

detalhe, por exemplo, no rosto da estátua, fica claro que essa apresenta dobras, por mais lisa

que seja essa face. Existe uma dobra, que se deposita embaixo das narinas da face da estátua,

não apenas porque o nariz da estátua consiste numa forma acentuada da face, mas porque,

revela um mundo ao dividir o espaço, a vida acontece de “baixo do nariz da estátua”, é tudo

uma questão de territorializar o olhar e encontrar um ponto de fuga, um ângulo.

Assim, o mapa-paisagístico não deve ser entendido como um ornamento estético do

espaço, mas como, um ângulo de visão que se territorializa em um lugar, e descreve a

realidade socioespacial “em conjunto”. Portanto, a noção de realidade que se buscou alcançar

nesse trabalho, advém de uma territorialização que descreve os conjuntos em arranjo no plano

do lugar.

Nesse projeto piloto, coloquei-me defronte à questão dos palestinos, os célebres

indivíduos descartados. Não é exagero dizer: que a Geografia esta entrelaçada com a arte, não

é o mapa uma obra de arte política e ao mesmo tempo conteúdo de uma estética objetiva? Mas

nunca uma alegoria.

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A incessante busca é numa espécie de testemunho do espaço, onde se adentra o lugar e

se vislumbra suas estruturas como se fossem de uma célula. Onde existem posições estruturais

e movimentos dentro do corpo fechado, mas que também se comunicam com o mundo

externo.

Há algum tempo os geógrafos descobriram a obra prima de Lacoste, espero que o

mesmo aconteça com Sacco, na formulação de uma cartografia política de miniespaços. É

claro, que Sacco não descreve todos os lugares do mundo, mas seus trabalhos já realizados

são suficientes como suporte teórico para novas reflexões no campo da Geografia.

Por fim, esclareço, que ideias, como as de fissuras das representações espaciais

tradicionais e mapa-paisagístico, não devem ser tomados como únicos e acabados, porque

estão em trabalho de maturação e ainda estão sendo forjados pelo martelo do pensamento que

vai ossificar tais posicionamentos. Existe uma querela, onde essas ideias mais se parecem com

uma sala cheia de portas: a cada momento, um ser estranho entra por uma das portas e

conversa comigo, por alguns instantes, e de repente se levanta e sai sem me dizer-me adeus. O

seu rosto, eu não consigo distinguir, mas creio que está tentando me dizer-me algo. Talvez da

próxima vez eu possa ouvi-lo melhor e quem sabe dialogar, por enquanto fico a espreita.

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