por uma cartografia da ação

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  • 5/24/2018 Por Uma Cartografia Da Ao

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    Por uma cartografia da ao: pequeno ensaio de mtodo

    Ana Clara Torres Ribeiro, Amlia Rosa S Barreto, Alice Loureno, Laura Maul de

    Carvalho Costa, Luis Csar Peruci do Amaral

    Perdera tudo: o sinal, o ponto, aquilo que fazia com que eu sendo o autor daquele sinal naquele ponto fosse de fato eu.O espao, sem sinal, tornara-se uma voragem de vcuo semprincpio nem fim, nauseante, na qual tudo eu inclusive seperdia (talo Calvino As cosmicmicas)

    Resumo:

    O texto reflete o desafio, para as cincias sociais, com origem na fragmentao social, em novas formas

    de reivindicao e protesto, na multiplicidade dos valores que orientam a ao. Assume, sobretudo, adimenso metodolgica deste desafio, articulada anlise de conjuntura. Aponta para a necessidade deformas alternativas de representao da situao social, que permitam reconhecer contextos e lugares,tticas e aprendizados prticos, temporalidade e sentidos da ao. Prope, neste sentido, uma cartografiada ao, que estimule anlises geis da conjuntura, apoiadas em sintomas e vestgios de presenas sociais.Tal cartografia visa a superao do produtivismo e do objetivismo em representaes de prticas espaciaise do territrio usado e busca favorecer uma leitura dinmica do tecido social.

    Palavras chaves:

    Conjuntura social Ao social Contexto Lugar Territrio

    Correntes prticas

    A inteno deste texto contribuir na organizao e na expresso

    sinttica de informaes relativas s lutas sociais*. Acredita-se que existam

    dificuldades concretas na apreenso da multiplicidade de reivindicaes,

    protestos e conflitos, expressivos do agravamento das condies de vida e

    de intensas mudanas, observadas nos anos 90, em formas de agir e,

    tambm, em iderios que orientam a ao social na Amrica Latina (Cf.

    * Uma primeira verso deste texto foi formulada em julho de 2000, sob o estmulo da publicao doprimeiro boletim do Observatrio Social da Amrica Latina (OSAL) do Conselho Latino-americano deCincias Sociais (CLACSO). A vitalidade social registrada nesta publicao, dedicada revolta indgenano Equador e greve estudantil na UNAM (Mxico), lanava noutra escala de fatos culturais e polticos aproblemtica por ns tratada no mbito do Laboratrio da conjuntura social: tecnologia e territrio(LASTRO) do IPPUR/UFRJ. Os autores aproveitam, neste momento, a oportunidade para agradecer ogrande apoio oferecido s tarefas do LASTRO pelo gegrafo Jorge Luis Borges Ferreira. Neste apoio,

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    Giarracca, 2001). So estas mudanas que, juntamente com a crise

    estrutural, exigem o reconhecimento da conflitividade como horizonte

    transformador das cincias sociais. Nas palavras de Hugo Zemelman: (...)

    para dar conta de qualquer problema social, econmico, poltico ou cultural

    no se pode prescindir do ngulo de leitura conformado pelo par sujeito

    conflitividade; j que alude s dinmicas constitutivas da realidade social

    (2000:109).

    Nas ltimas dcadas, adquirem crescente relevncia as prticas

    sociais que trazem cena poltica identidades culturais profundas,

    permitindo maior visibilidade a sujeitos sociais com ancestral presena nas

    formaes sociais latino-americanas. Trata-se da afirmao de hbridos

    culturais e institucionais, de memrias e utopias (Zemelman, op. cit.) que

    transformam, intensamente, a experincia poltica. com as seguintes

    palavras, por exemplo, que Pablo Gonzlez Casanova encerra um artigo

    sobre as lutas indgenas no Mxico: O movimento zapatista do sculo XXI

    combina o conjunto (projetos polticos anteriores e revoluo tecnico-cientfica) num projeto universal que inclui o uno e o diverso com sua

    forma maia ou mexicana de ouvir e dizer as vozes e sons que vm do

    corao e do mundo, metforas ambas que enriquecem e renovam os

    discursos e as condutas (Casanova, 2001:8).

    As transformaes na ao social envolveram, tambm, a

    implementao de tticas e estratgias inovadoras, desenvolvidas por umamultiplicidade de sujeitos sociais em busca do alcance de objetivos

    imediatos, do reconhecimento da legitimidade das suas reivindicaes e da

    realizao de projetos que visam, fundamentalmente, a radicalizao da

    transparecem o efetivo compartilhamento de valores e a amizade. Tambm recordam a fora trazida

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    democracia e a ruptura de formas histricas de subordinao e opresso.

    Portanto, a tendncia desconstruo do espao pblico que acompanha o

    ajuste neoliberal das economias perifricas tem sido contrarrestada pela

    ao social que irrompe em novas configuraes espao-temporais, como

    demonstram as interrupes de estradas (Barbetta e Mariotti, 2001), ruas e

    pontes (LASTRO, 1999-2001); os acampamentos e assentamentos do

    Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (Fernandes, 2000)

    e as longas marchas do movimento zapatista. Como registra Ana Esther

    Cecea ao analisar os diferentes sentidos da Marcha da Dignidade Indgena

    (percurso de San Cristbal de las Casas cidade do Mxico, realizado de

    24 de fevereiro a 11 de maro de 2001): A marcha ps em evidncia as

    formas ocultas de organizao da sociedade, que nada tem a ver com os

    espaos tradicionais de encontro. A organizao social se territorializou,

    transcendeu as formas de organizao anteriores e reformulou os seus

    contedos (Cecea, 2001:11).

    Assim, a nova fase do capitalismo emerge tanto sob o signo daradicalizao da excluso como sob a presso de novas contradies

    sociais, que (re)significam os vnculos passado-presente-futuro(s).

    Encontra-se em curso, aps a quebra das promessas societrias da

    modernizao, uma disputa, latente ou frontal, de projetos, transformadora

    da leitura dos recursos e de sentidos da existncia: O que pedem e o que

    necessitam os povos indgenas no um lugar grande nem um lugar

    pequeno, mas um lugar digno dentro da nossa nao; um tratamento justo,um tratamento de iguais, ser parte fundamental desta grande nao; ser

    cidados com todos os direitos que merecemos como todos; que nos levem

    equipe do Laboratrio, a partir de 2001, pela graduanda em geografia Maria Amlia Vilanova Neta.

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    em conta, que nos tratem com respeito... (Comandante David, IPN,

    16/3/01 apud Cecea, op. cit., p.14).

    As intensas mudanas observadas na ao poltica e a velocidade da

    acumulao financeira exijem o reposicionamento terico-conceitual dos

    elos entre estrutura e conjuntura e, ainda, agilidade na obteno de

    resultados analticos, mesmo que provisrios. Nesta direo, torna-se

    especialmente relevante a valorizao da ao e o reconhecimento,

    tentativo e sintomtico, das referncias culturais que orientam, atualmente,

    movimentos e resistncias sociais na Amrica Latina. A leitura de

    resistncias opresso e excluso impe o mapeamento analtico de

    prticas dirias e das tticas de sobrevivncia que tm permitido a

    afirmao de identidades sociais at recentemente ocultadas pelos projetos

    polticos da modernidade.

    .

    Para as cincias sociais, como orienta Hugo Zemelman, trata-se de

    valorizar a historicidade do momento atual. Em suas palavras: Reconhecera realidade significa algo mais do que conhec-la. Exige saber situar-se no

    momento histrico que se vive, o qual uma forma de assombro que obriga

    a colocar-se num umbral de onde se possa observar, no somente para

    contemplar, mas tambm para atuar: a utopia, antes de tudo, a tenso do

    presente (op. cit. 110). Afinal, as reivindicaes e os protestos,

    desenvolvidos no dia-a-dia, tambm modificam sentidos da ao social e

    podem ser portadores de futuras consequncias estruturais. Alis, apesquisa Micro-conjuntura: informao e oportunidade nas metrpoles

    brasileiras que sustenta este texto, desenvolvida com apoio do CNPq e da

    UFRJ, procura reconhecer, exatamente, o significado de cada gesto

    indicativo de mudanas na ao social e nos valores que a conduzem.

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    De fato, os fenmenos e processos posicionados entre estrutura e

    conjuntura precisam ser realmente tratados de forma biunvoca e no

    apenas, como foi antes usual, atravs da alocao analtica dos sujeitos

    sociais sua posio no mago da organizao de economia; sendo da

    derivado os sentidos de sua ao. Da mesma forma, os vnculos entre super

    e infraestruturas ainda so carentes de investimentos analticos conduzidos

    pelo reconhecimento da complexidade e da relevncia do senso comum

    (Santos, 1989). Este reconhecimento especialmente indispensvel agora,

    quando a esfera cultural transformada em lugar de negcios, observando-

    se, simultaneamente, a luta pelo resgate de memrias, razes e identidades

    culturais.

    urgente, portanto, a renovao das cincias sociais, o que no

    significa desconhecer anlises anteriores, mas sim, a obrigao de seu

    rejuvenescimento, atravs de dilogo com os mltiplos outros que

    reconstroem a experincia social. O trabalho de conjugao analtica (LeMoigne, 1999) entre estrutura e conjuntura, sujeitos sociais e atores

    polticos, em sintonia com vontades sociais em construo, pode oferecer

    alguns caminhos para a renovao necessria. Julga-se que, na formulao

    destes caminhos, so indispensveis a proposio de conceitos, como o de

    micro-conjuntura, e a construo de solues de mtodo, como a

    cartografia da ao, que, ao mesmo tempo, reconheam o mltiplo e o

    voltil e procurem desenhar as novas sistematicidades originadas dasprticas sociais.

    A ao hoje observada tanto corresponde a encadeamentos de amplas

    e diferentes prticas, associveis ao conceito de rede de movimentos

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    (Scherer-Warren, 1993), como a fatos isolados, no menos relevantes

    cultural e politicamente, j que indicativos da existncia de verdadeiros

    nichos de criao de formas renovadas de manifestao social1. A

    vitalidade das sociedades latino-americanas surge numa pluralidade de

    frentes de mobilizao, com rpida possibilidade de serem reproduzidas

    atravs da base tcnica da vida coletiva: as atuais formas de comunicao e

    informao. Desta maneira, o acompanhamento analtico da ao apresenta

    desafios de mtodo que no podem ser respondidos, totalmente, atravs da

    reflexo da gnese da ao ou com apoio, apenas, em questes polticas

    abrangentes, tais como os relevantes temas da democracia e da cidadania.

    Poderia ser dito que a ao social, ao mesmo tempo em que exige a

    considerao desses grandes temas, impe o reconhecimento de outros,

    trazidos por aqueles que fazem concretamente a vida e que (re)costuram, de

    forma incessante, o tecido social no mago das incertezas e das espao-

    temporalidades do presente2. Para estes, experincia imediata e futuro

    caminham juntos. Como afirma Greimas (1968), ao analisar o fatolingustico, no existem relaes fceis entre relevncia estrutural e

    durao: No se v, inicialmente, como estabelecer a equao postulando

    que o que dura mais mais essencial do que dura menos (...). A durao

    no parece suscetvel de servir de ponto de ligao entre a histria e a

    estrutura (pp 56,57). Afirmar esta ligao significaria, por um lado, omitir

    1No LASTRO, so realizadas anlises mensais das aes veiculadas na grande imprensa. Destas anlises,

    resulta a observao do aprendizado de prticas entre diferentes sujeitos sociais nos contextosmetropolitanos, como demonstra o sucessivo fechamento, por diferentes sujeitos sociais, da ponte Rio-Niteri e das grandes vias de acesso ao centro da cidade do Rio de Janeiro.2 Como prope Maria Adlia de Souza: (...) a cidade gera um processo, um grau de liberdadeincompatvel com o nvel de manipulao que a sociedade industrial e informacional contemporneaprecisa para sobreviver. E por isso que essa sociedade destri a cidade. Mas a cidade no produz apenasliberdade. Ela instaura redes de ao e de resistncia contra a falta de liberdade, contra a desigualdade(...). E so exatamente essas redes que colocam em xeque todos os mecanismos de rigidez das hierarquiassociais, os processos de manipulao cultural, gerando fantsticos processos de solidariedade, deigualdade, de fraternidade, de convivialidade. V a uma praa pblica, a uma rua da periferia das grandescidades brasileiras, e descubra isto! (Souza, 1997: pp 6,7).

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    o dinamismo da prpria estrutura, ou melhor, das estruturas e, por outro,

    esquecer que a atualizao da histria depende dos atos diariamente

    praticados.

    com esta concepo geral da problemtica da existncia que este

    ensaio encontra-se construdo em direo vida imediata, sem que, com

    esta deciso, ocorra o desconhecimento das referncias estruturais

    abrangentes da ao social. Esta diretriz de mtodo no significa o elogio

    irresponsvel do cotidiano, reprodutor de tantos preconceitos e

    subordinaes (Heller, 1972), mas, sim, a valorizao de contextos, lugares

    e narrativas. Envolve, ainda, a inteno de contribuir no encontro de formas

    de representao da vida coletiva que facilitem o enraizamento da questo

    social e a compreenso dos praticantes de espaos (Certeau, 1994). Para

    tanto, busca-se refletir a ao no aqui e agora, ao mesmo tempo em que se

    reconhece que os vnculos entre mapeamentos e representaes coletivas

    exigem a reflexo da experincia histrico-cultural latino-americana. Esta

    proposta metodolgica encontra inspirao em Milton Santos (1994; 1996;1999), Edgar Morin (1996), Boaventura Santos (1991) e Carlos Fuentes

    (1994).

    Do primeiro ator, recorda-se, neste momento, a valorizao do

    homem lento, verdadeira categoria da reflexo existencialista dos

    praticantes de espaos. Esta categoria orienta a compreenso das relaes

    inteligentes com o prtico inerte local (Sartre, 1967), que soindispensveis sobrevivncia daqueles que no dispem dos recursos que

    permitem, s classes mdias e altas, omitir o trabalho morto concentrado

    nos lugares e as rugosidades e interstcios que retm a ao dominante,

    possibilitando a permanncia do mais fraco nos territrios desenhados para

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    impedir a sua presena. Tambm deste autor, lembra-se a categoria

    territrio usado, que constitui uma segura orientao analtica para leituras

    do espao que reconheam a centralidade das prticas na configurao de

    projetos polticos alternativos ao agir hegemnico.

    J de Edgar Morin lembra-se o compromisso tico com o

    reconhecimento da complexidade. este reconhecimento que pode impedir

    a linearizao da experincia social pela cincia e pela tcnica e o

    afastamento cmodo do especialista ou do perito dos enredamentos da

    existncia: Ora, hoje, a presena da dialgica da ordem e da desordem

    mostra que o conhecimento deve tentar negociar com a incerteza. Isso

    significa que (...) o objetivo do conhecimento no descobrir o segredo do

    mundo ou a equao-chave, mas dialogar com o mundo (Morin,

    1996:205). tambm este dilogo que alimenta a oferta terico-

    metodolgica de Boaventura de Souza Santos quando, ao reconhecer o

    espao como condutor do pensar e do agir, valoriza tanto a cartografia

    como o pluralismo jurdico, trazendo tona outras dimenses do direito(local, infra-estatal, informal, no oficial, costumeiro) (Santos, 1991:67).

    De Carlos Funtes reconhece-se o extraordinrio estmulo

    representado por uma concepo da experincia latino-americana que

    elabora o espao-tempo atravs de uma narrativa que rompe ideaes do

    humanismo abstrato e que valoriza, com referncia em Baktin e em Borges,

    a procura da cronotopia ibero-americana, reconhecedora da policulturaoriginria. Em suas palavras: A conquista foi empresa de utopia para uns,

    de evangelizao para outros, de lucro, de poder poltico e de afirmao

    individualista para os demais. A tragdia no tinha lugar no seu

    movimento. Suprimos sua ausncia e todas nossas contradies resgatando

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    o direito de nomear e de dar voz, de recordar e de desejar. Nome e voz,

    memria e desejo, nos permitem hoje dar-nos conta de que vivemos

    rodeados de mundos perdidos, de histrias desaparecidas. Estes mundos e

    estas histrias so nossa responsabilidade: foram criados por homens e

    mulheres. No podemos esquec-los sem condenar a ns mesmos ao

    esquecimento. Devemos manter a histria para ter histria. Somos os

    testemunhos do passado para seguir sendo os testemunhos do futuro

    (Fuentes, 1994:49).

    Mapas e imagens

    A natureza e a riqueza, a includo o volume da populao,

    conduziram com especial fora a simbiose entre imagem e mapa acelerada

    pela modernidade (Cf. Raffestin, 1993). Contar, precisar, desvendar

    caminhos e penetrar territrios foram processos que articularam

    representao e apropriao do mundo e que envolveram religio e poder.

    A capacidade de medir e avaliar torna-se crescentemente exata, mesmo quena exatido escondam-se obscuros espritos os deuses e os demnios da

    racionalizao e permanentes imprecises3. Tambm o valor excepcional

    da informao rara, aparentemente uma caracterstica do mundo

    contemporneo, da denominada sociedade da informao, existiu no

    segredo dos mapas e nas redes que transmitiam aos centros de poder, ainda

    no perodo dos descobrimentos, os segredos das terras desconhecidas e das

    rotas que conduziam conquista (Bueno, 1988). Por outro lado, imagens e

    relatos encontraram rapidamente o seu mercado entre aqueles que

    3 Medir montanhas, contudo, uma tarefa diabolicamente difcil, com espao de sobra para que secometam erros. Como explica Louis Baume em Sivalaya, um compndio de fatos sobre as catorzemaiores montanhas do mundo, o clculo das altitudes dos picos do Himalaia um campo de tantacomplexidade erudita que nem mesmo anjos munidos de teodolitos e fios de prumo ousariam meter onariz no assunto (Krakauer, 1999).

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    sonhavam com a aventura no vivida, com as cores e os sabores das terras

    distantes e com uma fauna e uma flora exuberantes e msticas (Bueno, op.

    cit.).

    Talvez a direo dominante da relao pr-estabelecida com o

    desconhecido possa ser lida na forma como a natureza foi desvendada,

    desde os primrdios da colonizao. A empresa colonial foi conduzida pela

    nsia de riqueza imediata; que passa, gradualmente, a ser compreendida

    como sendo a prpria forma possvel e desejvel da riqueza (Furtado,

    1971), ao mesmo tempo em que culturas e seres humanos so classificados

    e aprisionados como elementos racionalmente apropriveis do

    surpreendente quadro natural do novo mundo4. A beleza das

    representaes trazida pela cartografia inaugural, e dos sculos

    imediatamente subsequentes, resulta de leituras que buscam recursos e que

    registram os entes de um paraso perdido, por vezes demonizados por

    interpretaes emanadas, como diz Eduardo Loureno, de uma Europa

    culpada: Neste primeiro instante inaugural, os trpicos no eram tristes. Afamosa tristeza dos trpicos da decepo de todos os que, desde (...)

    Colombo at Lvi-Strauss, no reconheceram na realidade do novo mundo

    a Natureza mtica do primeiro olhar ocidental, aquela que a civilizao

    vestida e pecadora da Europa buscava para se sentir na aurora do mundo,

    com a sua inocncia e a sua imaginria felicidade (Loureno, 2000:8).

    Estas leituras espelhadas, no plano liso das cartas, seduzem eassustam, estimulando o estranhamento (ou envergonhada rejeio) que nos

    4O tpico da salvao do nativo no original de Caminha nem apenas uma reproduo da realidade,mas pertence aos lugares-comuns do gnero literrio das cartas de descobrimento: permite a associaodos interesses da Igreja Catlica Romana aos da Corte. A perspectiva nativista, que at hoje preponderano Brasil como tipicamente brasileira, no brasileira. a perspectiva do conquistador e do colonizador,que louva o valor do objeto conquistado, da propriedade adquirida, para agradar o rei que o paga (Kothe,1997: 224).

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    transporta para o vrtice sempre renovado do olhar externo5. A absoro

    deste olhar introduz um vis de distanciamento na obrigao de sermos

    analistas de ns mesmos; permitindo recordar, de forma aqui

    propositalmente deslocada, as palavras de Flvio Venturi em Eu, caador

    de mim: Por tanto amor, por tanta emoo / a vida me fez assim doce ou

    atroz, manso ou feroz / eu, caador de mim / preso a canes, entregue a

    paixes / que nunca tiveram fim / vou me encontrar longe do meu lugar /

    eu, caador de mim. No caso brasileiro, o frequente retorno de questes do

    tipo: que pas este? que sociedade esta? denota a nsia por um olhar

    inaugural no mistificador, cuja possibilidade de instaurao encontra-se

    perdida para sempre. Alis, apenas as sociedades novas podem sentir esta

    nsia, pensando-a prxima de sua satisfao e sabendo-a, entretanto, to

    enganadora quanto os espelhos de Alice.

    A carncia deste olhar transforma-nos, com frequncia, em surpresos

    e vidos consumidores de representaes preservadoras do confortvel e,

    por vezes, doloroso afastamento da sociabilidade imediata

    6

    . Estaexperincia distanciada e extrovertida sedutora, difundindo nas

    sociedades perifricas os anseios absentestas e a melancolia que

    conformam parte relevante da experincia literria das camadas dominantes

    e de segmentos intelectualizados das classes mdias urbanas (Kothe, op.

    cit.). O olhar predominante da modernidade aquele que classifica,

    desenha e conta, mas, que, sobretudo, omite a escuta ou a compreenso de

    5Fontes valiosas para o conhecimento do meio ambiente e da sociedade, os textos dos viajantes foramtambm responsveis pela difuso de alguns equvocos sobre o passado colonial. Podemos lembrar asreferncias (...) pouca sociabilidade entre os escravos, a uma populao pobre e livre embrutecida pelaignorncia e pela ociosidade, e ao mito do interior como um espao vazio. Argumentos desse tipo foramincorporados a reflexes de intelectuais brasileiros e marcaram profundamente nossa imaginao social epoltica (Lima, 2000).6No fundo, at no h muito tempo, o nico e capital problema da cultura latino-americana no foi outroque o de incorporar ao seu discurso de continente descoberto e religado cultura do mundo dos seusdescobridores e povoadores no-autctones, o continente perdido que continua inaccessvel - salvo comomscara e relquia sua conscincia (Loureno, op. cit., p.8).

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    narrativas renega assim, a no ser por belssimas excees, a experincia

    daqueles que praticam o espao; daqueles que, por imbricamentos culturais

    extraordinrios, compem e engendram o tecido social. Para estes, os

    espelhos precisam ser transformados em trajetos e tticas no aqui e agora

    (Certeau, op. cit.). Tambm para estes, a feiura do presente esconde

    tesouros de esperana e beleza que o pensamento crtico extrovertido

    agilmente renega7.

    Trata-se de um descolamento de raiz, ou melhor, de um

    desenraizamento hoje acelerado pelos fluxos mundiais, estimulador da

    transitoriedade dos percursos e das estadias e apoiado em inovaes

    materiais e imateriais8. Somos, por estes estmulos e por esta origem,

    tendencialmente condenados a serem eternos visitantes de nossa prpria

    sociedade ou a estarmos envolvidos, como afirma Octvio Ianni (2000),

    nos desejos implcitos no recurso metfora da viagem. Alheados do aqui e

    agora, constitumos sobretudo territrio, como tambm afirma este autor,

    para a expanso de foras modernizantes em risco de esgotamento em suaprpria espacialidade de origem; foras que, contraditoriamente, compem

    segmentos de nossa identidade, alimentada por ideaes de herosmo e de

    7Em resistncia ao olhar triste do outro europeu, decepo de Levi-Strauss, homenageia o poeta JorgeAlmeida a beleza-feiura da Baa da Guanabara, sabendo-a trgica: Testemunha / Amores / Revoltas /Batalhas / s bela / Com prtese urbana ponte, piscina / Ou banguela / Manguezais asfalto / Ditadurasorridente dos automveis / Via expressa moderna vermelha ou amarela / s bela / Baa da Guanabara /Bricolagem mosaico de lixo / s ps-moderna / Um pescador de peixes / Iluses / Na boca sem dentes /Na ponte do Galeo / Com a elegncia de um guerreiro espartano / E a pacincia de um monge tibetano /Parece que perdeu a razo / Quando o anzol morde a gua / Eu me pergunto o que voc est pescando a /

    peixe coc peixe xixi? / peixe mercrio, chumbo ou frito? / Eu grito apesar de tudo bela / Baa daGuanabara no mais donzela / Encanta-me a lua em suas guas / Magia de luz / Fico enfeitiadorelembro tempo passado / Dana dos golfinhos bal das baleias / Apesar de ns dos ns de ns / s bela /Com prtese urbana ponte, piscina / Ou banguela (poema Baa da Guanabara, enviando a Ana ClaraTorres Ribeiro, via intenet, em 2001.8Como disse Milton Santos no momento da comemorao dos 500 anos: Na realidade, o que se estfazendo comemorar a histria europeia do Brasil. Em outras palavras, ns estamos admitindo comonatural que o Brasil seja visto como uma consequncia da existncia da Europa. A rigor, se tomarmosuma atitude crtica, como se estivssemos dizendo que os ndios nunca existiram (Cem anos datapara europeu comemorar, Dirio do Grande ABC, 23/1/00).

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    aventura e por prticas, mesmo que involuntrias, de moralizao e de

    reduo dos sentidos da ao dos mltiplos outrosco-presentes.

    Portanto, os praticantes de espaos podem ser, atravs de orientaes

    analticas por ns acionadas, extrados fsica ou simbolicamente do seu

    lugar, j que, para o olhar dominante, apenas existem como fato ou como

    condio a ser mantida ou ignorada. Estabelece-se, pelo distanciamento, a

    reproduo de uma outra forma de naturalizao, onde o discurso aparece

    como objeto, juntamente com mapas e imagens. O discurso

    descontextualizado perde parte de sua vitalidade e, portanto, parte da sua

    significao. A reificao produzida pela anlise, sobretudo quando dela

    no se tem conscincia, colabora para anular condies de afirmao de

    sujeitos sociais e para adiar o desvendamento, como convida Milton Santos

    (2000), da sistematicidade desruptiva de recursos e aes ou, como

    propem outros, das racionalidades alternativas e do sujeito complexo

    (Poggiese, 2000; Unda, 2002).

    O avano da modernidade se fez acompanhar de enormes ganhos na

    capacidade de desvendar e registrar, possibilitando tanto a fixao da pauta

    humanista e da cincia quanto a conquista de instrumentos tcnicos que

    agilizam a objetivao de culturas e seres humanos. A subordinao da

    cincia tcnica e produo, como orienta Edgar Morin (op. cit.),

    possibilita a manipulao do mundo, pondo em risco, atualmente, o prprio

    humanismo e os usos socialmente progressistas da cincia. Mapas, imagense falas, subordinados calculabilidade e aos cdigos hegemnicos da

    eficcia, sustentam novos distanciamentos, dificultando o encontro de

    projetos e utopias efetivamente transformadores.

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    Sem dvida, tcnicas alternativas, mais prximas da arte, no podem,

    por elas mesmas, impedir o esvaziamento de sentidos da ao decorrente

    do excesso de exatido transitria e de dados sem anlise. O alisamento e o

    desenraizamento destrutivos e sedutores da antiga cartografia permanecem

    acontecendo nas lisas telas dos computadores e das televises, assim como,

    a naturalizao das relaes sociais, como exemplificam as telenovelas em

    que mulheres tropicaiscontinuam balanando-se em redes e servindo aos

    seus senhores ou integradas, em secretas identidades, aos animais das

    florestas e a rios transbordantes. Exotismo padronizado e descompromisso

    identitrio articulam-se sexualidade alienada para reproduzir, nos termos

    atuais, ideaes destruidoras da poltica e da autonomia.

    Hoje, o ponto exato no tempo-espao encontrado com apoio em

    satlites e no GPS (Castilho, 1999) favorece os deslocamentos geis

    exigidos pelos fluxos da economia, pela logstica do agir militar estratgico

    e pelo monitoramento preciso de recursos e de riscos produtividade. Este

    ponto sem autoria, como nos fez lembrar a epgrafe de talo Calvino, nocontm nem memria nem narrativa. Jamais, portanto, poder ser o

    localizador da msica dos lugares, aquela construda por dores e amores,

    inscritos na toponmia e nos passos cotidianos de projetos libertrios e

    expressivos da solidariedade9. Estes so outros pontos-lugares, carentes de

    cartografia, mas que possuem, quando a sorte os protege, o cantar dos

    grandes poetas.

    9O discurso do mundo mecnico se apoia, a ttulo de exemplo, em trs imagens bsicas da Renascena:a iconografia, como noo de mundo; a perspectiva, como noo de espao e o relgio, como noo detempo. O discurso do mundo eletrnico se apoia, tambm a ttulo de exemplo, em trs outras imagens: aaldeia global, a televiso e a mundializao do cotidiano com a iluso do mundo em sua casa. Nos doisdiscursos desenham-se concepes de mapas do mundo aparentemente diferentes, mas na realidade,muito prximas (...). Discursos de tecnologias claramente opostas mas, na consequncia da informaoque produzem, se assemelham. O desenho de um novo mapa do mundo supe traar a concepo dainformao e da cultura com desenhos tambm novos (Ferrara, 1993).

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    O registro do mundo vivido transborda, por exemplo, no canto de

    Patativa do Assar: Foi em mil novecentos / e nove queu vim ao mundo/

    foi na Serra de Santana / em uma pobre choupana / humilde e modesto lar /

    foi ali onde eu nasci / e a cinco de maro vi / os raios da luz solar / foi ali

    que eu fui crescendo / fui lendo e fui aprendendo / no livro da Natureza /

    onde Deus mais visvel / o corao mais sensvel / e a vida tem mais

    pureza (poema Eu e Meu Campina. Revista Palavra, Ano 2, N.15, julho

    2000). Ou, ainda, na poesia de Pablo Neruda: Mi casa, las paredes cuya

    madera fresca / recin cortada huele an: destartalada / casa de la frontera,

    que cruja / a cada paso, y silbaba con el viento de guerra / del tiempo

    austral, hacindose elemento / de tempestad, ave desconocida / bajo cuyas

    heladas plumas creci mi canto (poema La casa. Antologa potica,

    Madrid, Espasa-Calpe, 1985).

    Contextos, lugares e representaes sociais

    A cartografia aqui sugerida a da denncia e tambm aquela que

    oriente a ao social, desvendando contextos e reconhecendo atos, ou

    melhor, cada ato (Cf. Almeida, 1994). Uma cartografia que vise a

    valorizao imaginativa dos lugares vividos, onde a vida escorre ou ganha

    fora reflexiva e transformadora. Como carta, mapa, no aparece como

    instrumento isolado ou como bela ilustrao de textos, exarcebando

    critrios estticos; mas, sim, como ferramenta analtica e como sustento damemria dos outros10. Neste sentido, prope-se uma cartografia incompleta

    que se faz fazendo; uma cartografia da prtica, que no seja apenas dos

    10No livro Pour Walter Benjamin (Scheurmann e Scheurmann, 1994), encontra-se nas pgs. 154,155 ummapa dos Pirineus com a indicao das rotas de fuga criadas pela Resistncia para encaminhar osrefugiados, entre outras a percorrida por Walter Benjamin at o lugar de sua morte (Port-Bou, Espanha).Este um exemplo extraordinrio de territrio praticado, que impede esquecimentos.

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    usos e das funes do espao, mas tambm, usvel, tentativa e plstica,

    atravs da qual se manifeste a sincronia espao-temporal produzida e

    produtora da ao. Esta seria uma forma de representao que poderia

    alimentar a ao e que, em vez do territrio naturalizado, trataria, como

    orienta Milton Santos, de territrio usado: O territrio no uma categoria

    de anlise, a categoria de anlise o territrio usado. Ou seja, para que o

    territrio se torne uma categoria de anlise dentro das cincias sociais e

    com vistas produo de projetos, isto , com vistas poltica (...) deve-se

    tom-lo como territrio usado (Santos, 1999:18).

    MAPA 1

    O mapa Ao dos agentes sanitrios em 1999 e 2000 na cidade do

    Rio de Janeiro, elaborado por Jorge Luis Borges Ferreira, constitui um

    exemplo de como o sujeito e a ao podem se impor ao analista, desde que

    os instrumentos de pesquisa no o impeam. De fato, os denominados

    mata-mosquitos, antes mesmo da epidemia de dengue, tiveram as suaslutas sistematizadas no Banco de Dados de Aes e Processos Sociais que

    sustenta os ensaios de cartografia da ao desenvolvidos no

    LASTRO/UFRJ. Nesta cartografia, no existem sujeitos pr-escolhidos e

    nem espacialidades e temporalidades pr-definidas. Tambm no existem

    tipos de ao valorizados com antecedncia, por exemplo, greves ou

    passeatas.

    Ao contrrio, a cartografia, assim como a anlise, submete-se

    ao, sendo os seus sentidos procurados atravs de discursos registrados

    pela imprensa e, tambm, atravs da literatura especializada e de outros

    instrumentos de pesquisa, tais como observao participante e entrevistas.

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    Trata-se, assim, da busca de uma representao espao-temporal da ao

    que resista ao esquecimento de presenas sociais e fugacidade das

    informaes veiculadas pela mdia. Esta representao deve favorecer o

    registro de tticas, demonstrando a existncia do sujeito inesperado, da

    ao espontnea e da resistncia prtica da sociedade. Valoriza-se, nesta

    direo, a noo de ttica proposta por Michel de Certeau: (...) chamo de

    ttica a ao calculada que determinada pela ausncia de um prprio.

    Ento nenhuma delimitao de fora lhe fornece a condio de autonomia.

    A ttica no tem por lugar seno o do outro. E por isso deve jogar com o

    terreno que lhe imposto tal como o organiza a lei de uma fora estranha

    (...) Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita ocasies e delas

    depende, sem base para estocar benefcios, aumentar a propriedade e prever

    sadas (...) Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas

    particulares vo abrindo na vigilncia do poder proprietrio. (op cit, pp

    100, 101). Assim, as tticas constroem lugares no mago da espao-

    temporalidade dominante.

    A voragem de lugares e do tempo da sociabilidade constitui uma das

    ameaas do presente, facilitada por tcnicas inscritas em armas,

    instrumentos de controle, objetos e smbolos de status. Existem, agora,

    riscos ampliados de perda das condies emocionais indispensveis

    escuta dos lugares e, portanto, dos enunciados de que dependem as

    racionalidades alternativas e a formulao de utopias. A difuso tcnica,

    sem os limites estabelecidos pela autonomia cultural e poltica, colaborapara que se afirme a iluso de que todos podem ser viajantes-descobridores

    ou navegantes desmaterializados, o que atrasa o uso socialmente

    transformador e democrtico das novas tecnologias. Entretanto, a exploso

    da ao social, estimulada por caractersticas da atual expanso do

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    capitalismo, impe a apropriao da tcnica como instrumento de

    libertao e o seu uso articulado a fontes pretritas e atuais de informao.

    Do ngulo das fontes, a relevncia da mdia no pode ser negada,

    principalmente quando a informao confrontada pelos discursos dos

    sujeitos sociais, pela historicidade dos lugares e, ainda, pelas estatsticas.

    O uso da informao de mdia exige um investimento rigoroso na

    decodificao gil dos seus possveis significados, o que uma condio

    indispensvel preservao do pensamento crtico. Para o trabalho de

    anlise da informao, sugere-se a constituio de trs bancos de dados: o

    primeiro, dirigido documentao dos veculos de comunicao (origem,

    propriedade, vnculos polticos); o segundo, constitudo por personas,

    permitindo a rpida identificao de atores polticos com presena na

    conjuntura e o reconhecimento dos interesses por eles representados e o

    terceiro, voltado ao registro de instituies (histrico, formas de

    financiamento, linhas de atuao). A sistematizao destas informaes

    sustenta a configurao de um nvel analtico coeso e em constante

    processo de atualizao e aprimoramento, j que se trata da inteno dedisputar interpretaes do presente (Ribeiro, 2001). Este nvel analtico,

    articulando atores sociais, mediaes institucionais e estratgias de

    comunicao, alm de orientar a decodificao da informao veiculada

    pela imprensa, garante que a ao social no tenha os seus sentidos

    neutralizados ou banalizados.

    MAPA 2

    No mapa Protestos contra a violncia ocorridos em 2000 na cidade

    do Rio de Janeiro, tambm concebido por Jorge Luiz Borges Ferreira, a

    organizao sistemtica da informao atravs do Banco de Dados de

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    Aes e Processos Sociais confronta as representaes que apontem para o

    conformismo dos setores populares ou que, com base no diagnstico da

    crise dos movimentos sociais, desconhecem os rumos assumidos, a partir

    da ltima dcada, pelos protestos e conflitos sociais. Registra-se, neste

    sentido, que a reflexo estimulada por este mapa, apesar de sua singeleza,

    propiciou a definio de alguns temas de pesquisa tratados no mbito do

    LASTRO, tais como a presena da morte na experincia do ser jovem das

    classes populares na cidade do Rio de Janeiro (Ribeiro e Loureno, 2002) e

    a anulao do outro, a indiferena, como uma das caractersticas centrais da

    cultura dominante (Ribeiro e Loureno, 2002a).

    Na concepo da cartografia da ao, as notcias relativas a protestos,

    revoltas, passeatas, ocupaes de terras e prdios pblicos, comcios,

    acampamentos, interrupes de vias, greves, confrontos e reivindicaes

    precisam ser consideradas de forma plena, isto , atravs do exame atento

    da sua singularidade e da anlise detalhada de atores sociais e polticos,

    mediadores, objetivos da ao e, tambm, formas de represso sofridaspelos manifestantes. Estas informaes viabilizam no apenas a concepo

    de mapas expressivos da vitalidade do tecido social como, tambm, a

    reflexo de micro conjunturas. O gradual registro analtico destas

    informaes contraria: (a) as formas de classificao da informao

    utilizadas pelos veculos de comunicao; (b) a incoerncia e a

    fugacidade com que, em geral, tratada a ao social; (c) o ocultamento

    do esforo realizado por sujeitos sociais para garantir a sua presena noespao pblico; (d) - a tendncia ao esquecimento da represso e de seus

    responsveis.

    Assim, na cartografia da ao, adquirem especial relevncia os

    espaos praticados, os espaos usados e a geografia da resistncia social.

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    Como afirma Eridan Passos ao definir as questes que orientam o seu

    artigo Globalizao, ps-modernidade e a questo poltica: (trata-se do)

    vis da possibilidade da ao, para alm dos limites impostos pelas

    determinaes estruturais, elas mesmas dinmicas e volteis, e o vis da

    possibilidade efetiva de prticas polticas transformadoras, j que estamos

    interessados em prticas que possam contrapor-se poltica hegemnica

    (2002:58,59). Tambm com este interesse, o registro sistemtico da ao

    realizado na pesquisa Micro-conjuntura: informao e oportunidade nas

    metrpoles brasileiras desobedecem a certezas pr-estabelecidas sobre o

    estado da sociedade.

    Com este registro, que propicia a objetividade necessria anlise,

    torna-se obrigatrio reconhecer a multiplicidade das presenas sociais num

    determinado contexto e/ou ao longo de certo perodo, o que apoia a

    superao de representaes que reafirmam, monotonamente, a negociao

    e a acomodao subalternizantes como destino social na macro-conjuntura

    da reestruturao produtiva, conduzida sob a gide do pensamento nico.

    Esta cartografia tambm constitui um recurso de memria, um apoio danarrativa, impossibilitando o esquecimento de praticantes do espao, o que

    contraria tendncias cristalizao fotogrfica da ao social ou sua

    exarcebao oportunista. Alis, o esquecimento da ao tem sido

    responsvel pelo atraso e pela surpresa, que no so raras, com que as

    cincias sociais acolhem mutaes no tecido social.

    De fato, predomina o privilgio atribudo ao mapeamento da riqueza

    e dos recursos, assim como ao registro dos usos dominantes e poltico-administrativos do territrio. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos

    (1991:65): O poder tende a representar a realidade social e fsica numa

    escala escolhida pela sua virtualidade para criar os fenmenos que

    maximizam as condies de reproduo do poder. A representao /

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    distoro da realidade um pressuposto do exerccio do poder. Tambm

    Howard Becker afirma que: modos de representao fazem mais sentido

    quando vistos num contexto organizacional (1999:37). Acrescente-se que

    so as grandes organizaes que, em geral, controlam a cartografia.

    ainda este ltimo autor que salienta, com grande sensibilidade

    analtica, a desconsiderao pelos pedestres nos mapas de mais fcil

    acesso. Assim, ao relatar o desconforto de um visitante de So Francisco

    com uma inesperada colina em seu trajeto, indaga: Por que os mapas que

    estas pessoas consultam no lhes informa que h colinas ali? Os cartgrafos

    sabem como indicar colinas (...) de modo que no uma restrio de meios

    que cria inconvenincias para os pedestres. Suponho, embora no tenha

    certeza, que os mapas sejam feitos para motoristas, financiados por

    companhias de petrleo e associaes automobilsticas, e distribudos

    atravs dos postos de gasolina e os motoristas se preocupam menos com

    as colinas que os pedestres (Becker, op. cit., p. 135). As representaes

    espaciais predominantes, portanto, precisam ser reconhecidas pelosinteresses e aes que favorecem e, tambm, por aqueles que renegam.

    Neste ensaio, prope-se uma cartografia, singela e ativa, que,

    acionando as novas condies tcnicas do conhecimento, afaste-se da

    reificao esttica da experincia social. Trata-se de uma cartografia

    rpido-lenta, subordinada aos ritmos e trajetos assumidos pela ao social e

    s formas de apropriao, ainda que limitadas, do espao. Como indicaBoaventura de Souza Santos: (...) o modo como imaginamos o real

    espacial pode vir a tornar-se matriz das referncias com que imaginamos

    todos os demais aspectos da realidade (op. cit., p. 64). O imaginrio

    social est prenhe de formas de representao do espao que desorientam a

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    ao social ou que esquecem o rumor da sociedade, a dinmica da ao

    espontnea e a estruturao do espao banal. Ao espao alheado,

    racionalizado e abstrado necessrio opor representaes espaciais que

    favoream a disputa de significados e sentidos da experincia social.

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