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VIII Colóquio Internacional de Filosofia e Educação
Rio de Janeiro, 03 a 07 de outubro de 2016
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POR UMA INFÂNCIA SIGNIFICATIVA: EXPERIÊNCIA FORMATIVA E
EMANCIPAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Tânia Maria Massaruto de Quintal
Universidade Federal de São Paulo - USP
Resumo
O presente trabalho objetiva trazer reflexões e discussões sobre as possibilidades
emancipatórias de a Educação Infantil constituir-se como um espaço para a promoção de
infâncias significativas, dotadas de experiências plenas, ricas e autênticas para e pelas
crianças. Como referencial teórico busca na Teoria Crítica tratar da idéia de experiência
formativa e emancipação. Resgata a discussão posta por Theodor Adorno em relação ao papel
emancipatório da educação, no sentido da autonomia e da autodeterminação dos sujeitos, que
ficam prejudicadas na sociedade da racionalidade instrumental. Aborda, ainda que de forma
breve, a importância de a educação cumprir seu papel em relação ao combate à barbárie, por
meio de uma formação autêntica e humanizadora. Em relação à discussão sobre o papel da
Educação Infantil, o conceito de criança e de infância adotados vem das contribuições de
abordagens curriculares atuais, que entendem a criança como protagonista do processo
educativo, que se expressa e se relaciona com o mundo por meio de múltiplas linguagens. O
documento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) foi a base
para essa discussão e a escolha do mesmo se justificou por seu caráter normativo e atual, que
rege e organiza as políticas públicas para a Educação Infantil brasileira. Tal referencial
entende a criança como protagonista, sujeito de direitos, que, para além de ser tutelada, deve
usufruir de uma educação de qualidade, que favoreça o desenvolvimento de suas múltiplas
linguagens. O trabalho discute, assim, em que medida tal entendimento de Educação Infantil
pode contribuir para a formação autêntica e emancipatória das crianças, que Adorno
vislumbrou em suas reflexões.
Palavras-Chave: educação infantil; experiência formativa; emancipação; teoria crítica.
Abstract
This paper aims to present thinking and discussions about the emancipating possibilities of
the construction of early childhood education as a space to promote meaningful childhoods
that have full, rich and authentic experiences for the children. Based on the Critical Theory it
discusses the idea of formative experience and emancipation. This paper also discusses what
Theodor Adorno proposes regarding the emancipatory role of education on subjects’
autonomy and self-determination that are usually impaired in the instrumental rationality
society. It also briefly discusses role of education on opposing barbarism through an authentic
and humanizing formation. The discussion on the role of Early Childhood Education, the
concept of child and childhood used here is based on currently curriculum approaches that
understand the child as a protagonist in the education process that expresses itself and relate to
the world through multiple languages. Brazilian’s document of early childhood education
curriculum (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil) from 2009 is the
bases of this discussion because of its normative and recent features, for it organizes and
conduct the early childhood education policies in Brazil. The given document understands
children as active actors, subjects of right that must have the right to a quality education that
promotes the development of their multiple languages. Therefore, this paper discusses how
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this understanding of early childhood education can promote an authentic and emancipatory
formation for children, something that Adorno glimpsed in his thinking.
Keywords: early childhood education; formative experience; emancipation; critical theory
Introdução
O presente trabalho é fruto da experiência da autora, como professora e coordenadora
pedagógica na Educação Infantil, e como pesquisadora da infância e de temas da Filosofia da
Educação. Tem como objetivo trazer reflexões e discutir possibilidades da Educação Infantil
ser um espaço para a promoção de infâncias significativas, dotadas de experiências plenas,
ricas e autênticas para e pelas crianças, acreditando, assim, ter um potencial emancipatório e
contribuir para um modelo de sociedade mais justo e igualitário.
Como arcabouço teórico buscou na Teoria Crítica tratar da idéia de experiência
formativa e emancipação. A escolha do referencial se faz pela experiência e relação da
pesquisadora com tal linha de estudo e pela pertinência da mesma no que tange à discussão de
uma Educação Emancipatória, própria da Filosofia da Educação. Traz também algumas
contribuições de pesquisas sobre a infância e abordagens curriculares da Educação Infantil
atuais, que entendem a criança como protagonista do processo de aprendizagem, que se
expressa e se relaciona com o mundo por meio de múltiplas linguagens.
A educação para a infância tem sido tema crescente das políticas públicas
contemporâneas e de pesquisas atuais. Cada vez mais se valida às crianças o direito à
educação formal e o dever do Estado de oferecer gratuitamente e com qualidade creches e
pré-escolas. A partir de 2016 no Brasil, o início da escolaridade obrigatória passa de 6 para 4
anos de idade. Assim as crianças de todo o país devem freqüentar as instituições de Educação
Infantil.
No início do século XX as crianças pequenas iam para creches e pré-escolas para serem
cuidadas e zeladas, fruto da demanda social resultante da entrada das mulheres no mercado de
trabalho. Essas instituições tinham um caráter muito mais assistencial do que educativo-
formativo, na medida em que cumpriam um outro papel social e estavam atreladas ao direito
da mulher de trabalhar e não ao direito da criança à educação. Hoje as crianças ganham status
de sujeito de direitos e, para além de serem tuteladas, devem usufruir de uma educação de
qualidade, que favoreça o desenvolvimento de suas múltiplas linguagens.
Neste contexto quais experiências podem ser oferecidas às crianças, no espaço da
Educação Infantil? Seria ele um espaço emancipatório?
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Educação infantil: espaço de quais experiências?
Larrosa (2002, p. 21) em um conhecido texto sobre o conceito de “experiência” diz: “A
experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca”. A experiência não estaria fora do sujeito, mas dependeria
essencialmente de quem a vive. Parece só haver experiência nessa relação, que supõe um
protagonismo (leitura nossa).
O sujeito tem papel nessa experiência, na medida em que é um ser que pensa, constrói
sentidos para ela. Sendo assim, o que passa, toca, acontece com as crianças no espaço da
Educação Infantil? Para que ou quem este espaço se destina? Quais experiências este espaço
oferece às crianças? Quais experiências as crianças promovem enquanto sujeitos desse
espaço?
Tais perguntas nos soam amplas e abstratas demais, se pensarmos nas inúmeras
possibilidades que as escolas de Educação Infantil podem oferecer e até mesmo se constituir
enquanto projeto educativo para uma sociedade. Isto porque sabemos que há ainda diferentes
concepções acerca do seu papel, principalmente em torno da dualidade “preparar para o
Ensino Fundamental” (visão propedêutica da Educação Infantil) ou “cuidar e zelar” (visão
assistencialista).
Longe de pensar numa “escola” genérica e abstrata, seguiremos a proposta de que
tratam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI/2009). A
escolha deste documento se justifica por seu caráter normativo e atual, que rege e organiza as
políticas públicas para a Educação Infantil brasileira. Neste sentido as propostas e discussões
que trazemos estão num plano mais “ideal” de Educação Infantil do que necessariamente real.
Nossas análises caminham mais no sentido do que pode e deve ser, do que necessariamente já
é (considerando as multiplicidades de práticas que temos).
Este documento, DCNEI (2009), objetiva trazer algumas orientações para a elaboração,
planejamento, implementação e avaliação de propostas pedagógicas nas escolas de Educação
Infantil do Brasil. Para isso delimita claramente de que “lugar” fala, trazendo a concepção de
infância, criança, educação e currículo que subsidia tal discussão. Seu caráter é normativo,
mas não prescritivo, pois objetiva que cada instituição possa construir o seu projeto
pedagógico no contexto de sua realidade.
A criança é entendida como “sujeito histórico de direitos” que constrói sua identidade
pessoal e coletiva, fantasia, imagina, brinca, deseja, aprende, observa, experimenta, narra,
produz cultura (BRASIL, 2009, p. 12). É um sujeito potente e criador. Sendo assim, para além
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de sujeito passivo, a criança é entendida na sua integralidade, como alguém que age, elabora,
constrói, pensa, cria. É uma criança que produz a cultura e não a consume passivamente.
Barbosa (2009, p. 22-23) no documento feito para o MEC1, retrata esse conceito de
“crianças” como sujeitos de direitos civis, produtores de história e cultura, capazes de sentir,
criar, inventar, transformar. Distingue o conceito de criança do conceito de infância, na
medida em que ser criança não significa ter infância, ou viver uma infância específica. Neste
sentido entende que há “infâncias” e diferentes formas e maneiras das crianças viverem-nas.
Além de promoverem sua formação através de suas interações, as crianças
também produzem culturas. Tal afirmação implica compreender que,
brincando, são capazes de agirem incorporando elementos do mundo no qual
vivem. Através de suas ações lúdicas, de suas primeiras interações com e no
mundo brincando consigo mesmas e com seus pares, produzem outra forma
cultural de estabelecer relações sociais. Essas ações e interações, geralmente
lúdicas, são denominadas de culturas infantis e são transmitidas através de
gerações de crianças. (BARBOSA, 2009, p. 24)
Para concretizar essa educação, que tem a criança como centro e protagonista do
processo, o currículo necessita integrar suas experiências e saberes, ao mesmo tempo em que
é espaço de articulação com os saberes acumulados pelo patrimônio da sociedade (BRASIL,
2009, p. 12). A educação é também espaço de transmissão de valores e repertório cultural.
Acesso ao conhecimento é direito de todos.
O currículo traz as práticas, experiências e saberes das crianças articulados aos
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e
tecnológico (BRASIL, 2009, p. 12). Sendo assim, não se constitui como um todo rígido,
externo à criança, mas dá a ideia de “devir”, de uma construção continua que vai depender
muito dos sujeitos-crianças que dele fazem parte.
A proposta pedagógica necessita estar ancorada em princípios éticos, políticos e
estéticos, que garantam uma educação pautada na autonomia, solidariedade, responsabilidade,
sensibilidade (BRASIL, 2009, p. 13):
Necessita ter como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação,
renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens,
assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à
dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças. (BRASIL,
2009, p. 18)
A criança precisa ser protegida, respeitada, cuidada, mas também ter garantido o acesso
aos conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, saberes, manifestações da
cultura e da ciência.
1 Trata-se de um documento para a discussão e construção de bases para as orientações curriculares da Educação
Infantil, feito pela autora num projeto de cooperação entre o MEC e a UFRGS. Traremos citações do mesmo ao
longo deste trabalho.
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O objetivo da educação infantil, do ponto de vista do conhecimento e da
aprendizagem, é o de favorecer experiências que permitam às crianças a apropriação
e a imersão em sua sociedade, através das práticas sociais de sua cultura, das
linguagens que essa cultura produz, e produziu, para construir, expressar e
comunicar significados e sentidos. (BARBOSA, 2009, p. 47-48)
Promover a igualdade de oportunidades educacionais, independente da classe social é
outro ponto a ser destacado no documento, na medida em que está entendendo o acesso à
Educação Infantil como possibilidade de equidade social. Construir novas formas de
sociabilidade e de subjetividade, formas estas entendidas no contexto de uma sociedade
democrática e plural, que vai buscar romper desigualdades de gênero, raça, idade, classe
social é outro ponto importante no documento, na medida em que retrata para qual modelo de
sociedade este projeto educativo se propõe (BRASIL, 2009, p. 17).
Educação infantil emancipatória e experiência formativa
Toda proposta educativa vai retratar o entendimento que se tem do papel dessa
educação na sociedade. Esta é uma questão de fundo, base primeira, alicerce que integra as
finalidades e justificativas para sua existência. Educar para adaptar o sujeito a uma sociedade
ou para que este tenha seu papel enquanto alguém que a transforma? Esta é uma das primeiras
questões sobre a qual podemos refletir. À Educação Infantil cabe a tarefa de ser espaço de
transformação ou de mera adaptação? Preparação para um “vir-a-ser”? Zelar e tutelar?
Possibilitar experiências e interações diversas?
Nas conferências radiofônicas que integram a obra “Educação e Emancipação” Theodor
W. Adorno discute estas questões de “fundo”, ou seja, a finalidade dos processos educativos e
os dilemas da educação de seu tempo. No ensaio Educação para quê propõe discutir com seu
interlocutor “[...] para onde a educação deve conduzir?” (ADORNO, 2003, p. 139).
Para isso ele propõe sua concepção de Educação:
Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o
direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera
transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que
destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive de
maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência
política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar
conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. (ADORNO, 2003, p. 141-
142)
A Educação não é então modelagem, formatação, mera adaptação ou transmissão de
conhecimentos. Ela só faz jus ao seu papel se for capaz de desenvolver no sujeito uma
consciência verdadeira e assim viabilizar um projeto de sociedade democrática. Na
democracia é necessário que os cidadãos pensem, opinem, participem, reflitam, superem o
senso comum, sejam autônomos. A educação pode dar sua contribuição neste caminho.
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Dois aspectos são imprescindíveis para Adorno: uma educação que favoreça a
autonomia e uma educação que contribua para a desbarbarização, promovendo uma
experiência verdadeira. A autonomia está atrelada ao pensar, a capacidade de decidir, julgar,
ser emancipado. A desbarbarização ganha sentido à crítica do autor na educação severa, ou
autoritária, que levou o mundo ao Holocausto. A única saída é que a Educação seja capaz de
favorecer aos sujeitos experiências autênticas.
A questão da experiência é ponto chave para nós. Se Adorno reitera a necessidade de
construção de experiências plenas e autênticas, é porque está dizendo que as mesmas não o
são, no modelo de sociedade em que vivemos. Essa acepção do autor está muito atrelada à
crítica da “formação” (semiformação) na sociedade capitalista e ao papel massivo da Indústria
Cultural na vida dos sujeitos.
Adorno está no contexto da II Guerra Mundial. Coloca para a Educação, como
exigência, a não repetição de Auschwtiz: “A exigência que Auschwitz não se repita é a
primeira de todas para a educação” (ADORNO, 2003, p. 119). Para ele, ela foi o ápice da
perda da experiência formativa, conseqüência da instrumentalização da razão, que coisificou
os sujeitos. A razão instrumental é a razão minimizada, reduzida ao processo da técnica. A
educação cumpriria esse fim: evitar a barbárie e garantir uma racionalidade emancipatória.
Segundo Adorno, a sociedade administrada, que segue a lógica da mercadoria, fornece e
favorece a reprodução da semicultura, ou seja, uma cultura/formação que não é plena,
autêntica, mas dafinicada, prejudicada, superficial.
O Esclarecimento que viabilizou o progresso técnico possibilitou também a sua
regressão, a barbárie. Essa discussão é a base da obra de Adorno e Horkheimer “Dialética do
Esclarecimento”. Com a perda da experiência formativa plena, a Bildung, o que prevalece é
um processo “semiformativo”, coerente com a lógica identitária do “sempre-o-mesmo”,
favorecendo a mera adaptação dos sujeitos à sociedade existente. Daí a dificuldade em aceitar
o diferente, o diverso, a alteridade culminando em Auschwitz.
O autor faz também uma crítica à Educação Tradicional que privilegia a dor e a
capacidade de suportá-la, levando à indiferença à dor do outro, também caminho para a
barbárie.
O elogiado objetivo de ‘ser duro’ de uma tal educação significa indiferença contra a
dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a si própria.
Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os
outros, vigando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é
necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma
educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la [...]. (ADORNO, 2003,
p. 128)
E aonde a Educação da Infância entraria nessa discussão?
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Segundo Adorno (2003, p. 125) “O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz
seria a auntonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a
autodeterminação, a não-participação”. A saída posta pelo autor é a autorreflexão crítica dos
sujeitos. É aposta na dimensão emancipatória da Bildung, da cultura, fortalecendo o pensar, a
autonomia, a resistência. É a possibilidade de uma experiência formativa plena, combatendo a
semiformação vigente.
A criança, sujeito potente, de direitos, que se manifesta nas múltiplas linguagens,
produtora de culturas infantis, pode ter na Educação Infantil, espaço para viver e constituir
experiências formativas plenas, não reificadas e sim humanizadoras. É essa nossa aposta.
“Quando falo em educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação
infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um
clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição” (ADORNO, 2003, p. 123).
Adorno ao colocar um fim para a educação, a prevenção para que Auschwitz não se
repita, reitera a importância da primeira infância. É neste ponto que encontramos um elemento
chave para discutir possibilidades emacipatórias desde a Educação Infantil.
Por experiência formativa plena Adorno entende um processo autorreflexivo,
caracterizado pela mediação entre os condicionamentos sociais e a autonomia do sujeito, entre
o momento da adaptação e o de resistência.2
O conteúdo da experiência formativa não se esgota na relação formal do
conhecimento [...] mas implica uma transformação do sujeito no curso do seu
contato transformador com o objeto na realidade. Para isto se exige tempo de
mediação e continuidade, em oposição ao imediatismo e a fragmentação da
racionalidade formal e coisificada, da identidade nos termos da indústria cultural.
(MAAR, 2003, p. 25)
A educação então não deve ignorar a adaptação do sujeito à sociedade, como orientação
deste no mundo, mas esse se constitui um dos momentos de seus processos. A educação não
tem o papel de ajustar pessoas, mas de trabalhar adaptação e resistência de modo
concomitante.
Barbosa (2009, p. 8) discute uma Educação Infantil pautada na criança e na infância,
defendendo que esta seja um espaço para oferecer experiências potentes, diversificadas,
qualificadas e aprofundadas. Essas experiências se dão nas múltiplas relações (criança-
criança, criança-espaço, criança-adulto).
A autora descreve três principais funções para a Educação Infantil: uma primeira que
seria “social” no sentido de educar e cuidar da criança integralmente, de modo compartilhado
2 Cf. MAAR, W. À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, T. W. Educação e
emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p. 26.
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com as famílias; uma outra função de cunho “político” no sentido das crianças usufruírem de
seus direitos e de uma formação para a cidadania; e por fim uma função “pedagógica”, lugar
de convivência e saberes.3
A Educação Infantil como espaço de socialização das crianças, assim como a família,
deve também ser espaço das mesmas se expressarem e desenvolverem contribuições próprias
para a cultura.
As crianças, em suas brincadeiras, em seus modos de falar, comer, andar, desenhar,
não apenas se apropriam com o corpo, a mente e a emoção daquilo que as suas
culturas lhes propiciam, mas investigam e questionam criando, a partir das tradições
recebidas, novas contribuições para as culturas existentes. (BARBOSA, 2009, p. 16)
Neste sentido para além de uma mera função socializadora e adaptativa, a Educação
Infantil tem função de contribuir para a formação de crianças criadoras de cultura. Não fica no
momento da “adaptação” e da “semiformação”, mas cria possibilidades de resistência e de
uma formação cultural plena.
Considerações finais
Durante este trabalho discutimos algumas limitações postas pela organização de nossa
sociedade, que tende a fortalecer a reprodução do que Adorno chama de
smiformação/semiculura: “...o processo civilizatório, ao priorizar a adaptação, a razão
instrumental e o princípio da utilidade, demanda, desde a primeira infância, a contenção da
espontaneidade e dos impulsos da natureza e a renúncia à fantasia” (NEUVALD, 2015, p. 30).
Para que possamos vislumbrar uma outra realidade, muitas transformações na
realidade material e objetiva são necessárias, além das discussões dos aspectos mais
subjetivos, voltados a formação dos sujeitos. Neste trabalho no propomos a discutir estes
segundos aspectos, no sentido das contribuições e saídas que processos de educação podem
oferecer para a constituição de relações não reificadas, aptas a viverem a alteridade e pautadas
em uma racionalidade emancipatória.
Entendemos que a constituição de infâncias significativas na Educação Infantil pode
ser um caminho. Por infância significativa entendemos as experiências que são oferecidas
para e construídas pelas crianças, nas quais estas assumem a posição de seres atuantes,
pensantes, decidindo sobre as interações e relações que vão estabelecer com as demais, com o
espaço, com os materiais. Entendemos as experiências que consideram a espontaneidade, o
3 Cf. BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Práticas Cotidianas na Educação Infantil-bases para a reflexão
sobre as orientações curriculares. MEC, Brasília, 2009. p. 9. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf> Acesso em: 21 abr. 2016.
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tempo livre (não pautado na lógica do capital), a ludicidade e a singularidade dos sujeitos na
diversidade de formas de ser, pensar, sentir, agir.
A escola de Educação Infantil necessita ser um espaço que viabilize a produção de
culturas infantis, de processos de construção de conhecimentos pelas crianças em situações de
interação e de inserção em várias práticas sociais e linguagens de sua cultura.4
O termo culturas infantis refere-se às:
[...] configurações espaciais e temporais do contexto em que as crianças vivem com
outras crianças, mediadas pela cultura. Para as crianças, essas produções lhes
possibilitam dar sentido ao mundo. As crianças, em suas culturas infantis,
recompõem a cultura material e simbólica de uma sociedade. Elas fazem sua
releitura do mundo, isso é, leem o mundo adicionando novos elementos geracionais,
recriando-o e reinventando-o. (BARBOSA, 2009, p. 31-32).
Para além de consumistas de uma cultura pronta e para a massa, as crianças podem ser
produtoras de seus sentidos, conhecimentos e culturas. Deixar suas marcas, suas formas de
ver e sentir o mundo. Constituindo-se num espaço que proporcione essas experiências,
acreditamos no potencial emancipatório que a Educação Infantil pode se constituir.
Ao considerar o conhecimento como um campo aberto relativo a muitas experiências a
serem vivenciadas, que considera e valida a singularidade do pensamento infantil e de sua
lógica peculiar, rompendo a lógica linear e fragmentada das disciplinas escolares, a Educação
Infantil pode contribuir para a formação de uma racionalidade não instrumental, que considere
a alteridade, a diversidade, a sensibilidade e a ludicidade. A formação humana está em jogo
neste sentido, como podemos observar:
A ampliação das concepções de conhecimentos e saberes para além da fragmentação
da racionalidade ocidental contribui para a compreensão e a valorização do
pensamento das crianças como um outro modo de pensar. Nem inferior, nem
inverossímil, mas um outro jeito [...] infância, que sempre foi desqualificada por
uma alegada ausência de racionalidade, pode evidenciar a riqueza de portar formas
próprias de racionalidade. Estar atentos a isso talvez nos leve a educar as crianças
não lhes propondo que abandonem a sensibilidade para construir a razão, mas
justamente as instigando a conviver e potencializar sua imaginação em pensamentos,
lógicas e experiências que se complexificam reciprocamente. (BARBOSA, 2009, p.
48)
Um currículo emancipatório para crianças precisa se construir a partir de suas práticas
culturais, de suas dúvidas, perguntas, necessidades e inquietações. Precisa ir além da
adaptação da criança ao contexto. Precisa fortalecer o pensar. Precisa dialogar com sua forma
de interpretar o mundo, com suas múltiplas linguagens.
Atualmente muitas propostas de Educação Infantil têm buscado viabilizar esse trabalho
dando voz às curiosidades das crianças por meio do trabalho com as linguagens. Como formas
4 Cf. BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Práticas Cotidianas na Educação Infantil-bases para a reflexão
sobre as orientações curriculares. MEC, Brasília, 2009. p. 28. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf> Acesso em: 21 abr. 2016.
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de expressão, comunicação e interpretação da realidade, as muitas linguagens se constituem
em canal para a criança experienciar a realidade e construir conhecimento. Acreditamos no
potencial emancipatório desta perspectiva.
Referências
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Práticas Cotidianas na Educação Infantil-bases para a
reflexão sobre as orientações curriculares. MEC, Brasília, 2009. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf Acesso em: 21 de
abr. de 2016.
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação Infantil. Brasília, MEC, SEB, 2010.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de
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<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf> Acesso em: 21 abr. 2016.
MAAR, W. À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, T. W.
Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p. 11-28.
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PUCCI, Bruno (org). Teoria Crítica e Educação- A questão da formação cultural na Escola
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QUINTAL, Tânia Maria Massaruto de. Educação e Emancipação no pensamento de Adorno
e Morin. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Nove de Julho, São
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