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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre Por quais caminhos as emendas constitucionais seguem? Carlos Henrique Dantas da Silva Ângela Viehmayer Gaudêncio Paulo Emílio Matos Martins Fundação Getulio Vargas – FGV Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas - EBAPE Introdução Este artigo tem como objetivo reconhecer, nas Emendas Constitucionais (EC), que tratam da reforma do Estado, a partir da Emenda Constitucional nº 19 de 04 de junho de 1998 (EC19), a que correntes epistemológicas as Emendas Constitucionais tendem a seguir. Para tal usaremos a metodologia utilizada por Richard Morse em seu livro “O Espelho de Próspero”, onde este descreveu como se desenvolveram e como atuam as culturas Anglo-Americana e Ibero-Americana. Nossa intenção com esta metodologia é averiguar quais os caminhos que as EC’s seguem no decorrer dos anos e governos, ou seja, se nossos legisladores seguem uma linha Ibero e/ou Anglo-Americana para reformar o Estado. Será que vislumbramos o Espelho ou a nossa realidade nos basta para pensarmos como o Estado brasileiro deve ser? De certa forma todas as EC’s são reformadoras do Estado, já que a Constituição tem como objetivo instituir um Estado Democrático de Direito destinado a fins específicos para a formação de uma sociedade com valores positivos pré-estabelecidos pelos Constituintes em 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988). Em resumo, a nossa Constituição tem o objetivo de constituir não só um Estado, sua formação e funcionamento, mas também como a sociedade deve funcionar e quais valores devem ter os cidadãos. Se, em verdade, uma Constituição ou qualquer outra lei não possui o poder de dizer o que as pessoas devem fazer ou quais valores devem seguir, isto é muito significativo quando escrito na Carta Magna de um país. Neste trabalho nos ateremos as EC’s que tratam diretamente em reformar o aparelho do Estado. Sendo aqui considerado como aparelho do Estado toda e qualquer instituição que represente o Estado em suas atribuições e deveres. Um exemplo desta diferença pode ser visto entre a EC nº 25, de 14 de fevereiro de 2000 e a EC nº 28, de 25 de maio de 2000. A primeira “altera o inciso VI do art. 29 e acrescenta o art. 29-A à Constituição Federal, que dispõem sobre limites de despesas com o Poder Legislativo Municipal” e a segunda “dá nova redação ao inciso XXIX do art. 7o e revoga o art. 233 da Constituição Federal”. A EC25 modifica uma parte do aparelho do Estado, no caso, as Casas Legislativas, já a EC28 modifica uma parte dos direitos dos trabalhadores, ou seja, o Estado mediando as relações sociais e trabalhistas, portanto, não modifica o aparelho do Estado. Examinaremos as EC’s a partir da EC19. Optamos por este marco por ser esta a primeira grande reforma do aparelho do Estado feita no Brasil, pensada com o objetivo de ser uma mudança paradigmática na Administração Pública brasileira, de um Estado burocrático para um Estado gerencialista. Foram aqui consideradas para efeito deste estudo as seguintes EC’s, que tratam da reforma dos 1

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre

Por quais caminhos as emendas constitucionais seguem?

Carlos Henrique Dantas da Silva Ângela Viehmayer Gaudêncio

Paulo Emílio Matos Martins Fundação Getulio Vargas – FGV

Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas - EBAPE Introdução Este artigo tem como objetivo reconhecer, nas Emendas Constitucionais (EC), que tratam da

reforma do Estado, a partir da Emenda Constitucional nº 19 de 04 de junho de 1998 (EC19), a que correntes epistemológicas as Emendas Constitucionais tendem a seguir.

Para tal usaremos a metodologia utilizada por Richard Morse em seu livro “O Espelho de Próspero”, onde este descreveu como se desenvolveram e como atuam as culturas Anglo-Americana e Ibero-Americana. Nossa intenção com esta metodologia é averiguar quais os caminhos que as EC’s seguem no decorrer dos anos e governos, ou seja, se nossos legisladores seguem uma linha Ibero e/ou Anglo-Americana para reformar o Estado. Será que vislumbramos o Espelho ou a nossa realidade nos basta para pensarmos como o Estado brasileiro deve ser?

De certa forma todas as EC’s são reformadoras do Estado, já que a Constituição tem como objetivo instituir um Estado Democrático de Direito destinado a fins específicos para a formação de uma sociedade com valores positivos pré-estabelecidos pelos Constituintes em 1988:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988).

Em resumo, a nossa Constituição tem o objetivo de constituir não só um Estado, sua formação e funcionamento, mas também como a sociedade deve funcionar e quais valores devem ter os cidadãos. Se, em verdade, uma Constituição ou qualquer outra lei não possui o poder de dizer o que as pessoas devem fazer ou quais valores devem seguir, isto é muito significativo quando escrito na Carta Magna de um país.

Neste trabalho nos ateremos as EC’s que tratam diretamente em reformar o aparelho do Estado. Sendo aqui considerado como aparelho do Estado toda e qualquer instituição que represente o Estado em suas atribuições e deveres.

Um exemplo desta diferença pode ser visto entre a EC nº 25, de 14 de fevereiro de 2000 e a EC nº 28, de 25 de maio de 2000. A primeira “altera o inciso VI do art. 29 e acrescenta o art. 29-A à Constituição Federal, que dispõem sobre limites de despesas com o Poder Legislativo Municipal” e a segunda “dá nova redação ao inciso XXIX do art. 7o e revoga o art. 233 da Constituição Federal”. A EC25 modifica uma parte do aparelho do Estado, no caso, as Casas Legislativas, já a EC28 modifica uma parte dos direitos dos trabalhadores, ou seja, o Estado mediando as relações sociais e trabalhistas, portanto, não modifica o aparelho do Estado.

Examinaremos as EC’s a partir da EC19. Optamos por este marco por ser esta a primeira grande reforma do aparelho do Estado feita no Brasil, pensada com o objetivo de ser uma mudança paradigmática na Administração Pública brasileira, de um Estado burocrático para um Estado gerencialista.

Foram aqui consideradas para efeito deste estudo as seguintes EC’s, que tratam da reforma dos

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre aparelhos do Estado, a partir da EC19:

EC 41, de 19.12.2003 - Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências.

EC 35, de 20.12.2001 - Dá nova redação ao art. 53 de Constituição Federal. EC 32, de 11.9.2001 - Altera dispositivos dos arts. 48, 57, 61, 62, 64, 66, 84, 88 e 246 da

Constituição Federal, e dá outras providências. EC 25, de 14.2.2000 - Altera o inciso VI do art. 29 e acrescenta o art. 29-A à Constituição

Federal, que dispõem sobre limites de despesas com o Poder Legislativo Municipal. EC 19, de 04.06.1998 - Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração

Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências.

Algumas emendas que tratam do aparelho do Estado, como definido acima, não foram incluídas, como a EC 34, de 13.12.2001 que dá nova redação à alínea c do inciso XVI do art. 37 da Constituição Federal e a EC 38, de 12.6.2002 que acrescenta o art. 89 ao ato das Disposições Constitucionais Transitórias, incorporando os Policiais Militares do extinto Território Federal de Rondônia aos Quadros da União; pois não foram consideradas de relevância para o estudo.

Dito isto, começaremos com um breve resumo do livro “O Espelho de Próspero”. A segunda parte é dedicada a uma análise abrangente das EC’s apresentadas para posteriormente chegarmos às conclusões do artigo.

Morse por ele mesmo Será que a América do Sul é uma imagem especular na qual a Anglo-América pode reconhecer

as suas enfermidades e os seus problemas? Será que a Ibero-América tem algo a dizer ao mundo atual? Essas perguntas não são vagas e nem pouco especulativas. Elas refletem o descontentamento de

um intelectual preocupado com a evolução de sua própria sociedade (Anglo-América) e que conseguiu contemplar numa tradição ao sul de seu país (Ibero-América) a possibilidade de algumas respostas às suas indagações.

Apesar das críticas recebidas, principalmente pelos brasileiros, e que serão expostas mais adiante, este brasilianista conseguiu contemplar uma realidade e uma tradição que muitas vezes, nós, brasileiros, esquecemos ou ignoramos, talvez porque estamos diante de uma imagem do que queremos ser, falseando aquilo que somos em detrimento daquilo que podemos ser, na maioria das vezes, por puro ajustamento a uma ordem auto-imposta como paradigma que apenas deveria ser aprendida como lição. Lição essa que pode começar a ser apreendida remontando a historicidade dos fatos e das idéias.

Morse (2000) inicia seu livro comparando algumas formas de análise usadas para contrapor a Ibero-América e a Anglo-América. A primeira seria uma análise prospectiva onde as duas regiões teriam sua formação, no sentido mental, institucional e religioso, completas a partir de sua colonização. Nesse tipo de análise tem-se um êxito norte-americano devido a traços morais característicos como o individualismo religioso, a liberdade política e a iniciativa econômica. O autor também explora a análise hierárquica, onde a posição dos países depende de seu desenvolvimento econômico, esta muito utilizada para medir os êxitos no mundo capitalista, entretanto, o autor prefere enveredar pela análise histórica, fazendo uma retrospectiva até a idade média dos países colonizadores. Sob esta perspectiva o autor compreende que a partir de uma única matriz (moral, espiritual e intelectual) foram feitas opções que diferenciaram o padrão da civilização como a conhecemos.

A América tem sua colonização primordialmente britânica e ibérica, tendo, portanto, ausente à mistura de povos (franceses, alemães, italianos, etc.) que fomentavam os questionamentos ideológicos e os dilemas morais resultantes da diáspora européia. Nesse prisma têm-se aí duas novas perspectivas

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre analíticas. A primeira, sustentada por Louis Hartz (apud MORSE, 2000; pág. 24-25), dizendo que (no caso norte-americano), com a separação da pátria progenitora as novas sociedades organizaram seus próprios projetos nacionais e sua nova realidade a partir de uma base modesta. Já Leopoldo Zea (apud MORSE, 2000; pág. 24-25) afirma que, para o caso Latino-americano, as origens coloniais não foram assimiladas, portanto a situação de dependência colonial não fora superada.

O processo de colonização inglês pode ser visto com a “visão sistêmica de que localiza um voraz motor capitalista no noroeste europeu e procede a demonstrar de que maneira ele desloca nações e continentes inteiros para posições de maior ou menor autonomia em relação a um núcleo dinâmico. Os devotos dessa última visão não se interessam pelos projetos civilizadores. O que foi outrora a mente inquisitiva e a sua sensibilidade expressiva de uma civilização ‘histórica mundial’ converte-se agora num instrumento condicionado para a racionalizar o estado de coisas, para legitimar posições numa ordem hierárquica. A civilização, que antes era uma aventura, passa a ser encargo. (...) o mundo Ibérico, suas instituições e suas idéias resultam arcaicos, ineptos e marginalizados. A preocupação constante é com a evolução”. (MORSE, 2000; pág. 21)

Apesar de possuirmos (a Anglo e a Ibero-América) uma matriz moral, intelectual e espiritual comum, entre os séculos XII e XIV foram feitas opções e construídos modelos conceituais que produziram os diferentes padrões da civilização ocidental. No final do período formativo algumas posições se associaram a sub-culturas de Estados Nacionais novos e em perspectiva. O que faz Morse acreditar na interseção de Zea e Hartz, onde ambos enxergam um “‘projeto’ histórico ocidental que vem seguindo seu curso há séculos, passando por uma cadeia de formulações logicamente intervinculadas de variada ênfase filosófica e cientifica”, e mesmo que o pensamento político e moral ainda seja ligado ao continente-mãe, o futuro se apresentará mais próximo dos imperativos de longo prazo da história ocidental.

Existem duas versões da história ocidental, uma orientada pelos fatos sociais e econômicos, mais sociológica, e outra pelos valores morais da sociedade, ou seja, cultural. Ambas ocorreram simultaneamente, pois a evolução capitalista foi antes alimentada pelos impulsos morais. Desses mesmos valores surgiram às revoluções religiosa e científica. Essas revoluções, apesar de não compatíveis entre si, produziram dois resultados: a ciência racionalizou a consciência e as questões morais também tiveram sua importância regulamentada por esta. Assim emergia “uma ciência cada vez mais compartimentada e uma filosofia cada vez mais desencarnada”. (MORSE, 2000; pág. 28)

Morse ainda inverte o imaginário social ao declarar que são os Ibéricos os mais modernos dos europeus, pois estes, antes de toda a Europa, antes até mesmo das Grandes Revoluções, tinham resolvido os seus problemas internos, mantendo as suas posições filosóficas, morais e religiosas, mesmo durante e depois destas revoluções. Os ingleses enveredaram pelo caminho do pragmatismo científico, enquanto que os ibéricos mantiveram sua posição moral, e por que não dizer “retrocederam por razões circunstanciais, ante as implicações últimas das duas revoluções”. (MORSE, 2000; pág. 29)

Apesar de achar, como ele próprio escreve, que utilizou um trator para esmagar um mosquito, retomando os conflitos com outros povos e a absorção das culturas grega, árabe, índica e chinesa, que levou à necessidade de uma “nova lógica”, que, de acordo com Benjamim Nelson (apud MORSE, 2000; pág. 30), o precursor desta “nova lógica”, foi Pedro Abelardo, o mesmo da Heloísa, com a sua Ciência (intelecto na ordem teórica) e Consciência (intelecto na ordem prática), que conseguiu harmonizar a razão com a fé e a tradição, assim como traduzir o pecado como sendo o desprezo para com Deus. O que permitiu uma internalização das ações morais. Tem-se aí a ciência enquanto ordem teórica e a consciência como ordem prática. Cinqüenta anos após sua morte formaram-se tensões entre os postulados de Aristóteles, onde o conhecimento emana do mundo, e Santo Agostinho, onde este conhecimento emana do divino. Por volta de 1254 Tomás de Aquino consegue congregar ambos em uma estrutura racional e harmoniosa, utilizando-se dos princípios filosóficos de Aristóteles e dos fundamentos da teologia cristã, entretanto, seu conhecimento seria confundido como naturalismo averroísta e ambos eram desacreditados no século XIV. Se, por um lado, não se aceitava uma separação

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre concreta entre a ciência natural e a teologia, por outro lado, a união também não era bem vista. Necessitavam de bases de certeza para o conhecimento e a explicação direta dos fenômenos naturais. O que nos leva a Guilherme de Occam (apud MORSE, 2000; pág. 31) que cria esta possibilidade quando sai dos grandes problemas metafísicos e se dirige à experiência afirmando que as naturezas e essências universais só seriam alcançáveis para os casos individuais. Assim, as “proposições de fé antes tidas como demonstráveis pela razão foram devolvidas as suas premissas fideístas originais, à medida que a razão se orientava para um campo onde a probabilidade ou a mera possibilidade podiam ser consideradas” (MORSE, 2000; pág. 33). O que mudou a posição do ser humano no universo, substituindo uma ordem metafísica por uma ordem lógica e separando a razão da fé, a filosofia da teologia, no afã de poder explicar o universal num mundo de indivíduos em contraposição a antiga idéia de explicar o individual pelo universal, sendo a base de várias vertentes do cartesianismo, do empirismo inglês, do criticismo kantiano e da ciência moderna, ao declarar que só a experiência permite conhecer a causa das coisas, provocando desta maneira a ira da Igreja Romana, não contra o método experimental ou as opiniões inovadoras, mas a capacidade e a pretensão de conhecimento demonstrável nos reinos físico e moral.

No final da Idade Média existiam duas concepções de ciência. A visão occamista, que ampliou as investigações experimentais mantendo seus postulados no campo hipotético e que era tolerante e pluralista. Por outro lado os escolásticos medievais eram sensíveis ao papel da conjectura e da hipótese no pensamento científico, não sendo necessário mostrar uma certeza final. A partir dessas duas versões formaram-se duas outras formas de conceber a experiência: a estratégia ficcionista da hipótese, muito usada por matemáticos, físicos e filosofias de orientação matemática; e a estratégia probabilística, instrumento dos filósofos naturais especulativos, filósofos lógicos e teólogos, além dos filósofos morais. A falta de uma forma mais concludente de ciência criou uma reação dos filósofos contra o excessivo pluralismo dos fenômenos experimentados, sendo o desejo deste o de consolidar o conhecimento em bases firmes e totalmente demonstráveis.

O compromisso Ibérico para com ele mesmo e para o mundo foi formado por tradições européias especificamente ibéricas, singulares e únicas, na cultura, na religião, na filosofia e na formação do próprio Estado. Sendo esta tradição intelectual marcada por se integrar à sociedade e não por opor-se a ela, característica básica do sistema Anglo-Americano.

As revoluções científica e religiosa cortaram a Europa em eixos diferentes, dividindo completamente a região e fazendo com que a Ibéria criasse características próprias em relação aos outros países europeus. A Espanha abarcou num aristotelismo tomista criando um consenso cultural de firme orientação teológica e um consenso sobre o papel do governo, onde as alternativas políticas eram buscadas dentro de uma matriz de interesses teológicos e morais, onde, mesmo assim, permitiu-se um espaço de ampla discussão política que não abalava estas convicções.

Neste período a Espanha, mesmo exposta às correntes humanistas, orquestrava as novas influências dentro de seu programa ideológico nacional. Devido à descoberta do Novo Mundo a Espanha se viu obrigada a conciliar a racionalidade do Estado com a nova ordem ecumênica mundial, assim como adaptar os requisitos da vida cristã à tarefa de incorporar povos não cristãos.

Essa situação histórica fez com que tivesse formado já na metade do século XVI um programa nacional, com instituições religiosas e políticas legítimas para cumpri-lo. Esta conjuntura se ajustava, inclusive, à visão tomista, que conciliava a filosofia racional com a teologia especulativa. Prova disso é que a Igreja era dada como sendo o corpo místico e o Estado o corpo político e moral. Para os neo-tomistas a razão era o instrumento para buscar a verdade no mundo natural, sendo, portanto, limitada. Já a consciência era a fonte das decisões morais, o que a tornava falível. Assim, não se incentivavam especulações filosóficas baseadas na razão humana e na consciência privada.

Em comparação com a Espanha, Portugal, devido à sua homogeneidade, sua consolidação mais antiga, sua monarquia centralizada e suas experiências ultramarinas peculiares, não alcançou uma especulação moral e filosófica significante e que produzisse respostas às indagações do seu tempo.

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No campo político-religioso os católicos e os protestantes divergiam acerca das formas de orientação e julgamento a que deveriam seguir a ação humana. De acordo com a tradição católica existia um tribunal da consciência, onde esta era a regra, a Lei divina era a norma e o confessor o juiz. Já na tradição protestante aboliu-se o tribunal da consciência, criando-se filosofias da “luz interior”.

Essa divergência de opinião espiritual protestante não era definitiva. A metafísica suareziana, que modernizou a teologia e a filosofia ao norte da Europa, também fora adotada pelos protestantes. A razão já não era suficiente para explicar a realidade, passava-se aqui da exposição para a demonstração e apesar deste êxito de Francisco Suárez (1548-1617), o período de crise pelo qual atravessava a Espanha e a falta de um modelo institucional mais “moderno” frustrou as pretensões dos neo-escolásticos. Pode-se dizer que Ignácio de Loyola compreendeu esta deficiência e a partir de sua conversão ao catolicismo em 1521 e da fundação da Companhia de Jesus em 1539, conseguiu criar um modelo institucional flexível e “moderno”, baseado na organização militar. Em seu livro, “Exercícios Espirituais”, Loyola mostra que a consciência deve se subordinar às regras gerais, não se deixando levar por sentimentos vulgares. Esse livro poderia ser interpretado como sendo “um guia para seus médicos espirituais”, os jesuítas. Esta mudança de visão e ação teológica, também pressupunha adventos epistemológicos.

Dois modos de conhecimento podem ser citados a partir da análise de Lutero sobre a crença e a fé em Deus. A crença adquirida, na morte e na ressurreição de Cristo, é compreendida como um conhecimento teórico, baseado no reconhecimento de um princípio verdadeiro. A fé, por sua vez, é a certeza interior da ressurreição, sendo o conhecimento acústico adquirido mediante a palavra concretamente ouvida. Estes dois modos de conhecimento, teórico e acústico, levam a dois outros métodos de análise. A racionalidade formal-objetiva tomista e a racionalidade dialético-pessoal protestante.

A racionalidade tomista parte de um dado, passa a uma certa classe de coisas e retorna a este dado para análise, tendo, portanto, as características de indução e generalização. Já a racionalidade protestante mantém uma dialética a partir das opções de dados diversos, é, portanto, dedutiva e individualista. A partir desses dois métodos de análise, é possível explicar bem, por exemplo, o porquê dos ibero-americanos serem partidários da ordem social (racionalidade tomista) e, os anglo-americanos, pragmáticos e empíricos (racionalidade protestante).

É possível perceber as conseqüências do método racionalista dialético-pessoal protestante, na teoria política, como por exemplo, os acordos por consenso, o individualismo e a mudança na prerrogativa Estatal da ética para a eficiência.

Podemos enxergar melhor estas posições na exposição que o autor faz das tradições religiosas que orientarão toda a moral, ética, sociabilidade e a própria religião nas correntes Ibérica e Anglo-Americana.

A divisão se torna clara quando observamos as diferenças das racionalidades formal-objetiva tomista e dialético-pessoal protestante. Sendo a Ibérica “teórica” e a segunda “acústica”, ou seja, a primeira é baseada no reconhecimento intuitivo de uma verdade (através da fé) e o protestante adquirido pela providência divina.

“O modo formal-objetivo vai de um dado concreto a uma classe de coisas, e então retorna para interpretar o dado. No modo dialético-pessoal a discussão alimenta-se do ‘sim’ e do ‘não’ que surgem dos encontros entre pessoas distintas. No primeiro caso as pessoas são ‘intercambiáveis’, por que a pessoa individual só é interessante a inteligível enquanto exemplo de um gênero ou regra geral. No segundo caso as pessoas são únicas e idiossincráticas, por que em vez de exemplificar uma ordem geral representam o não-eu do conhecedor” (MORSE, 2000; pág. 47).

Por volta de 1725, a conjuntura criada pelo neo-escolasticismo, o humanismo e a ciência eram inerente a toda a Europa, contudo, o aparecimento do livro “Ciência Nova” de Vico, traçou a linha que separaria a Ibéria deste conjunto. Esta obra, que antecipava a sociologia moderna, analisava a história a partir de “leis evolutivas”, tipo de acontecimento que não ocorreria na Ibéria.

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Em um de seus artigos, Richard Morse faz uma comparação entre duas tradições políticas. A primeira, de cunho Medieval, estaria baseada na obra “Siete Partidas” (apud MORSE, 2000; pág. 54), um conjunto de leis do reinado de Afonso - O Sábio. De acordo com esta tradição, os sujeitos políticos eram definidos por sua localização social e cristã, sendo tarefa do governante impor as leis de Deus. O autor escolhe a Rainha Isabel de Castela como exemplo desta tradição, tendo a função de agregar os gentios de além-mar. A segunda seria o Maquiavelismo amoral, de cunho moderno, onde o rei Fernando de Aragão seria o exemplo mais sintomático, “com envolvimentos mediterrâneos limitados á comunidade cristã e saudado por Maquiavel como um príncipe novo”.

Ambos os soberanos se complementavam criando uma estabilidade que perdurou até o reinado de Felipe II. Este adotou o tomismo como orientação ideológica, pegando para si a tarefa de ordenamento da sociedade. Apesar de ter sobrevivido às reformas bourbônicas do século XVIII, com a independência o sistema tomista sucumbiu, deixando a América espanhola desmantelada e sem uma base moral, como ocorreu na Itália do século XV. Nesta situação Maquiavel voltou a ser pertinente para a reconstrução da ordem e da base moral.

Em sua análise o autor esclarece algumas digressões de seu artigo. Como o fato do humanismo ter coexistido com as filosofias medievais até o século XVI, e da comparação dos dois reis ser “largamente emblemática”. Contudo, a questão central é que no período das expansões ultramarinas os países progenitores adotaram, conscientes ou não, dois conjuntos de premissas políticas que orientam as decisões e a atuação política até hoje: o tomismo e o maquiavelismo.

No período de formação das colônias ultramarinas houve um diálogo político na Espanha devido à propagação das idéias tomistas e maquiavelistas. A partir de 1559, o antimaquiavelismo ganhou força, quando Maquiavel foi posto no INDEX.

Os pressupostos maquiavélicos foram dissociados de seu criador e receberam uma “nova roupagem” para que pudesse penetrar no pensamento político espanhol. O grande problema do maquiavelismo era a total dissociação da política e da religião, relegando esta a um mero fator psicológico da sociedade. Sua análise do Estado não levava em conta as leis morais universais, concebendo a política de forma científica, sem, no entanto, constituir um sistema auto-suficiente. A análise da política como ciência e não como missão, a transformação do Estado num artifício em detrimento do Estado orgânico de Suárez e a preocupação final com a manutenção do poder e não do bem comum criaram tensões no programa Ibérico que perduram até hoje.

Da mesma forma que a escolha política espanhola se deu pela pressão de uma conjuntura histórica, a escolha inglesa será impelida por quatro revoluções: a científica, comercial, política e religiosa. Por razões que vão desde disposição institucional até a cronologia e a geografia, a Espanha não foi afetada de forma significativa.

Comparando Vitoria e Hobbes, veremos que Vitoria escrevia no período das expansões ultramarinas, tendo como maior preocupação, a compreensão de um mundo novo e desconhecido. Hobbes, por outro lado, viveu num período de violência e cisma ideológica, a guerra civil, portanto, sua tarefa consistia em reconstruir uma ordem nacional. Vitoria via-se destinado a organizar um conjunto de nações e povos amorfos em uma ordem moral universal, já Hobbes, encontrava-se numa estrutura homogênea e delimitada, que precisava ser reorganizada através de “um conjunto de axiomas científicos”. Para Vitoria existe uma lei natural, pois o homem é social por natureza, e, em virtude de sua nova ordem moral, as situações devem se conciliar com os princípios. No caso hobbesiano o que existe são os direitos naturais, onde indivíduos diferentes que não são harmoniosos entre si devem suplantar suas desavenças por meio de pactos.

Apesar de ambos concordarem com o poder coercitivo do Estado, a finalidade desse poder muda de um para outro. Para Vitoria o poder de coerção é aplicado na realização do bem comum e na administração da justiça. Em Hobbes, esse poder de coerção infere o medo, para assegurar a manutenção da ordem e a injustiça é caracterizada pelo não-cumprimento do pacto.

Assim como Vitoria e Hobbes, Suárez e Locke foram considerados como exemplos de éticas

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre políticas, próprias e características. Suárez criou um sistema fechado, com coordenadas claras, a partir dos esboços de seus antecessores. No caso de Locke, este não chegou a criar um sistema e sim diversos postulados de psicologia, epistemologia e filosofia política, sendo alguns imprecisos e muitas vezes com seus significados subentendidos, o que permitiu uma expansão da ideologia burguesa, por exemplo, “a inflação do vocabulário do liberalismo político com o liberalismo econômico fortaleceu a legitimidade científica do discurso ideológico e ampliou seu alcance articulador” (MORSE, 2000; pág. 66). As teorias de Locke e Hobbes criaram a moldura do sistema político, uma vez que os elementos político-sociais já estavam formados, no caso de Vitoria e Suárez, esses elementos estavam em formação.

Enquanto o pensamento político inglês era reformulado no século XVII, o mundo Ibérico resistia aos ventos da mudança. Numa versão do processo, os espanhóis se apegaram aos ensinamentos de Suárez. Outros dizem que o pensamento posterior a Suárez foi secularizado. Independente de qual versão detém a verdade, a Espanha não ofereceu nenhuma modificação significativa nos pressupostos políticos pós-suarezianos. Apesar da sua aceitação do mundo mais fluido que se apresentava, não houve tentativas de se “extrair dele alguma lógica ou dinâmica que fornecessem diretrizes para uma filosofia social. Ante esse mundo flexível, a questão central, passou a ser a conservação do Estado, utilizando-se de justificativas para sua ação. A raison d’etat saiu de seu sentido maquiavelista e assumia o papel tecnológico, onde o governante usaria a razão do estado em substituição dos recursos deficientes”. (MORSE, 2000; pág. 66)

A liberdade tornou-se “liberdade para obedecer” baseada no livre-arbítrio da doutrina católica, representando a obediência voluntária ou ativa ao poder constituído. A maior expressão dessa liberdade, era um Estado encarregado da manutenção da ordem, através da administração da justiça, que tanto punia o erro, quanto premiava o mérito.

A tarefa do governo era fornecer segurança e estabilidade para uma comunidade política estática, vivendo num mundo dinâmico e garantir que os defensores de liberdade individual não se utilizassem a repressão severa num mundo cada vez mais individualista. Extinguia-se a finalidade do bem comum, para ascender à arte de governar, dentro do Estado espanhol.

O quadro a seguir resume as posições adotadas pelas tradições Ibérica e Anglo-Americana:

Ibero-Americanos Anglo-Americanos Partidários da doutrina e da ordem social. Partidários do pragmatismo e da regeneração ou

auto-transcendência. Visão compreensiva e unificadora. Visão empírica. Lei Natural (pré-rousseauniano), Vontade Geral

Sufrágio Universal, Eleições Livres

Decreto prerrogativo Acordos por consenso, Individualismo dos direitos naturais, Regra do direito comum

Ética Eficiência Lei Natural, Lógica da Consciência Cálculo Utilitário do bem estar social Sociedade Orgânica Sociedade Contratualista

A preferência “tomista” adotada pela Ibéria na construção de uma cultura política durante a

Contra-reforma era por uma sociedade de muitos níveis e salas e onde as tarefas de ordenamento e adjudicação, ainda que num primeiro momento fosse consenso popular, eram funções do Rei, vide, por exemplo, Pedro II no Brasil. Já no caso da política inglesa as quatro revoluções (científica, religiosa, comercial e política) tiveram um papel formativo fundamental essencial, o que não ocorreu na Ibéria.

Da mesma forma podemos comparar os processos civilizatórios coloniais onde, no mundo ibérico, os intelectuais ocupavam-se em criar alternativas para os problemas morais e práticos de

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre legitimar o governo e de “incorporar” os povos ameríndios, já os povos das colônias norte-americanas concentraram-se em três idéias: vocação, pacto (contrato) e a idéia de separação entre a Igreja e o Estado. Com isso chegamos à conclusão de que a Ibero e a Anglo-América compartilhavam as culturas políticas de suas pátrias de origem. Sendo as colônias ibéricas parte do corpo burocrático e estatal dos Impérios, ao contrário do caso inglês.

Em verdade, até o século XVII a Ibéria ainda formulava alternativas para o Ocidente, para, no século seguinte, isso se tornar impossível. A Ibéria havia se tornado uma consumidora intelectual, pois existia num mundo que não foi feito por ela e nem para ela. As interpretações do mundo ignoravam o conteúdo latente das transformações, sendo que as análises descreviam um conjunto convincente de opções compostas de idéias e métodos estrangeiros.

Daí vem a idéia de ecletismo dos Ibéricos indicando a abstenção da especulação sistêmica e da tentativa de resolver os problemas práticos da modernidade. Por falta de uma situação interna revolucionária, os signos e significados anteriores persistiram e não sendo reexaminados criticamente, acabaram perdendo sua capacidade doutrinal e a sua importância direta em assuntos práticos do presente.

Morse utiliza a idéia de Leopoldo Zea que corrobora o que foi escrito acima, que diz que “a emancipação política ocasionou uma ‘emancipação mental’ que levou os ibero-americanos à renunciar à dialética em curso com o passado, impedindo, pelo menos durante o século XIX, a possibilidade de superar esse passado e converter em presente o futuro” (MORSE, 2000; pág. 77). Onde nenhuma versão pode compor uma hegemonia aceita e passiva, isso acabou gerando uma gama de líderes e de interpretações que flutuam numa ordem formal-objetiva num mundo liberal, ou seja, as idéias liberais e capitalistas, junto com as suas crises e contradições, tentavam ser empreendidas numa sociedade incorporadora e compreensiva, criando dessa forma mecanismos deslocados das duas realidades, como por exemplo uma sociedade liberal-escravocrata no Brasil ou os vários movimentos revolucionários e/ou messiânicos restauradores, onde a “(...) desordem do pensamento político Ibero-americano desde o século XVIII, em contraste com o instrumentalismo visado pelo anglo-americano, cresceu devido ao fato de que o secularismo, o nacionalismo e a invasão capitalista precipitaram aberturas para o liberalismo, a democracia e, eventualmente, o marxismo. Os anglo-americanos tiveram de lidar fundamentalmente com a simples confrontação do liberalismo e da democracia” (MORSE, 2000; pág. 87).

O quadro a seguir resume a conceituação e formação do discurso dos líderes e do povo na Ibério

e a Anglo-América:

Discurso e mentalidade utilizada

Ibero Anglo

Líderes Pais; Protetores; Benfeitores; Messias; o índio; o descamisado; o beato.

Burguês; Patrícios.

Povo Povo (hispanos), Zé povinho (Brasil) “Povo Americano” O liberalismo foi adaptado como vocabulário, como ideologia, como programa seletivo ou

estratégia econômica, contudo não o foi como modo de vida incorporado à política. Essas mesmas doutrinas do liberalismo da representação e do direito civil criaram no mundo Ibérico uma acentuação do populismo e da liderança heróica. O próprio liberalismo e a democracia nunca chegaram a suplantar a ordem política, apenas foram assimilados a antigas ordens de poder existentes.

Outra característica de nosso sistema de ordenação política e social é a obediência ativa e voluntária a ordem doutrinária estabelecida, que tem sua origem na formação doutrinal da Igreja Romana que depois foi secularizado para os padrões políticos e sociais. Padrões políticos esses que,

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre mesmo na atualidade, “as pessoas percebem os sistemas de poder como exteriores a elas e manipuláveis mediante votos e promessas particulares, ainda que sem garantias de êxito. Seu mundo apresenta-se composto por estruturas de dominação vagamente interconectadas, cada uma com sua própria lógica, estando a configuração maior apenas circunstancialmente relacionadas às normas de justiça aceitas” (MORSE, 2000; pág. 93).

Por volta do século XVIII, tanto a América do Sul quanto a do norte, estavam ligadas às pátrias progenitoras. Nos séculos anteriores a Ibéria, servindo-se de sua missão civilizatória, concentrou seus esforços intelectuais em legitimar o governo de ultramar e na “incorporação” de seus povos. Entretanto, no período da Ilustração, a Ibéria se tornou uma consumidora intelectual, tentando compreender um mundo, que não havia sido feito por ela. Assim, a preocupação anterior com a Ibero-América foi suplantada.

O caso norte-americano, ao contrário, mostra que apesar de ter existido uma ligação com a pátria mãe, não havia por parte da Inglaterra, nenhuma “missão civilizadora”. O pensamento político norte-americano, pautado na idéia de vocação, pacto entre os homens e Igreja e o Estado, enquanto esferas separadas, foram percebidas pela Inglaterra. Este esforço norte-americano para a construção de uma nova pátria em terras longínquas coincidiu com a conjuntura inglesa, que exigia a reconstrução da comunidade política, esta consumida na guerra civil. Apesar de ligada aos países progenitores, de uma forma ou de outra, a Ibero-américa enfrentava dois agravantes: a inadequação de sua tradição política e a incoerência de sua organização social.

O autor divide o século ilustrado da Espanha entre dois intelectuais: Benito Feijoó (1676 – 1764) e Gaspar Meldiorde Javellanos (1744-1811). Os sucessores de Feijoó defrontaram-se com uma situação de tensão devido aos ideais revolucionários franceses e ao mesmo tempo com o reflorescimento da escolástica Ibérica do final do século XVIII. Ao falar do período ilustrado Ibérico, Richard Morse menciona o termo ecletismo, sempre associado ao período. Num sentido amplo, ecletismo seria uma doutrina filosófica, que abrange termos de diversos sistemas. Mais especificamente, o ecletismo se concentrava na abstração das especulações filosóficas e na resolução de problemas práticos. Hobbes e Suárez deram nova formulação a pressupostos anteriores, que com a maturação do capitalismo e do Estado Nacional, fizeram emergir significados mais amplos. No caso ibérico, os conceitos antigos permaneceram, o que causou uma erosão da capacidade doutrinal, e, pouca importância para a resolução das questões práticas. Assim, Richard Morse pergunta se o período ilustrado na Ibéria teria “representado uma clara descontinuidade ou foi um momento de modernização meramente superficial”?

A independência da América Espanhola, impulsionada pelo pensamento neo-escolástico da Época de Ouro, fez com que algumas ideologias modernas competissem com as tradições hispânicas. Dentre estas, as principais sairiam da Europa Católica, onde a sociologia ascendia tentando harmonizar e criar um sentido utilitário para a sociedade. Nesse sentido o Saint-simonismo, não se mostrava tão plausível quanto o positivismo de Comte, visto nossa complicada composição social. A escravidão não era compatível com o protótipo de sociedade que fora concebida por Saint Simon. Nos EUA, os escravos estavam isolados da sociedade, eram dados como uma “instituição peculiar”. Na Ibero-América, a grande quantidade e as diversas instituições servis e semi-servis, fizeram da escravidão o pilar mais importante das colônias.

O crescimento da população Ibero-Americana e sua mobilidade espacial impediram que se levassem adiante os ideais de incorporação participativa Ibéricos. Era mais plausível para o imaginário Ibero-Americano a idéia anglo-americana de uma sociedade de indivíduos comensuráveis entre si. Os pensadores latino-americanos da época percebiam a desarticulação do ideal de incorporação social, e se preocupavam mais com a reconstrução social. Era visível a dicotomia “civilização versus barbárie”, que naquele momento, demarcava a população.

A independência Ibero-Americana foi um momento de rompimento com os ideais Ibéricos e do embasamento em fontes anglo-francesas. Essa transição, não significou o ponto principal da

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre independência, nem mesmo a “esquizofrenia intelectual”, que se deu pela divisão entre intelectuais que seguiram premissas Ibéricas e os que se apoiavam em pressupostos anglo-franceses. A questão é que, misturadas ou não, nenhuma destas preposições ideológicas poderiam oferecer uma ideologia hegemônica, devido a fatores estruturais: identidades nacionais improvisadas; articulação interna muito flexível; falta de um poder soberano legitimado e relações exteriores pautadas na concessão externa e na liberalização interna.

Morse demarca o período de 1760 a 1840 como sendo de articulação entre as mentalidades velha e nova, pois as idéias da ilustração eram absorvidas com pouca crítica e, portanto, com pouco entendimento, ocorrendo uma miscelânea intelectual. Pensadores anglo-franceses eram ensinados concomitante com os escolásticos hispânicos. Criou-se um “princípio de incerteza”, onde se tentava conciliar e fundir bases ideológicas muito diferentes entre si. Aqueles que poderiam lograr algum sucesso nessa fusão (os Jesuítas, por exemplo) haviam sido expulsos da Espanha em 1767 e de Portugal em 1759, mesmo assim, ainda desempenhavam um papel controverso, “ao contrário do que se supõe habitualmente, os Jesuítas teriam se utilizado da argumentação tomista contra o absolutismo político durante o canto de cisne do escolasticismo espanhol nas Américas e depois da data de sua expulsão” (MORSE, 2000; pág. 81).

Outro entrave à homogeneização das diferentes bases ideológicas, era o fato da formulação teórica ser restrita à elite. Para assegurar seus interesses, a elite, distinguia as orientações especulativas para seu próprio consumo, das receitas públicas de orientação ortodoxa. Por outro lado, se a interpretação das elites era precária, quando partia dos setores populares era problemática.

O enfoque de incorporação das populações indígenas e mestiças alterou-se e agora assumia um papel excludente, devido às amplas mudanças nas relações sociais, principalmente no que se refere às penetrações econômicas de mercado. Essa situação encontra um agravante, o meio eclesiástico, que tentava se defender em meio à conjuntura, se tornava revolucionário.

O contraste entre a cultura político-eclesiástica e cultura anglo-americana pode ser percebido com dois exemplos históricos. O Grande Despertar e a Revolução de Tupac Amaru. O Grande Despertar (1730), foi o retorno ao sentimento evangélico, sem uma mensagem política clara, mas com implicações políticas extensivas a toda sociedade, sem atrapalhar os interesses elitistas. Seu líder, Jonathan Edwards, apesar de ter interesse “na democracia ou na revolução social, (...), passou a inculcar entre seus ouvintes a mensagem fundamentalista de que tinham que falar, ou senão estariam perdidos” (MORSE, 2000; pág. 82). O ocorrido previa a fusão das aspirações políticas rousseaunianas, com a disposição governamental do liberalismo oligárquico.

A Revolução de Tupac Amaru (1780 – 1781), caso tivesse seguido seu curso, ajudaria a resumir, legitimar e promulgar uma nova versão ideológica neo-escolástica, com contribuições da Ilustração e novas garantias de incorporação; além de fortalecer a base nacional para a reconstrução capitalista.

A conjuntura mundial, secularismo, nacionalismo e a invasão capitalista, impulsionaram ainda mais a desarticulação do pensamento Ibero-Americano, introduzindo, entre outros, três principais ideologias: Liberalismo, Democracia e Marxismo.

O Liberalismo, inicialmente introduzido por Feijoó e José Campillo y Cossío, não se adaptava à cultura política Ibérica enquanto “noções informais de autoridade, comunidade e salvação pessoal que permeiam a sociedade, como as crenças sujeitas a muitas interpretações que subjazem à expressão intelectualizada do pensamento político” (MORSE, 2000; pág. 88). Assim, o liberalismo só era aplicável na teoria (vocábulos) ou como doutrina econômica, mas nunca como modo de vida político. Além disso não fez a fusão com a doutrina democrática de Rousseau, como foi o caso anglo-americano. Na América do Norte, inclusive, a doutrina democrática serviu para suavizar o utilitarismo liberal com sua visão comunitária.

No caso Ibero-Americano o liberalismo e a democracia, foram assimilados separadamente. Entretanto, ambos foram integrados às questões tradicionais e a antiga dialética entre tomismo e

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre maquiavelismo. Dentro desta dicotomia o liberalismo serviu bem aos propósitos maquiavélicos ampliando “o repertório da raison d’état com instrumentos retóricos e técnicos que periodicamente ajudaram os regimes mais ágeis, (...), a estabilizar o governo” (MORSE, 2000; pág. 89).

Fermín Toro (1807 – 1865) conseguiu compreender bem essas anomalias nas repúblicas latino-americanas, onde a liberdade sem a base igualitária serviu a fins privados. Fermín Toro repudiava a subordinação dos critérios morais, políticos, filosóficos e religiosos à análise econômica com seus pressupostos utilitaristas; evocava uma nostalgia aos antigos valores coloniais. A geração posterior adotou uma posição positivista, encerrando as indagações ideológicas anteriores. Ainda sim, por trás das unificações entre o escolasticismo, este com o imperativo de legitimação da elite e a demanda de secularismo e o enfoque científico, evocavam uma regeneração moral da sociedade, assim como seu predecessor.

Ao analisar o liberalismo no Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos, estava preocupado com as restrições estruturais à articulação do projeto liberal. “Ele assinala paradoxos como estes: o interesse dos proprietários de escravos numa economia de mercado livre, contraposto aos interesses dos industriais liberais na intervenção estatal...”, ou seja, a situação econômica e histórica do período obrigava a uma inversão de papéis. Estas inversões, conseqüência de uma assimetria clara entre liberalismo econômico e político, levaram os liberais doutrinários a realizar uma reforma legal, acreditando que as leis moldariam a sociedade. Com a derrocada do liberalismo doutrinário, ascendeu o autoritarismo instrumental, representado por Oliveira Vianna. Para Wanderley Guilherme dos Santos a principal causa do declínio do liberalismo foi o fato da orientação para o capitalismo internacional, ter tirado o interesse em fortalecer as instituições nacionais formativas, como a burocracia estatal, a educação e o militarismo.

A Democracia Ibero-Americana esteve pautada em três bases ideológicas: as teorias dos escolásticos Jesuítas, o Governo dos governantes de Tomás de Aquino e a tradição católica de resposta ao governo por movimentos pautados no igualitarismo. Estes movimentos persistem até hoje, como é o caso dos movimentos de ocupação habitacional e os guerrilheiros urbanos. Os dois outros princípios perduraram somente até o final do período colonial.

À época da independência propagaram-se movimentos sociais com inspiração vagamente rousseauniana, sem atingir, entretanto, uma integração significativa com o liberalismo. Este último se limitou a prover uma racionalização modernizante que permitisse uma vinculação das economias Ibero-Americanas às economias da Europa Ocidental. Sua crítica às estruturas corporativas não atingiu uma amplitude suficiente para se incorporar à noção do individualismo. Nas versões locais o liberalismo se relacionava com hierarquia e subordinação. O rousseaunianismo tinha um princípio nivelador que atravancava esta ordem e modernizava a tradição católica, ao mesmo tempo em que evocava pressupostos neo-escolásticos sobre os fundamentos da ordem política. Neste contexto específico de adaptação da teoria rousseauniana, apesar dos pressupostos neo-escolásticos serem diferentes do ideal de Rousseau, suas influências possibilitaram um desdobramento seqüencial das intenções anteriores. O contrato social evoca uma noção orgânica da liberdade, onde se tinha “liberdade para obedecer”, ou seja, consciência e vontade para tal. Por outro lado, a idéia de que os direitos privados devem ser confiados diretamente à sociedade, sobrepõe a ordem neo-escolástica sobre origem e alienação de poder.

Se a vontade privada, voltada para si mesma, é suplantada pela vontade dos magistrados, a vontade do povo é mais importante do que ambas pois, o Estado não é o “comandante” da sociedade, e sim, parte de uma coletividade. A lei natural passa a ser a vontade geral, e o Estado continua servindo ao bem de todos.

Com a independência, a influência de Rousseau se dissipou para dotar a elite de uma linha justificadora. Entre 1920 e 1960 deu-se o segundo período rousseuniano. Durante este período populista associado à urbanização, a industrialização e a retórica do desenvolvimento, houve a inclusão das classes mais baixas, prejudicando a mobilização de classe, no caso dos trabalhadores. Além disso,

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre houve uma divisão interna e muitos dos movimentos trabalhistas tenderam à cooptação. “Em suma, o destino da democracia rousseauniana e pré-rousseauniana na Ibero-América tendeu para à cooptação, a privatização ou a asfixia” (MORSE, 2000; pág. 95).

Richard Morse cogita o problema das ressonâncias (ou sua ausência) das ideologias importadas na cultura política receptora, assim, mostra a zona de interseção entre o marxismo e o rousseaunismo, como caminho provável para os novos intelectuais “construtores de nações não-ocidentais”. O autor mostra que a continuidade que Molina Enríquez prega, é plausível para países maiores e de sistemas complexos, com grande capacidade de cooptação, mas sem muita capacidade de articulação. Já Mariátegui, segundo Morse, seria mais aplicado a países pequenos, com regimes brutais e instituições imprestáveis, devido à uma maior capacidade de mobilização.

Outros Espelhos Schwartzman (1988) ao fazer a resenha de “O Espelho” concentrou suas forças e sarcasmo em

áreas pouco interessantes para o leitor tanto de sua obra quanto da obra de Morse. Negligenciou aquilo que acentuamos aqui, ou seja, todo o esforço analítico e conceitual, que vem a ocupar a maior parte do livro, além de alguns equívocos que um leitor mais atento descobriria ao ler a resenha.

“Próspero Morse se olha no espelho da América Ibérica, e pouco a pouco a imagem refletida vai entrando em foco. Por trás da nuvem espessa de estados nacionais frustrados, etnias e sociedades desgarradas, caudilhos grotescos e trágicos, insurreições que terminam em sangue e desespero, projetos abortados de modernização e industrialização, parece ser possível vislumbrar uma realidade mais sólida, uma verdade mais profunda, e, ao mesmo tempo, a razão do equívoco do espelho: a América Ibérica está desfocada porque ela se contempla no espelho da próspera América inglesa e, na busca inútil da imitação do outro, perde sua própria essência. Os latinos não percebem que o liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo científico, o pragmatismo, todos estes ideais alardeados pelos ricos irmãos do Norte não só são incompatíveis com a realidade mais profunda da América Ibérica, como também marcam a decadência e a falta de sentido da própria sociedade capitalista e burguesa que os criou”. (SCHWARTZMAN, 1988)

O que Schwartzman chama de equívoco do Espelho eu chamo de alardeamento desnecessário e uma falta de compreensão do que foi escrito. A primeira sentença está certa, porém a sua continuação gerou os verdadeiros equívocos que se mantém pelo resto do artigo. Se o liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo científico e o pragmatismo não dissessem nada aos povos Ibero-Americanos, as suas contradições se acentuariam numa velocidade que possivelmente geraria um colapso irreversível. O que é incompatível é o modelo importado sem a devida crítica necessária, sem a adaptação, em termos e em condições viáveis à nossa realidade, esta é uma das críticas que Morse quis evidenciar durante todo o ensaio. O que está em decadência não são as democracias representativas, mas a forma como lidamos com o modelo. O liberalismo está em decadência pois é vivido de forma similar em quase todo o mundo, ignorando as riquezas que poderia adquirir se adaptando mais profundamente às condições de vida da população média e pobre, principalmente nos países menos desenvolvidos. A incompatibilidade não se verifica por que a realidade mais profunda da América Ibérica não conseguiu absorver o modelo, mas por que não o transformou.

Otávio velho reforça e amplia essa afirmação ao escrever sobre a resenha de Schwartzman: “O esforço analítico e compreensivo de Morse, Simon passa por alto. Vai direto aos riscos.

Preocupa-se com as implicações das proposições de Morse, de certa forma enfiando a carapuça que Morse prepara para os cientistas sociais "práticos". Simon, por outro lado, pode legitimamente perguntar-se se as colocações de Morse são assim tão “ingênuas”. Afinal, a caracterização que faz do caminho Ibero e do caminho Anglo pressupõe um estado de inércia do segundo que torna bastante desigual, de fato, a comparação com sua vivaz e orgânica "dialética da tradição" íbero-católica que se desdobra a partir da escolástica. No que, porém, Simon não se deteve é que parecem estar em jogo

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre precisamente posições e pré-posições extremamente díspares no que diz respeito a "teorias da mudança", para utilizar uma expressão já muito contaminada por conotações valorativas. (VELHO, 1989)

Theotonio dos Santos, ao proferir uma palestra na FGV do Rio de Janeiro foi questionado se a América Latina seria capaz de comunicar suas características para o resto do mundo como forma de solucionar alguns problemas do próprio capitalismo. A resposta; Theotonio dos Santos não acredita ser possível criar um modelo latino-americano capaz de se refletir pelo resto do mundo. Esse pensamento, ou similares não são exclusividade deste autor.

Vários autores e pensadores clássicos da literatura e do pensamento brasileiro vêem de uma forma (muito) negativa certas características do povo brasileiro ou mesmo da América Latina.

Gilberto Freyre, por exemplo, conseguiu enxergar algumas vantagens numa sociedade escravocrata, agrária, sexista, híbrida e de certa forma, descolada de si mesma. Contudo, esta mesma sociedade que produzira algumas vantagens durante um determinado período histórico, em verdade, era uma sociedade atrasada com relação ao resto do mundo, que se via de uma forma muito negativa e que criava mais males para si mesma do que vantagens competitivas para com o resto do mundo. Como podemos ver num (dentre alguns) prefácio de Casa Grande e Senzala:

“No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado pelo sistema de produção econômica - a monocultura latifundiária; do outro, pela escassez de mulheres brancas, entre os conquistadores. O açúcar não só abafou as indústrias democráticas de pau-brasil e de peles, como esterilizou a terra, numa grande extensão em volta aos engenhos de cana, para os esforços de policultura e de pecuária. E exigiu uma enorme massa de escravos. A criação de gado, com possibilidade de vida democrática, deslocou-se para os sertões. Na zona agrária desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semi-feudal - uma minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”. (FREYRE, 2000)

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, retoma o passado português para explicar o Brasil da década de 30. Somos (nós brasileiros) mais aventureiros do que trabalhadores. Trabalhadores estes para o mundo liberal e anglo-saxão, para o mundo dos rituais e das normas, para as sociedades urbanas e industriais, do relógio e do compromisso. Nós somos, em verdade, segundo Buarque de Holanda, o que Morse escreveu em muitas partes do livro em palavras diferentes, pessoas que vivem num mundo que não foi criado para nós. Um mundo capitalista não é o mundo da aventura, mas sim do trabalho e da previsão. Como é possível um liberalismo numa sociedade de forte herança rural? Como o próprio Buarque de Holanda chega mencionar:

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem-cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças”. (HOLANDA, 2003)

Essa “contribuição” que daremos ao mundo, talvez seja a única, pois este é o único momento em todo o livro que este autor faz alguma consideração sobre a contribuição do Brasil para um mundo, e ele foi muito perspicaz nisso, de perceber que o Brasil ainda não era um país (nem mesmo uma nação) para o mundo que este conhecia bem devido às suas viagens; e enquanto se mantiver presente este ruralismo na nossa cultura, na nossa política e em nosso modo de vida, nosso país, e por que não dizer nós mesmos, não estaremos preparados para o mundo capitalista liberal de organização trabalhista

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre baseada na burocracia.

Dito isto, podemos pensar em duas linhas para o pensamento interpretativo brasileiro, ambas respostas ao mundo moderno. Numa linha podemos colocar Faoro, Freyre, Holanda e Schwartzman, noutra podemos colocar pensadores que seguem uma linha parecida com a de Richard Morse.

Porém, antes, quero fazer algumas observações. As obras clássicas dos três primeiros pensadores, duas são da década de 30 e outro da década de 50. Épocas em que o Brasil tinha a maior parte da sua população rural e não urbana, como observamos atualmente, aliás, a maioria das críticas destes autores clássicos é exatamente essa, de viverem num país ruralista, de tradições ruralistas, como mostra Freyre ao comparar o Brasil com a região sul dos EUA e algumas regiões caribenhas, o chamado “deep south”, ou Sérgio Buarque de Holanda ao falar do passado colonial português em seu “Visão do Paraíso” em que os colonizadores visualizavam aqui as suas esperanças edênicas de um mundo melhor, sua chance de libertação das forças opressoras do trabalho, da servidão e terem a chance de vivenciar as fantasias bíblicas em terras incógnitas, onde as pessoas viviam mais de cem anos, uma terra que teve o privilégio da passagem de alguns santos e mártires e comparar isso, em alguns momentos durante o livro, a visão dos colonizadores do norte sobre a terra que estes ocupavam. Faoro não deixou de fazer as suas devidas comparações com os norte-americanos, onde nos legou a teses como a do “patronato político brasileiro”. Mas acredito que Schwartzman resume o que quero dizer ao falar da obra de Faoro:

“Os problemas do Brasil de hoje não são mais, no entanto, os do poder absoluto do estamento burocrático, mas sim, em boa parte pelo menos, decorrentes da incapacidade de o Estado exercer o poder que lhe é delegado, democraticamente, para governar em beneficio de todos. O estamento burocrático continua existindo, mas não é o mesmo dos tempos de D. João VI, D. Pedro II, Getúlio Vargas, Ernesto Geisel e José Sarney. Nesse sentido, a cruzada de Faoro contra o autoritarismo perdeu muito de seu apelo e de sua atualidade. Mas ele teve, sem dúvida, seu momento e seu papel” (SCHWARTZMAN, 2003). (grifo nosso)

O mesmo vale para os Freyre e Holanda. Contudo, Morse escreveu “O Espelho” na década de 80 do século XX. Viveu numa São Paulo que estava entre as maiores cidades do mundo e a muito tempo a maior cidade do Brasil. Morse fez um esforço semelhante com nossos autores clássicos, ou seja, buscar num passado remoto as origens para a nossa atual realidade.

O Espelho de Próspero talvez seja a resposta do Brasil do último quarto do século XX para o mundo atual. As análises anteriores foram feitas numa realidade completamente adversa. Por isso essa análise foi utilizada aqui, por que traduz um Brasil mais condizente com o que vivemos, não um Brasil rural, mas um Brasil urbano, com pessoas urbanas e problemas urbanos. Porém o próprio Espelho possui as suas limitações. É um livro do final da Guerra Fria, com os EUA sob o governo Reagan. Ainda estavam vivas as memórias das crises mundiais do Petróleo e Juros. O Morse do Espelho não conheceu um mundo globalizado. Apesar de ainda não ser um livro datado, devemos fazer as devidas ressalvas ao compreender esta obra e ao utilizá-la, como faremos aqui.

Moralidade, Eficiência e a Reforma do Estado O Dicionário da Língua Portuguesa On Line (PRIBERAM, 2004) define assim eficiência e

Moral: Eficiência :qualidade de eficiente; actividade; virtude de produzir um efeito desejado ou um

bom resultado; eficácia. Moral: conjunto de costumes e opiniões que um indivíduo ou um grupo de indivíduos possuem

relativamente ao comportamento; conjunto de regras de comportamento consideradas como universalmente válidas; parte da filosofia que trata dos costumes e dos deveres do homem para com o seu semelhante e para consigo; ética; teoria ou tratado sobre o bem e o mal; lição, conceito que se extrai de uma obra, de um facto, etc.; conjunto das nossas faculdades psíquicas; o espiritual; relativo

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre aos costumes; que diz respeito à ética; relativo ao domínio espiritual.

O Art. 37 da Constituição Federal, modificado pela EC19, acrescenta o princípio da eficiência para reger a Administração Pública brasileira, como vemos abaixo:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)" (BRASIL, 1988)

Como este trabalho se propõe a estudar a Constituição e os caminhos por ela seguidos, torna-se peremptória uma breve discussão sobre o tema da moralidade e da eficiência para um melhor esclarecimento posterior.

O princípio da moralidade em Administração Pública é uma pré-condição de validade para os atos administrativos. Considerando que estes podem ser justos, eficientes e legais, mas amorais ou imorais perante a sociedade, desconsiderando os costumes e as normas, mesmo que informais, válidas para a população. Como não há como mensurar a moralidade do administrador público, deve o cidadão e o próprio Estado, com suas instituições, dentro dos preceitos democráticos e da participação popular, fiscalizarem os atos destes administradores, fazendo com que não haja desvio de conduta ou mesmo inobservância das necessidades e dos costumes, para que com isso se cumpra a finalidade do Estado, ou seja, o bem comum.

O princípio da eficiência, apesar de não ser desconhecido da administração pública, está se tornando nos últimos tempos o que podemos chamar de “segunda natureza” (HIRSCHMAN, 1996), seja por forças extrínsecas como a imposição legal de leis como a Lei de Responsabilidade Fiscal ou a própria EC19, seja por forças intrínsecas, como o avanço das forças democráticas e a melhor qualificação do quadro técnico da administração pública. Mais adiante dedicarei mais algumas linhas sobre o assunto.

Os princípios constitucionais devem ser apreciados de forma interdependente e na condição de critérios, ou seja, todo ato administrativo deve obedecer aos conceitos destes princípios, pois estes são complementares e não excludentes entre si; e a falta de acatamento a um deles gera necessariamente uma imperfeição do ato administrativo. Imaginemo-los como critérios de juízo e de discernimento crítico, para assim termos a claridade que distingue o erro do acerto e o certo do errado. Se os usarmos de forma independente podemos acabar criando faltas, que na pior das hipóteses, serão irremediáveis ou se prolongarão por algumas gerações.

A eficiência desprovida de moral pode gerar um despotismo maniqueísta ou um poder absoluto que desconsidera, por exemplo, aplicações pouco rendosas, investindo o dinheiro público somente em áreas ou em projetos onde se vislumbrará o melhor retorno, de preferência em curto prazo. O princípio da moralidade descolado da eficiência acabará gerando uma hipocrisia administrativa, ou seja, uma manifestação de virtudes e sentimentos em detrimento a uma utilização ótima dos bens públicos. Apesar de serem complementares, os princípios da eficiência e da moralidade não devem ser encarados como tendo uma relação implícita como nos faz acreditar o Professor Paulo Modesto (MODESTO, 2001), sua diferenciação criteriosa permite explorar novas definições para um melhor alcance das funções e das ações do Estado.

Dito isto podemos observar que a eficiência em comunhão com uma moral (além, é claro, dos outros princípios, a publicidade, a legalidade e a impessoalidade) que vise o bem público, aumentando a qualidade dos serviços públicos, otimizando os recursos públicos junto às reais necessidades da localidade, com a devida atenção aos costumes e uma ampla participação da população, com alguma forma de controle social, acaba gerando uma mudança na cultura gerencial da administração pública. Contudo, devemos ter cuidado ao explorar as dimensões do alcance deste efeito “liga/desliga” (HIRSCHMAN, 1996) para a administração pública.

A inclusão da eficiência na Constituição fazia parte do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (CÂMARA DA REFORMA DO ESTADO, 1995). Este Plano visava “o aumento de sua governança, ou seja, sua capacidade de implementação de políticas públicas, sob a ótica de eficiência,

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre eficácia e efetividade, mediante a introdução de novos modelos organizacionais e novas parcerias com a sociedade civil, o estabelecimento de contratos de gestão/termos de compromisso de gestão/termos de parceria e, finalmente, a modernização da gestão” (SANTANA, 2002), e continua ao dizer que “a reforma do Estado não é, assim, um tema abstrato: ao contrário, é algo cobrado pela cidadania, que vê frustrada suas demandas e expectativas” (idem).

Hirschman (1996) utiliza os conceitos chamados “efeito catraca”, “segunda natureza” e “relação liga/desliga” para criticar as teorias que se utilizam destas metáforas para relacionar o progresso econômico com o político e vice-versa, ao dizer que “afirmar uma vez mais que progresso político e econômico não estão ligados entre si de modo fácil, direto, funcional”. Aqui podemos utilizá-la para ajudar a compreender que não existe necessariamente uma relação do tipo “liga/desliga” entre reforma do aparelho de Estado e o progresso econômico ou social e que a tentativa de se criar uma “segunda natureza” para a Administração Pública brasileira necessita, dentre outros, de uma maior implementação do Plano proposto originalmente.

O efeito liga/desliga seria a conexão entre progresso econômico ou político gerando necessariamente conseqüências um no outro. O autor cita três diferentes versões do efeito liga/desliga:

1. “Todas as coisas boas andam juntas”: onde o progresso de um geraria o progresso do outro.

2. “Tudo tem um custo” ou “não existe almoço grátis”: onde o progresso de um acarretaria um custo no outro.

3. “per aspera ad astra”: que seria um meio termo entre as alternativas acima. (HIRSCHMAN, 1996)

O “efeito catraca” Hirschman retirou de Duesenberry que “criou este termo para descrever o comportamento do consumo em relação à renda durante o ciclo econômico: o consumo é uma função crescente da renda enquanto esta aumenta, mas resiste a acompanhá-la em seu declínio” (idem). O mesmo pôde ser observado com relação a alguns índices sociais, que mesmo em épocas de crise, continuavam a crescer.

E para explicar a teoria da segunda natureza Hirschman escreve: “O fato de um comportamento ao qual originalmente se resiste e que é adquirido apenas sob a influência de incentivos extrínsecos (positivos ou negativos) poder tornar-se irreversível evidencia-se na expressão de que o comportamento acaba se tornando uma “segunda natureza”” (ibidem).

Bresser Pereira previa utilizar estes mecanismos para poder alavancar a Reforma do Aparelho do Estado. Apesar de não se utilizar destes conceitos, podemos perceber que em toda literatura sobre a Reforma as intenções contidas neles, visto nos exemplos abaixo.

O exemplo abaixo representa a intenção da criação de uma segunda natureza (gerencial), em substituição a primeira (burocrática) em comunhão com a idéia do efeito catraca, ou seja, depois de firmada as idéias da Reforma, esta seguiria seu curso planejado.

“O projeto de Reforma Gerencial e o debate nacional que se estabeleceu em torno dele – ou da “reforma administrativa” – tiveram como objetivo a superação não apenas da forma patrimonialista de administrar o Estado brasileiro - forma que sobrevive ainda hoje embora esteja há muito morta enquanto valor – mas principalmente criticar e oferecer uma alternativa gerencial à administração pública burocrática, que permanecia dominante no Brasil apesar de sua comprovada inadaptação às características do Estado moderno. No final de quatro anos estavam estabelecidos os princípios orientadores e as principais instituições que possibilitarão a implantação da Reforma Gerencial na administração pública brasileira. Abria-se, assim, a perspectiva de que o Estado utilize com mais eficiência os recursos tributários de que dispõe, além de, reconstruído no plano fiscal e institucional, disponha de maior capacidade de garantir a segurança e de promover o desenvolvimento e a justiça social”. (BRESSER PEREIRA, 2000)

A proposta do conceito liga/desliga não está clara nos textos de Bresser Pereira sobre o tema, a proposta fica mais clara nos textos desenvolvidos pelo Ministério da Administração e Reforma do

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre Estado (MARE).

“Busca-se ter um Estado ao mesmo tempo mais forte, mais capaz de fazer valer a lei, e mais democrático, melhor controlado pela sociedade. Através da adoção de formas modernas de gestão será possível atender de forma democrática e eficiente as demandas da sociedade. É uma reforma que, ao fazer um uso melhor e mais eficiente dos recursos limitados disponíveis, contribuirá para o desenvolvimento do país e tornará viável uma garantia mais efetiva dos direitos sociais por parte do Estado. A expectativa é a de que venha a ser a segunda grande reforma administrativa no país” (idem).

“O Estado deixa de ser um obstáculo à retomada do desenvolvimento econômico: hoje o setor privado já se ajustou e está voltando a investir. O Estado, entretanto, continua amarrado pelo desequilíbrio das contas e pela desorganização interna, perda de técnicos qualificados, baixo desempenho e persistência no uso de formas atrasadas de gestão. O Governo não quer desmontar o Estado. As experiências bem sucedidas no mundo inteiro mostram que é fundamental uma burocracia ágil, moderna, capaz de planejar e promover as condições necessárias para o crescimento sustentado e socialmente justo” (BRASIL, 1995).

“O Governo espera que a reforma conduza a uma administração pública mais eficiente, com serviços públicos de qualidade e com capacidade técnica de contribuir para o desenvolvimento econômico e social do País” (BRASIL, 1995b) (grifo nosso).

Qual é, então, o objetivo do que foi escrito até aqui? Ao dedicar uma especial atenção aos princípios da moralidade e da eficiência, de rever a literatura sobre a Reforma do Aparelho do Estado e, de enxergar nesta, propostas de desenvolvimento para além do campo da administração pública. O objetivo deste esforço é dar embasamento teórico à parte posterior, que será dedicada à análise das emendas constitucionais que tratam especificamente da Reforma do Estado. A parte dedicada a conclusão explicará melhor o que foi escrito até aqui.

As Emendas Constitucionais – Imagem especular ou Bem no Fundo A EC25 (Altera o inciso VI do art. 29 e acrescenta o art. 29-A à Constituição Federal, que

dispõem sobre limites de despesas com o Poder Legislativo Municipal.) é, em verdade, uma continuação das propostas da EC19 e da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000), ou seja, uma gestão dos recursos públicos eficiente e politicamente responsável. O Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) sintetizou em tabelas os principais pontos da EC25, como podemos ver no exemplo abaixo:

Tabela 1 – Percentual máximo de subsídio para os Vereadores do Estado do Rio de Janeiro em relação

ao subsídio dos Deputados Estaduais. Faixas em relação ao número de habitantes dos municípios - IBGE

Percentual máximo do subsídio dos vereadores calculado sobre o subsídio do Deputado Estadual

Subsídio do Deputado Estadual/ RJ previstas em 15 parcelas (total exercício)

Subsídio dos vereadores durante o exercício. Total

Até 10.000 habitantes 20 % R$ 90.000,00 R$ 18.000,00/ano De 10.001 a 50.000 hab 30 % R$ 90.000,00 R$ 27.000,00/ano De 50.001 a 100.000 hab 40 % R$ 90.000,00 R$ 36.000,00/ano De 100.001 a 300.000 hab 50 % R$ 90.000,00 R$ 45.000,00/ano De 300.001 a 500.000 hab 60 % R$ 90.000,00 R$ 54.000,00/ano Acima de 500.000 hab 75 % R$ 90.000,00 R$ 67.500,00/ano

(TCE-RJ, 2004) Podemos retomar a discussão da “segunda natureza” de Hirschman, ou seja, utilizando a força

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre de uma legislação federal, na qual todos devem se pautar e obedecer, o governo central modifica as relações políticas existentes, em nome de uma responsabilidade fiscal em todas as esferas de governo. O caráter claramente coercitivo desta relação vertical com as outras esferas de governo teve como intuito tornar mais eficiente a administração pública, programa que começou no primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso (1994), e que segundo estes, não funcionaria se este fosse contemplado apenas na esfera federal, como mostra a Exposição de motivos ao Presidente da República que acompanhou a proposta de emenda constitucional que trata da Reforma Administrativa : “viabilizar o federalismo administrativo: a introdução de novos formatos institucionais para a gestão em regime de cooperação dos serviços públicos, envolvendo a União, Estados, Distrito Federal e Municípios e a remoção de obstáculos legais à transferência de bens e de pessoal, aprofundarão a aplicação dos preceitos do federalismo na administração pública, particularmente no que tange à descentralização dos serviços públicos. (BRASIL, 1995c)”

Esta “segunda natureza”, imposta, gerencialista e pós-moderna, esbarra na discussão eficiência versus moralidade. Esta reforma do aparelho do Estado, seja no âmbito legal, seja nos processos, no atendimento ao cidadão, etc., procura tornar o Estado mais eficiente, procurando tornar viável o efeito liga/desliga, quase que numa equação matemática, onde observamos que a variável “Estado Eficiente” é diretamente proporcional ao desenvolvimento econômico-social, ao equilíbrio e a responsabilidade política e fiscal, à um pacto federativo mais justo, à melhoria da qualidade do funcionário público, etc. O confronto entre eficiência e moralidade aparece no momento de refazer o pacto federativo. Em nome de uma eficiência administrativa a reforma administrativa obedeceu a princípios de justiça e de moralidade, mas quais princípios de moralidade e de eficiência esta Reforma seguiu e a quem esta afeta e favorece? Em nome da eficiência o governo federal, se valendo de critérios técnicos para persuasão, nivelou e padronizou em categorias mais de 5700 municípios e 27 Estados, com realidades totalmente diferentes.

Ao utilizarmos aqui a metodologia de Morse para diferenciar as correntes Ibero e Anglo-Americanas para analisar a que se propõe as EC’s, podemos perceber que a Reforma do Aparelho do Estado utiliza como paradigma o conceito de eficiência como é utilizado principalmente pelos países do eixo Anglo-Saxão, que fizeram suas reformas administrativas (Nova Zelândia, Austrália, Inglaterra, EUA) em momentos anteriores, porém, esta só conseguiu ser aprovada depois de sofrer muitos acréscimos e modificações. Correia e Sobrinho faz alguns comentários sobre a LRF, que, como dito anteriormente, é da mesma seqüência da EC19 e da EC25:

“O texto legal é aplicável a todos os entes da federação. Tratando-se de uma Lei Complementar de caráter nacional. O dispositivo em tela sofreu influências externas e internas que basilaram seu suporte fático, observa-se a influência externa na adoção de práticas de gestão fiscal bem sucedidas em outro ordenamentos jurídicos ou até mesmo organismos internacionais. Exemplifica-se isto com o código de boas práticas para transparência fiscal influenciado pelo Fundo Monetário Internacional, ou com regras singularizadas extraídas das lições dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. Dos americanos a L.R.F adotou a limitação de empenho (sequestration) e a compensação (pay as you go), mecanismos oriundos de uma lei chamada Budget Enforcement Act (BEA – 1990). Da Nova Zelândia veio o modelo de transparência que determina a publicação de diversos relatórios fiscais simplificados e enseja a participação da sociedade através do controle social. A legislação específica da Nova Zelândia foi o Fiscal Responsability Act (1994). Internamente, a L.R.F coaduna com as reformas constitucionais, especialmente as emendas constitucionais da reforma administrativa (EC nº19) e da reforma previdenciária (EC nº20)” (CORREIA SOBRNHO, 2002) (sic).

A proposta original da EC19, a PEC173, enviada ao Congresso Nacional no dia 23 de agosto de 1997 pelo Poder Executivo era bem mais modesta do que a aprovada no dia 04 de junho de 1998. Essas modificações e contribuições imbuíram ao resultado final uma característica híbrida a EC19, característica que pode ser percebida nas demais EC’s, ou seja, o processo legislativo do Congresso Nacional garantiu que o paradigma da eficiência não se consolidasse na Constituição Federal da forma

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IX Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Madrid, España, 2 -5 Nov. 2004 Documento Libre como foi proposto originalmente pelo MARE. O que foi aprovado, em todas as EC’s que tratam da Reforma do Estado, é fruto de extensas (e intensas) negociações públicas e dentro do Congresso Nacional.

O paradigma da eficiência que valoriza e premia o trabalho e o esforço individual, que descentraliza as decisões, que modifica os regimes jurídicos dos servidores e que implementa avaliações de desempenho e de produtividade foi dissolvido da sua forma original para ser assimilado, talvez por características próprias da sociedade brasileira, que faz com que a resistência seja passiva, pois é impossível assimilar qualquer conteúdo estrangeiro no seu significado original, mas podemos entender melhor este processo de dissociação através da disputa de forças políticas e sociais características de um processo democrático.

A EC32 (Altera dispositivos dos arts. 48, 57, 61, 62, 64, 66, 84, 88 e 246 da Constituição Federal, e dá outras providências.) trata da alteração de algumas competências do Congresso Nacional no âmbito principalmente do processo legislativo, da regulamentação de medidas provisórias e da formulação de leis. Desta mesma linha faz parte a EC35 (dá nova redação ao art. 53 de Constituição Federal.), que trata da regulamentação dos direitos dos deputados e senadores. Essas duas EC’s demonstram a necessidade de mudança não só das regras que regem a sociedade, mas do próprio protocolo interno do funcionamento dos Poderes. Essa “segunda natureza” que vemos nascer e se desenvolver que é, em verdade, um híbrido gerencial, pois contém contribuições de várias correntes epistemológicas, próprias do mundo globalizado, e conta também com contribuições típicas brasileiras, históricas, culturais e políticas. Contudo, devemos ter cuidado ao entender esta nova natureza gerencial, não a vendo como uma simples subordinação a corrente Anglo-Americana ou Anglo-Saxão de gerenciar o Estado, ou mesmo seguindo a cartilha de algum órgão internacional para tornar o Estado e as finanças nacionais mais eficientes e produtivas. As EC’s aqui apresentadas, ao mesmo tempo que são híbridas em sua essência, são também uma forma de afirmação política e cultural, independente se nos utilizamos de ferramentas de gestão internacionalmente reconhecidas, nós as praticamos das formas como nos convém (para o bem ou para o mal), seja regulando as aposentadorias, as finanças públicas, os protocolos internos das casas legislativas ou mesmo a administração pública como um todo, o mister é a consciência que as emendas têm a sua significação dada pelo uso que delas é feito, não pelo o que foi imaginado.

Talvez este híbrido gerencial da administração pública brasileira, que está sendo gestado desde 1994, pelo menos, seja o que devemos esperar para os próximos anos para a governabilidade brasileira. Não mais o produto da análise quase envergonhada dos intérpretes clássicos e nem a razão da desconfiança da esquerda brasileira com os organismos internacionais, mas uma política brasileira num mundo globalizado. Só o tempo dirá se estas reformas são uma alcarsina, um acrato ou uma via possível.

Bem no Fundo Paulo Leminski No fundo, no fundo, Bem lá no fundo, Agente gostaria De ver nossos problemas Resolvidos por decreto A partir desta data, Aquela mágoa sem remédio É considerada nula E sobre ela—silêncio perpétuo

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Extinto por lei todo o remorso, Maldito seja que olhas pra trás, Lá pra trás não há nada, E nada mais Mas problemas não se resolvem, Problemas têm família grande, E aos domingos saem todos a passear O problema, sua senhora E outros pequenos probleminhas. Bibliografia

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Resenha Biográfica Endereço: Rua Grão Pará 405/101, Rio de Janeiro/RJ, Brasil, 20715-010. telefone: 55-21-22289187. email: [email protected] Mestrando em Administração Pública da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) / Fundação Getulio Vargas (FGV). Especialização em Sociologia Política e Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)