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OPINIÃO 17 SEGUNDA-FEIRA, 23 DE DEZEMBRO DE 2013 A GAZETA Por que, no meio da dor, os negros dançam e riem? Leonardo Boff É teólogo e filósofo Experiências importantes da vida pessoal, social e sazonal são celebrados com ritos, danças, músicas e apresentações de máscaras. Estas representam as energias que podem ser benéficas ou maléficas. É nos rituais que ambas se equilibram e se festeja a primazia do sentido sobre o absurdo Milhares de pessoa em toda a Africa do Sul misturam choro com dança, festa com lamentos pela morte de Nelson Mandela. É a forma como realizam culturalmente o rito de passagem da vida deste lado para a vida do outro lado, onde estão os anciãos, os sábios e os guardiães do povo, de seus ritos e das normas éticas. Lá está agora Mandela de forma invisível, mas ple- namente presente acompanhando o povo que ele tanto ajudou a se libertar. Momentos como estes nos fazem re- cordar de nossa mais alta ancestra- lidade humana. Todos temos nossas raízes na África, embora a grande maio- ria o desconheça ou não lhe dê im- portância. Mas é decisivo que nos rea- propriemos de nossas origens, pois elas, de um modo ou de outro, na forma de informação, estão inscritas no nosso código genético e espiritual. Refiro-me aqui tópicos de um texto que há tempos escrevi sob o título “Somos todos africanos”, atualizado face à si- tuação atual mudada. De saída importa denunciar a tragédia africana: é o con- tinente mais esquecido e vandalizado das políticas mundiais. Somente suas terras contam. São compradas pelos grandes conglomerados mundiais e pela China para organizar imensas plantações de grãos que devem garantir a alimentação, não da África, mas de seus países ou negociadas no mercado especulativo. As famosas “land grabbing” possuem, juntas, a extensão de uma França inteira. Hoje a África é uma espécie de espelho retrovisor de como nós humanos pudemos no pas- sado e podemos hoje ainda ser desumanos e terríveis. A atual neocolonização é mais perversa que a dos séculos passados. Sem olvidar esta tragédia, concentre- mo-nos na herança africana que se esconde em nós. Hoje é consenso entre os pa- leontólogos e antropólogos que a aventura da hominização se iniciou na África, cerca de 7 milhões de anos atrás. Ela se acelerou passando pelo homo habilis , erectus, nean- derthalense até chegar ao homo sapiens cerca de 90 mil anos atrás. Depois de ficar 4,4 milhões de anos em solo africano, este se propagou para a Ásia, há 60 mil anos; para a Europa, há 40 mil anos; e para as Américas, há 30 mil anos. Quer dizer, grande parte da vida humana foi vivida na África, hoje esquecida e desprezada. A África, além de ser o lugar geográfico de nossas origens, comparece como o ar- quétipo primal: o conjunto das marcas, impressas na alma de todo ser humano. Foi na África que este elaborou suas primeiras sensações, onde se articularam as cres- centes conexões neurais (cerebralização), brilharam os primeiros pensamentos, ir- rompeu a criatividade e emergiu a com- plexidade social que permitiu o surgimento da linguagem e da cultura. O espírito da África está presente em todos nós. Identifico três eixos principais do espírito da África que podem nos inspirar na su- peração da crise sistêmica que nos assola. O primeiro é o amor à Mãe Terra, a Mama África. Espalhando-se pelos vastos espaços africanos, nossos ancestrais en- traram em profunda comunhão com a Terra, sentindo a interconexão que todas as coisas guardam entre si, as águas, as montanhas, os animais, as florestas e as energias cósmicas. Sentiam-se parte desse todo. Precisamos nos reapropriar deste espírito da Terra para salvar Gaia, nossa Mãe e única Casa Comum. O segundo eixo é a matriz relacional. Os africanos usam a palavra ubuntu que significa: “eu sou o que sou porque per- tenço à comunidade” ou “eu sou o que sou através de você e você é você através de mim”. Todos precisamos uns dos outros; somos interdependentes. O que a física quântica e a nova cosmologia dizem acer- ca de interconexão de todos com todos é uma evidência para o espírito africano. A essa comunidade pertencem os mor- tos como Mandela. Eles não vão ao céu, pois o céu não é um lugar geográfico, mas um modo de ser deste nosso mun- do. Os mortos continuam no meio do povo como conselheiros e guardiães das tradições sagradas. O terceiro eixo são os rituais e ce- lebrações. Ficamos admirados que se dedique um dia inteiro de orações por Mandela com missas e ritos. Eles sen- tem Deus na pele, nós ocidentais, na cabeça. Por isso dançam e mexem todo o corpo enquanto nós ficamos frios e duros como um cabo de vassoura. Experiências importantes da vida pes- soal, social e sazonal são celebrados com ritos, danças, músicas e apresen- tações de máscaras. Estas representam as energias que podem ser benéficas ou maléficas. É nos rituais que ambas se equilibram e se festeja a primazia do sentido sobre o absurdo. Notoriamente é pelas festas e ritos que a sociedade refaz suas relações e reforça a coesão social. Ademais nem tudo é trabalho e luta. Há a celebração da vida, o resgate das memórias coletivas e a recordação das vitórias sobre ameaças vividas. Apraz-me trazer o testemunho pessoal de um dos nossos mais brilhantes jornalistas, Washington Novaes: “Há alguns anos, na África do Sul, impressionei-me ao ver que bastava se reunirem três ou quatro negros para começarem a cantar e a dançar, com um largo sorriso. Um dia, perguntei a um jovem motorista de táxi: ‘Seu povo sofreu e ainda sofre muito. Mas basta se juntarem umas poucas pessoas e vocês estão dan- çando, cantando, rindo. De onde vem tanta força?’ E ele: ‘Com o sofrimento, nós apren- demos que a nossa alegria não pode de- pender de nada fora de nós. Ela tem de ser só nossa, estar dentro de nós’”, Nossa população afrodescendente nos dá a mesma amostra de alegria que nenhum capitalismo e consumismo po- de oferecer.

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Page 1: Por que, no meio da dor, os negros dançam e riem?€¦ · Por que, no meio da dor, os negros dançam e riem? Leonardo Boff É teólogo e filósofo Experiências importantes da vida

OPINIÃO17SEGUNDA-FEIRA, 23 DE DEZEMBRO DE 2013 A GAZETA

Por que, no meio da dor,os negros dançam e riem?

Leonardo BoffÉ teólogo e filósofo

Experiências importantes da vida pessoal, social e sazonal são celebrados com ritos, danças, músicase apresentações de máscaras. Estas representam as energias que podem ser benéficas ou maléficas.É nos rituais que ambas se equilibram e se festeja a primazia do sentido sobre o absurdo

Perspectivas paraa Saúde em 2014

Florisval MeinãoÉ presidente da Associação Paulista de Medicina

As eleições vão acirrar os debates sobre os melhores caminhos para se garantir o acesso à saúde de qualidade

Diretor de Jornalismo: ABDO CHEQUER [email protected] | Editor-chefe: ANDRÉ HEES [email protected] | Editores Executivos: EDUARDO [email protected] e ANDRÉIA LOPES [email protected]| Editor Executivo Digital: AGLISSON LOPES [email protected] | Central de Notícias: GERALDO

NASCIMENTO [email protected] | Domingo: LÚCIA GONÇALVES - lhgonç[email protected] | Editor de Arte: PAULO NASCIMENTO [email protected] | Editor de Fotografia: CHICO GUEDES [email protected] | Editor de Qualidade: CARLOS HENRIQUE BONINSENHA [email protected]

Milhares de pessoa em toda a Africa do Sulmisturam choro com dança, festa comlamentos pela morte de Nelson Mandela.É a forma como realizam culturalmente orito de passagem da vida deste lado para avida do outro lado, onde estão os anciãos,os sábios e os guardiães do povo, de seusritos e das normas éticas. Lá está agoraMandela de forma invisível, mas ple-namente presente acompanhando o povoque ele tanto ajudou a se libertar.

Momentos como estes nos fazem re-cordar de nossa mais alta ancestra-lidade humana. Todos temos nossasraízes na África, embora a grande maio-ria o desconheça ou não lhe dê im-portância. Mas é decisivo que nos rea-propriemos de nossas origens, pois elas,de um modo ou de outro, na forma deinformação, estão inscritas no nossocódigo genético e espiritual.

Refiro-me aqui tópicos de um texto quehá tempos escrevi sob o título “Somostodos africanos”, atualizado face à si-tuação atual mudada. De saída importadenunciar a tragédia africana: é o con-tinente mais esquecido e vandalizado daspolíticas mundiais. Somente suas terrascontam. São compradas pelos grandesconglomerados mundiais e pela Chinapara organizar imensas plantações de

grãos que devem garantir a alimentação,não da África, mas de seus países ounegociadas no mercado especulativo. Asfamosas “land grabbing” possuem, juntas,a extensão de uma França inteira. Hoje aÁfrica é uma espécie de espelho retrovisorde como nós humanos pudemos no pas-sado e podemos hoje ainda ser desumanose terríveis. A atual neocolonização é maisperversa que a dos séculos passados.

Sem olvidar esta tragédia, concentre-mo-nos na herança africana que se escondeem nós. Hoje é consenso entre os pa-leontólogos e antropólogos que a aventurada hominização se iniciou na África, cercade 7 milhões de anos atrás. Ela se aceleroupassando pelo homo habilis, erectus, nean-derthalense até chegar ao homo sapienscerca de 90 mil anos atrás. Depois de ficar4,4 milhões de anos em solo africano, estese propagou para a Ásia, há 60 mil anos;para a Europa, há 40 mil anos; e para asAméricas, há 30 mil anos. Quer dizer,grande parte da vida humana foi vivida naÁfrica, hoje esquecida e desprezada.

A África, além de ser o lugar geográfico denossas origens, comparece como o ar-quétipo primal: o conjunto das marcas,impressas na alma de todo ser humano. Foina África que este elaborou suas primeirassensações, onde se articularam as cres-

centes conexões neurais (cerebralização),brilharam os primeiros pensamentos, ir-rompeu a criatividade e emergiu a com-plexidade social que permitiu o surgimentoda linguagem e da cultura. O espírito daÁfrica está presente em todos nós.

Identifico três eixos principais do espíritoda África que podem nos inspirar na su-peração da crise sistêmica que nos assola.

O primeiro é o amor à Mãe Terra, aMama África. Espalhando-se pelos vastosespaços africanos, nossos ancestrais en-traram em profunda comunhão com aTerra, sentindo a interconexão que todasas coisas guardam entre si, as águas, asmontanhas, os animais, as florestas e asenergias cósmicas. Sentiam-se parte dessetodo. Precisamos nos reapropriar desteespírito da Terra para salvar Gaia, nossaMãe e única Casa Comum.

O segundo eixo é a matriz relacional. Osafricanos usam a palavra ubuntu quesignifica: “eu sou o que sou porque per-tenço à comunidade” ou “eu sou o que souatravés de você e você é você através demim”. Todos precisamos uns dos outros;somos interdependentes. O que a físicaquântica e a nova cosmologia dizem acer-ca de interconexão de todos com todos éuma evidência para o espírito africano.

A essa comunidade pertencem os mor-tos como Mandela. Eles não vão ao céu,pois o céu não é um lugar geográfico,mas um modo de ser deste nosso mun-do. Os mortos continuam no meio dopovo como conselheiros e guardiães dastradições sagradas.

O terceiro eixo são os rituais e ce-lebrações. Ficamos admirados que se

dedique um dia inteiro de orações porMandela com missas e ritos. Eles sen-tem Deus na pele, nós ocidentais, nacabeça. Por isso dançam e mexem todoo corpo enquanto nós ficamos frios eduros como um cabo de vassoura.

Experiências importantes da vida pes-soal, social e sazonal são celebradoscom ritos, danças, músicas e apresen-tações de máscaras. Estas representamas energias que podem ser benéficas oumaléficas. É nos rituais que ambas seequilibram e se festeja a primazia dosentido sobre o absurdo.

Notoriamente é pelas festas e ritos que asociedade refaz suas relações e reforça acoesão social. Ademais nem tudo é trabalhoe luta. Há a celebração da vida, o resgatedas memórias coletivas e a recordação dasvitórias sobre ameaças vividas.

Apraz-me trazer o testemunho pessoal deum dos nossos mais brilhantes jornalistas,Washington Novaes: “Há alguns anos, naÁfrica do Sul, impressionei-me ao ver quebastava se reunirem três ou quatro negrospara começarem a cantar e a dançar, comum largo sorriso. Um dia, perguntei a umjovem motorista de táxi: ‘Seu povo sofreu eainda sofre muito. Mas basta se juntaremumas poucas pessoas e vocês estão dan-çando, cantando, rindo. De onde vem tantaforça?’ E ele: ‘Com o sofrimento, nós apren-demos que a nossa alegria não pode de-pender de nada fora de nós. Ela tem de sersó nossa, estar dentro de nós’”,

Nossa população afrodescendente nosdá a mesma amostra de alegria quenenhum capitalismo e consumismo po-de oferecer.

O ano de 2013 foi marcado por intensodebate sobre a saúde pública, encerrandocom a aprovação de uma lei que interferiufortemente no setor. Foi modificado oprocesso de formação de médicos e doprocesso de especialização profissional,permitindo o ingresso de formados noexterior sem passar por um processo derevalidação de seus diplomas. Tambémdesrespeitou-se a legislação trabalhista, ao

contratá-los sem a garantia de seus direitos.Para agravar ainda mais a situação, amesma lei permite a abertura de umgrande número de escolas médicas, apesarda falta de corpo docente e de hospitaisapropriados para ensino de medicina.

Estas modificações foram feitas semuma discussão mais profunda com osdiversos setores envolvidos e certamen-te coloca em risco a qualidade do aten-

dimento prestado à população por meiodo SUS. O debate sobre o financiamentoda saúde foi deliberadamente esque-cido, em especial o projeto de lei deiniciativa popular que visa a garantirmais recursos para o SUS, anexado aoutros projetos em tramitação com for-te sinalização de que não será aprovadoem sua proposta original. Ou seja, maisuma vez é dado um passo atrás con-solidando o subfinanciamento do setorpor parte do governo federal.

Na área da saúde suplementar tam-bém o cenário demonstrou problemas.Pesquisa feita pela Associação Paulistade Medicina através do Instituto DataFolha revelou enormes dificuldades en-frentadas pelos usuários de planos de

saúde, notadamente quanto à marcaçãode consultas com especialistas, falta deleitos hospitalares e sérios problemasno atendimento de emergências.

O ano de 2014 deverá ser decisivo paranosso sistema de saúde. As eleições vãoacirrar os debates sobre quais os melhorescaminhos para se garantir o acesso aserviços de saúde de qualidade a toda apopulação. Os médicos, por sua posiçãoestratégica no sistema de saúde, têm apossibilidade de contribuir de maneirasignificativa para tanto e a APM, jun-tamente com as demais entidades mé-dicas, tem o dever de se envolver de-cisivamente neste debate, colocando comclareza suas críticas e principalmente suaspropostas para se atingir tal objetivo.

Documento:AG23CAON017;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:22 de Dec de 2013 20:54:00