por uma sociologia das vanguardas · movimentos de vanguarda em disputa no interior do campo...

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BH/UFC o o S S I Ê POR UMA SOCIOLOGIA DAS VANGUARDAS INTRODUÇÃO pectiva comparativa internaci- onal, isolar especificidades locais na formação dos movi- mentos artísticos e literários. Centrada sobre o estudo das práticas públicas através das quais artistas se auto pr o- duzem como vanguarda num campo particular (artes plás- ticas, literatura, cinema, mú- sica ... ), essa análise visa compreender um dos múlti- plos processos de construção social da obra de arte. Antes de indicar algumas direções da pesquisa num domínio ainda pouco ex- plorado pela Sociologia, é necessário traçar um plano geral de interpretação da história dos movimentos portadores de inovações ar- tísticas até nossos dias. NORBERT BANDlER* RESUMO o texto analisa as vanguardas artísticas e literárias, privilegiando a emergência de grupos artísticos e a construção de rótulos emblemáticos, em substituição ao culto das obras sigulares, comumente elevadas ao estatuto da "verdadeira arte". Segundo o autor, a obra de arte é produto de uma construção social, exemplificada nos movimentos de vanguarda em disputa no interior do campo artístico. O êxito de tais movimentos depende da capacidde de reconhecimento e imposição de valores simbólicos sobre os grupos concorrentes. As diferentes vanguardas tiveram papel preponderante na construção de normas de ciração e dffusão da arte, obtendo subsídios dos poderes públicos e instituções de ensino. Doutor em Sociologia, professor da Université Lumiére-Luon 2, Lyon, França. P ropusemo-nos, neste texto, a abordar o estu- do das vanguardas artís- ticas e literárias com uma perspectiva sociológica que pri- vilegia o aspecto coletivo dos agrupamentos de criadores em tomo de rótulos emblemáticos da novidade e não a partir das obras singulares ou das perso- nalidades que as ilustraram. O agrupamento de indivíduos, com trajetórias sociais diversas, na aventura da criação inovadora é, então, trata- do aqui como um fato específico que é preciso analisar e explicar. A opção metodológica ado- tada consiste em considerar a materialidade dos atos públicos realizados pelos artistas ou por escritores reunidos em tomo de rótulos qualifi- cados como de "vanguarda", para mostrar como esses grupos se apresentam a seus pares e aos diferentes públicos. Esse projeto de uma análi- se sociológica das vanguardas artísticas preten- de completar o estudo interno e estético das produções vanguardistas, já muito avançada, pro- pondo um programa de pesquisas que compor- ta três estágios. Antes de tudo, convém pôr em evidên- cia o sistema de relações no qual um coletivo de criadores se forma para em seguida, mos- trar como estes "apresentam o que eles que- rem representar para avançar, num terceiro momento, com hipóteses sobre o 'êxito' ou o 'revés' de um projeto de vanguarda. Esse pro- grama, que deve poder permitir operar distin- ções pertinentes entre "escolas", "movimentos" e "vanguardas", pode, também, numa pers- AINDA EXISTEM VANGUARDAS? Se o termo vanguarda aparece no discur- so dos críticos de arte por volta de 1880, na Europa, é somente a partir do período de 1905/ 1910 que se manifestam grupos artísticos e lite- rários que se proclamam, explicitamente, de vanguarda, adotando uma série de práticas e de posturas que vão fundar a tradição do vanguardismo. Todavia, pode-se distinguir dois períodos quanto à situação da arte que se quer inovadora e precursora no campo cultural. Numa primeira fase, que vai do fim do século XIX ao fim da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Europa, as produções de vanguarda se inscre- vem claramente numa lógica de oposição radi- cal às instituições acadêmicas e museológicas e BANDIER, NORBERT. POR UMA SOCIOLOGIA DAS VANGUARDAS. P. 7 A 17 7

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Page 1: POR UMA SOCIOLOGIA DAS VANGUARDAS · movimentos de vanguarda em disputa no interior do campo artístico. O êxito de tais movimentos depende da capacidde de reconhecimento e ... res,

BH/UFC

o o S S I Ê

POR UMA SOCIOLOGIA DAS VANGUARDAS

INTRODUÇÃO pectiva comparativa internaci-onal, isolar especificidadeslocais na formação dos movi-mentos artísticos e literários.Centrada sobre o estudo das

práticas públicas através dasquais artistas se auto pr o-duzem como vanguarda numcampo particular (artes plás-ticas, literatura, cinema, mú-sica ... ), essa análise visacompreender um dos múlti-plos processos de construçãosocial da obra de arte. Antesde indicar algumas direções

da pesquisa num domínio ainda pouco ex-plorado pela Sociologia, é necessário traçarum plano geral de interpretação da históriados movimentos portadores de inovações ar-tísticas até nossos dias.

NORBERT BANDlER*

RESUMOo texto analisa as vanguardas artísticas e

literárias, privilegiando a emergência de gruposartísticos e a construção de rótulos emblemáticos,em substituição ao culto das obras sigulares,comumente elevadas ao estatuto da "verdadeiraarte". Segundo o autor, a obra de arte é produtode uma construção social, exemplificada nosmovimentos de vanguarda em disputa no interiordo campo artístico. O êxito de tais movimentosdepende da capacidde de reconhecimento eimposição de valores simbólicos sobre os gruposconcorrentes. As diferentes vanguardas tiverampapel preponderante na construção de normasde ciração e dffusão da arte, obtendo subsídiosdos poderes públicos e instituções de ensino.• Doutor em Sociologia, professor daUniversité Lumiére-Luon 2, Lyon, França.

Propusemo-nos, nestetexto, a abordar o estu-do das vanguardas artís-ticas e literárias com uma

perspectiva sociológica que pri-vilegia o aspecto coletivo dosagrupamentos de criadores emtomo de rótulos emblemáticosda novidade e não a partir dasobras singulares ou das perso-nalidades que as ilustraram. Oagrupamento de indivíduos,com trajetórias sociais diversas,na aventura da criação inovadora é, então, trata-do aqui como um fato específico que é precisoanalisar e explicar. A opção metodológica ado-tada consiste em considerar a materialidade dosatos públicos realizados pelos artistas ou porescritores reunidos em tomo de rótulos qualifi-cados como de "vanguarda", para mostrar comoesses grupos se apresentam a seus pares e aosdiferentes públicos. Esse projeto de uma análi-se sociológica das vanguardas artísticas preten-de completar o estudo interno e estético dasproduções vanguardistas, já muito avançada, pro-pondo um programa de pesquisas que compor-ta três estágios.

Antes de tudo, convém pôr em evidên-cia o sistema de relações no qual um coletivode criadores se forma para em seguida, mos-trar como estes "apresentam o que eles que-rem representar para avançar, num terceiromomento, com hipóteses sobre o 'êxito' ou o'revés' de um projeto de vanguarda. Esse pro-grama, que deve poder permitir operar distin-ções pertinentes entre "escolas", "movimentos"e "vanguardas", pode, também, numa pers-

AINDA EXISTEM VANGUARDAS?

Se o termo vanguarda aparece no discur-so dos críticos de arte por volta de 1880, naEuropa, é somente a partir do período de 1905/1910 que se manifestam grupos artísticos e lite-rários que se proclamam, explicitamente, devanguarda, adotando uma série de práticas e deposturas que vão fundar a tradição dovanguardismo. Todavia, pode-se distinguir doisperíodos quanto à situação da arte que se querinovadora e precursora no campo cultural. Numaprimeira fase, que vai do fim do século XIX aofim da Segunda Guerra Mundial, sobretudo naEuropa, as produções de vanguarda se inscre-vem claramente numa lógica de oposição radi-cal às instituições acadêmicas e museológicas e

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aos mercados, enquanto que na segunda fase,inaugurada nos anos 50 do século XX, elas sãoconfrontadas - em graus variáveis, segundo si-tuações nacionais e políticas culturais - com umprocesso de institucionalização que enfraqueceseu caráter subversivo, ao passo que os discur-sos de acompanhamento das inovações estéti-cas (aquele dos criadores, mas também aqueleproduzido pelo aparato dou to "de homologa-ção" das obras) abandonam a referência à pró-pria noção de vanguarda.

Pode-se, além disso, observar que, porocasião da primeira fase, os movimentos devanguarda formam-se, geralmente, a partir deum projeto concebido por escritores (geral-mente poetas e/ou críticos de arte) e pintorespara, em seguida, difundir-se para outros do-mínios (teatro, dança, música, cinema ou fo-tografia); a iniciativa ou a preponderância deuns e de outros nesses coletivos cria diferen-tes casos de figuras que balizam a primeirafase e implicam, então, análises levando emconta essas especificidades. Por conseqüên-cia, as invariantes significativas das posturasde vanguarda se combinam sempre com par-ticularidades históricas, culturais, sociais ouestéticas que se trata de pôr em evidência.

Durante a primeira fase, dois fatores mai-ores estruturam o rol de condições de emer-gência e de desenvolvimento dos movimentos:o academicismo estreito das políticas culturaisprivilegiando as Belas-artes e as Belas Letras eo papel cultural das grandes metrópoles euro-péias cujas esferas de influência - coloniais ouherdeiras dos impérios - reforçam os efeitosdo modelo que vai ser executado entre asintelligentsia locais. O que caracteriza, nãoobstante, essa primeira fase é a aproximaçãoentre movimentos artísticos inovadores e cam-po político, numa perspectiva de luta comumcontra o conservadorismo cultural da burgue-sia e dos Estados. Por razões de solidariedade,esses movimentos tornam, com freqüência, umaforma internacional, através de numerosos in-tercâmbios intelectuais, iniciados, geralmente,por escritores. Todavia, seguindo o sentimentode revolta contra os massacres da Primeira Guer-ra Mundial experimentado por numerosos ar-

tistas, pode-se observar, a partir de 1914-1918,na Europa, uma radicalização política dos mo-vimentos artísticos.

Assim, eventos históricos e políticos, comoa Primeira Guerra Mundial, a RevoluçãoBoJchevique na Rússia ou a ascensão do fascis-mo e do nazismo, vão induzir transformaçõesmaiores na situação da arte nos campos cultu-rais nacionais que não estão, com efeito, sobcondições de formação de projetos artísticoscoletivos. Por exemplo, o papel de Paris comocentro de gravitação cultural favorecido pelafrancofonia de certas frações das classes dirigen-tes na Europa é reforçado a partir dos anos 20pela chegada de numerosos criadores estran-geiros fugidos dos países onde a produção devanguarda é, progressivamente, censurada. 1 Napintura, a notoriedade da "Escola de Paris" deve-se, em grande medida, a essas circunstâncias.

Após a Segunda Guerra Mundial, sob oefeito da aplicação industrial de novas técni-cas de comunicação, das intervenções esta-tais e da nova partilha do mundo operadapelos acordos de Yalta, as configurações doscampos culturais se transformam. ovos ato-res, novos suportes de difusão e novas insti-tuições intervêm na valorização das obras edas carreiras, enquanto que, progressivamen-te, os modelos e os valores do mercado ame-ricano de arte se difundem através do mercadomundial. A partir dos anos 50, na maior partedas sociedades industriais, enquanto as con-dições de carreira se modificam de novo, asituação da arte avançada no campo cultural,e, em relação às instituições em geral, mudaigualmente. Progressivamente, a denomina-ção "arte moderna" vê seu uso restrito às obrasde um período, enquanto se generaliza a no-ção de "arte contemporânea", para designar aesfera da criação inovadora nas artes plásticas.

Pode-se avançar uma hipótese sobre osfatores explicativos dessa revolução. A separa-ção do mundo em dois "blocos", o começo dadescolonização e a prioridade concedida aosvalores nacionais nas políticas de "reconstru-ção" cultural, precipitam o estreitamento dasesferas de influência cultural da fase preceden-te, e têm por efeito confrontar a ambição

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globalizante e transnacional das vanguardas ini-ciadas por escritores, com limites de tipolingüístico e político, ao passo que as condi-ções de difusão das obras culturais são transfor-madas pela generalização de novos suportes,tais como o cinema ou a televisão. Assim, a"imagem" e sua difusão em massa subvertemos dados da cultura nos quais doravante as "vi-suais" (pintura, escultura, fotografia, cinema, mastambém certas formas de espetáculo vivo, comoa coreografia) beneficiam-se de uma vantagemrelativa de notoriedade. Sem negligenciar a au-sência de homogeneidade dos códigos culturaisde apreensão visual e sonora, pode-se obser-var que, no domínio da criação inovadora, asartes plásticas, o cinema e a música são as úni-cas produções que podem circular num merca-do internacional. Para esse tipo de criação, nasartes plásticas, por exemplo, a interna-cionalização da carreira toma-se uma caracterís-tica obrigatória, mas, doravante, em razão daperda de notoriedade da "Escola de Paris", osEstados Unidos ocupam um lugar central na va-lorização das carreiras internacionais. É, então,sobretudo na esfera das artes plásticas, que nas-cem grupos os quais, referenciando-se, positivaou negativamente, na criação norte-americana,adotam posturas e estratégias vanguardistas.

À diferença da fase precedente, a atitu-de dos Estados, com respeito às criações devanguarda, modificou-se. Da ignorância ou darecusa, passou-se ao suporte oficial. Em prin-cípio, o enfrentamento ideológico e culturalentre os dois "blocos" explica essa mudança.Por exemplo, Serge Guibault mostra, emComment New York uola l'idée d'art moderne',como a administração do Estado federal nor-te-americano subvenciona e promove a artemoderna, e, em particular, o ExpressionismoAbstrato, desde 1947, na intenção de se oporàs "forças do mal", que representam o comu-nismo e a URSS. Para tanto, era, então, neces-sário que New-York substituísse Paris no seupapel de símbolo cultural do mundo ociden-tal, com o fim de destruir a hegemonia pictó-rica da Escola de Paris, cujos principais artistaseram, ou membros, ou "companheiros de es-trada" do partido comunista.

Se, a partir dos anos 50, o subsídio àarte avançava é integrado às políticas públi-cas culturais dos diferentes países ocidentais,os contextos sociopolíticos nacionais vão in-duzir diferenças ainda maiores. Por exemplo,em certos países europeus, freqüentementeem reação à hegemonia norte-americana, areferência à vanguarda vai presidir ainda porlongo tempo a formação de projetos coleti-vos inovadores nos domínios artísticos, emparticular nos seus engajamentos políticos esociais, enquanto que nos USAuma nova con-cepção de arte avançada se funda sobre umretomo ao formalismo que rejeita toda refe-rência à idéia de uma progressão históricadas inovações estéticas. Freqüentemente de-signada pelo qualificativo ambíguo de "pós-modernismo", essa nova concepção terminoupor se impor sobre o mercado mundial.

Os efeitos dessa nova situação da arteavançada no campo cultural, sobre as caracte-rísticas dos projetos artísticos e literários dessasegunda fase, não serão desenvolvidos aqui,mas, pode-se, não obstante, mencionar os doisprincipais. De uma parte, a persistência dasposturas vanguardistas na prática e nos discur-sos dos criadores que desejam inovar; de ou-tra, a institucionalização da lógica vanguardista.Se essas posturas constituem, doravante, umdos atributos obrigatórios de uma posição deartista num campo, as justificações teóricas quepresidem as escolhas dos poderes públicos emmatéria de subsídio aos projetos culturais e assubvenções públicas a numerosas práticas decriação fundadas sobre a crítica da noção deobra, participam dessa institucionalização>.

A lógica vanguardista é, todavia, o pro-duto da fase precedente, no curso da qual asdiferentes vanguardas tiveram êxito em im-por, no universo cultural, uma nova concep-ção da prática criadora, em ruptura com asconvenções ordinárias. Doravante integrada,do lado da criação, à prática profissional doartista que desejasse inovar e, do lado do con-sumo, ao espaço museológico ou aos progra-mas das indústrias e equipamentos culturais,essa concepção foi promovida no plano deprojetos criadores coletivos, em ruptura com

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as regras usuais de criação e produzindo efei-tos numa área de recepção muito restrita, queconvém lembrar as características sociológicas.

o QUE É UM PROJETO DE VANGUARDA?

Analisar sociologicamente os contextose as modalidades de emergência das vanguar-das, supõe, primeiro, um retorno sobre as con-dições de possibilidade dos projetos criadoresde vanguarda.

Transposto do domínio militar para o uni-verso político e artístico, o termo vanguardatoma, no decorrer do século XIX, um sentidofigurativo que sanciona uma nova concepçãodo tempo, visto que, doravante, a vanguarda"precede sua época por suas ousadias". Assim,sua aceitação e seu uso, nos campos literário eartístico, repousa sobre novas percepções daarte e do tempo. o último quarto do séculoXIX, pode-se observar uma transformação dasituação do criador e sua imagem social. Porexemplo, nas artes plásticas e enfraquecimentodo sistema acadêmico e a aparição de novosmercados e de novas clientelas conduzem osartistas a se agrupar e a construir eles mesmossua carreira, com a ajuda dos marchands, dacrítica e do público. Desse período, data, para-doxalmente, a figura do "artista maldito", autori-zada por uma nova concepção da carreira. Ostrabalhos de Nathalie Heinich e, em particularLa Gloire de Van Gogh. Essai d'aruropologie del'admiratiort', mostraram como, no fim do sé-culo XIX, na Europa, no domínio artístico, haviaemergido esse "regime de singularidade" ondeo artista, percebido como um gênio isolado, évalorizado contra o vulgo, onde a excentricida-de é preferida ao respeito aos cânones. Emarte, a inovação supera, definitivamente, a re-produção dos modelos, e a marginalidade éreivindicada contra o conformismo. Essa evolu-ção corresponde ao declínio do sistema acadê-mico que organizava a carreira dos artistas apósa formação na Escola de Belas-Artes, até as enco-mendas oficiais do Estado ou das municipal i-dades. Esse declínio é precipitado pelodesenvolvimento de um mercado onde o

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proprietário de galeria toma um lugar determi-nante na construção das carreiras em colabora-ção com os críticos de arte da imprensa. Nessesentido, os escritores que se consagram à críticade arte contribuem fortemente para a valoriza-ção das obras. Os movimentos pictóricos inova-dores não podem passar, desde então, sem oaval da crítica de arte produzida por escritores.Se o White tem por paradigma O papel do "sis-tema marchand-crítico" na emergência públicae na promoção do Irnpressionismo.> DarioGamboni também mostrou como as novas con-dições de uma sujeição das belas-artes à litera-tura estavam ligadas à importància da crítica dearte no curso do último quarto do século XIX. 6

A arte não reproduz mais os modelos concebi-dos pelos antigos, mas deve, ao contrário, ante-cipar as formas estéticas do futuro, dotando-sede uma missão nova com respeito à sociedade.

Em Opiniões literárias, filosóficas e indus-triais, um texto publicado na França em 1825,Henri de Saint-Simon dá a palavra a um artista,no curso de um diálogo imaginário com umsábio: "Somos nós, artistas, que vos servirãode vanguarda [...]. Que magnífica sina para asartes, a de exercer um poder positivo sobre asociedade, uma verdadeira função sacerdotal'",e a propósito do Salão de 1845, numa brochu-ra de título significativo, De la mission de l'artet du rôle des artistes, o filósofo falansterianoDésirée Laverdant acrescenta: "A arte, expres-são da sociedade, testemunha tendências soci-ais as mais avançadas: ela é a precursora e areveladora"." Permite, através de uma novaconcepção coletiva do tempo - pensado comorecortado em passado, presente e futuro - essavontade de fazer da arte um instrumento daevolução social, tendo, então, por corolário umanova concepção do papel do artísta.?

Se na França, no século XIX, sob a influ-ência do romantismo, mas sobretudo dofourierismo, artistas viram na arte uma possibili-dade de guiar a sociedade para uma mudança,é somente no fim do século que uma aproxi-mação (freqüentemente favorecida por umaidentidade de situação social - "a boêmia") seefetiva entre os teóricos e militantes dos movi-mentos socialista libertârio e revolucionário e

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os artistas inovadores, que querem mudar asformas artísticas, contra a burguesia e sua arte.A aproximação entre artistas inovadores e van-guarda política, não é, todavia, fácil, pois a dis-tância é, com freqüência, grande entre asousadias formais e, por exemplo, a predileçãoda imprensa socialista ou libertária por uma li-teratura tradicional de evasão ou pela arte figu-rativa. Se essas contradições põem em evidêncialógicas distintas operando em campos que com-portam seus próprios capitais, a concepção po-lítica do estatuto da arte na sociedade socialistaa construir oferece a possibilidade à inovaçãoestética de ocupar um lugar determinante. Porexemplo, em 1896, na brochura Art et socialisme,o escritor belga Jules Destrée, evocando "artena sociedade coletivista', escreve: "A arte esta-rá em toda parte [,..1 ela envolverá toda a exis-tência em suas manifestações as mais diversas.Ela não será privilégio somente de alguns ricos,mas, nela, estaremos imersos e felizes". Desdeentão, essa "imersão" da sociedade pela artetorna-se um capital, no qual, todo grupo de ar-tistas animados pela vontade de encarnar a artedo futuro, pode se reconhecer.

O que se exprime no projeto de umavanguarda é, então, a vontade de precipitar amodernidade e de encarnar o futuro no mo-mento do presente. Ademais, trata-se para elade se vincular à nova missão da arte com res-peito à sociedade, para construir esta sobrebases estéticas. Fundamentalmente, há em todavanguarda o projeto de englobar a sociedadena arte e, para além, de estetizar a vida.

Essa relação com a temporalidade é explí-cita nos nomes de certos movimentos de vanguar-da: como os Futuristas italianos ou russos (909),ou ainda, no movimento Modernista brasileiro.

Para além de um campo particular, todavanguarda pretende dizer o que deve ser a Artee produz, então, efeitos em todo o campo cul-tural. o final, a vanguarda que obtém êxitoprovoca uma recomposição de todo o universocultural pois impõe não somente suas obras àpaisagem cultural das gerações seguintes assimcomo ao patrimônio, mas chega, sobretudo, atransformar a visão simbólica do mundo. Namedida desse capital, os fatos e gestos de um

grupo vanguardista reativam toda a violêncialatente do campo cultural, pois chocam por suasproposições formais que não correspondem àdefinição aceita de obra de arte. Opondo-se aum só tempo ao acadernismo e à arte comercial,a vanguarda artística ou literária funciona comoum catalisador que radicaliza oposições e cliva-gens, e precipita evoluções no campo cultural.

QUE DESCRiÇÃO SOCIOLÓGICA SE PODE FAZER DEMOVIMENTO DE VANGUARDA?

Um movimento artístico inovador se di-rige, prioritariamente, à juventude, símbolodo futuro mas também da inocência e da pu-reza. Desde 1906, no primeiro texto "mani-festo", assinado pelo pintor e arquiteto EmstLudwig Kirchner, distribuído por ocasião dasegunda exposição em Dresde do grupo depintores Die Brücke, pode-se ler, por exem-plo: "A juventude ['..l traz o futuro [...J contraas velhas formas estabelecidas."

Para além das proclamações estão, so-bretudo, traços e posturas comuns a esses mo-vimentos que os singularizam no universoartístico.

Os grupos de vanguarda compreendemartistas que se reúnem a partir de afinidadesestéticas, e o que motiva esses agrupamentos éum projeto criador fundado sobre proposta denovas formas. Seus efetivos são restritos e,freqüentemente, sua composição se renova numritmo elevado. Esses grupos são, geralmente,efêmeros e sem organização estruturada.

Fundamentando-se num modelo elabo-rado nos anos 70 por René Lourau.l? pode-seassinalar variáveis discriminantes entre dife-rentes movimentos: dinâmica (rapidez de cons-tituição, duração), modos de ação (a partir dequal domínio artístico: pintura, literatura, mú-sica ...? ambição pluridisciplinar? Subversãoartística, aproximação com movimentos ex-plicitamente políticos, revistas, exposições,manifestos, ironia, pura fantasia, escândalos).Tudo isso implica uma coleção de materiaissobre a maneira pela qual essas vanguardasse apresentam, mas também sobre a maneira

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pela qual elas são percebidas por seus con-temporâneos (seus pares, os críticos, a im-prensa literária ou a "grande imprensa"). Aanálise desses corpus permite evitar todareconstituição a posteriori, mantendo umaapreensão sincrônica dos movimentos e deseus efeitos. Todavia, de quais modelos teóri-cos de análise da vanguarda dispomos paraabordarmos esses corpus?

O sociólogo alemão Peter Bürger publi-cou em Frankfurt, em 1974, uma "Théorie del'avantgarde".'! Para esse autor, os movimen-tos de vanguarda são um "ataque ao estatutoda arte na sociedade burguesa". Na criação devanguarda, aquilo que é negado não é maisuma forma particular de arte (um estilo), mas a"Arte, como instituição". A arte burguesa, des-tacada da vida real, não tendo mais nenhumaincidência sobre a vida cotidiana, as vanguar-das se caracterizam, então, por uma reivindi-cação radical: transpor a arte na vida e, assim,recolocar em causa sua autonomia na socieda-de burguesa. Essa intenção explica, para Bürger,o fato de os artistas inovadores não produzi-rem mais obras, mas manifestações anti-artísti-cas, como bem demonstra o movimento Dada,nascido em 1916. Contudo, esses ataques ma-lograram e essas manifestações anti-artísticastornaram-se obras autônomas e expostas nomuseus ou circulando no mercado de arte.

Peter Bürger situa bem as vanguardas noseu conflito com a "Instituição Arte", mas nãodiz nada da situação social individual dos artis-tas vinculados a esses movimentos. Questõespermanecem: quem são os membros dessasvanguardas? Do ponto de vista social e artísti-co, de onde eles vêm? A escolha de uma pro-dução inovadora e de uma postura vanguardistacorresponde a uma simples opção de criação?

essa perspectiva, o modelo de PierreBourdieu, em termos de posições ocupadasnum campo artístico, nos parece pertinentepois ele permite compreender as oposiçõese as escolhas estéticas recolocando-as no sis-tema de relações próprio desse campo.'?

esse plano teórico, o vanguardismo éindissociavelmente uma escolha estética e umamodalidade de carreira que é preciso relacio-

nar às modificações estruturais e conjunturais,que caracterizam esse campo eminentemen-te evolutivo. As mudanças nas técnicas decriação e de difusão, as modificações nos re-crutamentos e na formação dos artistas, a re-composição da hierarquia dos gêneros, atransformação da composição e da demandados públicos, as mudanças dos vínculos entreo campo do poder (econômico ou político) eo campo cultural têm, assim, efeitos podero-sos sobre as potencialidades objetivas de car-reira e sobre seu desenvolvimento.

Por conseqüência, a análise deve passarpela determinação desses efeitos estruturais econjunturais na emergência de um projeto co-letivo de vanguarda no interior de um campocultural particular. Concebida como uma posi-ção detida coletivamente durante período ecomo ponto de interseção de diferentes traje-tórias de criadores singulares, a vanguarda é,então, um agrupamento de indivíduos, do qualconvém precisar as posições individuais ante-riores antes de estudar os recursos (estéticos esociais) que são mobilizados para um efeito desinergia coletiva num projeto de revolução es-tética naquele momento da história.

Todo campo artístico é estruturado, prin-cipalmente, em torno de dois pólos: um pólocomercial e um pólo legítimo, substituindo,às vezes, o pólo acadêmico. Em conflito comos valores defendidos por esses pólos, a van-guarda representa, então, uma posição anta-gônica aos mesmos. Contudo, essa posição seconstitui sempre num setor restrito do cam-po, pois a vanguarda, pretendendo representaro futuro da arte, dirige-se, primeiramente, aum público restrito do campo intelectual cons-tituído de seus jovens pares ou de amadoresde tendências artísticas novas. A vanguardase forma, assim, nas margens do pólo legítimo,mas, pela natureza de sua posição e de suastomadas de posição freqüentemente "escanda-losas", ela atrai para si criadores particulares.

Três características maiores definem essaposição: um projeto criador radicalmente novo,uma agremiação de criadores contesta doresem torno de um projeto e uma estratégia co-letiva de transgressão das regras do campo.

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Em 1913, na sua brochura-manifesto, LeMot comme tel, dois poetas russos -Kroutchonykh e Khlebnikov - escrevem: "Nósfomos os primeiros a dizer que, para represen-tar o novo e o futuro, precisava-se de palavrasnovas e de uma nova combinação de palavras".Toda vanguarda propõe, assim, novas formas,reuniões ou temas que representam, desde en-tão, uma nova oferta de bens culturais no setorlegítimo de um campo. Seu projeto criador seinscreve, então, de chofre numa lógica de re-novação da criação, com uma vontade experi-mental. esse sentido, nada ganhou de antemão,mas o caráter inovador da vanguarda está, antesde tudo, em conformidade com a dinâmica dacriação artística moderna, depois que Baudelaireteorizou a arte como "absoluta novidade". DuDéjeuner sur l'berbe, de Manet, até a realiza-ção, em 1913, dos Ready-Made por Duchampou de Carré noir, de Malevitch, a colocação emxeque, pelos criadores, das convenções e dosimperativos de toda natureza associados à ativi-dade de criação (competência técnica; repre-sentação, nas artes plásticas; o verso, em poesia;a harmonia, na música ... etc.) está na origem deuma série de atos iconoclastas que consistiam,também, em destruir os valores artísticos reco-nhecídos.P Autorizado por toda essa série detransgressões, o projeto estético das vanguardasassenta, então, sobre a vontade de redefinir oobjeto ou o ato artístico por meio de gestos"criativos", ou em integrar, no universo estéti-co, objetos, temas ou formas populares, triviaisou ordinárias, segundo procedimentos de apre-sentação e dos contextos em conformidade aum estatuto de obra.

Mas essa nova oferta, que se acompanhade um deslocamento dos limites divisares douniverso estético e do universo das formas or-dinárias ("O que é feio se toma belo"), desesta-biliza o sistema de apreensão dos valoresartísticos. A aceitabilidade dessa oferta que su-põe um novo olhar, um outro sistema crítico,implica, assim, uma teorização, uma justificaçãoteórica que passa pela escrita. Ocupar uma po-sição de vanguarda supõe, então, umaintelectualização de prática por um recurso aprocedimentos específicos: textos, revistas ou

manifestos, de modo a formalizar o projeto cria-dor e mostrar a necessidade estética e históricado mesmo. Pode-se emitir a hipótese de que adiferença entre um grupo de vanguarda e ummovimento artístico inovador reside na capaci-dade da vanguarda de se dotar de uma teoriaprópria (que não é produzida pela crítica) e deinstrumentos de difusão autônomos criados econtrolados por criadores animados pela vonta-de de constituir um coletivo perene por razõesestéticas.

A intelectualização da prática criadora nãoocorre em conseqüência sobre o recrutamentodos membros das vanguardas, pois elas atraem,primeiro, artistas inovadores suscetíveis deteorizar sua prática. Desde 1905, todas as van-guardas têm nascido a partir de "manifestos"freqüentemente redigidos por um poeta, comono caso dos futuristas italianos ou russos, do Ma-nifeste du surréalisme de André Breton, na Fran-ça e do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald deAndrade, no Brasil, passando pelo Dada, na Ale-manha e os Vorticistas,na Inglaterra. Além disso,o que parece singularizar esses grupos é a von-tade alardeada de se apresentar e de agir comoum coletivo de criadores pelo uso do Nós atravésde proclamações de tipo manifesto, mesmo seestas são a emanação de um porta-voz.

Como mostrou Natahalie Heinich, o pa-radoxo inicial de numerosos agrupamentos deartistas, aliás, na origem de numerosas "trai-ções", está contido na interrogação: "Comoser vários quando se é singularv" A reuniãode "individualidades" para uma série de açõescoletivas não é, então, algo compulsório: oque implica levar em conta múltiplas dimen-sões nas trajetórias dos criadores para expli-car as cisões ou as negligências no interiordos grupos. O projeto de vanguarda reúne,primeiramente, criadores insatisfeitos com ogosto dominante, opositores da legitimidadeartística. Em suas lembranças, a propósito domovimento cubista, a partir de 1910, AlbertGleizes observa: "O nosso interesse [deGleizes, Metzinger, Delauanay, Picasso eBraquel em freqüentar, mudar idéias, agru-par-nos, parecia-nos imperativo" .15 Oscontestadores que têm projetos criadores si-

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milares devem "fazer bloco" e agregam-se,freqüentemente, em torno de um "rótulo" quese manifesta, publicamente, através de "su-portes": revistas ou exposições. Mas a pere-nidade e a coesão dessa agregação não sãoasseguradas. A análise sociológica deve sededicar, também, a assinalar os animadoresque dividem o projeto coletivo, e, para alémdas interpretações hagiográficas, explicar por-que esses possuem tal função.

O rótulo distintivo, freqüentemente umnome em isrno, escolhido pelos criadores oudado por um crítico e reivindicado, em segui-da, pelo grupo, constitui uma outra caracte-rística obrigatória de vanguarda. O carátercoletivo da apresentação de si e das obras éuma invariante dos movimentos vanguardistase essa vontade de se apresentar coletivamen-te num campo artístico, vai, às vezes, até àspráticas de retração do caráter individual eespecializado das criações, em proveito deexpressões criadoras comuns e transdisci-plinares identificadas somente pelo rótulo.

A verificação sociológica da composi-ção de todos esses grupos é rica: eles sãoformados por criadores ocupando posiçõesdominadas no campo onde eles pretendemfazer carreira. ! eles, a hegemonia masculinaé, com freqüência, absoluta: limitadas a pa-péis de companheiras ou de musas, as mu-lheres são pouco presentes nesses grupos.Há, então, aqui, um interesse sociológico evi-dente em centrar o estudo sobre essa presen-ça "invisível", ou em conduzir análisescomparativas sobre a participação de mulhe-res e sobre seu papel em diferentes grupos.Os membros desses diferentes grupos sãoprincipiantes, jovens ou em início de carrei-ra, desconhecidos ou pouco conhecidos, seuvolume de capital simbólico é irrisório e oobjetivo, para eles, é a transformação de suaposição. A intelectualização da prática supõe,da parte desses criadores vanguardistas, aposse de um grande capital cultural (sob aforma de diplomas, formações, e, maisfreqüentemente, de herança cultural de ori-gem familiar). Contudo, a adesão total à pure-za de criação que supõe a vanguarda, sua

recusa de compromisso com o setor comerci-al, acompanha-se da necessidade de seusmembros de dispor de rendas anexas. Comefeito, raramente num período de emergên-cia as obras de vanguarda permitem a seuscriadores viver delas. A análise deve, então,determinar quais são os recursos econômicosde que dispõem, individualmente, os mem-bros de uma vanguarda.

Em 1912, Une Gifle au goú: du public, omanifesto dos Futuristas russos (reunindo, entreoutros, Bourliouk, Maíakovski, Khlebnikov) pro-clama: "Nós ordenamos honrar o direito dospoetas l...1 a afastarem com horror de sua fronteLl a coroa feita por vós, de ramos [...] e dirigi-rem-se à estrada da palavra "nós" no meio deum mar de vaias e de indignações". A adesão auma vanguarda implica, então, desprezo do êxitoe do sucesso. Essa exigência ética é propícia aseduzir os artistas ocupantes das posições do-minadas de um campo, que podem, assim, trans-formar seu fraco reconhecimento em virtude.Mas, para encarnar duradouramente essa pure-za, é preciso, também, poder se pôr à distânciadas atividades artísticas comerciais e contentar-se com remunerações simbólicas ligadas à po-sição ocupada pelo rótulo.

A vanguarda recruta, então, sobretudo cri-adores que adotam uma atitude alternativa arespeito dos ganhos materiais da carreira, ouque podem prolongá-Ia duradouramente. Oscriadores que podem ocupar essa posição, be-neficiam-se de rendas de origem familiar oude recursos exteriores ao mundo da arte. Emgeral, nesses grupos a proporção de indivídu-os originários de meios populares é fraca, mas,mesmo aí, precisaria distinguir entre os dife-rentes campos. De igual modo, o tempo deexistência de um grupo é muito variável. Porexemplo, em pintura, onde o vínculo com omercado é mais direto que na literatura, o co-meço do reconhecimento de um rótulo, fazsubir as cotações das obras de alguns dos mem-bros cujas trajetórias individuais tendem, en-tâo, a se destacar da posição coletiva. Assim,pode-se observar que as estratégias coletivasduram mais tempo no domínio literário, quenaquele das artes plásticas. Os grupos forma-

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dos unicamente de pintores brilham mais rápi-do que as vanguardas transdisciplinares forma-das, na origem, pela interseção da literatura edas artes plásticas. Em conseqüência, aquelasque ambicionam mudar a arte em geral e vi-sam transpor seu projeto criador, a partir dapoesia, nos diversos domínios estéticos, sãomais duráveis. Como o Expressionismo alemão,o Futurismo italiano tocou a poesia, a pintura,o cinema, o teatro e a música; o Construtivismorusso se aplicou à pintura, à arquitetura e àsartes decorativas; mas, o movimento cubista,teve poucos êmulos. Cada grupo acompanhasuas produções discursivas afirmando que elassão somente para representar a "verdadeiraarte"; nisso, eles se opõem aos ocupantes dasposições dominantes, acusados de haverem tra-ído o ideal de pureza artística e de se compro-meterem com o dinheiro e as honras. Aderindoa esse ideal de pureza, a vanguarda erige umcapital ético que lhe permite desqualificar osartistas dominantes aos olhos da juventude. Acriação de um órgão de expressão, e investi-mentos individuais pesados nas atividades co-letivas constituem fatores importantes naperenidade de um grupo de vanguarda.

A estratégia subversiva das vanguardas uti-liza numerosas técnicas de agitação, tais como:manifesto, manifestações, escândalos públicos,em ruptura total com as regras de comporta-mento vigentes nos campos artísticos. Cópiassão feitas com técnicas publicitárias; por exem-plo, em 1910, o manifesto dos futuristas italia-nos, Contra Veneza passadista, foi distribuídoem 800.000 exemplares. Os objetivos dessa es-tratégia são múltiplos: trata-se, para a vanguar-da, de se fazer reconhecer pelas instânciascríticas como a verdadeira encamação do futuroda arte, mas também de aumentar a visibilidadedo grupo e de suas produções no campo visa-do, para constituir um público prioritariamenteentre os jovens consumidores do setor legítimo.Essa estratégia se desenvolve, é preciso lem-brar, num universo de concorrência onde a pre-tensão de encamar o futuro da arte é partilhadapor numerosos jovens principiantes e onde, àsvezes, vários grupos reivindicam, simultanea-mente, o título de vanguarda. As estratégiasvanguardistas são, igualmente, caracterizadas

pela vontade de eliminação dos concorrentes,por meio de procedimentos desqualificados.Nessa concorrência, a capacidade de obter ade-são da crítica e de reunir, sobretudo, jovens cri-adores, parece determinante. O reconhecimentodo grupo por seus contemporâneos comoencamando a vanguarda do período, supõe quese incline sobre as condições que a tomam pos-sível, para o estudo dos diferentes recursos tra-zidos por cada criador ao grupo e mobilizadosna estratégia coletiva.

Da mesma forma, a sucessão aceleradade movimentos que pretendem encamar a artenova implica, em fase de emergência, numacrítica violenta ou irônica daqueles que os pre-cederam, a fim de os assimilar ao passado.Assim, em 1910, Marinetti escreveu no mani-festo do Futurismo, publicado por Le Figaro."nós renegamos nossos mestres, os simbolis-tas"; em 1914, Erza Pound e Wyndham Lewisdeclaram no seu manifesto Vorticista: "Marinettié um cadáver"; em 1920, Francis Picabia es-creve, a propósito dos cubistas, num manifes-to Dada: "Eles cubaram os quadros primitivos,[...J cubaram as guitarras, cubaram os jornaisilustrados". Se em julho de 1924, Breton anun-cia num artigo publicado por Le journallittéraire: "Simbolismo, cubismo, dadaísmo, apóslongo tempo, estão ultrapassados; o surrealismoestá na ordem do dia", em maio de 1928, noseu Manifesto Antropofâgico, Oswald deAndrade coloca já o surrealismo entre as influ-ências européias do passado: "Nós tínhamos jáa língua surrealista" .16

A encamação da vanguarda não é, então,jamais, definitivamente assegurada, o que im-plica a distinção de períodos na história, às ve-zes muito curtos de um grupo de vanguardistas.No período de ascensão simbólica, o grupo iden-tificado pelas instâncias críticas como suscetívelde renovar as formas artísticas vê convergir paraele novos principiantes que vão encontrar láum capital simbólico coletivo, o qual podebeneficiá-I os individualmente, mas o valor des-se capital pode ser reduzido pelo surgimentode um grupo concorrente. Desde então, aatratividade do grupo junto às jovens geraçõesde criadores declina, enquanto o envelhecimentoefetivo e "artístico" de seus membros se revela.

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Todo projeto criador inovador deve criarseu público, pois é preciso consumidores paraas produções de vanguarda. A criação desse pú-blico pode ser favorecida por transformaçõesestruturais no campo cultural. Por exemplo, glo-balmente, na Europa, pode-se observar uma sé-rie de transformações no sistema escolar,'? nocomeço do século 20, que produzem diplomasde um tipo novo, oriundos das seções modernasdos liceus, escapando do ensinamento das Hu-manidades fundado sobre o latim e o grego. Essecrescimento de titulares de bacharelados "mo-dernos" (línguas, ciências) no público dos consu-midores de cultura, onde os "letrados" tomam-seminoritários, contribui para a recepção de for-mas novas de arte e de literatura que se caracte-rizam pela reivindicação de uma ruptura com atradição letrada ocidental, combinando temáticasadvindas da modemidade mais recente (que sereferem à urbanização dos modos de vida, à pu-blicidade, à dinâmica das máquinas ou do cine-ma) e das temáticas mais "primitivas" associadasà inocência, ao instinto, à pureza (em nome deuma volta às "verdadeiras" fontes ocultas pelosvalores da civilização burguesa e colonial). Mas,esse fator estrutural é, por si só, insuficiente paraexplicar o sucesso de uma vanguarda particular.O público potencial de uma vanguarda é consti-tuído pelas jovens gerações do campo cultural,mas uma análise sincrônica permite mostrar quea eficácia subversiva de um grupo vanguardistarepousa sobre o sustento que encontra junto aum público novo e "profano".

O exemplo do surrealismo dos anos 20mostra que suas tomadas de posição políticalhe permitiram encontrar, também, leitores eamadores no público dos intelectuais revolu-cionários desse período. A tomada de posi-ção política de um grupo de artistas reforça,então, sua estratégica de subversão, forne-cendo-lhe aliados e, nesse sentido, é umaarma contra os conservadores, mas é tambémum perigo, pois o engajamento político con-tradiz as manifestações de adesão absoluta àpureza da arte e repõe em questão uma regrafundamental do campo artístico: sua autonomia.

O "êxito" de uma vanguarda se tornadefinitivo quando sua notoriedade atinge as

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gerações seguintes: ele é, então, medido pelamenção do nome do movimento na Históriada Arte, através de enciclopédias, dicionári-os, e manuais escolares, e pela patrimonia-lização de suas criações (nos museus ou nasexposições comemorativas ...). A adoção dorótulo no vocabulário corrente das geraçõesseguintes, tais como as palavras "futurista","modernista", "surrealista", por exemplo, paraqualificar situações precisas, constitui, também,o indicativo de uma forma de êxito.

DA VANGUARDA À INSTITUCIONALlZAÇÃO DA LÓGICAVANGUARDlST A?

As diferentes vanguardas da primeira fasehistórica modificaram (definitivamente?) a con-cepção de criação impondo um deslocamentodo limite socialmente admitido entre aquilo quemerecer ser admirado ou conservado num espa-ço cultural "extraordinário" e universo ordináriodo quotidiano. A extensão ilimitada do espaçodos objetos e temas dignos de interesse estéticoe cultural, então suscetíveis de serem integradosao processo criativo, é uma das condiçõesdoravante necessárias da prática artística, do mes-mo modo que a transformação dos espaços ordi-nários em lugares e suportes culturaismomentâneos ou definitivos, torna-se um impe-rativo da difusão. Nesse sentido, pode-se dizerque a lógica da criação e da difusão postuladapelo vanguardismo tornou-se uma das normasdo espaço cultural. Todavia, se essa lógica pôdese impor, isso se deveu também ao fato dos po-deres públicos, através de suas intervenções cul-turais, e das instituições de ensino teremcontribuído para sustentá-Ia. Convém, então, en-carar uma análise sociológica das condições decarreira e as estratégias dos criadores inovadoresapós os anos 50 até nossos dias, estabelecendouma comparação com a primeira fase.

NOTAS

Traduzido por Talvanes Sales1 Cf. Annie Verger, "L'art d'estimer I'art.

Comment classer l'incornparable", Actes de

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BH/UFC

Ia recherche en sciences sciales, n. 66/67, mars1987, p. 105.

2 Serge Guilbaut, Comment New-York volal 'i dée dart moderne, Ed. JacquelineChambon, Nimes, 1989, p. 12-13.

3 Sobre esse ponto, ver Rainer Rochlitz,Subversion et subventio. Art contemporainet argumentation esthétique, Gallimard,Paris, 1994.

4 Nathalie Heinich, La Gloire de Van Gogh.Essai d'antropologie de l'admiration, Minuit,Paris, 1991.

5 Harris et Cynthia White, La carriêre despeintres au XIXe siêcle, Flammarion, Paris,1991.

6 Dario Gamboni, "Aprês le régime du sabrele régime de l'homme de lettres: La criti-que d'art com me pouvoir et comme enjeu",in La critique d'art en France, 1850-1900,Travaux LXIII, Cierec, Université de Saint-Etienne, Sant-Etienne, 1989, p. 205-220.

7 H. de Saint-Simon, L. Halévy, o. Rodrigues,Opnions littéraires, pb ilosopb iques etindustrielles, Bossange Pere, Paris, 1825,p. 341.

8 Extrato dos 2Q e 3Q fascículos de LaPbalange, revue de Ia science sociale, 1945.

9 Cf. Linda Nochlin, "L'invention de l'avant-garde: Ia France entre 1830 et 1880", LesPolituques de Ia vision. Art, société etpolitique au XIXe siêcle, Ed. JacquelineChambon, Nimes, 1995, p. 23-43.

10 René Lourau, "Sociologie de I'avant-gardisme", L'homme et Ia société, n. 26,octobre-décernbre 1972, p. 49-68.

11 Peter Bürger estabeleceu nessa obra umaperiodização distinguindo as funções da arteem suas relações com a sociedade. Após"l'Art Sacré", e "l'Art de Cour", para Bürgero período contemporâneo caracterizadopor uma arte que atingiu sua plena auto-nomia, "l'Art Bougois". Cf. Peter Bürger,Tbeorie der auantgarde, Suhrkamp Verlag,Frankfurt, 1974.

12 Cf. Pierre Bourdieu, Les rêgles de l'art .Genêse et structure du cbamp li tté ra ire,Seuil, Paris, 1992, e "La production dela

croyance: contribution à une économie desbiens symbliques", Actes de Ia rechercheen sciences sciales, n. 13, fevereiro de 1977,p. 3-43.

13 Cf. Nathalie Heinich, Le triple jeu de l'artcontemporain, Minit, Paris, 1998.

14 Nathalie Heinich, "Les manifestes deI'avangarde artistique. Comment êtreplusiers quand est singulier", inJ-O Majastre(éd.), Le texte, l'oeuure, l'émotion, La lettrevolée, Bruxelles, 1994, p. 49-64.

15 Citado por Michel Baxandall in Formes del'intention, Ed. Jaqueline Chambon, Nimes,1994, p. 10l.

16 Cf. Revista de Antropologia, reedição dasrevista literária de São Paulo - 1928-29,Ed. Abril/Metal Leve, São Paulo, 1975.

17 Por exemplo, na França uma reforma doensino secundário de 1902 criou os bacha-relados "modernos", sem línguas antigas.

BIBLIOGRAFIA

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