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~ PONTOS DE VISTA, METAFORAS, IRONIAS E AS TRANSFORMAÇÕES DA IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA Idilva Maria Pires Germano' RESUMO Este trabalho discute a crescente mistura de gêneros que vêm marcando opensamento e aspráticas das Ciências Sociais, levando-as a aproximações cada vez mais intensas com asformas e linguagens estéticas, na intenção de escapar dos diversos reducionismos aos quais estão sujeitas. Toma como ponto departida as reflexões de Geertz e Quéré acerca da natureza hermenêutica dos estudos sobre o social, para depois apresentar os conceitos de ponto de vista, metáfora e ironia, como base para pensar no modelo de uma Estética Cognitiva para as disciplinas sócioantropológicas. Palavras-Chave: Sociologia Hermenêutica; Estética Cognitiva, Ponto de vista, Metáfora, Ironia. Points of view, metaphors, ironies and tbe changes of sociological imagination ABSTRACT This paper discusses the problem of the "blurred genres" in actual Social Sciences and the increasing interests ofsocial fields in artistic forms of knowledge, as means of protection against various kinds ofsimplistic thought. It starts with Geertzs and Quéré s reflectionson the interpretative nature ofsocial studies, later introducing the concepts of point of view, methaphor and irony, to suggest Cognitive Esthetics as a model for sociological imagination. Key words: Hermeneutics/lnterpretative Sociology, Cognitive Esthetics, Point of view, Metaphor, Irony. • Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. 29 Revistade Psicologia,Fortaleza,V 19(1/2) p. 29 - p. 35 jan/dez 2001

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~PONTOS DE VISTA, METAFORAS, IRONIAS E AS

TRANSFORMAÇÕES DA IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA

Idilva Maria Pires Germano'

RESUMO

Este trabalho discute a crescente mistura de gêneros que vêm marcando opensamento e aspráticas dasCiências Sociais, levando-as a aproximações cada vez mais intensas com as formas e linguagens estéticas, naintenção de escapar dos diversos reducionismos aos quais estão sujeitas. Toma como ponto departida as reflexõesde Geertz e Quéré acerca da natureza hermenêutica dos estudos sobre o social, para depois apresentar os conceitosde ponto de vista, metáfora e ironia, como base para pensar no modelo de uma Estética Cognitiva para asdisciplinas sócioantropológicas.

Palavras-Chave: Sociologia Hermenêutica; Estética Cognitiva, Ponto de vista, Metáfora, Ironia.

Points of view, metaphors, ironies and tbe changes of sociological imagination

ABSTRACT

This paper discusses the problem of the "blurred genres" in actual Social Sciences and the increasinginterests ofsocial fields in artistic forms of knowledge, as means of protection against various kinds ofsimplisticthought. It starts with Geertzs and Quéré s reflectionson the interpretative nature ofsocial studies, later introducingthe concepts of point of view, methaphor and irony, to suggest Cognitive Esthetics as a model for sociologicalimagination.

Key words: Hermeneutics/lnterpretative Sociology, Cognitive Esthetics, Point of view, Metaphor, Irony.

• Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.

29Revistade Psicologia,Fortaleza,V 19(1/2) p. 29 - p. 35 jan/dez 2001

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1. A QUESTÃO DOS GÊNEROS INDE-FINIDOS EA RECONFIGURAÇÃO DOPENSAMENTO SÓCIO-ANTROPO-LÓGICO

Em Saber Local, Clifford Geertz (1999)assinala uma série de transformações que marcam ateoria social contemporânea. Uma delas é osurgimento de uma miscelânea de estudos sobre osocial cujos gêneros parecem indefinidos oumisturados. Outra mudança é que muitos cientistassociais hoje tendem a deslocar sua atenção para osfenômenos do simbolismo, numa clara assunção deque sua tarefa é bem mais interpretativa do queexplicativa, contrariando os princípios e métodosda tradição objetivista. Além disso, o discurso detais estudos se vale cada vez mais de analogiastomadas de empréstimo às humanidades - teatro,pintura, literatura, retórica, direito, gramática etc.-e cada vez menos das analogias mecânicas e orgânicascaracterísticas do pensamento sociológico clássico.Esses fatos reunidos indicam uma espécie dereviravolta cultural, onde filósofos, críticos literários,historiadores, romancistas, sociólogos e ideólogosproduzem discursos sobre o social que parecem semesclar uns aos outros, quebrando as fronteiras dasespecialidades e tornando difícil a classificação dasobras e dos autores. O estado da teoria social hojesugere que esse foi o modo encontrado para asCiências Sociais criarem personalidade própria -mesmo que plural- e assim, se desfazerem das idéiasrecebidas sobre o que e como investigar seus objetos.A vocação das Ciências Sociais parece mais assumida:ao invés de imitar modelos de um ou outro saber, épossível descobrir ordem na vida coletiva pela viahermenêutica. A abordagem interpretativa concebea vida social como uma realidade organizada emsímbolos cujos significados devem ser apreendidospara que se compreenda tal organização e seformulem seus princípios. A opção herrnenêuticanão significa a renúncia à reorizaçâo: procura-se sabero quê e como uma coletividade pensa ou age a fimde distinguir princípios para além daquela sociedadeparticular, ou seja, leis da ordem social e de outrasexperiências da sociabilidade humana. Essedeslocamento no olhar sociológico é acompanhado

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por novidades na retórica analítica, isto é, nas figurasutilizadas para a explanação dos fenômenos. É assimque vemos as analogias da conduta social comomáquina ou organismo serem substituídas poranalogias tais como a do jogo, teatro ou texto.Certamente que a mudança não ocorre apenas nonível da representação lingüística no sentido estrito,mas ela significa principalmente a transformaçãoradical na imaginação sociológica, obrigada a pensare a dizer o real a partir do paradigma dainrersubjetividade.

Quer a conduta humana seja concebida comolugar de regras e estratégias (como jogo), de atores,máscaras e rituais (como teatro), ou de ditos e não-ditos (como texto), verifica-se que essas analogiastraduzem um mesmo posicionamento filosófico, asaber, que todo conhecimento é construido nointerior de uma comunidade de discurso. Essaabordagem, a do realismo simbólico (Menezes, 1996),supõe a existência de realidades múltiplas construídasintersubjetivamente, de modo que a própria ciência- tal como o senso comum, o mito, a arte - é vistacomo construção parcial e metáforica da realidade.Essa visão destrói o ideal de unanimidade explicativae a pretensão de descrição fiel das coisas. Os objetoscientíficos deixam de ser considerados dados, e asproposições científicas renunciam à univocidade.

Com efeito, a preocupação atual com ametáfora na ciência é fruto da reviravolta lingüísticana filosofia. Considerando que todo saber é mediadopor símbolos localizados, a distinção tradicionalentre arte e ciência torna-se mais tênue, elevando ametáfora a um lugar central na discussãoepistemológica e ontológica, e dispondo-a comomodelo para o pensamento sociológico. Não sereconhece mais a existência de um saber dos saberes,que esteja fora da mediação cultural. Na sociologiae na antropologia, o uso das metáforas passa a serinternamente objeto de reflexão e as própriasmetáforas agora traduzem o espírito "dialógico" darealidade social: intertexrualidade, jogo, etc.Essas analogias, entretanto, apresentam-se comocaminho de mão-dupla: podem tanto oferecerimagens fecundas ao pensamento, quanto soluçõesenganosas e simplistas. Uma das dificuldades no usocientífico das novas figuras de linguagem é que nessa

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fronteira indistinta entre as artes e a ciência, é fáciltropeçar nos conceitos e no vocabulário da Estéticaquando na sua transposição para a teoria social. Nolado das vantagens, essas analogias permitemvisualizar melhor a articulação epistemológica entreos procedimentos estéticos e científicos,tradicionalmente inconciliáveis, na construção erepresentação do real.

De fato, as Ciências Sociais têm admitido o"argumento herrnenêutico" a fim de lidar com váriasreduções epistemológicas. O "argumento herrne-nêutico" refere-se à "proposição de que a realidadesocial só se revela na epela interpretação, em virtudede sua consistência própria: não somente ela é pré-interpretada por aqueles que nela vivem (versãotímida), mas, sobretudo, ela se constitui na e pelainterpretação de si mesma, no sentido de que aatividade e as instituições sociais organizam-se eestabilizam-se através das interpretações dos agentesa seu respeito." (Quéré, 1992: 49)

Essa peculiaridade faz com que a sociologiaapresente um estatuto "duplamente herrnenêutico".O seu objeto - a ação social - é produzida e mantidapor meio de uma interação simbólica entre atoresque atribuem inteligibilidade e pertinência a essaonduta; por outro lado, a disciplina tem que

recorrer à interpretação como meio para oentendimento desse mundo simbólico, seja na coletade dados (a observação significa identificação de umato como isso ou aquilo, o que pressupõe a

explicação de um sistema simbólico dentro do quala decisão quanto à natureza do fato foi tomada) ouna sua análise em sentido estrito. Para Quéré, o olharinterpretativo combate dois tipos de limitaçõesomuns do pensamento sociológico: a "redução

empiricista" e a "redução construtivista".A redução empiricista consiste em dividir o

objeto em dois elementos: uma realidade bruta (àqual se atribui propriedades independentes de suaqualidade de objetos da experiência subjetiva dosagentes) e um sentido atribuído a essa realidade pelossujeitos, sob forma de valores, atitudes etc. Paraonhecer a experiência, portanto, converte-se a

mesma a fatos brutos, como, por exemplo, categorias

Argumenro que é a base da crítica a certa linhagem de Psicologia Social.

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profissionais, etárias, sexuais, religiosas e outras, elasmesmas deixadas sem interpretação. A tarefa dopesquisador é extrair as regularidades com que taisdisposições se manifestam em certas amostras (cujaescolha também não é interpretada) de mododescritivo. Nesse caso, não vale a interpretação, jáque ela é produtora de dissenso, mas uma verificaçãode proposições descritivas observáveis e suscetíveisde refutação. No positivismo lógico, a interpretaçãosó é permitida no plano da formulação de hipóteses,na contextualização do objeto, mas é vedada nainstância da prova.

A crítica herrnenêutica ao positivisrno volta-se principalmente para a sua perda do sentidointersubjetivo da ação social. Uma das conseqüênciasdo empiricismo é uma redução subjetivista dacultura, isto é, a cultura passa a ser vista como oconjunto das atitudes individuais tomadas por cadasujeito em certa coletividade para com um mundoobjetivo pretensamente fora das suas experiênciasde interaçâo simbólica' . O posirivisrno também nãolida adequadamente com o problema da auto-interpretação nas Ciências Sociais, uma vez que nãoinclui em sua análise aquilo que torna os fatos brutosinteligíveis para a investigação. Daí os delineamentosmais ernpiricistas privilegiarem o pólo técnico dapesquisa (adotando a distinção de Bruyne et aI,1977) e suas exigências de precisão e validade, umavez as variáveis estejam operacionalizadas. No âmbitode uma Sociologia e Psicologia Social reflexivas, omomento da problematização se torna maiscomplexo, envolvendo uma discussão das categoriaspré-determinadas (sexo, profissão, classe social eassim por diante) e do trabalho social que asproduziu. Esse procedimento evitaria o obstáculoque Bourdieu (1989) chama de "senso comumdouto", muito comum nesses tipos de desenhospositivistas.

Na redução chamada por Quéré de"construtivisra", a inteligibilidade das condutassociais se dá em termos de determinações ou cons-trangimentos externos aos indivíduos- um sistemade leis, regras, estruturas objetivas que fixam asdisposições e que dirigem as práticas. A teoria

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sociológica busca, aqui, reconstruir tais mecanismosde coerção, adotando algumas premissas: a ligaçãoestável entre a situação e os comportamentos nelaocorridos; a idéia de que as ações particulares sãorepresentadas por seus agentes como pertinentes auma classe de ações e essa pertinêricia dirige a açãodo agente em cada situação; e por fim, a existênciade um consenso cognitivo ou partilha de um mesmosistema de símbolos e significados, que permite acada um dar uma resposta apropriada a cada situação.A tarefa sociológica reside em identificar asestruturas objetivas (ex. "o campo" de pertença, o"habirus", como em Bourdieu) e deduzir daí os traçospertinentes dos comportamentos observados,mostrando que essas disposições duradouras são oque confere à ação o seu caráter racional e ordenado,mediante arbitrariedade social e cultural. O modelode análise é bem mais explicativo do que descritivoou interpretativo e se vale da forma dedutiva, comintenção nomológica (Quéré, op. cit. 54-55)

A crítica herrnenêutica mais concreta nessecaso é o risco de considerar falas e atos singularesdos agentes como ilustrações ou exemplos dascategorias do sociólogo, bem como a pouca atençãoque se dá ao modo como opiniões singulares sobreo que deve ser feito se convertem em signos deregras, papéis, etc. Como se percebem as estruturasobjetivas por detrás das ações singulares? ParaQuéré, o programa da ernometodologia se propõea solucionar esse problema, buscando investigarempiricamente o argumento hermenêutico. Elaprocura examinar as práticas usadas pelos membrosde uma coletividade para dar inteligibilidade às suasações e como essa auto-percepção mediatiza aorganização das relações interpessoais e a ordemsocial. A tarefa deixa de ser a explicação dosmecanismos de constrangimento entendidos comoexternos aos agentes para ser a explicação do sistemade saberes e práticas cotidianos produzidos ecompartilhados no próprio interior das estruturasde experiência. Desse modo, o modelo é o de umasociologia da interpretação ordinária. Umtratamento empírico dessa natureza focalizaria ocaráter público e observável do sentido, sem cairnuma investigação intuitiva das vivências, nemreproduzir as reduções já comentadas.

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Ainda no encalço de modelos episterrio-lógicos capazes de defender as Ciências Sociais dasameaças reducionistas, a ref1exão interna dasdisciplinas tem se voltado cada vez mais para asformas e linguagens estéticas, cujos fundamentos deapreensão do real parecem objeto de partilhacomum. É assim que pontos de vista, metáforas,ironias e outros tropos deixam de ser entendidoscomo assuntos exclusivos da literatura, para serreivindicados por cientistas sociais empenhados naampliação dos horizontes do seu trabalho.

2. O MODELO DA ESTÉTICA COGNI-TIVA E SUAS APLICAÇÓES NASOCIOLOGIA: PONTOS DE VISTA,METÁFORAS, IRONIAS.

A partir da perspectiva do realismo simbóli-co, verifica-se que a arte pode contribuir para o pró-prio desenvolvimento das Ciências Humanas, for-necendo-lhes informações importantes sobre seucaráter de cognição. A Sociologia comumente abordaa arte como um objeto externo, nas diferentes teo-rias sociológicas das formas estéticas ou das obrasde arte. Entretanto, a arte pode ser investigada pelaSociologia na sua perspectiva de produção de co-nhecimento, como caminho para a compreensão daação social. A arte, que assume de partida sua con-dição de "criadora de sentido" pode, assim, oferecerum modelo para a investigação social que admitecomo pressuposto o caráter de criação do conheci-mento. A Estética torna a ficcionalidade do real maisvisível, daí a pertinência para a teoria sociológica debase hermenêutica.

Embora pouco tematizada na Sociologia, anoção estética de ponto de vista mostra-se bastantepróxima da reflexão sociológica sobre o lugar ocu-pado pelo cientista em relação ao seu objeto de in-vestigação. A necessidade de um meio-termo entreo distanciamento e a proximidade do objeto pelosujeito cognoscente é compartilhada pela percep-ção estética, que identifica no modo de conheci-mento artístico um posicionamento subjetivo feitoao mesmo tempo de atenção desinteressada e departicipação. Com efeito, o discurso sociológico devertente herrnenêutica assinala que o trabalho depesquisa exige uma objetividade composta dos dois

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_ s de distância. É nesse sentido que surge a es-égia metodológica da "observação participante",

e permite ao pesquisador dar conta do seu objeto,rn e confundir com ele, nem dele se afastar aonto da neutralidade.

Dessa forma, distanciamento estético e~ stanciamento sociológico seguem uma mesma ati-- de de descoberta. Por meio da sátira, o narrador-~ Viagensde Gulliverconsegue fixar um outro pontoce vista sobre sua sociedade, de forma a provocar

a cisão nas visões estabeleci das e uniformes so-re ela. Isto é, sob o pretexto de descrever as estra-

~ as práticas dos povos que visitou, Gulliver, comouangeiro, esclarece a lógica subjacente às condu;bem mais familiares de sua própria sociedade. O

uror marca, assim, a necessidade de distanciamento.•do exercício do pensamento relacional para se co-nhecer a realidade. Nesse caso, o deslocamento es-acial evocado com o termo "viagem" serve como

::netáfora do trabalho intelectual crítico que deve sedispor a se afastar do sentido evidente e comum paraar conta das próprias leis dos sentidos ordinários.

A posição de Gulliver (espelho do olharirônico do seu criador) aproxima-se da atitude doociólogo que aceita a reflexividade de sua discipli-na. Assim a postura de "estranharnenro" do nossoherói é o estado de espírito do intelectual que, aodesejar "conhecer os outros, não pode contentar-seom estudã-los, mas deve também escutar-se e con-

r ontar-se ... " (Gouldner, apud Menezes, 1996: 36)Do mesmo modo que os pontos de vista, a

metáfora também amplia as' possibilidades dereflexividade das Ciências Sociais. Por muito tem-o considerada simples adorno para fins persuasi-'os ou, na pior das hipóteses, perigoso instrumentoe engano para os espíritos incautos, o aspectoognoscitivo da metáfora permaneceu desconheci-

do ou pouco tematizado. Para alguns filósofos, comoPaul Ricoeur (1992), a linguagem metafórica dopoeta também é sobre a realidade (não só sobre apalavra) e sua atuação se dá mediante a abolição daconotação normal (literal) da linguagem descritiva.As metáforas, via suspensão do olhar ordinário, per-mitem ver as coisas de maneira nova ou diferente.Ela evoca a multiplicidade de "verdades" de que é-eito o universo dos sentidos. Como mostra KarstenHarries (1992) , o poder da metáfora reside "mais

na habilidade de revelar a inadeq uação da línguaque herdamos, das lentes através das quais vemos ascoisas. Revelando essa inadequação, a poesia resta-belece a fissura que separa as palavras das coisas, oconflito entre a língua e o que a transcende comoseu terreno e medida." (in Sacks, 1992: 173)

A capacidade de evocar visões duplas ouestereoscópicas também é fornecida pela ironia. Nassua origem, a ironia designava a arte de interrogar,com o fim de estimular a "rn a iê ut ica" ou osurgimento de idéias. Ela consistia em propor ques-tões aparentemente ingênuas ao interlocutordesavisado, a fim de confundí-lo e forçá-Io a pensarem seus próprios argumentos (Moisés, 1995:295).Como forma de apreensão da realidade, pode-sedizer que constitui-se uma epistemologia, além deuma prática persuasiva. Modernamente, a ironia éentendida como figura do pensamento e da palavraque consiste em dizer o contrário do que se pensa.Do ponto de vista de sua estrutura, ainda segundoMoisés, a ironia situa-se entre duas realidades, nolimiar entre conteúdos distintos. Ela pressupõe queo interlocutor, embora não venha a compreender amensagem de imediato, seja capaz de reconhecê-Iaatravés de uma análise mais atenta das palavras e deseu contexto de uso. Desse modo, a ironia mostra-se como importante instrumento de conscientização,já que supõe a admissão da potencialidade de men-tira implícita na linguagem. A idéia de negatividadepresente na ironia, literária portanto, é comparti-lhada pela prática científica, principalmente noâmbito das disciplinas humanas.

Os estudos literários têm distinguido pelomenos dois tipos de ironia: uma dita ironia retórica,e outra, chamada de ironia romântica, porqueforjada a partir dos princípios filosóficos doromantismo ( mas não restrita à literatura românticapropriamente dita). Na ironia retórica, identificadacom a sátira, o locutor espera que o receptordecodifique a mensagem que já está pronta e que olocutor concebe como "correta" ou "verdadeira". Seucaráter é mais monológico e mais autoritário, umavez que o receptor deve apreender o sentido ou opartido do ironista e não, criar um sentido. Ou seja,nesse tipo de ironia, há maior passividade do receptore a mensagem é aceita sem contradição. No caso da"Modesta Proposta" de Swift, onde o narrado r

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propõe a criação e o abate de criancinhas para oproblema da fome dos pobres da Irlanda, o efeitoirônico decorre da discordância de vozes entre onarrado r e o autor. Também é o caso da "Teoria doMedalhão" de Machado de Assis, que apresenta osinsólitos conselhos de um pai ao seu filho de vinteum anos. No diálogo, o experiente pai, representanteda classe senhorial do II Império, define as condiçõesa serem observadas pelo jovem a fim de alcançar oprestigiado destino de "medalhão" na sociedadebrasileira oitocentista. Entre os requisitos para abrilhante carreira, está a de não nutrir idéias, nemestimular quaisquer capacidades intelectuais:

Tu, meu filho, se não me engano, pareces dotadoda peifeita inópia mental conveniente ao uso des-te nobre oficio. Não me refiro tanto à fidelidadecom que repetes numa sala as opiniões ouvidasnuma esquina, e uice-uersa, porque essefato, postoindique certa carência de idéias, ainda assim podenão passar de uma traição da memána. Não; refi-ro-me ao gesto correto e perfilatÚJ com que usasexpender fancamente as tuas simpatias ou antipa-tias acerca tÚJcorte de um colete, das dimensões deuma chapéu, do ranger ou calar das botas novas.Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperan-ça. No entanto, podendo acontecer que, com a ida-de, venhas a ser afligido de algumas idéias própri-as, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéiassão de sua natureza espontâneas e súbitas; por maisque as sofeemos, elas irrompem e precipitam-se.Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extre-mamente delicado, distingue o medalhão comple-to do medalhão incompleto. ( 1986, 290)

A ironia, advinda da clara oposição entre osvalores do autor e os de seu personagem, permite aocontista firmar sua visão crítica sobre a sociedadedo seu tempo, marcando seu ponto de vista comomais verdadeiro, e mais nobre. O leitor é conduzidoa compartilhar essa "leitura", presumidamente aleitura correta. Nessa ironia, apesar da feroz crítica àsociedade, não haveria uma verdadeira ruptura comela, já que o autor busca apoio c reforço às suas idéiasjunto a essa mesma sociedade (Duarte, 1994).

No romantismo, os pressupostos são aoposição entre indivíduo e sociedade e avalorização da subjetividade negada pelo sistema.Esses princípios levam ao reconhecimento do eue da opinião individual e, portanto, à valorizaçãodo outro (como um outro eu) e à busca dodiálogo. O escritor se dá conta da impossibilidadede um relato completo da realidade, para alémdas subjetividades que a constróem. Comoconseqüência, o eu enunciador torna-se maisvisível e passa-se a admitir o caráter ficcional ouconstrutivo da obra. Na concepção da ironiaromântica, esta surge como atitude crítica, que,no texto, se apresenta como contradições eambigüidades na trama e uma freqüente referênciaà própria construção textual. Como mostra LéliaDuarte, é assim que certos contos de GuimarãesRosa e de Machado de Assis? evocam o trabalhode construção da própria narrativa que estão afazer. Ao invés de antífrases com significadosdefinidos (e freqüenremente opostos), o queaparece é a falta de sentido prévio que deverá serconstruído pelo leitor ativa e criativamente. Nessecaso, a ironia traduz uma forma de concepção doreal: que ele é inventado (e não dado àconsciência), que é múltiplo (que não há sentidos"melhores" ou "mais verdadeiros" que os outros)e que não está sujeito à imitação pela consciência(que o literário - ou o científico - não é mimesedo real). A obra de arte deixa de ser a representaçãotal e qual da realidade, para ser o lugar daduplicidade, da polissemia, da ambivalência:

Na ironia romântica, não são apenas as narra-tivas como tais que são irônicas, mas é o sujeitoque as enuncia que assume atitude ironicamen-te crítica em relação ao mundo, a si próprio e aoque cria. Ao reconhecer aspectos de outridade dedistintos sujeitos no sujeito individual, a ironiaestilhaça o isolamento ao qual a auto-consciên-cia aparentemente condena o sujeito, que reco-nhece poder atingir o mais alto apenas de formalimitada efinita, isto é, dialeticamente, atravésda ironia. (Duarte, 1994: 61)

, Como ilusrrações desse tipo de ironia, conferir o conto "Esses Lopes", incluído em Tutaméia, de Guimarães Rosa e "Missa do galo", deMachado de Assis, incluído em Páginas recolhidas.

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o humor funciona na ironia romântica comoveículo de construção da ambigüidade de vozes arrn de

(. ..) demonstrar a impossibilidade de estabele-cimento de um sentido claro e definitivo. A iro-nia romântica fundamenta-se ainda, certamen-te, na socrática, que usa o recurso da maiêuticapara levar o interlocutor à reflexão e ao conhe-cimento, através do processo de destruir qual-quer opinião isolada por colocd-la em contatocom um contexto mais amplo ou estranho eporapresentar sucessivas questões que não encon-tram respostas, mas vazios. Ao negar as pleni-tudes e as certezas, esse tipo de ato irônico abrebrechas conceptuais impossíveis de preencher,criando espaço para o outro sujeito, ointerLocutor. " (idem, ibidem: 62)

A reflexão sobre os modos de apreensãoartÍsticos, dessa forma, sugere a existência de pontosde convergência entre a Estética e uma Sociologiareflexiva de base herrnenêutica. O estudo maisminucioso dos processos cognitivos na arte poderácontribuir para a formulação de novos modelosepistemológicos e metodológicos para umasociologia cansada das limitações positivistas, masque também não deseja confundir-se com a artenem renunciar à sua função de teorização daconduta social.

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