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UFBA - DIREITO ADMINISTRATIVO Prof. Durval Carneiro Neto 1 SERVIÇOS PÚBLICOS Sumário : 1) Sentidos da terminologia “serviço público”: noção clássica, sentido lato e sentido estrito. Critérios orgânico, material e formal. 2) “Serviço público” como um conceito jurídico. 3) Distinção entre serviços públicos e outras atividades: serviços públicos industriais ou comerciais, atividades econômicas desempenhadas pelo Estado e atividades privadas sujeitas ao poder de polícia estatal. 4) Classificação. 5) Requisitos e princípios dos serviços públicos. 6) Titularidade e prestação dos serviços públicos. Execução Centralizada e Desconcentração. Descentralização Administrativa territorial, funcional e por colaboração. 7) Concessão de Serviço Público. Conceito e noções gerais. Forma e condições de outorga. Prazo e prorrogação. Poderes do concedente. Direitos do concessionário. Tarifas e outras receitas. Direitos dos usuários. Formas de extinção e seus efeitos. Reversão de bens. Composição patrimonial. Responsabilidades por danos. 8) Parcerias Público-Privadas Concessão Especial. 9) Permissão de Serviço Público. 10) Autorização de serviço público. 11) Formas associadas de gestão de serviços públicos: Convênios e Consórcios. 12) Distinção entre a delegação de serviço público e a terceirização na Administração Pública. 13) Divergências doutrinárias sobre a existência de outras espécies de delegação de serviços públicos. 14) A situação jurídica do usuário de serviço público. 15) Fomento Público e as entidades paraestatais (“terceiro setor”). Distinção entre serviços públicos e serviços privados de interesse público (“serviços públicos impróprios”). Serviços Sociais Autônomos. As Organizações Sociais (OS). As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Os Entes de Apoio a entidades públicas. 1) SENTIDOS DA TERMINOLOGIA “SERVIÇO PÚBLICO”. Inicialmente, cumpre examinar os sentidos da terminologia “serviço público”. A palavra “serviço”, em sentido genérico, indica uma prestação, um ato ou efeito de servir. No período da escola francesa clássica, também chamada Escola do Serviço Público ou Escola de Bordeaux, o termo serviço público era tomado em um sentido amplo, “para abranger toda e qualquer atividade realizada pela Administração pública” 1 , época em que “não haveria como distinguir os serviços públicos das atividades legislativas e judiciárias, nem, tampouco, das demais atividades administrativas, como as de polícia, de ordenamento econômico, de ordenamento social e de fomento público”. 2 Para Gaston Jéze, a prestação de serviço público era a única atividade do Estado, ao passo que Léon Duguit dizia tratar-se da atividade primordial do Estado. “Outros, com o mesmo entendimento, passaram a dizer que a presença do Estado não se justificaria senão para prestá-los. Assim, o oferecimento de serviços públicos seria a única razão a justificar a existência do Estado”. 3 Este sentido amplo não mais se adeqüa à atual realidade, eis que, como diz Odete Medauar, “se esta fosse a concepção adeqüada, todo o direito administrativo conteria um único capítulo, denominado ‘serviço público’, pois todas as atividades da Administração aí se incluiriam”. 4 Hodiernamente, portanto, é preciso apontar de forma precisa um sentido estrito, “que discrimine satisfatoriamente as atividades prestadoras de serviços públicos de todas as atividades 1 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 5. ed. São Paulo: RT, 2001, p.367. 2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.415. 3 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.260. 4 MEDAUAR, op. cit., p.367.

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    SERVIOS PBLICOS

    Sumrio: 1) Sentidos da terminologia servio pblico: noo clssica, sentido lato e sentido estrito. Critrios orgnico, material e formal. 2) Servio pblico como um conceito jurdico. 3) Distino entre servios pblicos e outras atividades: servios pblicos industriais ou comerciais, atividades econmicas desempenhadas pelo Estado e atividades privadas sujeitas ao poder de polcia estatal. 4) Classificao. 5) Requisitos e princpios dos servios pblicos. 6) Titularidade e prestao dos servios pblicos. Execuo Centralizada e Desconcentrao. Descentralizao Administrativa territorial, funcional e por colaborao. 7) Concesso de Servio Pblico. Conceito e noes gerais. Forma e condies de outorga. Prazo e prorrogao. Poderes do concedente. Direitos do concessionrio. Tarifas e outras receitas. Direitos dos usurios. Formas de extino e seus efeitos. Reverso de bens. Composio patrimonial. Responsabilidades por danos. 8) Parcerias Pblico-Privadas Concesso Especial. 9) Permisso de Servio Pblico. 10) Autorizao de servio pblico. 11) Formas associadas de gesto de servios pblicos: Convnios e Consrcios. 12) Distino entre a delegao de servio pblico e a terceirizao na Administrao Pblica. 13) Divergncias doutrinrias sobre a existncia de outras espcies de delegao de servios pblicos. 14) A situao jurdica do usurio de servio pblico. 15) Fomento Pblico e as entidades paraestatais (terceiro setor). Distino entre servios pblicos e servios privados de interesse pblico (servios pblicos imprprios). Servios Sociais Autnomos. As Organizaes Sociais (OS). As Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIPs). Os Entes de Apoio a entidades pblicas.

    1) SENTIDOS DA TERMINOLOGIA SERVIO PBLICO. Inicialmente, cumpre examinar os sentidos da terminologia servio pblico. A palavra servio, em sentido genrico, indica uma prestao, um ato ou efeito de servir. No perodo da escola francesa clssica, tambm chamada Escola do Servio Pblico ou Escola de Bordeaux, o termo servio pblico era tomado em um sentido amplo, para abranger toda e qualquer atividade realizada pela Administrao pblica1, poca em que no haveria como distinguir os servios pblicos das atividades legislativas e judicirias, nem, tampouco,

    das demais atividades administrativas, como as de polcia, de ordenamento econmico, de ordenamento

    social e de fomento pblico.2 Para Gaston Jze, a prestao de servio pblico era a nica atividade do Estado, ao passo que Lon Duguit dizia tratar-se da atividade primordial do Estado. Outros, com o mesmo entendimento, passaram a dizer que a presena do Estado no se justificaria seno para prest-los. Assim, o oferecimento de servios pblicos seria a nica razo a

    justificar a existncia do Estado.3 Este sentido amplo no mais se adeqa atual realidade, eis que, como diz Odete Medauar, se esta fosse a concepo adeqada, todo o direito administrativo conteria um nico captulo, denominado servio pblico, pois todas as atividades da Administrao a se incluiriam.4 Hodiernamente, portanto, preciso apontar de forma precisa um sentido estrito, que discrimine satisfatoriamente as atividades prestadoras de servios pblicos de todas as atividades

    1 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 5. ed. So Paulo: RT, 2001, p.367. 2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.415. 3 GASPARINI, Digenes. Direito Administrativo. 7. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p.260. 4 MEDAUAR, op. cit., p.367.

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    jurdicas, que cumpre ao Estado desempenhar, na expresso do poder, que lhe imanente, de instituir,

    preservar e aprimorar sua ordem jurdica, bem como das atividades sociais. Na busca de um sentido estrito, para que se pudesse enquadrar determinado servio como sendo um servio pblico, passou-se inicialmente a apontar trs elementos de identificao: orgnico, material e formal. Tais elementos serviam para qualificar o servio pblico no primeiro momento do Estado liberal, em que o servio pblico abrangia as atividades de interesse geral, prestadas pelo Estado sob regime publicstico.5 Pelo elemento orgnico, tambm chamado de subjetivo, seria servio pblico todo aquele prestado pelo Estado. Este critrio mostrou-se falho ao longo do tempo, porquanto nem todo servio hoje prestado pelo Estado pblico, como ocorre quando o Estado explora atividades econmicas em concorrncia com os particulares ou sob regime de monoplio, atividades estas que Celso Antnio qualifica como servios governamentais e se sujeitam a regras do Direito Privado. De outra parte, h servios que, mesmo no prestados diretamente pelo Estado, so considerados servios pblicos e, como tal, sujeitos ao regime jurdico administrativo, como ocorre com as empresas concessionrias de servios pblicos, as quais prestam atividade delegada pelo Estado. Pelo elemento material, tambm chamado de objetivo, levava-se em conta o beneficirio do servio como sendo a coletividade, de acordo com o interesse geral dos administrados. Aqui igualmente surgiu uma falha, pois h atualmente servios que, mesmo sendo de interesse coletivo, no so considerados servios pblicos. Assim, v.g., quando o Estado exerce uma atividade econmica, ainda que a considere de relevante interesse coletivo (CF, art.173), no estar desempenhando um servio pblico. Ademais, h inmeros servios de interesse geral que so autorizados iniciativa privada sem que sejam qualificados como servios pblicos, tal como ocorre nas reas de sade e educao. Por fim, pelo elemento formal, o servio pblico assim se qualificaria quando prestado sob regime jurdico de Direito Pblico. Ocorre que as atividades administrativas so prestadas sob os mais diversos regimes, ou seja, no existe propriamente um regime de Direito Pblico aplicvel a todas elas, mas, sim, regimes em que varia o grau de incidncia de normas de Direito Pblico e de Direito Privado, a depender da atividade. Se o predomnio for de normas que exorbitem daquelas comumente aplicadas esfera privada, levando em conta primordialmente o interesse da coletividade, estar-se- diante de uma atividade administrada. Porm, mesmo as atividades privadas esto sujeitas, em algum grau, a normas de Direito Pblico (como, por exemplo, s referentes fiscalizao do poder de polcia). Registre-se, ademais, que nem todas as atividades administrativas (regime predominantemente pblico) so servios pblicos, como acontece, v.g., quando o Estado constri uma obra pblica ou exercita uma funo inerente ao seu poder de polcia. Os regimes destas atividades administrativas, apesar de pblicos (marcados pela predominncia de normas de Direito Pblico), tm distintas peculiaridades. Celso Antnio bem aponta a diferena entre essas categorias do Direito Administrativo: 5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13. ed. So Paulo: Atlas, p.94.

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    Em linguagem leiga, costuma-se designar como servio tudo aquilo que o Estado faz ou, pelo menos, toda atividade administrativa por ele desempenhada. Assim, por exemplo, a construo de uma estrada,

    de uma ponte, de um tnel, de um viaduto, de uma escola, de um hospital, ou a pavimentao de uma

    rua podem aparecer, na linguagem corrente, como sendo um servio que o Estado desempenhou. Juridicamente, entretanto, so obras pblicas. Assim tambm, eventualmente, sero designadas como

    servios, ou mesmo, servios pblicos, atividades tpicas de polcia administrativa. Do mesmo modo, o rtulo servio pblico, ainda que acrescido do qualificativo industrial, ou comercial ou econmico, algumas vezes adotado para referir atividades estatais regidas fundamentalmente pelo Direito Privado, isto , as concernentes explorao estatal de atividade econmica. Para o Direito,

    entretanto, estes vrios tipos de atividades so perfeitamente distintos entre si, pois cada qual est sujeito

    a um regime diverso. (...) De fato, servio pblico e obra pblica distinguem-se com grande nitidez,

    como se v da seguinte comparao: a) a obra , em si mesma, um produto esttico; o servio uma

    atividade, algo dinmico; b) a obra uma coisa: o produto cristalizado de uma operao humana; o

    servio a prpria operao ensejadora do desfrute; c) a fruio da obra, uma vez realizada, independe

    de uma prestao, captada diretamente, salvo quando apenas o suporte material para a prestao de

    um servio; a fruio do servio a fruio da prpria prestao; assim, depende sempre integralmente

    dela; d) a obra, para ser executada, no presume a prvia existncia de um servio; o servio pblico,

    normalmente, para ser prestado, pressupe uma obra que lhe constitui o suporte material.(...) Enquanto o

    servio pblico visa a ofertar ao administrado uma utilidade, ampliando, assim, o seu desfrute de

    comodidades, mediante prestaes feitas em prol de cada qual, o poder de polcia, inversamente

    (conquanto para a proteo do interesse de todos), visa a restringir, limitar, condicionar, as

    possibilidades de sua atuao livre, exatamente para que seja possvel um bom convvio social. Ento, a

    polcia administrativa constitui-se em uma atividade orientada para a conteno dos comportamentos

    dos administrados, ao passo que o servio pblico, muito ao contrrio, orienta-se para a atribuio aos

    administrados de comodidades e utilidades materiais.6 2) SERVIO PBLICO COMO UM CONCEITO JURDICO. Nesse passo, Maria Sylvia Di Pietro conclui que os trs elementos normalmente considerados pela doutrina para conceituar o servio pblico no so essenciais, porque s vezes falta um dos elementos

    ou at mesmo dois, da a sua definio de servio pblico como sendo toda atividade material que a lei atribui ao Estado para a exera diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de

    satisfazer concretamente s necessidades coletivas, sob regime jurdico total ou parcialmente

    pblico.7 Deveras, o conceito de servio pblico um conceito jurdico, ou seja, a lei que indicar os elementos que qualificaro o servio como pblico, excluindo-o, total ou parcialmente, do regime puramente privado e lhe submetendo o regime jurdico administrativo, em maior ou menor grau. Assim dispe o art.175, caput, da Carta Magna de 1988: Incumbe ao Poder Pblico, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concesso ou permisso, sempre atravs de licitao, a prestao de servios pblicos. Portanto, acrescenta Maria Sylvia Di Pietro: o Estado, por meio da lei, que escolhe quais as atividades que, em determinado momento, so consideradas servios pblicos; no direito brasileiro, a prpria Constituio faz essa indicao nos

    6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p.667-669. 7 DI PIETRO, op.cit., p.97/98.

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    artigos 21, incisos X, XI, XII, XV e XXIII, e 25, 2, alterados, respectivamente, pelas Emendas

    Constitucionais 8 e 5, de 1995; isto exclui a possibilidade de distinguir, mediante critrios objetivos, o

    servio pblico da atividade privada; esta permanecer como tal enquanto o Estado no a assumir como

    prpria; da outra concluso: o servio pblico varia no s no tempo, como tambm no espao, pois depende da legislao de cada pas a maior ou menor abrangncia das atividades definidas como

    servios pblicos.8 Trata-se de uma deciso poltica do legislador ao eleger quais atividades devero ser tratadas como servios pblicos, atribuindo a elas um regime exorbitante do regime comum das relaes privadas. Como acentua Celso Antnio, isso acontece quando, em dado tempo e lugar, o Estado reputa que no convm releg-las simplesmente livre iniciativa; ou seja, que no socialmente desejvel fiquem

    to s assujeitadas fiscalizao e controles que exerce sobre a generalidade das atividades privadas

    (fiscalizao e controles estes que se constituem no chamado poder de polcia.9

    Justamente pelo relevo que lhes atribui, o Estado considera de seu dever assumi-las como pertinentes a si prprio (mesmo que sem exclusividade) e, em conseqncia, exatamente por isto as coloca sob uma

    disciplina peculiar instaurada para resguardo dos interesses nelas encartados: aquela disciplina que

    naturalmente corresponde ao prprio Estado, isto , uma disciplina de Direito Pblico. (...) Servio

    pblico toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada satisfao da

    coletividade em geral, mas fruvel singularmente pelos administrados, que o Estado assume como

    pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faa as vezes, sob um regime de Direito

    Pblico portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restries especiais -, institudo em favor dos interesses definidos como pblicos no sistema normativo.10 Como dito, o legislador, com vistas a um servio potencialmente pblico, isto , que, por sua natureza, seja de interesse geral da coletividade, resolve regul-lo sob um regime jurdico prprio, que exorbita do regime privado, observados os ditames constitucionais. Com isso, podemos dizer que quanto maior for o nmero de servios considerados pelo legislador como servios pblicos, maior ser a abrangncia do Direito Administrativo e menor ser o alcance do Direito Privado, e vice-versa. Conforme salienta Toshio Mukai: O conceito de servio pblico varivel e flutua ao sabor das necessidades e contingncias polticas, econmicas, sociais e culturais de cada comunidade, em cada momento histrico, como acentuam os

    modernos publicistas. Pode-se dizer que o servio pblico decorre de uma necessidade pblica, que por sua natureza essencial, indispensvel e, em decorrncia, erigida pelo legislador como tal. O servio

    pblico, no sentido jurdico da expresso, s aparece quando o legislador o eleva a tal condio; at

    ento, o que h to somente um servio pblico potencial. Portanto, todas as atividades as tradicionalmente reservadas ao Estado e as de natureza industrial ou comercial de interesse geral e que visem suprir necessidades essenciais da coletividade, assumidas legalmente pela Administrao devem

    ser consideradas servios pblicos (servios pblicos administrativos ou servios pblicos industriais ou

    comerciais).11 8 Idem, p.84. 9 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.655. 10 Idem 11 MUKAI, Toshio. Concesses, Permisses e Privatizaes de Servios Pblicos. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 1998, p. 2 e 4.

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    Tal aspecto poltico na escolha dos servios pblicos tambm ressaltado por Odete Medauar, enfocando, ainda, a existncia de um ncleo pacfico dos servios pblicos: Ento como se pode caracterizar o servio pblico? Saber quando e por que uma atividade considerada servio pblico remete ao plano da concepo poltica dominante, ao plano da concepo

    sobre o Estado e seu papel. o plano da escolha poltica, que pode estar fixada na Constituio do pas,

    na lei e na tradio. A Constituio ptria considera como servios pblicos, por exemplo: o transporte

    coletivo, no art.30, V; servios telefnicos, telegrficos, no art.21, XI; energia eltrica, no art.21, XII, a.

    Por sua vez, a Lei federal 9074, de 07.07.1995, indica os servios federais de barragens, conteno,

    eclusas, diques e irrigaes como servios pblicos. Tradicionalmente existe o chamado ncleo pacfico dos servios pblicos: gua, luz, iluminao pblica, coleta de lixo, limpeza de ruas, correio. Finalidades diversas levam a considerar certa atividade como servio pblico, dentre as quais: retirar da

    especulao privada setores delicados; propiciar o benefcio do servio aos menos favorecidos; suprir

    carncia da iniciativa privada; favorecer o progresso tcnico.12 Invocamos mais uma vez o esclio de Celso Antnio para concluir que o servio pblico s existir se o regime de sua prestao for o regime administrativo, ou seja, se a prestao em causa

    configurar atividade administrativa pblica, em uma palavra, atividade prestada sob o regime de Direito

    Pblico.13 Existem servios que, por opo do legislador constituinte, j foram qualificadas como servios pblicos, no havendo como o Estado se esquivar de assegurar a sua adequada prestao, seja por ele prprio (diretamente), seja por um outro ente ao qual ele delegue a execuo (indiretamente). Nesse caso, a prpria Constituio j cria parmetros de Direito Pblico para a tais servios, de modo que no poder o legislador ordinrio dispor de modo diverso. Vale dizer, qualquer lei infraconstitucional que trate desse servio deve prever um regime predominante pblico. Da porque Celso Antnio fala em servios pblicos por determinao constitucional: A Carta Magna do Pas j indica, expressamente, alguns servios antecipadamente propostos como da alada do Poder Pblico federal. Sero, pois, obrigatoriamente servios pblicos (obviamente quando

    volvidos satisfao da coletividade em geral) os arrolados como de competncia das entidades

    pblicas. No que concerne esfera federal, o que se passa com o servio postal e o Correio Areo

    Nacional (art.21, X, da Constituio), com os servios de telecomunicaes, servios de radiodifuso

    sonora isto , rdio e de sons e imagens ou seja, televiso, servios e instalaes de energia eltrica e aproveitamento energtico dos cursos dgua, navegao area, aeroespacial, infra-estrutura aeroporturia, transporte ferrovirio e aquavirio entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que

    transponham os limites de mais de um Estado ou Territrio, transporte rodovirio interestadual e

    internacional de passageiros, explorao de portos martimos, fluviais e lacustres (art.21, XII, letras a a f), seguridade social (art.194), servios de sade (art.196), assistncia social (art.203) e educao (arts. 205 e 208). A enumerao dos servios que o Texto Constitucional considera pblicos no exaustiva.

    Ademais, muitos servios pblicos sero da alada exclusiva de Estados, Distrito Federal ou dos

    Municpios, assim como outros sero comuns Unio e estas diversas pessoas.14

    12 MEDAUAR, op. cit., p.369. 13 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.606-607. 14 Idem, p.670-671.

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    Alm desses servios pblicos j definidos antecipadamente na Constituio, poder o legislador ordinrio ainda criar outros que repute convenientes na sua respectiva esfera de atuao poltica (federal, estadual ou municipal). Por exemplo, uma lei municipal poder qualificar juridicamente como servio pblico o servio funerrio em determinada cidade, afastando tal atividade do regime privado e submetendo a sua prestao predominantemente a normas do Direito Administrativo. Assim ocorre na cidade de So Paulo. Todavia, importante destacar que o legislador no estar livre para qualificar qualquer atividade como sendo um servio pblico. Segundo Celso Antnio, h limites constitucionais para a caracterizao de um servio como pblico: realmente o Estado, por meio do Poder Legislativo, que erige ou no em servio pblico tal ou qual atividade, desde que respeito

    os limites constitucionais. Afora os servios pblicos mencionados na Carta Constitucional, outros

    podem ser assim qualificados, contanto que no sejam ultrapassadas as fronteiras constitudas pelas

    normas relativas ordem econmica, as quais so garantidoras da livre iniciativa.15 Como tambm assinala Lcia Valle Figueiredo, h servios que no podem ser pblicos por expressa proibio constitucional. o que se verifica do art.173 da Constituio Federal. So reservados

    iniciativa privada, a quem compete a atividade econmica.16 3) DISTINO ENTRE SERVIOS PBLICOS E OUTRAS ATIVIDADES. Convm no confundir os servios pblicos comerciais e industriais (que se submetem ao regime jurdico administrativo) com outras atividades similares prestadas por entes estatais a ttulo de interveno no domnio econmico. Apesar de ambos se situarem no mbito das relaes econmicas, so distintas as razes que levam o Estado a atuar em cada uma dessas reas. Nos servios industriais e comerciais, qualificados como servios pblicos pelo legislador, o Estado tomou para si a responsabilidade de sua efetivao, tendo em mira o destinatrio do servio, buscando com isso assegurar a sua prestao adequada e eficiente em prol da sociedade. J nas atividades industriais e comerciais desempenhadas pelo Estado na rea econmica, o Estado busca intervir no domnio econmico exclusivamente em razo de imperativos da segurana nacional ou relevante interesse coletivo, ou, ainda, porque a Constituio institui alguma espcie de monoplio por razes anlogas, conforme previsto nos arts.173 e 177 da Lei Maior. No so servios pblicos, no sentido jurdico do termo, ou seja, a sua prestao submete-se predominantemente a normas do Direito Privado, apesar de serem desempenhadas por empresas estatais (da porque so pessoas jurdicas de Direito Privado). A respeito desta distino, Maria Sylvia Di Pietro salienta que os servios comerciais e industriais podem ser prestados pelo Estado sob dois ttulos: como servios pblicos que lhe so atribudos por lei e que ele pode desempenhar diretamente ou por meio de concesso ou permisso, com

    base no art.175 da Constituio; como atividade econmica prpria da iniciativa privada e que o

    Estado ou assume em carter de monoplio, com base no art.177, ou exerce em carter de competio

    15 Ib idem, p.618. 16 FIGUEIREDO, Lcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. So Paulo: Malheiros, 2001, p. 79.

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    com a iniciativa privada, quando necessrio aos imperativos de segurana nacional ou a relevante

    interesse coletivo definido em lei, conforme previsto no art.173 da Constituio.17 Bazilli aponta que o servio industrial ou comercial apresenta um interesse pblico objetivo, na medida em que a atividade prestada pelo Estado contm em si mesma, pelas suas prprias

    caractersticas, claro interesse pblico, ou seja, de necessidade coletiva. J atividade econmica

    desenvolvida pelo Estado tambm apresenta interesse pblico, s que subjetivo, na medida em que

    depende da valorizao da Administrao; no traz em si mesma o interesse pblico; mas se lhe atribui

    um interesse pblico.18 Pertinente tambm a lio de Celso Antnio Bandeira de Mello, para quem a distino entre uma coisa e outra bvia. Se est em pauta atividade que o Texto Constitucional atribuiu aos

    particulares e no atribuiu ao Poder Pblico, admitindo, apenas, que este, excepcionalmente, possa

    empres-la quando movido por imperativos da segurana nacional ou acicatado por relevante interesse coletivo, como tais definidos em lei (tudo consoante dispe o art.173 da Lei Magna), casos em que operar, basicamente, na conformidade do regime de Direito Privado, evidente que em

    hipteses quejandas no se estar perante atividade pblica, e, portanto, no se estar perante servios

    pblicos.19 Por derradeiro, cumpre assinalar que existem ainda determinados servios de natureza privada, cuja prestao no cabe ao Estado, direta ou indiretamente, mas para os quais a lei prev autorizao pelo Poder Pblico, como ressalvado no art.170, pargrafo nico, da Constituio Federal: assegurado a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de rgos pblicos, salvo nos casos previstos em lei. Nesses casos, as regras do Direito Administrativo somente atuam no que concerne autorizao e eventual fiscalizao pelo Poder Pblico, segundo os parmetros de exerccio do seu poder de polcia. J no tocante ao desempenho da atividade, prestao do servio em si mesmo, aplicam-se as regras do Direito Privado. o que ocorre, por exemplo, com os servios das auto-escolas para fins de habilitao de motoristas, bem como com os servios prestados pelas empresas de vigilncia. Trata-se de atividades eminentemente privadas cujo exerccio, todavia, depende de autorizao do Estado por razes de segurana. No so servios pblicos no sentido tcnico da palavra, porquanto no se submetem s regras e princpios que consubstanciam o regime jurdico administrativo. Em suma, com amparo na doutrina de Celso Antnio Bandeira de Mello, para se saber se determinada atividade de alcance coletivo ou no um servio pblico (no sentido jurdico do termo), deve-se ter em mente as seguintes situaes sujeitas a regimes jurdicos distintos:

    17 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parceiras na Administrao Pblica. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2002, p.43. 18 BAZILLI, Roberto Ribeiro. Servios Pblicos e Atividades Econmicas na Constituio de 1988, RDA, 197:15-6. 19 Op. cit., p.611-612.

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    SO SERVIOS PBLICOS:

    1) Servios pblicos por determinao constitucional previstos nos arts. 21, 26, 30, 194, 196, 203, 205, dentre outros, da Constituio Federal de 1988.

    1.1) de titularidade exclusiva do Estado, mas cuja prestao pode ser delegada iniciativa privada na forma do

    art.175 da Carta Magna (concesses ou permisses), porque a prpria CF assim o prev. Exemplos:

    telecomunicaes e energia eltrica (art.21, XI e XII).

    1.2) de titularidade exclusiva do Estado e cuja prestao no pode ser delegada iniciativa privada (s pode ser

    prestado por ente estatal), porque a CF silenciou a respeito. Exemplos: servio postal e correio areo nacional

    (art.21, X).

    1.3) de titularidade no-exclusiva do Estado, isto , a Carta Magna admite a existncia de servios privados da

    mesma natureza, podendo os particulares prest-los independentemente de concesso. So os chamados servios

    sociais. Exemplos: servios de sade, educao, previdncia e assistncia social (CF/88, arts. 196 a 213).

    2) Servios pblicos previstos em leis ordinrias, federais, estaduais ou municipais (desde que de acordo com a

    Constituio). So de titularidade exclusiva do Estado e podem eventualmente ter a prestao delegada

    iniciativa privada.

    NO SO SERVIOS PBLICOS:

    3) Servios prestados por entes estatais na rea econmica, por imperativo de segurana nacional ou relevante

    interesse coletivo (CF/88, art.173), ou em razo de monoplio estatal (CF/88, art.177).

    4) Servios prestados pela iniciativa privada na rea econmica, apenas sujeitos ao poder de polcia do

    Estado (licenas e autorizaes) CF/88, art.170.

    5) Servios prestados por particulares, em carter assistencial e sem fins lucrativos, mediante incentivos

    dados pelo Estado (fomento pblico) entes do terceiro setor.

    4) CLASSIFICAO DOS SERVIOS PBLICOS. Reportando-nos s lies de Digenes Gasparini, os servios pblicos podem ser classificados sob os seguintes critrios: a entidade a quem foram atribudos, a essencialidade, os usurios, a obrigatoriedade da utilizao e a execuo.20 Quanto entidade a quem foram atribudos, tem-se os servios federais, estaduais, distritais e municipais. A competncia para a prestao de servios pblicos decorre da repartio de competncias prevista na Constituio Federal. Alm dos servios pblicos de competncia

    exclusiva, h servios concorrentes (por exemplo: assistncia mdica) e servios passveis de

    delegao.21 Os servios pblicos federais so aqueles de competncia da Unio, conforme a Constituio Federal, como, por exemplo, o servio postal (art.21, X); os servios de telecomunicaes

    20 GASPARINI, Digenes. Direito Administrativo. 7. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p.265. 21 MEDAUAR, op. cit., p.372.

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    (art.21, XI); radiodifuso sonora e de sons e imagens (art.21, XII, a); servios e instalaes de energia eltrica e aproveitamento energtico de cursos de gua (art.21, XII, b); a navegao area, aerospacial e infraestrutura porturia (art.21, XII, c); os servios de transporte ferrovirio e aquavirio entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Territrio (art.21, XII, d); os servios de transporte rodovirio interestadual e internacional de passageiros (art.21, XII, e); os portos martimos, fluviais e lacustres (art.21, XII, f); os servios nucleares de qualquer natureza (art.21, XXIII). Os servios pblicos estaduais decorrem da competncia remanescente dos Estados para instituir modalidades de servios que no lhes sejam, explicita ou implicitamente, vedados (CF, art.25, 1). Alm disso, cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concesso, os servios locais de gs canalizado (art.25, 2), bem como, mediante lei complementar, instituir regies metropolitanas, aglomeraes urbanas e microrregies, constitudas por agrupamentos de Municpios limtrofes, para integrar a organizao, o planejamento e a execuo de funes pblicas de interesse comum (CF, art.25, 3). Os servios pblicos municipais so genericamente considerados aqueles de interesse local, includo o de transporte coletivo, que tem carter essencial (CF, art.30, V). O interesse local deve ser considerado como o predominante e no exclusivo, para efeito de caracterizao da

    competncia em cada caso, mxime ao se contar com as constantes alteraes tecnolgicas, sempre

    incidentes na evoluo dos servios pblicos, que podem alterar escalas econmicas e transformar, em

    pouco tempo, um servio tipicamente local num servio que s poder vir a ser prestado eficientemente

    com extenso regional ou, mesmo, nacional.22 Quanto ao objeto, alguns doutrinadores subdividem os servios pblicos em trs categorias: servios administrativos, servios comerciais ou industriais e servios sociais. Servios administrativos so os que a Administrao Pblica executa para atender s suas necessidades internas ou preparar outros servios que sero prestados ao pblico, tais como os da

    imprensa oficial, das estaes experimentais e outros dessa natureza (...) Servio pblico comercial ou industrial aquele que a Administrao Pblica executa, direta ou indiretamente, para atender a

    necessidades coletivas de ordem econmica. (...) no se confundem com a atividade econmica que s

    pode ser prestada pelo Estado em carter suplementar da iniciativa privada. (...) Servio pblico social

    o que atende a necessidades coletivas em que a atuao do Estado essencial, mas que convivem com a

    iniciativa privada, tal como ocorre com os servios de sade, educao, previdncia social, cultura, meio

    ambiente; so tratados na Constituio no captulo da ordem social e objetivam atender aos direitos

    sociais do homem, considerados direitos fundamentais pelo artigo 6 da Constituio.23 Quanto essencialidade, os servios podem ser essenciais e no essenciais, conforme haja qualificao em lei, expressa ou implicitamente tendo em vista a prpria natureza dos servios. Pensamos que a distino entre uma e outra categoria no to ntida como a doutrina costuma apontar. Afinal de contas, a essencialidade parece ser a marca caracterstica de todo e qualquer servio pblico, razo pela qual o Estado tomou para si a titularidade do servio. Vale dizer, se servio pblico porque o legislador j o considerou essencial para o bem estar da coletividade. No obstante, as distines apontadas pela doutrina levam em conta o grau de essencialidade, que, de fato, bem alto em determinados

    22 MOREIRA NETO, op. cit., p.422. 23 DI PIETRO, op. cit., p.97-99.

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    servios e no tanto em outros. Uma das utilidades desta classificao diz respeito aos parmetros do direito de greve no servio pblico, tendo em mira o atendimento de necessidades inadiveis da populao, consoante destaca Digenes Gasparini: So essenciais os assim considerados por lei ou os que pela prpria natureza so tidos como de necessidade pblica, e, em princpio, de execuo privativa da Administrao Pblica. So exemplos os

    servios de segurana nacional, de segurana pblica e os judicirios. Os Municpios, cremos, no tm

    servios que, pela prpria natureza, possam ser considerados de necessidade pblica e, como tal, em

    tese, de execuo exclusiva da Administrao municipal, mas tm o servio de transporte coletivo, que,

    nos termos do art.30, V, da Constituio da Repblica, de carter essencial. So no essenciais os

    assim considerados por lei ou os que, pela prpria natureza, so havidos de utilidade pblica, cuja

    execuo facultada aos particulares. Se preferir, so os que no so de execuo privativa da

    Administrao Pblica, por exemplo, os servios funerrios. Os essenciais, em princpio, no podem ser

    executados por terceiros. O mesmo no ocorre com os no essenciais, cuja execuo no s pode como,

    em alguns casos, at permitida e desejada. Essenciais, por fim, diga-se, so os servios que no podem

    faltar. A natureza do servio os indica e a lei os considera como indispensveis vida e convivncia

    dos administrados na sociedade, como so os servios de segurana externa, de segurana pblica e os

    judicirios. Para fins do exerccio do direito de greve, outros servios e atividades so considerados

    essenciais, consoante estabelece o art.10 da Lei federal n. 7783, de 28 de junho de 1989, que dispe

    sobre o exerccio do direito de greve, define as atividades essenciais e regula o atendimento das

    necessidades inadiveis da comunidade.24 Quanto aos usurios, os servios sero gerais (uti universi) e singulares (uti singuli). Os gerais so indivisveis, pois atendem a toda a populao de forma indeterminada (v.g. segurana pblica, coleta de lixo, limpeza de ruas, iluminao pblica). Os singulares so divisveis, pois satisfazem usurios determinados que os fruem individualmente (v.g. telefonia, servio postal, gua, gs canalizado). Servios uti singuli so aqueles que tm por finalidade a satisfao individual e direta das necessidades dos cidados. Pelo conceito restrito de servio pblico adotado por Celso Antnio

    Bandeira de Mello, s esta categoria constitui servio pblico: prestao de utilidade ou comodidade

    fruvel diretamente pela comunidade. Entram nessa categoria determinados servios comerciais e

    industriais do Estado (energia eltrica, luz, gs, transportes) e de servios sociais (ensino, assistncia e

    previdncia social). Os servios uti universi so prestados coletividade, mas usufrudos apenas

    indiretamente pelos indivduos. o caso dos servios de defesa do pas contra o inimigo externo, dos

    servios diplomticos, dos servios administrativos prestados internamente pela Administrao, dos

    trabalhos de pesquisa cientfica, de iluminao pblica, de saneamento.25 Quanto obrigatoriedade da utilizao, os servios so compulsrios e facultativos. Os compulsrios so impostos aos administrados de forma no voluntria (v.g. coleta de lixo, esgoto). Os facultativos so colocados disposio dos usurios (v.g. transporte coletivo). Compulsrios so os impingidos aos administrados, nas condies estabelecidas em lei, a exemplo dos servios de coleta de lixo, de esgoto, de vacinao obrigatria, de internao de doentes portadores de

    doenas de carter infectocontagioso. Facultativos so os colocados disposio dos usurios sem lhes

    impor a utilizao, a exemplo do servio de transporte coletivo. Os compulsrios, quando remunerados,

    24 GASPARINI, op. cit., p.294. 25 DI PIETRO, op. cit., p.99.

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    o so por taxa, enquanto os facultativos o so por tarifa ou preo. O fornecimento dos compulsrios no

    pode ser interrompido, mesmo que no ocorra o oportuno pagamento, enquanto o fornecimento dos

    servios facultativos, ante a falta do pagamento correspondente, pode ser interrompido.26 Quanto forma de execuo, os servios so de execuo direta, quando prestados pelo prprio Estado, e de execuo indireta, quando prestados por terceiros em nome do Estado (concessionrios ou permissionrios). So de execuo direta os oferecidos pela Administrao Pblica por seus rgos e agentes; so de execuo indireta os prestados por terceiros. Assim, se prestados pelo Poder Pblico, so de execuo

    direta; se oferecidos por estranhos (concessionrios, permissionrios) aos administrados, so de

    execuo indireta. Qualquer servio, salvo, em tese, os essenciais, pode ser objeto de execuo indireta.

    Sobre os essenciais ou indisponveis, assegurou Jos Cretella Jnior que: A declarao do direito, a manuteno da ordem interna, a defesa do Estado contra inimigo externo e a distribuio de justia so

    servios pblicos que a nenhum particular podem ser outorgados.27 5) REQUISITOS E PRINCPIOS DOS SERVIOS PBLICOS. Os servios pblicos devem ser prestados aos usurios com a observncia dos requisitos da regularidade (padres de quantidade e qualidade), da continuidade (sucessivo e habitual, sem interrupes), da eficincia (bom resultado prtico e satisfao do usurio), da segurana (sem riscos para os usurios), da atualidade (equipamentos modernos e conservados, adaptados aos avanos tecnolgicos da modernidade), da generalidade (servio igual para todos), da cortesia (bom tratamento) e da modicidade (baixo custo, compatvel com o servio). Estes requisitos esto enumerados no art.6, 1, da Lei 8987/95. Convm transcrever a lio de Celso Antnio Bandeira de Mello acerca dos princpios do servio pblico, que se constituem no aspecto formal do conceito e compe o seu regime jurdico: 1) dever inescusvel do Estado de promover-lhe a prestao, seja diretamente, nos casos em que prevista a prestao direta, seja indiretamente mediante autorizao, concesso ou permisso, nos casos

    em que permitida tal modalidade, que, de resto, a regra geral. Segue-se que, se o Estado omitir-se,

    cabe, dependendo da hiptese, ao judicial, para compeli-lo agir ou responsabilidade por danos que tal

    omisso haja causado. 2) princpio da supremacia do interesse pblico, em razo do que, tanto no

    concernente sua organizao quanto no relativo ao seu funcionamento, o norte obrigatrio de

    quaisquer decises atinentes ao servio sero as convenincias da coletividade, jamais os interesses

    secundrios do Estado ou os dos que hajam sido investidos no direito de prest-los, da advindo,

    conseqentemente, o 3) princpio da adaptabilidade, ou seja sua atualizao e modernizao,

    conquanto, como lgico, dentro das possibilidades econmicas do Poder Pblico; 4) princpio da

    universalidade, por fora do qual o servio indistintamente aberto generalidade do pblico; 5)

    princpio da impessoalidade, do que decorre a inadmissibilidade de discriminaes entre os usurios; 6)

    princpio da continuidade, significando isto a impossibilidade de sua interrupo e o pleno direito dos

    administrados a que no seja suspenso ou interrompido; 7) princpio da transparncia, impositivo da

    liberao a mais ampla possvel ao pblico em geral do conhecimento de tudo o que concerne ao servio

    e sua prestao, a estando implicado o 8) princpio da motivao, isto , o dever de fundamentar com

    26 GASPARINI, op. cit., p.294-295. 27 Idem, p.295.

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    largueza todas as decises atinentes ao servio; 9) princpio da modicidade das tarifas; deveras, se o

    Estado atribui to assinalado relevo atividade a que conferiu tal qualificao, por consider-lo

    importante para o conjunto de membros do corpo social, seria rematado dislate que os integrantes desta

    coletividade a que se destinam devessem, para desfrut-lo, pagar importncias que os onerassem

    excessivamente e, pior que isto, que os marginalizassem (...) 10) princpio do controle (interno e

    externo) sobre as condies de sua prestao.28 Observe-se que a gratuidade no foi afirmada como princpio do servio pblico. s vezes o ordenamento determina a gratuidade; por exemplo, a Constituio Federal de 1988 assegurou a

    gratuidade do ensino pblico em estabelecimentos oficiais (art.206, IV); fixou, como dever do Estado, a

    garantia de ensino fundamental obrigatrio e gratuito (art.208, I) e determinou a gratuidade dos

    transportes coletivos urbanos a maiores de 65 anos (art.230, 2).29 No obstante, como assinala Maral Justen Filho, o preo do servio pblico deve ser compatvel com a capacidade contributiva dos usurios em geral, da o aludido requisito de modicidade das tarifas: A essencialidade dos servios e seu vnculo imediato com direitos fundamentais no acarretam sua gratuidade. Isso no significa afirmar que a fruio do servio pblico dependa de condies

    econmicas, mas consiste em reconhecer um princpio geral da capacidade contributiva. Todo usurio

    deve contribuir para os servios, na medida de suas possibilidades, tomando em vista a intensidade dos

    benefcios auferidos e da prpria riqueza individual. Por isso, os indivduos carentes tero acesso aos

    servios pblicos, mas o custeio das prestaes realizadas em proveito deles dever ser arcado por

    outrem. Isso significa a existncia de subsdios (provenientes dos cofres pblicos ou da remunerao

    exigida dos demais usurios). (...) A modicidade tarifria significa a menor tarifa possvel, em vista dos

    custos necessrios oferta do servio. A modicidade tarifria pode afetar a prpria deciso quanto

    concepo do servio pblico. No ter cabimento conceber um servio to sofisticado que o custo torne

    invivel aos usurios fruir dos benefcios.30 6) TITULARIDADE E PRESTAO DOS SERVIOS PBLICOS. Fixados os parmetros de identificao dos servios pblicos, cumpre agora examinar como a Administrao Pblica se organiza para prest-los, seja direta ou indiretamente. De fato, deve-se distinguir, ao tratar da execuo de servios pblicos, a titularidade da prestao. A titularidade exclusiva do ente poltico ao qual a Constituio haja cometido, explcita ou

    implicitamente, a competncia especfica. Quanto prestao, tanto poder ela caber ao titular,

    dizendo-se direta, como pode ser por ele delegada a terceiros, denominando-se indireta.31 Registre-se que alguns autores entendem que a titularidade poderia ser transferida para entes administrativos criados por lei pelo ente poltico, como o caso das autarquias. Pensamos ser equivocada est assertiva, pois entendemos que a titularidade reservada pessoa poltica que tomou para si a responsabilidade constitucional ou legal pela efetivao do servio pblico, conservando sempre este liame, tanto assim que pode a qualquer momento extinguir a autarquia e retomar a execuo direta da atividade. 28 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.662-663. 29 MEDAUAR, op. cit., p.371. 30 JUSTEN FILHO, Maral. Curso de Direito Administrativo. So Paulo: Saraiva, 2005, p.491-492. 31 MOREIRA NETO, op. cit., p.420-421.

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    Os servios pblicos podem ser prestados ou executados de duas formas: execuo centralizada e execuo descentralizada. Na execuo centralizada, o ente poltico titular do servio pblico o executa diretamente por meio de seu prprio aparato administrativo (rgos e agentes). a chamada centralizao administrativa ou Administrao direta. No mbito da centralizao o Estado distribui a prestao de servios entre os seus rgos e agentes, consubstanciando o fenmeno da desconcentrao. Segundo Maria Sylvia Di Pietro, na desconcentrao ocorre uma distribuio interna de competncias, ou seja, uma distribuio de competncias dentro da mesma pessoa jurdica; sabe-se que

    a Administrao Pblica organizada hierarquicamente, como se fosse uma pirmide em cujo pice se

    situa o Chefe do Poder Executivo. As atribuies administrativas so outorgadas aos vrios rgos que

    compem a hierarquia, criando-se uma relao de coordenao e subordinao entre uns e outros. Isso

    feito para descongestionar, desconcentrar, tirar do centro um volume grande de atribuies, para

    permitir seu mais adequado e racional desempenho. A desconcentrao liga-se hierarquia. 32 No mbito da desconcentrao, a vontade que expressada pelo agente imputa-se diretamente Administrao, quer dizer, no h uma duplicidade prpria no instituto da representao, que foi aquele

    que durante muito tempo procurou explicar a relao entre o agente e o rgo . Na verdade, os agentes

    pblicos no representam a pessoa jurdica em que se inserem, porque esta pessoa jurdica no pode ser

    propriamente o representado, pois no possui vontade prpria.33 Tem-se, portanto, que a atuao dos rgos e agentes pblicos melhor explicada pela teoria da imputao e no pela teoria da representao. Os rgos podem ser monocrticos (ocupados por uma nica pessoa) ou colegiados (compostos por diversos agentes). Na execuo descentralizada, conforme assinala Digenes Gasparini, a atividade administrativa (titularidade e execuo) ou a sua mera execuo atribuda a outra entidade, distinta da

    Administrao Pblica, para que a realize. Desloca-se a atividade, ou to s o seu exerccio, da

    Administrao Pblica central para outra pessoa jurdica, esta privada, pblica ou governamental. O

    servio vai da Administrao Pblica, sua titular, ao administrado, seu beneficirio ltimo, atravs de

    uma interposta pessoa jurdica, esta privada, pblica ou governamental.34 Valiosas tambm as palavras de Celso Antnio, ao apontar a distino entre desconcentrao e descentralizao: A descentralizao pressupe pessoas jurdicas diversas: aquela que originalmente tem ou teria titulao sobre certa atividade e aqueloutra ou aqueloutras s quais foi atribudo o desempenho das

    atividades em causa. A desconcentrao est sempre referida a uma s pessoa, pois cogita-se da

    distribuio de competncias na intimidade dela, mantendo-se, pois, o liame unificador da hierarquia.

    Pela descentralizao rompe-se uma unidade personalizada e no h vnculo hierrquico entre a

    32 DI PIETRO, op. cit., p.342. 33 BASTOS, op. cit., p.70-71. 34 GASPARINI, op. cit., p.279-280.

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    Administrao Central e a pessoa estatal descentralizada. Assim, a Segunda no subordinada primeira. O que passa a existir, na relao entre ambas, um poder chamado controle.35 Observe-se que o fenmeno da desconcentrao poder tambm ocorrer no mbito interno de uma entidade da Administrao Indireta (autarquias, empresas pblicas etc.). De fato, em relao Administrao central, tal entidade descentralizada, o que no impede que possa ter rgos internos desconcentrados. Convm no confundir a descentralizao administrativa, objeto do presente estudo, com a descentralizao poltica, objeto do Direito Constitucional. A descentralizao poltica tem relao com a formao do Estado Federal no tocante diviso de competncias entre os entes que compe a Federao. Ocorre quando o ente descentralizado exerce atribuies prprias que no decorrem do ente central; a situao dos Estados-

    membros da federao e, no Brasil, tambm dos Municpios. Cada um desses entes locais detm

    competncia legislativa prpria que no decorre da Unio nem a ela se subordina, mas encontra seu

    fundamento na prpria Constituio Federal. As atividades jurdicas que exercem no constituem

    delegao ou concesso do governo central, pois delas so titulares de maneira originria.36 Interessa-nos aqui a descentralizao administrativa, por meio do que a Administrao central transfere a execuo dos servios originalmente de sua competncia. Na classificao adotada por Maria Sylvia Di Pietro, a descentralizao administrativa pode ocorrer de trs formas: descentralizao territorial ou geogrfica, descentralizao funcional ou por servios, e descentralizao por colaborao. Na descentralizao administrativa territorial ou geogrfica tem-se uma entidade geograficamente delimitada e com capacidade administrativa genrica. No Brasil, tal modalidade de descentralizao prevista com a eventual criao de territrios federais, entes ligados Unio e institudos para ter como objeto a administrao geral de determinado territrio nacional, nele prestando uma grande variedade de servios pblicos. H autores que qualificam os territrios federais como autarquias territoriais, o que no nos parece correto, pois as autarquias so criadas para prestar servio pblico especfico, tendo relao com a descentralizao funcional. Atualmente no existem territrios federais no Brasil, mas a Constituio prev a possibilidade de sua criao (art.18, 2). Na descentralizao administrativa funcional ou por servios o poder pblico (Unio, Estados ou Municpios) cria uma pessoa jurdica de direito pblico ou privado e a ela atribui a

    titularidade e a execuo de determinado servio pblico. No Brasil, essa criao somente pode dar-se

    por meio de lei e corresponde, basicamente, figura da autarquia, mas abrange tambm as fundaes

    governamentais, sociedades de economia mista e empresas pblicas, que exeram servios pblicos.37 Ao contrrio do que ocorre com a descentralizao territorial, na qual o ente criado desempenha diversas espcies de servios, na descentralizao funcional o ente criado ter capacidade especfica para desempenhar determinado servio que lhe foi transferido e que

    35 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.133. 36 DI PIETRO, Parcerias..., cit., p.50-51 37 Idem, p.53.

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    justificou a sua criao, residindo a a observncia ao princpio da especializao ou especialidade. J foram estudados anteriormente os entes que compem a Administrao Indireta por fora da descentralizao funcional ou por servios, quais sejam as autarquias (a includas as agncias reguladoras alm de outras autarquias especiais), as fundaes, as agncias executivas (qualificao dada autarquia ou fundao que celebre contrato de gesto com o rgo da Administrao Direta a que se acha vinculada, para a melhoria da eficincia e reduo de custos, na forma do art.37, 8, da Lei Maior e do art.51 da Lei 9646/98), as empresas estatais (empresas pblicas, sociedades de economia mista e outras subsidirias) e os recentemente criados consrcios pblicos (Lei 11107/2005). Descentralizao administrativa por colaborao, consoante leciona Maria Sylvia Di Pietro, a que se verifica quando, por meio de contrato ou ato administrativo unilateral, se transfere a execuo de determinado servio pblico a pessoa jurdica de direito privado, previamente existente,

    conservando o poder pblico a titularidade do servio.38 Alguns autores no reconhecem o regime de colaborao como forma de descentralizao, eis que nele o servio pblico delegado a entes desvinculados direta ou indiretamente do Estado. As formas tradicionais de descentralizao por colaborao so a concesso e a permisso de servios pblicos. Admite-se tambm, em alguns casos, a delegao por meio de autorizao, conforme ser visto. Alm disso, mais recentemente, outras formas de delegao vm surgindo, por meio de atos unilaterais ou acordos de vontade que no se enquadram como concesso ou

    permisso, mas que tambm podem ser considerados como formas de descentralizao por

    colaborao.39 Vejamos, portanto, as formas de descentralizao de servios pblicos por colaborao de particulares: 7) CONCESSO DE SERVIO PBLICO. O estudo dos contratos de concesso tem estreita relao com a delegao a particulares de atividades de interesse pblico, como forma de aliviar o Estado do desempenho de tarefas que possam ser prestadas com maior eficincia pelo setor privado. A razo primordial desta delegao no h de ser a de propiciar lucro s empresas privadas ou de assegurar economia de custos para Estado, mas, sim, precipuamente a de assegurar a adequada satisfao dos interesses da coletividade beneficiada por tais servios. Este motivo pelo qual a Constituio brasileira permite o instituto. O regime de concesses predominou num primeiro momento da organizao estatal, sob o modelo liberal (fase do liberalismo clssico). Com o surgimento do modelo burocrtico (fase do estatismo ou Estado Social), as concesses tiveram a sua importncia reduzida, e o Estado passou a intervir diretamente, por meio de seus entes, em diversos setores que antes eram delegados. Por fim, com o desenvolvimento do modelo gerencial (fase da democracia), as concesses voltaram a ter destaque no cenrio da Administrao Pblica, desenvolvendo-se, em contrapartida, um regime sistematizado de regulamentao (interveno estatal indireta por meio de agncias reguladoras), que j estudamos quando tratamos dos servios pblicos.

    38 Ib idem, p.54. 39 Ib idem, p.65-66.

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    Diogo de Figueiredo enfoca bem este aspecto histrico: As concesses tiveram seu momento histrico de preeminncia no final do sculo XIX e no incio do sculo XX, poca em que os capitais disposio do Governo eram reduzidos e a modalidade era

    largamente utilizada para atendimento dos mais importantes e dispendiosos servios pblicos, como luz,

    gs, telefone, gua, esgotos, transportes urbanos e ferrovirios, todos, em regra, interessando o

    investimento no Pas de vultosos capitais externos. Com a hipertrofia econmica do Estado,

    experimentada a partir da Primeira Guerra Mundial, e com a mudana de concepo poltica,

    notadamente quanto obsessiva preocupao com a segurana nacional, tpica do perodo da chamada

    Guerra Fria, as concesses foram perdendo sua importncia nesses setores tradicionais e os servios

    pblicos passaram a ser executados, preferente quando no exclusivamente, por empresas estatais. Nem

    por isso o instituto chegou a desaparecer totalmente, sem bem que tivesse remanescido com expresso

    bem mais reduzida, quase que concetrada no ramo dos transportes pblicos. Mas, quando j se

    prenunciava o ocaso da concesso, eis que o trmino da tenso armamentista e o esgotamento das

    possibilidades de capitalizao pblica, por via tributria, para investimentos, e os cada vez mais

    necessrios reinvestimentos em servios pblicos determinaram o seu retorno, renovada e robustecida.

    Este reaparecimento, que se deu em diversos pases, como soluo para a explorao de vrios servios

    pblicos, que, reconhecidamente, poderiam ser entregues, com vantagem e sem compromentimento de

    seus princpios regedores, execuo das empresas privadas, foi o exemplo exitoso para reentronizar o

    instituto, rapidamente e em escala global. Afinal, passava-se a reconhecer, depois de um longo perodo

    hegemnico do pesado Estado-Providncia, que a iniciativa privada apresenta maior capacidade de

    imprimir um alto grau de eficincia e economia s suas atividades, dispensando e isto que mais importante o Poder Pblico, de preocupaes secundrias, de modo a liber-lo para concentrar-se em suas atividades primrias, na soluo de problemas de maior premncia e envergadura, como so hoje

    os da segurana, da educao e da sade e, em escala crescente, no desenvolvimento do fomento

    pblico.40 Digenes Gasparini conceitua a concesso de servio pblico como o contrato administrativo pelo qual a Administrao Pblica transfere, sob condies, a execuo e explorao de certo servio,

    que lhe privativo, a terceiro que para isso manifeste interesse e que ser remunerado adequadamente

    mediante a cobrana, dos usurios, de tarifa previamente por ela aprovada.41 O autor segue, assim, a tradio do direito positivo brasileiro, que aponta a concesso como modalidade contratual administrativa, tal como o fizeram a Lei 8987/95 (lei nacional de concesses) e a Lei 9074/95. Celso Antnio, porm, no concorda com a assertiva de que a concesso seria um mero contrato administrativo, apontando tratar-se, tal como concebido na tradicional doutrina francesa, de uma relao jurdica complexa, uma figura hbrida que mistura um ato regulamentar unilateral do Estado concedente, um ato-condio do concessionrio e um contrato privado: A concesso uma relao jurdica complexa, composta de um ato regulamentar do Estado que fixa unilateralmente condies de funcionamento, organizao e modo de prestao do servio, isto , as

    condies em que ser oferecido aos usurios; de um ato-condio, por meio do qual o concessionrio

    voluntariamente se insere debaixo da situao jurdica objetiva estabelecida pelo Poder Pblico, e de

    40 MOREIRA NETO, op. cit., p.426-427. 41 GASPARINI, op. cit., p.293.

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    contrato, por cuja via se garante a equao econmico-financeira, resguardando os legtimos objetivos

    de lucro do concessionrio. Sem embargo do que se vem a dizer, no Direito brasileiro a concesso de

    servio pblico tanto como a de obra pblica so pura e simplesmente nominadas de contratos

    administrativos. (...) Faz parte do aspecto regulamentar tudo o que diz respeito com o modo de prestao

    do servio e fruio dele pelos usurios. Em conseqncia, integram-no as disposies relativas

    organizao, ao funcionamento do servio, ao prazo da concesso e s tarifas que sero cobradas; esta

    a parte mutvel na concesso por ato exclusivo do Estado. (...) O aspecto contratual da concesso a

    equao econmico-financeira concertada. Da ser imutvel unilateralmente. Dita equao a expresso

    econmica de valor fruvel pelo concessionrio como resultado da explorao do servio ao longo da

    concesso, segundo os termos constitudos poca do ato concessivo.42 A outorga de servio pblico a concessionrio depende de autorizao em lei. No pode o Executivo, por simples deciso sua, entender de transferir a terceiros o exerccio de atividade havida como peculiar ao Estado. que, se se trata de um servio prprio dele, quem deve, em

    princpio, prest-lo a Administrao Pblica. Para isto existe. (...) Assim, cumpre que a lei fundamente

    o ato administrativo da concesso, outorgando ao Executivo competncia para adoo desta tcnica de

    prestao de servio. Nada impede, todavia, que a lei faculte, genericamente, a adoo de tal medida em

    relao a uma srie de servios que indique. A Lei 8987, de 13.2.95, no menciona a necessidade de lei

    autorizadora; nem por isto poder-se-ia prescindir de tal exigncia.43 A outorga depender ainda de licitao na modalidade de concorrncia (art.2 da Lei 8987/95). Esta a regra geral. Em alguns casos especficos, porm, a legislao admite a possibilidade de leilo, tal como aconteceu com a transferncia de servios pblicos que antes eram prestados por empresas estatais que foram privatizadas (art.29 da Lei 9074/95). Nos moldes do art.18, I, da Lei 8987/95, a concesso de servios pblicos deve ter um prazo determinado. A lei geral no diz qual seria o prazo mximo, ficando a questo reservada a cada lei autorizativa. Mas h de ser um prazo suficientemente longo para que o concessionrio possa amortizar o investimento por ele feito em prol dos servios e tambm auferir os lucros que licitamente o atraram a colaborar com o Poder Pblico. Tendo em vista esta peculiaridade da concesso, no se aplicam a ela os prazos contratuais previstos na Lei 8666/93 para os contratos administrativos em geral. Descaberia reputar aplicvel espcie o disposto no caput do art.57 da Lei 8666, de 21.6.93 (reguladora de licitaes e contratos), pois a limitao ali estabelecida (vigncia dos respectivos crditos

    oramentrios) tem em vista contratos que acarretam dispndios, necessitando, pois, dos sobreditos

    crditos para acobert-los, situao que, obviamente, no se prope em relao concesso. Tampouco

    seria de imaginar invocvel o prazo mximo de 60 meses estabelecido para os contratos de prestao de

    servios executados de forma contnua, referido no inciso II do mesmo art.57 da Lei 8666. Seria

    evidente sua inadaptabilidade concesso, que demanda perodo de vigncia muito maior para a

    amortizao dos investimentos, sobreposse quando precedida de obra pblica.44 Importante registrar que no qualquer servio pblico que pode ser objeto de concesso ou permisso.

    42 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.696-698. 43 Idem. 44 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.710.

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    Primeiramente preciso lembrar o que j se disse em tpico anterior acerca de servios pblicos que, por determinao constitucional, somente podem ser prestados por entidade estatal (administrao direta ou indireta) e, portanto, no podem ser delegados iniciativa privada. Nas palavras de Celso Antnio, necessrio que sua prestao no haja sido reservada exclusivamente ao prprio Poder Pblico, assinalando o autor que no houve previso de transferncia do servio postal e do correio areo nacional (CF/88, art.21, X), ao contrrio do que ocorreu quanto aos servios de telecomunicaes, de radiodifuso, de energia eltrica e outros citados nos incisos XI e XII da Lei Maior, estes sim passveis de concesso.45 Outrossim, ainda quando no haja impedimento constitucional delegao, de se ver que os servios suscetveis de concesso ou permisso somente podem ser aqueles servios pblicos comerciais ou industriais que propiciem a explorao econmica pelos concessionrios, em nome prprio e sua conta e risco, da advindo a sua remunerao geralmente por meio de tarifas pagas pelos usurios. Celso Antnio bem destaca esta caracterstica essencial das concesses (remunerao pela prpria explorao do servio), que as distingue dos simples contratos de prestao de servios em que a empresa prestadora paga com verbas dos cofres da Administrao Pblica: Concesso de servio pblico o instituto atravs do qual o Estado atribui o exerccio de um servio pblico a algum que aceite prest-lo em nome prprio, por sua conta e risco, nas condies fixadas e

    alterveis unilateralmente pelo Poder Pblico, mas sob garantia contratual de um equilbrio econmico-

    financeiro, remunerando-se pela prpria explorao do servio, em geral e basicamente mediante tarifas

    cobradas diretamente dos usurios do servio. (...) a afirmao de que o concessionrio age em nome prprio parece ser insubstituvel para realar a diferena entre a concesso de servio pblico e o simples contrato de prestao de servios travado entre o Estado e a sua contraparte. Enquanto na

    concesso instaura-se uma relao jurdica por fora da qual o concessionrio investido em titulao

    para prestar servios ao pblico, nos simples contratos de prestao de servios o contratado se vincula

    a prestar dados servios ao Estado apenas. Assim, o liame contratual no extrapola as relaes entre

    ambos; as obrigaes recprocas confinam-se ao estrito mbito das partes que se entrelaaram. Da a

    compreensvel insistncia da doutrina em dizer que o concessionrio age em nome prprio. (...) indispensvel sem o qu no se caracterizaria a concesso de servio pblico que o concessionrio se remunere pela explorao do prprio servio concedido. Isto, de regra, se faz, como indicado, em geral e basicamente pela percepo de tarifas cobradas pelos usurios.46 possvel ainda a lei prev isso que o contrato estabelea, ao lado das tarifas, outras fontes de receitas alternativas que auxiliem na diminuio do seu valor (princpio da modicidade das tarifas, contemplado no art.11 da Lei 8987/95). Mas estas fontes ho de ser complementares ou acessrias, jamais exclusivas, pois isso descaracterizaria completamente o instituto da concesso. De outro lado, quando a explorao se faa pela cobrana de tarifas dos usurios, no h impedimento a que o concedente subsidie parcialmente o concessionrio. Obviamente, tambm no h obstculo a

    que possam ser previstas fontes alternativas de receita, complementares ou acessrias, como alis, o

    45 Idem, p.640. 46 Ib idem, p.686-687.

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    admite a lei nacional de concesses, tendo em vista favorecer a modicidade das tarifas. Da haver-se dito que, em geral, o concessionrio se remunera basicamente pela cobrana de tarifas, pois no necessrio que o seja exclusivamente por elas. Se, entretanto, o servio fosse remunerado apenas por

    fontes estranhas explorao do servio, no existiria concesso de servio pblico, mas modalidade

    contratual diversa47 Esta caracterstica de remunerao por meio do servio concedido, apesar de quase sempre se dar por meio de tarifas, nem sempre assim acontece. De fato, pode haver de o concessionrio explorar o servio de outra maneira que no a cobrana de tarifas. o que ocorre com as concesses de rdio e televiso (radiodifuso sonora ou de sons e imagens), regidas por normas especficas (CF/88, art.223), nas quais, consoante assinala Celso Antnio, o concessionrio se remunera pela divulgao de mensagens publicitrias cobradas dos anunciantes. No se trata de tarifas e quem paga por isto no ser necessariamente um usurio. Mas h a, igualmente, explorao do prprio servio pblico concedido.48 Se o servio, por sua natureza, no puder ser explorado economicamente por conta e risco do prestador, no ser passvel de delegao por meio de concesso. Nesse sentido, Maria Sylvia Di Pietro ressalta que sendo a concesso, por sua prpria natureza, uma forma de gesto de servio pblico remunerada pelo prprio usurio ou com receitas decorrentes da

    explorao do prprio servio, s possvel cogitar de sua utilizao quando se tratar de servio

    prestado a terceiros (usurios) e que admite uma explorao comercial, ou seja, a possibilidade de

    produo de renda em favor do concessionrio. Faltando um desses elementos, no se poder falar em

    concesso de servio pblico.49 Da porque a autora entende ser imprpria a meno que a Lei 9074/95 faz aos servios de limpeza urbana como sendo passveis de concesso, j que se trata de atividade que no se presta a ser

    objeto desse tipo de contrato, mas do contrato de prestao de servios, remunerado pelos cofres

    pblicos diretamente e no pelo usurio, mediante pagamento de tarifa paga ao prestador do servio. Ao

    contrrio do que ocorre na concesso, em que h relao trilateral (poder concedente, concessionrio e

    usurio), na prestao de servio de limpeza urbana a relao apenas bilateral, entre poder pblico e

    contratado.50 Em suma, no podem ser objeto de concesso os servios uti universi, que so usufrudos apenas indiretamente pelo cidado, como o caso da limpeza pblica. O que pode a Administrao Pblica fazer terceirizar a atividade, mediante contrato de prestao de servio, em que a remunerao paga

    pelo poder pblico, com verbas provenientes de impostos51, como j decidiram o STJ e o STF. Tambm no podem ser objeto de concesso as atividades decorrentes do poder de polcia, que esto includas entre as atividades exclusivas, ou seja, aquelas que s o Estado pode prestar. O que possvel, em termos de colaborao do particular, a terceirizao de determinadas atividades-meio que

    no envolvam qualquer tipo de autoridade sobre o cidado.52

    47 Ib idem. 48 Ib idem. 49 DI PIETRO, Parcerias..., cit., p.71. 50 Idem, p.74. 51 Ib idem, p.47-48. 52 Ib idem, p.47.

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    O contrato de concesso contm dois tipos de clusulas: as clusulas regulamentares, estabelecidas unilateralmente pela Administrao e que podem ser modificadas a qualquer tempo segundo o interesse pblico, e as clusulas financeiras ou simplesmente contratuais, relativas ao equilbrio econmico-financeiro do contrato, as quais no podem ser modificadas unilateralmente. O concessionrio tem direito manuteno da equao econmico-financeira do contrato, do objeto contratual e razoabilidade da remunerao. A equao econmico-financeira diz respeito ao equilbrio entre as obrigaes e a remunerao do concessionrio, de forma a se assegurar a continuidade e a boa prestao do servio pblico. No significa isso que o concessionrio no tenha de assumir riscos inerentes a qualquer empreendimento comercial ou industrial. A garantia de equilbrio contratual apenas assegura a manuteno da equao em caso de situaes anmalas e imprevisveis. Trata-se da chamada lea extraordinria, que, conforme j estudado no tema dos contratos administrativos, pode ser de duas espcies: i) lea administrativa (alterao unilateral do contrato, fato do prncipe e fato da administrao); ii) lea econmica (fora maior e caso fortuito). Fora isso, o concessionrio, como qualquer empresrio, h de assumir normalmente os riscos naturais da sua atividade econmica (que configuram a chamada lea ordinria), contando apenas com a clusula de reajuste tarifrio, eventualmente prevista no contrato. Logo, enfatize-se, h riscos que o concessionrio deve suportar sozinho. Cumpre esclarecer que a garantia econmica do concessionrio na concesso de servio pblico no , contudo, uma proteo total que lhe d o concedente contra qualquer espcie de insucesso econmico ou

    diminuio de suas perspectivas de lucro. Com efeito, uma vez que o concessionrio exerce um servio

    estatal, mas por sua conta, risco e perigos, natural que, moda de qualquer empreendimento

    comercial ou industrial, se sujeite a certa lea, a certo risco. Pode, portanto, ser, como outro

    empreendedor, integralmente bem-sucedido, parcialmente bem-sucedido ou malsucedido em suas

    expectativas legtimas de sucesso econmico. necessrio, ento, distinguir entre os riscos a serem

    cobertos pelo poder concedente daqueles que correro por conta do concessionrio. Para proceder a tal

    distino comum recorrerem os autores doutrina francesa, em que se discrimina a lea ordinria,

    correspondente aos riscos normais, a serem suportados pelo concessionrio, da lea extraordinria, que

    se subdivide em lea administrativa e lea econmica.

    (...) Os riscos que o concessionrio deve suportar sozinho abrangem, alm dos prejuzos que lhe

    resultem por atuar canhestramente com ineficincia ou impercia, aqueloutros derivados de eventual

    estimativa inexata quanto captao ou manuteno da clientela de possveis usurios, bem como, no

    caso de fontes alternativas de receita, os que advenham de uma frustrada expectativa no que concerne

    aos proveitos extraveis de tais negcios. (...) no pode o concessionrio esperar eximir-se da lea

    prpria de qualquer empreendimento negocial sob genrica e abstrata invocao de um equilbrio

    econmico-financeiro desvinculado do teor contratual.53 O art. 2, III, da Lei 8987/95 prev ainda a figura da concesso de servios pblicos precedida da execuo de obra pblica, quando se delega ao concessionrio a construo total ou parcial, conservao, reforma, ampliao ou melhoramento de uma obra de interesse pblico, de forma que o seu investimento seja remunerado e amortizado mediante a explorao do servio que a obra proporciona. Celso Antnio critica esta categoria prevista na lei, considerando que sob tal designao normativa esto impropriamente compreendidas ora uma

    53 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.724-727.

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    concesso de servio pblico, ora uma concesso de obra pblica, to-somente, dependendo de qual seja o objeto da explorao econmica. Acerca do regime jurdico das concesses, Lcia Valle Figueiredo aponta os seguintes tpicos: direitos e deveres do concedente e do concessionrio, o regime tributrio, a possibilidade de interveno na concessionria, a extino da concesso, a reverso e a encampao.54 Vamos estudar cada um deles segundo os ensinamentos da ilustre autora: O poder concedente tem direitos anlogos aos dos demais contratos administrativos, podendo inclusive alterar unilateralmente clusulas para a melhor prestao do servio, bem como tem o dever de fiscalizar, de supervisionar, de sancionar, de intervir para assegurar o cumprimento da continuidade do servio pblico. A responsabilidade do concessionrio objetiva (CF/88, art.37, 6 e Lei 8987/95, art.25), sendo que a doutrinadora, a exemplo tambm de Celso Antnio, reconhece a responsabilidade subsidiria do Estado como concedente do servio pblico que lhe afeto, ainda que o contrato ou a lei disponham em sentido contrrio. de se observar inclusive que a Lei 8078/90 (Cdigo de Defesa do Consumidor) prev expressamente a responsabilidade objetiva dos rgos pblicos, das empresas concessionrias, permissionrias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, como fornecedores de servios (arts.14 e 22). Mas esta responsabilidade administrativa somente diz respeito a fatos que estejam relacionados ao servio delegado. Outros fatos referentes concessionria, mas que digam respeito sua gesto interna (relacionamento com empregados, fornecedores etc.) seguem as regras comuns de responsabilidade civil. Os danos resultantes de atividade diretamente constitutiva do desempenho do servio, ainda que realizado de modo faltoso, acarretam, no caso de insolvncia do concessionrio, responsabilidade

    subsidiria do poder concedente. O fundamento dela est em que o dano foi efetuado por quem agia no

    lugar do Estado e s pde ocorrer em virtude de estar o concessionrio no exerccio de atividade e

    poderes incumbentes ao concedente. Exauridas as foras do concessionrio, desaparece o intermedirio

    que, por ato do concedente, se interpunha entre o terceiro prejudicado e o prprio concedente. Este, por

    conseguinte, emerge espontaneamente na arena jurdica, defrontando-se diretamente com o lesado, para

    saldar compromissos derivados do exerccio de atuao que lhe competiria.55 Outra caracterstica marcante da concesso que o concessionrio no poder invocar de logo a exceptio non adimpleti contractus (exceo de contrato no cumprido), tendo em vista o princpio da continuidade do servio pblico. Esta clusula, considerada implcita nos contratos civis, encontra uma colorao especial em se tratando de contratos administrativos. A lei geral (Lei 8666/93) j prev que o contratante privada h de suportar at 90 dias de atraso nos pagamentos devidos pela Administrao (art.78, XV). A lei de concesses (Lei 8987/95), por sua vez, ainda mais rigorosa, pois o seu art.39, p. nico, prev que, no caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, o concessionrio somente pode interromper ou paralisar o servio quando houver sentena transitada em julgado.

    54 FIGUEIREDO, Lcia Valle. Op. cit., p.90-99. 55 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 738

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    Os atos dos concessionrios sujeitam-se a mandado de segurana, pois se afiguram como atos de autoridade no exerccio de funo administrativa delegada de atribuio originria do Poder Pblico (CF, art.5o, LXIX). Todavia, assim o so somente os atos especificamente relacionados s normas de regncia do servio pblico e que atinjam os usurios nesta condio. Atos referentes mera gesto empresarial (relao com empregados, fornecedores etc.) no se enquadram nesta categoria. Ao concessionrio de servio pblico no se aplica a imunidade tributria prevista no art.150, 3, da Carta Magna de 1988, pois seu regime tributrio igual ao das empresas privadas, sendo que o gozo de isenes legais dependeria expressamente de no haver agresso isonomia, ou seja, justificativa absolutamente pertinente, como, por exemplo, a exclusiva diminuio de tarifa. Existe a possibilidade de interveno na concessionria nos casos de inadequao ou descontinuidade na prestao dos servios. A interveno, nos termos da Lei 8987/95, dever ser feita por decreto do poder concedente indicando o motivo, designando-se um interventor, o prazo de interveno e os limites da medida, devendo ainda ser instaurado um procedimento administrativo. Duas alternativas resultaro da interveno: ou a devoluo ao concessionrio do objeto da concesso, com a respectiva prestao de contas e compostos os prejuzos, ou, ento, ser possvel extinguir-se a concesso, havendo, nessa hiptese, a declarao de caducidade da concesso, assumindo o poder concedente o servio, com a encampao dos bens afetos concesso. possvel a encampao, que a retomada do servio pelo poder concedente, antes de terminado o prazo da concesso, em decorrncia da resciso unilateral do contrato por motivo de interesse pblico, mediante lei autorizativa e prvio pagamento de indenizao quando no houver culpa do concessionrio. No caso de descumprimento contratual pelo concessionrio, a extino se d pela caducidade ou decadncia (resciso por culpa do contratado), hiptese em que a indenizao no ser devida, exceto no tocante aos bens ainda no amortizados. Sempre que extinta a concesso d-se a reverso, que a incorporao dos bens da concessionria ao patrimnio do concedente, com a indenizao dos bens eventualmente ainda no amortizados. A reverso, portanto, uma conseqncia da extino da concesso, haja vista a afetao dos bens ao servio pblico e a necessidade de sua plena continuidade. O art.26 da Lei 8987/95 prev a possibilidade subconcesso, nos termos do contrato e desde que expressamente autorizada pelo poder concedente, sempre precedida de concorrncia. A subconcesso o contrato celebrado entre o titular da concesso de servio pblico e um terceiro escolhido mediante licitao, com o fito de transferir-lhe parte dos direitos e obrigaes que detm nessa

    espcie de contrato administrativo. A primeira dessas partes chamada de subconcedente, enquanto a

    segunda denominada subconcessionrio. A lei exige que a subconcesso, alm de estar prevista e

    regulada no contrato, seja precedida de autorizao da Administrao Pblica concedente e de

    concorrncia.56 56 GASPARINI, op. cit., p.380-381.

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    O art. 27 admite a transferncia,de concesso ou do controle societrio da concessionria, desde que com a anuncia do poder concedente, sob pena de caducidade. A lei no faz meno, nesse caso, exigncia de licitao, o que, segundo a doutrina, faz-se necessria sob pena de afronta Constituio. Com efeito, quem venceu o certame foi o concessionrio, e no um terceiro sujeito, este, pois, que, de direito, no se credenciou, ao cabo de disputa aberta com quaisquer interessados, ao exerccio da

    atividade em pauta. Logo, admitir a transferncia da concesso seria uma burla ao princpio licitatrio,

    enfaticamente consagrado na Lei Magna em tema de concesso, e feriria o princpio da isonomia,

    igualmente encarecido na Constituio.57 A doutrina sempre defendeu que os litgios oriundos dos contratos de concesso no admitiriam soluo pela via da arbitragem, porquanto envolvem direitos indisponveis concernentes ao interesse pblico. Recentemente, porm, com a Lei 11.196/2005, acrescentando o art.23-A na Lei 8987/95, a legislao passou a prever expressamente o emprego de mecanismos privados de resoluo de disputas, inclusive a arbitragem. Celso Antnio assevera tratar-se de norma que viola frontalmente a Constituio: Novidade lamentvel e, ao nosso ver, grosseiramente inconstitucional o disposto no art.23-A, tambm includo pela referida Lei 11.196. De acordo com ele, conflitos decorrentes ou relacionados ao

    contrato podem ser solvidos por mecanismos privados, inclusive por arbitragem, que dever ser efetuada

    no Brasil e em lngua portuguesa. inadmissvel que se possa afastar o Poder Judicirio quando em

    pauta interesses indisponveis, como o so os relativos ao servio pblico, para que particulares decidam

    sobre matria que se constitui em res extra commercium e que passa, ento, muito ao largo da fora

    decisria deles. da mais solar evidncia que particulares jamais teriam qualificao jurdica para

    solver questes relativas a interesses pblicos, quais as que se pem em um contrato de concesso de servio pblico. Chega a ser grotesco imaginar-se que o entendimento revelado em deciso proferida

    por sujeito privado possa se sobrepor inteleco proveniente de uma autoridade pblica no exerccio

    da prpria competncia. Disparate de um to desabrido teor s poderia ser concebido no dia em que se

    reputasse normal que os motoristas multassem os guardas de trnsito, que os contribuintes lanassem

    tributos sobre o Estado e os cobrassem executivamente ou em que os torcedores, nos estdios de futebol,

    colocassem ordem nas foras da polcia, dissolvendo algum ajuntamento delas.58 8) PARCERIA PBLICO-PRIVADA (PPP) CONCESSO ESPECIAL. Dentro do contexto do modelo administrativo gerencial e da descentralizao de atividades estatais feita com a colaborao da iniciativa privada, surgiram recentemente no Brasil normas jurdicas tratando da parceria pblico-privada, modalidade de concesso que teve origem na Inglaterra h cerca de trinta anos. O instituto tambm foi adotado com sucesso em pases como Portugal, Irlanda e Espanha, consoante aponta Jos dos Santos Carvalho Filho: As parcerias pblico-privadas tm sido adotadas com sucesso em diversos ordenamentos jurdicos, como, entre outros, os de Portugal, Espanha, Inglaterra e Irlanda, e apresentam como justificativa dois

    57 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p.707. 58 Idem, p.701.

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    pontos fundamentais: a falta de disponibilidade de recursos financeiros e a eficincia de gesto do

    setor privado. Se semelhante modelo ser frutfero ou no, s o tempo dir o tempo e tambm a forma como ir conduzir-se a Administrao na aplicao do instituto. De qualquer modo, apesar de alguns

    aspectos confusos na disciplina jurdica, mais uma das tentativas que ultimamente se tm apresentado

    para que o Poder Pblico obtenha do setor privado parcerias, recursos e formas de gesto no intuito de

    executar atividades estatais e prestar servios pblicos, tarefas nas quais o Estado, sozinho, tem

    fracassado.59 Seguindo a competncia privativa da Unio para legislar sobre normas gerais de licitao e contratos administrativos (CF/88, art.22, XXVII), foi editada a Lei 11.079/2004, que institui normas gerais para licitao e contratao de parceria pblico-privada no mbito da administrao pblica. Os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municpios somente podero instituir normas especficas sobre a matria, o que j vem sendo feito. Na Bahia, por exemplo, j foi editada a Lei estadual 9290/2004. O legislador conceituou a parceria pblico-privada como um contrato administrativo de concesso, que pode ocorrer sob duas modalidades: patrocinada e administrativa (art.2 da Lei 11.079/2004): Art.2 Parceria pblico-privada o contrato administrativo de concesso, na modalidade patrocinada ou administrativa. 1 Concesso patrocinada a concesso de servios pblicos ou de obras pblicas de que trata a Lei 8987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente tarifa cobrada dos usurios, contraprestao pecuniria do parceiro pblico ao parceiro privado. 2 Concesso administrativa o contrato de prestao de servios de que a Administrao Pblica seja a usuria direta ou indireta, ainda que envolva execuo de obra ou fornecimento e instalao de bens.

    Segundo Digenes Gasparini, o objetivo da Lei federal das PPPs disciplinar essa nova forma de parcerias com o empresrio privado. Alm disso, sua inteno motivar com regras seguras e melhores

    atrativos econmicos, inexistentes nas atuais parcerias, a participao dos agentes privados e o aporte de

    recursos financeiros e tecnolgicos na consecuo do interesse pblico que, em termos de eficincia,

    com raras excees, carece a Administrao Pblica. Com as PPPs, a Administrao Pblica deseja

    aproveitar a agilidade da atuao privada na execuo do objeto da parceria uma vez contratada, pois

    livre de certas peias burocrticas.60

    Num sentido amplo, parceria pblico-privada todo ajuste que a Administrao Pblica de qualquer nvel celebra com um particular para viabilizar programas voltados ao desenvolvimento socioeconmico

    do pas e ao bem-estar da sociedade, como so as concesses de servios, as concesses de servios

    precedidas de obras pblicas, os convnios e os consrcios pblicos. Em sentido estrito, ou seja, com

    base na Lei federal das PPPs, pode-se afirmar que um contrato administrativo de concesso por prazo

    certo e compatvel com o retorno do investimento privado, celebrado pela Administrao Pblica com

    certa entidade particular, remunerando-se o parceiro privado conforme a modalidade de parceria

    adotada, destinado a regular a prestao de servios pblicos ou a execuo de servios pblicos

    precedidos de obras pblicas ou, ainda, a prestao de servios em que a Administrao Pblica sua

    59 CARVALHO FILHO, op. cit., p.364. 60 GASPARINI, op. cit., p. 407.

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    usuria direta ou indireta, respeitando sempre o risco assumido. O art.2 da Lei federal define

    sucintamente a parceria pblico-privada como o contrato administrativo de concesso, na modalidade

    patrocinada ou administrativa. Alguns vem esse ajuste como um contrato administrativo de gesto, pois

    o pargrafo nico do art.6 da Lei federal das PPPs diz que o contrato poder prever o pagamento ao

    parceiro privado de remunerao varivel vinculada ao seu desempenho, conforme metas e padres de

    qualidade e disponibilidade definidos contratualmente.61 Apesar do nome parceria, trata-se de contrato administrativo propriamente dito, porquanto traz em seu bojo interesses contrapostos da Administrao (que visa a eficiente prestao de servios pblicos) e do parceiro privado (que visa de algum modo lucrar com o empreendimento). Da porque Jos dos Santos entende que a correta denominao deveria ser contrato de concesso especial de servios pblicos: A expresso contrato de parceria tecnicamente imprpria. Primeiramente, h inegvel contradio nos termos: onde h contrato (tipicamente considerado) no h parceria em seu sentido verdadeiro.

    Alm disso, o denominado parceiro privado nada mais do que uma pessoa comum do setor privado, que, como tal, persegue lucros e vantagens na execuo do servio ou da obra pblica. Quanto a isso,

    alis, nenhuma diferena tem ela em relao s pessoas concessionrias na concesso comum. O que

    caracteriza a verdadeira parceria, isto sim, a cooperao mtua, tcnica e financeira, com objetivos

    comuns (e no contrapostos, como ocorre nos contratos em geral) e sem fins lucrativos, conforme

    sucede nos convnios e nos contratos gesto firmados com organizaes sociais, previstos na Lei n.

    9637/98. A divulgao da expresso, todavia, tornou-a conhecida dessa forma; assim, ao que tudo

    indica, ser esse negcio jurdico conhecido como contrato de parceria pblico-privada, ou simplesmente parcerias pblico-privadas (PPPs). A referncia que fizemos, portanto, a tais expresses (e o faremos sem abdicar de nossa crtica) ser apenas em virtude de serem elas empregadas na lei.62 As PPPs na modalidade de concesso patrocinada se distinguem das concesses comuns basicamente porque elas envolvem necessria contraprestao pecuniria do parceiro pblico ao parceiro privado. Portanto, so destinadas sobretudos a reas de atuao estatal em que no seja vivel a explorao econmica remunerada exclusivamente por meio de tarifas pagas pelos usurios. As PPPs na modalidade de concesso administrativa distinguem-se dos contratos administrativos de prestao de servio regidos pela Lei 8666, haja vista os altos investimentos que devem ser feitos pelo parceiro privado e amortizados ao longo do contrato. Celso Antnio Bandeira de Mello, todavia, critica veementemente a parceria pblico-privada, sobretudo na modalidade de concesso administrativa, que ele considera uma falsa concesso: Ocorre que praticamente impossvel conceber um servio que possa ser mantido por meras tarifas nas quais a Administrao comparea como simples usuria, mas na quantidade e freqncia suficiente para

    acobertar tais servios, maiormente se envolverem tambm a execuo de obra ou implantao de bens.

    Logo, o que a Administrao teria que pagar para acobertar os dispndios da prestao