populismo e democracia na nova esquerda da américa latina

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NOVOS POPULISMOS E DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA ISABELLA CRISTINA DO NASCIMENTO PEREIRA São Paulo 2015

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Trabalho de conclusão de curso.

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    FACULDADE DE CINCIAS SOCIAIS

    CURSO DE RELAES INTERNACIONAIS

    NOVOS POPULISMOS E DEMOCRACIA NA AMRICA LATINA

    ISABELLA CRISTINA DO NASCIMENTO PEREIRA

    So Paulo

    2015

  • ISABELLA CRISTINA DO NASCIMENTO PEREIRA

    NOVOS POPULISMOS E DEMOCRACIA NA AMRICA LATINA

    Monografia apresentada ao curso de

    Relaes Internacionais da Faculdade de

    Cincias Sociais, da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como pr-requisito

    para a obteno do ttulo de bacharel em

    Relaes Internacionais, orientada pela Prof

    Dr Carla Cristina Garcia.

    So Paulo

    2015

  • Muita polemica, muita confuso...

    Valesca Popozuda

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, agradeo a minha me, que me proporcionou a

    oportunidade de estudar em uma faculdade renomada e que acreditou no meu

    potencial desde o comeo. Sem ela, eu no teria chegado a lugar nenhum. Ao meu

    pai, todo meu carinho pelo cuidado durante estes quatro anos e meio. Me sinto

    agraciada em ter vocs como meu porto seguro. Amo vocs.

    Gostaria de agradecer tambm minha orientadora, Prof Carla, deusa

    feminista em tempo integral e diva acadmica nas horas vagas. Obrigada por ter me

    acolhido quando tudo parecia fadado ao fracasso. Voc maravilhosa, e um

    exemplo pra mim.

    Aos meus amigos queridos da PUC-SP, que aguentaram essa barra que

    conviver comigo de segunda a sexta por tantos anos. Livia, Clara, Karliene, Caroline,

    Mara, Renata, Danilo, Thas, Andr...Vocs so incrveis, inteligentes, e at hoje

    no entendendo porque me escolheram como amiga. Sou sortuda.

    E aos meus zilhes de amigos da vida, diretamente responsveis pela minha

    graduao, s posso dizer uma coisa: obrigada! Raisa, Nat, Ly, Van, Fer, Koja,

    Matas, Juliana, Cami, Sushi, vocs certamente me adoam a vida. Obrigada,

    Donnie, por ter me iluminado em tantos momentos; seria to difcil escrever essa

    monografia sem sua ajuda.

    A los compaeros de clase y de vida de la UC Chile, slo puedo decir que

    ustedes me dieron la experiencia acadmica ms preciosa que una puede tener. Alli,

    Andy, Kasey, Isi, Marcel, y tantos otros amigos: los quiero muchsimo, tanto que me

    duele, y nunca me olvidar de ustedes. Siempre tendrn una amiga en Brasil.

    A los profesores, gracias porque me ensearan ms en cinco meses que en

    toda mi vida, y he encontrado mi vocacin en cada clase de Amrica Latina, que me

    hizo no slo comprender la historia de mi regin y de mi pas como la ma propia.

    Al Prof. Ostguy y a Enrico, gracias por la mejor, ms interesante e entretenida

    clase que tuve o tendr. Ustedes son los mejores, en absoluto. A mis compaeros

  • Lisa, Andrea, Emilia, Amaranta, James, Pabla, Katie, gracias por su inteligencia y

    amistad, nunca he estudiado con tanta gente brillante.

  • RESUMO

    O presente trabalho discute a relao entre democracia e populismo luz dos novos

    governos populistas latino-americanos. Estes frutos do giro esquerda que se deu

    na regio no inicio do sculo XXI reacenderam o debate sobre o que populismo,

    um conceito disputado por diversas abordagens. Aps reviso de literatura sobre os

    enfoques tericos do populismo e suas recorrentes aparies na Amrica Latina,

    empreende-se um debate sobre este fenmeno em relao democracia, tanto

    como ideal quanto sistema de governo. Atravs de anlise comparativa, se buscar

    compreender o porqu do surgimento de governos populistas e as implicaes

    tericas e prticas destes em democracias representativas liberais, consideradas o

    padro ideal de regime poltico na atualidade. Ambos disputam a prpria concepo

    do que um verdadeiro regime democrtico e quais objetivos este deve alcanar, e

    por isso apresentam distintos diagnsticos para a ocorrncia do populismo: uma

    patologia da democracia ou um antdoto s suas deficincias. Para testar a validade

    de tais hipteses, o governo de Evo Morales ser analisado em sua ascenso e

    consolidao no poder, desde o cenrio poltico catico que permitiu a emergncia

    de seu partido tnico MAS at sua relao como presidente com a oposio no

    Congresso e nos departamentos bolivianos, e tambm o uso de instrumentos de

    democracia direta para superar impasses institucionais. A concluso alcanada foi

    que o populismo configura uma resposta a regimes deficientes e pouco

    representativos, recuperando ideais de vontade popular e regra majoritria para

    renovar a crena do cidado comum na democracia e suas instituies.

    Palavras-chave: populismo; democracia; poltica latino-americana.

  • RESUMENEN

    El presente trabajo discute la relacin entre democracia y populismo a luz de los

    nuevos gobiernos populistas latinoamericanos. Estos frutos del giro la izquierda

    que ocurri en la regin al comenzar el siglo XXI reavivaran el debate sobre lo que

    es populismo, un concepto disputado por diversas perspectivas. Despus de una

    revisin de literatura sobre los enfoques tericos del populismo y sus recurrentes

    apariciones en Latinoamrica, se har una problematizacin del fenmeno en

    relacin a la democracia, tanto como ideal cuanto sistema de gobierno. A travs de

    un anlisis comparativo, se lo buscar comprender lo porqu del surgimiento de

    gobiernos populistas y sus implicaciones tericas y prcticas en democracias

    representativas liberales, consideradas el patrn ideal de regmenes polticos

    actualmente. Ambos disputan la propia concepcin de lo que es un verdadero

    rgimen democrtico y cules son los objetivos que debe alcanzar, y por eso

    presentan distintos diagnsticos para la ocurrencia del populismo: una patologa de

    la democracia o un antdoto a sus deficiencias. Para probar la validad de estas

    hiptesis, el gobierno de Evo Morales ser analizado en su ascensin y

    consolidacin en el poder, desde el escenario poltico de caos que le permiti

    emerger a su partido tnico MAS hasta su relacin como presidente con la oposicin

    en el Congreso y en los departamentos bolivianos, y tambin el uso de instrumentos

    de democracia directa para superar empates institucionales. La conclusin

    alcanzada es que el populismo configura una respuesta a regmenes deficientes y

    poco representativos, recuperando ideales de voluntad popular y regla mayoritaria

    para renovar la creencia del ciudadano comn en la democracia y sus instituciones.

    Palabras clave: populismo, democracia, poltica latinoamericana

  • SUMRIO INTRODUO.............................................................................................................9

    1. POPULISMO NA AMRICA LATINA: UM MARCO TERICO............................15

    1.1 Enfoque Socio-Histrico: O Populismo como Fase Histrica e Incorporao das Massas..........................................................................................18

    1.2 Enfoque Personalista: O Populismo Como Estilo Poltico.........................20

    1.3 Enfoque Ideolgico: O Populismo Como Ideologia Delgada.....................23

    1.4 Enfoque Discursivo: O Populismo Como Criao De Identidades............25

    1.5 Enfoque Institucionalista: O Populismo Como Estratgia Poltica...........28

    2. POPULISMO E DEMOCRACIA - CONSIDERAES TERICAS E IMPACTOS INSTITUCIONAIS......................................................................................................31

    2.1 Democracia: Um Breve Aporte Terico....................................................32

    2.2 A Democracia Liberal e O Populismo Como Enfermidade......................34

    2.3 Populismo Como Antdoto s Falhas Democrticas: A Busca Por Uma Democracia Majoritria...............................................................................................38

    2.4 A Democracia Radical de Laclau e Mouffe...............................................41

    2.5 Populismo como Poltica de Redeno Democrtica na Amrica Latina........................................................................................................................43

    3. NOVOS POPULISMOS E DEMOCRACIA: EVO MORALES, ACCOUNTABILITY HORIZONTAL E PLEBISCITOS.................................................................................47

    3.1 Crise Democrtica e Insatisfao Popular................................................50

    3.2 O Governo de Evo Morales: emergncia e consolidao........................56

    3.3 Um Balano do Governo Morales: Mudanas e Conflito na Democracia................................................................................................................60

    5. CONCLUSO.........................................................................................................63

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................68

  • 9

    INTRODUO Em 1998, com a eleio de Hugo Chvez na Venezuela, iniciou-se na

    Amrica Latina o chamado giro esquerda, onde grande parte dos pases da

    regio passa a ter presidente democraticamente eleitos que se localizam esquerda

    e centro-esquerda do espectro poltico. Segundo Beasley-Murray et al (2010, p. 323)

    antigamente as opes a Amrica Latina se definiam em reforma versus revoluo,

    cujo ponto de conteno era o quanto as foras de esquerda estariam dispostas a se

    submeter s regras da democracia no jogo poltico, o que tambm acarretava

    submeter-se s demais foras polticas da sociedade, que no necessariamente

    eram democrticas. Para os autores, isto levou a uma transio conservadora dos

    regimes militares da regio s novas democracias, o que exigiu moderao da

    esquerda quanto s suas demandas, fazendo-a aceitar uma economia de mercado e

    abdicando de algumas de suas lutas contra a desigualdade social.

    Ao mesmo tempo, as polticas neoliberais floresceram na regio, calcadas

    nas recomendaes do Consenso de Washington de diminuio do papel do Estado

    na economia e ajustes fiscais e tributrios, mesclado com a expanso da

    democracia eleitoral, da educao e do mercado. Embora inicialmente bem aceitos

    pela populao, os ajustes de mercado feitos em nome de um futuro melhor no

    surtiram o efeito esperado. Houve assim um gap entre o que o governo prometeu e

    o que a populao alcanou, levando a uma grave crise de incorporao, que ocorre

    quando

    (...) la necesidad de interaccin cooperativa en los mercados y en la poltica, as como la presin desde abajo en trminos de demandas econmicas, polticas y sociales no estn siendo atendidas por los patrones institucionales de incorporacin y regulacin. El contenido desborda los canales. (FILGUERA ET AL, p.33)

    Isto permitiu aos governos de esquerda, com promessas de mudana social e

    econmica, apresentar-se como alternativa, ainda que vaga, aos governos

    neoliberais (Levitsky e Roberts, 2011). Os giros esquerda, embora heterogneos,

    aceitam a democracia, ao menos em princpio, e no romperam com a economia de

    mercado. Porm, em ambos os parmetros, h uma grande variedade na

    compreenso de seu significado, o que significa uma grande variao no que

  • 10

    democracia e no quanto o Estado deve intervir na economia Beasley-Murray et al

    (2010, p. 323).

    Dentro desta nova tendncia regional, diversos autores comearam a

    identificar dois tipos de governos esquerdistas. Castaeda (2006) as denomina de

    esquerda boa e esquerda m. A primeira, descendente do comunismo catrista, e

    gera governos com forte contedo social e respeito pela democracia; a esquerda

    m, que haveria herdado a tradio populista-nacionalista latino-americana, teria

    pouco respeito pelos checks and balances das instituies democrticas e uso de

    polticas intervencionistas, buscando concentrar poder ao custo da democracia e da

    estabilidade econmica.

    J Weyland (2009) argumenta que a causa dessas diferenas seria que a

    esquerda populista (m) foi gerada por Estados rentistas, cuja abundncia de

    commodities gerou rechao dos limites impostos pela economia neoliberal e da

    ordem poltica; em comparao, a esquerda (boa) no teria recursos limitados ou

    uma economia rentista, e por isso tenderia a se manter nos limites da economia de

    mercado e da democracia representativa.

    Mesmo com diferentes tipologias, Venezuela, Bolvia e Equador se destacam

    pelas mudanas mais radicais dentre os casos registrados na regio, com forte

    componente ideolgico e reformas econmicas profundas com aumento do papel do

    Estado. Hugo Chvez, Evo Morales e Rafael Crrea eram outsiders que ganharam

    suas eleies quase que por defeito, aps momentos de grave colapso poltico e

    social, e criaram governos altamente centralizadores, baseados no apoio popular e

    feroz retrica contra a oposio interna e externa.

    Segundo Keneth (2007, p. 8),

    ()they combine the discourse and imagery of a revolutionary tradition with a strong dose of Bolivarian Regionalism, a trenchant critic of U.S. hegemony and - particulaly in the Bolivian case - an identification with indigenous cultural influence.

    O compromisso de tais lderes com a vontade do povo, distanciando-se da

    imagem de corrupo e descaso de seus antecessores. Seus governos priorizam

    uma democracia participativa, que equaciona o povo nos clculos do poder, e facilita

    a prestao de contas populao, muitas vezes construindo uma relao de

  • 11

    hostilidade com as vozes e interesses dissonantes na sociedade, e so

    considerados por uma boa parte da literatura da rea como populistas (Kenneth,

    2007; Freidenberg, 2007, entre outros).

    Uma caracterstica marcante destes governos o componente majoritrio e

    top-down de sua democracia. As atuais presidncias da Venezuela, Bolvia e

    Equador se colocam como acima do sistema partidrio e organizaes de interesse,

    e demonstram desprezo pelas demais instituies polticas, especialmente pelo

    poder Legislativo, confiando sua autoridade no poder que emana do povo, uma

    vontade comum, fora nica, que governa diretamente pela regra majoritria

    (Canovan, 2002).

    O principal instrumento para por em prtica a regra majoritria so

    mecanismos de democracia direta, definidos por Altman (2011) como instituies

    publicamente reconhecidas onde cidados emitem opinies atravs do sufrgio

    universal e secreto. Segundo Papadopoulos (2002), os mecanismos de democracia

    direta so usados pelos populistas para garantir maior responsividade do sistema s

    demandas do povo, j que no confiam nas eleies como mecanismo suficiente de

    controle e recompensa/punio das elites.

    O plebiscito, uma consulta iniciada por autoridades (ou combinao de

    autoridades) cidadania sobre determinada deciso, o mtodo mais usado por

    esses lderes. Ao encontrarem Congressos controlados pela oposio aps sua

    eleio, Chvez, Evo e Correa no hesitaram em colocar sob voto popular seus

    projetos para refundamento constitucional da nao, ampliando seu poder e

    tornando-se os nicos responsveis polticos pelo pas, respondendo diretamente

    aos seus eleitores e criando uma polarizao cada vez maior pela excluso da

    oposio do jogo poltico. Ao encontrarem oposio ou crises durante seus

    mandatos, tambm utilizaram mecanismos de democracia direta para ganhar apoio

    popular e avanar sua agenda poltica, utilizando de instrumentos democrticos para

    obter resultados que nem sempre o eram.

    Este novo populismo esquerda, ao mesmo tempo em que difere

    radicalmente das suas verses clssica e neoliberal, compartilha do apelo popular e

    liderana forte e centralizada, assim como da retrica feroz contra as elites. Velhos

  • 12

    debates vm tona: afinal, o que o populismo? Como identificar um governo

    populista? As teorias populistas, incapazes de gerar um consenso sobre o que

    constitui o fenmeno, so revistas e testadas em sua capacidade de explicao

    desses governos que, de tempos em tempos, continuam a aparecer nos pases

    latino-americanos nas mais diferentes verses e discursos polticos, e que agora

    surgiam compromissados com a esquerda poltica e a retrica anti-capitalista, algo

    indito na histria da regio (BEASLEY-MURRAY ET AL, 2010).

    Outro ponto de discusso a relao deste novo populismo com os regimes

    democrticos modernos, que apesar de possurem uma faceta majoritria, tendem a

    priorizar a representatividade dos mais diversos grupos no governo, assim como

    adotam um sistema de pesos e contrapesos para limitar o poder de cada instncia

    governamental. O populismo prioriza a accountability vertical entre governante e

    governados em detrimento da accountability horizontal entre as demais instituies

    polticas, vista como um mero impedimento para o pleno exercer da autoridade

    presidencial e a tomada de deciso rpida e efetiva exigida para mudanas

    profundas. Se a democracia teme a tirania da maioria, o populismo dela tira sua

    legitimidade, e os seus novos exemplares tem disto se utilizado como fator decisivo

    para lograr a aprovao de polticas em momentos de impasses institucionais.

    A grande questo qual a medida do impacto destas escolhas institucionais

    na qualidade democrtica almejada por tais pases, sendo esta tambm a principal

    temtica deste trabalho. Segundo a teoria democrtica liberal, instituies fortes e

    equilibradas so a receita para boas democracias, permitindo que uma restrinja a

    atuao da outra e contenha possveis desvios da atuao para a qual cada uma foi

    criada. Porm, ao mesmo tempo, o sistema de pesos e contrapesos no foi

    suficiente para resolucionar a questo do dficit de representatividade, onipresente

    nos governos dos pases latino-americanos, especialmente pela contaminao das

    instituies por interesses privados. E neste momento que o discurso do

    populismo ganha foras: a renovao do sistema poltico e a promessa de um

    governo do povo conseguem florescer em cenrios de descrena na democracia.

    Assim, a emergncia do populismo pode tanto significar o surgimento de

    problemas na democracia de um determinado pas quanto uma tentativa de

    redemocratiz-la, no sentido de retornar o poder ao povo atravs de um lder que

  • 13

    advoga o direito de represent-lo. A primeira hiptese, defendida pelo enfoque

    institucionalista do populismo e pelos defensores da democracia liberal

    representativa, defende o populismo como enfermidade, j que tende a desgastar as

    relaes entre os poderes e enfraquecer especialmente as instncias legislativas, o

    espao que resta oposio para cumprir seu papel. A segunda hiptese defende

    que o populismo oferece uma alternativa democracia liberal, contaminada pelas

    vicissitudes de elites corruptas e ineptas. Seria a nica via que realmente capaz de

    apresentar mudanas ao dar voz a maiorias que muitas vezes foram

    sistematicamente excludas do jogo poltico durante sculos, como o caso dos

    indgenas na Bolvia.

    O objetivo deste trabalho discutir as implicaes tericas e prticas de

    governos populistas em democracias representativas liberais, na medida em que

    ambos disputam a prpria concepo do que um verdadeiro regime democrtico e

    quais objetivos este deve alcanar. Especificamente, sero analisados os impactos

    do populismo na dimenso da accountability horizontal, particularmente quanto ao

    poder Legislativo e o uso de instrumentos de democracia direta como plebiscitos.

    Essas relaes sero investigadas no governo de Evo Morales na Bolvia, o estudo

    de caso escolhido entre estes novos populismos latino-americanos.

    O trabalho est dividido em trs partes distintas, para melhor compreenso do

    tema. No primeiro captulo, ser traado um breve histrico do populismo na Amrica

    Latina em suas trs encarnaes, assim como sero apresentados alguns conceitos

    fundamentais que lanam as bases para sua discusso. Os cinco enfoques

    principais para uma definio do fenmeno sero detalhadamente debatidos,

    explicitando sua abrangncia terica e possveis limitaes.

    No segundo captulo, ser problematizada a relao entre democracia e

    populismo, tanto nas suas implicaes tericas quanto nas institucionais. A questo

    populista ser debatida em seus mritos enquanto enfermidade dos regimes

    democrticos ou antdoto aos seus problemas, atravs de uma comparao entre a

    democracia liberal representativa, que o golden standard dos regimes polticos

    atuais, e os temas defendidos pelo populismo, tais qual a regra majoritria, o lder

    como interprete do povo e plebiscitos.

  • 14

    No terceiro captulo, o governo de Evo Morales ser estudado quanto sua

    emergncia e consolidao no poder, desde a sua ascenso via movimentos sociais

    indgenas em um cenrio de caos poltico e social, at sua consolidao no poder,

    onde os profundos atritos com a oposio no poder Legislativo e nos departamentos

    levaram a uma situao de impasse institucional, muitas vezes superada atravs do

    uso de plebiscitos.

  • 15

    1. POPULISMO NA AMRICA LATINA: UM MARCO TERICO O populismo, como fenmeno poltico, teve suas primeiras manifestaes nos

    Estados Unidos, com o Peoples Party Movement (1892 1900), de curta vida, mas

    longa influncia na poltica norte-americana; e na Rssia, atravs do Partido

    Socialista Revolucionrio, quase destrudo pelas divises internas e perseguio

    imperial, mas que em 1917 conseguiu capturar o Estado imperial russo e criar o

    Estado comunista. Ambos, segundo Coniff (1982), tinham a mesma busca por

    igualdade econmica e democracia que inspiraram os movimentos na Amrica

    Latina, mas no continente sua influncia foi mais duradoura.

    As diferentes definies de populismo mesclam-se com sua manifestao

    histrica na Amrica Latina. Os chamados clssicos, ocorridos a partir dos anos 20

    do sculo XX, se deram em um contexto de xodo rural e insero na economia

    internacional dos pases da regio. Aps a ruptura com as antigas oligarquias,

    governos populistas se multiplicaram na regio, se caracterizando por serem

    multiclassistas e baseados na incorporao poltica das classes baixas, liderados

    por figuras carismticas que prometiam atender as demandas populares atravs de

    polticas tutelares. Outra caracterstica importante desses governos foi a

    implementao de um modelo de desenvolvimento econmico bastante especfico, o

    modelo de substituio de importaes, cujo foco era a produo de bens

    industrializados e investimento em bens de consumo atravs de etapas que

    permitiriam, em tese, maior vantagem nos termos de troca na economia

    internacional (O'DONNELL, 1990).

    Com o fracasso do modelo de substituio de importaes e a crise poltica e

    econmica que se seguiu, regimes burocrtico-autoritrios foram implementados em

    toda a regio atravs de golpes militares de Estado, segundo tipologia de O'Donnell

    (1990). O fenmeno populista aparentava estar encerrado, e assim foi definido pelas

    teorias da modernizao e da dependncia como um modelo de desenvolvimento

    caracterstico da primeira metade do sculo XX.

    Porm, o surgimento dos chamados neopopulistas na dcada de 1990 criou

    dvidas quanto validade do conceito forjado pelos tericos das cincias polticas.

    Com estilo persuasivo, altamente influenciado pela globalizao e novas

  • 16

    tecnologias, apresentava liderana carismtica e movimentos populares

    multiclassistas em um novo contexto social, onde a comunicao era a chave para

    conquistar novos votantes (CONIFF, 1999).

    Os lderes neopopulistas se colocavam como pessoas comuns que

    assumiram o cargo mais importante da nao, e, portanto eram capazes de

    representar os reais desejos do povo em suas polticas, centralizando seus governos

    em suas figuras. Paradoxalmente, executaram reformas econmicas liberais sob o

    Consenso de Washington que geraram fortes crises em seus pases, s quais

    retratavam como sofrimento no presente em nome de um futuro melhor. O populismo

    neste perodo foi caracterizado como um estilo poltico, altamente sensorial, onde o

    carisma do lder era validado por eleies.

    Aps o fim da onda neoliberal, mais uma vez se creu que o fenmeno havia

    se esgotado. Os lderes neopopulistas, com forte instabilidade no governo, se

    adaptaram a um modelo mais conservador e menos personalista de poltica (Carlos

    Mnem), ou foram depostos do governo (Fernando Collor de Mello, Abdal

    Bucaram), ou ainda renunciaram aps escndalos polticos, como o fez o presidente

    peruano Alberto Fujimori.

    Porm, o giro esquerda na Amrica Latina na dcada de 2000 revelou mais

    uma variedade populista: esquerdista, focados em camadas mais pobres da

    populao. Setores anteriormente excludos da comunidade poltica, como a

    populao indgena na Bolvia, passam a ganhar voz e so incorporados atravs de

    governos profundamente anti-establishment, propensos a buscar profundas

    reformas sociais. O papel do Estado profundamente intervencionista, usando os

    ganhos da exportao de commodities para desenvolvimento social. Segundo

    Freindenberg (2007), isto demonstra um afastamento do modelo econmico do

    populismo clssico, e evidencia que o populismo tem um corao poltico, muito

    mais que representa um modelo econmico; porm, como argumentado por

    Viguera (1993), embora os dois eixos sejam distintos, restringir-se apenas a um

    deles gera perda de capacidade explicativa e/ou comparativa.

    As distintas manifestaes do populismo atravs do tempo criaram uma

    multiplicidade de definies e escolas tericas, as quais at hoje no lograram

  • 17

    alcanar um consenso sobre a definio do termo. Ballesteros (1987) argumenta

    que tal conceito escorregadio porque impossvel sistematiz-lo em uma nica

    teoria: ou muito ampla para ser clara, ou muito restritiva para ser persuasiva.

    Sua complexidade fez com que cada caracterstica sua levasse a criao de um

    aporte terico prprio, que muitas vezes divergem entre si: como exemplo, adeptos

    do enfoque institucionalista se negam a creditar ao populismo uma efetiva

    incorporao das massas poltica, o que outros tericos como Collier e Collier

    (1991) definem como o ponto mais distintivo do populismo.

    Em comum s abordagens, porm, est a ideia de povo como essncia do

    poderio populista. O termo povo pode se definir como populus, tratando de toda a

    coletividade, e como plebs, os subalternos no nvel poltico e especialmente no

    socioeconmico: gente comum e sofredora. Segundo Aboy Carles (2012), o

    populismo justamente uma oscilao constante entre os dois conceitos, a luta pela

    redeno da plebs que se pretende como populus, ou seja, uma frao subalterna

    da nao que se pretende como representante do verdadeiro pas, excluindo assim

    radicalmente seus inimigos polticos da comunidade poltica ao mesmo tempo em

    que renegocia esta premissa em nome de uma completude da nao nunca

    alcanada.

    Essa excluso se d atravs de uma caracterstica marcante do populismo: o

    discurso maquinesta, que segundo De La Torre (1992) se relaciona com uma

    retrica que divide a sociedade entre povo e oligarquia a partir de relaes sociais.

    O povo representaria o que h de mais puro e autntico na sociedade, o heartland, e

    se define em oposio oligarquia, que encarna o estrangeiro, o mau, o injusto e o

    imoral.

    O item mais importante do populismo, porm, o prprio lder populista. ele

    quem consegue criar a conexo com seus seguidores atravs de um vinculo

    personalista. Encarna os desejos da nao, representa as pessoas excludas do

    sistema, e nelas repousa sua legitimidade para enfrentar os desafios do poder; por

    ser a voz do povo, s a ele se reporta, e costuma ignorar as demais instituies em

    nome da governabilidade.

  • 18

    A partir desta introduo conceitual ao populismo, pode-se adentrar nas

    principais abordagens tericas sobre o fenmeno. Com propsitos de maior clareza

    conceitual, sero apresentados cinco enfoques tericos distintos, a saber: o

    populismo como fase histrica e incorporao das massas; o populismo como estilo

    poltico; o populismo como ideologia; o populismo como discurso; e o populismo

    como estratgia de poder.

    1.1 Enfoque Socio-Histrico: O Populismo Como Fase Histrica E

    Incorporao Das Massas

    O enfoque socioeconmico histrico do populismo, relacionado especialmente

    com a Teoria da Modernizao e com a Teoria da Dependncia, associa o fenmeno

    ao perodo histrico de modernizao dos anos 1930-1960, um perodo de profunda

    transformao das sociedades latino-americanas. D-se a substituio de um

    regime liberal oligrquico nos pases da Amrica Latina por um governo mais

    responsivo (em maior ou menor grau) s demandas socioeconmicas e acesso ao

    poder poltico de massas mobilizadas, mas previamente excludas (ODonnell, 1972,

    p.63), atravs de uma aliana policlassista das classes trabalhadoras e industrial

    nacional contra a velha elite.

    Este modelo fortemente conectado com a etapa de industrializao por

    substituio de importao na regio, processo em que o Estado assume uma

    posio ativa ao estimular a produo de bens de consumo pela indstria nacional,

    ao mesmo tempo em que estimula o mercado interno atravs de polticas de salrios

    altos (Collier, 1979, p.30). O Estado passa de mediador de investimentos

    estrangeiros a defensor do mercado, para assim transferir renda do setor exportador

    ao interno, e cria estrutura para a implementao da ISI (CARDOSO E FALETTO,

    2003). O Estado incorpora politicamente atravs do estmulo a sindicatos fortes, que

    so vinculados aos partidos populistas (COLLIER E COLLIER, 1991). As massas,

    neste regime, so consideradas parte integral do plano de desenvolvimento

    industrial como mo de obra e consumidores, ao mesmo tempo em que passam a

    ter importncia para o clculo poltico dos grupos de poder.

  • 19

    Sob uma perspectiva de transformao da sociedade, concomitantemente ao

    desenvolvimento econmico dos pases da regio, de acordo com Germani (1965)

    h um processo de mudana desde o ponto de vista sociolgico, com a transio de

    uma economia agrria a uma expansiva, fundada em uma crescente aplicao da

    tcnica moderna, que encontra correlao na mudana progressiva da solidariedade

    orgnica das sociedades tradicionais solidariedade mecnica do mundo moderno.

    Mais do que isso, estes dois mundos distintos coexistem, j que o processo

    modernizador no abarca a totalidade da sociedade.

    Nos pases cuja modernizao se consolidou mais cedo, essas massas

    despertas de sua mentalidade tradicional foram absorvidas pelos meios

    institucionais de representao e competio pelo poder de forma lenta e gradual. J

    nos pases latino-americanos, onde a industrializao foi tardia, a mobilizao pela

    migrao do campo cidade foi produzida de forma rpida e total (GERMANI, 1965,

    p.210). Esta mobilizao das massas espontnea e concreta, e o povo, pela

    primeira vez, rompe com seu papel fixo na sociedade tradicional e toma conscincia

    da possibilidade de atuao poltica. Ainda que plenamente compatvel com a

    democracia representativa, as estruturas arcaicas em que a democracia liberal foi

    instaurada na Amrica Latina no possibilitavam a canalizao dessa nova

    mobilizao poltica das massas s instituies existentes. O populismo seria um

    instrumento de lderes demagogos e com traos autoritrios para conseguir apoio da

    massa ignara, politicamente ativada, mas inocente e facilmente manipulvel por sua

    transio psicossocial modernidade estar incompleta.

    A perspectiva de Germani se alinha Teoria da Modernizao, na qual o

    desenvolvimento traz consigo a democracia. Samuel Huntington (1975) foi o

    principal crtico a essa perspectiva terica; para o autor, o desenvolvimento

    econmico no est necessariamente atrelado ao poltico. Os regimes autoritrio

    burocrticos de ODonnell (1972) so prova para sua afirmao: quanto mais

    modernos os pases da Amrica Latina, mais autoritrios; o nvel de mobilizao

    grande demais, e o Estado e a economia no tm recursos para distribuir os ganhos,

    levando aos golpes militares nos anos 1960 e 1970.

    A busca pelo enriquecimento pode gerar um hiato poltico entre o anseio por

    participao poltica que a modernizao traz e a falta de capacidade do governo em

  • 20

    suprir essas demandas, criando instabilidade pelo baixo grau de ordem institucional,

    que seria o elemento mais importante para Huntington em uma sociedade poltica. O

    populismo, com sua lealdade autoridade carismtica, incapaz de construir

    instituies fortes e canalizar a mobilizao poltica por ele criada para partidos,

    criando um regime democrtico incapaz de garantir a ordem.

    Para Collier e Collier (1991, p.161), porm, a mobilizao no

    desorganizada: a organizao e institucionalizao so essenciais ao populismo em

    um perodo de transio quanto participao da classe trabalhadora nos pases,

    em que estes utilizaram diversas estratgias para controlar e mobilizar os setores

    populares. Este se daria justamente quando no apenas h mobilizao, como

    tambm a criao de um partido de massa que incorpore o sindicato, e a vinculao

    entre o movimento sindical e o partido populista. A incorporao dos trabalhadores

    rurais seria responsvel por dois subtipos possveis do populismo: o trabalhista,

    restrito aos trabalhadores modernos, e o radical, que incorpora os setores agrrios.

    Embora haja diversidade terica dentro deste enfoque, a principal crtica

    engloba todos os seus autores: a rigidez de seus modelos. O populismo j se

    apresentou em formas neoliberais, e tambm em governos que no

    necessariamente desejavam se industrializar. Mesmo no perodo considerado

    clssico, pases como Peru e Equador tiveram governos populistas sem processos

    de substituio de importao; da mesma maneira, o Chile implementou esse

    modelo sem nunca ter eleito um presidente populista. Embora seja um enfoque

    terico que se esgotou com o passar do tempo, uma viso socioeconmica histrica

    do populismo permite uma melhor compreenso do seu papel como incorporador

    das massas, e como pode assumir esta funo nos presentes governos populistas.

    1.2 Enfoque Personalista: O Populismo Como Estilo Poltico

    O enfoque sociocultural do populismo apresenta o fenmeno a partir do

    vnculo entre lder e liderados, estabelecido atravs do estilo poltico do governante

    populista, evocando uma identidade em comum para estabelecer uma relao com o

    povo. A fonte de poder neste enfoque, segundo Ballasteros (1987) o lder, no a

    ideologia, atravs de seu carisma, encarnando a autoridade carismtica proposta

  • 21

    pela tipologia de liderana de Weber: prope salvao e redeno atravs da f de

    seus seguidores.

    Resumidamente, o corao deste enfoque est nas noes de proximidade e

    transgresso. O estilo e a prxis do lder buscam aproximar-se das camadas mais

    baixas e populares da populao atravs das suas identidades socioculturais, muitas

    vezes hostilizadas pelos discursos dominantes na sociedade. Isso faz com que o

    estilo do lder se torne transgressor no mbito poltico, especialmente porque a

    grande diferena de grupos sociais uma condio sine qua non para a emergncia

    do populismo; o lder populista gente como a gente, e assim permite que o povo,

    regularmente excludo da agenda poltica, finalmente se sinta representado em suas

    peculiaridades.

    Pierre Ostguy (2009), um dos principais tericos deste enfoque, define o

    populismo a partir da ideia de um outro irrepresentvel, criado a partir da ideia do

    que apropriado em uma determinada sociedade, e cujas demandas por

    representao so atendidas e representadas por lderes populistas, identificando-se

    com o verdadeiro povo. O autor define duas subdimenses poltica: a sociocultural

    e a cultural-popular, que por sua vez possuem eixos baixos e altos, representando

    diferentes expresses e comportamentos quanto aos nveis de represso e

    sublimao dos atores polticos.

    A dimenso poltico-cultural debateria sobre as formas de liderana poltica e

    tomada de deciso. Se o alto do eixo formal, impessoal, legalista, mediado por

    instituies, tecnocrata, caracterizado pelo liberalismo representativo e Estado de

    direito, na parte baixa a liderana personalista, forte, com muita proximidade com

    o povo, com participao direta e desprezo s formas institucionalizadas de tomada

    de deciso e representao. J a dimenso sociocultural se relacionaria a oposio

    entre a cultura e compostura das classes altas em oposio crueza e simplicidade

    daqueles na parte baixa no eixo; isto explicaria o sucesso das estratgias do lder de

    criao de vnculo atravs da emulao da cultura popular e/ou local, criando uma

    identificao com o povo atravs de seu estilo de liderana.

    A noo de identificao, segundo Billig (2003), se d atravs de um processo

    retrico, onde o lder logra persuadir no apenas pelo discurso do povo, mas

  • 22

    tambm por gestos, tom de voz, palavras de ordem, imagem, atitude, ideias, etc.,

    demonstrando que ambos compartilham as mesmas maneiras, hbitos e

    moralidade. Ao assumir as maneiras de sua audincia, o lder categoriza a si mesmo

    para sugerir pontos em comum com o seu pblico alvo, e assim cria uma identidade

    social popular e a utiliza para formar seu projeto retrico atravs da uma lgica de

    positing, ou seja, posicionamento dos grupos includos e excludos atravs da

    categorizao do mundo social. O populismo, com seu carter relacional e

    performativo, no apenas captura um povo pr-existe como tambm o produz para

    alcanar poder (MOFFIT E TORMEY, 2014).

    Segundo Tagguief (1995), o vnculo entre lder populista e povo possui uma

    qualidade mstica e abole a distancia entre o povo e os governantes, buscando a

    reconstruo do corpo social atravs do apagamento das diferenas sociais e

    econmicas na sociedade, resumindo-as a meras diferenas das identidades

    culturais. Isso permite que o lder populista persiga as mais distintas agendas

    polticas; as pessoas o seguem por se identificarem com o estilo que ele projeta,

    baseado na cultura popular, no pelo contedo de suas polticas. Ballesteros (1987),

    inclusive, afirma que quando um discurso poltico se reduz a convocar o povo em

    torno a um lder, sem nenhum contedo ideolgico ou programtico, se pode afirmar

    com absoluta propriedade do populismo; a retrica populista seria justamente a

    compatibilidade com a ausncia de ideologia.

    A principal crtica a este enfoque est na sua concentrao no estilo

    performtico do populismo. Ao se focar na emulao de identidades populares para

    lograr poder, o populismo como estilo poltico trata os lderes como meros atores em

    um teatro, que a qualquer momento podem sair do estilo que criaram para si.

    Tambm um conceito to amplo que se torna pouco abrangente, por no ter

    definies claras em mbito institucional para clarificar suas ocorrncias.

    Empiricamente, deixa de explicar casos populistas como o de Fernando Collor de

    Mello, presidente brasileiro conhecido por sua origem abastada e estilo de vida

    playboy, pouco relacionado com a vida da maioria da populao brasileira.

  • 23

    1.3 Enfoque Ideolgico: O Populismo Como Ideologia Delgada

    O populismo como ideologia delgada, a princpio, no se diferenciava do

    enfoque do populismo como estilo poltico: ambos tinham como ponto de partida a

    criao de identidades e estruturao do campo poltico. Porm, com o passar do

    tempo, ambas foram se diferenciando: o ltimo foca-se muito mais na relao entre

    lder e liderados atravs do discurso e da performance, enquanto no primeiro a fala

    do lder analisada em todas as suas implicaes na criao de antagonismos

    sociais, buscando extrair uma filosofia de discursos populistas. Da mesma maneira,

    muito similar ao enfoque do populismo como criao de identidades, porque

    ambos afirmam a diviso da sociedade em campos antagnicos como caracterstica

    definidora; porm, enquanto este enfoque afirma que isto se d por uma ideologia

    populista, aquele defende que o discurso que cria tais divises.

    Mudde & Rovira (2012, p.8) definem o populismo como:

    a thin-centred ideology that considers society to be ultimately separated into two homogeneous and antagonistic groups, the pure people and the corrupt elite, and which argues that politics should be a expression of the volont gnrale (general will) of the people.

    Estas categorias de povo e elite so vazias em si mesmas, sendo o lder

    populista o responsvel pela construo de seus significados.

    uma forma moral de poltica, j que a distino entre os dois polos dada

    nesta dimenso, criando uma viso maquinesta sem espao para mediao;

    segundo Stanley (2008), uma reao profundamente adversria, como amigos e

    inimigos nos termos schmittianos. Hawkins (2010) agrega uma dimenso de

    cosmologia mstica, na qual conecta moralidade de seu discurso uma encarnao

    de um tempo mstico do passado, dando sentido pico e de eternidade ao presente

    ao reviver antigos mitos e smbolos.

    importante notar que o fato do populismo apresentar-se como uma

    ideologia delgada permite que se associe a outras ideologias, como o socialismo, o

    nacionalismo, etc., porque no tem complexidade suficiente para gerar polticas.

    Mas isso, segundo Stanley (2008), no impede que o populismo seja reconhecido

    como uma ideologia, ainda que no oferea um conjunto de respostas s questes

    geradas na sociedade. Os conceitos de povo e soberania popular, ou seja, a criao

  • 24

    de um povo em oposio elite, assim como um suposto interesse harmonioso

    desse povo, devem ser a base para a tomada de deciso na esfera governamental.

    Tambm acrescem os conceitos de tenso entre a poltica como redeno e

    administrao de Canovan (1999) na representao da vontade do povo; se a ltima

    atua como base na mediao de conflitos, negando a representao prometida pela

    democracia liberal, a poltica como redeno afirma que outro mundo possvel,

    onde a voz do povo efetivamente ouvida. Esta se torna populismo quando h um

    excesso de pluralismo sem equilbrio, gerando busca por representao. O

    populismo uma ideologia porque este ncleo presente em todas as suas

    ocorrncias. Stanley (2008) afirma que essa vontade do povo a encarnao do

    bom: nica, indivisvel, a voz de Deus, e no admite oposio, que

    considerada ilegtima, em total oposio ao pluralismo poltico. No outro polo, as

    elites so ms, perversas, conspiradoras e variam conforme o contexto: podem ser

    grupos tnicos, econmicos, etc.

    Mudde (2004) tambm aponta os partidos estabelecidos na democracia liberal

    como inimigos do povo, j que no representam a populao e criam divises no

    povo unido, em uma oposio mais uma vez maquinesta e simplificadora. E h uma

    necessidade de mudana sistmica, j que as velhas estruturas da velha poltica

    esto dominadas pelos maus polticos, e novas estruturas seriam as nicas a

    romp-las. Eles no desejam deliberar e garantir direitos formais; buscam ao e

    rechaam mecanismos liberais caso estes evitem a vontade do povo.

    Mudde (2004) resgata a contribuio de Taggart sobre o heartland para

    conceituar esta maioria que o populismo busca representar: a world that embodies

    the collective ways and wisdom of the people who construct it, usually with reference

    what has gone before (even if that is idealized). (TAGGART, 2000, p.3) Este

    heartland seria, na verdade, uma construo mtica utilizada pelos lderes populistas

    para descrever um determinado conjunto da populao, sendo um conceito to vago

    que melhor definido em oposio elite rechaada pelo populismo.

    Mudde (2004) observa que os populistas no querem mudar as pessoas,

    como o socialismo ou o comunismo, e sim mudar seu status na sociedade, pois o

    senso comum a base de todo o bem na poltica. Este heartland ativado em

  • 25

    circunstncias especiais: combinao de ressentimento poltico, desafio ao estilo de

    vida do povo e presena de um lder populista atrativo.

    As principais crticas a essa vertente a premissa subjacente a ela que as

    pessoas e o lder creem na ideologia em questo; para alguns tericos, os

    populistas no possuem crenas, apenas perseguem o poder. O core desta vertente

    tambm apresenta deficincias porque seus conceitos so pouco abrangentes, e

    quase sempre precisa de outra ideologia ter poder explicativo; o populismo no

    possui um conjunto de conceitos e tericos claramente definidos, nem tampouco um

    movimento de adeptos que o valide como ideologia.

    1.4 Enfoque Discursivo: O Populismo Como Criao De Identidades

    O populismo como criao de identidades uma vertente baseada no

    arcabouo terico construdo por Ernesto Laclau (2005), terico argentino ps

    marxista e ps modernista, que prope o populismo como a prpria lgica poltica.

    O modelo de populismo de Laclau tem como unidade de anlise social as unidades

    menores que so articuladas por demandas, que quando articuladas entre si geram

    a unidade do grupo. Essas demandas so reivindicaes a uma determinada ordem

    estabelecida, e tem um aspecto concreto de materialidade e outro aspecto abstrato,

    e podem ser satisfeitas ou no. As demandas democrticas so aquelas isoladas de

    um processo equivalencial, absorvidas pelas instituies atravs de uma lgica de

    diferenciao, ou seja, mediante la afirmacin de la particularidad (), cuyos nicos

    lazos con otras particularidades son de una naturaleza diferencial (LACLAU, 2005,

    p.103). Quando estas demandas no so satisfeitas, se transformam em demandas

    populares, sendo essa caracterstica responsvel por uma lgica de equivalncia, ou

    seja, as demandas se tornam iguais em seu no atendimento e enfatizam o que tem

    em comum, implicando assim no traado de uma fronteira antagnica e na

    debilitao das diferenas.

    Isto gera uma cadeia de equivalncia em seu nvel abstrato de demanda

    insatisfeita. Assim, quando a cadeia aumenta, esses vnculos equivalenciais se

    condensam ao redor de uma demanda particular ou pessoa, que passa a ultrapassar

    sua caracterstica concreta ao assumir caractersticas universais e representar toda

  • 26

    a cadeia de equivalncias. Esta demanda ou pessoa se torna um significante vazio,

    que cria um marco diferencial comum heterogeneidade das demandas, ou seja, as

    diferenas de suas partes concretas que nunca desaparece e cria tenso com a

    proposta de universalidade dada pela cadeia de equivalncias. Quanto mais extenso

    o lao equivalencial, mais vazio ser o significante que unifica a cadeia.

    Segundo Laclau (2005, p.123), a institucionalidade existente no permite ao

    populus representar sua verdadeira plenitude, e a plebs aspira construo de um

    populus realmente universal atravs da crena em uma totalidade plena. A cadeia de

    equivalncia permite uma construo poltica de uma fronteira que divide a

    sociedade em dois campos: o povo e a institucionalidade. No um antagonismo

    entre atores pr-determinados, como pressuporia uma teoria marxista; o

    antagonismo cria novas classes sociais. O outro, para esta lgica, uma oposio

    total ao povo; aqueles que impedem a concretizao do desejo de ser povo e por tal

    razo nunca podero fazer parte da futura comunidade plena. Estes so

    concretamente simbolizados pelos blocos de poder, que so elites que estabelecem

    a hegemonia da sociedade, ou seja, controlam no s os meios de coero como

    tambm exercem a liderana no campo das ideias.

    A oposio da identidade popular criada pela cadeia equivalencial em relao

    ao bloco de poder o que define o populismo. Parafraseando Laclau (2005, p. 150-

    151), o populismo assim uma lgica poltica que se relaciona com a instituio do

    social atravs de demandas sociais, gerando uma mudana social pela articulao

    das lgicas de diferena e de equivalncia, e a constituio de uma cadeia

    equivalencial que constri um sujeito poltico global que rene mltiplas demandas

    sociais e, por consequncia, constri fronteiras internas e a identificao da

    instituio como antagonista.

    Panizza (2005) instrumentaliza a teoria de Laclau para a explicao da

    criao de identidades polticas. Para o autor, o discurso ao, no ideologia: cria

    algo que no existia antes ao designar uma parte da realidade, criando uma nova

    identificao. O discurso do populismo anti-status quo e cria uma diviso na

    sociedade entre o povo e o outro, identidades dadas (e, portanto, criadas) pelo

    processo de nomeao (naming) dos inimigos do povo.

  • 27

    A soberania popular para Panizza, semelhante ao enfoque ideolgico,

    tambm vista como uma categoria vazia; porm, nesta viso it is argue that its

    meaning is constituted by the very process of naming, or () that it is determined by

    a process of naming that retroactively determines its meaning. (PANIZZA, 2005, p.

    5). H uma desconstruo e reconstruo de identidades baseada no antagonismo

    criado com o outro, ou seja, em um processo de alteridade que remove divises

    internas da populao para criar um e indivisvel Us (povo) versus Them; a opresso

    do alter torna os mltiplos egos apenas um. Para Panizza (2005, p.9),

    Populist practices emerges out of the failure of existing social and political institutions to confine and regulate political subjects into a relatively stable social order. () It is a political appeal that seeks to change the terms of political discourse, articulate new social relations, redefine political frontiers and constitute new identities.

    Apesar de no depender de um lder, ele ou ela pode ser a mais provvel

    projeo no significante vazio, incorporando o povo atravs da identificao. O

    lder se pe fora da poltica, ao menos da poltica de sempre, clamando sua

    diferena em relao aos demais. Tem qualidades extraordinrias ainda que seja

    uma pessoa comum, como o resto do povo que diz representar. Apresenta

    caractersticas anti-institucionalistas do lder, que desconfia dos caminhos velhos do

    poder pela sua no representao dos desejos do povo e vcios corruptos; e atravs

    de um caminho redentor, consegue transformar o que era corrupto em algo puro e

    superior.

    Se o populismo, segundo Panizza (2005), despolitiza o poltico, ele tambm

    superpolitiza as relaes sociais. Expressa as opinies e desejos das pessoas

    excludas dos mbitos hegemnicos do poder, e consegue criar uma identificao

    simblica entre o lder populista e seu povo, os integrando aos espaos polticos.

    Tal vertente do enfoque discursivo possui grande sofisticao terica, por

    tratar de aspectos simblicos da criao de identidades e de vnculos com o lder

    populista, e, portanto possui maior poder explicativo que o populismo como estilo

    poltico e o populismo como ideologia. Porm, apenas permite compreender como

    se d o fenmeno populista, sem prover um framework que permita analisar os

    casos empricos para alm dos discursos e das identidades, em reas essenciais

    como as instituies democrticas, por exemplo.

  • 28

    1.5 Enfoque Institucionalista: O Populismo Como Estratgia Poltica

    O populismo como estratgia poltica tem um vis institucionalista em sua

    anlise sobre o fenmeno, e tem seu principal terico em Kurt Weyland. O autor

    apresenta o populismo como uma estratgia de poder personalista e anti-

    institucionalista, muito mais associada esfera de dominao, da competio e

    exerccio de poder poltico. Weyland (2001) constri um conceito clssico do

    fenmeno, a nvel cientfico, e por isso exclui muitas variveis de sua anlise que

    seriam, segundo ele, incidentais, como classe social e fase histrica; as polticas

    econmicas e sociais seriam instrumentos para alcanar o poder, no caractersticas

    intrnsecas ao conceito.

    Para Weyland (2001, p.10), o populismo ocorre quando "() an individual

    leader seeks or exercises government power basead on support from large numbers

    of followers." Esta relao entre lder e as massas no institucionalizada, e sim

    fluida, criada por forte conexo com seus seguidores, e por isso transcende ou

    submete as instituies aos desejos do lder.

    Este enfoque rechaa completamente a ideia de populismo como

    incorporador das massas de facto, e tampouco o considera democratizante, j que

    no tem respeito pelas regras do jogo e, por consequncia, tampouco pelos

    direitos que compem o status da cidadania. O lder populista demagogo, e utiliza

    seu discurso para conseguir suporte das massas para seus objetivos de dominao

    poltica, aproveitando-se da suscetibilidade gerada pela pobreza na regio com

    promessas fceis.

    Para o enfoque institucionalista, a democracia liberal e pluralista o modelo

    ideal, ou seja, deve-se buscar limitar o governo e administrar conflitos entre diversos

    grupos, evitando a tirania da maioria. uma oposio direta ao carter majoritrio

    do populismo, que concentra todo o poder em seu lder e planifica o povo em nome

    de uma vontade nica imaginada. Este personalismo cria uma accountability vertical

    por um vnculo plebiscitrio, que responsabiliza o lder populista diretamente por

    responder as demandas e necessidades da populao (BARR, 2009, p.44).

    Porm, a ideia do povo como vontade nica no permite oposio, excluindo

    toda a possibilidade de diversidade de opinies dentro de uma sociedade por ser

  • 29

    contra a nao, e assim automaticamente seu inimigo. Segundo Novaro (2011,

    p.184), os prprios lderes populistas so os que criam essa necessidade para

    polarizar o campo poltico e manter seu discurso; a incluso e excluso so dadas

    em relao participao poltica permitida oposio do governo, e o apelo do

    populista esse discurso anti-establishment, ou seja, contra as elites estabelecidas

    (BARR, 2009).

    O poder de deciso que conseguem pela politizao das instituies

    transicional, j que a superao das resistncias incorre em uma nova

    institucionalizao. Assim, necessrio criar um aparato estatal que exclua toda a

    possibilidade de oposio e que impede a alternncia de poder, assim como

    mantenha todos os grupos capazes de rivalizar (instituies estatais, mdia, exrcito)

    sob seu controle, eliminando quase toda a possibilidade de pluralismo poltico. No

    h limitao institucional em seu governo, nem diviso do poder. A maquinaria do

    Estado utilizada para promover o partido e seu lder, tonando-se equivalentes.

    O enfoque institucional possui uma viso altamente negativa sobre o

    populismo, enfatizando suas caractersticas nocivas ao desenho institucional das

    democracias modernas. Porm, possui certas falhas, cuja principal excluir algo

    essencial definio do fenmeno, inclusive formao da prpria palavra: o

    populus, o povo. Weyland tambm deixa de lado a dicotomia do povo versus grupo

    dominante, um argumento presente nos demais enfoques. E mesmo que proponha

    uma definio cientfica do fenmeno, o populismo apenas como estratgia poltica

    extremamente amplo e pode ser utilizado para denominar os mais diversos tipos de

    governos, no apenas os reconhecidamente populistas. Falta algo que defina de

    maneira mais efetiva o que diferencia um governo populista dos demais.

    A amplitude de enfoques tericos do populismo no significa que estes sejam

    mutuamente exclusivos, e permite uma viso multidimensional do fenmeno,

    ressaltando sua complexidade. Esta tambm se manifesta para alm da pura teoria

    do populismo: suas implicaes na democracia tambm so extremamente

    polmicas, gerando debates acirrados e sem previso de consenso quanto

    valorao das mudanas que promove. Independente da definio adotada, de

    comum acordo que o populismo altera os clculos do jogo poltico em termos de

    pesos e contrapesos institucionais, especialmente porque seu ideal de democracia

  • 30

    muito distante dos sistemas propostos pelas abordagens liberais: anseia por um

    governo forte e baseado na vontade da maioria, em oposio representao e

    acomodao que predominam na atual poltica. Como se d esta relao o tema a

    ser explorado no prximo captulo.

  • 31

    2. POPULISMO E DEMOCRACIA - CONSIDERAES

    TERICAS E IMPACTOS INSTITUCIONAIS

    Tanto no campo das Cincias Polticas quanto nos debates fora da academia,

    o populismo normalmente carrega consigo uma conotao altamente negativa,

    retratando governos paternalistas e lderes demagogos, que desrespeitam as

    instituies polticas e os direitos dos opositores ao regime. Canovan (2004) afirma

    que o fenmeno visto pelos cientistas polticos como um sinal de enfermidade

    patolgica da sociedade, e por tal motivo no recebe a devida ateno nos estudos

    da rea. Porm, tambm h perspectivas que defendem que o populismo, longe de

    ser uma enfermidade democrtica, na verdade um antdoto para suas falhas

    sistmicas, onde o Estado nunca logrou realmente incluir as massas em uma

    democracia que representasse interesses outros que os das elites locais.

    Na Amrica Latina, o debate ainda mais sensvel. Tendo o continente uma

    longa histria de golpes e ditaduras, as democracias liberais que aqui se

    estabeleceram so amplamente conhecidas pela sua falta de representatividade em

    relao a grande parte da populao. Segundo Beasley-Murray et al (2010, p.324), o

    liberalismo e ideias de cidadania com ele relacionado normalmente so termos

    opostos ao povo, o popular; o liberalismo associado com ideias de excluso

    econmica e social. Weyland (1995) afirma que, embora os atuais regimes da regio

    sejam considerados democrticos, segundo definies mnimas de democracia, no

    se comparam aos seus contraexemplos europeus; h participao poltica em

    nmero, porm sem qualidade.

    Da mesma maneira, os governos populistas so famosos pela sua relao

    clientelista com os eleitores e tendncia polticos que muitas vezes flertam com o

    autoritarismo, e tambm sendo questionados quanto qualidade de incluso social

    e poltica que proporcionariam ao povo. ODonnell (1972), ao tratar dos populismos

    histricos que levaram aos Estados Burocrtico-Autoritrios, afirma que, embora as

    massas fossem includas no pacto poltico pelos lderes populistas, os significados

    desta nova cidadania no foram entranhados nas novas identidades coletivas

    surgidas, porque estas se davam muito mais pela busca pela justia substantiva do

    que por direitos. As ecloses populares que geraram o Estado nacional popular no

  • 32

    foram movimentos de classe para o autor, pois o povo no foi ou se tornou

    autnomo neste processo, servindo como massa de manobra enquanto continuava

    a demandar apenas por polticas sociais, sem se apossar da cidadania.

    Os novos populismos latino-americanos tambm so alvos de grande

    controvrsia, apesar de seus logros sociais. Hugo Chvez, Evo Morales e Rafael

    Correa so lderes controversos, extremamente populares, porm suas aes muitas

    vezes desafiam s convenes do que se configura uma boa democracia, por

    considerarem que estes mecanismos so insuficientes para fazer polticas que

    realmente representem o desejo do povo. Por este motivo, so constantemente

    questionados quanto validade de seu governo e de suas aes, e em que medida

    realmente configuram uma democracia.

    Coppedge (2002, p.1), ao analisar Hugo Chvez, defende que para avaliar

    corretamente o estado da democracia de seu governo necessrio aguar a

    distino entre democracia definida como soberania popular versus a noo mais

    convencional de democracia liberal. Para Rovira (2011), nisto esta base da

    discrepncia nas percepes sobre o populismo como remdio ou antdoto. O ideal

    de democracia que fundamenta cada linha terica influi diretamente no julgamento

    que se faz sobre o regime; quanto mais se prioriza a soberania popular e

    mecanismos de participao direta em relao ao constitucionalismo e

    representao, mais satisfatrio ser o populismo quanto ao tipo de democracia que

    proporcionar, e o inverso tambm verdadeiro.

    Para mensurar tais caractersticas, porm, importante discutir brevemente

    sobre o prprio conceito de democracia, e depois ampliar o escopo das reflexes

    para fatores que ultrapassam o mero desenho institucional.

    2.1 Democracia: Um Breve Aporte Terico

    Segundo Mudde e Rovira (2012), da mesma maneira que o populismo,

    democracia um conceito altamente disputado nas cincias sociais, no apenas

    pela sua definio, como tambm pelos seus diversos modelos. Segundo Miguel

    (2002, P. 483), a definio mais clssica a grega, que corresponde ideia de

  • 33

    governo do povo e ao prprio significado etimolgico da palavra, e que rege parte

    do imaginrio associado democracia; porm isto no significa que todos sejam

    iguais, pois apenas os livres possuem direitos. Aristteles (2005) equaciona em seus

    escritos a democracia vontade da maioria dos cidados livres, excluindo os

    escravos do clculo do poder poltico, o que destaca o elemento elitista da cincia

    poltica desde seus primrdios.

    Com o passar do tempo, novas ideias e conceituaes sobre a democracia

    surgiram para explicar as mudanas nas comunidades polticas e seus regimes,

    assim como apontar quais rumos deveriam ser seguidos para alcanarem-se

    sociedades ideais. Miguel (2002) destaca que ao longo dos sculos XVIII e XIX, com

    autores como Rousseau, Fourier, Proudhon e Marx, surgiram correntes de

    pensamento poltico que pensavam a democracia em termos de sociedades mais

    igualitrias entre os homens. A negao da desigualdade como algo natural coaduna

    com o cenrio poltico de tal poca, onde revolues sociopolticas corroam as

    estruturas histricas de desigualdade.

    Porm, ao fim do sculo XIX, novamente abordagens elitistas passaram a

    predominar nas cincias humanas, reafirmando a diferena natural entre as

    pessoas. Na teoria da democracia, tal pressuposto foi incorporado por Joseph

    Schumpeter (1984), cuja definio minimalista da democracia certamente a mais

    difundida na rea. Para Schumpeter, o bem comum pode ser alcanado atravs da

    participao direta do povo na tomada de deciso, atravs da livre competio pelo

    voto. A democracia, para o autor, estritamente um regime poltico,

    independentemente das caractersticas do Estado e da sociedade; apenas um

    processo eleitoral caracterizado pela livre competio pelo voto, e no

    necessariamente pensado como instrumento para alcanar qualquer outro valor.

    Para Schumpeter, a vontade do povo, assim como o bem geral, no existe per

    se; so resultados artificialmente criados pela influncia do governo, que define a

    vontade do eleitor. A crena na democracia como tradutora da voz do povo no

    passa de uma dimenso religiosa, de um credo que se mantm como parte de um

    sistema normativo sobre o funcionamento de um regime democrtico. A igualdade

    poltica uma falcia, e a democracia se baseia nos interesses das elites.

  • 34

    Porm, a teoria de Schumpeter no aborda questes contemporneas

    importantes, como a incluso do indivduo na democracia. Robert Dahl (1997)

    desenvolve uma teoria mais complexa sobre a democracia, amplamente utilizada no

    atual debate poltico, e ponto de partida para uma perspectiva liberal sobre o

    populismo e seus impactos institucionais sobre regimes democrticos. Para o autor,

    no h democracia perfeitamente consolidada, mas sim poliarquias, resultados de

    um jogo entre os diferentes grupos polticos, cuja estabilidade determinada pelos

    custos de tolerncia e represso das faces opositoras.

    Para Dahl, oito garantias bsicas: liberdade de associao, liberdade de

    expresso, direito ao voto, elegibilidade para cargos pblicos, direito de lderes

    polticos concorrerem em eleies, fontes alternativas de informao, eleies livre e

    idneas e instituies que mantenham os mecanismos de eleio. Essas

    caractersticas permitem a comparao de regimes polticos por seus nveis de

    contestao poltica (participao de partidos polticos em eleies regulares) e

    direito de participao (sufrgio universal adulto); quanto mais liberal e inclusivo

    um regime, mais democrtico se torna, configurando-se uma poliarquia plena.

    Miguel (2012), porm, afirma que, embora as liberdades e direitos propostos

    por essas teorias sejam essenciais a uma democracia, cada vez mais esta se afasta

    de sua essncia, ou seja, cada vez mais est distante das mos do povo; o que

    tericos polticos propem como regime democrtico , na verdade, um governo de

    minorias, e muitas vezes no abarcam caractersticas que tambm podem definir

    uma democracia. Por tal motivo, de acordo com Morlino (2004), muitas definies

    podem ser agregadas s aqui apresentadas, como a vontade da maioria

    (democracia majoritria), o governo direto dos cidados sempre que possvel

    (democracia participativa), a busca do bem comum em um processo de tomada de

    deciso (democracia deliberativa), a igualdade de participao, representao,

    proteo e recursos (democracia igualitria), entre outros.

    2.2 A Democracia Liberal e O Populismo Como Enfermidade

    O golden standard da democracia, desde a Segunda Guerra Mundial, o

    modelo representativo liberal, dominante especialmente nos pases europeus e na

  • 35

    Amrica do Norte, e que por efeitos prticos ser denominado democracia liberal.

    Este modelo possui muita afinidade com a poliarquia de Dahl, pois defende um

    Estado de direito que prioriza a representao de diversos interesses dentro da

    sociedade atravs de instituies democrticas e sistemas de pesos e contrapesos.

    Mudde e Rovira (2012, p.13) definem a democracia liberal como

    (...)essentially a system characterized not only by free and fair elections, popular sovereignty, and majority rule, but also by the constitutional protection of minority rights. Accordingly, we are dealing with a complex form of government based on the idea of political equality, and consequently, cannot allow a majority to deprive a minority of any of its primary political rights, since this would imply a violation of the democratic process.

    Este sistema compreendido em termos de incluso, acomodao,

    pluralismo, debate e consensos, ou seja, une elementos republicanos, liberais e

    democrticos, porm prioriza os dois primeiros em detrimento ao ltimo. O governo

    aqui visto como negativo, tanto ao limitar sua ao quanto esfera privada do

    cidado quanto ao limitar os direitos de uma maioria em relao a minorias.

    Segundo Papadopoulos (2002, p.46), a noo do governo representativo tem

    origem feudal, e inicialmente no tinha relao alguma tanto com a democracia

    quanto com as eleies. Inicialmente, a democracia era concebida exclusivamente

    na sua forma direta, ou em conjuno com a seleo de lideres por loteria,

    permitindo que todos tivessem a mesma chance de governar. Na democracia liberal,

    porm, o mecanismo principal para selecionar representantes pblicos a eleio,

    realizada em intervalos regulares e delegada aos candidatos eleitos a

    responsabilidade de representao da populao em instncias legislativas.

    H um elemento aristocrtico na dimenso representativa da democracia, na

    medida em que restringe espaos a uma determinada elite poltica que compete pelo

    voto do eleitor. Tal escolha se d por preocupaes com um possvel governo

    majoritrio, que no confivel; a teoria democrtica assume que maiorias

    facilmente cedem a tentao de modificar as regras do jogo para discriminar em seu

    favor e contra a oposio. A preocupao com a possibilidade de tiranias da maioria

    antiga, e inclusive remonta srie O Federalista, na qual Madison (2009) j

    argumenta, no artigo #9, sobre os perigos da imposio da vontade de uma possvel

    faco majoritria sobre as demais, recomendando o governo representativo para

  • 36

    evitar que esta democracia em estado puro viole direitos civis daqueles que deveria

    proteger.

    Madison (2009) tambm defende a necessidade de um sistema de pesos e

    contrapesos no governo no artigo #51, limitando a ao de cada nicho do governo

    para garantir os direitos dos cidados. Os princpios liberais, segundo Coppedge

    (2002, p.12), no apenas justificam como requerem limites autoridade do governo

    eleito, no importando quo claramente majoritrio seja; atravs de Constituies,

    estabelece-se uma srie de instituies que podem fiscalizar o poder Executivo

    entre as eleies, assim diminuindo o risco de um presidente abusar de seu

    mandato popular.

    Esta a accountability horizontal, que ODonnell (1998, p.40) define como a

    existncia de agncias estatais que tm o direito e o poder legal e que esto de fato

    dispostas e capacitadas para realizar aes, que vo desde a superviso de rotina a

    sanes legais ou at o impeachment contra aes ou emisses de outros agentes

    ou agncias do Estado que possam ser qualificadas como delituosas. Essas

    instituies incluem um poder judicirio independente, um legislativo com base

    eleitoral distinta, etc.

    Para Coppedge (2002), as instituies podem ser pensadas como uma

    espcie de aplice de seguro da democracia: os cidados pagam no presente,

    atravs do sacrifcio da representatividade no governo e respostas mais imediatas

    aos seus desejos, assegurando que no futuro a democracia no cair abaixo de um

    nvel mnimo. Assim, expandem seu horizonte temporal e garantem sua prpria

    segurana como possvel oposio em eleies posteriores.

    Segundo Rovira (2011), de acordo com a perspectiva liberal, o populismo

    seria uma reao ao mau funcionamento da ordem democrtica, uma patologia

    democrtica porque traz foras destrutivas que transgridem tanto direitos individuais

    quanto instituies representativas. A perspectiva liberal o ponto de partida para o

    enfoque institucionalista do populismo, e tambm de alguns autores da escola scio-

    histrica, como Gino Germani: se o populismo , segundo Weyland (2001), uma

    estratgia de poder personalista e anti-institucionalista, a anttese do ideal

  • 37

    democrtico liberal de um Estado de direito, cuja valorizao dos checks and

    balances essencial ao bom funcionamento do sistema.

    Para De La Torre (2003), tanto os novos quanto os velhos populismos

    configuram democracias delegativas. Estas, segundo ODonnell (1994, p. 59-60), se

    do quando o presidente eleito governa conforme deseja, sendo limitado apenas

    pelas relaes de poder j existentes e pela durao constitucionalmente fixada do

    cargo. O presidente personifica a nao e seus interesses, e se considera acima de

    partidos polticos e do sistema estabelecido, tendo sua base em movimentos

    populares. Democracias delegativas seriam tambm variaes da poliarquia de

    Dahls, porm, seu dficit democrtico no seria vertical, ou seja, no se daria termos

    de participao e competio, e sim horizontalmente, quanto a suas falhas em

    relao aos pesos e contrapesos das instituies democrticas (PERUZZOTTI,

    2013).

    Segundo Rosenvallen (2007), o populismo a definio de contrademocracia,

    estigmatizando compulsiva e permanente as autoridades governantes, at o ponto

    de constitu-las em fora inimiga, radicalmente exterior sociedade, e colocando o

    povo como juiz para denunciar as elites corruptas. H um desejo de expurgo do

    corpo social de todos os elementos que o fazem adoecer e causam a separao do

    povo, para que haja uma representao real deste ao tornar-se sadio.

    O responsvel pela cura da nao, segundo ODonnell (1994), o lder, que

    tem o dever de trazer novamente a unidade da fragmentada sociedade em questo,

    administrando remdios atravs de especialistas tcnicos por ele escolhidos e

    protegidos e ignorando qualquer tipo de resistncia s medidas tomadas. O

    presidente se isola das demais instituies polticas e passa a ser o nico

    responsvel por todas as polticas que criou, sejam boas ou ruins. De La Torre

    (2003) argumenta a atuao do governo e da oposio em regimes populistas

    premia lgicas imediatistas e interesses e clculos de curto prazo. Por ver-se como

    encarnao da vontade da nao, o presidente tem poucos recursos para concertar

    e dialogar com a oposio, que tambm no possuem opes que no agir de forma

    similar ao governo e usar de mecanismo de legalidade duvidosa para frear ao

    Presidente.

  • 38

    O ataque accountability horizontal tambm cria problema na

    governabilidade, definida como o grau em que as relaes entre atores estratgicos

    so governadas por formulas estveis e mutuamente aceitas, na medida em que as

    relaes com a oposio e com a sociedade civil foram prejudicadas por regras

    unilaterais impostas pelo governo, muitas vezes ignorando completamente o Estado

    de direito e at a prpria Constituio (COPPEDGE, 2002, p.2).

    2.3 Populismo Como Antdoto s Falhas Democrticas: A Busca Por Uma

    Democracia Majoritria

    Porm, o modelo de democracia liberal no perfeito. Segundo Canovan

    (2002), para que a democracia liberal se concretizasse em uma sociedade moderna

    e fragmentada, foi necessria a perda de transparncia dos processos

    democrticos, ou seja, a complexidade dos mecanismos e instituies democrticas

    to grande que no permite que as pessoas tenham uma imagem mental clara do

    fenmeno. Assim, ocorre o paradoxo da democracia atual: quer empoderar as

    pessoas, mas o desenvolvimento institucional que permite isto torna a poltica

    ininteligvel para as pessoas comuns.

    Taggart (2002) tambm argumenta que, neste contexto de sociedades

    complexas, h um aumento concomitante da distncia entre os governantes e

    governados, muitas vezes levando a abstraes que transformam ambos em

    entidades coletivas opostas e antagonistas no campo poltico, transformando as

    elites em distantes, sem face e desagradveis. Canovan (2002) aponta a

    necessidade de construir uma ponte entre a poltica e as pessoas nas democracias

    modernas, onde h grande distncia entre os eleitos e os eleitores e complexidade

    institucional. Esta ponte feita pela ideologia, que definida como conceptual

    structures that provide a simplified map of the political world and motivate their

    followers by bestowing an almost religious significance on political doctrines and

    symbols. (CANOVAN, 2002, p. 29). muito importante para legitimar o sistema em

    uma poca de poltica de massa, onde o povo no pode ser ignorado.

    A ideologia da democracia construda em temas como a soberania do povo,

    unidade popular, regra majoritria. Segundo Coppedge (2002, p.3), a soberania

  • 39

    popular a ideia de que um governo deve fazer o que a maior parte dos cidados

    deseja que faa, e a definio mais antiga e literal de democracia, ainda que no

    seja necessariamente a melhor sob uma perspectiva liberal. A soberania popular,

    segundo tericos contemporneos, no nem suficiente ou estritamente necessria

    para a democracia; porm, longamente reconhecida como um critrio legtimo para

    regimes democrticos, em medida que reconhece o desejo de uma maioria, por isso

    configurando-se uma caracterstica necessria da democracia. O problema que a

    soberania popular e seus desdobramentos institucionais esto muito longe da

    democracia que se busca construir atualmente, e criam expectativas sobre o

    funcionamento destes regimes que no podem ser cumpridas (CANOVAN, 2002).

    Outra crtica democracia liberal que, no mbito institucional, a restrio do

    poder de deciso do povo, muitas vezes impedindo a implementao de polticas

    que grande parte da populao apoia. Segundo Papadopoulos (2002, p.48), o

    problema do populismo com a democracia liberal repousa na sua dimenso

    inerentemente oligrquica. Os representantes so eleitos porque so diferentes de

    ns, ou seja, so distintos das massas ignorantes por suas capacidades

    administrativas e tcnicas, genunos profissionais cujas credenciais os separam

    daqueles que os representam. Ao mesmo tempo, a democracia tambm comporta

    um princpio de representatividade do homem comum pelos governantes eleitos,

    com os quais deve compartilhar crenas e costumes. Porm, nem sempre os

    representantes eleitos de fato exercem seus mandatos conforme o desejo de seus

    eleitores, correndo riscos ao criar sistemas rgidos e pouco representativos.

    O autor tambm argumenta que a substituio das elites governantes atravs

    de mecanismos eleitorais algo essencial ao processo democrtico por configurar-

    se uma ameaa que torna os representantes mais sensveis s demandas da

    populao e minimiza seu espao para manobras, impedindo a formao de uma

    classe poltica homognea. Porm, para os populistas, embora seja um mecanismo

    vlido, este no suficiente para garantir a resposta das elites; o pressuposto de

    que os eleitores votaro de acordo com o retrospecto dos polticos no se mostra

    vlido empiricamente, porque demasiado racional para que tanto votantes quanto

    partidos polticos ajam de acordo, ignorando diversas variveis como o voto

    ideolgico, relaes clientelistas entre partido e eleitor, etc. (Papadopoulos 2002,

    pp.50-51).

  • 40

    Tratando especificamente do caso argentino, Etchemendy (2012) argumenta

    que muitas leituras feitas do kirchnerismo partem da premissa que as instituies

    democrticas liberais so neutras e livres de protagonismos polticos. Tais anlises

    defendem que la poltica es simplemente un ordenamiento eficiente de incentivos y

    reglas y no lucha constante de grupos y clases por el poder (ETCHEMENDY, 2012,

    p.141), ou seja, gerando o que o autor descreve como institucionalismo vaco, que

    defendem as instituies qualquer custo, sem tornar-se consciente das tenses

    entre a prtica institucional e os interesses dos atores.

    A democracia liberal, segundo o discurso populista, permitiu que o poder

    fosse roubado das pessoas, deixando-o nas mos de polticos corruptos e elites que

    no representam os desejos da populao. O populismo ento retorna o poder ao

    povo atravs de um lder diretamente eleito e que ouve e atende suas demandas.

    Todos so iguais para o populismo; no h uma vanguarda que, sob a ideia de

    progresso, impe suas ideias como necessrias ao desenvolvimento da sociedade,

    ainda que muito distintas do resto da populao (CANOVAN, 1999). O mito sob o

    qual construda a ideia de povo soberano tomada como efetiva pelos populistas:

    uma vontade comum, uma fora nica, que governa diretamente por regras

    majoritrias. A unificao do povo cria uma identidade interna nica, e as fronteiras

    do Estado passam a significar efetivamente os limites da nao. a poltica da

    vontade e deciso em oposio acomodao e compromisso.

    Assim, segundo Peruzzotti (2013, p.143), longe de enfatizar controles legais

    no governo, o populismo clama pela libertao do poder executivo eleito dos

    constrangimentos impostos pela noo de accountability horizontal. Segundo o

    autor, limites constitucionais ao Executivo so ferramentas pelas quais as minorias

    buscam restringir a vontade popular, bloqueando processos necessrios de

    transformao econmica e social que precisam ser realizados para a superao

    das desigualdades existentes.

    De acordo com Kenney (2000), os lderes populistas logram legitimidade por,

    ao subverterem instituies consideradas condies sine qua non por muitos, tais

    como o Legislativo, constituies, etc., conseguirem parecer mais democrticos aos

    olhos da populao. Isso ocorre porque o populismo engloba as dimenses

    majoritria e participativa dtaggarta democracia, valorizando a soberania popular

  • 41

    sobre a representatividade dos demais grupos, e priorizando instrumentos de

    democracia direta aos tradicionais mecanismos de representao poltica. Segundo

    Beasley-Murray et al (2010, p.324), o populismo clama ultrapassar os mecanismo

    burocrticos e constitucionais que excluiriam o povo do poder, permitindo que a

    vontade popular se expresse direta e espontaneamente, sem ser filtrada por

    instituies, como ocorre com a democracia liberal representativa.

    Ainda segundo Kenney (2000), o sucesso dos lderes populistas tambm

    possui mais uma motivao: a percepo que as instituies democrticas esto

    corrompidas por interesses particulares, seja a corrupo dos agentes pblicos e

    partidos, a fora corruptora da elite econmica, e a falta de imparcialidade do poder

    Judicirio. O populismo prega uma reforma radical de tais instituies como maneira

    de faz-las novamente representar as preferncias dos grupos excludos no

    presente arranjo de poder, tornando-as responsveis pelos seus atos e livrando-as

    de interesses outros que no o bem comum.

    Esse desejo por maior representatividade normalmente leva a democracias

    plebiscitrias, onde tal instrumento utilizado para fazer avanar agendas que, de

    outra maneira, seriam bloqueadas pelos outros poderes que compem o sistema de

    pesos e contrapesos da democracia. Os partidos, assim, so substitudos por

    plebiscitos como a principal maneira de expressar a vontade popular

    (MAINWARING, 2006).

    2.4 A Democracia Radical de Laclau e Mouffe

    Mouffe e Laclau (2001) formulam uma estratgia radical de democratizao

    da poltica, que se relaciona profundamente com a perspectiva do populismo como

    uma prtica discursiva e criao de identidades, onde demandas no atendidas pela

    institucionalidade criam uma cadeia de equivalncias ligadas por um significado

    vazio, normalmente o lder populista. Tal configurao cria uma fronteira radical na

    sociedade entre dois campos que se definem pela oposio ao outro.

    Laclau e Moffe (2001) retomam a ideia de Gramsci sobre hegemonia, onde

    uma classe dominante tem seu discurso tomado como sentido comum pelos

  • 42

    dominados, assumindo que, embora o campo social seja definido por questes

    histricas, os atores sociais se manteriam os mesmos atravs do processo, lutando

    para que seu discurso torne-se o hegemnico. Para Mouffe e Laclau (2001), porm,

    isso impossvel, porque nenhum discurso esgotaria uma categoria, que se sempre

    se d em oposio a algo, a uma exterioridade discursiva. Os atores sociais no

    seriam entidades fixas, e sim definidas em uma relao de antagonismo com os

    inimigos que impedem a construo da sua identidade, se configurando em pontos

    que no podem ser mais absorvido pela lgica de equivalncia e, portanto, se

    situam na fronteira poltica.

    Se a sociedade ps-Revoluo Francesa criou identidade com base na luta

    pela igualdade e liberdade, novas lutas sociais emergem com o aprofundamento do

    capitalismo e sua presena em todos os aspectos da vida humana, da mesma

    maneira que a cada vez maior presena do Estado quanto a burocratizao cria

    novos antagonismos polticos. Laclau (2009), em sua obra A razo populista, afirma

    que a democracia liberal, ao defender um sistema de representao onde o cidado

    delega sua vontade, no percebe que esta constituda na verdade pelos

    representantes, que ao ter sucesso ao interpelar ao povo em seu discurso, faz com

    que esses se reconheam neste, criando a vontade popular de maneira

    verticalizada. No h uma multiplicidade de interesses na sociedade porque eles

    no existem a priori, o que invalidaria teorias como a de Schumpeter; a

    institucionalidade no apenas cria a identidade e vontade dos representados como

    tambm o discurso da democracia de um espao de poder ocupado por ningum em

    particular.

    As novas lutas surgem porque uma parcela dos cidados, embora sejam

    contempladas pelo discurso da democracia liberal moderna, impedida pelo Estado

    de constituir plenamente sua identidade como sujeito de direitos, e assim Mouffe e

    Laclau prope uma democracia radical e plural, onde haja espao para a inscrio

    de diversas lutas em um novo projeto hegemnico sem hierarquizao de

    demandas. Para Laclau (2009), a melhor maneira de construir esse sujeito popular-

    democrata atravs do populismo, que cria a identidade do povo atravs da

    interpelao e construo de sua identidade como sujeito que quer ocupar espaos

    de poder.

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    O grande problema da democracia radical de Laclau e Mouffe, segundo

    Mudde e Rovira (2012), a falta de definio clara do seu conceito. Embora seja de

    utilidade terica por problematizar pontos sensveis da democracia liberal, em

    nenhum momento os autores apresentam o que exatamente uma democracia

    radical, e tampouco permite uma leitura pertinente das relaes empricas entre

    populismo e democracia, situando-as apenas no nvel terico e normativo. Os

    autores tambm apontam que muitas crticas feitas por Laclau e Mouffe ao modelo

    liberal, especialmente com sua recusa admisso e incorporao do conflito

    arena poltica, toma como pressuposto um modelo deliberativo de democracia, que

    apenas um modelo entre muitos que vigoram nas democracias atuais.

    2.5 Populismo como Poltica de Redeno Democrtica na Amrica

    Latina

    Uma viso demasiadamente normativa do populismo, tanto como fora

    destrutiva da democracia quanto como soluo para os defeitos sistmicos da

    democracia liberal, impede uma anlise mais acurada desse fenmeno poltico. O

    populismo manifesta-se quando h um dficit na representao poltica de uma

    parte da cidadania e, portanto, no uma enfermidade per se, e sim uma indicao

    que as prticas institucionais no esto alinhadas com o discurso dem