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Primeiro capítulo do livro "Ponto Quarenta - a polícia civil de São paulo para leigos", de Roger Franchini

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ROGER FRANCHINI

PONTO QUARENTAA POLÍCIA CIVIL DE SÃO PAULO PARA LEIGOS

Edição do autorSão Paulo, fevereiro de 2009

À venda emwww.verbeat.org/blogs/cultcoolfreak/

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texto Roger [email protected]

Copyright © Roger Franchini, 2008

Texto registrado na Fundação BibliotecaNacional. Reproduzir esta obra – no todo ou emparte – só é permitido com a autorização do autor.

capa Tiago Casagrande , sobre foto do autorwww.verbeatblogs.org/bereteando

Este livro está à venda no site do autor:www.verbeatblogs.org/cultcoolfreak/

ATENÇÃOEsta é uma história de ficção, que só existe naimaginação do autor. Suas situações, nomes,personagens, etc., não têm nenhuma relação comfatos ou pessoas reais. Assim, qualquer semelhançacom a realidade terá sido mera coincidência.

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A todos os Policiais Civis deSão Paulo que persistem em não ceder à

sedutora tentação do crime.

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CORPO TORTO

O corpo da menina estava no bueiro haviapelo menos 20 horas. Foi o que o perito medissera. Ruiva, corpo magro e branco. A necroseo acometera de um tom azulado, congo blue.Cinco da tarde, hora mágica, a melhor luz parase imprimir na película. Não cheirava mal, masexalava um aroma estranho. Tinha os lábioscelestes, espumosos de saliva seca, escoriaçõesnos ombros e uma grande mancha roxaescorrida ao redor do pescoço. E que bunda!

“Gostosinha, hein?” – Enquanto coordenava ofotógrafo, o perito parecia não ter crises moraisem admirar o belo trabalho da paleta de coresconstruída pelo óbito na pele da menina.

“Era” – respondi, criando a coragem necessá-ria para me aproximar do corpo.

Ainda não sei se os momentos que antece-diam meu primeiro contato com cadáveres tra-ziam alguma espécie de temor, devido à inquie-tação que inflava meu coração. O medo me pre-

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enchia com uma insegurança imatura diante deum perigo que ainda não conhecia.

Quando se concretizava a primeira visão domorto era diferente, tudo se transformava.Era curiosidade, horror e pena.

Ao revistar os bolsos traseiros de sua calçajeans justa, notei que seus músculos aindaresistiam ao rigor da morte. Macia e gelada,como esperava que estivesse.

“Giovana Purccini, 14 anos, mora na Vila Maria-na.” Dei muita sorte, encontrei a carteira com RGe documentos da escola. Já sabia quem era amoça. Metade do trabalho realizado. Bastava ago-ra contatar família e descobrir o motivo de elater morrido. Pensei em crime passional, poisaquele local da movimentada avenida 23 de Maionão era ponto de garotas de programas quearrumam confusões a ponto de serem mortas.

O delegado era quem deveria estar ali, fazen-do o teatrinho de cara de mau e representantedo Estado para todos perceberem nossa onipre-sença. Não eu. Pelo menos era assim que a leimandava. Mas esta lei já tinha setenta anos.Foi elaborada em uma época em que matar eraquase tão difícil para o bandido quanto para apolícia. Época em que a polícia militar era umexército de homens à disposição do governadordo Estado caso ele tivesse pretensões ditatoriaise separatistas. Quando o delegado detinha a mes-ma autoridade de um juiz de direito, com com-petência para decidir o destino de pessoas nocalor do crime. Era quem investigava e julgava.

Hoje não passam de agentes administrativos,

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que tentam reencontrar seus lugares na castada administração pública, perdida entre abusosde corrupção e violência. Muito mais políticosdo que policiais, precisam se manter longe deescândalos, agradar aos chefes do executivopara não perderem seus cargos de confiança.Incomodar pessoas poderosas com as investiga-ções não estava nos planos de nenhum delegadoque almejava sair da vala comum dos plantõesdos distritos policiais e seguir uma carreirarentável em departamentos. Para este trabalhoarriscado, surgiu a figura do investigador depolícia. Caso o trampo se aproximasse de inte-resses que deixariam o governador em mauslençóis, a cabeça desse funcionário era a primei-ra a cair. Poupava-se o delegado, o assinadorde inquéritos. Arruinava-se a vida pessoal doseu subalterno, sobre o qual recaía a culpa peloserros na condução da investigação. Era umtrabalho perigoso para quem não tinha pa-drinhos fortes o suficientes no governo. Mas va-lia a pena, em virtude do grande volume dedinheiro envolvido.

Olhei seu rosto uma última vez antes que acolocassem no caixão de fibra de vidro. Quempoderia matar uma doçura de quinze anos? Su-tiã de fitas vermelhas. Quando a manobraram,sua calça apertada cedeu pouco abaixo da linhada cintura, deixando aparente sua calcinha derenda preta, tanga minúscula cavada. 14 anos?Seria uma mulher maravilhosa. Amaria, teriafilhos lindos.

* * *

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Depois de guardada a moça morta no baú docarro de cadáver, a caminho do DP, pensei nasaudade de Michelle, sentimento que ainda meenchia o saco.

Havia decidido que seria sozinho. Pareciacerto. Achava estúpidas as histórias de amoresintensos, ter e dizer o quanto alguém eraimportante para mim, que minha vida seriaincompleta se não estivesse determinada pessoaao meu lado. Besteira querer algo assim.Não haveria pessoas com paciência ou tempopara que isso existisse. Rocambulias do séculoXIX, novela pra agradar aos integrados à rotinacomer-cagar-transar-dormir. Tinha fé no corpoe nas sensações de descarga proteicas queproduziam resultados nos olhos, na pele, naboca. Saliva e sorriso faziam bem.

Então apareceu Michelle, quando a faculdadede direito estava indo por água abaixo por causade minhas faltas.

A polícia civil não é feita para quem querestudar. Seus horários eram regulados por umalei de 1968, que riam das regras da organizaçãomundial do Trabalho e da Constituição Federal.Acredito que naquela época os delegados einvestigadores estavam mais interessados emmatar e arrecadar do que fazer mestrado. E parameu azar, quando virei policial já estava nosegundo ano.

A necessidade de dinheiro para terminar osestudos, aliada a uma vontade de poder fazer omundo menos injusto, empurrou-me para adelegacia. Mas depois que passei no concurso

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notei que os horários dos plantões eram incom-patíveis com qualquer intenção de estudar.

E os delegados com os quais trabalhei nãotinham a mínima vontade de ajudar. Outroscolegas da minha turma de academia tiverammais sorte. Conheciam pessoas influentes naadministração e por isso foram alocados emdepartamentos especializados da polícia, nosquais trabalhavam dois dias por semana, seishoras por dia.

Eu, entre madrugadas não dormidas, tentavaa todo custo não ser reprovado. Insistia com osprofessores acerca da minha condição humi-lhante na polícia, e pedia novas chances deprovas e trabalhos.

E foi em uma dessas buscas por um professorpelos corredores da faculdade para pedir queme aplicasse outra prova – e me ajudasse nanota – que encontrei Michelle.

Ao bater na porta da sala do professor, umamenina de bochechas redondas e cabelos curtosme atendeu com um sorriso perturbador.

“Quero falar com o professor Sérgio. Ele está?”“Ele saiu e só volta na sexta da semana que vem.”Ela não precisava me olhar com toda aquela

alegria. Uma camiseta branca e justa desenhavaseus seios duros no corpo esguio. Fruta madura.

“Você deve ser o Vital. Ele me disse que viria. Sousua orientanda e ele pediu que lhe entregasse isso.”

Encolheu os dois ombros juntos ao rosto comum movimento divertido e me entregou opapel. Era um trabalho já preparado por ele queeu deveria fazer. “Teoria da Imputação objetiva”

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era o tema. Logo abaixo, um recado: “Ponderoque não se esqueça da atenção devida à Universidade(assim mesmo, em maiúscula), uma vez que se elafor bem conduzida poderá propiciar-lhe degrausainda mais interessantes. Leia Claux Roxin”.O professor Sérgio sempre teve boa vontade emme ajudar.

“Deve ser legal ser investigador.”Ela interrompeu minha primeira leitura no

papel do professor com essa frase, o que medeixou sem saber o que dizer. Por isso respondicom um sorriso de gratidão.

“Você deve me entregá-lo pronto até quarta-feira.”Percebi sua doçura em não querer demonstrarautoridade na solicitação. E também não pareciamais velha, mas já estava no mestrado. Os olhosazuis estavam sempre alegres. Todas asmulheres de olhos azuis me parecem maisnovas. Todas as mulheres da faculdade erammais novas para mim. Eram crianças perto dosmeus trinta.

“Você anda armado?”“Claro.”E apontei o volume da roupa que a pistola

fazia na parte de trás de minha cintura.“Por quê? Você não?”

Pude ver um pequeno furinho no canto de seusorriso. Depois desapareceu. Quando retorneina sexta com o trabalho pronto, ela não estava.Deixei o papel com a secretária do departamen-to de Direito Penal. O professor Sérgio nãoparecia ser do tipo que troca suas vagas nomestrado por trepadas com alunas. Passaram-

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se semanas, até que a encontrei numa festa quenão queria ir.

“Michelle?”“Oi, Vital. Veio armado?”Ela sorriu e colocou a mão na parte de trás de

minha cintura para sentir o volume gelado daarma.

“Não saio de casa sem ela. Por quê? Você não veio?”Perguntei sua cidade, de onde vinha aquele

sotaque quase carioca. Por que usava umaetiqueta de silicone com código de barras nobraço.

”Porque eu gosto.” Perguntei se já havia assisti-do O fabuloso destino de Amélie Poulain.Não tinha mais dúvidas, era a mulher maislinda do mundo.

“22.”“O quê, só isso, tá brincando, você fala como uma

mulher de 30 anos.” Silêncio e sorrisos. “Se bemque seu corpo é de uma mocinha de 17.”

Gostei quando ela perguntou meu telefonepara combinarmos de sairmos dia desses.Na ocasião, eu estava mudando de apartamentoe a linha telefônica não estava instalada. E seestivesse, provavelmente eu não ligaria, praevitar qualquer tipo de expectativa com relaçãoa pessoas estranhas. Mas me deu o número deseu celular.

“Te ligo nesse final de semana, Michelle.”“Faz isso sim.” E foi embora com seu grupo

de amigas, não tão bonitas quanto ela. No diaseguinte, mandei mensagens para seu celular.

“QUEM É VC?”

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“Sou o Vital. Desculpe, esqueci de por o nome”“Ah, como vai?”“bem, onde vc está, Michelle?”“Em casa, quer beber hj?”“Claro, onde?”“Vai dormir cedo?”“Depende de vc... rsrsrs”“Te ligo mais tarde entaum, tchau moço”Fomos andar pela Vila Madalena em uma

segunda à noite. Em um dos únicos restaurantesabertos, entramos apenas para comprar cigar-ros. Numa mesa, encontrei um antigo professore grande amigo de boteco, que bebia com outraspessoas. Ao me ver, sua embriaguez não medeixou recusar seu convite para sentarmos comeles, mesmo diante do constrangimento provo-cado por estar com ela ao meu lado. Ela pareciaconhecê-lo, provavelmente já fora sua alunatambém. Consultei se ela gostaria de ficar porali mesmo, e ela concordou. O professor sesurpreendeu quando nos viu juntos, achou quenós nos conhecíamos havia muito.

“Ah, a escolha certa. Você acertou, Vitinho. Michel-le é minha melhor aluna.” Ela abaixou os olhos.Parecia estar sem graça diante do elogio vindode alguém tão distantes dos seus 22 anos.“Escute aqui, Michelle, faça esse homem feliz, elemerece você. Hoje a noite, faça ele gozar como nunca.Sabe como faz, né?”

Merda, professor. Ainda não tinha pego namão dela. “Vocês terão filhos lindos.” Cala a boca,quer me matar de vergonha? Teria falado, seeu não estivesse rindo de seu jeito desajeitado

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de bêbado pegando em nossas mãos, unindo-nos feito um cânone barrigudo.

Achei graça de minha comparação momentâ-nea. Afinal, quantos padres são ateus materialis-tas? Mas não foi naquela noite que o desejo doprofessor aconteceu.

Apenas nos beijamos. Tão estranho o lugar,exposto, mas ela pediu. Não me convidou parair até seu apartamento. Compreensível.

Achei que não iríamos nos ver mais. Talvez ti-vesse ficado envergonhada por causa do profes-sor, ou me achara sem graça. Começava a sentirsua falta. Confesso que queria seu corpinho mir-rado mais uma vez, de curvas ternas e honestas.

Na noite seguinte ela foi até meu apartamen-to. Li Manuel Bandeira e o primeiro capítulode Trópico de Câncer (estava lendo na ocasião,vejam só). Gostou. Beijamo-nos. Menos estra-nho do que quando no restaurante. Estávamosmais à vontade, bem verdade. Cresciam as carí-cias. Foi então que me dei conta do que fazia.

Ela era muito jovem e evitava os toques maisíntimos. Não pelo receio comum dos desconhe-cidos que se encontram para sentir prazer.Mas porque tinha vergonha. Ruborizava, e davamuitas risadas, muitas. Achei que era por causade minha companhia agradável. Errei. Seu de-sespero a fazia se descontrolar. Confessou quenunca tinha sentido um homem dentro de si(não nesses termos, pois era bem menos pudicaque eu). Razoável, oras. Disse que ela estavacerta, que deveria fazer o que fosse o melhorpara sua cabeça.

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Bingo!Parece que achei as palavras corretas. Sorriu

tranquila, tirou a roupa com muita naturalidadee pediu paciência. Espantei-me, sim. Possuía ná-degas e coxas suculentas como nunca tinha vis-to. Duas glândulas rosa descansavam em gran-des peitos duros. Talvez homem nenhum tivessecolocado a boca ali. Que desperdício. Aos pou-cos percebi que quem nunca havia transado eraeu. Ela gemia de maneira que nunca tinha visto.Era dor. Dor de incomodar. Quis parar, eu quisparar.

“Calma, espera eu me ajeitar.”Com razão, eu precisava me acalmar. Achei

que ela fosse chorar. Tive medo que aquelaagressão dificultasse minha ereção. Controlei-me. Ela avançava com fúria. Doía em mimtambém.

Parou de repente. Respirava fundo. Seus olhosse contraíam em espasmos intermitentes. Os lá-bios se apertavam contentes. Eu, sujo de mucosae sangue, tentava entender o que ela fazia.Não respondia. Ficou assim até que seus olhosbrilharam. Sorriu com satisfação.

“Meu amor. Com o tempo fica melhor.”“Como você sabe disso? Pensei que nunca tivesse

transado.”“Li na revista Capricho.”Acabou por dormir lá em casa. Eu a envolvi

com meu corpo durante toda a noite. Acordeiantes, levei bolachas e iogurte para que comes-se. Sua boquinha demonstrava tanta felicidadeao mastigar que quase perdi a hora para traba-

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lhar. Pudesse, ficaria o resto de meus dias obser-vando Michelle dormindo nua em minha cama.

“Tenho que ir, senão o meu delegado liga.”“Posso estar aqui quando você voltar.”“Pode ficar o quanto quiser.”Que estranha força tem a mulher sobre nós.

Tudo o que pensava sobre solidão e pessoas eminstantes transformaram-se. Seria capaz de tra-tá-la como a pessoa mais importante do mundopra mim. Quanto carinho. Talvez pelo fato denunca ter feito nenhuma outra mulher gozarcom tanta facilidade. Que ótimo é isso. Decidi!Quero que ela goze todas as noites, e assim sereio homem mais feliz do mundo.

Na delegacia, dizia bom dia com mais tran-quilidade ao escrivão, ao PM zangado, aos ou-tros investigadores:

“Vital, teu homem taí. Se entregou essa madrugadadepois de tentar se matar no lago do parque Ibi-rapuera.”

“Que homem?”“O cara que matou a menina e a meteu no bueiro.

Tá na sala, conversando com o delegado. Matouporque ela não queria mais namorar com ele.”

“Ele só falou isso?”“Até agora, sim.”Pedro. Pedrinho era o nome do vagabundo.

Eram raras as vezes em que eu me envolvia comalguma investigação. Isso era trabalho para achefia, os investigadores do andar de cima,quando eles não estavam ocupados em arreca-dar fundos para a manutenção do DP e suasvidas particulares.

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Normalmente os investigadores do plantãoeram apenas porteiros de luxo. Mas quando oseu delegado queria tirar um serviço de algumbandido, era bom acompanhá-lo. Neste caso,seria delicioso passar a perna no departamentode homicídios e resolver essa morte antes deles.Significaria pontos para podermos nos movi-mentar dentro da estrutura da polícia. Se o dou-tor continuasse com essa ambição, e soubessese aliar a bons contatos, logo estaríamos em umlugar bem melhor do que a merda do plantão.

O Pedro não era da nossa área. Estavam fugin-do da família da moça para construírem umavida nova. No caminho, ela teria desistido, ten-tado voltar para casa e ele a enforcou com a cintaque usava.

Colocaram-no sentado na cadeira no meio dasala algemado com as mãos para trás. O delega-do falava baixinho em sua orelha, como se confi-denciasse algo secreto que só eles poderiamsaber, ao mesmo tempo em que lhe socava ococo da cabeça com a mão aberta. Era a maneiracom que ele mostrava ser o chefe das inves-tigações.

Na prática, delegados não entendem nada deinvestigação. Fazem o trabalho da burocraciade rotina, determinam diligências baseados nasinformações que os investigadores consegueme as formalizam. Sãos os tiras que estão na linhade frente, buscam testemunhas, sujam as mãosna ilegalidade, recolhem a mesada de bicheiros,donos de máquinas de bingos, puteiros eentregam a recolha do dinheiro ao delegado.

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Da sala do meu delegado de plantão, o di-nheiro subia para a sala do delegado titular, ede lá para o delegado seccional da região. Se-guia para o delegado geral de polícia, o secretá-rio de segurança e enfim o governador. Eu sópegava aquilo que aparecia de graça. Nunca iaatrás de nada. Ainda achava estranha essa coisade receber de bandidos para ele não ser pro-cessado.

Mas aqui no DP ninguém ousava lembrar aodelegado de que sua presença sempre foidispensável.

Era interessante presenciá-lo agredindo paratirar o serviço de alguém. Isso me tornava seucúmplice e assim era mais fácil pedir favores aele sem ter que me humilhar muito. E eu sempreprecisava sair mais cedo para assistir às aulas.Não que ele fosse meu amigo, tinha a certezaque se um dia ele tivesse que escolher entre aminha vida e a vida dele, eu estaria morto. Maspelo menos, dentro da delegacia, seríamosparceiros nos erros.

“Cansei Vital, ele é seu. Quando eu voltar querover este cassetete enfiado no cu dele” – disse, e saiuenxugando o suor da testa com a manga dacamisa.

“Tá bom.” Enquanto Pedro chorava, sentei-meao seu lado. “Conta pra mim, Pedro, como foi ahistória.”

“Já contei tudo, doutor.”Era triste e engraçado ver aquele homem

soluçar de medo. Cada vez que me aproximavaele se afastava. Isso era bom.

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“Enrolei a minha cinta no pescoço dela e puxei.Aí ela morreu. Matei porque ela queria voltarpra casa.”

“Só por causa disso?”“Mentira, Vital. Ele é um corno. A menina tava

saindo com um coroa cheio da grana.” – Era Sílvio,o outro investigador que estava sentado emfrente ao computador, jogando paciência. Nósjá sabíamos quase tudo da história. Fazíamosrepetir várias vezes para ver se existiam contra-dições.

“Você a matou dentro ou fora do bueiro?”“Lá dentro.”Sílvio, de um só movimento, saiu de trás de

sua mesa e despejou o punho fechado contra acabeça do rapaz algemado. Pedro tombou parafrente. Caiu da cadeira e eu o ajudei a levantar.

“Pedro.” – Quis acalmá-lo limpando o suor deseu rosto com uma flanela. – “Sabemos que vocêé pessoa de bem, não é?”

“Sim senhor, sou trabalhador.”“Às vezes a gente faz besteiras deste tipo. Tá se

vendo que você não é bandido. Diga pra mim. Ondevocê a matou?”

“Já falei doutor, no bueiro.”Só deu tempo pra me afastar e Sílvio nova-

mente lançou seu braço pesado no lombo domentiroso, seguido de um caloroso: “Filho daPuta!” Pedro mentia. O laudo da perícia consta-tou que ela sofreu violência sexual e arrasta-mento. Portanto, comprovou-se que ela tinhasido estuprada noutro lugar e levada para oburaco. O tamanho do bueiro não permitiria

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que eles fizessem sequer um “papai e mamãe”lá dentro.

“Olha pra mim, Pedro. Você não é bandido. Aqui,na Polícia, a gente só trabalha com bandido, genteruim. Como você quer ser tratado? De que maneiravocê quer conversar comigo? De homem pra homemou de Polícia pra Bandido? Ótimo! Pois bem, vocêsabe o que quero saber. Diga aquilo que nós queremosouvir. Não é flagrante. Você vai sair por aquela portaimediatamente depois de dizer tudo. Entendeu?”

“Eu não queria. Matei a mulher da minha vida,doutor. A gente tava esperando o ônibus pra ir prarodoviária e recomeçar a vida em outro lugar, nolitoral.” Era preciso ter paciência com a chora-deira do rapaz. Ele já tinha entrado no processode falar, agora precisávamos ter calma.

“Vocês foram transar no mato que cerca aavenida?”

“É. Começamos... mas aí... ela começou a falarcoisas feias.”

“Como o quê?”“Disse que estava com outro homem, e que ele era

melhor que eu.”Agora bastava. Além de corno o sujeito foi

ridicularizado por uma menina de 14 anos.“Eu quis provar pra ela que não. Ele era velho.

Sou jovem. E consigo fazer ela gozar. Consigo dartrês.” Silêncio. Sílvio olhou para mim querendorir. Mas havia um compromisso. Afinal, o idiotacolaborou e, além disso, conhecíamos aquelador de homem com o orgulho ferido.

“Ela disse que eu era fraquinho. Meu pau pequeno.Eu não aguentei, doutor. Ela começou a pedir para

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eu não fazer. Chorava. Gemia que nem criança. Elagemeu muito, doutor. Peguei minha cinta e enroleino pescoço dela. Ela foi parando de gemer devagar-zinho. Devagarzinho. Ai! doutor eu quero morrer.Ela gemeu até morrer.”

Como se pegasse um copo, agarrei sua grossatraqueia. Sua respiração foi desaparecendo esua pele foi se azulando. No limiar, soquei-lheo peito. Desmaiou. Esperamos até que acordas-se. Acordado, vomitou. O cheiro fedorento deseu líquido esparramado pela sala me deu omotivo necessário para chutar sua fuça. Caiucom o rosto voltado para o chão. Eu dava pulos,caindo com o pé direito em sua nuca. Chutavaseu rim.

Ele pedia desculpas entre gritos de soluço.Dizia que não sabia o que havia feito. “Desculpa,Gi, eu te amo. Eu te amo Gi, me leva com você, eunão quero mais viver. Matei a mulher da minhavida.” Percebi que começava a perder sanguepela boca.

Eu e Sílvio tínhamos uma ótima escala decoordenação. Enquanto eu atingia a cabeça dorapaz, ele se ocupava das partes inferiores. Sem-pre tomávamos o cuidado de não ferir partesmuito gordas ou moles, pois deixavam marcase o médico legista poderia reclamar. O objetivodas pancadas eram os ossos. Eu tinha preferên-cia pela nuca e o couro cabeludo. Era necessáriofazer com que todos os golpes fossem rápidoso suficiente para confundi-lo, a ponto de nãoter certeza quem lhe agredia. Não era tão doídoquando um golpe aplicado com o objetivo de

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realmente fazer doer. O maior ferimento era noego, porque a maior humilhação era a de seestar sendo agredido sem poder se defender.

Recomendo nunca bater até sua últimacapacidade de agredir. Caso o bandido sejaprofissional, ele saberá que, se aguentar aquelashoras de pancadas e não abrir o bico, o policialterá certeza de que não é o culpado. E não oincomodará tão cedo. Por isso, alguns criminososexperientes eram fortes o suficiente para seguraro serviço no pau-de-arara por uma noite inteira.A violência não fazia ninguém confessar, se ocara estivesse decidido a não fazer. Entre apanharda polícia e morrer na mão de outros criminososdelatados, a segunda opção é menos querida.

E eles sabiam que, durante um interrogatório,dificilmente morreriam nas mãos da polícia.Poderiam apanhar muito, mas morrer, não. Paraevitar essa defesa, havia aprendido que deveriademonstrar ao mala ser muito mais louco do queviolento. Cuspia em sua cara. Sufocava-o comuma sacola de supermercado e espirrava gáspimenta dentro. Atirava dentro da sala. Tiravasua roupa. Apesar de todo esse know how, eunão gostava de bater. Na frente de outros políciasaté mostrava um anseio pela pancada. Mas erasó para não perder o respeito na delegacia.Quando ia pendurar o suspeito para tirar algumserviço, quem apanhava sempre sabia até ondeeu chegaria. Mas quando eu era maluco, nem eusaberia do que seria capaz. Mesmo que estivessefingindo. Eu só batia quando tinha certeza daculpa. Como agora.

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Sílvio me acompanhou. Pegou o cassetete,abaixou as calças de Pedro, fez o pedido doDelegado e foi chamá-lo. Após algumas horasassim, com a borracha dentro de seu corpo,Pedrinho lembrou-se de mais detalhes. Acheique não seria necessário pendurá-lo para ochoque. O infeliz não era da bandidagem. Nãoservia para ser gente ruim. Chorava, tremia.

Após meia hora com a borracha preta dentrode si, confessou que estava ganhando umdinheirinho agenciando Giovana.

Mas depois de alguns clientes, ela conheceuum senhor rico, e se apaixonaram. O velhocertamente era muito mais carinhoso do que osoutros frequentadores e Giovana estava encan-tada por ele. Tudo confirmado pela família dela,e pelo próprio velho, que localizamos depois.Fato era que Pedro não gostou do rumo dahistória de sua namoradinha, quis levá-la paraSão Sebastião e ela tentou fugir.

* * *

No final do dia, ao abrir a porta da sala emcasa, Michelle veio em minha direção. Sorriu eme abraçou ternamente.

“Que saudades, querido. Demorou, senti suafalta. Vem.”

Fui arrastado para o sofá. Enquanto mebeijava, senti que seu corpo estava quente. Diziaque era só minha, que queria ser minha.Transamos muito. Dessa vez, nossos corpospareciam se acomodar com mais facilidade,apesar de ainda estranhar sua falta de

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habilidade em nos encaixar. Seu corpo erabranco, quase transparente.

Doce. Como era bom ter aquela menina ali.Faria tudo para nunca magoá-la. Até lhe dar ostapinhas na bunda que pediu.

“Com força, querido. É bom.”

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