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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL MÁRCIO LEONARDO MONTEIRO COSTA A MÍDIA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DOS ARTISTAS SERTANEJOS DE SÃO LUÍS: UMA ANÁLISE CULTURAL Porto Alegre 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL

MÁRCIO LEONARDO MONTEIRO COSTA

A MÍDIA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DOS ARTISTAS SERTANEJOS DE SÃO LUÍS: UMA ANÁLISE CULTURAL

Porto Alegre 2015

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MÁRCIO LEONARDO MONTEIRO COSTA

A MÍDIA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DOS ARTISTAS SERTANEJOS DE SÃO LUÍS: UMA ANÁLISE CULTURAL

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Carolina Escosteguy

Porto Alegre 2015

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C837m Costa, Márcio Leonardo Monteiro

A mídia na formação da identidade dos artistas sertanejos de São Luís: uma análise cultural. / Márcio Leonardo Monteiro Costa. – Porto Alegre, 2015.

209 f. : il. Tese (doutorado) – Faculdade de Comunicação Social,

PUCRS. Orientação: Profa. Dra. Ana Carolina Escosteguy 1. Comunicação Social. 2. Mídia. 3 .Identidade. 4. Gêneros

Musicais I. Escosteguy, Ana Carolina . II. Título.

CDD 301.21

.

Ficha Catalográfica elaborada por Sabrina Vicari CRB 10/1594

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MÁRCIO LEONARDO MONTEIRO COSTA

A MÍDIA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DOS ARTISTAS SERTANEJOS DE SÃO LUÍS: UMA ANÁLISE CULTURAL

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Aprovada em 9 de dezembro de 2015.

Banca examinadora:

______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Carolina Escosteguy (PUCRS)

(presidente/orientadora)

______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Luiza Coiro Moraes (UFSM)

______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Gerbase (PUCRS)

______________________________________________ Prof. Dr. Felipe da Costa Trotta (UFF)

______________________________________________ Prof. Dr. Luiz Artur Ferraretto (UFRGS)

Porto Alegre 2015

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Dedico este trabalho à minha mãe. Por causa dela eu comecei a estudar; por causa dela eu ainda não parei.

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AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus. Agradeço à minha mãe, o maior de todos os apoios; aos meus irmãos Thaís, Renan, Fernanda, Adson e Eduardo; e também ao meu pai. Agradeço à minha filha, Marina, de quem fiquei longe por conta da realização deste trabalho, por me lembrar todos os dias que faltava pouco tempo para o natal; e à Aline, pelo apoio de grande valor que sempre me deu. Agradeço à professora Ana Carolina Escosteguy, minha orientadora, pelo apoio inestimável e pela interlocução generosa que guiou a realização da pesquisa que deu origem a esta tese; e aos demais professores da FAMECOS. Agradeço também aos professores Carlos Gerbase e Adriana Amaral, pelas observações bastante proveitosas feitas na banca de qualificação, que serviram para o aprimoramento da pesquisa. Agradeço ainda aos professores Felipe Trotta, Luiz Artur Ferraretto e Ana Luiza Coiro pelas relevantes considerações feitas na banca de defesa desta tese. Agradeço aos colegas do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, em especial aos amigos do DINTER, que comigo compartilharam tristezas, alegrias, dificuldades e superação. Faço menção especial à professora Rose Ferreira, orientadora de monografia, que desempenha papel central na minha trajetória acadêmica. Agradeço ao Gabriel Farias, por ficar ao meu lado nos meses corridos e agitados que passei em Porto Alegre, oferecendo sua excelente companhia, apoio e muito chimarrão. Ele também fez uma leitura atenta de todo o trabalho, o que permitiu que eu o melhorasse consideravelmente. Agradeço aos amigos leais de São Luís – que não listarei para não esquecer de citar algum por descuido. E também aos amigos que fiz no Rio Grande do Sul. Agradeço aos artistas maranhenses que me concederam entrevistas – Jhonatan Oliveira, Jardel Oliveira, William Freire, Kaique Mamede, Hilton Almeida, Ódon Almeida e Adriano Camargo. À assessora de imprensa Fernanda Branco. E também aos produtores e divulgadores, que contribuíram abundantemente com a etapa exploratória da pesquisa – Adriano Fernandes, Igor Fernandes, Bruno Rocha, Ítalo Andrade, Léo Ferreira, Jéssica Cadidja e Philipe Amarante.

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“Não apresse o rio, ele corre sozinho”

Citação Zen

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RESUMO

O estudo investiga o lugar ocupado pela mídia na construção da identidade dos artistas que

compõem o circuito cultural da música sertaneja em São Luís. Esta busca está baseada em duas

proposições: primeiro, que a música constitui um processo comunicativo que se estabelece na

articulação entre os artistas, a mídia e os consumidores; em segundo lugar, que a produção de

sentido através da música está implicada pela classificação atribuída pelos gêneros musicais.

Os gêneros, nesse sentido, fazem parte de uma estratégia de endereçamento, que atua por meio

dos aspectos que os constituem: a sonoridade e a performance. A pesquisa tem um interesse

particular pela música sertaneja, gênero cuja origem remonta ao final da década de 1920. Esse

gênero passou por profundas transformações ao longo do tempo e se fixou na capital

maranhense em função dos deslocamentos decorrentes da migração e da disseminação

midiática. Por meio da adoção de uma metodologia inspirada pela etnografia, esta investigação

evidencia a articulação existente entre os momentos que formam o circuito cultural

mencionado: identidade, representação, produção, consumo e regulação. Infere-se que a mídia

desempenha um papel central na formação da identidade dos cantores sertanejos que constituem

o cenário analisado.

Palavras-chave: Música. Gêneros musicais. Música sertaneja. Mídia. Identidade.

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RÉSUMÉ

L’étude enquête la place occupée par les médias dans la construction de l’identité des artistes

qui font partie du circuit culturel de la musique sertaneja à São Luís. Cette recherche est basée

sur deux propositions: d’abord, que la musique constitue un procés communicatif qui s’établit

dans l’articulation entre les artistes, les médias et les consommateurs; en second lieu, que la

production de sens à travers la musique est impliquée par la classification attribuée par les

genres musicaux. Les genres, en ce sens, font partie d’une stratégie d’adressage, agissant par

des aspects qui les constituent: la sonorité et la performance. La recherche a un intérêt

spécifique par la musique sertaneja, genre dont l’origine remonte à la fin des anées 1920. Ce

genre a subi de profondes transformations au cours du temps et s’est fixé dans la capital

maranhense en fonction des déplacements liés à l’immigration et de la diffusion médiatique.

Par l’adoption d’une méthodologie inspirée par l’ethnographie, cette recherche reflète

l’articulation qui existe entre les moments qui composent le circuit culturel mentionné:

l’identité, la representation, la production, la consommation et la regulation. Il est conclu que

les médias joue un role crucial dans la formation de l’identité des chanteurs sertanejos qui

forment le scénario analysé.

Mots-clés: Musique. Musique sertaneja. Genres musicaux. Médias. Identité.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Fãs registram show de Luan Santana 23 Figura 2 – Ranking diário do Spybat 79 Figura 3 – Cornélio Pires 88 Figura 4 – Bob Nelson 92 Figura 5 – Capa de disco da dupla Leo Canhoto & Robertinho 95 Figura 6 – Disco de estreia da dupla Leandro & Leonardo 96 Figura 7 – Capa do primeiro disco de Zezé di Camargo & Luciano 98 Figura 8 – Israel Novaes canta Mulherada na lancha 110 Figura 9 – Disco que marca o início do sertanejo universitário 111 Figura 10 – Disco da dupla Jorge & Mateus lançado em 2015 112 Figura 11 – Michel Teló na capa da revista Época 114 Gráfico 1 – População urbana versus população rural brasileira em 1930 116 Gráfico 2 – População urbana versus população rural brasileira em 1990 116 Gráfico 3 – População urbana versus população rural brasileira em 2012 117 Figura 12 – Locais que compõem o cenário da música sertaneja em São Luís 120 Gráfico 4 – População urbana versus população rural maranhense em 2010 121 Figura 13 – Flyer digital de festa realizada pela casa de shows Chopp Cancun 123 Figura 14 – O circuito da cultura 126 Figura 15 – Fila em frente à casa de shows Lagoa House 138 Figura 16 – Gravação do DVD da dupla Jhonatan & Jardel 146 Figura 17 – Dupla Jhonatan e Jardel no palco da casa de shows Lagoa House 147 Figura 18 – Flyer digital de show no Daquele Jeito 150 Figura 19 – Adriano Camargo em apresentação no bar Por Acaso 154 Figura 20 – Flyer de show de Adriano Camargo 156 Figura 21 – Apresentação de William Freire no boteco e restaurante São & Salvo 162 Figura 22 – Flyer digital de apresentação de William Freire no bar Por Acaso 165 Figura 23 – Kaique Mamede em apresentação no Beach Bar 169 Figura 24 – Flyer digital de apresentação de Kaique Mamede no Beach Bar 173 Figura 25 – Apresentação da dupla Hilton e Ódon no Beach Bar 179 Figura 26 – Flyer digital do aniversário da dupla Hilton & Ódon 182 Figura 27 – Matéria sobre o Festival Villa Mix 192

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LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Perfil de ouvintes da pesquisa Tribos Musicais 78 Tabela 2 – Genealogia do disco na música caipira/sertaneja 94 Tabela 3 – Horário de encerramento dos estabelecimentos comerciais de São Luís 139

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 MÚSICA, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO 22 2.1 UMA PERSPECTIVA RELACIONAL SOBRE MÚSICA E

IDENTIDADE 44

2.2 MUSICA E IDENTIDADE NO CONTEXTO BRASILEIRO 51 3 GÊNEROS MUSICAIS, SONORIDADE E PERFORMANCE 57 3.1 GÊNERO COMO ESTRATÉGIA 58 3.2 GÊNEROS MUSICAIS 62 4 DO SELO VERMELHO AO BLUE LABEL 77 4.1 ANTES DA GOMA-LACA 81 4.2 FABRICAR DISCOS, FABRICAR ÍDOLOS 87 4.3 CAIPIRAS VERSUS SERTANEJOS 99 4.4 A VEZ DO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO 109 5 O CIRCUITO DA CULTURA DA MÚSICA SERTANEJA EM

SÃO LUÍS 114

5.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 125 5.2 O CENÁRIO LOCAL 137 5.3 ARTISTAS SERTANEJOS DE SÃO LUÍS 142 5.3.1 Da realização das entrevistas 142 5.3.2 Jhonatan & Jardel 144 5.3.3 Adriano Camargo 151 5.3.4 William Freire 158 5.3.5 Kaique Mamede 166 5.3.6 Hilton & Ódon 175 5.4 UMA ANÁLISE CULTURAL DO CENÁRIO SERTANEJO DE SÃO

LUÍS 184

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 191 REFERÊNCIAS 197 APÊNDICE A – Roteiro para entrevista 205 APÊNDICE B – Termo de consentimento livre e esclarecido 208 ANEXO A – Lei municipal nº 200 de 24 set. 2009 209

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1 INTRODUÇÃO

Esta tese se vincula ao conjunto de pesquisas acadêmicas que abordam objetos de estudo

inscritos no encontro entre os campos da Comunicação e da Música. O faz, sobretudo, a partir

do aporte teórico e metodológico dos estudos culturais e propõe um estudo acerca da música

como processo comunicativo que se estabelece na articulação entre os artistas, a mídia e os

consumidores. O objetivo geral da pesquisa, nesse sentido, é investigar o lugar ocupado pela

mídia no processo de construção da identidade dos artistas que compõem o circuito da cultura

da música sertaneja na cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão.

Considerar a música como um processo comunicativo é levar em conta que ela, de

acordo com Candé (2001), associa um organizador-emissor a um receptor através de um

conjunto de convenções que permite uma interpretação comum do sentido da organização

sonora. Para esse musicólogo, “um sistema de comunicação singular se estabelece entre os que

emitem a música e os que a recebem, na medida em que os segundos percebem uma ordem

específica, um sentido, desejado pelos primeiros” (CANDÉ, 2001, p. 10).

A relação entre produtores e consumidores de música é mediada, dessa forma, por um

modo de organização das convenções socialmente compartilhadas mencionadas acima, isto é,

pelo gênero musical. Aqui, gênero musical é compreendido como uma estratégia de

comunicabilidade, com base no que propôs Martín-Barbero (1995; 2009), constituída por dois

aspectos: a sonoridade e a performance.

A música sertaneja, nesta pesquisa, é compreendida como um gênero musical surgido

no Brasil, no final da década de 1920, a partir da tentativa de registro, em disco, da música

caipira. Por sua vez, a música caipira está relacionada aos rituais religiosos, de lazer e de

trabalho de quem habitava e trabalhava nas fazendas e sítios de cidades do interior paulista. O

jornalista, escritor e folclorista Cornélio Pires teria sido o responsável por viabilizar, no ano de

1929, a gravação e prensagem de vinte e cinco mil discos, o que foi fundamental para despertar

o interesse das gravadoras que atuavam no país, na época, pelo lucro que a musicalidade caipira

podia oferecer (FERRETE, 1985).

Os discos de goma-laca, criados pelo alemão Émile Berliner, impuseram, contudo, um

limite de tempo sobre o material a ser gravado e a música caipira foi adaptada a esse formato.

Os vinte anos seguintes a essa experiência pioneira fizeram com que o termo música sertaneja

se popularizasse. A música produzida na cidade se afastava, em muitos aspectos, daquela que

originalmente circulava no ambiente rural.

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Esses discos e os que viriam a ser gravados nos anos seguintes, aliados aos programas

de rádio e ao circo, levaram a música sertaneja para as cidades do interior de São Paulo e

também para outros estados. Ainda hoje, aliás, o disco e rádio, tendo agora a televisão como

aliada, exercem um papel fundamental na circulação e transformações do gênero musical

sertanejo pelo país. No setor do entretenimento ao vivo, festivais, casas de shows, boates e bares

desempenham um papel igualmente importante no que diz respeito ao alcance desse tipo de

música. A internet, por meio dos sites de redes sociais e pelo compartilhamento de vídeos em

plataformas como o YouTube, aumentou exponencialmente a circulação da música sertaneja.

Qual a razão, considerando o exposto até aqui, de se realizar uma investigação sobre o

papel da mídia na construção da identidade dos artistas sertanejos de São Luís? O que se observa

no cenário sertanejo dessa cidade é uma combinação de fatores que tem a mídia como ponto

principal. A proliferação da música sertaneja em São Luís se alargou com o surgimento e

consolidação de um circuito em que artistas locais se apropriam das músicas veiculadas

exaustivamente pela mídia, incorporam-nas ao seu próprio repertório e as executam em bares e

casas de shows, de modo que os frequentadores desses espaços possam consumi-las em uma

experiência ao vivo.

Trata-se, assim, de um consumo de música sertaneja que se desdobra em duas ocasiões

bastante distintas, porém complementares. Em um primeiro momento, intérpretes e músicos

locais consomem de maneira ativa e atenta o repertório disponibilizado através de discos de

vinil, fitas cassete, CDs, DVDs, Blue-Ray, programas de rádio e televisão e, mais recentemente,

por meio da internet. Em seguida, nos bares, boates e casas de shows da capital e de cidades do

interior do estado, as músicas são executadas ao vivo para o público presente nesses espaços.

Os artistas sertanejos dos quais esta tese trata podem, assim, ser considerados como

casos significativos de consumidores que se transformam em produtores. É necessário dizer,

contudo, que essa é uma lógica que antecede à popularização da internet e suas ferramentas.

Esse aspecto merece destaque porque o discurso de alguns dos entusiastas das novas tecnologias

sugere que o esmaecimento da fronteira entre produção e recepção é fruto do desenvolvimento

tecnológico, que colocou nas mãos dos antigos receptores, caracterizados como passivos, as

ferramentas necessárias para que estes se tornassem produtores. Isso é parcialmente verdadeiro,

infere-se. Na música, principalmente naquela ligada ao contexto não autoral e sem vínculo com

a grande indústria do disco, tal prática é anterior ao surgimento e à popularização da internet,

embora tenha se expandido por causa dela.

No circuito sertanejo de São Luís, em que o trabalho autoral é pouco explorado, o

consumo de música sertaneja – no espaço doméstico e também nas sessões de ensaios – feito

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por cantores e músicos produz, como já sugerido, um segundo momento de consumo – que

ocorre nos bares e nas casas de shows. Dizendo isso de outra maneira: o primeiro grupo de

consumidores – constituído por artistas atentos aos aspectos formais das canções –, atua como

uma instância intermediária entre a veiculação midiática e a performance ao vivo de música

sertaneja naquela cidade.

A apropriação feita pelos intérpretes e músicos locais não se limita, entretanto, apenas

à sonoridade. Também é comum que se perceba a incorporação de elementos do figurino, modo

de pentear o cabelo, sotaque e jeito de cantar e tocar de artistas consagrados pela mídia.

Novamente se evoca a centralidade da mídia na construção do artista sertanejo dessa cidade:

sua performance ao vivo é diretamente implicada pelo modo como os nomes de maior

visibilidade no gênero são representados através da mídia. Argumenta-se que a identidade do

artista local se constitui, ou melhor, é construída em função da representação midiática da

música sertaneja.

O consumo no contexto dos bares e casas de shows é implicado, dessa forma, pela

apropriação feita pelos artistas do que seria considerada por eles a sonoridade e performance

própria da música sertaneja. Esses elementos, como se verá em momento oportuno, foram se

alterando com o passar do tempo.

A música caipira, anterior à gravação em disco, era executada sempre no contexto dos

rituais de trabalho, de lazer e de profissão religiosa. A viola era o instrumento musical mais

importante e a voz dos intérpretes, normalmente, era nasalizada. Os temas abordados se

ligavam, basicamente, à vida rural e ao contato com a natureza. Era uma música voltada para

adultos. Há uma relação intensa com a história de vida e com as raízes de quem canta. São

músicas interpretadas pela gente do interior e a autoria nem sempre é facilmente identificável.

No contexto urbano, torna-se uma regra com pouquíssimas exceções a formação de

duplas. Para dar continuidade ao plano de Cornélio Pires, mas também por causa do êxodo rural

gerado pela crise do café, muitos trabalhadores rurais se mudaram para a capital paulista em

busca de trabalho e trouxeram consigo a viola e todo o repertório repleto de erros gramaticais

que caracteriza, de certa maneira, a música caipira. Alguns chegaram a gravar discos.

Apresentavam-se em circos e eventos com pouca atenção da mídia da época e disputavam

espaço nos programas de rádio. O uso, portanto, deixou de ser ritual e se voltou para o mercado

de discos e para a promoção através do rádio.

Com o passar dos anos, de modo a acompanhar a viola e o violão, outros instrumentos

musicais foram sendo incorporados. O figurino das duplas sertanejas também se alterou, em

comparação ao que vestiam no campo. Elementos da cultura country como botas, cintos com

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fivelas grandes e chapéus foram assimilados, assim como calças de couro coladas ao corpo. O

amor passou a ser a questão tratada com maior frequência e os jovens puderam se identificar

com o segmento. Houve uma necessidade grande de modernizar as canções, adotando

elementos e sonoridades provenientes de outros gêneros musicais. Os intérpretes e alguns

compositores ainda estavam ligados ao interior, mas a temática da vida na cidade grande e as

experiências ali vividas se sobrepuseram.

No contexto do que veio a ser chamado de sertanejo universitário, vertente importante

da música sertaneja contemporânea, os artistas mantêm alguns desses elementos citados acima,

mas dão a eles um caráter mais moderno e mais urbano. Adotam a jaqueta de couro ou as

camisetas justas para realçar o corpo malhado e as muitas tatuagens. Muitos são adeptos da

prática do pulseirismo, isto é, do uso de muitas pulseiras nos mais variados tamanhos, estilos e

tipos de material. As duplas disputam espaço com muitos artistas que cantam sozinhos. E no

que diz respeito à performance, muitos cantores sequer têm contato com os instrumentos

musicais. A aproximação com gêneros musicais como o forró e o funk levou à necessidade, a

propósito, de incorporar outros instrumentos, alterando significativamente a sonoridade. A voz

nasalada permaneceu, mas não é regra. Além do amor, relações sexuais fortuitas, o consumo de

álcool e as festas passam a fazer parte das letras.

O público jovem e adolescente se tornou aquele a que se buscou atingir. Há muita

influência de outros gêneros musicais urbanos, como o forró eletrônico e o funk. São músicas

feitas para as baladas sertanejas que se espalham pelo país, ou para os paredões de som que

duelam nos postos de combustível. Os artistas que cantam sozinhos fazem tanto sucesso quanto

fizeram as duplas. Outro aspecto importante de distinção na música sertaneja contemporânea é

o uso intenso dos sites de redes sociais como forma de aproximação entre os ídolos e os seus

fãs.

No cenário analisado, isto é, aquele que se formou em São Luís, a coleta de dados por

meio de observação direta e de entrevistas semiabertas permitiu que se percebesse a presença

de elementos identitários que correspondem tanto ao sertanejo contemporâneo quanto à música

sertaneja mais tradicional. A discussão a respeito da metodologia empregada será retomada em

seção própria. Por ora, apresentam-se alguns comentários sobre o lugar cujo circuito cultural

da música sertaneja foi investigado e algumas das dificuldades que se apresentaram no percurso.

A primeira dificuldade que se apresentou na elaboração de uma tese sobre esse tema,

isto é, sobre o lugar ocupado pela mídia no processo de construção da identidade dos artistas

que compõem o circuito da cultura da música sertaneja na cidade de São Luís, foi uma questão

de disputa simbólica. A rigor, a música sertaneja não tem legitimidade quando se trata de

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compreender a identidade cultural ludovicense1. É uma música estranha, que não possui raízes

ali. A capital do estado do Maranhão é conhecida nacionalmente como a Jamaica Brasileira. O

contraditório é que o reggae, assim como a música sertaneja, não nasceu em São Luís, e embora

tenha se fixado na cidade e transformado, de certa maneira, a sua paisagem sonora, há poucos

casos de produção autoral em comparação ao que é executado pelas radiolas de reggae.

Não existe consenso sobre como o gênero musical nascido na Jamaica chegou a São

Luís, mas isso teria acontecido: ou no final da década de 1960, por meio de sons captados via

rádio; ou na década de 1970, trazido pelos navios que aportavam na cidade (MORIAS;

ARAUJO, 2008). De qualquer forma, o reggae faz parte da constituição de uma identidade

musical da cidade, assim como as toadas do Bumba meu boi, que podem ser ouvidas a partir

do mês de maio, em função da proximidade com as festas juninas. As duas experiências marcam

o imaginário local no que diz respeito à identidade musical e alimentam, por parte dos seus

adeptos e da mídia local, uma forte disputa para se firmarem como símbolos identitários. A

música sertaneja, nascida em São Paulo, certamente está fora do páreo.

Entretanto, quando se trata de musicalidade, São Luís é marcada por contradições

próprias do fenômeno da globalização. Em um final de semana comum, por exemplo, quem

busca diversão na cidade pode optar: por uma festa “regada a reggae” (Bar do Nelson, Porto da

Gabi); por ensaios de Bumba meu boi (no bairro Maracanã); por festas de música eletrônica

(Life); por pagode (Chinelo de Dedo, Daquele Jeito); por forró (Três Amores, Mandamentos

Hall); por rock (Veneto, Amsterdam); por música brega (Choperia Marcelo, Cabão); ou por

música sertaneja (Lagoa House, Garden’s Pub).

Os gêneros musicais citados acima, além de encontrarem espaço nos referidos bares,

botecos, boates e casas de shows, têm espaço considerável na programação das emissoras de

rádio da cidade. Alguns gêneros têm até programas especificamente voltados para a divulgação

de músicas, artistas e eventos ligados a eles.

Durante a realização da fase exploratória da pesquisa, eu estive na maioria dos espaços

onde aconteciam apresentações de artistas sertanejos. Assisti a inúmeras apresentações de

duplas e cantores locais. Algumas das casas permitiam a entrada gratuita, desde que o nome

constasse na lista de “convidados”. Outras cobravam couvert artístico, o que custava, em média,

sete reais. Já em outras, era preciso desembolsar, apenas no ingresso, algo entre trinta e sessenta

reais2. O importante a se destacar é que, na maioria dos casos citados, os eventos contemplavam

1 Gentílico que designa quem nasce em São Luís. 2 Valores referentes ao ano de 2014.

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a mistura de músicas de diversos gêneros musicais. Era possível ouvir sertanejo e forró nas

boates, bem como música eletrônica e funk nos bares.

Essa combinação pode ser explicada de muitas maneiras. Uma delas é pela própria

história da cidade, ou seja, como resultado das influências europeias, indígenas e africanas na

constituição da gente que vive em São Luís. Também pode ser explicada pela forte migração

de mão de obra de outros estados para o Maranhão, pessoas que chegaram para trabalhar em

empresas como a Vale3 ou a Alumar4. E também pode ser explicada, é claro, pela forte

influência da mídia, importante agente de circulação da música produzida num contexto global.

Como esse fenômeno pode ser analisado criticamente, para além das explicações acima?

Ao pensar a história da música na América Latina, Marcos Napolitano (2002) sugere que não

é possível que a análise seja feita de forma linear – como no caso do modelo histórico da Europa.

Isso porque o continente americano foi formado por complexos culturais híbridos, fruto da

formação das sociedades nacionais que podem ser, ao mesmo tempo, “modernas” e “arcaicas”.

Essa perspectiva vai ao encontro da análise que Canclini (2011) oferece sobre a formação da

identidade cultural latino-americana, a ser detalhada posteriormente.

Discutir aspectos da modernidade e da tradição na música, ou melhor, na canção popular

urbana, é central quando se tenta compreender, por exemplo, de quais modos as identidades

musicais são implicadas pelo fenômeno da globalização. A música sertaneja, por exemplo,

demorou a ser enquadrada como música popular, exatamente por conta da tradição rural. Na

perspectiva apresentada por Napolitano, a canção é produto do século XX e uma das suas

características principais é adaptação a um mercado urbano.

A música popular urbana seria, sugere esse autor, uma reunião de elementos da música

erudita, da música dita folclórica e do cancioneiro. Sua disseminação está ligada à urbanização

e ao surgimento das classes populares. Mas isso não aconteceu sem oposição, uma vez que a

música popular foi rejeitada tanto por eruditos quanto por folcloristas. Por muitas razões,

explica Napolitano: pela decadência do compositor e do público, uma vez que este último estava

submetido às fórmulas impostas por interesses comerciais que restringiam a liberdade de

criação dos verdadeiros compositores em benefício de compositores considerados medíocres;

porque em termos de harmonia e melodia, a música popular era simplória e repetitiva; porque,

na perspectiva dos estudiosos do folclore, essa música perdia a pureza sociológica, étnica e

estética que somente a música camponesa ou rural conseguia oferecer; e porque esse tipo de

3 A Vale é uma empresa do ramo da mineração com operações no Maranhão desde 1985. 4 A Alumar é um consórcio de empresas, instalado no Maranhão desde 1980, voltado para a produção de alumínio primário e alumina.

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música nascia impregnado pelas modas internacionais, não honrava as conquistas musicais da

grande música ocidental e pervertia a herança popular dita autêntica e espontânea, graças ao

comercialismo fácil e mistura sem critério de várias tradições e gêneros.

Um dos segmentos que não passou ileso às críticas feitas à música popular, abordadas

por Napolitano e apresentadas acima, foi a música sertaneja. A história desse gênero, como

indicado anteriormente, é marcada por transformações significativas. E, mais do que isso,

envolve vários aspectos que podem ser criticados tanto por eruditos quanto pelos folcloristas.

Existe, na trajetória de uma música camponesa para um gênero musical urbano, uma mudança

completa nas condições de produção, nos temas tratados pelas letras das músicas e no modo

como a música sertaneja é consumida. A mudança mais significativa, entretanto, está

relacionada à sonoridade da música sertaneja, que vai se transformando sempre que esta entra

em contato com outros gêneros musicais.

Cabe aqui uma última observação sobre a mistura de gêneros tanto nas transformações

pelas quais passou a música sertaneja quanto na organização das festas realizadas em São Luís.

Napolitano observou o fato de o continente americano ter se formado por complexos culturais

híbridos. Esse é um ponto que se torna bem mais claro com a perspectiva apresentada por

Canclini (2011) sobre a questão.

A hibridização, de acordo com o autor, aponta para processos socioculturais em que

estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas

estruturas, objetos e práticas. Ou seja, a ideia remete às misturas interculturais. De que maneira

ela acontece? “Às vezes, isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto de

processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional” (CANCLINI,

2011, p. xxii). Contudo, o autor observa que a hibridização, processo capaz de relativizar a

noção de identidade, pode surgir da criatividade individual e coletiva em várias áreas, como nas

artes, na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico.

Vários são os aspectos cobertos por essa noção, dentre os quais está a música. Para

Canclini, aliás, o conceito é útil para abranger contatos interculturais que costumam receber

nomes diferentes, como fusões raciais ou étnicas e as misturas entre o escrito e o visual nas

mensagens midiáticas. A questão que o autor coloca, entretanto, é a seguinte:

[...] como designar as fusões entre culturas de bairro e midiáticas, entre estilos de consumo de gerações diferentes, entre músicas locais e transnacionais que ocorrem nas fronteiras e nas grandes cidades (não somente ali)? A palavra hibridização aparece mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também a de produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós modernos (CANCLINI, 2011, p. xxix).

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A música sertaneja nasce exatamente a partir da fusão da cultura proveniente do

ambiente rural com a indústria da música gravada, urbana. E encontra, na veiculação exaustiva

através do rádio, um dos meios mais férteis de se espalhar pelo país. Ao longo de sua história,

além de sofrer a influência de gêneros musicais paraguaios, mexicanos e estadunidenses, o

gênero tem se modernizado no intuito de atrair um público cada vez mais jovem formado por

quem mora nas capitais.

A reflexão proposta por Canclini, nesse sentido, fornece alguns subsídios que justificam

a relevância acadêmica de uma pesquisa sobre o lugar ocupado pela mídia na construção da

identidade dos artistas que compõem o circuito da cultura da música sertaneja em São Luís.

Ajuda ainda na compreensão de como, no contexto analisado, o gênero se articula, rearticula

ou, de alguma maneira, desarticula-se com o seu universo mais amplo.

A produção e o consumo de música ao vivo em São Luís estão implicados pela

hibridização. Por ser fruto do talento de artistas muito novos, nascidos, em sua maioria, nos

centros urbanos, as referências acabam por se afastar de maneira radical da música caipira, que

cantava a vida na roça. Isso tem a ver, entre outras coisas, com a distância geográfica e também

de contexto com o “sertão” (estados como São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso

do Sul e Goiás).

Somado a isso, a relação com a música sertaneja gravada se dá, além do contato com

produtos tais como LPs, CDs e DVDs, por meio da circulação promovida pela mídia e nos

shows que alguns artistas de renome fazem, eventualmente, na cidade.

Conjectura-se, então, que o cenário sertanejo de São Luís (o que abrange a identidade

dos artistas que o compõem) se concentra em agradar ao público frequentador de bares e casas

de show locais, que se identificam de alguma forma com o gênero, mas, principalmente, que é

fruto do modo com a música sertaneja é representada através da mídia. A mídia, principalmente

a televisão, foi uma das principais responsáveis pelo desenho desse sertanejo que mexe com o

imaginário dos jovens que formam duplas ou se lançam em carreira solo.

É sintoma disso que, em São Luís, cidade onde não há gravadoras ou selos para a música

sertaneja, os artistas passem a construir uma carreira quase sempre não autoral nos espaços já

citados.

Conforme já apontado, o objetivo central deste trabalho é investigar o lugar ocupado

pela mídia na construção da identidade dos artistas que formam o circuito da cultura da música

sertaneja em São Luís. Trabalha-se, para isso, com o pressuposto de que as identidades dos

cantores e duplas sertanejas ligadas ao contexto analisado são diretamente constituídas pelas

apropriações mencionadas anteriormente. Como objetivos secundários, esta tese se propõe

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também a: indicar as transformações pelas quais a música sertaneja passou ao longo de sua

história, desde as primeiras gravações realizadas em 1929; discutir a noção de gêneros musicais

como base para a compreensão da música enquanto processo comunicativo; e demonstrar a

articulação existente entre os momentos da produção e do consumo de música sertaneja em São

Luís. Compreender as transformações do gênero, no que tem relação com a sonoridade e a

performance, é uma condição necessária para a análise do cenário em questão.

A tese se encontra estruturada em quatro capítulos. No primeiro, discute-se a relação

entre música, identidade e representação. A proposta é, em primeiro lugar, compreender a

constituição da identidade a partir das transformações vivenciadas em decorrência do processo

de globalização e intercâmbio cultural. Em seguida, pretende discutir a relação entre o consumo

de música e a formação da identidade. A mídia, conforme já antecipado, desempenha um papel

decisivo nesse processo. Há, no primeiro capítulo, uma seção dedicada à articulação entre

música e identidade no contexto brasileiro.

No segundo capítulo, discute-se a noção de gênero musical como importante elemento

para a caracterização da música enquanto processo comunicativo. A argumentação é que o

gênero musical é uma estratégia de comunicabilidade e, nesse sentido, compõe uma estratégia

mais ampla de endereçamento, que articula produção e consumo em torno da música. Discutem-

se, ainda, questões ligadas à sonoridade e à performance como aspectos que compõem o gênero

musical e implicam o êxito da referida classificação.

O terceiro capítulo apresenta um relato sobre a natureza e características da música

sertaneja. Não se trata de um capítulo de caráter historiográfico, embora seja possível pensar

em eventos significativos para a compreensão da história dessa música de um modo mais

amplo. O que se busca é, dizendo de outro modo, a partir de um trabalho de revisão

bibliográfica, entender continuidades e rupturas na história da música sertaneja, o que inclui o

modo como esse gênero tem sido representado pelos meios de comunicação e as identidades

que se formam em decorrência dessa representação.

O quarto capítulo é dedicado a uma discussão sobre as condições de produção da música

sertaneja em São Luís, levando em conta aspectos objetivos e subjetivos subjacentes a esse

processo. Para a compreensão do momento da produção, os dados foram coletados por meio de

observação direta das apresentações e entrevistas semiabertas realizadas com os artistas locais.

Há, no capítulo, a apresentação mais detalhada dos procedimentos metodológicos – onde se

detalha a configuração do circuito da cultura, protocolo proposto por Du Gay at al. (1997), a

partir do qual se realiza a análise cultural contida nesta tese. Esse protocolo, inicialmente

desenvolvido para a análise do Walkman, contempla cinco momentos ou processos que devem

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ser tomados como articulados uns aos outros. Os momentos do circuito são: representação,

identidade, produção, consumo e regulação.

Esse capítulo trata ainda da observação e das entrevistas realizadas, cujo propósito era

conhecer a trajetória dos artistas locais, suas influências artísticas e musicais, a relação com a

mídia na formação da identidade e da constituição do repertório e a leitura que fazem do cenário

no qual estão inseridos. Mas era, de igual modo, perceber as articulações que se estabelecem

entre os momentos da produção e do consumo de música sertaneja no contexto ao qual esta

proposta faz referência.

O que se espera com a realização desta pesquisa é que o cenário da música sertaneja em

São Luís possa ser compreendido na sua articulação com a conjuntura mais ampla do referido

gênero. Além disso, que seja reconsiderado no contexto acadêmico o lugar dessa música no

exercício de reflexão sobre a identidade do povo brasileiro. Mais especificamente, que seja

levado em conta o papel que a mídia ocupa na configuração das identidades individuais e

coletivas. Sobre esse aspecto, a propósito, merece atenção que os artistas locais não são os

únicos a se identificar com o universo sertanejo; no cenário analisado, a predileção dos jovens

pela música sertaneja e por gêneros musicais associados a ela é fundamental para cimentar as

formas de sociabilidade que as festas proporcionam.

Por último, a realização de uma pesquisa sobre esse assunto é também uma proposta

pessoal para que mesmo aqueles que não apreciam música sertaneja reconheçam que

conseguem cantar junto: “E nessa loucura de dizer que não te quero/ Vou negando as

aparências/ Disfarçando as evidências...”. Essa canção, de 1990 – gravada por Chitãozinho &

Xororó e executada exaustivamente por programas de rádio –, aparece com frequência no

repertório de todo e qualquer artista que se designe sertanejo.

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2 MÚSICA, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

O relatório da Associação Brasileira dos Produtores de Discos publicado em 2012

apontou que, naquele ano, houve um crescimento superior a oitenta porcento nas receitas de

downloads de músicas avulsas, álbuns completos, toques de celular, assinaturas de serviços de

streaming e das modalidades que são remuneradas por publicidade – como é o caso do YouTube.

Em contrapartida, as vendas de CDs, DVDs e Blu-Rays tiveram uma queda superior a dez

porcento. Segundo o relatório, entre os artistas brasileiros que mais venderam discos em 2012

estavam os cantores Roberto Carlos, Paula Fernandes e Padre Marcelo Rossi5.

Outro nome que consta no referido relatório é o do cantor sertanejo Luan Santana, que

no ano seguinte, 2013, gravou o terceiro DVD da sua carreira recém iniciada. Gravado em Itu,

interior de São Paulo, a produção teve o custo estimado em mais de três milhões de reais6. Cerca

de dezoito mil pessoas teriam participado do evento7. O DVD recebeu certificação de platina

tripla, o que corresponde a mais de cento e cinquenta mil cópias vendidas8. O videoclipe oficial

de Tudo que você quiser, uma das músicas de trabalho do disco, teve, até o final de agosto de

2015, mais de cento e dezesseis milhões de visualizações no YouTube.

Em Tudo que você quiser, Luan Santana veste um blazer preto – traje bastante diferente

do usado nas gravações dos DVDs anteriores – e inicia a música tocando violão. Soma-se aos

acordes iniciais o coro da multidão presente no evento. Algumas fãs mostradas ao longo do

videoclipe aparecem com os olhos fechados; outras choram enquanto cantam. Erguem os

braços, entregues ao momento. A maioria dos presentes, porém, faz fotos e vídeos usando o

celular ou câmeras fotográficas. Essas são, aliás, algumas das formas contemporâneas de se

estar em um show. Aquele registro vale tanto como um recurso de memória como um

comprovante de que aquele que fez o vídeo ou a foto realmente esteve ali.

5 O relatório Mercado brasileiro de música 2012 está disponível em: http://www.abpd.org.br/wp-content/uploads/2015/01/ABPD_Publicacao2013_CB_final.pdf. Acesso em: 28 out. 2015. 6 A estimativa foi publicada pelo UOL Entretenimento e pode ser acessada no endereço: http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2013/07/08/luan-santana-propoe-novo-caminho-para-o-sertanejo-em-gravacao-de-dvd.htm. 7 A matéria que fez a estimativa do público presente na gravação do DVD em dezoito mil pessoas pode ser acessada no endereço: <<http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/musica/noticia/2013/07/luan-santana-grava-dvd-em-itu-sp-e-planeja-apresentacao-para-o-papa.html>>. 8 A certificação por venda de gravação musical do artista pode ser acessada no site da Associação Brasileira dos Produtores de Disco.

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Figura 1 – Fãs registram show de Luan Santana

Fonte: Canal de Luan Santana no YouTube.

A letra da música, cujo título já foi mencionado, aborda a questão da saudade; trata-se

de uma proposta para que um suposto casal permaneça unido, mesmo que, para isso, seja

necessário que se celebre um casamento. No refrão, Luan canta: “Eu troco minha paz por um

beijo seu/ Eu troco meu destino pra viver o seu/ Eu troco minha cama pra dormir na sua/ Eu

troco mil estrelas pra te dar a lua/ E tudo que você quiser/ E se você quiser, te dou meu

sobrenome”.

Na segunda parte da música, o cantor literalmente se livra do violão – jogando-o para

longe. Ele passa a andar pelo palco e a proximidade com o público evidencia as tentativas dos

fãs de estabelecer algum contato, por meio de cartazes, faixas e gritos. Parte da performance de

Luan consiste em se movimentar pelo palco, como se procurasse a pessoa para quem canta. Ele

pede, num determinado momento, que as pessoas acompanhem a música batendo palmas. Em

seguida, balões vermelhos são liberados e sobem rumo ao céu. O cantor, nesse ponto, chama os

fãs de anjos. A parte final da música também é composta pelo coro dos presentes, seguido por

gritos, aplausos, choro, uma declaração de amor do cantor sertanejo para o público e sua

satisfação evidente com o resultado da performance ao vivo9.

Fui a um show de Luan Santana realizado em Porto Alegre, em maio de 2015. O tempo

na fila para entrar no estacionamento da Arena do Grêmio serviu para que eu pudesse conhecer,

ainda que de modo superficial, os sentidos que algumas fãs desse cantor sertanejo, chamadas

de luanetes, atribuem à sua paixão por ele. Duas garotas, uma de onze anos, acompanhada pela

mãe, e outra de quatorze, aparentemente sozinha, realizavam o que parecia ser uma disputa de

9 O vídeo oficial da música Tudo que você quiser está disponível no canal de Luan Santana no YouTube, no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=-YzDsDMYqdw. Acesso em: 28 out. 2015.

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conhecimentos acerca do ídolo. A garota mais nova foi considerada campeã pela mais velha

depois que informou o nome do médico que supostamente teria realizado o parto de Luan

Santana. A mãe da garota de onze anos afirmou, num determinado ponto da conversa, que ela

e a filha tinham ido às últimas três apresentações do cantor sertanejo no Rio Grande do Sul,

além de terem comprado todos os CDs e DVDs já lançados. Pelos depoimentos que deram,

ambas conheciam todas as músicas dele.

Ir a shows e a festivais, assistir a videoclipes, comprar CDs e DVDs, fazer parte de fã-

clubes, ouvir programas de rádio e fazer uso de serviços como Spotify10 são algumas das muitas

formas de se consumir música. É, infere-se, um momento de contato – mediado ou direto – com

um artista com o qual se estabelece algum tipo de identificação.

Alguns fatores que condicionam o consumo de música popular são o poder de compra

e a idade. Por falta de dinheiro, por exemplo, um fã pode deixar de ir ao show da sua banda

preferida. Um adolescente de uma capital brasileira qualquer pode, desde que disponha de TV

a cabo, passar boa parte da noite assistindo a programas de clipes musicais como o TVZ, do

canal Multishow. Um estudante pode fazer o trajeto de casa até a universidade, de ônibus,

ouvindo as músicas disponíveis no telefone celular ou lendo uma biografia da sua banda de

rock preferida. São inúmeras as possibilidades.

Consumo está relacionado, nesta tese, ao modo como nos apropriamos e damos sentido

às mais diversas formas culturais no dia a dia (MACKAY, 1997). Segue-se, neste trabalho, a

ideia de que o consumo não é determinado pela produção, mas que há um processo de

articulação entre os dois momentos.

Hugh Mackay observa, a propósito, que a questão do consumo se tornou foco de

pesquisadores ligados ao campo dos estudos culturais a partir da década de 1970. Esses

pesquisadores teriam se deparado com consumidores ativos, criativos e críticos em sua

apropriação e transformação dos artefatos culturais, ao contrário do que sugeriu a crítica à

cultura de massa. As identidades são construídas, diz o autor, por meio desses processos de

apropriação. Canclini (1999) concordará com essa perspectiva.

É relevante que seja dito que um dos aspectos mais importantes envolvidos no consumo

de música é o gosto. O gosto, muitas vezes, implica que determinadas pessoas assumam o

consumo de determinado gênero musical em detrimento de outro. Essa é uma visão que

tangencia a perspectiva de Bourdieu (2007) acerca do assunto, isto é, que o gosto é um modo

de distinção e se constrói socialmente. A esse respeito, o autor diz:

10 Serviço de streaming de música digital. É um modelo de negócio que permite que o usuário acesse músicas gratuitamente ou por meio de assinatura.

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Contra a ideologia carismática segundo a qual os gostos, em matéria de cultura legítima, são considerados um dom da natureza, a observação científica mostra que as necessidades culturais são o produto da educação: a pesquisa estabelece que todas as práticas culturais (frequência dos museus, concertos, exposições, leituras, etc.) e as preferências em matéria de literatura, pintura ou música, estão estreitamente associadas ao nível de instrução (avaliado pelo diploma escolar ou pelo número de anos de estudo) e, secundariamente, à origem social.

O que Bourdieu propõe, entende-se, é que o gosto não é inato, ou melhor, não é algo

que nasce com o indivíduo. O gosto, pela perspectiva apresentada, é construído nas relações

familiares e educacionais. Como estratégia de distinção, esse sociólogo observa que o gosto

classifica aquele que procede à classificação. Há um modo de se constituir identidade por meio

do consumo que, por sua vez, está implicado pelo que se admite ou se nega consumir.

Há um capítulo específico para a discussão sobre gêneros musicais nesta tese, mas a

argumentação de Jeder Janotti Junior (2006, p. 39) acha lugar no que foi argumentado até aqui:

Quando uma gravadora, um músico, um crítico ou um fã assumem ou negam determinado gênero, eles o fazem de acordo com referências que estão situadas à margem ou nos confins das estratégias textuais, que são interdependentes dos aspectos sociológicos e ideológicos da produção e do consumo da música popular massiva, ou seja, a produção de sentido diante da música envolve modos de gostar/não gostar, modos de audição específicos ligados às apropriações da musicalidade.

Em outra oportunidade, Janotti Junior (2003) já havia tratado da relação entre consumo

e identidade. Ele observou que o consumo está ligado a uma parte do processo identitário, que

envolve a tensão entre a cultura global e as apropriações locais. Seriam dois os possíveis

desdobramentos desse processo: 1) ou há uma reestruturação do local frente à globalização; 2)

ou ocorre a solidificação de identidades híbridas que permitiriam um fluxo mais fluido entre o

local e o global.

Este capítulo de revisão tem dois objetivos principais: primeiro, pensar a constituição

da identidade a partir das transformações vivenciadas pelos indivíduos no que diz respeito ao

processo de globalização e ao decorrente intercâmbio cultural; segundo, discutir a relação entre

o consumo de música e a formação da identidade. É importante que se tenha em mente o lugar

ocupado pela mídia nesse processo, uma vez que ela é uma das responsáveis, como se verá, por

favorecer o contato dos indivíduos com outras culturas.

A discussão apresentada na primeira parte do capítulo, que, de alguma forma, dá conta

do primeiro objetivo mencionado acima, está ancorada no que propuseram autores como Hall

(1996; 1997; 2002; 2013), Woodward (2013), Canclini (1997; 1999), Giddens (2002), Restrepo

(2006) e Jenkins (2008).

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A identidade é uma das muitas categorias conceituais do campo dos estudos culturais.

Se é verdade que esse campo se propõe a identificar e articular as relações entre cultura e

sociedade, conforme sugerem Cary Nelson, Paula Treichler e Lawrence Grossberg (1995) ao

tratar das contribuições de Raymond Williams, também é verdade que a própria noção de

cultura é bastante ampla. Essa compreende, de acordo com os autores citados acima, tanto

ideias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder quanto práticas culturais

variadas, tais como formas, textos, cânones, arquitetura e mercadorias produzidas em massa.

Williams (1965) propõe que há três categorias gerais na definição de cultura. A primeira,

ideal, aponta para uma noção que se refere à um estado ou processo relativo à perfeição humana.

Diz respeito ao acúmulo de valores permanentes e atemporais. Já a segunda, documental,

considera cultura como um corpo de trabalho intelectual e criativo. A terceira definição de

cultura é social, e remete a um modo particular de vida que expressa sentidos e valores não

apenas nas artes e no conhecimento, mas também nas instituições e no comportamento

cotidiano. Essa última acepção inclui objetos que anteriormente não eram considerados como

constitutivos da cultura, como por exemplo, formas características de comunicação e a estrutura

de instituições que organizam as relações sociais.

O debate sobre a constituição da identidade é caro para o campo dos estudos culturais,

que fornece perspectivas significativas para a abordagem do assunto. Stuart Hall (1996) observa

que a identidade não deve ser pensada como um fato que, uma vez consumado, passa a ser

representado pelas práticas culturais. Ao invés disso, deve ser pensada como algo que nunca se

completa, sempre em processo, sempre constituída interna e não externamente à representação.

Para o autor, escrevemos e falamos desde (ênfase do próprio Hall) um lugar e de um tempo

determinados, desde uma história e uma cultura que nos são específicas. “O que dizemos está

sempre ‘em contexto’, posicionado” (HALL, 1996, p. 68).

Haveria duas abordagens principais para se pensar a formação da identidade cultural. A

primeira visão, essencialista, sugere que nossas identidades culturais refletem experiências

históricas em comum e códigos culturais compartilhados a nós fornecidos. São quadros de

referência e sentido estáveis, contínuos e imutáveis. Já a visão não essencialista da constituição

da identidade implica em considerar as similaridades como também as diferenças naquilo que

nos tornamos. Ou seja: não se trata apenas de uma questão de ser, mas também de se tornar.

Hall (1996, p. 69) observa a esse respeito:

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As identidades, longe de estarem alicerçadas numa simples “recuperação” do passado, que espera para ser descoberto e que, quando o for, há de garantir nossa percepção de nós mesmos pela eternidade, são apenas os nomes que aplicamos às diferentes maneiras que nos posicionam, e pelas quais nos posicionamos, nas narrativas do passado.

O autor descreve o que a identidade cultural não é: não é jamais uma essência fixa que

se mantenha imutável; não é um espírito transcendental e universal que não tenha marcas da

história; não é definitiva; e não é uma origem fixa para a qual podemos retornar final e

absolutamente. As identidades culturais são, para Hall, os pontos instáveis de identificação

feitos no interior dos discursos da cultura e da história. São um posicionamento. Tratando das

identidades negras do Caribe, Hall observa que essas são implicadas tanto pela similaridade e

continuidade quanto pela diferença e ruptura. Trata-se de levar em consideração uma certa

continuidade e uma descontinuidade profunda fruto da escravidão, do tráfico, da colonização e

da migração.

Em outra oportunidade, Hall (2013) afirma estar havendo uma completa desconstrução

das perspectivas tradicionais sobre a questão identitária, criticando a ideia de uma identidade

integral, originária e unificada. Se é assim, quem precisa da identidade? O autor, ao propor a

questão, diz que há duas formas de respondê-la: a primeira é considerar que a identidade é uma

ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual determinadas questões não

poderiam ser pensadas. Ou então, deve-se observar quais problemas fazem emergir o que o

autor chama de irredutibilidade do conceito de identidade.

O conceito de identificação seria uma alternativa ao conceito de identidade, mas deve

ser usado com cautela. A identificação é vista pela abordagem discursiva como uma construção,

um processo nunca completado. Ela poderia ser, sempre, sustentada ou abandonada. Ela é

condicional. A identificação é um processo de articulação (HALL, 2013).

O autor ratifica que, no seu argumento, o conceito de identidade não é essencialista, mas

um conceito estratégico e posicional. A concepção proposta

[...] aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2013, p. 108).

O debate a respeito da identidade precisa considerar os processos de globalização e de

migração forçada. Esses processos e práticas perturbam, na visão do autor, a relativa

estabilidade das populações e culturas. De acordo com essa perspectiva, as identidades têm a

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ver com a utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção daquilo

no qual nos tornamos. De acordo com Hall, as identidades surgem da narrativização do eu e por

isso, precisam ser compreendidas “como produzidas em locais históricos e institucionais

específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e

iniciativas específicas” (HALL, 2013, p. 109).

As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Podem funcionar

como pontos de identificação e apego por sua capacidade para excluir, deixar de fora,

transformar o diferente em abjeto. Seriam, nesse sentido, posições que o sujeito é obrigado a

assumir, mesmo sabendo que elas são representações e que a representação é sempre construída

a partir do lugar do Outro.

Para Kathryn Woodward (2013), a identidade é relacional e marcada pela diferença. A

diferença, por sua vez, seria sustentada pela exclusão. A autora pontua que a identidade é

marcada por meio de símbolos, indicando que existiria uma associação entre a identidade das

pessoas e as coisas que a pessoa usa. A construção da identidade, por esse ponto de vista, é

“tanto simbólica quanto social” (WOODWARD, 2013, p. 10).

A autora destaca que uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas

reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos. Ela retoma a oposição entre

perspectivas essencialistas e não essencialistas a respeito da identidade, antes de estabelecer as

bases para a importância do debate sobre o conceito. Cita, então, o lugar que a identidade ocupa

no circuito da cultura, desenvolvido para possibilitar, segundo propõe Du Gay at al. (1997), a

compreensão completa dos artefatos culturais. O vínculo entre a representação e a identidade é

evidenciado pela autora. Ela diz:

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderia ser? Quem quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2013, p. 18).

Um aspecto bastante importante para a compreensão da perspectiva não essencialista da

identidade é apontado pela autora. Ela diz que a cultura molda a identidade ao dar sentido à

experiência e ao tornar possível optar por um modo específico de subjetividade dentre as várias

identidades possíveis. Circunstâncias econômicas e sociais em mudança promovem a

emergência de novas posições e novas identidades, a autora conclui.

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A autora observa ainda que os indivíduos vivem no interior de instituições diversas, tais

como família, grupos de colegas, grupos de trabalho, instituições educacionais etc. Exercem,

então, graus variados de escolha e autonomia. Em cada instituição, tem-se um contexto

material, um espaço, um lugar e um conjunto de recursos simbólicos. A questão é que embora

o indivíduo possa ver a si próprio como a mesma pessoa, os papéis sociais que exercemos em

cada instituição nos levam a assumir posições diferentes. Diferentes ocasiões são implicadas

por diferentes identidades. A articulação entre identidade e representação não poderia ser mais

evidente. Ela afirma sobre esse aspecto:

Em todas essas situações, podemos nos sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nós somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas diferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes situações, representando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos (WOODWARD, 2013, p. 31).

Também é verdade que as diferentes identidades podem entrar em conflito umas com

as outras. Isso se daria, em especial, nas ocasiões em que aquilo que é exigido por uma

identidade interfere nas exigências de uma outra. De qualquer maneira, a autora afirma que a

maneira como vivemos nossas identidades é mediada pelos significados culturais que são

produzidos por meio dos sistemas dominantes de representação.

Um último aspecto da análise de Woodward que interessa aos objetivos desta pesquisa

diz respeito à questão da subjetividade. Esse termo pode ser aplicado, em certas situações, no

mesmo sentido que o de identidade. A subjetividade seria responsável por sugerir a

compreensão que temos sobre o nosso eu, afirma a autora. Envolveria nossos sentimentos e

pensamentos mais pessoais. Viveríamos nossa subjetividade em um contexto social em que a

linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual

adotamos uma identidade. De acordo com Woodward, nossas identidades são constituídas pelas

posições que assumimos e com as quais nos identificamos. E conclui:

O conceito de subjetividade permite uma exploração dos sentimentos que são envolvidos no processo de produção da identidade e do investimento pessoal que fazemos em posições específicas de identidade. Ele nos permite explicar as razões pelas quais nós nos apegamos a identidades particulares (WOODWARD, 2013, p. 56).

Eduardo Restrepo (2007) é um antropólogo colombiano que pontua, assim como Hall e

Woodward, que a identidade e a diferença devem ser pensadas como processos mutuamente

constitutivos. Identidades são processuais, ele aponta; são construções históricas e não deixam

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30

de se transformar. Não existe uma identidade única, e o mesmo indivíduo pode carregar

múltiplas identidades (que devem ser entendidas a partir das articulações, contradições, tensões

e antagonismos que lhes são inerentes).

A construção da identidade, conforme a posição assumida pelo autor, dá-se

discursivamente. Sobre esse aspecto, Restrepo (2007, p. 27, tradução livre do autor) diz:

“Enquanto realidade social e histórica, as identidades são produzidas, disputadas e

transformadas em formações discursivas concretas11”. As identidades, contudo, não são apenas

discurso. As formações discursivas, advoga o autor, são tão reais e com efeitos materiais sobre

os corpos, espaços, objetos e sujeitos tanto quanto qualquer outra prática social. A dimensão

discursiva é uma prática constituinte de qualquer ação, relação, representação ou disputa no

terreno do social, conclui Restrepo sobre esse tópico.

O autor observa também que as identidades não estão ligadas apenas a princípios

classificatórios, mas a práticas de exploração e domínio. Dessa forma, não são apenas objeto,

mas também mediadoras de disputas sociais, da reprodução ou do confronto das estruturas do

poder em diferentes escalas e âmbitos da vida social.

Identidades seriam, para Restrepo, ao mesmo tempo, uma questão de atribuição e de

identificação. Toda identidade, diz ele, requer que os indivíduos ou os grupos aos quais é

atribuída se reconheçam nela ainda que seja parcialmente, ou que pelo menos sejam

interpelados por ela. As identidades, que não são definidas de uma vez e para sempre, requerem,

portanto, serem atribuídas e assumidas.

Além de apontamentos de ordem teórica, o autor aponta algumas questões de ordem

metodológica para o estudo das identidades. Restrepo propõe a adoção de uma estratégia

metodológica que não anule o caráter plural, contraditório e diverso das articulações em um

indivíduo ou grupo social específico. Atenção deve ser dada, por exemplo, à generalização das

observações e aos dados derivados de estudos com um conjunto de indivíduos ou com fontes

secundárias concretas.

No estudo das identidades, não basta que se façam entrevistas e que essas sejam

transcritas. A densidade das práticas da identidade e suas imbricações com as narrativas

requerem um trabalho qualitativo, minucioso e prolongado. Isso tem a ver, infere-se, com o fato

de que aquilo que os indivíduos ou os grupos dizem a respeito de si próprios precisa, de certa

maneira, estar relacionado com as práticas cotidianas e mesmo com aquilo que não é dito.

11 “En tanto realidad social e histórica, las identidades son producidas, disputadas y transformadas em formaciones discursivas concretas” (RESTREPO, 2007, p. 27).

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Não basta também se deter ao hábito de afirmar que as identidades são construídas, não

são essenciais ou imutáveis. Nas palavras de Restrepo (2007, p. 33,34, tradução livre do autor):

Dizer isso sobre uma identidade é não dizer nada. Os estudos devem mostrar as formas específicas, as trajetórias, as tensões e antagonismos que habitam historicamente e em um momento dado as identidades concretas. [...] na análise das identidades, há que se entender como, por que e com que consequências certas identidades aparecem como primordiais ou essenciais aos olhos dos atores sociais12.

A relação entre as noções de igualdade e diferença, contudo, não é isenta de críticas.

Richard Jenkins (2008) trata da existência de uma interação entre a identidade individual e a

identidade coletiva. A identidade seria a capacidade humana multidimensional de saber sobre

quem somos, sobre quem são os outros, sobre o que os outros sabem sobre nós e sobre o que

sabemos sobre o que os outros pensam de nós. Há tanto uma dimensão interna quanto uma

dimensão externa, voltadas para a relação do indivíduo com aqueles que lhe rodeiam. É um

processo, e não é algo que se possa ter. E por consequência, não determina o que as pessoas

fazem. Mesmo que a metáfora do mapa seja utilizada pelo autor no sentido de que a identidade

nos indicaria onde estamos, ela não necessariamente nos diz onde devemos ir em seguida. Isso

quer dizer, em outras palavras, que ninguém é coagido a agir de uma maneira determinada por

força da identidade que supostamente carrega.

Identificação e interesse estão relacionados, aponta o autor. Para ele, como eu me

identifico influi sobre como eu defino meus interesses e vice-versa. Interesses tidos como

individuais são, segundo a perspectiva de Jenkins, interesses que tomam valores e

comportamentos que são compartilhados socialmente. “Identificação é, no mínimo,

consequente e reciprocamente implicada na especificação e busca de interesses individuais e

coletivos13” (JENKINS, 2008, p. 7,8, tradução livre do autor).

Discutir o lugar da identificação importa, aponta Jenkins, porque esse é o mecanismo

cognitivo básico que usamos para classificar a nós mesmos e aos outros, tanto individual quanto

coletivamente. O que o autor parece querer reforçar é a ideia exposta acima, de que a

identificação não determina o comportamento das pessoas. Para ele, a relação entre interesse e

identificação é muito complexa para ser tão previsível.

12 “Decir esto sobre una identidad, es no decir nada. Los estudios deben mostrar, mas bien, las formas específicas, las trayectorias, las tensiones y antagonismos que habitan historicamente y em un momento dado las identidades concretas. [...] en el análisis de las identidades hay que entender cómo, por qué y con qué consecuencias ciertas identidades aparecen como primordiales o esenciales a los ojos de los actores sociales” (RESTREPO, 2007, p. 33,34). 13 “Identification is, at the very last, consequential and reciprocally entailed in the specification and pursuit of individual and collective interests” (JENKINS, 2008, p. 7,8).

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Para esse autor, todas as identidades são, por definição, sociais. Identificar a nós mesmos

ou aos outros, ele propõe, é uma questão de produzir sentido, o que sempre envolve interação.

Muitas abordagens sobre identidade a tratam como algo que simplesmente é, o que não presta

a devida atenção para o como a identificação funciona ou se constitui nem para a construção

social da identidade. Identidade só pode ser compreendida como um processo de ser ou se

tornar. A identidade de alguém é sempre multidimensional, singular e plural ao mesmo tempo,

e nunca uma questão estabelecida.

Identificação pode ser entendida, desse modo, a partir da compreensão de que a

identidade denota a maneira como os indivíduos e a coletividade se distinguem em sua relação

com outros indivíduos e outras coletividades. É a relação entre similaridade e diferença.

Tomadas juntas, similaridade e diferença são os princípios dinâmicos da identificação.

Ao tratar desse aspecto, Jenkins estabelece uma sutil diferença entre a abordagem que

propõe sobre identidade e as perspectivas de Hall e Woodward, citadas anteriormente. A

divergência está, ele aponta, na ênfase que é dada na questão da diferença, o que, de certa forma,

esmaece o papel da similaridade. Para Jenkins, é correto insistir que a identidade não é fixa ou

imutável, que sua constituição é sociocultural, que é negociável e flexível. Acontece, aponta o

autor, que essa perspectiva nem é nova nem é pós-moderna, já que remete, ele diz, aos muitos

estudos realizados pelos interacionistas simbólicos da Escola de Chicago. Além disso, o

tratamento da questão da identidade não deveria privilegiar as diferenças entre as pessoas como

forma de se conhecer quem é quem. A ênfase na diferença deixa de lado a completa

interdependência entre ela e a similaridade.

Nós não podemos ter um sem o outro: identificar algo como um A é afirmar que ele tem certas propriedades em comum com todos os outros As, e que é diferente dos Bs, Cs e assim por diante. Dizer quem eu sou é dizer quem ou o que eu não sou, mas também é dizer com quem eu tenho coisas em comum14 (JENKINS, 2008, p. 21, tradução livre do autor).

O enfoque de Jenkins difere daqueles que tratam a identidade individual e a identidade

coletiva como coisas separadas. Para ele, no que diz respeito a identificação, o individualmente

único e o coletivamente compartilhado podem ser entendidos como similares. O individual e o

coletivo estão ligados, e dependem da interação. Os processos por meio dos quais são

produzidas e reproduzidas ambas as identidades são análogos e devem ser tratados teoricamente

14 “We cannot have one without the other: to identify something as an A is to assert that it has certain properties in common with all other As, and that it differs from Bs, Cs and so on. To say who I am is to say who or what I am not, but it is also to say with whom I have things in common” (JENKINS, 2008, p. 21).

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na mesma medida. O autor lembra que a formação da identidade individual está enraizada nos

mais antigos processos de socialização.

O argumento que sustenta a ideia de que as identidades modernas estão entrando em

colapso se desenvolve assim: as sociedades modernas passaram, no final do século XX, por

uma mudança estrutural que teria fragmentado as paisagens culturais. Essa fragmentação

implicou classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Teria alterado, ainda, as

identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós mesmos como sujeitos integrados

(HALL, 2002).

O sujeito da modernidade tardia está se tornando fragmentado, o que quer dizer que é

composto não apenas de uma, mas de várias identidades. Hall (2002, p. 12) complementa: “O

próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático”.

Reiterando seu ponto de vista sobre essa questão, Hall conclui, então, que a identidade

se forma e se transforma continuamente, sendo definida historicamente e não biologicamente.

O sujeito assume identidades muitas vezes contraditórias. A identidade unificada, completa

segura e coerente seria, para o autor, uma fantasia.

[...] à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2002, p. 13).

O processo conhecido como globalização tem forte impacto sobre a identidade cultural.

A partir da década de 1970, diz Hall, o alcance e o ritmo da integração global teriam aumentado

enormemente, acelerando os fluxos e os laços entre as nações. Seriam três as possíveis

consequências: a desintegração das identidades nacionais como resultado do crescimento da

homogeneização cultural; o reforço das identidades nacionais e locais como resultado da

resistência à globalização; ou o declínio das identidades nacionais em benefício de novas

identidades híbridas que lhes estão substituindo.

Woodward (2003), por sua vez, argumenta que a globalização e os processos que lhe

são associados têm implicações diretas sobre a constituição das identidades. Para ela, a

globalização envolve uma interação entre fatores econômicos e culturais que causam mudanças

nos padrões de produção e consumo. A consequência seria a produção de identidades novas e

globalizadas. Um efeito negativo desse processo de homogeneidade cultural pode ser, diz a

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autora, o distanciamento da identidade no que tange à comunidade e à cultura local. O

contraponto a essa última ideia, oferecido por Canclini, será apresentado adiante.

Um dos efeitos das mudanças na economia global tem sido a intensificação de processos

migratórios ao redor do mundo. A consequência direta desse fluxo é o surgimento de

identidades plurais e também de identidades contestadas. Para a autora: “Essa dispersão das

pessoas ao redor do globo produz identidades que são moldadas e localizadas em diferentes

lugares e por diferentes lugares. Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas

também desestabilizadoras” (WOODWARD, 2013, p. 22).

A globalização exerce influência sobre a identidade porque opera uma compressão sobre

o espaço e sobre o tempo, consideradas, por Hall (2002), coordenadas básicas dos sistemas de

representação. Se há modificação na maneira como o espaço e o tempo são adaptados por esses

sistemas, é certo que há, por consequência, efeitos sobre o modo como as identidades são

localizadas e representadas.

A maior exposição das culturas nacionais a influências externas dificulta, de acordo com

Hall, conservar intactas as identidades culturais ou impedir que elas se tornem enfraquecidas

através do que o autor chama de infiltração cultural.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente” (HALL, 2002, p. 75).

Essa perspectiva está completamente alinhada com a discussão proposta por Néstor

García Canclini (1997) sobre a questão da hibridização cultural. Esse autor observa que a

transnacionalização da cultura efetuada pelo alcance e eficácia das tecnologias comunicacionais

contribui com o enfraquecimento das fronteiras nacionais e redefinição dos conceitos de nação,

povo e também de identidade.

São três, diz o autor, os processos fundamentais que dão sentido à referida hibridização:

a quebra e a mescla das coleções organizadas pelos sistemas culturais, a desterritorialização dos

processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros. Canclini observa que a expansão

urbana é uma das causas que intensificaram o hibridismo cultural. Ele afirma a esse respeito:

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Passamos de sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação (CANCLINI, 1997, p. 285).

No que concerne ao processo conhecido como desterritorialização, o autor afirma que

esse se constitui pela perda do que chama de relação natural da cultura com os territórios

geográficos e sociais e pelas relocalizações das velhas e novas produções simbólicas. É preciso

que se diga que Canclini pensa a questão levando em conta a transnacionalização dos mercados

simbólicos e as migrações multidirecionais. Esses fenômenos encontram correspondentes

dentro do mesmo país, e também podem ser pensados a partir dos deslocamentos entre o rural

e o urbano, como consequência das várias formas de migração.

A discussão proposta por Canclini (1997, p. 348) sobre o papel das fronteiras nos

processos de hibridização é rica por demonstrar que as artes se desenvolvem quando postas em

contato umas com as outras.

[...] o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros. Assim as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento.

Em outra oportunidade, Canclini (1999) atrelou a formação da identidade à questão do

consumo. A preocupação desse antropólogo com as consequências do processo de globalização,

especialmente no que diz respeito à cultura, parece ser frequente. Ao analisar a articulação entre

as noções de cidadania e consumo, Canclini afirma que a junção entre os dois termos se alterou

devido a mudanças econômicas, tecnológicas e culturais. As identidades teriam passado a se

organizar cada vez menos em torno de símbolos nacionais, para se formar a partir do que

propõem, por exemplo, os canais de televisão. O argumento do autor é que as perguntas sobre

como as pessoas obtém informações e quem representa seus interesses são respondidas antes

pelo consumo privado de bens e meios de comunicação do que por regras abstratas da

democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos.

Para Canclini, as identidades se configuram atualmente no consumo. Dependem daquilo

que se possui, ou do que se pode chegar a possuir. Vivenciamos um processo de

internacionalização da globalização, em que é difícil saber o que é próprio e em que ocorre a

incorporação cultural entre as sociedades. “A globalização supõe uma interação funcional de

atividades econômicas e culturais dispersas” (CANCLINI, 1999, p. 32).

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Vincular consumo e cidadania, afirma Canclini, requer que sejam descontruídas tanto

as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores como predominantemente

irracionais quanto aquelas que somente veem os cidadãos atuando em função da racionalidade

de princípios ideológicos. Segundo a perspectiva proposta, ser cidadão não tem a ver apenas

com direitos reconhecidos, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido ao

pertencimento.

O autor observa que vivenciamos a passagem das identidades territoriais e

monolinguísticas a identidades transterritoriais e multilinguísticas. As primeiras teriam se

consolidado ao subordinarem regiões e etnias dentro do espaço definido como nação; já as

segundas, mediante a produção industrial de cultura, sua comunicação tecnológica e pelo

consumo diferido e segmentado dos bens.

Para Canclini (1999, p. 59):

A clássica definição socioespacial de identidade, referida a um território particular, precisa ser complementada com uma definição sociocomunicacional. Tal reformulação teórica deveria significar, no nível das políticas “identitárias” (ou culturais), que estas, além de se ocuparem do patrimônio histórico, desenvolvam estratégias a respeito dos cenários informacionais e comunicacionais onde também se configuram e renovam as identidades.

Esse novo tipo de identidade expressaria um novo tipo de cidadania. Ao contrário da

proposição de Woodward, apresentada anteriormente, o autor afirma que o cidadão atual é mais

habitante da cidade do que da nação, enraizado em sua cultura local e, ao mesmo tempo,

influenciado pela interseção de múltiplas tradições nacionais reorganizadas pelo fluxo

transnacional de bens e mensagens. “Esvaem-se as identidades concebidas como expressão de

um ser coletivo, uma idiossincrasia e uma comunidade imaginadas, uma vez para sempre, a

partir da terra e do sangue. [...] desenvolvem-se formas heterogêneas de pertencimento, cujas

redes se entrelaçam com as do consumo” (CANCLINI, 1999, p. 60,61).

Canclini propõe que se pense a identidade como uma construção que se narra. O rádio

e o cinema são meios de comunicação que teriam contribuído, ele afirma, com a organização

dos relatos da identidade, isto é, da representação, e do sentido de cidadania nas sociedades

nacionais. O papel das culturas nacionais, porém, foi se reduzindo a partir dos anos 80, com a

abertura econômica a mercados globais e com os processos de integração regional. A

transnacionalização das tecnologias e da comercialização de bens culturais foi responsável por

diminuir, segundo o autor, a importância dos referentes tradicionais de identidade.

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Canclini observa que a identidade hoje é poliglota, multiétnica, migrante, feita com

elementos mesclados de várias culturas. Em outras palavras: “Quando a circulação cada vez

mais livre e frequente de pessoas, capitais e mensagens nos relaciona cotidianamente com

muitas culturas, nossa identidade já não pode ser definida pela associação exclusiva a uma

identidade nacional” (CANCLINI, 1999, p. 166).

A perspectiva de Canclini encontra eco em autores que não estão propriamente ligados

ao campo dos estudos culturais. Nicholas Abercrombie e Brian Longhurst (2007) observam que

o que há de comum no tratamento que autores de diversas áreas do conhecimento dão ao

conceito de identidade é a ideia de que ela é algo que está sujeito à mudança histórica. A noção

de que cada um de nós tem sua própria identidade seria produto do desenvolvimento das

sociedades modernas, baseadas na ideia de indivíduo. Cada sociedade, nesse sentido, produziria

identidades relativamente estáveis ao redor da experiência de família ou de trabalho. Mas as

abordagens acerca das identidades contemporâneas apontam para uma maior fluidez, estando

sujeitas a uma gama de influências em sua construção. É, para esses autores, cada vez mais

comum argumentar que a mídia desempenha um papel crescente nesse processo. O cinema e a

televisão, por exemplo, forneceriam recursos para a forma como nós pensamos a respeito de

nós mesmos.

Outro autor que segue, de certa maneira, esse ponto de vista é Luís Mauro Sá Martino

(2010), para quem a relação entre a constituição da identidade e os meios de comunicação é

evidente. Ele observa que é através do discurso, da narrativa, que se faz a exposição da

identidade de alguém. É por meio da narrativa que se dá a construção da representação que se

faz a respeito de uma pessoa. Algumas informações são privilegiadas em detrimento de outras,

propositalmente ocultadas. A narrativa que alguém faz de si, que leva em conta escolhas entre

muitos fatos e acontecimentos passados, constrói uma imagem na mente do seu interlocutor.

Trata-se, diz o autor, de um “discurso escolhido e montado para representar um ‘eu’ diante dos

outros” (MARTINO, 2010, p. 12).

O autor afirma que a identidade se forma como resultado do cruzamento de muitos

fatores e que é um processo contínuo em que oportunidades de escolha se alternam com

obrigações sociais e determinações psíquicas. A identidade se produz por meio do discurso, de

uma mensagem, que, por sua vez, está ligada à cultura de cada indivíduo. A identidade é

relacional, na medida em que alguém envia mensagens sobre si, dizendo “este sou eu”, e recebe

de volta mensagens de outros indivíduos com o mesmo conteúdo.

Essa troca de mensagens pode ser realizada num processo comunicativo interpessoal,

mas também pode ser mediada. Martino lembra que a construção da identidade passa pela

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relação entre as pessoas e os meios de comunicação, e isso se daria em diversos graus de

articulação. Nas palavras do autor: “As identidades contemporâneas passam pela mídia, se

articulam com as pessoas e se transformam em novos modelos de compreensão” (MARTINO,

2010, p. 16).

Além disso, há que se considerar que a identidade se constrói nos vínculos de grupo, o

que também está implicado pelos meios de comunicação. O autor argumenta que a participação

em tribos urbanas implica estar ligado a um circuito de consumo, leitura, articulação e produção

de representações. A mídia estaria inserida nesse circuito.

O autor observa que determinar uma identidade tem a ver com a maneira como se

explica o mundo, aos critérios que são usados para definir as situações e as pessoas, as narrativas

que se constroem a respeito da realidade. É uma questão reflexiva e autorreflexiva ao mesmo

tempo, na medida em que as pessoas se definem em relação a si mesmas, mas também em

relação aos outros. É um processo relacional, como já mencionado e reiterado.

A relação entre identidade e diferença reaparece na análise proposta por Martino. Para

ele, só é possível estabelecer relações de identidade a partir de um jogo formal entre o igual e

o diferente. O movimento entre igualdade e diferença é constante, diz o autor, na definição dos

grupos, das comunidades e mesmo dos indivíduos.

[...] os aspectos iguais, compartilhados pelas pessoas de uma comunidade, criam laços, estabelecem a identidade do conjunto nos interesses, gostos, ideias, características biológicas ou culturais presentes em todos os indivíduos – os iguais, nesse aspecto. Ao contrário, quem não divide essas características, mesmo provido de outras tão boas quanto, é o “diferente” (MARTINO, 2010, p. 36).

Complementando o que afirmou sobre o lugar que a mídia ocupa no circuito de

consumo, leitura, articulação e produção de representações, Martino observa que a mídia

amplifica e dissemina os discursos de identidade. Identidades seriam características

compreendidas a partir de discursos fundadores, que definem as narrativas de um passado que

se faz presente, por elas justificado e legitimado. Nas palavras do autor, o que a mídia, em

especial a televisão e o cinema, faz é sonhar os mitos de origem, transformando o que se acredita

ser a realidade histórica em um produto altamente elaborado de construção das identidades. A

fabricação da autenticidade, proposta por Richard Peterson (1992) e desenvolvida

posteriormente, é evocada por meio dessa argumentação.

As identidades são integradas pelos textos culturais, que podem ser compreendidos

como uma composição possível de objetos, coisas, produções artísticas, roupas e qualquer coisa

que possa ser “lida”. Para o autor, os signos que formam esses textos culturais estão com os

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indivíduos na vida cotidiana e ajudam a estabelecer distinções do sentido da identidade. Martino

(2010, p. 69) afirma, corroborando a ideia de que identidades são relacionais e construídas

discursivamente, que:

[...] a capacidade de decifrar os signos e ler um texto cultural é uma maneira de estabelecer os limites simbólicos de quem está dentro dos limites de vínculo com um grupo; a composição de identidades, nesse sentido, está vinculada à possibilidade de comunicar textos culturais nas relações intersubjetivas no cotidiano.

Anteriormente, indicou-se que Martino entende a identidade como uma questão que é,

ao mesmo tempo, reflexiva e autorreflexiva. Essa perspectiva tem amparo na proposição de

Anthony Giddens (2002), acerca da auto-identidade. Em seu estudo sobre o modo como a

modernidade15 implica os aspectos mais pessoais da existência humana, Giddens afirma que o

eu não é uma entidade passiva, determinada por influências externas. Para ele, os indivíduos

forjam suas auto-identidades16. A vida social moderna, sugere, é caracterizada por processos de

reorganização do tempo e do espaço associados à expansão dos mecanismos de desencaixe, que

descolam as relações sociais de seus lugares específicos e as recombinam em outro tempo e

lugar. A influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos e sobre as intimidades

do eu se tornaria mais comum e a mídia exerceria um papel central nesse processo. “A

experiência canalizada pelos meios de comunicação, desde a primeira experiência da escrita,

tem influenciado tanto a auto-identidade quanto a organização das relações sociais”

(GIDDENS, 2002, p. 12).

A globalização é um processo que pode ser entendido, nessa direção, como a interseção

entre presença e ausência, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais que se dariam à

distância com contextualidades locais. E a mídia, então, é tanto a expressão das tendências

globalizantes da modernidade quanto instrumento dessas tendências. Para Giddens, mudanças

em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de conexões

sociais de grande amplitude. Se, nas culturas tradicionais, a mudança de identidade era indicada

pelos chamados ritos de passagem, nos ambientes da modernidade “o eu alterado tem que ser

explorado e construído como parte de um processo reflexivo de conectar mudança pessoal e

social” (GIDDENS, 2002, p. 37).

15 Sobre a acepção de modernidade, Giddens (2002, p. 21) afirma: “[...] emprego o termo ‘modernidade’ num sentido muito geral para referir-me às instituições e modos de comportamento estabelecidos pela primeira vez na Europa depois do feudalismo, mas que no século XX se tornaram mundiais em seu impacto”. 16 A auto-identidade é, para Giddens (2002), um projeto reflexivo do eu que consiste em manter narrativas biográficas coerentes e, ao mesmo tempo, continuamente revisadas. Deve ser criada e sustentada rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo, propõe o autor.

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Giddens (2002, p. 79) pontua que não apenas seguimos um determinado estilo de vida,

mas somos obrigados, pelas circunstâncias, a escolher um. Estilo de vida, na concepção do

autor, se refere a “um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo abraça,

não só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material

a uma narrativa particular da auto-identidade”. Seria resultado de uma escolha dentro de uma

pluralidade de opções possíveis, que, de alguma forma, é mais bem compreendido como um

estilo de vida adotado do que como outorgado. Todas as escolhas feitas ao longo do dia levariam

a certas práticas rotinizadas que, por sua vez, são decisões não só sobre como agir, mas também

sobre quem ser. O trabalho está, também, implicado no que diz respeito a escolhas de um estilo

de vida específico, afirma o autor. As escolhas do trabalho e do ambiente de trabalho, nos

termos de Giddens, são elementos básicos das orientações de estilo de vida.

O autor adverte, entretanto, que falar sobre uma multiplicidade de escolhas não seria o

mesmo que supor que todas as escolhas estão abertas para todos. Também não significa que as

pessoas tomam todas as decisões com pleno conhecimento do leque de alternativas possíveis.

Várias opções podem ser vistas, em determinadas circunstâncias, como inadequadas por alguém

que esteja comprometido com um determinado estilo de vida, sugere Giddens. E o autor

completa: “[...] a seleção ou criação de estilos de vida é influenciada por pressões de grupo e

pela visibilidade de modelos, assim como pelas circunstâncias socioeconômicas” (GIDDENS,

2002, p. 81).

A pluralidade de escolhas deriva, segundo essa perspectiva, de várias influências e a

experiência transmitida através da mídia seria um desses fatores. A primeira questão a ser

levada em conta é que a globalização da mídia tornou visível um grande número de ambientes

sociais. A maneira como as informações televisivas e dos jornais são apresentadas daria forma

à justaposição desses ambientes e escolhas potenciais de estilos de vida. Depois, há o fato de

que a influência dos meios de comunicação não seguiria totalmente na direção da diversificação

e da fragmentação. As fronteiras entre os ambientes, que antes eram mais ou menos bem

definidas, são superadas. O resultado, na perspectiva de Giddens, é que a relação entre o

ambiente físico e a situação social fica enfraquecida.

Um dos momentos do circuito da cultura que se articula diretamente ao da identidade é

o momento da representação (DU GAY et al, 1997). É importante que seja considerado que

cultura diz respeito, de acordo com Hall (1997b), ao compartilhamento de sentidos. E isso se

dá num fluxo que percorre a representação, a identidade, a produção, o consumo e a regulação

de qualquer artefato cultural. Há, para esse autor, um papel fundamental desenvolvido pela

linguagem como sistema de representação, uma vez que ela é responsável pela produção e troca

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de sentidos. Usamos sinais e símbolos os mais diversos, dentre os quais se encontra a música,

como forma de corresponder ou representar conceitos, ideias e sentimentos.

Atribuímos sentido aos eventos, aos objetos e a pessoas por meio do que dizemos,

pensamos e sentimos a respeito deles. Isso quer dizer, na perspectiva apresentada, que o sentido

pode estar no uso que fazemos das coisas e a maneira como as incorporamos ao nosso dia a dia

ou ainda pela maneira como as representamos. Envolve desde as palavras que usamos para nos

referirmos a elas até os valores que lhes atribuímos. Passa, e o destaque aqui é proposital, pelas

histórias que nós contamos a respeito dessas coisas e pelas emoções que estão associadas a elas.

Conforme já se afirmou, Hall advoga que o sentido passa por todos os momentos do

circuito da cultura. E a música, que também funciona como uma linguagem, tem sua parte no

que concerne à comunicação de sentimentos e ideias através de seus aspectos formais, como

letra, melodia e harmonia, e também por aspectos correlatos, como o figurino dos intérpretes e

a performance. A sociabilidade que a música proporciona, infere-se, é possível pelo

compartilhamento desses símbolos entre os momentos do seu circuito.

Hall (1997b, p. 17, tradução livre do autor) define a representação nestes termos:

Representação é a produção de sentido dos conceitos em nossa mente através da linguagem. É o que liga os conceitos e a linguagem que nos permite fazer referência ao mundo “real” dos objetos, pessoas ou eventos, ou ainda aos mundos imaginários de objetos, pessoas e eventos fictícios17.

Algo que o autor parece precisar enfatizar diz respeito ao aspecto construtivista da

produção de sentido. Segundo essa perspectiva, o sentido não está no objeto, pessoa ou evento

em si. Também não está na palavra. Para ele, nós fixamos o sentido, que é construído pelo

sistema de representação. Daí que o sentido nunca poderia ser finalmente fixado. Seria o

resultado, portanto, de uma prática que produz sentido e faz as coisas significarem algo.

Quando os sistemas de representação se encontram com uma percepção implicada pela

abordagem essencialista da identidade, o que se produz são estereótipos. A primeira

preocupação de João Freire Filho (2005), ao analisar as representações midiáticas das minorias,

é explicitar o que vem a ser representação. Parte do sentido restrito de representação, qual seja

representar de novo, passa pelo sentido político que o termo adquire no contexto da democracia

até chegar ao sentido que diz respeito ao uso de textos, imagens e sons para “falar por” ou “falar

17 “Representation is the production of the meaning of the concepts in our minds through language. It is the link between concepts and language which enables us to refer to either the ‘real’ world of objects, people or events, or indeed to imaginary worlds of fictional objects, people and events” (HALL, 1997b, p. 17).

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sobre” (aspas do autor) categorias ou grupos sociais. Há, afirma o autor, um interesse acadêmico

crescente no modo como as minorias, ou seja, grupos sociais marginalizados, são representados.

Mas essa preocupação não é nova, ele observa, uma vez que já na década de 1960, havia estudos

críticos sobre a representação distorcida de identidades sociais. A inclinação teórica se

harmoniza com os interesses de movimentos sociais. Nessa década, diz o autor:

Ativistas negros, feministas e homossexuais estenderam definitivamente o sentido do político para além de suas fronteiras convencionais - sem negligenciar as origens econômicas dos processos de exclusão e a importância das disputas tradicionais pelo acesso às riquezas materiais, ratificaram o caráter estratégico da representação nas diversas instâncias e instituições culturais (materiais didáticos, currículos escolares, meios de comunicação de massa) que afetam o modo como nós vemos e como somos vistos e tratados pelos outros (FREIRE FILHO, 2005, p. 20).

Para Freire Filho, representações são organizadas e reguladas pelos diferentes discursos

que circulam, colidem e se articulam num determinado tempo e lugar. Envolvem a disputa pela

hegemonia entre grupos sociais dominantes e subordinados.

O autor argumenta que as indústrias da cultura fornecem, através de filmes, canções,

reportagens, anúncios e outros produtos midiáticos, descrições textuais e visuais daquilo que é

conveniente, por exemplo, no que diz respeito à personalidade, aparência ou comportamento

sexual. Essas descrições se constituíram em modelos e recursos simbólicos do que seria

moderno, civilizado, atraente. Os indivíduos teriam passado a avaliar a si próprios a partir do

que é veiculado pela mídia.

Estudos sobre a representação da mulher na mídia demonstraram que ela era

simbolicamente desvalorizada, em benefício de valores sociais dominantes, machistas. Estudos

da década de 1970 denunciavam que os meios de comunicação eram verdadeiras prisões

patriarcais, “responsáveis pela criação, divulgação e legitimação de imagens ‘negativas’,

‘limitadas’, ‘desvirtuadas’ das mulheres, baseadas em interesses e fantasias masculinas”

(FREIRE FILHO, 2005, p. 21).

Os debates públicos e acadêmicos organizados em função da veiculação de

representações desfavoráveis e danosas das minorias gravitavam, declara Freire Filho, em torno

da concepção de estereótipo. Para esse autor, os estereótipos

ambicionam impedir qualquer flexibilidade de pensamento na apreensão, avaliação ou comunicação de uma realidade ou alteridade, em prol da manutenção e da reprodução das relações de poder, desigualdade e exploração; da justificação e da racionalização de comportamentos hostis e, in extremis, letais (FREIRE FILHO, 2005, p. 22).

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Os estereótipos não se limitariam a identificar categorias gerais das pessoas, mas

conteriam julgamento e pressupostos a respeito de seu comportamento, sua visão de mundo ou

sua história. Para o autor, os estereótipos geralmente representam, eles mesmos, tensões e

conflitos sociais subjacentes. São redutores e encorajam um conhecimento intuitivo em relação

ao outro. É uma estratégia ideológica de construção simbólica que busca “naturalizar,

universalizar e legitimar normas e convenções de conduta, identidade e valor que emanam das

estruturas de dominação social vigentes” (FREIRE FILHO, 2005, p. 23).

Estereótipos são redutores, de acordo com a visão apresentada, porque abreviam toda a

variedade de características de um povo, uma raça, um gênero, uma classe ou um grupo

desviante a alguns poucos atributos essenciais, como, por exemplo, traços de personalidade,

indumentária ou linguagem verbal e corporal.

Esse ponto de vista tangencia a perspectiva de Homi Bhabba (1998) sobre a questão dos

estereótipos. Para esse autor, o estereótipo é uma estratégia discursiva, uma forma de

conhecimento e identificação, que opera em uma ambivalência: entre o que está sempre “no

lugar”, ele diz, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido. É a força dessa

ambivalência que dá ao estereótipo a sua validade e garante que ele seja repetido. Não é

ignorado aqui o fato de que Bhabha trata de algo tão específico quanto a questão do discurso

discriminatório colonialista. Se essa perspectiva aparece nesse momento é porque há, na

discussão proposta pelo autor, elementos-chave para a compreensão do estereótipo como a face

negativa do processo de representação.

O objetivo do discurso colonial, para o autor, é apresentar o colonizado como uma

população de tipos degenerados com base na origem racial, de modo a justificar a conquista e

estabelecer sistemas de administração e instrução. Ou seja: para alcançar seus objetivos, o

colonizador estabelece um processo de representação do colonizado com base em certos

atributos que o diminuem e, assim, tornam a dominação legítima.

Bhabha (1998, p. 117) afirma: “O estereótipo não é uma simplificação porque é uma

falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa,

fixa, de representação”. Não permite que aquele que está sendo representado seja visto além

daquele atributo redutor selecionado por quem estabelece o rótulo.

O propósito da discussão apresentada por essa seção, levando em conta inclusive a

questão do estereótipo, foi reforçar a compreensão de que a identidade é estabelecida através

da representação. Reitera-se aqui a visão de que as identidades são construídas discursivamente,

e devem ser, ao mesmo tempo, atribuídas e assumidas pelo indivíduo. Mas reitera-se também,

com base nessa argumentação, que as identidades são definidas historicamente e não

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biologicamente. Por último, argumenta que a mídia, enquanto sistema de representação, exerce

um papel fundamental no processo de construção das identidades e da fabricação da

autenticidade, mas também na produção, disseminação, fixação e repetição de estereótipos.

A seguir, com base no que propõem principalmente Frith (1996a) e Negus (1996), trata-

se da relação entre identidade e música.

2.1 UMA PERSPECTIVA RELACIONAL SOBRE MÚSICA E IDENTIDADE

O argumento básico no intuito de se alcançar o segundo objetivo deste capítulo, indicado

anteriormente, é o que adota a formação da identidade como um processo. A relação entre a

identidade social e a apreciação musical, nesse sentido, não pode ser discutida como uma

relação necessária e determinada. Esse argumento contrapõe, de certa forma, a perspectiva de

Bourdieu sobre o gosto, apresentada acima. Para Simon Frith (1996a), o estudo acadêmico da

música popular esteve limitado pela suposição de que os sons devem refletir ou representar as

pessoas de alguma forma. Tratavam-se, seguindo essa perspectiva, de estudos que se realizavam

a partir do rastreamento das conexões que vão da música até os grupos sociais que a produzem

e a consomem.

A promoção da política identitária, isto é, a relação que se estabeleceu entre o ato de se

assumir uma determinada identidade e a expressão de um posicionamento político, implicou,

para o autor, novas afirmações do essencialismo cultural, como por exemplo, que só

afroamericanos poderiam apreciar a música afroamericana. Na teoria, ele diz, o que está

implícito nos argumentos sobre o fluxo necessário da identidade social, o que envolveria, por

exemplo, raça, sexualidade e idade, à expressão e à apreciação musical é bastante simples18,

mas é menos convincente na prática cotidiana dos que fazem e escutam música. Se é verdade

que uma música criada em um lugar por uma razão determinada pode ser apropriada em outro

lugar por uma razão distinta, também seria verdade que ainda que as pessoas que a fazem e a

utilizam pela primeira vez possam dar-lhe forma, a música, como experiência, tem vida própria.

Para o autor, entretanto, como uma determinada obra musical ou uma interpretação

reflete as pessoas não é a questão, sendo mais importante analisar como se cria e se constrói

18 Frith (1996a, p. 109) questiona: “Quem poderia negar que a música afroamericana é música feita por afroamericanos?”. O que o autor relativiza na análise que faz é o determinismo subjacente ao argumento essencialista. E coloca mais uma questão no intuito de provocar ainda mais o debate: “[...] que sentido podemos atribuir ao notório amor dos ouvintes e intérpretes europeus pela música da diáspora africana?”.

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uma experiência que só pode ser compreendida, como já indicado neste capítulo, se for

assumida uma identidade tanto subjetiva quanto coletiva.

São duas as premissas que sustentam a argumentação de Frith: primeiro, utilizando seus

próprios termos, de que a identidade é móvel, um processo e não uma coisa, um vir a ser e não

um ser. E depois, que a melhor maneira de entender a nossa experiência musical é vê-la como

uma experiência do “eu em construção”. Se a música é uma metáfora da identidade, então o eu

é sempre um eu imaginado, mas que só poderia ser imaginado, conforme aponta o autor, como

uma organização específica de forças sociais, físicas e materiais.

Ao evocar o eu móvel, o autor sugere que a identidade é processual. É sempre um ideal,

o que gostaríamos de ser, não necessariamente o que somos. O trecho a seguir evidencia esse

aspecto:

A identidade não é uma coisa, mas um processo: um processo experiencial que se capta mais vividamente como música. A música parece ser uma chave da identidade porque oferece, com tamanha intensidade, tanto uma percepção do eu como dos outros, do subjetivo no coletivo19 (FRITH, 1996a, p. 110, tradução livre do autor).

Para Frith, portanto, a experiência da identidade descreve tanto um processo social

quanto uma forma de interação e um processo estético. Para ele, ao tocar e escutar o que soa

bem, além de nos expressarmos, nos absorvemos em um ato de participação. A música, para o

autor, articula em si mesma uma compreensão tanto das relações grupais como da

individualidade.

Nos termos do autor:

O que quero sugerir, em outras palavras, não é que os grupos sociais coincidem em valores que em seguida se expressam em suas atividades culturais [...], mas que só conseguem reconhecerem-se a si mesmos como grupos (como uma organização particular de interesses individuais e sociais, de igualdades e diferenças) por meio da atividade cultural, por meio do juízo estético. Fazer música não é uma forma de expressar ideias, é uma forma de vivê-las20 (FRITH, 1996a, p. 111, tradução livre do autor).

19 “Identity is not a thing but a process - an experiential process which is most vividly grasped as music. Music seems to be a key to identity because it offers, so intensely, a sense of both self and others, of the subjective in the collective”. (FRITH, 1996a, p. 110). 20 “What I want to suggest, in other words, is not that social groups agree on values which are then expressed in their cultural activities […] but that they only get to know themselves as groups (as a particular organization of individual and social interests, of sameness and difference) through cultural activity, through aesthetic judgement. Making music isn't a way of expressing ideas; it is a way of living them” (FRITH, 1996a, p. 187).

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A experiência da música tanto para o compositor e/ou intérprete quanto para o ouvinte,

conclui Frith, nos forneceria uma maneira de estar no mundo, uma maneira de lhe atribuir

sentido.

O autor prossegue afirmando, em sua análise sobre a relação entre música e identidade,

que a distinção feita entre música séria e música popular opera com fontes de valor bem

específicas. A música séria, ele diz, teria importância porque transcende as forças sociais. Já a

música popular seria pouco interessante porque estaria determinada pelas forças sociais, por ser

funcional ou utilitária.

Frith afirma ainda que o sociólogo da música popular contemporânea enfrenta uma

massa de canções, discos, estrelas e estilos que existem devido a uma série de decisões sobre o

que é bom. Essas decisões seriam tomadas, ele lembra, tanto por produtores quanto por

consumidores. “O resultado de todas essas decisões aparentemente individuais é sem dúvida

um padrão de êxito, gosto e estilo que pode se explicar a partir de um ponto de vista sociológico,

mas também é um padrão com raízes no juízo individual21” (FRITH, 1996a, p. 120, tradução

livre do autor).

A respeito da perspectiva dos consumidores, o autor observa que é evidente que as

pessoas ouvem aquilo que lhes soa bem. Mesmo nos casos em que o gosto musical seja um

efeito do condicionamento social, como sugere a proposta de Bourdieu, e da manipulação

comercial, as pessoas costumariam explicá-lo em termos de algo especial. Os apreciadores de

música popular seriam conscientes das forças sociais que a determinam, mas um “bom” disco,

uma “boa” canção ou um “bom” som seriam aqueles que transcendem essas forças. E assim, o

valor da música popular dependeria de algo que está fora do mundo da música popular, isto é,

no autor, na comunidade ou na subcultura que estão por trás. “O juízo crítico implica comparar

a ‘verdade’ dos intérpretes com a experiência ou os sentimentos que descrevem ou

expressam22” (FRITH, 1996a, p. 121, tradução livre do autor), por mais difícil que isso seja.

O autor propõe uma mudança de perspectiva. Para ele, a pergunta a ser feita não é o que

a música popular revela sobre as pessoas que a produzem ou a consomem, mas como as cria

como pessoas, como uma rede de identidades. A música popular, ele conclui sobre esse tópico,

“não é popular porque reflete algo ou articula autenticamente um tipo de gosto ou experiência

21 “The result of all these apparently individual decisions is certainly a pattern of success, taste and style which can be explained sociologically, but it is also a pattern that is rooted in individual judgement” (FRITH, 1996a, p. 120). 22 “Critical judgement means measuring performers' 'truth' to the experience or feelings they are describing or expressing” (FRITH, 1996a, p. 121).

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popular, mas porque cria nossa maneira de entender o que é a ‘popularidade’, e nos situa no

mundo social de um modo particular23” (FRITH, 1996a, p. 121, tradução livre do autor).

Frith sustenta a ideia de que a experiência da música popular é uma experiência de

identidade. Responder a uma canção, ele propõe, é estabelecer alianças emocionais com os

intérpretes e com outros fãs. A experiência descrita no início desse capítulo, dos fãs no show

que deu origem ao DVD do cantor Luan Santana, reflete bem essa questão das alianças

emocionais com o intérprete. Nesse sentido, a música é ao mesmo tempo individualizadora, em

função de suas qualidades de abstração, mas é também coletiva. A música, diz Frith, representa,

simboliza e oferece a experiência imediata da identidade coletiva. Se a narrativa é a base do

prazer musical, ele sugere, também é central para nosso sentido de identidade.

Quanto a isso, Felipe Trotta (2011, p. 34) observa que a interpretação e o uso social das

canções são condicionados pelo “compartilhamento de símbolos, sentimentos, crenças e

saberes que, por sua vez, produzem identificações individuais e coletivas”. Para esse autor, cuja

argumentação contribui com a compreensão da música como processo comunicativo, as

músicas postas em circulação carregam teias de significado, valores e sentimentos que estão

relacionados com o cotidiano de pessoas e grupos. Ele completa:

As formas pelas quais esses atores se apropriam dos códigos musicais, os interpretam e transformam em pensamentos e emoções compartilhadas são variadas e ocorrem por meio de um complexo processo de interpretação e utilização desses “signos” musicais (TROTTA, 2011, p. 35).

Frith (1996a) observa ainda que a música constrói nosso sentido de identidade por meio

das experiências que oferece do corpo, do tempo e da sociabilidade, que nos permitiriam nos

situarmos em relatos culturais imaginativos. A identidade de si mesmo é identidade cultural,

afirma o autor. As pretensões de diferença individual dependem da apreciação do público, da

interpretação compartilhada e das regras narrativas.

E conclui:

23 “But popular music is popular not because it reflects something or authentically articulates some sort of popular taste or experience, but because it creates our understanding of what 'popularity' is, because it places us in the social world in a particular way” (FRITH, 1996a, p. 121).

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[...] o que faz que a música seja especial – especial para a identidade – é que define um espaço sem limites (um jogo sem fronteiras). Assim, a música é a forma cultural mais apta para cruzar fronteiras – o som atravessa cercas, muralhas e oceanos, classes, raças e nações – e definir lugares; em clubes, palcos e raves, enquanto a escutamos com fones de ouvido, pelo rádio ou na sala de concertos, só estamos onde a música nos leva24 (FRITH, 1996a, p. 125, tradução livre do autor).

A relação entre música popular e identidade também foi discutida por Keith Negus

(1996), ao propor que a questão central na discussão sobre o assunto é se nós temos uma

personalidade interna, natural, imutável ao longo do tempo ou se assumimos, adquirimos ou

simplesmente adotamos novas características ao longo da vida. Há outras questões adicionais

propostas pelo autor, como por exemplo, se possuímos identidades múltiplas que são

manifestadas de várias maneiras em diferentes momentos. Em suma, trata-se de um debate

sobre abordagens essencialistas e não essencialistas no que diz respeito à identidade, que serão

retomadas na seção seguinte.

Segundo a perspectiva apresentada pelo autor, durante muito tempo se levou em conta

uma certa correspondência entre as características do indivíduo ou de um grupo e os estilos

musicais. Contudo, para ele, deve ser considerada uma mudança de ideias essencialistas sobre

a identidade cultural, em que uma prática cultural particular expressa as características

individuais de determinados indivíduos, para uma ideia de que as identidades culturais não são

fixas, mas são criadas por meio de processos comunicativos, práticas sociais e articulações

dentro de circunstâncias específicas.

Para desenvolver a análise, Negus discute questões ligadas à raça, etnicidade e

sexualidade no âmbito da chamada black music, em especial do reggae e do rap, da música

caribenha, do rock, do jazz, da disco music e da música country. A produção e o consumo desses

gêneros, bem como do sentido atribuído a eles, podem ser analisados por ambas as abordagens

mencionadas acima. Citando um debate suscitado por Paul Gilroy, Negus expõe que a black

music, por exemplo, deveria ser investigada como parte de um processo descontínuo em que

tradições culturais são refeitas com repetida frequência e novas identidades – híbridas – são

criadas.

Algo que se aplica tanto à black music quanto à música caribenha, e a outros estilos que

se desenvolveram entre indivíduos que passaram pelo deslocamento forçado para outros países,

afirma Negus (1996, p. 121, tradução livre do autor), é que: “[...] uma vez em circulação, música

24 “But what makes music special - what makes it special for identity - is that it defines a space without boundaries (a game without frontiers). Music is thus the cultural form best able both to cross borders - sounds carry across fences and walls and oceans, across classes, races and nations - and to define places; in clubs, scenes, and raves, listening on headphones, radio and in the concert hall, we are only where the music takes us” (FRITH, 1996a, p. 125).

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e outras formas culturais não podem permanecer delimitadas ‘em’ um grupo qualquer e

interpretadas simplesmente como uma expressão que fala a ou reflete a vida desse grupo

exclusivo de pessoas25”. Essa argumentação reforça a necessidade de se assumir perspectivas

não essencialistas, ou seja, mais dinâmicas, no que diz respeito à identidade. É importante que

seja feita a ressalva, desde já, de que nem todos os deslocamentos são forçados. Há situações

em que o deslocamento de indivíduos de um país para o outro é espontâneo. De qualquer

maneira, essa ressalva não invalida o que foi dito anteriormente sobre a impossibilidade de

restrição de um gênero ou estilo musical, em função de sua origem, a um determinado grupo

social.

O autor conclui a análise da relação entre música popular e identidade assim:

[...] não há ligação simples e intrínseca entre a vida dos fãs, o significado dos textos musicais e a identidade de um determinado artista. Canções e estilos musicais não “refletem”, “falam a” ou “expressam” simplesmente a vida de membros da audiência ou músicos. Um senso de identidade é criado fora e transversalmente aos processos pelos quais as pessoas são ligadas entre si e com a música26 (NEGUS, 1996, p. 133, tradução livre do autor).

A questão tratada tanto por Frith quanto por Negus, discutida acima, evoca uma

discussão acerca da autenticidade no que concerne à relação entre música e identidade.

Autenticidade é tratada, aqui, como uma estratégia discursiva que dá sustentação à identidade.

Não remete à quintessência (BENJAMIN, 1969), como se se tratasse de um atributo único, puro

e inalterável. Como já mencionado, identidades são criadas por meio de processos

comunicativos, práticas sociais e articulações; é a construção da autenticidade que as

viabilizam.

Discutindo a designação da música country como música popular estadunidense,

Richard Peterson (1992) observa que a autenticidade não é sinônimo de verdade histórica. Para

ele, os esforços empregados no sentido de encontrar a fórmula certa para o sucesso,

independente do resultado, oferecem uma ocasião perfeita para compreender o processo geral

que organiza a fabricação da autenticidade em matéria de cultura popular. O uso da expressão

“fabricação da autenticidade”, nesse sentido, não é involuntário, uma vez que sublinha o fato

25 “[...] once in circulation, music and other cultural forms cannot remain bounded ‘in’ any one group and interpreted simply as an expression that speaks to or reflects the lives of that exclusive group of people (NEGUS, 1996, p. 121). 26 “[...] there is no straightforward or intrinsic link between the lives of fans, the meaning of musical texts and the identity of a particular artist. Songs and musical styles do not simply ‘reflect’, ‘speak to’ or ‘express’ the lives of audience members or musicians. A sense of identity is created out of and across the processes whereby people are connected together through and with music” (NEGUS, 1996, p. 133).

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de que a autenticidade não é um traço inerente ao objeto ou ao evento declarado autêntico, mas

se trata de uma construção social, uma convenção, que deforma parcialmente o passado. Esse

é o argumento central do autor, e é chave para os objetivos desta pesquisa, uma vez que lança

luz sobre as estratégias elaboradas por instituições como a mídia no sentido de forjar identidades

e difundi-las como autênticas.

Considerando o fenômeno que investiga, isto é, o da música country nos Estados

Unidos, Peterson observa que a infidelidade histórica intrínseca à fabricação da autenticidade

se constrói através de uma série de interações e de ajustamentos sucessivos entre os interesses

comerciais de um lado e o público de outro. Nenhuma das partes poderia impor à outra a sua

definição de autêntico. Inicialmente, narra, os grandes nomes da indústria do disco teriam

rejeitado a música country. Revisaram seu ponto de vista sobre esse gênero musical somente

depois de testemunharem o sucesso comercial dos primeiros discos gravados. A visão que se

tinha era bastante preconceituosa, e os ouvintes e apreciadores desse tipo de música eram

rotulados como analfabetos e ignorantes. A relação necessária entre gosto musical e origem

social, nesse sentido, era evidente.

Algumas iniciativas, como a valorização de aspectos positivos da vida interiorana e a

busca de uma música isenta, como se isso fosse possível, de influências externas, contribuíram

para que esse gênero musical fosse caracterizado como música popular americana. Emissoras

de rádio e o cinema tiveram seu papel na construção de personagens que representassem os

habitantes das regiões rurais e montanhosas dos Estados Unidos, popularizando-os. Trata-se, é

importante que se enfatize, de uma construção deliberada e não de uma aparição acidental desse

tipo de personagem nos meios de comunicação mencionados.

Os filmes de cowboys que cantam apresentavam a música country em situações que a faziam contemporânea, heroica, virtuosa, individualista e jovem e a privava de seu lado fora de moda, cômico, depravado, comunitário e antiquado. Em paralelo, eles a ancoravam em um modo de vida que foi considerado como autêntico27 (PETERSON, 1992, p. 17, tradução livre do autor).

A autenticidade da música country como uma música que representa um país, segundo

mostrou Peterson, é uma autenticidade fabricada, pelo menos parcialmente, pela mídia. Mas é

uma autenticidade que deixa de considerar aquilo que Negus e Frith propõem em sua

argumentação, isto é, que a identidade é processual, móvel e faz parte de processos

27 “Les films de cow-boys chantants présentaient la country music dans des situations qui la rendaient contemporaine, héroïque, vertueuse, individualiste et jeune et lui ôtaient son côté démodé, comique, dépravé, communautaire et vieillot. Parallèlement, ils l’ancraient dans un mode de vie que l’on considérait comme authentique” (PETERSON, 1992, p. 17).

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descontínuos de criação e recriação de tradições. Aliás, essa autenticidade fabricada reitera a

ideia de que as identidades não são fixas, mas são criadas, dentre outras maneiras, por processos

comunicativos.

Na próxima seção, é feita uma aproximação com o contexto brasileiro no que diz

respeito à relação entre música e identidade. Como visto anteriormente, uma das propostas de

Restrepo (2007) para o tratamento da questão da identidade é a adoção de uma estratégia que

não anule o caráter plural, contraditório e diverso das articulações em um indivíduo ou grupo

social específico. Assim sendo, propõe-se uma discussão sobre a relação entre música e a

formação da identidade nacional, levando em conta as perspectivas de Ortiz (1994), Oliven

(1986), Fry (1982), Vianna (2007) e Nercolini (2006).

2.2 MÚSICA E IDENTIDADE NO CONTEXTO BRASILEIRO

Em uma análise sobre o esforço intelectual no sentido de estabelecer o que seria a

identidade brasileira, Renato Ortiz (1994) observa a impossibilidade de determinar uma

identidade autêntica e unificadora, a não ser por meio de um discurso ideológico. Esse

antropólogo trata a questão da identidade a partir de duas dimensões: uma dimensão externa,

de contraposição ao estrangeiro, e uma dimensão interna, bem mais complexa, que trata daquilo

com o que nos identificamos. A definição do que viria a ser o nacional, na perspectiva do autor,

está longe de ser consensual. Está, antes, ligada a um projeto político de tratamento da cultura

brasileira. Segundo Ortiz, “a identidade nacional está profundamente ligada a uma

reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro”

(ORTIZ, 1994, p. 8).

De acordo com Ortiz, toda identidade é uma construção simbólica. Não existiria uma

identidade autêntica, ele propõe, mas uma pluralidade de identidades, que são construídas em

diferentes momentos da história por diferentes grupos sociais. Uma história da identidade e da

cultura brasileira corresponderia aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relação com

o Estado.

Nos primeiros escritos sobre qual seria a identidade do brasileiro, de autoria daqueles

que seriam os precursores das Ciências Sociais no Brasil – Sílvio Romero, Euclides da Cunha

e Nina Rodrigues -, a questão do meio e da raça são postos como parâmetros. A história do país,

consoante o que pensavam os autores mencionados, é compreendida como que determinada

pelo clima e pela raça. Esses fatores explicariam, na visão de Ortiz (1994, p. 16), “a natureza

indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente

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dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato”. Os dois fatores –

meio e raça –, completa o autor, traduziriam os dois elementos imprescindíveis para a

construção da identidade brasileira: o nacional e o popular.

A questão racial acaba por se sobressair. Sílvio Romero, conforme narra Ortiz, vai

considerá-la como mais importante que a questão do meio. Com a abolição da escravatura, o

negro passa a fazer parte da dinâmica social e econômica brasileira. Se há disparidade racial, o

equilíbrio se dá, portanto, na elaboração de uma identidade nacional através da mestiçagem,

que aponta para a formação de uma possível unidade nacional.

Ortiz lembra que até a abolição, o negro não existia como cidadão. Somente por meio

da relação entre cultura e Estado é que se explica que a identidade nacional leve em conta o

cruzamento com uma raça considerada inferior, sugere o autor. A necessidade de consolidar o

desenvolvimento social brasileiro das primeiras três décadas do século XX demanda, entre

outras coisas, superar as teorias raciais. A realidade social, afirma o antropólogo, impôs um

outro tipo de interpretação do Brasil. Esse é o projeto no qual teriam embarcado nomes como

Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre: pensar a identidade de um

Estado que se moderniza. Gylberto Freire, por exemplo, teria transformado a negatividade do

mestiço em positividade. Nos termos do próprio Ortiz (1994, p. 41):

A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.

O homem brasileiro, preguiçoso e indolente, torna-se homem trabalhador a partir da

década de 1930. Nessa época, a malandragem passa a ser combatida, em benefício de uma

ideologia que vê o trabalho como valor fundamental da sociedade brasileira. A transformação

cultural, diz Ortiz, é profunda. As relações raciais vivenciadas no cotidiano são reinterpretadas

a partir da difusão do mito das três raças, que não apenas encobre os conflitos raciais como

possibilita que todos se reconheçam como nacionais. Evidencia-se, nesse sentido, a ideia de

construção de uma essência da brasilidade. Para Ortiz, quando a sociedade se apropria das

manifestações de cor, integrando-as ao discurso unívoco nacional, elas perdem a sua

especificidade. “A construção de uma identidade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o

discernimento entre as fronteiras de cor. Ao se promover o samba a título de nacional, o que

efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de origem, que era ser uma música negra”

(ORTIZ, 1994, p. 43).

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Por outro lado, esse último aspecto da perspectiva de Ortiz contrasta, de certa forma,

com o que propôs Negus (1996), isto é, que a música posta em circulação não pode permanecer

restrita a um grupo qualquer, interpretada como uma expressão que fala a ou reflete a vida desse

grupo exclusivo de pessoas. De acordo com essa visão, o samba, constituído como símbolo

nacional, passa a representar – como se isso fosse possível – todo o povo brasileiro.

Ao discutir as transformações pelas quais a cultura brasileira passou na virada do século

XIX para o século XX, Ruben Oliven (1986) também propõe que há um movimento de

apropriação de manifestações culturais específicas a certos grupos sociais por parte do resto da

sociedade e a sua transformação em símbolos nacionais. Isso diz respeito tanto à apropriação,

reelaboração e posterior transformação, por parte da chamada classe dominante, de

manifestações culturais das camadas populares em símbolos nacionais, quanto ao caminho

inverso.

O Estado e os meios de comunicação de massa também agiriam nesse processo de

ressignificação, lembra o autor. O rádio, por exemplo, tem um papel central na comercialização

do samba, permitindo que o mesmo circule para fora do morro. É uma trajetória bem parecida

com a da música country estadunidense, apresentada na primeira seção deste capítulo. Através

do rádio, cantores que tinham um alcance muito restrito se tornam cantores nacionais, muitas

vezes a serviço do governo, pondo em prática um projeto de consolidação de uma identidade

nacional. Oliven (1986, p. 73) conclui:

O que parece caracterizar o Brasil é justamente o fato de ser uma sociedade de imensas diferenças sociais e econômicas, na qual se verifica uma tendência de transformar manifestações culturais em símbolos de coesão social, que são manipulados como formas de identidade nacional.

Para Fry (1982) e Vianna (2007), o samba é uma dessas manifestações culturais que

passa da rejeição ao status de símbolo nacional. Na perspectiva de Peter Fry, esse gênero

musical era severamente reprimido pela polícia quando produzido e consumido apenas pelos

moradores do morro. A crescente importância do carnaval teria transformado a repressão em

apoio. “As escolas de samba”, ele afirma, “desceram para as avenidas legitimamente e o samba

passou a ser consumido por uma população que ultrapassava de muito as fronteiras do morro,

do Rio de Janeiro ou mesmo do Brasil” (FRY, 1982, p. 51).

Existem, afirma o autor, duas possibilidades para que manifestações culturais tidas

anteriormente como inferiores tenham ascendido à posição de símbolo nacional. A primeira diz

respeito à originalidade do samba e sua capacidade de distinguir o Brasil dos outros países da

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América Latina. A segunda, à conveniência política no sentido de assegurar a dominação. A

conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais, conclui, não apenas oculta uma situação

de dominação racial como torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. “Quando se

convertem símbolos de ‘fronteiras’ étnicas em símbolos que afirmam os limites da

nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’ e

‘domesticado’” (FRY, 1982, p. 53).

Uma análise que corrobora, de certa maneira, com essa ideia de uma identidade nacional

construída pelo Estado e pelos intelectuais é fornecida por Hermano Vianna (2007), em sua

análise sobre a trajetória do samba até o patamar de símbolo nacional. Para esse antropólogo,

há um mistério não desvendado pelos autores que compreendem a ascensão do samba apenas

como uma passagem de uma fase em que era alvo de repressão por parte da polícia até uma fase

em que se estabelece como gênero musical que representa a cultura brasileira. Nenhum autor

tenta explicar como se deu essa passagem, ele denuncia. A mudança de status, observa o autor,

não é arbitrária.

De acordo com Vianna (2007, p. 34),

[...] a transformação do samba em música nacional não foi um acontecimento repentino, indo da repressão à louvação em menos de uma década, mas sim o coroamento de uma tradição secular de contatos [...] entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras.

A transformação do samba carioca em música nacional deve ser entendida, no final das

contas, como um processo de invenção e valorização de uma certa autenticidade fabricada desse

gênero musical.

A identidade nacional não é definida, como se sabe, apenas musicalmente. Vianna

também menciona a figura do antropólogo Gilberto Freyre como responsável por transformar

o mestiço, resultado da combinação de traços africanos, indígenas e portugueses, em um

personagem positivo na definição de quem é o brasileiro. A cultura brasileira mestiça se

transformou, ele afirma, em algo que precisava ser preservado: era a garantia da especificidade

do povo brasileiro e também a garantia do futuro, uma vez que o país se tornaria cada vez mais

mestiço. Se o mestiço se tornaria símbolo nacional, era preciso escolher qual era aquela que

melhor se enquadrava no projeto de criação de uma identidade nacional. Os mulatos e o urbano

se tornaram o centro das atenções, o que também contribuiu para a ascensão do samba. “No

campo da música, o samba vira símbolo nacional, ao passo que as ‘canções’ caipiras paulistas

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e os ritmos nordestinos começam a ser vistos como fenômenos regionais” (VIANNA, 2007, p.

70).

Resumindo: a mestiçagem e seus produtos, como é o caso do samba, passaram a ser

interpretados como um processo cultural positivo em torno do qual os brasileiros poderiam

inventar uma nova identidade. Nesse sentido, as emissoras de rádio, as gravadoras recém-

chegadas no país e o interesse político são os elementos que cooperam para que o samba carioca

se transforme, como já observado, num gênero musical nacionalmente aceito. À guisa de

conclusão, Vianna observa que o aparelho governamental esteve envolvido com o progresso da

nacionalização do samba. “A vitória do samba era também a vitória de um projeto de

nacionalização e modernização da sociedade brasileira” (VIANNA, 2007, p. 127).

Ainda tratando da relação entre música e identidade no contexto brasileiro, Marildo

Nercolini (2006) reforça a ideia de que a identidade nacional não é mais vista enquanto atributo

natural, mas como algo que é formado e transformado de acordo com as representações que

vamos adquirindo e criando. Esse autor observa que transformações na tecnologia, nas

telecomunicações e na forma de trocar e produzir bens culturais e econômicos tornaram as

identidades fixas instáveis. Quando se acentuam os contatos e as trocas entre culturas, também

se acentua o processo de deslocamento das identidades nacionais, colocando em pauta, diz o

autor, o hibridismo.

Trata-se de uma perspectiva mais próxima daquela adotada pelos autores que, de alguma

maneira, compartilham com uma abordagem mais flexível da questão da identidade e da

construção do nacional como parte de um projeto.

No Brasil, os criadores da Música Popular Brasileira teriam desempenhado, de acordo

com a perspectiva de Nercolini, um papel fundamental na formação de uma identidade plural e

híbrida. A partir dos anos 60, os criadores do movimento musical citado auxiliaram na criação

de um novo tipo de relação identitária, contrária a posturas vigentes na época: a do governo

militar e a da elite intelectual. Havia, por exemplo, uma proposta de diálogo mais aberto com o

estrangeiro. O ideário nacional-popular estava presente nos debates da época, mas esse

pensamento já não era dominante. A Tropicália, nesse particular, inovava ao repensar a questão

da identidade nacional, indo contra o nacionalismo fechado e ressentido, nas palavras do autor.

Já foi mencionado que a exposição das culturas nacionais a influências externas dificulta que

as identidades culturais se mantenham intactas. O contato com a cultura estrangeira era visto,

assim, como uma possibilidade de o Brasil crescer e se firmar como nação.

É um caminho bastante diferente daquele traçado pelo samba rumo ao status de símbolo

musical nacional. Os tropicalistas, para Nercolini, refizeram uma releitura da antropofagia

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cultural de Oswald de Andrade e, assim, mostraram-se preocupados com a afirmação da

brasilidade que, para eles, não está baseada no consenso.

Uma brasilidade, porém, não baseada no consenso, no ideário de “todos como um”, mas no dissenso de uma nação que são muitas, de um Brasil formado por culturas diversas, não mais querendo forçar uma igualdade utópica construída a partir de padrões que estabeleciam o “bem” a ser seguido e valorizado, demonizando o restante como cópia, lixo cultural, o não-Brasil. Uma brasilidade aberta e construída no diálogo e no embate, não fixa e imutável (NECOLINI, 2006, p. 131).

Neste capítulo, o que se buscou foi compreender os modos como as identidades são

construídas, fabricadas. Essa construção, que tem no consumo midiático um dos seus

fundamentos, estende-se ao universo da música. A música, como se viu, pode ser consumida

tanto individualmente quanto coletivamente e tem o poder de articular em si mesma uma

compreensão tanto das relações grupais como da individualidade. A constituição de uma

biografia de si e a opção por um determinado estilo de vida passam, inevitavelmente, por

escolhas que envolvem modos de consumo, gêneros musicais, artistas e discos.

A construção da identidade é um processo que leva em conta, como se viu, dois

aspectos: atribuição e identificação. Esse processo ganha uma nova dimensão a partir do contato

entre culturas diversas e são dois os fatores principais que contribuem para isso: a mídia e os

deslocamentos de indivíduos. Gêneros musicais também são deslocados e, dessa maneira,

entram em uma disputa por legitimidade, perante outros gêneros, nos novos ambientes sociais

onde foram realocados. No caso da música, as experiências da música country e do samba, o

que também se aplica a outros gêneros musicais, demonstram a articulação entre a produção e

o consumo e como essa associação implica a construção das identidades individuais e coletivas.

No próximo capítulo, o que se discute é a noção de gênero musical, implicada tanto pela

questão da sonoridade quanto pela performance. O gênero musical é considerado neste trabalho,

como se verá, uma estratégia de endereçamento (JANOTTI JUNIOR, 2006), perspectiva que

contribui com a tomada da música enquanto processo comunicativo (TROTTA, 2008).

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3 GÊNEROS MUSICAIS, SONORIDADE E PERFORMANCE

A visita a uma loja de discos evidencia que os produtos estão organizados nas gôndolas

e prateleiras em virtude de uma noção mais ou menos consolidada a respeito dos gêneros

musicais. Essa organização orienta, de certa maneira, o consumo e funciona, grosso modo,

como um elo entre o que está disponível para venda e as necessidades e expectativas dos

consumidores de música gravada, sejam eles compradores regulares ou ocasionais. Há

prateleiras que reúnem produtos designados como rock nacional, outras como MPB, outras

como música gospel e outras como samba.

De um modo mais amplo, as designações levam em conta, como este capítulo pretende

demonstrar, as duas principais dimensões constitutivas dos gêneros musicais: a primeira

(interna) corresponde aos aspectos formais da música e será abordada como a dimensão da

sonoridade; a segunda (externa) corresponde aos aspectos não-formais da música, a ser referida

como a dimensão da performance. Ambas as dimensões estão sujeitas, como se verá, a

convenções fabricadas no âmbito do próprio mercado de música, protagonizado pelas

gravadoras e pelos meios de comunicação. São como duas faces de uma moeda e, portanto,

precisam ser vistas como complementares.

Sonoridade e performance, nesta tese, são noções mais inclusivas às quais se recorre

para dar conta, como exposto acima, dos vários elementos que compõem as duas dimensões

que constituem o gênero musical. O objetivo do presente capítulo é propor uma revisão teórica

acerca do enfoque relacional do gênero musical, ancorada numa discussão anterior a respeito

do gênero enquanto estratégia de comunicabilidade. Segue-se o que propõem Martín-Barbero

(1983; 1995; 2004; 2009), Gomes (2002; 2006; 2011), Trotta (2008; 2012) e Janotti Junior

(2006; 2008). Mas também há referência ao que propuseram Fabbri (1982) e Frith (1996b) para

uma compreensão mais acurada do que vem a ser o gênero musical.

Esta revisão teórica se faz necessária por duas razões: primeiro porque esta tese, como

mencionado em sua introdução, compreende a música como um processo comunicativo;

segundo, porque o circuito da cultura que aqui se analisa é composto por um gênero musical

que foi alterando suas características ao longo do tempo, a partir do contato com sonoridades e

performances derivadas de outros gêneros. Entender a música como um processo comunicativo

implica pensá-la como um produto cujo sentido não é jamais transmitido fechado do emissor

em direção ao receptor. Trata-se, ao contrário, de um sentido compartilhado entre os artistas e

aqueles que se interessam pela sua música e dela se apropriam.

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3.1 GÊNERO COMO ESTRATÉGIA

Em Dos meios às mediações, Jesús Martín-Barbero (2009) expõe que um gênero é uma

estratégia de comunicabilidade. Não é algo que ocorre no texto, mas pelo texto. A perspectiva

do autor pretende ir além da noção literária de gênero, que o vê como propriedade de um texto,

além de se contrapor a uma “redução taxinômica, empreendida pelo estruturalismo” (MARTÍN-

BARBERO, 2009, p. 303).

O gênero, no ponto de vista do autor, é a chave para a análise dos textos massivos. Mas

para tanto, é necessário que deixe de ser considerado como puramente literário e que não seja

mais reduzido a uma receita de fabricação ou etiqueta de classificação. Os gêneros não podem

ser estudados, propõe, sem que se leve em conta a redefinição da concepção de comunicação.

O autor se refere a uma mudança na perspectiva dos estudos de comunicação, da qual fez parte

de certa maneira, no sentido de abandonar uma visão mecânica, transmissiva, para um modo de

se enxergar a comunicação como um processo em que tanto a produção quanto a recepção

envolvem produção de sentido. Ele diz sobre esse aspecto: “[...] a competência textual,

narrativa, não se acha apenas presente, não é unicamente condição da emissão, mas também

da recepção” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 304).

Em outra oportunidade, Martín-Barbero (1995) observou que o gênero não é só uma

estratégia de produção. É tanto, ou mais, diz ele, uma estratégia de leitura. A compreensão,

nesse sentido, estaria condicionada pela identificação do gênero ao qual o produto está

relacionado. Os gêneros não são só narrativas, mas são também lugar de cruzamento de

transformações culturais com movimentos sociais e políticos. “O gênero é um estratagema de

comunicação, completamente enraizado nas diferentes culturas, por isso, geralmente, não

podemos entender o sentido dos gêneros senão em termos de sua relação com as transformações

culturais na história e com os movimentos sociais” (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 65).

Os estudos sobre a história social e cultural dos gêneros é, de acordo com Martín-

Barbero, uma das quatro chaves do que chama de trama conceitual da investigação da recepção

na América Latina28. O autor segue, segundo ele mesmo afirma, a proposição de Paolo Fabbri,

de que o gênero é uma unidade de análise própria da cultura de massa. Dentro do mapa das

mediações, propõe Martín-Barbero, o gênero é chave para a compreensão de como as matrizes

culturais estão articuladas com os formatos industriais.

28 Segundo Martín-Barbero (1995), as outras três chaves conceituais são: os estudos da vida cotidiana; os estudos sobre o consumo; e os estudos sobre estética e semiótica da leitura.

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Não é fato desconhecido que a proposta analítica de Martín-Barbero está relacionada à

televisão. De qualquer forma, as considerações que ele faz a respeito do gênero podem ser

estendidas a outros tipos de gênero, como é o caso do gênero musical. Se, para Martín-Barbero,

a dinâmica cultural da televisão atua pelos seus gêneros, infere-se que o mesmo se aplica à

música. Essa questão será discutida na segunda parte deste capítulo.

A definição do gênero não se dá, apenas, a partir de suas características formais e

internas, mas precisa levar em conta aspectos externos que têm envolvimento com o texto.

Discutindo as questões propostas, entretanto, Itânia Gomes (2011) observa que parece haver,

em Martín-Barbero, uma hesitação entre tratar o gênero como uma categoria textual ou como

uma categoria cultural. Ela afirma que o autor acaba por consolidar o gênero como categoria

cultural, considerando que atravessa tanto as condições de produção quanto as condições de

consumo (MARTÍN-BARBERO, 2004). Com essa argumentação, Martín-Barbero articula os

quatro âmbitos que constituem sua proposta de análise das relações entre comunicação, cultura

e política.

Na leitura que Gomes faz da perspectiva de Martín-Barbero, o gênero ocupa um lugar

central no mapa das mediações, uma vez que é uma estratégia que articula tanto as lógicas de

produção com as competências de consumo quanto as matrizes culturais e os formatos

industriais. As consequências dessa centralidade são tanto teóricas quanto metodológicas,

afirma a autora.

Compreender o gênero como uma categoria cultural e colocá-lo no centro do mapa das mediações tem a vantagem de permitir compreender os gêneros em sua relação com as transformações culturais, numa perspectiva histórica, e a enfrentar o desafio metodológico implicado na ambição de adotar uma visão global e complexa do processo comunicativo (GOMES, 2011, p. 127)

Em uma oportunidade anterior, ao propor um diálogo entre os estudos culturais e os

estudos de linguagem, Gomes (2002) sugeriu que os gêneros fossem pensados como estratégias

de interação. Para a autora, Stuart Hall, no texto que seria chave para os estudos de recepção –

Encoding/Decoding, publicado em 1980 –, teria trazido para o âmbito dos estudos culturais a

noção de que o processo comunicativo não estabelece unicamente uma relação de estímulo e

resposta, mas de mensagens organizadas e consumidas por meio de códigos. Gomes lembra,

contudo, que o caráter essencialmente estruturalista e a ênfase na noção de código implicam

limites na contribuição dos estudos de linguagem. Decorre dessa ressalva a opção por um viés

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dos estudos de linguagem menos engessado, baseado na apropriação que Umberto Eco teria

feito da semiótica de matriz peirceana29.

A discussão a respeito dos gêneros seria o ponto de partida, nesse sentido. Está claro

que Gomes (2002, p. 167) está mais preocupada em estabelecer uma relação entre a discussão

sobre gênero com a questão dos gêneros televisivos. Por isso, ela observa que “[...] um gênero

é um modo de situar a audiência televisiva (ou os leitores), em relação a um programa, em

relação ao assunto nele tratado e em relação ao modo como o programa se destina ao seu

público”. Na perspectiva dessa autora, o gênero é uma estratégia de interação.

Gomes lembra que os estudos culturais surgem como parte de uma iniciativa de recusa

de uma concepção da audiência como passiva e indiferenciada e de uma noção de que os textos

midiáticos são portadores de um sentido transparente. Sinteticamente, a autora interpreta o

modo como Hall, no texto mencionado acima, opera a relação entre os estudos culturais e os

estudos de linguagem nestes termos:

Hall, na pista de Eco e Barthes, mas sobretudo de Bakhtin, dirá, pois, que o processo de leitura não consiste numa atribuição simples e a-problemática de um significante a um significado através de um código. Primeiro, porque existe a polissemia das mensagens; depois, porque o processo de decodificação, tal como Eco também já supunha, é função do quadro de referência ou dispositivos de cognição que a audiência transporta (GOMES, 2002, p. 170).

A pista que Gomes deixa para relacionar essa perspectiva com a discussão sobre os

gêneros é que, de acordo com ela, os gêneros permitem que o processo comunicativo seja

entendido não a partir das mensagens, mas a partir da interação. Essa perspectiva ajuda a

sustentar a argumentação de que a música pode ser entendida como um processo comunicativo,

uma vez que, mais do que carregar uma determinada mensagem que segue num fluxo que vai

do artista até o seu público, é um processo de interação entre a instância que produz a música –

não se trata de uma única pessoa – e os consumidores, que dela se apropriam.

O gênero é uma noção chave nesse processo porque, conforme propõe Gomes, a atenção

na questão dos gêneros é um reconhecimento de que o receptor orienta sua interação com o

programa e com o meio de comunicação de acordo com as expectativas geradas pelo

reconhecimento do gênero. O gênero, segundo tal ponto de vista, aciona a competência cultural

dos receptores. O que muda em relação à proposta desta tese é que não se trata, aqui, de

29 As bases da semiótica contemporânea teriam sido desenvolvidas pelo filósofo estadunidense Charles Sanders Peirce.

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recepção, mas de consumo, adotando o que indica o circuito da cultura apresentado na

introdução.

As marcas de gênero fundamentais, afirma Gomes (2006), são aquelas que se articulam

ao modo de endereçamento. Na perspectiva dessa autora, o modo de endereçamento30 é o modo

como um determinado programa televisivo, objeto sobre o qual ela se debruça, relaciona-se

com a sua audiência. Esse relacionamento se dá, ela propõe, a partir da construção de um estilo

que o identifica e o diferencia dos demais. O gênero televisivo, como já indicado, seria um

modo de situar a audiência em relação a um programa, em relação a um assunto nele tratado e

em relação ao modo como o programa se destina ao seu público. Está incluída nessa concepção

de gênero uma preocupação com as condições de produção, com as condições de leitura e

também com o texto. “O modo de endereçamento é um conceito que se refere a algo que está

no texto – ou no programa, diríamos nós – e que age, de alguma forma, sobre seus espectadores

imaginados ou reais” (GOMES, 2006, p. 108).

A noção de sentido compartilhado entre produtores e consumidores aparece mesmo em

autores que não estão diretamente ligados à perspectiva dos estudos culturais. Na visão de

Nicholas Abercrombie e Brian Longhurst (2007), um gênero se refere a um tipo de produto de

mídia ou de obra de arte que é regido por regras implícitas compartilhadas pelos criadores do

produto e a sua audiência. Para esses autores, cada gênero tem suas regras e convenções

particulares que o distingue dos demais. Essas regras estão, em certa medida, ligadas ao

conteúdo, mas também podem estar ligadas a convenções narrativas e ao estilo visual de um

determinado produto. Os gêneros estabelecem, de acordo com esse ponto de vista, uma certa

cumplicidade entre os produtores e a audiência.

Reitera-se, como um desdobramento dessa perspectiva, a abordagem da noção de gênero

musical enquanto uma classificação que se constitui numa estratégia de endereçamento, ou dito

de outra maneira, uma estratégia que articula produtores e consumidores em torno da música.

As perspectivas apresentadas por Martín-Barbero (1995; 2004; 2009) e Gomes (2002, 2006 e

2011), discutidas acima, são relevantes para os interesses desta pesquisa tendo em vista que

apontam para essa compreensão acerca da noção de gênero. Já a noção de Abercrombie e

Lughurst (2007) reforça a existência de um vínculo entre quem produz e quem consome. Ou

seja: são pontos de vista que indicam e reiteram que o gênero medeia as condições de produção

30 Gomes (2006) lembra que o conceito de modo de endereçamento surgiu no contexto da análise fílmica e tem sido adaptado para dar conta, conceitualmente, do modo como os programas televisivos constroem sua relação com os telespectadores.

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e as competências de leitura. A articulação desse debate com o universo da música é

desenvolvido na seção a seguir.

3.2 GÊNEROS MUSICAIS

São muitas as tentativas de definição do que seriam os gêneros musicais, o que envolve

uma discussão sobre quais são os aspectos que devem ser levados em conta para uma

classificação da produção musical. Esta seção apresenta algumas dessas tentativas, mas propõe,

como já apontado, que duas dimensões necessitam ser melhor compreendidas: a sonoridade e

a performance. Essas dimensões não serão discutidas em tópicos separados, alerta-se, porque a

proposta é que elas sejam pensadas como partes que integram o mesmo processo, o da

classificação por meio dos gêneros musicais.

De acordo com o que propõem Jennifer Lena e Richard Peterson (2008), gênero é uma

ferramenta conceitual usada para a classificação de produtos culturais nos mais variados

campos, entre os quais se encontra a música. Descreveria, nesse sentido, uma forma de

expressão que rege o trabalho dos artistas, seus pares e o também o seu público. Os gêneros

organizam, assim, tanto a produção quanto o consumo do material cultural. A perspectiva

desses autores dialoga com as concepções de gênero apresentadas na seção anterior.

Os autores pontuam que são duas as abordagens dominantes no que diz respeito ao

estudo do gênero. Na primeira, o foco está no texto do objeto cultural, retirado do contexto em

que é feito ou consumido. A maioria dos musicólogos empregariam essa acepção para

identificar o gênero como um conjunto de peças de música que compartilham uma linguagem

musical distintiva. A segunda abordagem, que é a que mais se aproxima dos interesses desta

pesquisa, retira o foco do texto e aborda o gênero enquadrado em seu contexto social. Dá conta,

num certo sentido, da proposta de descentrar o texto (JOHNSON, 1999). Ligados a essa

segunda abordagem, Lena e Peterson definem os gêneros musicais como sistemas de

orientações, expectativas e convenções que unem uma indústria, artistas, críticos e fãs em torno

daquilo que eles identificam como uma espécie distinta de música. É relevante dizer que

orientações, expectativas e convenções são critérios de definição que apontam tanto para

elementos textuais quanto para elementos que estão fora do texto. Expectativa, nesse particular,

diz respeito ao que os fãs, críticos e também outros artistas esperam de um determinado disco

ou música. Além de agradar ao ouvido, o produto em questão deve propiciar sua vinculação a

um gênero musical determinado.

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Lena e Peterson lembram, porém, que a quantidade de gêneros é vasta e que as fronteiras

entre eles dizem muito sobre como os gêneros surgem, desenvolvem-se e desaparecem. Ainda

em relação à questão da fronteira, eles advertem que mesmo que um músico não queira, sua

liberdade de expressão está necessariamente limitada pelas expectativas de outros artistas, do

público, dos críticos e de todos aqueles cujo trabalho é necessário para a produção, distribuição

e consumo dos bens simbólicos. E concluem a questão afirmando que todos os interessados na

definição de gênero musical estão sujeitos, no que tange à demarcação de limites, a

transformações na paisagem social, política, econômica e cultural.

Uma das principais análises sobre o que seriam os gêneros musicais foi proposta por

Franco Fabbri (1982). Para esse musicólogo, um gênero musical é um conjunto de eventos

musicais governados por um conjunto definido de regras socialmente aceitas. O autor observa

que sua definição é bastante ampla, mas diz que ela lhe permite duas coisas: primeiro, incluir

sob esta designação o que pode, ocasionalmente, ser chamado por outro nome, como é o caso

da música étnica31; além disso, permite não deixar de reconhecer como gênero qualquer coisa

que seja considerada como tal. Trata-se, portanto, de uma perspectiva inclusiva baseada no

seguinte argumento:

Um gênero que amalgama relações complicadas entre compositores, cantores, audiência, críticos e organizadores, cada um com suas próprias regras particulares, não deve ser mais digno de atenção e análise do que um gênero baseado em um consentimento arbitrário entre doze jornalistas e um produtor de discos32 (FABBRI, 1982, p. 54, tradução livre do autor).

Quais são, então, os tipos de regras envolvidas na definição de gênero proposta pelo

autor? Há, primeiro, regras de caráter formal e técnico, que envolvem, por exemplo, melodia,

harmonia e arranjo. Cada gênero tem suas formas típicas, mesmo que uma forma não seja o

suficiente para definir um gênero. As regras formais têm desempenhado, diz o autor, o maior

papel em todas as definições de gênero musical. São regras que podem ser parte de um código

escrito ou transmitidas pela tradição oral e envolvem tanto aspectos ligados ao nível da

composição quanto à habilidade dos músicos. Essas regras constituem a sonoridade do gênero

musical, infere-se.

31 Música étnica, designada em alguns contextos como world music, faz referência a músicas de gêneros musicais variados produzidas a partir da influência da cultura oriental. Equivale, de certa maneira, a um tipo de música folclórica. 32 “A genre which amalgamates complicated relations between composers, performers, audience, critics and organizers, each with their own particular rules, may be no more worthy of attention and analysis than a genre based on an arbitrary agreement between twelve journalists and a record producer” (FABBRI, 1982, p. 54).

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Há também regras semióticas: gêneros, segundo essa perspectiva, são também códigos

que criam uma relação entre a expressão de um evento musical e seu conteúdo. Essas regras

não se referem, necessariamente, ao texto musical, mas consideram o contexto envolvido. A

distância entre o músico e o público, entre os espectadores e a dimensão total do evento, diz o

autor, são elementos fundamentais para a definição de um gênero. “[...] frequentemente, ‘como

você está assentado’ diz mais sobre a música que será executada do que um cartaz33” (FABBRI,

1982, p. 57, tradução livre do autor). Estão incluídas as posturas e movimentos dos cantores,

músicos e ouvintes e também o figurino.

Cabe dizer aqui que o distanciamento entre artistas e fãs foi parcialmente diminuído

graças à popularização da internet, aos sites de redes sociais e à utilização de certos aplicativos

desenvolvidos para smarthphones. Artistas ligados a gêneros musicais consumidos geralmente

por um público mais jovem, como a música sertaneja universitária, o funk, o pagode e o axé,

têm investido nessas estratégias, apostando na manutenção de perfis no Facebook, Instagram,

Snapchat e Twitter para um contato relativamente mais próximos com os apreciadores da sua

música.

Outras regras envolvidas na definição do gênero são de caráter comportamental. Podem

ser avaliadas, por exemplo, a reação dos artistas diante do público e vice-versa. As reações

mudam de gênero pra gênero, sugere Fabbri. Cada gênero é caracterizado por um conjunto

particular de gestos, frases e símbolos. São estes rituais, aliás, os responsáveis por estabelecer

um círculo exclusivo ao redor do gênero, denunciando os intrusos que não estão bem

informados a respeito dele. Essas regras têm, em função disso, um caráter regulatório. Ao lado

das regras semióticas, as regras comportamentais compõem a dimensão da performance.

Já outras regras são de caráter social e ideológico. A divisão do trabalho dentro de um

gênero também seria uma regra, assim como o fato de que certos gêneros estariam ligados a

faixas etárias ou classes sociais específicas. O próprio conhecimento das regras de um

determinado gênero pelos seus participantes quase sempre é de natureza ideológica, afirma o

autor. Como discutido no capítulo anterior, é questionável essa ideia restritiva que liga um

gênero musical a uma faixa etária ou a uma classe social. A experiência cotidiana aponta para

a fragilidade dessas associações.

O último conjunto de regras que Fabbri apresenta é de natureza econômica e jurídica.

Trata do conhecimento das questões econômicas e jurídicas que garantem a sobrevivência do

gênero por parte tanto dos artistas quanto da audiência. São regras que também dizem respeito

33 “[...] often ‘how you are seated’ says more about the music that will be performed than a poster” (FABBRI, 1982, p. 57).

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à regulação, por assim dizer, dos gêneros musicais. Os artistas são parte do mercado que é

controlado pelas grandes gravadoras ou são artistas independentes? Suas composições são

registradas e os autores das músicas recebem o direito autoral recolhido? Os discos

comercializados são originais ou piratas? A maior parte da receita é oriunda dos shows

realizados ou vem da venda de produtos como CDs e DVDs? As estratégias de circulação

envolvem os principais veículos de comunicação, tais como rádio e televisão, ou são baseadas

em um modelo de comunicação em que o próprio artista faz as vezes de divulgador? Essas são

algumas questões ligadas à essa regra em particular, que, como sugerido, variam de gênero para

gênero. Deve-se acrescentar que a própria ideia de classificação por meio dos gêneros musicais

envolve questões econômicas, como se verá a seguir.

Ao propor uma análise a respeito dos rótulos no âmbito da música popular, Simon Frith

(1996b) observa que a rotulação está no centro do julgamento de valor desse tipo de música. O

autor parte da noção de gênero musical como organizador do processo de venda. Para Frith, a

classificação em gênero é fundamental para aquele setor das gravadoras responsável pelos

artistas e pelo repertório. Nesse setor, a primeira coisa que se busca saber sobre uma música

nova é o seu tipo, o que envolve tanto uma indagação sobre a música em si, isto é, sobre como

ela soa, mas também sobre o mercado, ou seja, sobre quem a compraria. Gênero, assim, é uma

forma de definir a música dentro do mercado, ou seja, é um modo de posicionamento no

mercado da música.

Qualquer decisão tomada nessa etapa do processo influenciará tudo o que ocorrer com

o artista nas etapas seguintes. Uma vez que tenha assinado o contrato com a gravadora, o artista

deverá se portar em conformidade com o gênero musical com o qual está ligado34. Decisões

sobre as sessões de gravação, fotos promocionais, escolha do figurino, entrevistas e estilos de

vídeos, por exemplo, levarão em conta determinadas regras de gênero. Entender como um

rótulo funciona, propõe Frith, equivale a entender como o mercado funciona.

Frith observa, entretanto, que a rotulação envolve uma ação combinada entre forças

musicais, mercadológicas e ideológicas. Há, para o autor, três usos principais da rotulação por

gênero: o primeiro uso está ligado ao mercado; o segundo, aos músicos; e o terceiro, ao

consumo.

Ao fazer uso dos rótulos para tornar mais eficientes suas estratégias, as gravadoras

estariam partindo da suposição de que existe uma relação entre os rótulos e o gosto do

consumidor. Essa suposição repousa, ele diz, em um conjunto de pressupostos sobre quem são

34 A performance em conformidade com o gênero musical ao qual o artista se vincula não é, entretanto, exclusiva das relações em que há a intermediação de uma gravadora.

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os consumidores em termos, por exemplo, de idade, gênero, etnia, renda e hábitos de leitura35.

Trata-se, nos termos de Frith, da criação de um consumidor fantasia – a fantasy consumer. Os

gêneros, assim, descreveriam não apenas quem os ouvintes são, mas também o que uma música

determinada significa para eles. “Ao decidir rotular uma música ou um músico de um jeito

particular, as gravadoras estão dizendo algo tanto sobre o que as pessoas gostam quanto o

porquê de elas gostarem disso; o rótulo musical atua como um argumento sociológico e

ideológico denso36” (FRITH, 1996b, p. 85,86, tradução livre do autor).

Além de serem usados para tornar as estratégias de mercado mais eficientes, os rótulos

são usados também, diz Frith, para organizar a execução das músicas. Os músicos, pela falta de

educação musical formal, fariam uso de rótulos genéricos como uma abreviação para certos

tipos de som, como batidas e riffs. De novo, associa-se o gênero musical à sonoridade. Ocorre

quando um músico pede ao outro, numa sessão de gravação, uma “batida de funk” ou um

“contrabaixo de reggae”. Nesses casos, a questão é discursiva e depende de um conhecimento

e de uma experiência musical compartilhada. “[…] também para os músicos, os rótulos do

gênero descrevem simultaneamente habilidades musicais e atitudes ideológicas37” (FRITH,

1996b, p. 87, tradução livre do autor).

O terceiro uso da classificação musical por meio do gênero organiza o processo de

escuta. O processo de rotulação é melhor compreendido como resultado de uma coalisão, um

acordo livre entre músicos e fãs, escritores e DJs, do que como algo inventado individualmente.

Esses três tipos de uso, para Frith, estão relacionados ao mesmo ponto: gêneros musicais

populares são construídos dentro de um processo que é, ao mesmo tempo, cultural e comercial.

Eles não são o resultado de análises acadêmicas isoladas ou de formalidades da musicologia.

Para o autor, são as regras de gênero que determinam como as formas musicais são tomadas

para transmitir sentido e valor.

Analisando a perspectiva de Fabbri, apresentada anteriormente, Frith (1996b, p. 93,

tradução livre do autor) observa:

35 Como se fosse possível, com base nesses elementos, traçar-se um perfil ideal dos consumidores de modo a associá-los a um gênero musical específico. 36 “In deciding to label a music or a musician in a particular way, record companies are saying something about both what people like and why they like it; the musical label acts as a condensed sociological and ideological argument” (FRITH, 1996b, p. 85,86). 37 “[...] for musicians too, genre labels describe musical skills and ideological atitudes simultaneously” (FRITH, 1996b, p. 87).

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O problema de uma visão tão esquemática [...] é que ela implica uma imagem estática de gêneros com limites claramente definidos, enquanto que, de fato, os gêneros estão mudando constantemente – como um efeito do que está acontecendo nos gêneros vizinhos, como resultado de contradições musicais, em resposta às mudanças tecnológicas e demográficas38.

De acordo com Frith, o valor da análise de Fabbri está em esclarecer como as regras de

gênero integram fatores musicais e ideológicos, além de apontar para a centralidade da

performance na estética da música popular. Frith propõe, a partir de Fabbri, que as regras do

gênero estão organizadas em quatro convenções: o que se ouve (sonoridade), o que se vê

(performance), que tipo de música é vendida e qual a sua ideologia.

O autor expande a regra comportamental de Fabbri, tratando da questão da performance

como um elemento presente no comportamento dos artistas, por exemplo, durante as

entrevistas, no vídeo e nas fotos que saem nos jornais. A performance é compreendida como

uma experiência, ou um conjunto de experiências, de sociabilidade. No contexto da música

popular, a performance não se restringiria apenas a um aspecto subjacente ao que se ouve. Na

perspectiva de Frith, o ato de ouvir, em si mesmo, é um ato performático.

A performance, nesse sentido, é um elemento externo ao texto. São quatro, segundo

Frith, os sentidos que a noção de performance pode ter: primeiro, designaria a maneira como

os artistas usam o corpo como material da sua arte; designaria também o desempenho dos

artistas (atores, dançarinos) nos palcos; definiria ainda um processo social, comunicativo,

requerendo uma audiência que possa interpretar, produzir significados; por último, é necessário

que o trabalho dos artistas seja compreendido a partir da própria experiência de performance

do interpretante – a performance artística depende da performance do dia a dia, da experiência

cotidiana. O sucesso da performance, no fim das contas, poderia ser medido pela resposta da

audiência.

A performance envolveria, ele diz, gestos que são verdadeiros e falsos ao mesmo tempo.

Essa simultaneidade é crucial para a compreensão da performance enquanto uma construção.

Os gestos são verdadeiros porque são apropriados para as emoções que estão sendo descritas,

expressas ou invocadas pelo artista no ato de executar uma música. Mas são falsos porque são

assumidos apenas para aquela ocasião. Há, nessa última ideia, um entendimento de performance

enquanto simulação, enquanto ato ligado a um ou a vários personagens que o artista interpreta

enquanto está no palco ou sob a mira de uma câmera.

38 “The problem of such a schematic overview […] is that it implies a static picture of genres with clearly defined boundaries, whereas, in fact, genres are constantly changing – as an effect of what’s happening in neighboring genres, as a result of musical contradictions, in response to technological and demographic change” (FRITH, 1996b, p. 93).

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O figurino e, em um sentido mais amplo, a aparência dos artistas também são

constitutivos da performance. As roupas oferecem, ele afirma, o movimento mais íntimo entre

o corpo e o mundo exterior. É, assim, uma ação de comunicação. “Como os músicos aparentam

– quão casual, quão elegante – claramente afeta como, a princípio, nós os ouvimos”

(FRITH, 1996b, p. 219).

O autor trata ainda da questão da performance – isto é, do desempenho dos artistas – no

palco e nos vídeos. No primeiro ambiente, o dos palcos, Frith observa que, em alguns gêneros

musicais, a espontaneidade de um show é indicada pelos erros, pelas cordas quebradas, os falsos

começos e uma certa bagunça no encerramento. Há outros gêneros, entretanto, em que o

engajamento dos músicos é medido pela precisão, pela perfeição na harmonia. A dança é um

outro elemento importante da performance no palco. Em relação aos vídeos, o autor aponta que

sua importância está no fato de a performance ser baseada nas convenções estabelecidas, porém

adaptada para uma nova circunstância tecnológica e mercadológica. É preciso que os artistas

traduzam suas performances em termos televisivos, dentro das regras que são próprias aos

programas de entretenimento. É o caso, por exemplo, de uma situação em que o artista precise

cantar com playback39, dublando a si próprio.

O entendimento de Frith a respeito dos gêneros musicais é exposto aqui porque não

restringe a classificação à instância da produção. Ou seja, o autor não aborda a rotulação como

determinada pelo mercado. Frith não deixa de reconhecer que os gêneros musicais são parte de

um processo de organização dos produtos que estão à venda. Mas avança ao propor que, além

das gravadoras, os artistas e os consumidores também tomam parte na definição e apropriação

dos gêneros. Como apontado, a compreensão do autor é que o gênero musical, como parte de

um processo que é cultural e comercial ao mesmo tempo40, organiza também o processo de

escuta. Além disso, essa perspectiva reitera que a classificação através dos gêneros é flexível e

está sujeita a modificações tecnológicas e demográficas.

No que diz respeito à performance, Frith a trata como central ao observar que ela

compreende desde o comportamento dos artistas nos palcos e na mídia até o ato de ouvir música.

Interessa aos objetivos desta pesquisa a acepção de performance enquanto definidora de um

processo comunicativo que envolve artista e público. Ocorre, por meio da performance, uma

interação.

39 Ao usar o playback, o artista canta sobre o instrumental da música gravado em CD ou disponível em outro suporte. Existe discussão entre os fãs de música popular sobre a utilização desse recurso em programas de televisão e mesmo em shows. No âmbito acadêmico, a questão foi tratada por Soares (2012). 40 Frith contempla, nesse sentido, a articulação entre a cultura e o mercado.

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A percepção de Frith em relação à performance é, como demonstrado anteriormente,

uma expansão da regra comportamental da qual trata Fabbri (1982). As regras propostas por

esse autor são retomadas também por Roy Shuker (1999), para quem os gêneros musicais têm

sido pensados nas análises críticas sobre música popular como um elemento básico de

organização. O autor alerta, contudo, que embora a noção de gênero musical funcione como

categoria de marketing e ponto de referência para músicos, críticos e fãs, as divisões de gênero

precisam ser consideradas fluidas. Nenhum estilo, diz o autor, é totalmente independente

daqueles que lhe precederam. Os músicos, ele complementa, se apropriam de elementos de

estilos já existentes e os incorporam às novas formas. E finaliza esse ponto dizendo: “[...] muitos

artistas estão em mais de uma classificação ou trocam de gênero durante suas carreiras. Há

também uma considerável flexibilidade em relação ao gênero” (SHUKER, 1999, p. 142).

Ele observa ainda que algumas características fundamentais podem ser observadas

quanto à noção de gênero musical. A primeira: existem traços de estilo que estão presentes na

obra musical, ou seja, suas características musicais. O autor observa, porém, que este argumento

nem sempre é coerente e nem sempre se sustenta. Segunda característica: existem outros

atributos de estilo, não musicais, como os ligados à imagem e outros estilos visuais, o que inclui

a iconografia da capa do disco, o figurino e o cabelo do artista. Alguns desses atributos podem

ser encontrados também nos fãs, quando usam roupas e acessórios que os associam a um ou

outro gênero. Terceira característica mencionada pelo autor: há um público primário para estilos

específicos, revelando a sociabilidade que se estabelece em função dos gêneros. Quarta: gêneros

musicais estão organizados, por artistas, fãs e críticos, em uma hierarquia musical, baseada em

noções como autenticidade, sinceridade e valor comercial. Essa dimensão ideológica aparece

tanto na abordagem proposta por Fabbri (1982) quanto na proposta de Frith (1996b). Alguns

gêneros são considerados “legítimos”, outros não. Por fim, a quinta característica: o status e os

constituintes dos gêneros musicais são mutáveis, ou seja, não são fixados.

O reconhecimento dos gêneros musicais, na compreensão de Felipe Trotta (2008), é o

ponto de partida para o processo em que a música popular se constitui parte do fenômeno

comunicativo, uma vez que os gêneros seriam responsáveis por criar um ambiente afetivo,

estético e social onde operam as redes de comunicação e compartilhamento. Para esse autor, a

construção de sentido da música opera a partir – o destaque é dele – dos gêneros musicais. A

formação dos gostos e das identidades musicais necessita do reconhecimento dos gêneros que

habitam um universo sonoro socialmente compartilhado.

O autor, a exemplo de Frith (1996), também discute a perspectiva de Fabbri acerca dos

gêneros musicais. Trotta aponta que tal ponto de vista se torna interessante e útil por propor que

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sejam isolados eventos musicais de uma determinada experiência musical, com a identificação

de convenções “sócio-sonoras”, o que transformaria a construção de uma classificação de

gêneros musicais em um processo ativo. Para ele, ainda que não haja uma hierarquia entre as

características dos gêneros, pode ser observada uma certa primazia dos parâmetros sonoros, isto

é, das regras formais e técnicas sobre as demais no que diz respeito à classificação. É quase

sempre por meio do som que se determinaria o que o autor chama de “aparato simbólico inicial

de estabelecimento de regras e identificações musicais” (TROTTA, 2008, p. 2).

Por meio da análise meticulosa das estruturas sonoras, Trotta argumenta que se pode

chegar a uma compreensão mais precisa dos processos de identificação, classificação e uso que

envolvem as práticas musicais. Seriam dois, para ele, os elementos musicais envolvidos na

classificação inicial dos gêneros musicais: o ritmo e a sonoridade. A execução de um

determinado padrão rítmico, afirma o autor, nos coloca em contato com um conjunto de

símbolos que caracterizam determinado gênero musical. O outro elemento é a sonoridade, ou

seja, o resultado acústico dos timbres durante uma performance, uma combinação de

instrumentos musicais e vozes que, em função de sua recorrência, transforma-se em elemento

que propicia a identificação. “Através do reconhecimento de sonoridades características, as

músicas são agrupadas em gêneros musicais que, sincreticamente associados a outros

elementos, estabelecem condições e imaginários que moldam o fluxo comunicacional da

música popular (TROTTA, 2008, p. 3).

É bastante proveitosa para os objetivos deste capítulo a visão do autor da estreita relação

entre a sonoridade e os gêneros musicais. Para ele, uma certa sonoridade, utilizada de maneira

recorrente em um gênero musical determinado, tem a chance de se transformar numa

caraterística desse gênero. A sonoridade, nesse sentido, constitui-se em uma regra – ou em uma

marca – de gênero.

Mas Trotta (2008, p. 9) faz uma ressalva igualmente importante:

[...] a sonoridade não se define apenas pela tipologia instrumental. A forma com que uma determinada música “soa” depende ainda do jeito de tocar (e cantar) e de misturar os timbres, que caracteriza o perfil sonoro da música e do gênero musical ao qual ela potencialmente se encaixa.

Esse fragmento indica que o autor não tem uma visão restritiva no que diz respeito à

sonoridade. Ele propõe, como se viu, que não há um jeito único de se produzir uma sonoridade

que possa ser vinculada a determinado gênero. É levada em conta a construção de relações entre

o jeito de tocar, a melodia, a letra, a harmonia e os estilos vocais de cada intérprete. Como

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afirma o autor, esses elementos articulam o som, o gênero e os sentidos que lhes são atribuídos

e compartilhados socialmente.

As sonoridades, assim como os gêneros musicais, estão sujeitos a mudanças. Como o

autor esclarece, as sonoridades

[...] estão o tempo todo sendo desafiadas pela criatividade dos músicos, produtores, compositores, arranjadores e de todos aqueles envolvidos com o fazer musical, que continuamente colocam em xeque as fronteiras e desafiam a definição de músicas neste ou naquele gênero musical (TROTTA, 2008, p. 11).

Em outra oportunidade, Trotta (2011) desenvolve essa ideia demonstrando que as

músicas postas em circulação se influenciam mutuamente. E propõe, além disso, que o gênero

musical pode, ele mesmo, ser deslocado da sua origem territorial e ser incorporado ao que

chama de vocabulário musical de outras regiões, as quais passarão a reconhecer o gênero

musical como se fosse seu.

Há, para Trotta, uma articulação entre os gêneros musicais, a questão da representação

e o consumo. Consumir música, ele diz, significa tomar parte num sistema simbólico e se

associar às representações subjacentes a um tipo determinado de música. O modelo ideal de um

gênero, ele lembra, remete a uma coleção de elementos característicos que produzem uma

associação imediata com seu ambiente simbólico. Criam-se, em decorrência disso, fronteiras

entre os diversos gêneros musicais existentes, e uma vez que essas fronteiras são estabelecidas,

dois eventos complementares se processam: “[...] define-se um grau de proximidade que uma

música dada tem em relação a um modelo ideal consagrado de determinado gênero e, ao mesmo

tempo, identificam-se elementos que negam este modelo ou que representam diálogos e

intercâmbios com modelos de outros gêneros” (TROTTA, 2011, p. 56, 57).

Trotta lembra ainda que os gêneros musicais são classificados hierarquicamente na

sociedade, uma vez que nem todos gozam do mesmo prestígio num determinado contexto

social. A classificação mercadológica do universo musical envolve, segundo o autor aponta,

uma disputa por legitimidade entre os grupos que praticam os gêneros. Isso se dá porque os

gêneros funcionam como vetores de identificação, e há, nesse processo, – conforme delineado

pelo circuito da cultura de Du Gay at al (1997) –, uma articulação entre identidade e regulação.

Hall (1997, p. 42), em sua discussão a respeito da centralidade da cultura, observa que

há várias formas de regulação cultural. Algumas de nossas ações estão, ele sugere, sedimentadas

na nossa cultura, e é a regulação que dá sentido a essas práticas, além de estabelecer posições

de pertencimento e exclusão. Sobre esse aspecto, Hall afirma:

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[...] as fronteiras da regulação cultural e normativa são um instrumento [...] poderoso para definir “quem pertence” (isto é, quem faz as coisas da mesma forma que nós, conforme nossas normas e conceitos) e quem é um “outro”, diferente, fora dos limites discursivos e normativos de nosso modo particular de fazer as coisas.

A diferença entre o que propõem Trotta (2011) e Hall (1997), nesse ponto, é sutil, uma

vez que para o primeiro, dentro do mesmo gênero musical, isto é, do lado de dentro da fronteira,

– entre aqueles que partilham determinadas convenções e regras de gênero –, há uma disputa

por legitimidade. A escolha que o autor faz para sustentar sua argumentação a respeito das

convenções que configuram um modelo do gênero vai ao encontro dos interesses desta

pesquisa:

[...] para classificar uma canção como “sertaneja”, é necessário que o conjunto de elementos que caracterizam o modelo ideal dessa categoria seja conhecido pela população envolvida com essa classificação, caso contrário, o gênero não se define e nem pode funcionar como chave de sentido.

As gravadoras e o rádio, sugere o autor, são instâncias que constituem espaços

privilegiados para a fixação de uma classificação. Os gêneros funcionam, ele afirma, como

categorias mercadológicas que organizam, orientam e promovem todas as atividades concretas

e simbólicas que caracterizam o consumo de música. O mercado de música gravada e a mídia,

então, são espaços em que as classificações, através dos gêneros musicais, são criadas (ou

melhor, fabricadas), difundidas e, por consequência, socialmente sedimentadas.

Quando transfere o foco do samba para o forró, Trotta (2012) reestabelece a

preocupação com a questão da sonoridade. Ao discutir a relação entre a identidade nordestina

e os referenciais de masculinidade e valentia que se materializariam na sonoridade da sanfona

e na figura do sanfoneiro, Trotta propõe que a sonoridade está ligada a aspectos relativos à

construção do timbre. Esse, por sua vez, liga-se a um conjunto de repertórios e memórias que,

nos termos do autor, estão sedimentados no interior dos circuito cultural. Em outros termos, a

sonoridade está relacionada à constituição de certas características sonoras produzidas por

instrumentos musicais específicos e compartilhadas socialmente. De acordo com o que propõe

o autor, a negociação de sonoridades corresponde a uma negociação de valores, de referenciais

compartilhados e de experiências vividas, de modelos de sociabilidade e de identificações.

É o caso, por exemplo, das oposições entre o tradicional e o novo, que o autor aplica à

análise das diferenças de sonoridade entre o forró pé de serra e o forró eletrônico. No que se

refere à questão da sonoridade, Trotta aponta dois elementos que seriam constituintes de uma

sonoridade jovem. O primeiro seria a “predileção pelas novas tecnologias do som, que tem

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como marco o surgimento da guitarra elétrica e dos sistemas de amplificação eletrônica do som

aplicados aos vários instrumentos”. O outro elemento, decorrente do primeiro, “está

relacionado à intensidade. A eletrificação do som permitiu um substantivo aumento nos

volumes praticados pelas bandas, sobretudo em shows ao vivo, se tornando um valor qualitativo

da banda, Dj ou aparelhagem”. (TROTTA, 2012, p. 164).

A ideia de que o gênero musical faz parte de uma estratégia mais ampla de

endereçamento, o que implica uma articulação entre as condições de produção e consumo de

música, foi inicialmente elaborada por Jeder Janotti Junior (2006), e tangencia a discussão

acerca dos modos de endereçamento (GOMES, 2006), apresentada na primeira seção deste

capítulo. Para Janotti Junior, a canção é o ponto de partida para a abordagem de aspectos sociais

e culturais do consumo de música.

O gênero musical, na perspectiva de Janotti Junior, é fundamental para a produção de

sentido no que se refere às canções populares massivas, cuja noção estaria ligada aos encontros

entre a cultura popular e os artefatos midiáticos. Para ele, a ideia de gênero aponta para

determinadas convenções estéticas que lhe são próprias. Isso se daria porque

“independentemente de conhecer o intérprete, o consumidor de música reconhece as melodias,

temáticas e expressões” (JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 37) de cada gênero.

Pela argumentação do autor, o gêneros são modos de mediação entre as estratégias

produtivas e o sistema de recepção. São levados em conta os modelos – ou seja, as convenções

– e os usos que os receptores fazem deles. Ao tratar de convenções ou modelos, a perspectiva

de Janotti Junior se aproxima, de certa maneira, da leitura que Martín-Barbero (1983) fez de

Richard Hoggart ao propor que o gênero é o que une os arquétipos – o equivalente aos modelos

a serem copiados – à experiência cotidiana. Se essa compreensão a respeito do gênero aparece

aqui é porque evidencia e reitera a articulação entre a instância produtora e o momento do

consumo musical. O gênero é uma estratégia de comunicabilidade, desse modo, porque

pressupõe um compartilhamento de sentido entre o artista e seus ouvintes.

O gênero deixa, portanto, de ser um elemento inerente à música para se tornar um

aspecto presente no texto pelas suas condições de produção e também de consumo. Há, para

Janotti Junior (2006), uma dimensão nos gêneros que está ligada à sonoridade, mas também há,

como mencionado, aspectos sociológicos e ideológicos do campo da produção e consumo da

música popular massiva.

A rotulação, nessa direção, contribui para que sejam definidas as estratégias de

endereçamento de determinadas canções. Esse endereçamento é guiado tanto pelo mercado

quanto pelo texto, sugere Janotti Junior, que pontua:

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O gênero musical é definido, assim, por elementos textuais, sociológicos e ideológicos; é uma espiral que vai dos aspectos ligados ao campo da produção às estratégias de leitura inscritas nos produtos midiáticos. Na rotulação está presente um certo modo de partilhar a experiência e o conhecimento musical, ou seja, dependendo do gênero, elementos sonoros como distorção, altura e intensidade da voz, papel das letras, autoria e interpretação, harmonia, modo, melodia e ritmo ganham contornos e importâncias diferenciadas (JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 39,40).

Um aspecto que é central na análise proposta pelo autor, e que tem relação direta com

os objetivos deste capítulo, é uma discussão que se ocupa da questão da performance, elemento

que não tem a ver apenas com a configuração dos gêneros musicais, como também com as

características individuais dos diversos intérpretes. A performance, para Janotti Junior, é um

ato de comunicação – de relação entre os intérpretes e os ouvintes. Pressupõe, dessa forma, uma

audiência e um determinado ambiente musical. A performance “define um processo de

produção de sentido e, consequentemente, de comunicação, que pressupõe regras formais e

ritualizações partilhadas por produtores, músicos e audiência, direcionando certas experiências

diante dos diversos gêneros musicais” (JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 42).

O autor assinala ainda que os atos performáticos se conectam diretamente ao universos

dos gêneros, já que os artistas precisam seguir as especificidades dos gêneros quando colocados

em contato com a audiência. Infere-se, a esse respeito, que o referido contato pode ser

presencial, direto, como aquele que ocorre nos shows, ou indireto, quando é mediado por um

canal de televisão ou uma emissora de rádio. Nos dois casos, há maneiras específicas de o artista

se portar, modos e gestos que evidenciem o seu pertencimento a um dado gênero musical. A

audiência, afirma Janotti Junior, não consome somente as sonoridades; consome também a

performance virtual inscrita nos gêneros. Os aspectos associados à performance “são

fundamentais para a compreensão do que é considerada uma interpretação ‘autêntica’,

‘cooptada’, ‘impessoal’ ou ‘verdadeira’; valorações fundamentais para as estratégias de

produtores, músicos e críticos no processo de endereçamento do produto musical ao seu

público” (JANOTTI JUNIOR, 2006, p.42,43).

A questão da sonoridade é abordada pelo autor em um outro momento. Janotti Junior

(2008) observa que a construção da sonoridade corresponde à textura de uma faixa, o que inclui

vozes, instrumentos musicais e timbragem. Pelo enfoque dado pelo autor, “[...] não se deve

deixar de perceber a relação entre voz e instrumentos, a relação entre instrumentos percussivos,

elétricos e eletrônicos, observando os diálogos entabulados pelos diferentes instrumentos e as

diferentes camadas sonoras” (JANOTTI JUNIOR, 2008, p. 218).

O autor pontua ainda que existem diversos cenários presentes de forma virtual nos

gêneros musicais que são materializados nas canções, ou seja, cenários que se conectam ao ato

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de tocar, cantar e interpretar uma canção. A produção de sentido da música popular massiva é

condicionada, dessa forma, por um posicionamento sociocultural de produtores, músicos e

ouvintes. Não são cenários necessariamente contidos nos mapas tradicionais, mas espaços

ligados a certas sonoridades. Falando especificamente da música sertaneja, o autor diz:

Muitas vezes as próprias denominações, por exemplo, música caipira de raiz ou música sertaneja, carregam traços que envolvem imaginários especiais presentes nas performances das canções. No caso da música caipira, há uma valorização de certa quietude, de um mundo desarticulado das novas tecnologias e das “modernidades”; já a nomenclatura música sertaneja remete, hoje, ao agrobusiness, aos rodeios, ao “mundo pop” dos grandes produtores de grão (JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 45).

Janotti Junior conclui, então, que o sentido da música popular massiva se liga também

aos diversos modos de apropriação do produto por parte de músicos, ouvintes e produtores. A

produção de sentido, nesse caso, está atrelada ao que o autor chama de “história social dos usos

e interpretações que podem ser relacionados às performances em suas manifestações corporais,

às vozes, aos timbres, às alturas, às reverberações, aos ritmos e aos cenários musicais”

(JANOTTI JUNIOR, 2006, p. 46).

Como indicado inicialmente, este capítulo teve o objetivo de apresentar uma revisão

teórica que contemplasse o enfoque relacional do gênero musical. Por meio desse enfoque, o

gênero musical é pensado como uma classificação que cria um ambiente de pertencimento,

identificação, compartilhamento de sentidos e, consequentemente, de disputas por

autenticidade. Gêneros estão ligados, reitera-se, aos modos ou estratégias de endereçamento.

Ao sugerir que os gêneros musicais sejam pensados a partir da sonoridade e da performance,

observou-se que eles constroem modelos, arquétipos, a serem repetidos por aqueles que a eles

se vinculam. Entretanto, no que se refere a esses modelos, verificou-se também que as fronteiras

são flexíveis, borradas, e os sentidos são diversos, adaptáveis à experiência cotidiana tanto dos

artistas quanto dos consumidores.

O capítulo a seguir é uma tentativa de articular o debate apresentado até aqui: por um

lado, a relação da música e a constituição da identidade; por outro, a questão do gênero musical

como chave para a compreensão da música enquanto parte de um processo comunicativo, ou

como parte de uma estratégia de endereçamento que liga as instâncias da produção e do

consumo.

A narrativa apresentada pelo próximo capítulo compreende o nascimento, a constituição

e a afirmação da música sertaneja enquanto gênero musical. O percurso começa com os relatos

do momento em que a música caipira deixou, no final da década de 1920, as fazendas e sítios

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do interior paulista para se tornar um produto da indústria do disco na capital paulista; passa

pela incorporação de novos instrumentos musicais, – que resultou em novas sonoridades e

transformações na performance –, ocorrida no contato com as musicalidades paraguaias,

mexicanas e estadunidenses; atravessa a música sertaneja romântica – marca das décadas de

1980 e 1990; e se conclui com uma compreensão possível do que seria o sertanejo universitário,

como é designada parte da música sertaneja contemporânea.

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4 DO SELO VERMELHO AO BLUE LABEL

O primeiro capítulo desta tese pretendeu demonstrar que a relação entre música e

identidade é marcada por disputas em torno de valores como autenticidade e legitimidade. Que

essa não é uma relação entre variáveis fixas, uma vez que tanto a identidade quanto a música

podem sofrer mudanças na maneira como são produzidas. Como se discutiu, a elevação do

samba à categoria de símbolo nacional foi fabricada como parte de um projeto político maior –

abraçado pela mídia, pelos intelectuais e pela classe artística – com o intuito de garantir que a

cultura estivesse incluída no processo de desenvolvimento e modernização do país. Esse projeto

unificador passou por transformações com a abertura do mercado brasileiro e com a

constituição de um sistema de comunicação – bancado pelo governo – que pretendia interligar

todo o Brasil. A música brasileira passou, em função dessas transformações, a ser influenciada

por gêneros musicais de outros países, o que tornou ainda mais acirrada a disputa mencionada

acima. Há, em decorrência desses fatores, uma reavaliação constante em torno de qual seria a

música genuinamente brasileira.

Como já indicado, esta tese apresenta uma análise cultural do cenário ligado à música

sertaneja existente em São Luís. Nessa direção, desenvolveu até aqui uma discussão que

tangenciou questões ligadas à construção e sustentação das identidades, à representação, aos

estereótipos e aos gêneros musicais como uma estratégia que articula produtores e

consumidores. Este capítulo propõe uma aproximação desses temas com a música sertaneja,

gênero musical surgido no Brasil no final da década de 1920 – momento em que o país

atravessava a transição da República Velha para a Era Vargas.

A música sertaneja, como se pretende demonstrar, é um gênero musical cuja história é

marcada por altos índices de popularidade e sucesso. Relatórios de venda e dados sobre

execução por emissoras de rádio são os principais indicadores da notoriedade desse gênero.

Tem sido assim desde que a música sertaneja se tornou um produto passível de ser registrado

em disco e, consequentemente, comercializado. Mais recentemente, com a popularização da

internet, dos sites de redes sociais, dos repositórios de música digital e dos serviços de

streaming, a quantidade de acessos, isto é, o número de vezes em que determinada música foi

executada, baixada, comprada, compartilhada ou teve o videoclipe visualizado também se

tornaram possíveis indicadores de popularidade. Contudo, nesse ambiente online, pela

quantidade de ferramentas e serviços disponíveis, o sucesso ainda é difícil de ser objetivamente

mensurado.

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O que dizem os dados relativos à presença da música sertaneja na programação

radiofônica? Uma pesquisa publicada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e

Estatística, o IBOPE, sobre a relação entre o rádio e os gêneros musicais, trouxe como resultado

que setenta e três porcento dos brasileiros escuta rádio com frequência41. Noventa e seis

porcento dos ouvintes de rádio, segundo a pesquisa, está à procura de música, enquanto que

setenta porcento está à procura de notícias.

A música sertaneja, de acordo com o relatório, é o gênero musical42 preferido pelo

brasileiro, sendo apreciada por cinquenta e oito porcento da população. No referido ranking, a

MPB e os gêneros samba e pagode, tratados como se fossem um só, figuram em segundo e

terceiro lugar, respectivamente.

Ainda de acordo com a pesquisa, a música sertaneja é o gênero musical mais tocado no

rádio. Das cem músicas mais tocadas pelas emissoras de rádio brasileiras no período de janeiro

a agosto de 2013, sessenta e cinco porcento correspondia ao sertanejo. O relatório apresentado

pelo IBOPE traça uma espécie de perfil do ouvinte de música sertaneja: a maior parte dos

ouvintes, cinquenta e dois porcento, pertence à classe C; trinta e três porcento tem o ensino

fundamental incompleto; e vinte e três porcento dos ouvintes tem entre vinte e cinco e trinta e

quatro anos.

A tabela a seguir, baseada no relatório divulgado pelo IBOPE, propõe uma comparação

entre o perfil geral do ouvinte de rádio brasileiro e o perfil dos ouvintes que declararam ouvir

música sertaneja, samba e pagode, MPB e rock.

Tabela 1 – Perfil de ouvintes da pesquisa Tribos Musicais

Geral Música Sertaneja

Samba e pagode

MPB Rock

Escolaridade Ensino médio, 36%

Ensino fundamental

incompleto, 33%

Ensino fundamental,

21%

Ensino superior, 13%

Ensino superior,

13% Idade 25 a 34 anos,

22% 25 a 34 anos,

23% 25 a 34 anos,

24% 25 a 34 anos,

25% 25 a 34

anos, 27% Classe Social C, 48% C, 52% C, 53% AB, 46% AB, 52%

Fonte: o autor, com base nas informações do IBOPE.

O comparativo demonstra uma relação muito mais próxima entre o ouvinte geral de

rádio com os ouvintes de música sertaneja e samba e pagode, designados pelo relatório como

41 O relatório da pesquisa Tribos Musicais, do IBOPE, pode ser acessado no endereço: http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/tribos_musicais.pdf. 42 No relatório, ritmo é o termo utilizado para se referir aos gêneros musicais.

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“ritmos com a cara do brasileiro”, do que com os ouvintes de MPB e rock, designados como

“ritmos da elite”.

O sistema de monitoramento online Spybat, que afirma monitorar a programação de

noventa e cinco porcento das emissoras de rádio brasileiras, divulga frequentemente o ranking

das músicas mais executadas no país. Entre as dez músicas mais tocadas diariamente no período

entre 5 e 8 de julho de 2015, de acordo com informações publicadas nos perfis dos sites de

redes sociais do sistema, dez são do gênero sertanejo (a exceção é o dia 8 de julho, em que a

música Thinking Out Loud, do cantor Ed Sheeran, aparece em décimo lugar). No período de

quatro dias, a campeã em execuções era a música Escreve aí, do cantor sertanejo Luan Santana,

tendo sido executada mais de cinco mil vezes. O que vale ser destacado a respeito desses dados

é que, segundo informações do site do software de monitoramento, não se trata de amostragem,

mas de dados exatos43.

Figura 2 – Ranking diário do Spybat

Fonte: Perfil do Spybat no Facebook.

Os números relativos à venda não contrariam os dados da mídia radiofônica. Uma

consulta44 simples ao ranking das cem músicas mais vendidas no decorrer de uma semana no

43 Informações mais detalhadas sobre o Spybat podem ser obtidas no endereço: http://www.spybat.com.br/portal/. 44 Os dados se referem à lista publicada em 27 de setembro de 2014, no site da revista Billboard Brasil.

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país, publicada pela revista Billboard Brasil45, apontou que, das vinte primeiras colocadas,

dezoito eram do segmento sertanejo, uma é do funk e outra do pagode. Leonardo, comemorando

trinta anos de carreira, e as duplas Zezé di Camargo & Luciano e Bruno & Marrone dividiam a

lista com artistas que integram no cenário da música sertaneja há menos tempo, como Lucas

Lucco, Luan Santana, Cristiano Araújo e a dupla Bruninho & Davi. Constavam ainda, no

referido ranking, nomes como Victor & Leo, Paula Fernandes, Eduardo Costa e Jorge &

Mateus. Apesar de todos serem artistas da música sertaneja, há muitos elementos que

diferenciam, por exemplo, a música de Bruno & Marrone e a de Luan Santana.

O objetivo deste capítulo é, a partir da revisão da literatura disponível que tangencia

pontos ligados à música sertaneja, indicar as várias transformações pelas quais o gênero passou

ao longo de sua breve história, desde o momento em que foi gravado em disco pela primeira

vez, influenciado por uma música caipira cujo uso era exclusivamente ritual, nas fazendas e

sítios do interior paulista, até o movimento chamado de sertanejo universitário, com seus

festivais, toalhas brancas e selfies46.

O momento que a música sertaneja contemporânea atravessa é marcado pela

aproximação com gêneros musicais tais como o funk, o axé e a música eletrônica. Para garantir

a preservação de uma certa tradição dentro da música sertaneja, há quem tente resistir a essas

influências; mas a tendência, como este capítulo pretende demonstrar, é a continuidade no

processo de modernização do gênero, transformando-o em um produto bastante diferente

daquele apresentado no começo do século XX.

A tentativa de compreensão das transformações no universo da música sertaneja é um

desafio que requer um enfoque teórico multidisciplinar. Tal desafio exige que se pondere sobre

a origem dessa manifestação musical no contexto do interior paulista, as implicações do êxodo

do campo para a cidade, as apropriações feitas pela indústria da música gravada no início do

século XX, as influências recebidas ao longo dos anos de outros gêneros musicais e, ainda,

aspectos ligados à renovação dos artistas sertanejos a cada década. Esses são alguns pontos

abordados neste capítulo.

45 A revista Billboard Brasil é uma publicação que circula no país desde 2009. 46 Os artistas que compõem esta fase da música sertaneja, chamada de sertanejo universitário, desenvolvem estratégias de aproximação com o público que passam pela a realização de grandes festivais por todo o país, tais como o Villa Mix. Nesse tipo de evento, muitos artistas costumam lançar pequenas toalhas de rosto para disputa entre os fãs presentes, semelhante ao que fazem alguns grandes nomes da música pop mundial. Já artistas como o cantor Lucas Lucco fazem fotos e vídeos para os aplicativos como Snapchat e Instagram, direto do palco. Herschmann (2010, p. 81) lembra, a respeito dos shows e festivais: “[...] nota-se que o público se mobiliza especialmente em virtude das experiências únicas e memoráveis geradas”.

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O relato aqui apresentado foi construído a partir das descrições e análises propostas

principalmente, mas não exclusivamente, por Cândido (1964), Martins (1975), Caldas (1977;

1979), Ferrete (1985), Zen (1995), Nepomuceno (1999), Tinhorão (2013) e Alonso (2015).

Uma ressalva importante: o levantamento bibliográfico pretende estabelecer uma

distinção entre música caipira e música sertaneja. As possibilidades requerem que a música

caipira seja tratada a partir de suas óticas divergentes: por um lado, exclusivamente como aquela

música produzida e que circula no contexto dos rituais de trabalho e religiosidade do interior

paulista; ou, por outro lado, que também seja contado como música caipira aquela música que,

mesmo no contexto da indústria do disco, tenha conseguido preservar as raízes, a tradição rural.

Qualquer que seja a compreensão do que vem a ser a música caipira, a música sertaneja

compreende aquela inspirada na música caipira, que passou a ser produzida no âmbito das

gravadoras, ganhou circulação tanto no ambiente urbano quanto no ambiente rural, e é constante

e explicitamente modificada pelas influências recebidas de outros gêneros musicais.

4.1 ANTES DA GOMA-LACA

A música sertaneja nasceu, indicou-se acima, sob influência direta da música caipira.

Faz-se necessário, por conta disso, compreender o contexto de onde procede essa manifestação

cultural. O primeiro ponto a ser evidenciado tem relação com o estilo de vida, nos termos de

Giddens (2002), do homem que habita o interior paulista, personagem central na história da

música caipira. A compreensão da maneira como esses sujeitos vivem, seus hábitos e modos de

estar junto é fundamental para o entendimento do tipo de música que é produzida e circula entre

eles.

Antônio Cândido (1964) aponta que a sociedade caipira tradicional se organizou a partir

da atividade nômade e predatória dos bandeirantes. Estes, no Brasil do período colonial47,

adentraram os sertões do país em busca de riquezas minerais, o que resultou na incorporação

de território às terras da Coroa. Na perspectiva do autor, a vida social do caipira teria assimilado

os elementos condicionados pela sua origem nômade. Em decorrência disso, a estrutura

fundamental da sociabilidade caipira consistia no agrupamento de algumas famílias, vinculadas

pelo sentimento de localidade, ainda que temporário, pela convivência, pela prática de auxílio

mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas.

47 O período colonial brasileiro teve início em 1530, a partir da implantação de uma política colonizadora por parte de Portugal, e durou até 1815, quando o país se tornou Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

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O fim dos ciclos bandeirantes resultou na fixação dos desbravadores ao solo, levando-

os a ocupar o território que se expandiu. O espaço se modificou com o surgimento das vilas e

fazendas. Os proprietários das fazendas estavam, conforme narra o autor, envolvidos nas

atividades de venda e compra de produtos e, portanto, ligados ao mercado. Diferenciavam-se,

nesse sentido, dos proprietários de sítios menores e dos cultivadores que não vendiam o produto

da sua lavoura, mas o utilizavam para seu próprio sustento. O que deve ser destacado, porém,

é que não há diferença na origem dos grupos. “O fazendeiro abastado, o pequeno agricultor, o

posseiro provém as mais das vezes dos mesmos troncos familiares e seus antepassados

compartilharam, originalmente, das mesmas condições de vida” (CÂNDIDO, 1964, p. 58).

O contraste se deu, entretanto, pelo emprego de mão de obra servil. A presença do

escravo teria afastado os mais ricos do sistema de cooperação e acentuado as diferenças entre

o sítio e a fazenda. Na nova estrutura, considerada mais complexa, o fazendeiro se sobrepôs ao

seu parente sitiante. Essa categoria, formada pelos sitiantes, posseiros e agregados, definiu a

economia caipira de subsistência e a vida caracterizada pela sociabilidade na vizinhança.

Entretanto, assim como o indígena, o caipira não teria se adaptado às formas mais produtivas e

exaustivas de trabalho ligadas à cana de açúcar e, posteriormente, ao café. “O escravo e o colono

europeu foram chamados, sucessivamente, a desempenhar o papel que ele [o caipira] não pode,

não soube ou não quis encarnar” (CÂNDIDO, 1964, p. 60).

O encontro de costumes e tradições tão diversos deu o tom do universo lúdico do homem

rural paulista, conforme a constatação de Waldenyr Caldas (1987). No que diz respeito à

música, para focar em um aspecto que interessa diretamente aos objetivos desta pesquisa,

observou-se a existência de uma mistura de danças e expressões musicais “como o recortado,

folia do Divino, cana-verde, fofa, chula, dança de São Gonçalo (portuguesas), congada,

batuque, lundu (africanas), cururu, catira ou cateretê (indígenas), a tarantela (italiana), o

fandango (espanhol) e outras” (CALDAS, 1987, p.15). Foram esses ritmos e danças que teriam

dado origem ao que passou a ser chamado de música caipira.

O autor assinala a importância dessa música:

Além da evidente função lúdica, de lazer, deve-se ainda destacar seu papel na produção econômica através do “mutirão”, no ritual religioso das festas tradicionais da Igreja e, principalmente, como elemento agregador da própria comunidade, mantendo-a coesa através da prática e da preservação dos seus valores culturais. É justamente em torno das festas religiosas, dos “desafios” das “modas de viola” ou das “cantigas de roda” que o caipira mantém ainda intacta parte da sua cultura [...] (CALDAS, 1987, 15,16).

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Ao analisar como a música caipira estava envolvida na realização do mutirão, Caldas

destaca que as canções de trabalho faziam parte do ritual coletivo de limpeza da roça ou do

pasto, bem como das colheitas e das festas de confraternização. Esse aspecto reforça o que foi

apontado acima, isto é, o fato de que o sentimento de localidade, a convivência, a prática de

auxílio mútuo e as atividades lúdico-religiosas sustentam a estrutura da sociabilidade caipira.

Nas festas de confraternização, bem como em determinadas festas religiosas populares,

o violeiro desempenha um papel central. Nas festas dedicadas a São Gonçalo, considerado o

padroeiro dos violeiros e patrono da fecundidade humana, o santo português era homenageado

com uma dança sensual, embalada pelo ritmo produzido ao som da viola. Na folia do Divino,

festa que acontece no intervalo entre a colheita da produção e o preparo da terra para novo

plantio, os violeiros acompanham, com outros instrumentistas, o trajeto da bandeira do Divino.

A música caipira protagonizada pela viola exerce, portanto, uma função muito

importante no cotidiano dos trabalhadores rurais e na expressão de sua fé e visão de mundo.

Vai ao encontro dessa perspectiva o que Ivan Vilela (2013, p. 59,60) descreve como sendo o

papel da música no meio rural.

Nas festas religiosas, a música atua como fio condutor de todo o processo ritual. [...] Folia de Reis, Dança de São Gonçalo, Folia do Divino, Folia de São Sebastião, Dança de Santa Cruz, Congados, Fandangos, enfim, são inúmeros os ritos que se utilizam da música como fio condutor. Nas colheitas ou mutirões estão presentes os cantos de trabalho. É comum as violas tocarem durante o trabalho fazendo com que a música dê ritmo aos que estão colhendo ou carpindo (situação também comum nas vindimas europeias). [...] Já as cantigas de roda transmitem, de forma lúdica, conceitos e valores de convívio. Assim, a música no meio rural é por vezes um elemento formador, amenizador nas relações e aproximador das pessoas.

A articulação entre a produção e o consumo da música caipira se dá de forma alheia ao

mercado fonográfico. As condições sociais de produção e o valor de uso da música caipira

voltarão a ser discutidos mais adiante, bem como a natureza e as características da viola. Por

enquanto, mais algumas notas sobre o que torna singular a música caipira são necessárias.

“Se o primeiro brasileiro [...] foi o índio, que tocava chocalho e flauta de bambu, o

segundo foi o caipira, garrado na viola”. É nesses termos que Rosa Nepomuceno (1999, p. 55)

advoga que a viola ocupa papel central no “coração” da música brasileira. O instrumento

musical, trazido ao Brasil pelos colonizadores, teria sido usado já no processo de catequização

dos índios. É da mistura da musicalidade portuguesa e indígena que surgem o cururu, canto

religioso marcado por batidas de pé e que se transformou em uma espécie de desafio entre

violeiros, e o cateretê, também conhecido como catira, que se constitui a partir do canto de

versos, acompanhados por sapateado e palmas. O catira, a título de exemplo, é muito comum

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nas Folias de Reis, cortejos em que há a presença dos violeiros e que reproduzem a viagem feita

pelos Reis Magos48.

Já foi assinalado que além de estar presente nas celebrações religiosas, a música caipira

aparece nos rituais de trabalho. Sobre esse aspecto, Nepomuceno (1999, p. 65) oferece um ponto

de vista que merece atenção:

Os cantos de trabalho, com que os roceiros entretinham a luta suada de cada dia, também foram incorporados aos gêneros rurais. Na sua maioria lentos e repetitivos, eram restritos ao ambiente da lavoura [...]. O caboclo trabalhava improvisando versos, repetindo refrãos, e assim nasceram cantos de fiadeiras, lavadeiras, de engenhos, mutirões, plantios e colheitas.

A moda de viola é, no ponto de vista dessa autora, a expressão musical mais típica do

caipira, que narrava o cotidiano da vida na roça e nas estradas.

Os versos, geralmente longos, falam de tudo o quanto há ao redor do caipira, desde o rio que lhe banha os pés a infortúnios de todo tipo, a morte do boi preferido, o combate de rivais pelo amor da cabocla bonita. E ainda separações, desencantos, fatos engraçados, impressões de viagens (NEPOMUCENO, 1999, p. 69).

Em uma obra que propõe um método de ensino da viola, Roberto Corrêa (2000) trata

das características do instrumento e também de aspectos do cotidiano de seus tocadores.

Conforme já tratado, a viola teria sido introduzida no país no início da colonização, pelos

colonos e jesuítas. Manteve a mesma estrutura do instrumento português, sendo confeccionada

de forma artesanal. Em geral, a viola brasileira apresenta dez cordas, distribuídas em cinco

pares, embora seja possível encontrar violas com mais ou menos cordas. O instrumento

preservou também seu caráter popular e, desse modo, tomou parte em várias manifestações

tradicionais brasileiras, podendo ser encontrada, reitera-se aqui, tanto nos ritos ligados ao

trabalho quanto naqueles ligados à religiosidade.

O autor faz uso da designação viola de arame para dar conta dos diversos nomes que a

viola recebe nos diferentes meios onde está inserida. Alguns nomes que o autor elencou, como

viola de dez cordas, viola caipira, viola nordestina, viola cabocla, dentre outros, são tipos

diferentes de viola de arame. O instrumento é assim chamado por ser encordoado com cordas

metálicas e não mais com cordas de tripa, como era no passado. As cordas de arame seriam,

pela perspectiva apresentada, mais baratas e mais duráveis que as de tripa de animal. São

48 Na Bíblia, Jesus teria recebido, logo após o seu nascimento, a visita de três reis, que lhe trouxeram presentes. Tradicionalmente, a Folia de Reis é realizada entre os dias 25 de dezembro, Natal, e o dia 6 de janeiro, que é o Dia de Reis.

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possíveis, ainda, diversos tipos de afinação, que mudam de nome conforme a região em que são

feitas. Na região Centro-Sul, por exemplo, o autor identificou tipos de afinação chamados de

Cebolão, Natural, Rio Abaixo, Boiadeira e Guitarra. Na região Nordeste, as afinações mais

comuns seriam a Paraguaçu e a De-Cantoria. No litoral sul do país, teríamos as afinações Pelo-

Meio, Pelas-Três e Entaivada.

É deste modo que Corrêa (2000, p. 45,46) narra sua trajetória de pesquisa para conhecer

o universo da viola junto aos tocadores chamados por ele de violeiros antigos, isto é, aqueles

que aprenderam toques tradicionais de maneira direta:

Esta vivência [com os violeiros antigos] formou-me como músico, muito além de conceitos e técnicas. Conheci outra dimensão do fazer musical: prática diferente na concepção, na função, na execução e no uso. Pude aprender sobre a lida do homem com o instrumento; a ancestralidade transmitida pelos toques; a força da tradição nos versos; os jeitos de entoar a voz, as clarezas e as sombras da alma do violeiro; e, principalmente, sobre os diferentes jeitos de o violeiro lidar com sua sina.

O clichê ensina, entretanto, que nem tudo são flores. Relatos empolgantes sobre a

importância da viola para a música caipira não conseguem encobrir que as relações no campo

eram, quase sempre, marcadas pelo uso da força no sentido de garantir a manutenção da pobreza

de muitos em benefício da riqueza de poucos.

Já foi apontado acima que o caipira acabou por se fixar durante um tempo na mesma

região com o fim do ciclo bandeirante. Mas isso não quer dizer que teve condições de

permanecer na vila. Conflitos motivados pela propriedade da terra eram frequentes e a crise

cafeeira vai ser um fator a acentuar o êxodo. Muitas vezes expulso, sem dinheiro e sem trabalho,

o caipira teve que se mudar para outros espaços ou buscar ser incorporado à vida nas cidades,

como operário. E se o tocador de viola vai para a capital atrás de trabalho, ele leva junto o seu

instrumento musical.

O embate entre o rural e o urbano como chave para o aparecimento de uma nova música

é iminente. Sobre o êxodo e algumas de suas implicações no âmbito do lazer e da cultura, José

Ramos Tinhorão (2013) lembra que a existência de um tipo de música chamada sertaneja tem

sua origem na dualidade sociocultural representada pela oposição entre o campo e a cidade. O

homem do campo, aparentemente ingênuo ou simplório, viveria em um ambiente mais calmo e

teria costumes mais despojados e simples; o morador da cidade, aparentemente mais ativo e

esperto, conviveria com a agitação e com o burburinho. No que diz respeito ao lazer e à cultura,

o homem do campo se divertiria normalmente em grupo e ao ar livre, o que propiciaria o canto

e a dança coletivos; o homem da cidade tenderia a reunir-se em locais fechados. A oposição

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sublinhada pelo autor tem consequências, como já sugerido, na ida do caipira para os grandes

centros urbanos:

[...] desde meados do século XIX [...] o público das grandes cidades, principalmente Rio e São Paulo, já se encontrava o bastante distanciado do campo a ponto de receber, com o vivo interesse de curiosidade, os estereótipos da sociedade rural que o teatro, a literatura e, logo depois, o disco, lhe iam fornecer sob a forma de histórias regionais e de poesia e música sertanejas (TINHORÃO, 2013, p. 213).

O ator Sebastião Arruda teria sido o responsável, sugere Tinhorão, pela criação, em

1916, de um personagem que reunia alguns dos traços do trabalhador caipira: botinas grosseiras,

chapéu de palha desfiada, camisa xadrez e calças remendadas. O sucesso dessa representação

abriu espaço para que outros artistas surgissem no cenário paulistano, com o intuito de mostrar

não apenas os costumes dessa gente do interior, mas também a sua música típica. Entretanto,

entende-se que, como indicado no primeiro capítulo, esse tipo de representação apela para o

estereótipo ao reduzir a história e a cultura do caipira a alguns poucos elementos. O estereótipo,

como se viu, impõe uma interpretação única que se fará, a partir desse personagem, do homem

que procede do interior.

Sobre isso, Vilela (2013, p. 93) observa:

[...] as transformações ocorridas em São Paulo no fim do século XIX fizeram que a cultura tradicional fosse relegada a um segundo plano. Assim, criou-se o estigma do camponês atrasado, que não evoluía. A imagem desse camponês foi realçada na cidade como o bobo, o que era sempre logrado. Assim se referiam a ele as peças de teatro e os musicais que em São Paulo eram apresentados. [...] as alusões feitas ao caipira eram sempre sob a forma de insinuações ao ridículo.

As tentativas de fazer a cultura caipira circular no meio urbano podem ser

exemplificadas por outra ação isolada. Considerada um clássico da música sertaneja, Tristeza

do Jeca, – composição de Angelino de Oliveira –, era executada sem letra pelo próprio autor já

em 1918. A música foi gravada pela Odeon em 1924, executada por uma orquestra, e em 1926,

com a interpretação do cantor Patrício Teixeira. Vale ser mencionado que diversas regravações

dessa música foram feitas ao longo dos anos por artistas como Tonico & Tinoco, Renato

Andrade, Sérgio Reis, Chitãozinho & Xororó e Roberta Miranda (ALBIN, 2006).

Foi Cornélio Pires, entretanto, o primeiro a trazer legítimos representantes da música

caipira do interior paulista para a capital. Em 1910, realizou uma conferência sobre as

manifestações culturais do interior ilustradas pelos próprios caipiras. O escritor Afonso Arinos

e o já citado ator Sebastião Arruda repetiriam o feito em 1915 e 1920, respectivamente. Sobre

essas iniciativas, Tinhorão (2013, p. 216) observa que:

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Na verdade, e embora ainda de forma estilizada, conforme o gosto vigente nas cidades, os compositores urbanos vinham tentando oferecer, pelo menos desde o início da segunda década do século XX, uma ideia de como soava a música da área da viola paulista.

Cornélio Pires, nascido em 1884 e falecido em 1958, é o principal nome associado ao

encontro da música caipira com a indústria da música gravada. Conhecer a trajetória dele e de

seu sobrinho, Ariovaldo, subsidia, pelo menos parcialmente, a discussão sobre a natureza e as

características do que viria a se tornar a música sertaneja. Na próxima seção, discute-se o porquê

de a proposta de gravação e lançamento dos primeiros discos da série vermelha, idealizados por

Cornélio, ser considerada o marco para o surgimento desse novo gênero musical.

4.2 FABRICAR DISCOS, FABRICAR ÍDOLOS

Segundo João Luís Ferrete (1985), Ariovaldo Pires, também conhecido como Capitão

Furtado, é um dos personagens que faz parte da história da transformação da música rural em

um produto a ser comercializado nos centros urbanos. Nascido em 1907, na cidade de Tietê,

mudou-se para Botucatu aos seis anos. Trabalhando numa tipografia onde se editavam

calendários, começou a compor suas primeiras estrofes. Em 1926, mudou-se para São Paulo,

cidade em que trabalhou como entregador de encomendas e auxiliar de escritório. Ter aprendido

um pouco de inglês, como sugere Ferrete, foi fundamental para que ele participasse do projeto

do tio que culminou com o registro da música caipira em discos. Ninguém falava português na

Columbia49, gravadora com sede em São Paulo, e Ariovaldo serviu de intérprete para as

intenções de Cornélio.

Cornélio Pires teria custeado a confecção dos primeiros vinte e cinco mil discos de um

tipo mais ou menos adaptado de música caipira, que ficaram prontos em maio de 1929. Uma

das poucas exigências feitas teria sido a de que os discos saíssem, como já sugerido, com um

selo na cor vermelha. A história contada por Ferrete, baseada no depoimento de Ariovaldo

Pires, indica que todos os discos foram vendidos no trajeto de São Paulo a Bauru.

A notícia da existência dos discos caipiras de Cornélio Pires no interior do estado alvoroçou o interior paulista, de Jundiaí a Assis, de Sorocaba a São José do Rio Preto. Todos queriam essas gravações, mesmo com preço dois mil-réis mais alto (FERRETE, 1985, p. 40).

49 A Columbia Records é uma gravadora estadunidense fundada em 1888, com sede no país desde a década de 1920.

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A série de Cornélio Pires teria resultado em 43 discos. Envolveu artistas amadores e

profissionais e revelou a moda de viola, gênero tipicamente caipira. Sobre este ponto, contudo,

uma ressalva deve ser feita. Embora a moda de viola possa ser considerada, de fato, um gênero

tipicamente caipira, o encontro com a indústria do disco demandou ajustes. As músicas

gravadas pela chamada turma caipira de Cornélio Pires não seguiam o padrão daquelas

executadas nos rituais religiosos ou no mutirão, no âmbito das fazendas e sítios das cidades e

vilas do interior paulista. Adaptações tiveram que ser feitas no processo de registro. A iniciativa,

de qualquer forma, tem implicações que precisam ser consideradas, uma vez que, por causa

dela, Cornélio é considerado um dos primeiros produtores independentes de disco do país

(ANDRADE, 2009).

Figura 3 – Cornélio Pires

Fonte: Andrade (2009, p. 60).

Ferrete (1985, p. 46) faz a seguinte observação a respeito do projeto de Cornélio Pires,

que ajuda na compreensão do sucesso comercial da música sertaneja:

O inacreditável sucesso de seus discos pela Columbia levou não só esta gravadora a organizar suplementos caipiras com artistas como Genésio Arruda e os pertencentes à série de Cornélio Pires (em acoplagens), como também induziu os selos concorrentes – Victor e Odeon – a formarem seus próprios elencos no gênero, dando oportunidade a que emergissem Lourenço e Olegário, Zico Dias e Ferrinho, Lázaro e Machado, Plínio Ferraz e João Michalany, Arlindo Santana e Joaquim, além, naturalmente, dos indefectíveis imitadores urbanos do regionalismo.

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Após o trabalho de tradução feito na conversa entre Cornélio Pires e o representante da

Columbia, Ariovaldo continuou a trabalhar na companhia fabricante de discos. Tornou-se autor

e intérprete dos quadros caipiras veiculados pela Rádio Cruzeiro do Sul, empresa ligada ao

grupo. Na mesma época, passou a compor, tendo iniciado com a letra de Coração, de 1929,

escrita em parceria com Marcelo Tupinambá.

A aproximação entre a música sertaneja e a mídia radiofônica se deu, de certa maneira,

em função da popularização desse meio, ocorrida a partir de 1932, com a possibilidade de as

emissoras veicularem propagandas. Antes disso, a programação musical do rádio se baseava na

música erudita. As emissoras do Rio de Janeiro e São Paulo seguiam o projeto educativo e

cultural de Roquette-Pinto. A partir da década de 1930, aparelhos de rádio a válvula levaram a

um crescimento na venda de receptores, o que, consequentemente, gerou competitividade pela

audiência e mudanças no tipo de emissão. A proposta educativa e cultural deu licença à

necessidade de se atender aos interesses da massa de ouvintes que se formava, mas as emissoras

ainda não tinham condições financeiras de arcar com a programação que ofereciam ao público.

Lia Calebre (2002, p. 12) observa: “Para a execução da programação musical, elas contavam

com empréstimos de discos de seus ouvintes e associados [...] e com a apresentação ao vivo de

artistas, sem nenhum tipo de remuneração”.

O rádio veio a se tornar, então, vitrine para os “possuidores de boa voz”, ao abrir os

estúdios para que amadores cantassem. Sobre esse aspecto, Tinhorão (1981, p. 41) diz: “[...]

muitas dessas pessoas [...] candidataram-se à atividade no rádio porque – conforme logo se

descobriria – se falar ou cantar diante dos microfones não dava dinheiro, envolvia a criação de

um mito que lisonjeava a vaidade pessoal, pela conquista da popularidade”.

O que mudou, conforme descreve Tinhorão, foi a própria organização da programação

com o intuito de promover maior aproximação com os ouvintes, o que incluiu o aumento na

participação dos artistas populares e figuras do próprio povo em programas de estúdio. Essa é

a gênese dos programas de auditório e de calouros, que viriam a se tornar bastante populares na

história do rádio brasileiro. Esses programas, observa o autor, foram a causa do deslocamento

dos estúdios das casas dos responsáveis pelas emissões para espaços mais amplos, que dessem

conta do crescente interesse dos curiosos em assistir aos programas. O autor observa que no

início da década de 1930, as emissoras já dividiam suas instalações entre o estúdio e um

auditório capaz de abrigar um pequeno público, aproximando os ouvintes dos artistas do rádio.

O relato apresentado por Tinhorão destaca que Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado, é

um dos responsáveis pelo nascimento dos chamados programas de calouros. Destinados a

revelar novos talentos, os programas de calouros surgiram na programação radiofônica por

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volta de 1935 e passaram a representar uma oportunidade de transformar gente comum no

“mundo maravilhoso da ‘gente do rádio’” (TINHORÃO, 1981, p. 57).

Como observado acima, os programas de calouros, surgidos em São Paulo, dentro da

Rádio Cruzeiro do Sul, desempenhavam uma espécie de oportunidade de ascensão social. Sobre

esse aspecto, Tinhorão (1981) afirma que conseguir lugar nos quadros artísticos de uma

emissora significava, ao mesmo tempo, a chance de ganhar o necessário para viver e se tornar

alguém reconhecido no meio da multidão.

[...] o importante nos programas de calouros era o fato de que, mesmo considerando a posição desvantajosa dos candidatos – sujeitos, naturalmente, a padrões de julgamento muitas vezes fora de sua realidade sociocultural –, o rádio vinha permitir a representantes de grupos proletários fazerem ouvir suas vozes perante as outras classes sociais. E na verdade, foi através dos programas de calouros que surgiram para a vida artística, de meados da década de 1930 a meados da década de 1950, dezenas de nomes que viriam a formar a grande constelação de “astros” do rádio, e logo depois da televisão (TINHORÃO, 1981, p. 61).

Os programas de calouros e de auditório são dois tipos de emissão que reiteram que a

história do rádio é perpassada pela relação com a música popular. Tornaram-se sucesso ao

permitir que os ouvintes não apenas assistissem aos programas, mas também que participassem

deles, interagindo com os apresentadores e se colocando frente a frente com os artistas que se

apresentavam nas emissoras.

Em 1936, Ariovaldo Pires foi para o Rio de Janeiro com a dupla Alvarenga &

Ranchinho, tratar da gravação da moda de viola intitulada Itália e Abissínia. Os três foram

imediatamente contratados para trabalhar na Rádio Tupi, que na oportunidade era propriedade

de Assis Chateaubriand. Muitas gravações de Alvarenga & Ranchinho, bem como parcerias da

dupla com Capitão Furtado, foram feitas após a chegada do trio no Rio de Janeiro, observa

Ferrete. Até um livro foi lançado pelo Capitão Furtado, que se esgotou rapidamente.

O incrível estava ocorrendo. Em plena capital do país, em ambiente onde imperava rígido intelectualismo voltado para as próprias realidades sociais locais e em que se traçavam os rumos da cultura nacional, um caipira de Tietê movimentava o noticiário dos jornais, fazia-se campeão de audiência em programas radiofônicos e conseguia fazer sair a segunda edição de um livro onde se massacrava o dialeto consagrado (FERRETE, 1985, p. 57).

A história da música sertaneja ao longo de todo o século XX, década a década, com a

identificação dos personagens mais importantes e as características de cada momento foi

contada em detalhes por Nepomuceno (1999), embora seja importante dizer que não apenas por

ela. Recontar essa história não faz parte dos objetivos deste capítulo, portanto apenas alguns

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pontos serão colocados em evidência. Em relação aos anos 20 e 30, a autora destaca a presença

do caipira nos estúdios das gravadoras. Ela observa que a turma de Cornélio Pires era formada

apenas por autênticos cantadores do interior. A tendência antes dessa iniciativa, conforme já

apontado, era que cantores nascidos na capital gravassem as músicas inspiradas na música

caipira. Quando Cornélio Pires trouxe para a Columbia as modas de viola, os cantos de trabalho,

cururus e toadas, o termo sertanejo era adotado para designar os gêneros que não eram urbanos.

Houve, na década de 1930, uma considerável aproximação entre artistas da música

sertaneja e outras vertentes da música popular. Nesse período também, a música sertaneja

entrou em contato com uma sonoridade proveniente do Paraguai. Raul Torres, um dos muitos

violeiros que fizeram relativo sucesso na época, teria sido responsável pela aproximação entre

a música sertaneja e a música paraguaia. Após uma viagem ao país vizinho, em 1935, Torres

teria introduzido rasqueados e guarânias na música de inspiração rural. Perto da fronteira,

afirma Nepomuceno, a sanfona resfolegava ao lado da viola. Este instrumento, trazido pelos

italianos, foi incorporado à música sertaneja.

A guarânia, lembra Tinhorão (2013), é um gênero musical paraguaio, criado por José

Asunción Flores, que veio a se tornar popular na mesma época em que o mercado para a música

sertaneja começou a se formar no Brasil. Esse mercado, aliás, representava a incorporação de

sonoridades ligadas ao gosto e às peculiaridades da vida das camadas rurais pelos centros

urbanos. Os primeiros exemplares de música sertaneja com influência das guarânias aparecem

no país no início da década de 1940, com rasqueados, modas guarânias e guarânias

propriamente ditas50. As músicas de estilo paraguaio foram incorporadas sem muita dificuldade

ao repertório da música sertaneja, embora tenha havido alguma oposição por parte de alguns

compositores brasileiros.

A expansão da música paraguaia para além do seu território se deu, em primeiro lugar,

pela existência de uma certa continuidade sociocultural na área da fronteira entre o Brasil e o

Paraguai, marcada por aspectos geográficos, mas também pela presença, naquela região, dos

tropeiros paulistas. A musicalidade paraguaia chegava a São Paulo por meio dos boiadeiros e

peões. Nos cassinos e cabarés, aponta Tinhorão, os paulistas tinham contato com os conjuntos

paraguaios contratados para animar o ambiente ao som de violões e harpas índias.

A dupla Tonico & Tinoco surgiu no cenário sertanejo na mesma década em que as

guarânias se incorporaram à música sertaneja. Ambos do interior paulista, teriam gravado mais

50 Uma das músicas que melhor representa esse momento de transformações significativas na sonoridade do gênero é intitulada Galopeira. Composta pelo paraguaio Mauricio Cardozo Ocampo em 1942, foi gravada em português pela dupla Chitãozinho & Xororó em um disco de 1970.

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de oitenta discos. Mas foi uma dupla menos famosa, composta por Pedro Bento & Zé da

Estrada, que incorporou uma nova sonoridade ao gênero, levando-o ao encontro das rancheras

mexicanas. Também houve a incorporação do trompete, instrumento de sopro da musicalidade

mariachi. Bob Nelson, por outro lado, trouxe elementos da cultura norte-americana para o

sertanejo, adotando figurino similar ao do caubói [Fig. 3]. Foi o início da era do sertanejo-

country.

Figura 4 – Bob Nelson

Fonte: Internet.

A década de 1950 assistiu ao aparecimento de mulheres no cenário artístico sertanejo,

como Inezita Barroso e as Irmãs Galvão. A trajetória de Inezita foi descrita por Arley Pereira

(2013). Nascida em março de 1925, aprendeu a tocar violão e viola ainda na infância. Nas

fazendas de familiares, observava os violeiros e aprendia algumas músicas caipiras, o que viria

a influenciar sobremaneira seu futuro como artista.

A primeira apresentação de Inezita no rádio teria acontecido em 1950, num programa

dedicado a Noel Rosa. Ela se tornou sucesso, contudo, apenas a partir de 1952, depois de gravar

um disco pela gravadora Sinter e cantar na inauguração da Rádio Nacional de São Paulo. A

cantora também fez sucesso na televisão, à frente de programas como Vamos Falar de Brasil,

exibido pela TV Record, e no cinema, estrelando em filmes como Angela, Mulher de Verdade

e Carnaval em Lá Maior.

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Essas duas décadas, 1940 e 1950, foram de muita mistura, pontua Nepomuceno (1999,

p. 148):

No final de 50, nessa mistura de México e Paraguai, filmes de Roy Rogers, bolerões e emboladas, a velha moda de viola ainda era a base da música sertaneja. Todas aquelas influências entravam como ingredientes nesse caldo cada vez mais grosso, já com o sabor original alterado. Naquela confusão de mariachis, sanfonas e violas, grandes nomes ainda surgiam, com o coração e os ouvidos sintonizados na música rural tradicional, tentando manter a receita criada pelo caboclo, no fogo de chão.

Da virada da década de 1950 para a de 1960, merece destaque a criação de um selo

exclusivo para lançamento de discos de música sertaneja, no âmbito da gravadora Chantecler.

Essa gravadora foi fundada em 1958, quando a RCA, uma empresa internacional, criou a sua

própria rede de distribuição e deixou de usar os serviços da Cássio Muniz S/A. A RCA, na

oportunidade, teria sugerido a Cássio Muniz que criasse a sua própria gravadora usando o know-

how da empresa. A Chantecler teve, de acordo com Eduardo Vicente (2010), papel fundamental

na formação de artistas de segmentos que, como a música sertaneja, eram menosprezados pelas

grandes gravadoras.

Atuando numa faixa de mercado mais popular, a Chantecler foi uma das grandes

responsáveis pelo registro de duplas como Tibagi & Miltinho, Tião Carreiro & Pardinho, Zico

& Zeca, Pedro Bento & Zé da Estrada, Palmeira & Biá e Zé Bettio & Mário Zan. Continuou

fazendo discos em 78rpm mesmo quando o LP começou a dominar o mercado, o que permitiu

que o público que tinha dificuldade de substituir seus aparelhos continuasse a consumir os

discos de seus artistas preferidos.

Se as grandes gravadoras passaram a demonstrar enorme interesse pela música sertaneja

a partir da década de 1990, o cenário era outro nos anos em que a Chantecler se dedicava à

gravação e distribuição desse segmento. A esse respeito, Vicente (2010, p. 85) diz:

Gravadoras nacionais como a Chantecler foram as responsáveis por um trabalho fundamental de documentação da música popular brasileira, registrando os trabalhos de artistas populares, vinculados a segmentos regionais, num momento em que as grandes empresas do setor praticamente ignoravam a existência desse mercado.

Menos de trinta anos separam a gravação dos discos da turma de Cornélio Pires e a

fundação da gravadora Chantecler. Gustavo Alonso (2015) propõe um quadro cronológico que,

de certa maneira, ajuda na visualização do sucesso da música sertaneja ou caipira ao longo das

quatro primeiras décadas:

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Tabela 2 – Genealogia do disco na música caipira/sertaneja

Década de 1920 Período de viagens e pesquisas de Cornélio Pires pelo interior do estado de São Paulo. Gravação do primeiro disco de música caipira, em 1929.

Década de 1930 Sucesso regional de artistas como Alvarenga & Ranchinho, José Rielli, Raul Torres & Florêncio, João Pacífico, Athos Campos, Serrinha, Brinquinho & Brioso, Angelino de Oliveira e do próprio Cornélio Pires.

Década de 1940 Auge de artistas como Tonico & Tinoco, Cascatinha & Inhana, Mario Zan, Nhô Pai, Capitão Furtado, Luizinho & Limeira, José Fortuna, Carreirinho, Palmeira & Piraci, Anacleto Rosas Junior, Zé Carreiro, Lourival dos Santos.

Década de 1950 Os artistas mais famosos eram Teddy Vieira, Tião Carreiro, Sulino & Marrueiro, Pardinho, Vieira e Vieirinha, Irmãs Galvão, Ado Benatti, Palmeira & Biá, Pedro Bento & Zé da Estrada, Goiá, Silveira & Silveirinha, Hekel Tavares, Lourival dos Santos, Zé do Rancho, Moacyr dos Santos, Dino Franco e Inezita Barroso.

Fonte: (ALONSO, 2015, p. 31).

Na década de 1960, – para dar continuidade ao relato das principais transformações

ocorridas na música sertaneja –, populariza-se em todo o país o iê-iê-iê, movimento musical

protagonizado por nomes do rock brasileiro como Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa.

Com a ascensão da bossa nova, movimento iniciado no final da década anterior, a música

sertaneja começou a perder espaço na programação radiofônica. No período, os programas

sertanejos eram veiculados apenas em horários alternativos (NEPOMUCENO, 1999). Isso não

quer dizer, porém, que a modernização do gênero tenha estancado. O primeiro disco da dupla

Tibagi & Miltinho, a título de exemplo, já contava com a presença de guitarras. A influência

do rock brasileiro estava explicitada nessa gravação. A música sertaneja moderna era, portanto,

resultado de uma combinação crescente com outros gêneros. A sonoridade era marcada pela

adoção de instrumentos como bateria, guitarra e contrabaixo.

A década seguinte, de 1970, é marcada pelo aparecimento dos chamados novos caipiras.

Renato Teixeira compõe Romaria em 1973, música que foi gravada por Elis Regina51 em 1977.

Mas também se observa a modernização do visual do artista sertanejo, com a adoção de trajes

de boiadeiro misturado ao de rockeiro. Leo Canhoto & Robertinho foi uma das duplas

responsáveis por uma aproximação entre a música sertaneja e os ritmos jovens que foi além da

sonoridade. O flerte com a performance de artistas vinculados à Jovem Guarda era manifestado

nas capas dos discos.

51 A cantora nascida em Porto Alegre gravou a música de Renato Teixeira e foi a responsável por fazê-la circular no universo da MPB.

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Figura 5 – Capa de disco da dupla Leo Canhoto & Robertinho

Fonte: Internet.

Três eventos significativos marcam a década de 1970. O primeiro disco de Chitãozinho

& Xororó, Galopeira, é de 1970. A música que dá título ao disco faz referência a um baile no

Paraguai e a sanfona é o instrumento que a conduz. A dupla Milionário & Zé Rico foi a primeira

a bater a marca dos 200 mil LPs vendidos, isso em 1975. Até esse disco, a influência ainda era

mexicana. Entretanto, a dupla veio a adotar o figurino e a musicalidade moderna, sendo a

primeira a cantar na China, a convite do governo daquele país. Sérgio Reis deixou a Jovem

Guarda, redescobriu as modas de viola e regravou grandes clássicos sertanejos.

Acerca desse momento, Nepomuceno (1999, p. 1989) diz: “A essa altura, o mundo

sertanejo estava irremediavelmente dividido. De um lado, os quase marginais apegados às

tradições. Do outro, os que procuravam a integração com as novidades do mercado e vendiam

mais”.

A década de 1980 também contribuiu com acontecimentos significativos para a história

da música sertaneja. Em 1981, Almir Sater lançou o seu primeiro disco. A dupla Chitãozinho

& Xororó vendeu, em 1982, 1,5 milhão de cópias com o disco que trazia o hit Fio de Cabelo.

A dupla Leandro & Leonardo lançou o primeiro disco em 1983. Em 1985, foi a vez da dupla

João Paulo & Daniel apresentar o primeiro disco, com um repertório que conciliava arranjos

modernos com a viola caipira. Entretanto, como afirma Nepomuceno (1999), havia um abismo

intransponível entre o mundo da música tradicional e o da música sertaneja.

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Figura 6 – Disco de estreia da dupla Leandro & Leonardo

Fonte: Internet.

Sobre a ida da dupla Leandro & Leonardo para São Paulo, em 1983, Nepomuceno

observa que os irmãos saíram de uma plantação de tomate e jiló em Goianópolis com o mesmo

sonho dos pioneiros. A autora observa, contudo, que essa música era bem diferente da música

caipira. Tratava-se, afirma, de “[...] uma fórmula híbrida que juntava distantes referências às

toadas de João Pacífico e arrasta-pés de Tonico e Tinoco às baladas de Roberto Carlos, às

guitarras do rock e ao som dos caipiras da América do Norte” (NEPOMUCENO, 1999, p. 22).

A década de 1980 assiste ainda ao reaparecimento das mulheres no cenário da música

sertaneja. Após alguns anos sem gravar discos com regularidade, Inezita Barroso foi convidada,

em 1980, para apresentar um programa de TV intitulado Viola, Minha Viola, transmitido pela

TV Cultura de São Paulo. Ao lado de Moraes Sarmento, Inezita se tornou um importante nome

ligado à preservação das raízes caipiras, rejeitando o que considerava “moderninho”. Mesmo à

frente do programa de TV, e apresentando sucessivos programas em emissoras de rádio, teria

ficado sem gravar discos entre 1981 e 1984. Só a partir de 1996 é que voltou a ter alguma

constância na gravação de CDs. É relevante o fato de que entre 1951 e 2009, Inezita teria

realizado oficialmente, segundo dados apresentados por Pereira (2013), cerca de quatrocentas

gravações, entre discos de 78 rpm, LPs e CDs52.

52 Inezita Barroso morreu em 8 de março de 2015, aos 90 anos.

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Em 1986, Roberta Miranda lançou seu primeiro disco. Nascida em João Pessoa, capital

do estado da Paraíba, a cantora se mudou para São Paulo ainda criança. Começou a cantar

profissionalmente, em bares, aos dezesseis anos. O segundo disco de Roberta Miranda, lançado

em 1987, alcançou quase um milhão de cópias vendidas e trazia músicas como Rei dos reis e

Vá com Deus53.

Outra mulher a lançar seu primeiro disco no segmento sertanejo em 1986 foi a paulistana

Sula Miranda. O disco gravado pela 3M do Brasil trazia uma canção intitulada Caminhoneiro

do amor, que permitiu a identificação imediata da cantora com uma categoria que foi, de certa

maneira, responsável pela literal circulação do gênero pelo país. Sula Miranda gravou doze

discos de músicas inéditas ao longo da carreira54.

Essa década corresponde, entretanto, ao período em que teria havido a maior

descaracterização dos elementos de raiz, transformação justificada por Nepomuceno (1999, p.

203) desta maneira:

Para aguentar o tranco do peão que corcoveava na potente pick-up, do pecuarista que negociava em dólar e ia de jatinho de uma fazenda a outra, dos seus filhos universitários que falavam inglês e ouviam música internacional, e dos colonos com microsystem na sala e antena no quintal, som sertanejo só bem acabado, com arranjos atuais, embalado por muito megawatts de potência.

Ao mesmo tempo, a década de 1980 registra o interesse progressivo das gravadoras pela

música sertaneja (VICENTE, 2014). Várias atividades, como o programa Som Brasil e a série

Carga Pesada, ambos da TV Globo, e o programa Viola, Minha Viola, da TV Cultura, levaram

a música sertaneja para a mídia televisiva. O gênero também passou a ser atração principal em

feiras e exposições agropecuárias no interior dos estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais.

Apropriada pela indústria fonográfica, afirma Vicente (2014, p. 108,111),

[...] a música sertaneja sofrerá um crescente desenraizamento, autonomizando-se, perdendo muitas de suas características originais e passando a responder, de modo cada vez mais intenso, às solicitações do mercado. [...] ao desenraizamento do gênero sertanejo acabava correspondendo também um desenraizamento dos próprios artistas, apresentando-se a música sertaneja para alguns deles prioritariamente como opção comercial.

Fio de cabelo, música de Ary Barroso e Lamartine Babo, interpretada pela dupla

Chitãozinho & Xororó, foi a primeira música sertaneja a ser incluída na trilha sonora de uma

53 Em quase trinta anos de carreira, Roberta Miranda gravou cerca de vinte discos. 54 Sula Miranda gravou doze discos de músicas inéditas ao longo de sua carreira. O último disco lançado por ela é de 2012. Marcou o retorno da cantora ao segmento, depois de dois discos ligados à música gospel.

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novela da TV Globo. Trata-se de Tieta, novela que estreou em agosto de 1989. A trilha sonora

trouxe ainda a música Luar do sertão, de Catullo da Paixão Cearense e João Pernambucano,

com a interpretação de Roberta Miranda.

Os anos 90 trazem o primeiro disco de Zezé di Camargo & Luciano [Fig. 6] e a música

É o amor. A dupla sertaneja, formada pelos irmãos Mirosmar e Welson, é natural de

Pirenópolis, cidade do estado de Goiás. Como era comum, encontraram na capital paulista a

possibilidade de realizar o sonho de gravar um disco e viver do talento para a música. O

primeiro registro, lançado em 1991, teve como destaque as músicas É o amor, composta por

Zezé, e Eu te amo, versão de uma música dos Beatles. A última foi tema da novela Perigosas

peruas, exibida pela Rede Globo no ano seguinte.

Figura 7 – Capa do primeiro disco de Zezé di Camargo & Luciano

Fonte: Internet.

Mais duplas surgiram no cenário da música sertaneja romântica e lançaram discos a

partir de 1990: Rick & Renner, Cleiton & Camargo, Ataíde & Alexandre e Bruno & Marrone.

Estes últimos, goianos, foram apresentados um ao outro pelo cantor Leonardo. Depois de um

longo período tocando em bares, o primeiro disco, Bruno & Marrone Vol. 1, foi lançado em

1994 e trouxe aquele que seria um dos grandes sucessos da dupla, a música intitulada Dormi na

praça, composta por Elias Muniz e Fátima Leão.

A música sertaneja romântica das décadas de 1980 e 1990 alcançou relevantes

indicadores de venda. José Roberto Zen (1995) observa que mesmo em meio à crise econômica,

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que fez com que a quantidade de discos vendidos caísse de cerca de setenta e seis milhões de

unidades em 1989 para cerca de trinta e dois milhões em 1992, esse gênero musical liderava o

mercado. A música dessas duas décadas era radicalmente diferente da música gravada pela

turma caipira de Cornélio Pires, já que se afastava consideravelmente das músicas que faziam

parte dos rituais de trabalho e das celebrações religiosas tradicionais nas cidades do interior

paulista. Não se trata de uma diferenciação que envolve apenas as condições de circulação e de

consumo de ambas as vertentes, mas que igualmente aponta para condições de produção

bastante distintas. A “nova” música sertaneja passou a ser um produto em que sanfonas e violas

eram acompanhadas, por exemplo, por contrabaixos, guitarras e teclados. A mídia,

consequentemente, deu ampla repercussão a esse fenômeno. Muitos artistas assumiram a

condição de pop-sertanejos, com alterações na sonoridade e na performance que se

consolidaram com a adoção de um novo comportamento no palco, figurinos mais modernos e

mudanças ligadas à instrumentação musical.

A análise por década indica apenas algumas das influências que a música sertaneja

sofreu desde 1929. A próxima parte deste capítulo trata de como essas transformações foram

sendo percebidas e teorizadas.

4.3 CAIPIRAS VERSUS SERTANEJOS

Inezita Barroso levou adiante sua vontade de contribuir com a preservação da cultura

popular, especialmente da música caipira. Em depoimento a Pereira (2013, p. 147), ela falou

sobre a importância de preservar vivos a cultura popular e o folclore, a despeito do pouco

interesse da mídia nisso e da emergência de uma nova música sertaneja:

Fico feliz em saber que a nossa cultura básica não morreu, está aí viva no folclore, nas canções que herdamos, pulsando dentro das pessoas. Isso não interessa à mídia, mas ficamos muito bem sem ela. Deixa a mídia para os novinhos, com essas porcarias que eles chamam de sertanejo, justificando que o negócio é ganhar dinheiro. Eu sou de outra opinião (PEREIRA, 2013, p. 147).

Era evidente a existência de uma querela que opunha representantes da música caipira

e da música sertaneja. Em um estudo sobre a música sertaneja no contexto da ditadura militar

e do neoliberalismo, Alonso (2015) descreve um movimento intenso de preservação de uma

música rural autêntica, chamada de caipira, que se contrapõe à lógica excessivamente mercantil

da música sertaneja.

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Alonso lembra que a música sertaneja é um gênero que durante muito tempo foi

vilipendiado pela classe artística e pelos críticos brasileiros. Parte da crítica, que pode ser

considerada responsável pela construção de um padrão estético nacional constituído pelo samba

e pela MPB como símbolos do Brasil, teria torcido o nariz para os sertanejos. Mas o povo, ao

contrário, a despeito do que era valorizado pelos intelectuais, foi dando indícios de sua

preferência pela música sertaneja.

Há, na perspectiva desse autor, uma linha saudosista de análise da música sertaneja,

composta por muitos autores que, de certa maneira, acusam esse gênero musical de ter traído a

música caipira, submetendo-se à indústria cultural e aos valores urbanos. De qualquer forma,

Alonso lembra que até o final da década de 1930, toda a música do interior era classificada

indistintamente como música sertaneja, mesmo que a designação não fosse plenamente aceita.

“Falar de música rural, música do interior, sertaneja ou caipira era tudo a mesma coisa”

(ALONSO, 2015, p. 26). A distinção vai se estabelecendo aos poucos, para alívio dos guardiões

da tradição rural.

Nos termos de Alonso (2015, p. 32):

Até os anos de 1950, os termos caipira e sertanejo ainda eram intercambiáveis, sem prejuízo para qualquer dos lados. De meados dos anos 1950 em diante, com o aumento das influências externas na cultura brasileira e o fortalecimento do discurso nacional-popular, surgiu paulatinamente a distinção entre música caipira e música sertaneja.

Um dos alvos do movimento de valorização da música caipira tradicional – que tinha

Inezita Barroso como bastião – era exatamente a mistura com gêneros estrangeiros. Os

constantes deslocamentos dos artistas, como já apontado neste capítulo, e também o rádio

abriram a porteira para a entrada de gêneros musicais de outros países, o que acarretou na

“contaminação” da música nacional pelo estrangeiro. Esse foi um dos motivos, segundo aponta

Alonso, do desprezo de artistas ligados à MPB pela música sertaneja, em benefício da música

caipira (a distinção já estava estabelecida). Os caipiras eram uma representação autêntica do

campo, enquanto a música sertaneja aceitava e incorporava elementos da música paraguaia,

mexicana e estadunidense.

Nepomuceno (1999) também trata das diferenças entre a música caipira tradicional e a

música sertaneja, adjetivada como moderna. Essa última teria sofrido, diz, a influência de

ritmos nordestinos, guarânias e polcas paraguaias, corridos mexicanos, rock e country

americano.

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Ser caipira ou um moderno sertanejo é uma questão de destino, gosto, herança cultural, expectativas, escolha – cada músico tem a sua definição. Não é simplesmente nascer na roça, cantar em terças, tocar viola. [...] O artista do interior pode escolher entre manter a tradição, cantando para plateias menores, ou trocar a viola por uma banda inteira e botar milhares de pessoas de braços para o ar, no ritmo de rodeios e rocks da salada pop-sertaneja (NEPOMUCENO, 1999, p. 23).

No que diz respeito à tentativa de registro da música caipira em disco, Vilela (2011)

observa que dois aspectos merecem destaque: primeiro, que essas músicas levaram para os

centros urbanos o cotidiano do camponês brasileiro, chamado de caipira; depois, contribuíram

para que o migrante, proveniente da zona rural, se fixasse na cidade sem perder totalmente os

valores culturais de sua origem. O autor, a esse respeito, assinala: “O que entendemos por

música caipira e posteriormente música sertaneja, quando começou a ser gravada, está

intimamente ligado ao fazer e ao viver do camponês do Centro-Sudeste do Brasil” (VILELA,

2011, p. 77).

Vilela ressalta que a trajetória da música caipira após o registro em disco pode ser

compreendida em três fases. A primeira fase diria respeito ao resultado de mudanças ocorridas

no formato da música em função do tamanho do disco de 78 rpm. A música deixa, então, de ter

uso exclusivamente ritual e passa a atender uma demanda de mercado. Além de fazer a música

caipira circular, o disco, ao lado do rádio, teria contribuído para a preservação dos valores

caipiras. Esse ponto de vista não é comum, uma vez que os meios de comunicação e a indústria

do disco foram vistos, durante a maior parte do tempo, como danosos à tradição.

Na segunda fase, jovens do interior que cresceram ao som da música caipira se mudam

para a cidade e reaproximam o gênero das suas matrizes. O autor evidencia que as vozes de

duplas, acompanhadas por viola e violão, marcam o que seria o período de ouro da música

sertaneja. A temática dessa fase deixa de ter foco nas atividades agrícolas e se volta para

atividades pastoris. É na segunda fase, contudo, que se observa a aproximação da música aos

ritmos caribenhos, à guarânia e ao rasqueado paraguaio e às rancheiras e corridos mexicanos.

Observa-se ainda a aproximação do gênero com a música pop, que teria dado origem à

última fase. Vilela destaca a relação com a Jovem Guarda. A temática se voltou para questões

urbanas, os instrumentos musicais foram substituídos e o figurino sofreu a influência da cultura

rural dos Estados Unidos.

Sobre o que chama de terceira fase, Vilela conclui:

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Após o encontro dessa música com a Jovem Guarda – que atendeu mais aos anseios dos filhos dos migrantes já nascidos na cidade – e de um maior controle das gravadoras esta música foi se transfigurando a ponto de quase nada guardar de sua matriz. Não manteve a tipicidade dos instrumentos, nem o romance como principal base poética. Não se utilizou do imenso material rítmico presente na música sertaneja, tampouco o canto duetado; este agora só existindo em refrãos. Em relação ao canto, intensificou-se quase à caricatura o vibrato herdado dos mariachis (VILELA, 2011, p. 251).

Esses três autores, contudo, que de alguma forma concebem a existência da música

caipira num contexto atrelado ao da indústria do disco, contrapõem-se a uma outra perspectiva:

a de que a música caipira está atrelada a um contexto sociocultural bastante definido. Ao

considerar a fusão das culturas indígena, europeia e africana, Caldas (1987) enumera seis

características da música caipira, que reforçam tal perspectiva: (1) a música caipira possui a

função de facilitar as relações sociais entre a comunidade e possibilita maior sociabilidade entre

os caipiras; (2) quase nunca se sabe quem fez a letra e a música; (3) a canção é criada

coletivamente, e a própria festividade é utilizada como tema; (4) há sempre acompanhamento

vocal, já que a presença das cantorias coletivas é inerente aos rituais religiosos e às músicas de

trabalho e lazer; (5) o tempo de duração da música caipira é, geralmente, muito longo, o que a

tornaria, a rigor, desinteressante para a indústria fonográfica; e (6) os componentes formais da

música caipira, isto é, instrumentos musicais, tessitura musical e andamento fazem com que

esta seja mais rítmica do que melódica, mesmo com a forte influência da cultura musical

africana que se evidencia na forma nasalada de cantar.

Em contrapartida, as características da música sertaneja seriam: (1) é produzida no meio

urbano pela indústria do disco e tem como objetivo o lucro; (2) é mais melódica e menos rítmica

que a música caipira, uma vez que incorporou instrumentos musicais percussivos, e passou a

ter uma duração reduzida; (3) veio a ter a cidade de São Paulo como sede, lugar onde a

concorrência entre as duplas, os agenciadores e as gravadoras passou a ser vivenciada; (4)

desenvolveu um discurso essencialmente profano, tratando do amor na cidade, dos políticos, da

condução e do progresso na cidade grande; e (5) tornou-se uma força expressiva da indústria

do disco, ultrapassando a área de influência da cultura caipira. A música sertaneja gravada

mantém em comum com a música caipira apenas a área geográfica onde nasceu, o mesmo

público e a forma nasalada de cantar, completa o autor.

A forma nasalada de cantar é motivo de discussão. O autor observa que muitas duplas

se formaram em São Paulo, por cantores urbanos, não acostumados com a nasalação. Mesmo

assim, esses mantiveram essa característica como uma forma de criar uma identificação com a

raiz rural. Caldas conclui que se trata de uma estratégia de venda. Se o principal consumidor da

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música sertaneja era o homem do interior e do meio rural, a forma nasalada de cantar devia

permanecer.

[...] a sobrevivência do “som nasal” só foi possível porque as gravadoras usaram-no como a mais eficiente técnica de marketing para promover e vender a música sertaneja no meio urbano como “folclore”, e no meio rural e interior por sua “identidade” com a cultura caipira (CALDAS, 1987, p. 34).

Em relação à segunda característica, isto é, o fato de ter se tornado mais melódica,

Caldas (1987, p. 29) observa ainda que a música sertaneja substituiu alguns instrumentos

musicais por outros: “Saíram a caixa, o surdo, o tarol, o adufe e entraram a sanfona, o prato de

metal, a bateria, o violão e [...] a guitarra elétrica”. Além destes instrumentos citados, a música

sertaneja foi incorporando, ao longo dos anos, outros instrumentos musicais.

Em outra oportunidade, Caldas (1977) – sob influência teórica da teoria crítica – trata

da música sertaneja como um gênero musical dirigido ao que chama de camadas inferiores da

população, não com o objetivo de satisfazer o gosto popular, mas de explorá-lo. Compara dois

momentos distintos da música sertaneja, afirmando que em uma etapa anterior, que se refere

aos anos iniciais, os compositores estariam livres para escolher e explorar os temas das suas

canções. A música sertaneja dessa etapa era mais rural que urbana, com componentes formais

extraídos da música caipira. Já na etapa industrial, a lucratividade passou a ser a motivação

mais importante.

O tema predominante, que era antes o viver no campo, alterna-se (não é substituído) agora com os “casos de amor” vividos na cidade, numa nítida demonstração de que a música sertaneja já não pertence mais somente ao meio rural e ao interior; de que ela agora é urbana também (CALDAS, 1977, p. 5).

Caldas descreve a ocorrência de três movimentos dentro da música sertaneja a partir de

1958. O primeiro movimento teve, segundo o autor, a intenção de criar um ritmo essencialmente

brasileiro e assim, garantir a sustentação da tradição. Como já apontado, a guarânia havia se

tornado muito popular no Brasil e passou a ser incorporada no repertório de muitos cantores

sertanejos. Assim, mais do que tentar impedir o avanço da influência da música paraguaia,

Alcides Felismino de Souza e Mário Zan acabaram criando um gênero musical chamado de

tupiana. O novo gênero, porém, fracassou na conquista do público.

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O segundo movimento, encabeçado pelo maestro Rogério Duprat55, não tinha o objetivo

de provocar mudanças estruturais na música sertaneja, mas buscava criar um estilo musical que

se identificaria com os públicos da música popular e da música sertaneja ao mesmo tempo.

Tratavam-se, aponta o autor, de realidades estético-musicais bem distintas, tanto pelos

componentes formais quanto pela realidade social que lhes era inerente. Nem a classe média

nem o proletariado recebeu a mistura com bons olhos, afirma Caldas. Não apenas por causa do

baixo poder aquisitivo, mas também em função de essa ter sido a primeira experiência de fusão

da música sertaneja com outra musicalidade.

Por meio da dupla Leo Canhoto & Robertinho, a sofisticada tecnologia do som

eletrônico se entranhou na música sertaneja. Esse é o terceiro movimento, que teve início em

1970. Objetivava, como o movimento anterior, ser uma música para reunir o gosto da classe

média ao do proletariado, embora não tenha inovado no que diz respeito à estrutura melódica

ou em relação à linguagem. O diferencial está na introdução de um ritmo semelhante ao da

Jovem Guarda, aproximação estética que afetaria também os temas tratados por meio das

canções. Entre as peculiaridades do movimento está o fato de que surge num período em que a

educação e formação dos jovens estão sendo fortemente influenciadas pelos meios de

comunicação de massa.

A música sertaneja analisada por Caldas é dirigida, como já citado, ao proletariado. Isso

porque o compositor sertanejo, ele mesmo, pertence à classe operária. Tem pouco

conhecimento sobre formas literárias e métrica. As letras das músicas seriam mal escritas e

abordariam temas pouco elaborados, como a solidão e o amor não correspondido.

Em resumo, as diferenças propostas pelo autor entre a música caipira e a música

sertaneja são as seguintes: a música caipira seria uma manifestação espontânea do povo rural,

ligada à produção, ao trabalho, à religião e ao lazer. Seu texto está carregado de uma mensagem

que permite a identidade com toda a comunidade e atende aos anseios desta. “O poeta apenas

transforma em versos a realidade do cotidiano dessa coletividade” (CALDAS, 1977, p. 81). A

situação da música sertaneja produzida no âmbito das gravadoras seria bem diferente. As

duplas, diz o autor, limitam-se a dedilhar sua viola, ou os violões com afinação que se assemelha

à viola. A temática que se verificaria na canção sertaneja, porém, é essencialmente profana.

Esses aspectos foram abordados na apresentação das características da música sertaneja, feita

acima.

55 Nascido em 1932, no Rio de Janeiro, o maestro é um dos nomes mais expressivos da MPB, tendo feito parcerias com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Chico Buarque. Foi um dos fundadores da Orquestra de Câmara de São Paulo. Morreu em 2006, em São Paulo.

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O autor observa ainda que as diferenças entre a música caipira e a música sertaneja não

dizem respeito apenas ao conteúdo, ou seja, ao texto. Há uma mudança também no que diz

respeito à forma, ou melhor, no que tange à duração, por conta de constrangimentos impostos

pelo suporte e pela dinâmica de circulação e consumo. Diz Caldas (1977, p. 83,84):

Dentre as transformações ocorridas nessa música, uma parte delas merece destaque para percebermos o caráter comercializante dado pela indústria do disco: qualquer música caipira ultrapassa o tempo de cinco minutos, o que, em termos mercadológicos, desvanece sua rentabilidade. [...] Por sua vez, qualquer música sertaneja dificilmente atinge o tempo de cinco minutos. Faz parte da “boa receita para o sucesso”, que a canção seja composta de letra e música fáceis, e de curta duração.

Outro autor que discutiu as diferenças entre a música caipira e a música sertaneja foi

Martins (1975), ao ponderar sobre o que chama de contradições da sociedade agrária no Brasil.

O autor observa, em sua análise, que a música caipira e a música sertaneja não são equivalentes,

uma vez que as condições sociais de produção e emprego da música são diferentes em cada

uma das modalidades.

“O discernimento das condições sociais de produção e emprego da música é o ponto

central para desvendar-se o seu sentido” (MARTINS, 1975, p. 103). É com base nesta premissa

que o autor sustenta a sua argumentação. Ele não nega que haja elementos comuns entre ambas,

como o fato de que tenham se disseminado na mesma área geográfica ou a manutenção de

componentes formais, mesmo que estes apenas tenham sido transplantados da música caipira

para a sertaneja. Mas as diferenças, sugere Martins, são significativas e ignorá-las refletiriam

não apenas o desconhecimento sobre cada um dos tipos de música, como também das realidades

sociais nas quais estão inscritas e as condições concretas em que se manifestam.

A música caipira, ao contrário da música sertaneja, nunca apareceria só, enquanto

música. Além de ter sempre acompanhamento vocal, fazia parte de algum ritual religioso, de

trabalho ou de lazer. A música caipira, portanto, está incorporada, como visto na primeira parte

deste capítulo, ao ciclo cotidiano do caipira ou à sua rotina ritualizada. Nas palavras de Martins

(1975, p. 108): “Esse ciclo do cotidiano está marcado por dois elementos de referência: de um

lado, o ciclo da natureza, com a sucessão das estações do ano, e de outro, o ciclo das

comemorações litúrgicas do catolicismo”. O ponto de distinção, assim, está relacionado ao uso

da música caipira. Ou seja, para o autor, essa música se caracteriza pelo seu valor de utilidade,

um meio necessário para a efetivação de relações sociais essenciais ao referido ciclo.

A música sertaneja, de outro modo, não é elaborada a partir do mesmo referencial que

a música caipira, o que quer dizer que não seria fruto da relação direta e integral entre pessoas

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que compõem o universo caipira. A música sertaneja é destinada ao consumo e não medeia as

relações sociais na sua qualidade de música, mas na qualidade de mercadoria. As relações

sociais nas quais a música sertaneja estaria inscrita, segundo o autor, não são relações

caracteristicamente derivadas da mediação da música; esta é que é um dos produtos da relação

social mercantilizada.

Ferrete (1985) é um autor que advoga, por sua vez, que a música verdadeiramente

sertaneja é a música nordestina, não a música do interior paulista. Para ele, mesmo a música

produzida no âmbito das gravadoras deve ser chamada de música caipira, embora não

desconsidere as adequações e transformações pelas quais ela passou para que pudesse ser

registrada em disco. Entretanto, esse autor não deixa de considerar que, num determinado

ponto, na década de 1940, essa música passou a ser chamada de música sertaneja, distinta da

música caipira ou rural.

Colocadas as diferenças entre a música caipira e a música sertaneja, dois aspectos

relacionados a esta última, que de alguma forma já foram discutidos, merecem destaque:

primeiro, o fato de que a música sertaneja é resultado, mais do que do simples avanço da

indústria do disco sobre a cultura rural, do êxodo de violeiros e cantadores de cidades do interior

para a capital paulista; depois, que o disco, o rádio e o circo são os três elementos responsáveis

pela ampla circulação desse gênero musical pelo país. Novamente, para esta discussão, recorre-

se às análises propostas por Nepomuceno (1999), Martins (1975) e Ferrete (1985).

Muitas vezes fugindo da pobreza, do desemprego ou mesmo em busca da realização de

um sonho, os novos artistas passaram a compor o elenco das gravadoras de discos, que

encontraram na musicalidade rural a matéria-prima para um produto altamente vendável. Esse

é o contexto que trouxe para São Paulo, nos anos 1920, João Pacífico, que viria a se tornar, nas

palavras da autora, “[...] o compositor-referência da música que traduziu o Brasil rural,

bucólico, romântico, rude, mítico, de onde viera e que tão bem conhecera” (NEPOMUCENO,

1999, p. 18).

Não são apenas artistas os que migram do interior para os grandes centros urbanos.

Reitera-se que é o êxodo de trabalhadores rurais para as grandes cidades, no intuito de se

tornarem operários, que justifica, de certa maneira, o sucesso que a música sertaneja acaba por

alcançar. Em outras palavras: o êxodo rural é a chave para a compreensão do sucesso desse

momento inicial do novo gênero musical não só porque forma uma classe artística, mas porque

estabelece, no campo e também na cidade, uma classe consumidora dessa música.

Como apontado anteriormente, os primeiros discos de música com inspiração caipira

gravados datam de 1929. Menos de dez anos depois, esse tipo de música já ocupava espaço

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significativo no âmbito das gravadoras sediadas no país, a Odeon e a RCA Victor. Dominava,

entre os estilos, a moda de viola, por sua musicalidade que era imediatamente associada à zona

rural. Muitos autores urbanos, inclusive, passaram a investir numa carreira ligada à música

sertaneja devido ao sucesso que esta começava a fazer. O movimento foi profundamente

beneficiado pelo crescimento da população urbana proveniente do interior, gente que trazia

consigo a formação cultural do seu próprio habitat, conforme explica Ferrete. Há implicações

importantes nesse fluxo. Conforme explica o autor,

[...] um novo campo artístico foi aberto na capital em função dessa corrente migratória interiorana, proporcionando aos cultores do caipirismo contato mais próximo com seu público. Já não era mais necessário fazer como Cornélio Pires, que tinha de se deslocar para o interior em busca de consumidores ou de consumidos (FERRETE, 1985, p. 60).

Martins (1975) observa, por outro lado, que além de ser produzida no ambiente urbano

e de ter sofrido adaptações em função do formato, a música sertaneja tem um público

consumidor muito mais amplo que a música rural. Isso se dá em função, em primeiro lugar, do

êxodo da zona rural para a capital, mas também por causa da circulação promovida pelo disco,

pelo rádio e pelo circo. Sabe-se que, na cadeia produtiva da música gravada, as etapas estão

relacionadas. Nesse sentido, a circulação e o consumo da música sertaneja podem ser pensados,

de certa maneira, a partir dos mesmos elementos.

O público que consome música sertaneja é classificado, de acordo com Martins, em três

tipos. Todos estão ligados à questão do fluxo que levou a parte da população que morava na

zona rural para os grandes centros urbanos. No primeiro grupo estariam aqueles que o autor

chama de originários recentes do meio rural, precariamente integrados ao mercado de consumo.

Por não possuírem rádio nem vitrola, estariam sujeitos a audições ocasionais na casa dos

parentes, amigos ou vizinhos. O segundo grupo é composto pelos migrados há mais tempo, que

possuem rádio e, a partir de determinado momento, televisão, mas não são consumidores

propriamente ditos. Apenas o terceiro grupo é chamado de característico consumidor de música

sertaneja, uma vez que é formado a partir daqueles que, de fato, compram os discos.

Daí que o autor elenca três elementos que, combinados, respondem pelo atendimento

do público de música sertaneja: o disco, o rádio e o circo. Nas cidades do interior e nas capitais,

o circo tem necessidade de atrair público. O prestígio já alcançado por alguns artistas que fazem

shows nos circos atrai público e, de quebra, garante bons cachês e viabiliza contato pessoal.

Sobre este último ponto, Martins (1975, p. 120) diz que: “[...] o interesse dos cantores pelo

público do circo é uma forma de manter a fidelidade de uma parcela da população apreciadora

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de música sertaneja, mas excluída da condição de consumidora, isto é, população que ouve

rádio mas não compra discos”.

Outro elemento é o rádio. Uma das características desse meio de comunicação, na

perspectiva de Barbosa Filho (2003), é o fato de que este tem a vantagem de poder falar a

milhões de pessoas sem complicações de ordem tecnológica. Ou seja, o rádio se dirige tanto

àqueles que já estão na cidade quanto aos que ainda vivem no meio rural. E considerando que

esta era uma faixa da população em que se encontrava uma grande concentração de analfabetos,

o rádio viabilizava alcance eficaz das mensagens comerciais. Por meio do rádio, Martins (1975)

assinala que os cantores podiam se dirigir tanto aos compradores de disco quanto aos

frequentadores de circo.

O último elemento apresentado pelo autor é o disco. Jambeiro (1975) observou a

importância do disco no processo de comunicação entre o compositor e o público, uma vez que

apenas as músicas gravadas se tornariam conhecidas e passariam a ser divulgadas pelo rádio,

por exemplo. Nesse sentido, o autor diz: “[...] qualquer canção para ser hoje divulgada e, desta

maneira, atingir o público, precisa ser materializada em disco, isto é, intermediada por um dos

elementos do processo, talvez o mais importante deles: a gravadora” (JAMBEIRO, 1975, p.

151).

Desse modo, no que Martins (1975) chama de círculo de divulgação comercial da

música sertaneja, o disco desempenha um papel essencial. Isso justificaria o empenho dos novos

artistas em conseguir gravar um disco, levando alguns a custeá-lo com seu próprio dinheiro. É

o disco que efetivaria a profissionalização dos cantadores, sugere, mas com a seguinte ressalva:

gravar um disco não é tudo; é importante que este se torne conhecido, sendo divulgado por meio

do rádio. Contudo, as gravações da música sertaneja seguiram dois tipos de interferência, uma

no que diz respeito ao padrão que as gravadoras estavam interessadas em cada momento e a

ajustes técnicos referentes à duração do disco.

Como visto até aqui, os meios de comunicação, em especial o cinema, o rádio e a

televisão, desempenharam um papel decisivo na circulação da música sertaneja pelo país. A

indústria do disco se modernizou, e também voltou seu interesse para a lucratividade que esse

gênero musical podia proporcionar. E os circos foram deixando de contar com as apresentações

ao vivo de artistas ligados a esse tipo de música, que passaram a buscar o público das festas

agropecuárias. Os artistas sertanejos souberam se beneficiar de todo o aparato proporcionado

pela mídia e pelas gravadoras. Mas a internet, que no Brasil começou a se popularizar no início

dos anos 2000, criou ainda outras possibilidades: que os artistas pudessem fazer suas músicas

circular; que pudessem estabelecer contato direto com seu público, independentemente de onde

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109

ele estivesse. De certa forma, estava criada a conjuntura que viabilizou o surgimento do que

viria a ser chamado de sertanejo universitário.

4.4 A VEZ DO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO

Na seção acima, discutiu-se que a música sertaneja é um gênero em que toda a cadeia

produtiva, isto é, produção, circulação e consumo, é profundamente implicada pelo

deslocamento de artistas e potenciais consumidores do campo para a cidade. São Paulo passou

a ser o destino inicial, como apontam os relatos, de qualquer um que tivesse o sonho de se tornar

artista. Esse cenário, entretanto, começou a mudar a partir dos anos 2000, como se verá. Outras

cidades, como Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e Goiânia, em Goiás, passaram a reunir

as condições técnicas necessárias para que o registro e circulação da música sertaneja se dessem

localmente e se transformaram, de certo modo, no novo destino para os aspirantes a ídolos do

seguimento sertanejo.

A partir da década de 2000, a música sertaneja entra numa nova fase de transformações

e algumas duplas e artistas solo começam a compor o quadro do que veio a ser chamado de

sertanejo universitário. O sertanejo romântico continuou a lançar discos, mas começou a

disputar espaço nas prateleiras das lojas, na programação do rádio e, mais recentemente, na

internet, com um produto voltado para uma parcela bem mais jovem da população que, como

se verá, quase não mantém vínculo com as raízes da música rural. Trata-se de um público que

frequenta os festivais e as baladas sertanejas realizadas por todo o país ao som de músicas que

tratam do consumo de bebidas alcóolicas, carros importados e sexo casual.

A letra de uma das músicas que marcam esta fase, intitulada Mulherada na lancha, faz

referência a várias marcas de bebida ao falar sobre o consumo de álcool por mulheres nas

baladas, um dos muitos sinônimos empregados para festa: “Pega o Black, traz o Jhonnie, abre

o Blue Label e tome”. É interpretada pelo paraense Israel Novaes, e foi gravada por ele no seu

primeiro DVD, de 2013 – gravado em Goiânia. Na oportunidade, Israel usava uma camisa

xadrez e uma calça preta de couro. Um aspecto merece destaque: a presença de um trio de

metais (trombone, sax e trompete), de uma sanfona e de uma percussão, o que aponta para

mudanças significativas que, neste caso, correspondem à incorporação de uma sonoridade típica

do forró moderno na música sertaneja atual.

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Figura 8 – Israel Novaes canta Mulherada na lancha

Fonte: Canal de Israel Novaes no YouTube.

A natureza, as características e os principais representantes do chamado sertanejo

universitário serão apresentados aqui, com base em um dos únicos relatos publicados em livro

sobre essa vertente da música sertaneja. De acordo com Alonso (2015), o sertanejo universitário

nasceu, provavelmente, em 2005, com o disco Palavras de amor, da dupla César Menotti &

Fabiano. Entretanto, esse autor reconhece a importância de um disco lançado dois anos antes,

pela dupla João Bosco & Vinícius, intitulado Acústico no bar, embora faça a ressalva de que a

qualidade de gravação é baixa.

Esta tese toma esse disco de 2003, mesmo admitindo que a argumentação de Alonso é

apropriada, como o marco do início do sertanejo universitário. Por três razões: João Bosco &

Vinícius eram, em 2003, estudantes universitários; o CD evidencia uma relativa independência

da estrutura que uma gravadora disponibilizaria no que diz respeito à gravação; e constitui um

registro mais ou menos fiel do que os frequentadores dos bares de Campo Grande, – também

universitários –, ouviam durante as apresentações da dupla.

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111

Figura 9 – Disco que marca o início do sertanejo universitário

Fonte: Internet.

De qualquer forma, trata-se de um desdobramento da música sertaneja, que, assim como

esta, tem sido alvo de muitas críticas por parte dos defensores de uma música genuína e de uma

cultura autêntica. Essas críticas, entretanto, como observa Alonso, muitas vezes partiam de

pessoas que, em outro momento, também foram consideradas “mercadológicas”.

Boa parte dos artistas que compõe essa vertente da música sertaneja contemporânea

iniciou a carreira no contexto universitário. Alonso (2015, 377) pontua:

Jorge estudava Direito e Mateus, Agronomia. Maria Cecília e Rodolfo se conheceram nos bancos acadêmicos da faculdade de Zootecnia. O Sorocaba, da dupla Fernando & Sorocaba, estudou Agronomia. João Carreiro e Capataz são formados em Administração e Direito, respetivamente. Mariano estudava Zootecnia e Munhoz, Administração Rural. De forma que os cantores rurais, parcialmente, mudaram de estirpe. Agora são de fato, em sua maioria, universitários.

Uma das principais características do sertanejo universitário, sugere o autor, é a

preferência dos artistas pela gravação de discos no formato ao vivo ou acústico, incluindo a

regravação de “clássicos” da música sertaneja. Cantar ao vivo seria, para quem começou a

difundir sua música através da internet, essencial. Mantém o contato direto com o público,

aspecto que remete ao início de carreira.

Alonso (2015, p. 395) enumera três linhas estéticas e temáticas que definiriam o

sertanejo universitário: 1) uma poética amorosa otimista, “na qual os amantes querem efetivar

seus sentimentos amorosos, e o tom da canção é esperançoso”; 2) uma poética da farra, em que

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“as canções favorecem encontros fortuitos e breves em festas ou no dia a dia; e 3) uma poética

da indiferença, em que “não se sofre mais por amor e parte-se para outros relacionamentos

aparentemente sem culpa”.

Essas linhas estéticas e temáticas constituem uma diferença fundamental em relação à

música sertaneja das décadas de anteriores. O autor afirma que:

Somadas as três propostas, percebe-se que, ao menos tematicamente, houve uma mudança de 180 graus no sertanejo universitário. Se os sucessos de Milionário & José Rico, Zezé di Camargo & Luciano, Chitãozinho & Xororó e Leandro & Leonardo eram basicamente canções “de corno”, que cantavam a distância da pessoa amada e a impossibilidade da realização amorosa, o atual sertanejo universitário subverteu essa lógica. Hoje se busca a concretização do amor; há um hedonismo individualista que faz com que o sujeito não sofra se a relação amorosa não se concretizar.

As mudanças, entretanto, não dizem respeito apenas à temática das músicas. Há

transformações significativas no aspecto visual, em comparação ao modo como as duplas

sertanejas eram representadas no passado, por exemplo, nas capas de discos. Esses elementos

gráficos são adequados, se pensados como parte de uma proposta mais ampla de representação

da vertente contemporânea da música sertaneja como jovem, urbana e conectada.

Figura 10 – Disco da dupla Jorge & Mateus lançado em 2015

Fonte: Internet.

A sonoridade do sertanejo universitário também é diferente, em relação a momentos

anteriores do gênero musical. Pelos instrumentos musicais, o som se tornou mais acústico,

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afirma Alonso. Os vocais teriam ficado mais graves, em decorrência da diminuição gradual do

vibrato. E as fronteiras entre os gêneros musicais são esmaecidas. O sucesso dessa vertente

poderia ser explicado, nesse sentido, pela aproximação do gênero com ritmos populares, como

os que procedem do funk, do forró, do axé, do pagode e do arrocha.

A mídia dá uma atenção significativa ao sertanejo universitário, principalmente em

função de um interesse da Som Livre, gravadora que pertence ao Grupo Globo, pelo gênero

musical. No que diz respeito à produção fonográfica brasileira, a Som Livre, fundada em 1969,

é responsável, em primeiro lugar, pela produção e distribuição de discos das trilhas sonoras das

novelas produzidas pela TV Globo. Nos últimos anos, entretanto, a gravadora passou a agregar

ao seu catálogo de artistas, cantores de gêneros musicais como a música religiosa e a música

sertaneja. Em uma consulta realizada em julho de 2015 no site da gravadora, verificou-se que

mais de trinta porcento do atual cast é composto por artistas ligados ao segmento sertanejo56.

Em julho de 2015, o programa Profissão Repórter, da TV Globo, abordou a questão dos

custos para a fabricação de um novo artista sertanejo. O programa começa reforçando que a

trajetória dos artistas sertanejos é mais ou menos parecida: alguns anos trabalhando na noite,

em bares, tentando conseguir a atenção dos consumidores. Um dos artistas entrevistados, o

cantor sertanejo Jeferson Moraes, afirmou que Goiânia é a capital do sertanejo. Esse

depoimento reforça a ideia de que o eixo Rio-São Paulo, pelo menos no que diz respeito à

produção de música sertaneja, não é mais hegemônico.

Informações não oficiais, apresentadas por um dos repórteres do programa, dão conta

de que o lançamento de um novo cantor sertanejo, incluindo sessões de gravação, cuidados com

a aparência e divulgação, pode chegar a três milhões de reais. O repórter alerta, entretanto, que,

diante das câmeras, ninguém fala abertamente sobre valores.

O capítulo a seguir é fruto de uma tentativa de compreender um dos muitos

deslocamentos da música sertaneja pelo território brasileiro. Trata do cenário da música

sertaneja em São Luís, formado por artistas que tentam ganhar a vida nos bares e casas de show

da capital maranhense. Discute-se a constituição da identidade desses artistas, alguns dos modos

como eles são representados pela mídia local e também o consumo que eles fazem da música

sertaneja num contexto mais amplo. Interessa compreender o lugar da mídia na formação da

identidade desses artistas e o modo como eles se colocam em relação às marcas de gênero da

música sertaneja. É um capítulo empírico, que inclui a apresentação da metodologia utilizada

na coleta dos dados expostos.

56 Uma lista dos artistas que compõem o cast da Som Livre pode ser acessada no site oficial da gravadora, no seguinte endereço: http://www.somlivre.com.

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5 O CIRCUITO DA CULTURA DA MÚSICA SERTANEJA EM SÃO LUÍS

A edição da revista Época publicada no dia 2 de janeiro de 2012 trouxe, como matéria

de capa, uma narrativa a respeito do sucesso do cantor sertanejo Michel Teló. Os repórteres

envolvidos na apuração e construção do relato atribuíram três sentidos ao êxito da música Ai,

se eu te pego..., lançada em 2011: por um lado, representava a consagração do cantor em todo

o território nacional; também remetia à internacionalização da música sertaneja; e por fim,

traduzia os valores da cultura popular para todos os brasileiros, independentemente da classe

social.

Figura 11 – Michel Teló na capa da revista Época

Fonte: Internet

Alguns meses após a publicação da revista, Michel Teló declarou à jornalista Marília

Gabriela, apresentadora do programa De frente com Gabi, que a música Ai, se eu te pego...

tinha alcançado o primeiro lugar das paradas de sucesso em 40 países57. Foram mencionadas

por ele a quantidade de execuções em programas de rádio e a quantidade de vendas por meio

57 O programa De frente com Gabi é exibido semanalmente pelo SBT. A entrevista foi ao ar no dia 24 de junho de 2012, e está disponível, em quatro partes, no canal do SBT no YouTube, no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=c0_Ie3qtcrQ. Acesso em: 14 out. 2015.

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da internet58. Ao longo do programa, a entrevistadora se referia reiteradamente ao cantor

sertanejo como um fenômeno; Teló, por sua vez, insistia em sublinhar o árduo caminho até o

sucesso. Enquanto falavam indiretamente sobre o pagamento recebido por cada apresentação,

o entrevistado lembrou que no início da carreira solo, em 2009, ele e a equipe chegaram a dar

ingressos para que as pessoas fossem aos shows.

Antes de se transformar em um artista sertanejo mundialmente reconhecido, Michel

Teló fez parte, durante quatorze anos, de dois grupos musicais: Santo Chão e Tradição. Nascido

em Medianeira, no interior do Paraná, o cantor cresceu em Campo Grande, capital do Mato

Grosso do Sul. Nessa cidade, foi musicalmente influenciado pela música sertaneja da região e

pela música tradicional gaúcha, levada pelo pai. Segundo dados da matéria da Época, Teló canta

profissionalmente desde os cinco anos de idade. Em 1994, com treze anos, gravou o primeiro

disco. Na época, fazia parte de um grupo de música regional chamado Bailanta onde, além de

cantar, tocava acordeão.

Michel Teló foi representado pela Época como sendo o artista mais popular do sertanejo

universitário. Essa vertente da música sertaneja, conforme apontado no texto dos repórteres,

teria sido a responsável por alterar, a partir da década de 2000, a imagem caipira que os

sertanejos tinham nos grandes centros urbanos: de mensageiros da breguice e do mau gosto. “O

sertanejo universitário rompeu as barreiras sociais, popularizou o estilo nas classes A e B e

chegou aos bairros chiques das grandes cidades do país”, dizia a matéria. A revista fez menção

a boates e casas de shows que se espalharam por cidades como São Paulo, aproveitando a

aparente simpatia dos mais ricos pela versão repaginada da música sertaneja. Esse é um aspecto

que faz referência direta ao deslocamento geográfico do gênero pelo país.

O sertanejo universitário, de acordo com a Época, é um tipo de música cuja sonoridade

é uma mistura de elementos da música pop, do rock, do reggae e até da música eletrônica. Com

a proposta de Michel Teló, a música sertaneja teria se transformado numa música de festa, apta

para atender à demanda por entretenimento da juventude urbana. No que diz respeito ao

consumo de música sertaneja, essa é uma mudança fundamental. Conforme indicado no

capítulo anterior, a música rural era produzida no contexto dos ritos religiosos, de trabalho e de

lazer e tinha circulação restrita ao meio rural. A música sertaneja, ao contrário, era produzida

pela indústria fonográfica e passou a circular, por causa do rádio, do disco e do circo – e mais

tarde por causa da televisão –, dentro das grandes cidades. No ambiente urbano, a música

58 Em outubro de 2015, o vídeo oficial de Ai, se eu te pego... tinha ultrapassado a marca de seiscentos e cinquenta milhões de visualizações no YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hcm55lU9knw. Acesso em: 14 out. 2015.

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sertaneja continua ligada ao lazer e ao trabalho, mas não mais como parte de um ritual e sim

como um negócio altamente lucrativo.

O capítulo anterior indicou que a crise cafeeira foi um dos fatores que acentuou a

migração da população rural para os centros urbanos. A matéria da Época indica que em 1930,

um ano após a gravação dos primeiros discos de música sertaneja custeada por Cornélio Pires,

a relação entre a população urbana e a música rural no país era a seguinte:

Gráfico 1 – População urbana versus população rural brasileira em 1930

Fonte: o autor, com base nas informações da revista Época.

Na década de 1970, na qual se consagrou a dupla sertaneja Milionário & José Rico, a

população rural havia sido superada pela população urbana. Nos anos 1990, década do auge da

música sertaneja romântica protagonizada por duplas como Zezé di Camargo & Luciano,

apenas um quarto da população brasileira ainda era rural.

Gráfico 2 – População urbana versus população rural brasileira em 1990

Fonte: o autor, com base nas informações da revista Época.

69%

31%

População rural População urbana

25%

75%

População rural População urbana

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117

Em 2012, ano da publicação da referida matéria e também do início da realização desta

pesquisa, a população rural havia diminuído consideravelmente em comparação com a

população urbana. O gráfico a seguir demonstra isso:

Gráfico 3 – População urbana versus população rural brasileira em 2012

Fonte: o autor, com base nas informações da revista Época.

Na narrativa apresentada pelos repórteres da revista Época, o cantor sertanejo Michel

Teló é classificado – por conta da sua origem, história e instrumentos musicais que toca – como

um tipo de porta-voz dos valores da cultura popular junto às elites. O diretor de redação Helio

Gurovitz escreveu no editorial daquele número da revista:

Os saudosistas costumam dizer que, desde os tempos da Bossa Nova e da MPB dos anos 1970, a música brasileira adquiriu ares provincianos e popularescos, sem conseguir penetrar nos públicos mais exigentes e no mercado internacional. Pois o caso de Teló revela que nossa identidade tem valores básicos, capazes de conquistar o mundo e de desmentir os preconceitos que possamos ter a respeito de nós mesmos.

A matéria da Época e o programa De frente com Gabi são dois produtos midiáticos que

oferecem narrativas sobre o que é ser um artista sertanejo bem-sucedido. Focam basicamente

nos mesmos aspectos: as origens, a trajetória do anonimato ao sucesso, as influências musicais

dentro e fora do gênero, as consequências da fama, os números que atestam a popularidade e

os projetos desafiadores para o futuro. Ambos os produtos destacavam o sucesso que Ai, se eu

te pego... estava fazendo, na época, em todo o país. E mencionavam também a circulação

internacional da música sertaneja59.

59 Em 2012, aproveitando a porta aberta por Michel Teló, a dupla sertaneja Jorge & Mateus gravou um DVD no Royal Albert Hall, em Londres. O projeto foi dirigido por Hamish Hamilton, nome associado a produções de artistas como Madonna, U2 e The Rolling Stones.

16%

84%

População rural População urbana

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Os relatos mencionados acima se filiam, de certa maneira, a um estilo mais ou menos

padronizado de representação midiática do sucesso na música de modo geral, não apenas ao

que diz respeito à música sertaneja. Essa representação evoca aspectos ligados aos outros

momentos que constituem o circuito da cultura: primeiro, fazem exaustiva menção à

constituição da identidade do artista; em seguida, tratam de elementos relacionados ao âmbito

da produção, como a composição de uma determinada letra, a gravação do disco ou a preparação

de um videoclipe; também abordam a amplitude do consumo, muitas vezes tomando o

depoimento de fãs ou pessoas que apreciam música sertaneja como base; por último, discutem

indiretamente a questão da regulação, quando apontam para as transformações que o mercado

impõe sobre a criatividade ou para as disputas de ordem simbólica em torno da noção de

autenticidade e legitimidade para representar o país no exterior.

Ao circularem pelo país, esses e outros produtos midiáticos com proposta semelhante

servem como fonte de inspiração para artistas em início de carreira, que almejam assinar

contrato com uma gravadora, vender quantidades significativas de discos, participar de

programas de televisão e atingir a capacidade máxima de público em um show. As narrativas

de sucesso entusiasmam aqueles que pretendem fazer sucesso no negócio da música em todo o

país.

Os depoimentos de cantores, bandas (independentemente do gênero musical) e duplas

sertanejas geralmente descrevem um longo período em que os artistas se apresentaram em

bares, para um público restrito, como forma de se sustentar financeiramente. O exemplo do

cantor sertanejo Gusttavo Lima, nesse particular, é esclarecedor: antes de ser contratado pelo

escritório do empresário Marcos Araújo e se tornar nacionalmente conhecido, cantou em bares

durante dez anos. Mudou-se sozinho para a capital goiana no final de 2006, em busca de

realização profissional. Cantou durante dois anos em bares de Goiânia até que, em 2009, foi

descoberto. Em entrevista à Marília Gabriela, afirmou que chegou a cantar para conseguir pagar

o aluguel e ter o que comer60.

O início da trajetória profissional em bares, boates e casas de shows parece ser um

indicador de que fazer carreira no ramo do entretenimento ao vivo antecede a notoriedade na

indústria do disco. Pensando nisso, os artistas costumam encarar o tempo que passam tocando

e cantando na noite como uma etapa que os prepara para uma carreira de sucesso na música.

Alguns chegam inclusive a alcançar uma relativa popularidade no cenário onde se lançam. O

60 A entrevista foi ao ar no dia 9 de março de 2014, no programa De frente com Gabi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-RZGMCMVAoI. Acesso em: 15 out. 2015.

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capítulo anterior indicou que a vertente universitária da música sertaneja teve origem nas

apresentações das duplas em bares frequentados por estudantes. Esse também é o caso dos

artistas sertanejos de São Luís, dos quais este capítulo trata.

O ramo do entretenimento, na perspectiva de Alfredo Bertini (2008), é a atividade

econômica número um do mundo. A efervescência desse mercado, segundo o ponto de vista

desse autor, pode ser explicada em função, ao mesmo tempo, de uma oferta rica e plural e de

uma demanda que desempenha papel central no que diz respeito ao bem-estar do consumidor

no domínio do lazer. Áreas como cultura, turismo e esporte colocam, à disposição das pessoas,

um leque amplo de produtos, que acarretaria em um certo nível de competitividade não apenas

interna, nos vários setores, como também entre os setores. Diferenças econômicas e de classes

sociais, aponta Bertini, são fatores que implicam a diversidade de opções. O autor pontua a

respeito do mercado do entretenimento: “[...] é um fato econômico relevante, uma vez que dita

as regras do funcionamento da economia na atualidade” (BERTINI, 2008, p. 11).

Bares, boates e casas de shows, como já sugerido, são alguns espaços que compõem o

ramo do entretenimento ao vivo. Uma matéria exibida pelo JMTV 1ª edição, telejornal

veiculado pela TV Mirante61, no dia 27 de dezembro de 2014 trazia depoimentos de alguns

empresários do ramo do entretenimento de São Luís a respeito do crescimento do setor no

período de férias. O empresário Aluízio Moreira Lima confirmou à repórter Camila Aranha

que, no referido período, o volume do consumo aumenta consideravelmente62. Nenhum dado

concreto sobre a lucratividade do setor, entretanto, foi apresentado na matéria.

Na oportunidade, um dos entrevistados a dar seu depoimento foi o cantor sertanejo

Adriano Camargo, que observou que as férias nas faculdades seriam um dos fatores

responsáveis pelo aumento no fluxo de pessoas nos bares e casas de shows da capital

maranhense. E os frequentadores dos referidos espaços confirmaram a informação, citando as

várias opções de diversão que, segundo eles, a cidade oferece, desde a orla marítima até a região

da Lagoa da Jansen.

Mas as opções de entretenimento ao vivo, no que diz respeito ao consumo de música

sertaneja em São Luís, não se restringe à região da Lagoa da Jansen e da Avenida Litorânea.

Um levantamento realizado na etapa exploratória desta pesquisa indicava a existência de

espaços espalhados por toda a capital. O mapa dos bares, botecos, casas de shows e boates

61 A TV Mirante é uma emissora de televisão sediada em São Luís, afiliada da Rede Globo. 62 A matéria intitulada Empresários de São Luís comemoram faturamento no setor do entretenimento está disponível na internet, no endereço: http://g1.globo.com/ma/maranhao/jmtv-1edicao/videos/t/edicoes/v/empresarios-em-sao-luis-comemoram-faturamento-no-setor-do-entretenimento/ 3858123/. Acesso em: 05 out. 2015.

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estava assim esboçado: Chinelo de Dedo e Tô no Trabalho (no bairro Cohatrac); praça de

alimentação do Rio Anil Shopping, Fazenda Open Music, Botequim Fidelli, Saloon Brasil,

Etc&Tal, Papo de Boteco, Via Brasil e Chopp Cancun (no bairro Turu); Escondidinho Show

(no bairro Angelim); Varanda Show, Choppana, Ovo Frito e Matuttus (no bairro Cohama);

Daquele Jeito (no Vinhais); Boteco da Ilha (no bairro Parque Athenas); São & Salvo e Mariposa

(no bairro Calhau); Pink Elephant, Nyx Lounge e Espaço Noir (no bairro Ponta d’Areia); Zig

Show, Mandamentos Hall, Lagoa House, Buteko, Kitaro, Por Acaso, Filial, Salomé e Gallery

Lagoa (na região da Lagoa da Jansen, localizada entre os bairros Renascença II e Ponta

d’Areia); Adventure, Beach Bar e Oasis Beach (espalhados pela Avenida Litorânea, no bairro

Calhau); e Excadaria e Patrimônio Show (na região do Centro Histórico)63.

A figura abaixo permite uma melhor visualização de como o cenário da música sertaneja

em São Luís estava espalhado, em 2014, pela área urbana da cidade.

Figura 12 – Locais que compõem o cenário da música sertaneja em São Luís

Fonte: o autor.

63 Espaços como Etc&Tal, Fazenda Open Music e Zig Show fecharam as portas ainda em 2014. Outros espaços, como Saloon Brasil, Pink Elephant, Ovo Frito e São & Salvo, foram desativados em 2015. Uma nova casa voltada exclusivamente para a música sertaneja, chamada Garden’s Pub, foi inaugurada na cidade em 07 de maio de 2015.

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Muitos dos ambientes citados funcionavam durante toda a semana. Alguns mantinham

uma programação variada, abrindo espaço para artistas de outros gêneros musicais. Outros,

entretanto, mantinham uma programação composta apenas por apresentações de cantores

sertanejos. As festas realizadas nesses locais tinham nomes que sugeriam a mistura de gêneros

musicais que os bares e casas de shows normalmente ofereciam ao público: Sexta Prime, Sertão

Mix, Sertão Prime, Balada Top, Balada Sertaneja, Sertão do Meu Agrado, Balada D’luxo, Noite

Sertaneja, Quintaneja, Sexta Sem Lei, ForróNejo, dentre outros. A mistura mencionada diz

respeito a festas que uniam apresentações de cantores de música sertaneja e arrocha, bandas de

forró e swingueira, grupos de pagode e DJs que executavam gêneros como funk e música

eletrônica.

Essas festas, de certa maneira, atendiam à demanda por entretenimento de boa parte da

juventude que mora em São Luís. No contexto maranhense, aliás, a relação entre a população

urbana e a população rural é representada pelo gráfico a seguir, elaborado a partir de

informações do IBGE64:

Gráfico 4 – População urbana versus população rural maranhense em 2010

Fonte: o autor, com base nas informações do IBGE.

A capital, que em 2010 contava com mais de um milhão de habitantes (o equivalente a

cerca de 15% da população total do estado), encontra no ramo do entretenimento ao vivo uma

das formas de suprir a demanda por lazer dos jovens. Festas e shows ligados à música sertaneja

respondem por boa parte dessas opções e as novas mídias exercem um papel central na captação

de público para esse tipo de evento. Uma parcela significativa da divulgação das chamadas

64 Os dados aqui apresentados são relativos ao censo realizado em 2010, publicados pelo IBGE no endereço: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/total_populacao_maranhao.pdf. Acesso em: 21 out. 2015.

37%

63%

População rural População urbana

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baladas sertanejas de São Luís é realizada através da internet, por meio de sites de redes sociais

e aplicativos para smartphones, tais como Facebook, Instagram e WhatsApp. Essas ferramentas

têm sido utilizadas para o compartilhamento de flyers digitais e informações sobre as atrações,

valores de ingressos e, ocasionalmente, disponibilidade de listas vips. O telefone celular, nesse

sentido, coloca produtores de festas e divulgadores em contato constante com os consumidores,

sendo a mobilidade dos dispositivos uma das razões para o êxito das táticas de divulgação

adotadas em São Luís.

De acordo com Marcello Chamusca e Márcia Carvalhal (2011), vivenciamos práticas

de conexão ubíqua, em um ambiente de acesso que é generalizado e que permite o uso de

dispositivos digitais a partir de qualquer lugar. Essa conexão seria resultado das várias redes de

acesso sem fio que se espalham pelas cidades, em especial as redes Wi-Fi e as redes de telefonia

móvel dos centros urbanos. No contexto da mobilidade, uma das apropriações feitas dos

dispositivos móveis está ligada a ações de comunicação e marketing digital. Estas têm, de

acordo com os autores (2011, p. 218), a seguinte função:

[...] preencher os espaços cognitivos no processo de disputa de sentidos que acontece permanentemente entre os consumidores e o ambiente em que vive, compartilhando informação qualificada ou levando o consumidor a compartilhar dos seus mais profundos desejos, para então tentar oferecer modos de realizá-los.

Roberto Igarza (2008), por sua vez, sugere que a publicidade é um dos campos que

busca explorar as vantagens que o diálogo direto com o usuário, no contexto da utilização das

novas mídias, oferece. Não existe, diz o autor, um modelo de publicidade interativa. Trata-se,

assim, de buscar estratégias para capitalizar as vantagens do marketing direto e a relação com

os clientes sem intermediários. Dizendo de outro modo, as táticas ofereceriam contato direto

com a audiência, que passa a ser considerada individualmente.

O telefone celular passou a ocupar, deste modo, lugar de destaque nas novas estratégias

publicitárias, sugere o autor.

Partindo de que o celular é tão próximo às pessoas quanto o relógio de pulso, ao que, em alguns casos, já o substituiu, e que o usuário o leva consigo o tempo todo, este se converte no dispositivo ideal para que, quando queira, o usuário possa se comunicar “imediatamente” com o usuário de sua escolha65 (IGARZA, 2008, p. 243, tradução livre do autor).

65 “Partiendo de que el móvil es tan próximo a las personas como el reloj de pulsera, al que, em algunos casos, ya ha sustituido y que el usuario lo lleva consigo todo el tempo, éste se convierte en el dispositivo ideal para que, cuando lo desee, el usuario pueda comunicarse ‘inmediatamente’ con el destinatario de su elección” (IGARZA, 2008, p. 243).

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No que faz referência à divulgação por meio de telefones celulares, os divulgadores de

festas de São Luís exercem um papel fundamental. Divulgadores são indivíduos que prestam

serviços para os produtores de eventos e donos de bares e casas de show, cuja função é fazer

circular os flyers digitais nos aplicativos já mencionados, bem como em sites de redes sociais.

O flyer digital abaixo é um exemplo duplo: do tipo de material enviado pelos divulgadores e da

mistura de gêneros musicais mencionada anteriormente (sertanejo, arrocha, swingueira, música

eletrônica e funk).

Figura 13 – Flyer digital de festa realizada pela casa de shows Chopp Cancun

Fonte: Página da casa de shows Chopp Cancun no Facebook.

O cenário sertanejo de São Luís é constituído pelos lugares onde ocorrem as

apresentações, por seus respectivos proprietários, pelos produtores de festas, pelos

divulgadores, pela imprensa local, pelos consumidores e pelos artistas que se designam

sertanejos.

Na fase exploratória desta pesquisa, realizada entre outubro de 2013 e março de 2014,

os artistas citados com maior frequência nos flyers digitais publicados em perfis do Instagram

foram: Jhonatan & Jardel, Stanley & Cristian, Hilton & Ódon, Kaio & Márcio, Maycon & Nael,

Tárcio & Tarcísio, Mayara Prado, Adriano Camargo, João Gerude, Kaique Mamede, Guilherme

Torres, Luckas Seabra, Elcson Pacheco, Caio Mello, William Freire, Natália Leite, Leydiane

Costa, Cesar Martins, Daysa Costa e Trio Brassalis.

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Em referência a essa lista, chamam atenção dois fatores: 1) a quantidade expressiva de

artistas em carreira solo em comparação à quantidade de duplas; e 2) a pequena participação de

mulheres no referido cenário. O primeiro fator tem relação, de certa maneira, com uma vertente

contemporânea da música sertaneja no país, do sertanejo universitário, em que é muito comum

que artistas optem por ter uma carreira individual. O segundo fator está ligado à história do

gênero musical como um todo, uma vez que a participação feminina é bastante tímida se

comparada à de homens.

As informações apresentadas até este ponto têm o propósito de subsidiar a análise

contida neste capítulo. Reforçam a argumentação de que a representação midiática exerce papel

central na forma como os cantores sertanejos de São Luís constroem suas identidades artísticas.

Mencionam dados que indicam a transformação progressiva dos cenários urbano e rural

brasileiros ao longo do século XX e no início do século XXI, em decorrência do êxodo. Além

disso, salientam a ideia de que parte da produção sertaneja contemporânea se destina ao

mercado de música ao vivo, ligado ao ramo do entretenimento, que se propaga nos centros

urbanos. Nesse contexto, a música sertaneja se associa às festas não como parte de um ritual

(segundo o modelo rural), mas como uma forma de lazer geradora de lucro. Trata do uso de

dispositivos móveis e aplicativos no domínio da circulação de material promocional. Por

último, fornece informações mais gerais sobre o contexto analisado: uma lista de bares e casas

de shows (e os bairros onde se localizam) e os nomes dos cantores e duplas sertanejas que

formam o circuito cultural local.

Pesquisar o circuito da cultura da música sertaneja em São Luís foi uma atividade que

demandou, como se discute a seguir, a adoção de uma metodologia de inspiração etnográfica.

Isso quer dizer que a pesquisa envolveu a inserção do pesquisador no campo, a observação

direta de performances ao vivo dos cantores locais, a realização de entrevistas em profundidade

e a elaboração da descrição que aqui se realiza66.

66 Dizer que se trata de uma metodologia de inspiração etnográfica implica em admitir que a abordagem etnográfica oferece técnicas e procedimentos, como a observação e a entrevista, que foram apropriados com adaptações para atender à realidade do trabalho de campo. Se é feita a opção por esse tipo de abordagem é porque se reconhece que a etnografia é, de certa maneira, o método por excelência aplicado nas pesquisas empíricas que se filiam, assim como esta, aos estudos culturais. Em decorrência disso, o circuito da cultura da música sertaneja em São Luís foi observado durante um período relativamente longo (um ano) e as observações foram, então, articuladas às entrevistas realizadas com os artistas que fazem parte do cenário local.

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5.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Quanto aos procedimentos metodológicos, é necessário assinalar antecipadamente que

esta tese é resultado de uma abordagem qualitativa do objeto pesquisado e que, para tanto, fez

uso de um método de investigação inspirado pela pesquisa do tipo etnográfica. Foi utilizado,

reitera-se aqui, o escopo teórico e metodológico dos estudos culturais. Pretendeu-se chegar aos

objetivos propostos mediante a análise dos momentos que compõem o circuito da cultura (DU

GAY et al., 1997), aplicado ao cenário sertanejo de São Luís.

A escolha do protocolo se justifica por promover a integração entre os espaços da

produção e o do consumo, considerando ainda a relação entre cultura e economia

(ESCOSTEGUY, 2009). Conforme já assinalado, essa relação exerce um papel fundamental na

constituição do objeto de pesquisa do qual esta tese trata. A música sertaneja é pensada, neste

trabalho, como um gênero musical dominante no que se refere ao mercado brasileiro de música.

Os índices de venda atestam isso. Também é dominante no que tange a programação musical

radiofônica. Em relação ao ramo do entretenimento ao vivo de São Luís, esse tipo de música

abrange a maior parte dos espaços voltados para o lazer dos jovens, se comparado às opções

que contemplam outros gêneros como rock e reggae. Trabalhar como um artista sertanejo em

São Luís, aspecto a ser detalhado oportunamente, faz parte do estilo de vida abraçado por

músicos e cantores locais. Há uma relação decisiva, portanto, entre a produção e o consumo de

música sertaneja no contexto analisado e modos de vida particulares expressos através de

narrativas e do comportamento na vida cotidiana.

O circuito da cultura foi apresentado pelos seus propositores a partir do estudo de caso

do Walkman, em que os pesquisadores pretendiam, além de discutir a centralidade de práticas

e instituições culturais na vida contemporânea, apresentar ideias, conceitos e métodos de análise

ligados ao que significa “fazer um estudo cultural”. Essa pesquisa, segundo o que seus

realizadores advogam, rompia com a lógica de que o modo de produção determina o significado

dos artefatos culturais ao propor um modelo baseado na articulação de processos distintos.

Os processos que constituem o circuito da cultura são, conforme explicitado abaixo:

representação, identidade, produção, consumo e regulação. Seguindo a proposta dos

idealizadores do circuito, estudar o Walkman ou qualquer outro artefato cultural implica em

compreender como ele é representado, que identidades são associadas a ele, como ele é

produzido e consumido e quais mecanismos regulam sua distribuição e uso.

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Figura 14 – O circuito da cultura

Fonte: Du Gay at al. (1997, p. 3).

Como se trata de um circuito, não importa muito onde o estudo começa. O fundamental

é que o mesmo seja inteiramente percorrido antes de o estudo ser dado como concluído, dizem

os autores. Cada parte do circuito é tomada em relação às demais partes.

Nós separamos essas partes do circuito em seções distintas, mas no mundo real elas se sobrepõem e se entrelaçam continuamente em formas complexas e contingentes. Contudo, são elementos que, tomados juntos, entendemos por um “estudo cultural” de um objeto particular67 (DU GAY at al., 1997, p. 4, tradução livre do autor).

O circuito da cultura é como um pentágono; recorre-se a essa metáfora para se insistir

que o estudo de um artefato baseado nesse circuito deve, necessariamente, ser considerado

como uma investigação de um único artefato cultural e as cinco dimensões que o constituem, e

não como o estudo da identidade somado ao estudo da representação somado ao estudo da

produção e assim por diante. As partes que compõem o circuito da cultura têm a mesma

importância e precisam ser tomadas, conforme já indicado, como um todo.

Graeme Turner (2003, p. 227, tradução livre do autor) destaca que, para a realização da

pesquisa sobre o Walkman, seus realizadores recorreram à um leque amplo de materiais e

empregaram metodologias diversas. Trata-se, desse modo, de um exemplo proveitoso de

67 “We have separated these parts of the circuit into distinct sections but in the real world they continually overlap and intertwine in complex and contingent ways. However, they are the elements which taken together are what we mean by doing a ‘cultural study’ of a particular object” (DU GAY at al., 1997, p. 4).

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método de pesquisa no âmbito dos estudos culturais contemporâneos. Ainda assim, há

problemas. De acordo com o autor, não existe na pesquisa uma tentativa de lidar diretamente

com os consumidores. A seção que trata do consumo, diz ele, cita dados estatísticos que lidam

com o processo de consumo como um agregado de escolhas individuais, ao invés de focar,

como faria a etnografia, nas “escolhas específicas feitas por indivíduos específicos em resposta

a condições específicas68”.

Turner sugere que o momento do consumo é tratado de maneira especulativa: uma parte

das informações que o tornaria mais robusto – o contexto em que o consumo ocorre e o sentido

a ele atribuído – é desconsiderada. Os propositores do circuito da cultura, entretanto,

reconhecem antecipadamente que as condições de produção do artefato não indicam o modo

como ele é usado nas relações sociais e os sentidos decorrentes da sua utilização. O foco no

consumo explora, de acordo com eles, um elemento crucial na produção de sentido que está no

cerne da realização de um estudo cultural. A abordagem etnográfica do consumo não foi

efetivamente realizada, mas isso não quer dizer que a preocupação com essa prática tenha sido

enfraquecida. “Nenhum estudo cultural sério do Walkman poderia se dar ao luxo de não

explorar os modos como o artefato cultural material tem sido usado para fazer sentido no

exercício da vida cotidiana das pessoas69” (DU GAY at al., 1997, p. 85, tradução livre do autor).

Para Ana Carolina Escosteguy (2011), a problemática é bem mais ampla do que a

apontada por Turner. O protocolo teórico-metodológico do circuito da cultura serviria, de

acordo com a autora, para explicitar a rejeição dos estudos culturais no tocante à ideia de que o

processo comunicativo se organiza linearmente, num fluxo que parte do emissor em direção às

audiências através de um texto. A ênfase, nesse sentido, recai na premissa de que os sentidos

seriam produzidos e postos em circulação em vários espaços diferentes. Entretanto, ela adverte

que as pesquisas empíricas ligadas aos estudos culturais estão, quase sempre, lidando com o

desequilíbrio quanto à ênfase, ou seja, privilegiando o texto em detrimento das audiências ou

vice-versa.

Ambas as ênfases pressupõem uma nítida separação entre as partes que compõem o

circuito cultural, afirma Escosteguy. Nesse sentido, permaneceriam associadas ao entendimento

linear do processo comunicativo e desconsiderariam o papel difuso e penetrante exercido pela

mídia na vida ordinária atual.

68 “[...] on specific choices made by specific individuals in response to specific conditions” (TURNER, 2003, p. 227). 69 “No serious cultural study of the Walkman could afford to ignore exploring the ways in which that material cultural artefact has been used to make meaning by people in the practice of their everyday life” (DU GAY et al., 1997, p. 85).

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Em uma tentativa de tratar de maneira equilibrada cada momento ou processo do

circuito da cultura, o que se pretendeu foi compreender, por meio da investigação do cenário

da música sertaneja em São Luís, uma prática cultural cuja produção, consumo, construção da

identidade, representação e regulação estão essencialmente articulados. Conforme mencionado

anteriormente, os artistas sertanejos locais são, ao mesmo tempo, consumidores e produtores

de música sertaneja. Eles se apropriam do modo como a música sertaneja é representada pela

mídia no intuito de construir parte da sua própria identidade artística. Essa apropriação, que

abrange tanto sonoridade quanto performance, transforma-se em uma apresentação ao vivo a

ser consumida posteriormente pelo público que frequenta os bares e casas de shows da cidade70.

A regulação permeia o cenário quando se estabelecem regras sobre o acesso e permanência do

público nos referidos espaços, mas também está presente na adequação entre a maneira como

os artistas locais se posicionam no cotidiano enquanto sertanejos e o que isso normalmente

significa.

A realização desta pesquisa envolveu, conforme propõe Maria Immacolata Vassallo de

Lopes (2010), idas e vindas entre as suas diversas fases. Para a autora, a primeira fase da

pesquisa empírica se constitui teoricamente, levando-se em conta o fenômeno a ser investigado.

O quadro de referência, ela diz, acaba delimitando o problema de pesquisa e os alvos de toda a

investigação. Em seguida, parte-se para o processo de observação, cujo objetivo seria o de

coletar evidências concretas que tivessem a capacidade de reportar os fenômenos investigados

no que eles têm de essencial.

Quanto a técnicas de coleta de dados, ou seja, instrumentos usados para a obtenção das

informações úteis para o desenvolvimento da pesquisa, fez-se a opção tanto pela observação

direta das apresentações de cantores sertanejos locais quanto pelas técnicas de observação

chamadas pela autora de indiretas, como é o caso da entrevista. O procedimento será detalhado

adiante.

Não foi tarefa simples definir o conjunto de artistas a ser tomado como fonte. Nem todos

os cantores e duplas que compõem o cenário sertanejo local quiseram ou puderam conceder

entrevista, mesmo tendo, em alguns casos, sinalizado interesse em fazê-lo. Por meio de

informações disponibilizadas nas páginas e perfis dos artistas no Facebook e Instagram, pude

entrar em contato com eles, apresentar os objetivos da pesquisa e expor a necessidade de

70 Nesta tese, a opção pelos cantores e duplas sertanejas e não pelo público se justifica em função dos interesses da pesquisa. O objetivo deste trabalho, como apontado na introdução, é compreender o lugar ocupado pela mídia na construção da identidade dos artistas locais. Os cinco momentos que constituem o circuito da cultura, isto é, representação, identidade, produção, consumo e regulação, são devidamente contemplados.

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entrevistá-los. A agenda da maioria dos cantores foi o principal empecilho, o que levou a

inúmeros adiamentos e cancelamentos.

Como já foi exposto, a pesquisa se tornou exequível apenas pela combinação de técnicas

de coleta de dados, o que tem respaldo na perspectiva de Lopes (2010, p. 148) sobre os

procedimentos metodológicos:

Normalmente, as técnicas de coleta são combinadas em função dos propósitos da pesquisa, que exigem diversos tipos de dados. Nesta fase, os dados primários, que são os obtidos originariamente pelo investigador, são integrados a dados secundários obtidos de fontes como: jornais, revistas, publicações estatísticas etc. A rigor, também a pesquisa bibliográfica, constituída por levantamentos, fichamentos e consultas bibliográficas, é uma fonte secundária de dados.

As duas etapas subsequentes concernem à análise dos dados na investigação.

Considerando que a pesquisa tem inspiração etnográfica, ou seja, que observação e entrevista

são procedimentos-chave para o levantamento dos dados, busca-se a realização de uma

descrição densa, conforme propõe Clifford Geertz (1989). Esse antropólogo sugere que o objeto

da etnografia está situado entre a descrição de uma prática e o sentido atribuído a ela. A

descrição e análise dessas práticas podem ser, de certa forma, avaliadas como superficiais, já

que os dados do etnógrafo são, diz o autor, a construção que o pesquisador faz sobre a

construção de outras pessoas. É um trabalho, ele observa, que envolve o ato de explicar

explicações. E completa:

O que o etnógrafo enfrenta, de fato [...] é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. [...] Fazer a etnografia é como tentar ler [...] um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989, p. 20).

Não cabe nos limites desta tese uma discussão aprofundada sobre a natureza e as

características da abordagem etnográfica. Importa, contudo, discutir o que está implícito na

ideia de uma pesquisa inspirada por ela. Primeiro, significa que o trabalho está voltado para a

micro-observação. Esta pesquisa envolveu trabalho de campo e, por isso, tomou emprestado

algumas das recomendações feitas pela Antropologia para a observação de um fenômeno que é

bastante específico. Toma-se emprestada a visão de Stéphane Beaud e Florence Weber (2007,

p. 21,22) para sustentar esse aspecto da pesquisa: “[...] a pesquisa de campo é necessariamente

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limitada, estreitamente circunscrita, local, específica, sem vocação para fornecer resultados

gerais”.

A pesquisa qualitativa de enfoque etnográfico, segundo David Morley (1996), interessa-

se em alto grau pelo contexto das ações; ou seja, as ações devem ser compreendidas no interior

da estrutura e da dinâmica do processo em que ocorrem. O autor se dedicou ao estudo do ato

de assistir à televisão, mas algumas de suas observações podem ser alargadas para dar conta de

outros tipos de práticas de consumo

Acerca das pesquisas realizadas por Morley, Escosteguy (2001, p. 36) observou que a

trajetória desse autor “exemplifica o deslocamento da análise da estrutura ideológica de

programas factuais de televisão em direção aos processos multifacetados de consumo e

codificação nos quais as audiências estão envolvidas”. Se os protocolos de investigação são

redirecionados para a abordagem etnográfica, conforme sugere a autora, a partir da década de

1980, é para dar conta de investigações cada vez mais preocupadas com a audiência. Ou seja,

com os “sujeitos engajados na produção de sentidos”.

A condução de uma pesquisa com enfoque etnográfico tem uma pretensão bastante

ampla, conforme aponta Morley (1996, p. 264), já que exige:

[...] estudar o processo de comunicação em detalhe e, na medida do possível, no espaço e no momento real, adotar uma posição amplamente etnográfica e examinar a dinâmica da ação e o constrangimento nas atividades e práticas cotidianas dos indivíduos e dos grupos que participam da produção e do consumo de sentidos socialmente situados.

Compreende-se que o ponto de vista do autor, expresso no fragmento acima, reforça a

ideia de que é necessário olhar para o processo comunicativo como um todo, sem privilegiar

um momento em detrimento dos demais.

Itânia Gomes (2004) lembra que a pesquisa realizada por Morley é a primeira

investigação empírica da audiência realizada no âmbito dos estudos culturais ingleses. Trata-

se, na avaliação da autora, de uma comparação entre conteúdos codificados no texto e o trabalho

de decodificação realizado pelos receptores.

Se até então o interesse estava no modo como os sistemas de signos, tratados como “textos”, estruturam ou posicionam seus leitores ou sujeitos, a partir de agora os Estudos Culturais passam a se interessar também pelo modo como esses leitores-sujeitos se põem diante de tais textos (GOMES, 2004, p. 176, grifo meu).

Para além da mudança de interesse, Gomes (2004, p. 200) aponta que a adoção de uma

abordagem etnográfica vem para “‘corrigir’ a tendência especulativa dos estudos culturais”.

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E completa:

Com a etnografia, a prática de assistir televisão não é investigada exclusivamente no nível do discurso dos telespectadores, mas situada no espaço doméstico, organizada dentro da dinâmica das relações domésticas, e considerada como elemento de um estilo de vida individual. [...] a etnografia ajuda os Estudos Culturais preservarem sua preocupação com as experiências vividas (GOMES, 2004, p. 201).

A etnografia, na concepção de Antonio La Pastina (2005), é um método aberto que

fornece ao pesquisador espaço para incorporar informações e retrabalhá-las, sempre que novas

informações forem surgindo. As narrativas que resultam desse tipo de estudo, ainda que sejam

seletivas, permitiriam uma compreensão profunda das dinâmicas que formam as práticas dos

grupos e seus engajamentos com a mídia e com a cultura popular. A pesquisa etnográfica, para

o autor, permite, além do entendimento de como o contexto de recepção pode afetar a

interpretação da mensagem, o exame dos fenômenos não apenas no contexto social, político e

econômico adjacente, mas também a sua inserção num contexto mais amplo, regional, nacional

e global.

Adotar um enfoque etnográfico na pesquisa sobre o circuito cultural da música sertaneja

em São Luís significa, em segundo lugar, que observação e entrevistas foram realizadas com o

intuito de confrontar o discurso dos pesquisados, ou seja, aquilo que foi dito pelos cantores,

com suas práticas, isto é, com aquilo que eles oferecem nas apresentações ao vivo. É nesse

momento que o artista sertanejo local expõe parte de suas referências musicais e daquilo que

forma sua identidade artística. O dito e o ocultado ao longo das entrevistas fornece, entre outras

coisas, um modo de compreender como os artistas percebem sua própria condição. Mais uma

vez, tomo de empréstimo a percepção de Beaud e Weber (2007, p. 36): “Observação e entrevista

apresentam-se, desde então cada uma como o antídoto aos desgovernos da outra”.

São três, na perspectiva de Beaud e Weber (2007), as categorias de fatos ou de objetos

observáveis: cerimônias, interações pessoais ou anônimas e lugares ou objetos. São alguns

exemplos de cerimônias: festas, eventos familiares, festas do calendário (como a comemoração

do Ano Novo), espetáculos e eventos escolares. A diferença ao se observar uma interação

estaria no fato de que, ao contrário da cerimônia, ela não foi preparada nem anunciada. Já

lugares e objetos servem, quase sempre, como contextualização a cerimônias e interações às

quais se assiste. Além disso, pode ser que carreguem vestígios de uma história imposta aos

participantes.

A observação em si, dizem os autores, envolve percepção, memorização e anotação. A

observação etnográfica se sustenta sobre o encadeamento dessas três técnicas. Fazer anotações

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durante uma cerimônia, por exemplo, não é recomendado porque pode ser interpretado como

uma grosseria, um desrespeito, ou como falta de atenção. Nesse caso, a memorização é mais

aconselhada, sendo a anotação uma etapa a ser cumprida oportunamente.

Os autores reforçam a relação entre a observação e as entrevistas nos seguintes termos:

“[...] uma observação sem entrevistas arrisca-se a ficar cega aos pontos de vistas nativos; uma

entrevista sem observações corre o risco de ficar prisioneira de um discurso

descontextualizado” (BEAUD; WEBER, 2007, p. 93).

Ao analisar a prática de assistir à televisão, Morley (1996, p. 250) observou que se trata

de “uma atividade muito complexa que, inevitavelmente, aparece mesclada com um registro de

outras práticas domésticas, e só se pode entendê-la adequadamente nesse contexto”. Essa

constatação se aplica igualmente à produção, à circulação e ao consumo de música sertaneja

em São Luís. Tratam-se de práticas que precisam, sempre, ser contextualizadas e levadas em

conta na relação com outras práticas.

Por último, adotar um enfoque inspirado na etnografia significa que se trata de uma

pesquisa desenvolvida na tensão entre o familiar e o estranho. A música sertaneja sempre foi

familiar para mim, uma vez que está entre os gêneros musicais que marcou a minha infância.

Mas é familiar até certo ponto. Alguém que cresceu ouvindo músicas de duplas como João

Mineiro & Marciano, Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo e Zezé di Camargo &

Luciano enfrenta certas dificuldades para lidar com a música sertaneja de Matheus Fernandes,

Israel Novaes e Lucas Lucco. São sonoridades e performances bastante distintas. Antes de estar

ligada ao gosto, trata-se de uma dificuldade de reunir sob o mesmo rótulo modos tão distintos

de fazer música.

Além disso, o cenário sertanejo de São Luís também era, em certa medida, estranho.

Muito tempo foi gasto para a confecção do mapa (apresentado anteriormente) dos lugares onde

havia apresentação de artistas sertanejos. Também precisei identificar quais eram os artistas

que compunham o referido cenário, localizando páginas e perfis no Facebook e Instagram. Os

divulgadores de festa foram personagens que subsidiaram esse levantamento, a partir das

informações que disponibilizavam nos sites de redes sociais e que eram compartilhadas por

meio dos aplicativos para smartphones. Mesmo investigando um contexto geograficamente

próximo, eu estava lidando com pessoas, lugares e até mesmo repertórios musicais que eram,

pelo menos inicialmente, desconhecidos. Todo esse percurso foi essencial para que eu

conseguisse realizar as entrevistas que constam neste capítulo.

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Em resposta a quaisquer que sejam as ressalvas feitas sobre a utilização da entrevista

como técnica de coleta de dados e o tipo de análise que decorre do uso dessa ferramenta, vale

a seguinte observação, feita por Morley (1996, p. 260):

[...] a entrevista [...] continua sendo uma maneira de tentar compreender o que fazem as audiências quando assistem à televisão fundamentalmente mais apropriada que a do analista que permanece na sua casa e imagina as possíveis implicações do modo em que os demais assistem à televisão.

A adequação feita em relação ao que propõe Morley é que a audiência, nesta pesquisa,

não faz referência aos frequentadores das festas realizadas em casas de shows e bares. Diz

respeito aos artistas que constituem o cenário local, que antes de serem produtores de música

sertaneja, são consumidores recorrentes desse gênero musical. O consumo exaustivo de música

sertaneja, aliás, é um dos fatores responsáveis por transformá-los em artistas ligados à esse tipo

de música.

Ainda sobre o emprego da entrevista e o seu valor no âmbito da pesquisa, é conveniente

a observação de Gaskell (2010, p. 65) sobre o mapeamento e compreensão do mundo da vida

dos respondentes:

A entrevista qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos.

Anteriormente, apontou-se que as identidades são forjadas e mantidas por meio de

narrativas biográficas coerentes, mesmo que essas possam ser, em um dado momento,

revisadas. Indivíduos escolhem, segundo essa perspectiva, um estilo de vida determinado e, a

partir da escolha, são levados a atividades incorporadas a uma certa rotina, em menor ou em

maior grau. A identidade de uma pessoa diria respeito, então, à capacidade de manter em

andamento uma narrativa particular.

Essa compreensão a respeito da identidade, já abordada no capítulo que trata da sua

construção, relaciona-se com a perspectiva de Leonor Arfuch (2010) sobre o lugar ocupado

pelas entrevistas na produção de conhecimento a respeito de algo ou de alguém. Para essa

autora, a entrevista se aproxima da conversação cotidiana, em que o sujeito, a partir dos relatos

pessoais, constrói um lugar de reflexão, de autoafirmação (ser, fazer, saber) e de objetivação da

própria existência.

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Para a autora, cuja preocupação está centrada explicitamente na entrevista produzida e

veiculada pela mídia, a definição de uma competência, isto é, de uma determinada aptidão é um

dos primeiros passos para o estabelecimento do contato entre o entrevistador e o entrevistado.

A visibilidade de um personagem, ela diz, está relacionada com o fazer (institucional,

vocacional, profissional ou mesmo fortuito). O know-how, às vezes, é privilegiado em relação

à identidade pessoal da fonte. Estaríamos, em decorrência disso, habituados a decifrar as

funções que uma pessoa desempenha pela sua representação, essencialmente midiática,

conformada em imagens estereotipadas que a televisão alimenta.

As diversas abordagens teóricas a respeito da entrevista no contexto da pesquisa

científica apontam, basicamente, para duas questões: os tipos de entrevista e as vantagens e

desvantagens do uso dessa técnica de coleta de dados em comparação a outras, como a

observação e o uso de documentos (ANDER-EGG, 1971; SELLTIZ, JAHODA, DEUTSCH,

COOK, 1965; PHILLIPS, 1974; LODI, 1981).

A observação, segundo Ezequiel Ander-Egg (1971), pode ser adotada em diferentes

modalidades, que variam de acordo com os meios utilizados para a sistematização do que se

observa, o grau de participação do observador, o número de observadores envolvidos e o lugar

onde se realiza. A observação estruturada, ou sistemática, se diferencia da não estruturada

porque é realizada através de certos instrumentos (como quadros e anotações) e estabelece, de

antemão, quais aspectos serão estudados. A observação participante, por sua vez, difere da

observação não participante por consistir na participação real do observador na vida da

comunidade, no grupo ou na situação determinada. Conhece-se a vida de um grupo a partir do

seu interior, diz o autor. Além disso, a observação pode ser individual ou em grupo e ocorrer

dentro de um laboratório ou em campo.

A entrevista, em suas diferentes formas, ofereceria dados complementares à observação.

Na pesquisa, pontua o autor, a entrevista pode ser estruturada e não estruturada. No primeiro

caso, a entrevista é semelhante a um interrogatório no qual as perguntas seguem sempre a

mesma ordem e são formuladas sempre com os mesmos termos. A entrevista não estruturada,

ao contrário, dá maior liberdade ao entrevistado; não há, nesse tipo de entrevista, um padrão a

ser seguido.

Conforme propõem Claire Selltiz, Marie Jahoda, Morton Deutsch e Stuart Cook (1965),

a observação é o principal meio de obtenção de informações sobre o mundo e é um elemento

fundamental da investigação científica. A observação científica é parte de um projeto mais

amplo, que a associa a um corpo teórico definido. Deve ser planejada e está sujeita a

verificações. A maior vantagem dessa técnica, na visão desses autores, é que permite o registro

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do comportamento na ocasião em que ele ocorre. Contudo, não fornecem informações sobre

percepções, crenças, sentimentos e motivações, o que só seria captado por meio das entrevistas.

Essas, por sua vez, variam entre dois extremos: de rigidamente padronizadas, com questões e

respostas permitidas pré-determinadas, ou completamente sem estrutura. Na entrevista

padronizada, as questões seriam apresentadas exatamente com a mesma redação e na mesma

disposição a todos os respondentes. Já as entrevistas mais flexíveis, em função da maior

expressividade que permitem, contribuiriam para a determinação do significado pessoal das

atitudes dos entrevistados.

Bernard Phillips (1974), por sua vez, trata de três tipos diferentes de entrevista. No

primeiro tipo, chamado de entrevista padronizada, o entrevistador estaria preso ao enunciado

específico no roteiro de perguntas, não sendo livre para adaptar suas perguntas à uma situação

específica, modificar a ordem dos tópicos ou fazer outras perguntas. Difere radicalmente do

segundo tipo, o da entrevista despadronizada, em que o pesquisador estaria livre para

desenvolver cada situação em qualquer direção que considere apropriada para o fim que deseja.

Na entrevista semipadronizada, o terceiro tipo, o entrevistador faz um certo número de

perguntas principais e pode ir além das respostas dadas a essas perguntas.

A perspectiva de João Bosco Lodi (1981) também aponta para a coexistência da

entrevista com a observação. Sendo a observação parcial e seletiva, e a documentação uma

técnica limitada, a entrevista é usada como suplementar às duas primeiras. Para esse autor, a

entrevista pode ser estruturada, em que todas as respostas devam ser comparadas contra o

mesmo conjunto de perguntas, ou não estruturada, em que o entrevistador tenta explorar mais

amplamente uma determinada questão.

Lodi ressalva, entretanto, que há entrevistas do tipo padronizado que dariam maior

liberdade à formulação de perguntas. Nesse caso, o entrevistador formula as perguntas

escolhendo as palavras, a sequência e o momento de acordo com o contexto. As suposições

básicas desse tipo de entrevista são:

[...] (a) a pergunta deve ser formulada com palavras familiares ou habitualmente usadas pelos respondentes; (b) nenhuma sequência fixa de perguntas é satisfatória para todos os respondentes, sendo a sequência mais eficaz aquela que determina maior rapidez e disposição no respondente; (c) havendo seleção e treinamento mais cuidadosos dos entrevistadores, a pessoa terá mais habilidade para formular as perguntas de acordo com cada entrevistado (LODI, 1981, p. 17).

Em uma perspectiva adicional, apresentada por Duarte (2011), as entrevistas são

classificadas como abertas, semiabertas ou fechadas. Antes de explorar as características de

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cada tipo, o autor observa que a entrevista individual em profundidade é uma técnica qualitativa

que busca informações, percepções e experiências de informantes. Dessa forma, buscaria

recolher respostas a partir da experiência subjetiva de alguém que detenha as informações que

se desejam conhecer. Trata-se de “uma técnica dinâmica e flexível, útil para apreensão de uma

realidade tanto para tratar de questões relacionadas ao íntimo do entrevistado, como para

descrição de processos complexos nos quais está ou esteve envolvido” (DUARTE, 2011, p. 64).

A entrevista aberta se caracteriza por ser essencialmente exploratória e flexível. Não há

uma sequência predeterminada de questões nem parâmetros de respostas. O ponto de partida é

um tema ou uma questão ampla e é aprofundado de acordo com aspectos significativos

identificados pelo entrevistador enquanto o entrevistado responde. No caso da entrevista

semiaberta, um roteiro de questões, cuja origem está no problema de pesquisa, dá cobertura ao

interesse de pesquisa. Esse tipo de entrevista busca tratar da amplitude do tema, apresentando

cada pergunta da forma mais aberta possível. A entrevista fechada, por sua vez, é realizada a

partir de questionários estruturados, com perguntas iguais para todos os entrevistados. Busca-

se, observa Duarte, estabelecer uniformidade e comparação entre as respostas.

O que deve ser destacado nessas perspectivas a respeito da entrevista é que, mesmo entre

aquelas que colocam essa técnica de coleta de dados ao lado da observação, não há menção à

abordagem do tipo etnográfica. Apenas as entrevistas do tipo aberta, não estruturada ou não

padronizada parecem dar conta do que a etnografia estabelece como princípio. Esse é um dos

fatores que estabelecem o distanciamento entre o tipo de entrevista realizado no âmbito desta

pesquisa e a etnografia clássica. As entrevistas realizadas por mim podem ser mais bem

classificadas como semiabertas, a partir das características expostas acima71.

A observação realizada nesta tese foi do tipo sistemática, individual, participante e de

campo, seguindo as proposições de Ander-Egg (1971) e Beaud e Weber (2007). A permanência

no campo, ou melhor, a minha presença no cenário da música sertaneja de São Luís como

observador, teve a duração de um ano (de janeiro a dezembro de 2014), embora o contato com

esse cenário seja anterior à pesquisa nele realizada.

Durante o período, assisti a apresentações de artistas sertanejos nos seguintes locais:

Chinelo de Dedo, Saloon Brasil, Etc & Tal, Lagoa House, Mandamentos Hall, Boteco da Ilha,

Chopp Cancun, praça de alimentação do Rio Anil Shopping, São & Salvo, Zig Show, Espaço

Noir, Gallery Lagoa e Via Brasil. Também estive presente no Villa Mix São Luís, evento em

que se apresentaram tanto artistas reconhecidos nacionalmente, como Gusttavo Lima e a dupla

71 Talvez fosse mais adequado, portanto, referir-se a uma metodologia que contemplou observação do tipo etnográfica (BEAUD; WEBER, 2007) associada a entrevistas semiabertas (DUARTE, 2011).

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Jorge & Mateus, quanto artistas locais, como a dupla Jhonatan & Jardel e o cantor Luccas

Seabra (nos intervalos dos shows maiores). O foco da observação nesses ambientes era,

principalmente, a performance dos artistas no palco, a relação deles com os consumidores, a

organização do repertório e a sonoridade, muitas vezes implicada pela mistura de gêneros

musicais.

Além da observação, foram realizadas sete entrevistas semiabertas com artistas locais:

duas duplas (Jhonatan & Jardel e Hilton & Ódon) e três cantores em carreira solo (Adriano

Camargo, Kaique Mamede e William Freire). Apesar de eu ter organizado uma lista de questões

a serem feitas aos entrevistados, que consta nesta tese como apêndice (Apêndice A), a

formulação das perguntas, bem como a ordem e o momento em que seriam feitas, não seguiu

nenhuma padronização. As entrevistas foram adaptadas ao contexto em que foram realizadas e

aos dados que já haviam sido coletados por meio da minha presença no campo. Os entrevistados

puderam falar abertamente, sem interrupções da minha parte, sobre as interrogações que lhes

foram feitas ao longo de, em média, noventa minutos.

O que se buscou através das entrevistas foi conhecer a trajetória dos artistas, suas

referências dentro da música sertaneja, a rotina de trabalho, a relação com a mídia e a leitura

que eles fazem do cenário em que se encontram. A finalidade era, a partir do que foi coletado

através das observações e das entrevistas no âmbito local e de dados relativos ao contexto mais

amplo da música sertaneja, compreender as articulações que levam à formação da identidade

desses artistas. Mas, é claro, não apenas as articulações: rearticulações e desarticulações

também me interessavam.

Na próxima seção, apresento um relato do que o cenário da música sertaneja em São

Luís expõe a respeito dos espaços onde ocorrem as apresentações e das estratégias e táticas de

aproximação com os consumidores, mas, principalmente, a respeito do papel da mídia na

constituição da identidade dos artistas locais. Trata-se de uma explanação que busca um diálogo

com as categorias teóricas apresentadas anteriormente e, também, uma inserção do referido

cenário no contexto mais amplo da música sertaneja.

5.2 O CENÁRIO LOCAL

Ir à uma festa de música sertaneja em São Luís era, ao longo do ano de 2014, uma prática

que se iniciava, em alguns casos, dias antes da data do evento. Se o consumidor tivesse o

interesse de não pagar o valor cobrado pelo ingresso, que podia variar entre trinta e sessenta

reais, ele precisaria enviar o seu nome, bem como dos seus acompanhantes, para uma das listas

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disponíveis (caso elas existissem, uma vez que nem todas as festas destinavam uma cota para

entrada gratuita). As listas, como já apontado, fazem parte das estratégias dos donos de bares e

casas de shows e dos produtores de eventos para a captação de público. São disponibilizadas

por meio dos divulgadores, que usam dispositivos móveis para a circulação do material de

divulgação: os flyers digitais.

Ocorreu, ainda em 2014, uma mudança na disponibilização das listas, motivada, em

parte, por uma reclamação de alguns artistas locais; para eles, o excesso de listas vip (em que a

entrada nas festas é gratuita) representava uma desvalorização do trabalho da classe. A

reivindicação teve apoio declarado por parte de alguns divulgadores, que manifestaram, no

Instagram, a adesão ao movimento. O texto do flyer da campanha que pedia o fim das listas vip

era: “Não nos peça para dar a única coisa que podemos vender”; o material trazia ainda a

hashtag #sãoluíssemlista. Desde então, a maior parte dos locais onde ocorrem apresentações de

artistas sertanejos adotou, como resposta, as chamadas listas amigas, que garantem aos

consumidores nelas incluídos um desconto de até cinquenta porcento no valor do ingresso.

De qualquer modo, quem entra em uma determinada festa através de lista,

independentemente do tipo, precisa chegar cedo ao local do evento, já que há limite de horário

para a entrada. Geralmente, a equipe de divulgação alerta que a lista se encerra às 23h30min.

As filas que se formam em decorrência disso são longas, conforme se vê na foto abaixo:

Figura 15 – Fila em frente à casa de shows Lagoa House

Fonte: Perfil da casa de shows Lagoa House no Facebook.

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Quando finalmente se chega ao interior da casa de shows, após a habitual revista feita

pelos seguranças, os consumidores são recebidos por garçons que, de posse do cardápio,

oferecem bebidas variadas. Se desejar, o consumidor pode comprar, já na entrada, um combo

que inclui uma garrafa de bebida, um saco com gelo, uma ou duas caixas de suco e uma mesa

bistrô alta (sem cadeiras, para permitir que os presentes possam dançar) ou um balde de cerveja

com cinco ou seis garrafas tipo long neck. Mas também pode ir diretamente ao bar, efetuar o

pagamento do que deseja consumir e receber, como é mais comum, uma pulseira com código

de barras por meio da qual é feito o controle do consumo.

Geralmente, as festas são estruturadas da seguinte forma: a primeira sequência de

músicas inicia no momento em que a casa abre, por volta das 23 horas, e se estende até o início

do primeiro show – por volta de 0h30min. Essa parte é conduzida por um DJ residente72, cujo

set73 é composto basicamente por música eletrônica e funk. Com a casa relativamente cheia,

tem início o primeiro show da noite – com duração de cerca de duas horas. Entre essa e a

segunda apresentação, acontece mais uma sequência de meia hora de música ambiente. No

palco, os integrantes da primeira banda desmontam os instrumentos e deixam o local para que

a segunda banda se posicione. O segundo show começa por volta das 3h30min, e também tem

duração de duas horas. É muito comum que os artistas principais chamem cantores convidados

ao palco, que apresentam duas ou três músicas. Essa estrutura sofre modificações que

dependem, entre outras coisas, da quantidade de atrações contratadas.

Uma questão que tem gerado bastante polêmica em São Luís desde 2014 tem a ver com

o cumprimento da lei municipal número 200, de 24 de setembro de 2009, que trata dos horários

de funcionamento dos estabelecimentos comerciais da cidade (Anexo A). A lei, que dá nova

redação a um trecho do Código de Postura do município, de 1968, estabelece os seguintes

horários para o encerramento das atividades nesses locais:

Tabela 3 – Horário de encerramento dos estabelecimentos comerciais de São Luís

Bares e restaurantes 3 h Boate sem isolamento acústico 3 h Boate com isolamento acústico 4 h Buffets, casas de eventos e de recepções sem isolamento acústico 3 h Buffets, casas de eventos e de recepções com isolamento acústico 4 h Venda de bebidas alcoólicas em lojas de conveniência 2 h Lanchonetes e trailers que comercializam bebidas alcoólicas 2 h Shows musicais a céu aberto 2 h

72 DJ fixo de uma casa noturna. 73 Conjunto de músicas a ser executado por um DJ na festa para o qual foi contratado.

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Shows musicais em locais privados com isolamento acústico 4 h Festejos juninos e carnaval 3 h Passagem do ano novo - Eventos especiais 3 h

Fonte: o autor, com base nas informações da lei municipal 200/2009.

Pela norma acima, os bares precisam fechar às 3 horas e as boates com isolamento

acústico, às 4h. Já os shows musicais realizados a céu aberto deveriam ser encerrados até às 2

horas. Em virtude da falta de fiscalização, esses horários dificilmente eram cumpridos. A

descrição da estrutura das festas, exposta acima, indica que o mais comum era que as boates

ficassem abertas, funcionando, até às 5 horas. Apenas a passagem do ano novo, como

demonstrado, não tem horário de encerramento estipulado, o que leva as produtoras a produzir

festas com vários ambientes e que duram de oito a dez horas.

Ao analisar o papel da regulação, Hall (1997a) questiona, entre outras coisas, se é o

Estado que determina a configuração da cultura por meio de políticas legislativas ou se são os

legisladores que determinariam a passagem de um modo de regulação a outro. Para o autor, é

subjacente a esses questionamentos uma relação entre cultura e poder. Quanto mais importante

se torna a cultura, mais significativas se tornariam as forças que a governam, moldam e regulam.

“Seja o que for que tenha a capacidade de influenciar a configuração geral da cultura, de

controlar ou determinar o modo como funcionam as instituições culturais ou de regular as

práticas culturais, isso exerce um tipo de poder explícito sobre a vida cultural” (HALL, 1997a,

p. 35).

A perspectiva apresentada por Hall acerca da regulação da cultura lança luz sobre

algumas das formas de se regular as práticas culturais em São Luís, através, por exemplo, do

Código de Conduta municipal, da classificação indicativa que restringe o acesso a menores de

18 anos ou por meio de portaria do governo estadual que trata da aplicabilidade do benefício da

meia-entrada para estudantes, professores, pessoas com deficiência e idosos (Anexo B)74.

Outro aspecto observado no decorrer das festas – também implicado pela legislação –

tem a ver com o consumo de álcool, que é bastante expressivo entre os jovens. As bebidas mais

consumidas são o uísque e a vodca (com suco ou energético) e a cerveja. Em muitas festas nas

quais estive presente, consumidores davam sinais de embriaguez ainda no primeiro show da

noite. Presenciei vários jovens embriagados, cujas idades não conseguiria precisar, sendo

74 A portaria número 34/2015, da Gerência de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado do Maranhão – Procon Maranhão, considera que a cultura é um bem de consumo imaterial e que a garantia de acesso a todos os meios de manifestação cultural equivale a garantir, para a população em geral, o acesso à própria identidade.

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carregados para fora das casas de shows pelos amigos. Algumas das casas dispõem de cadeiras

ou puffs, onde é muito frequente ver pessoas sendo amparadas por estarem bêbadas e não

conseguir sequer ficar em pé75.

A maioria dos presentes aproveita a festa para dançar, fazer fotos com o seu grupo de

amigos e estabelecer relações fortuitas. A dança, por exemplo, acontece entre casais ou

individualmente. No quesito foto, notou-se que, além das selfies, os frequentadores de bares e

casas de shows aceitavam, com bastante entusiasmo, posar para a câmera do fotógrafo oficial

do lugar. Essas fotos, oficiais ou não, estariam disponíveis no Facebook e no Instagram em um

intervalo que vai de alguns poucos minutos a dois dias.

Em relação às duplas e cantores sertanejos locais, que se apresentaram nos locais onde

estive durante o tempo que passei em campo, as observações apontam para procedimentos que

são mais ou menos frequentes. Primeiro, os artistas também usam seus perfis nos sites de redes

sociais e aplicativos para divulgar flyers digitais dos próximos shows. Geralmente indicam, no

texto da postagem, o nome de algum divulgador ou produtor de festa que pode ser contatado

por quem desejar obter mais informações.

Depois, observou-se que os artistas precisavam adaptar seu repertório para o local onde

ocorreria a apresentação. Boates e casas de shows demandavam um repertório mais dançante e

atual, além de mais misturado com músicas de outros gêneros. Nos bares, os artistas acabavam

fazendo um show mais acústico, com músicas mais antigas e geralmente optavam apenas por

música sertaneja.

Também era preciso se vestir adequadamente. Alguns artistas faziam uso de algum

elemento no figurino que indicasse a vinculação com a música sertaneja: um chapéu, um cinto

com uma fivela maior, uma bota ou acessórios. Mas não existia uma regra estabelecida na

cidade em relação ao estilo, havendo artistas que se apresentavam sem esses elementos de

identificação.

Os artistas, na maioria das vezes, abriram a apresentação com as músicas mais atuais ou

com aquelas que haviam entrado no repertório mais recentemente. As apresentações eram quase

sempre não autorais, e os artistas costumavam optar por músicas que estivessem fazendo

sucesso nos programas de rádio e televisão, assim como na internet. A interação com o público

acontecia por meio de incentivos para que as pessoas pedissem músicas de sua preferência,

75 A regulação formal restringe o acesso de pessoas com idade inferior a dezoito anos. Presume-se, portanto, que os consumidores que entram nas festas sejam maiores de idade. O consumo de álcool, ainda que possa ser visto como excessivo, não vai de encontro a nenhuma norma. A ingestão de álcool nesses ambientes, aliás, é incentivada pelos garçons e, de certa maneira, pelos artistas.

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comentários aleatórios a respeito da festa e sobre o quanto as pessoas estavam bebendo, fotos

tiradas com os aparelhos celulares dos fãs e com os aparelhos dos próprios artistas para

alimentar as redes sociais.

Após seis meses de observação, passei à realização das entrevistas com os artistas

sertanejos de São Luís. De junho a outubro, foram entrevistados as duplas Jhonatan & Jardel e

Hilton & Ódon e os cantores Adriano Camargo, Kaique Mamede e William Freire. A realização

das entrevistas, é importante que se diga, não interrompeu a ida à campo e a decorrente

observação.

Esperava-se que as entrevistas realizadas pudessem indicar elementos para a análise do

circuito da cultura da música sertaneja em São Luís. Um destaque, neste estudo, é dado à cultura

de produção da música sertaneja local articulada com a apropriação que as fontes fazem do que

é produzido no contexto nacional. O cenário local não está isolado do que ocorre em um

contexto mais amplo e esta investigação se propôs a evidenciar isso.

O valor dos depoimentos apresentados está, portanto, no fato de que registra, pela

primeira vez em uma produção acadêmica, a trajetória de artistas que se apresentam na noite de

São Luís. Também está em permitir que a análise da realidade observada seja acrescentada

pelas experiências pessoais de cada cantor. Além disso, permite que sejam abordados aspectos

subjetivos que têm relação com os momentos do circuito da cultura, como as razões que levaram

os entrevistados a se tornarem cantores profissionais, a predileção pela música sertaneja, os

critérios envolvidos na organização do repertório, os cuidados com a aparência e as influências

advindas do contato com a mídia.

5.3 ARTISTAS SERTANEJOS DE SÃO LUÍS

5.3.1 Da realização das entrevistas

Conforme já se mencionou, as entrevistas76 foram realizadas com a finalidade de se

conhecer as trajetórias dos artistas locais, a opção deles pela música sertaneja, a construção de

uma identidade que tivesse correspondência com o referido gênero e, também, o papel

desempenhado pela mídia nesse processo.

76 Alguns entrevistados ofereceram relatos mais longos a respeito de alguns aspectos e mais sucintos em relação a outros. Isso justifica, de certa maneira, que algumas das questões apresentadas a seguir tenham sido mais bem desenvolvidas por uma fonte do que pelas demais.

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Os irmãos Jhonatan e Jardel foram os primeiros a serem entrevistados. Ambos foram

ouvidos em junho de 2014. O contato se deu por meio da assessora de comunicação da dupla,

a jornalista Fernanda Branco, que me passou os números de telefone dos cantores. A opção por

entrevistá-los separadamente, o que também se aplica aos irmãos Hilton e Ódon, foi minha.

Justifico a escolha: considerei que obteria mais detalhes se cada um deles pudesse falar

livremente, sem interrupções. Na sala do apartamento de Jardel, durante a realização da

entrevista, dois técnicos da equipe da dupla trabalhavam para resolver questões ligadas aos

painéis eletrônicos que seriam utilizados na apresentação daquela noite. Na sala do apartamento

de Jhonatan, foi digna de nota a existência de um piano, um violino e dois violões. Ao final da

entrevista, Jhonatan fez uma breve demonstração da sua habilidade com o piano, instrumento

que, segundo ele, aprendeu a tocar sozinho.

A terceira entrevista foi realizada com o cantor Adriano Camargo, que conheci no bar

temático Saloon Brasil, no Turu. Apresentei-me, conversamos sobre a pesquisa que eu estava

realizando e perguntei se ele tinha interesse em participar dela. Ele assentiu e me recebeu,

semanas depois, em sua residência, localizada no bairro Araçagy, onde mora com a mãe e dois

irmãos pequenos. Entrevistei-o em julho de 2014. A conversa orientada pelo roteiro de questões

que preparei durou cerca de duas horas e foi interrompida uma única vez, por um gentil convite

para que eu me juntasse à família em um lanche – convite ao qual não recusei.

A entrevista com William Freire, a quarta, aconteceu em agosto de 2014, poucos dias

depois do fim da dupla William & Eduardo, que ele compunha. Conversamos por cerca de uma

hora e meia no Papo de Boteco, bar localizado no bairro Turu. O contato com William se deu

através de uma amiga em comum, que nos apresentou. Durante a realização da entrevista, uma

banda de pagode se preparava para uma apresentação no local; o barulho, porém, não acarretou

em nenhum prejuízo na condução da entrevista.

A quinta entrevista teve como fonte o cantor Kaique Mamede. O contato com ele foi

intermediado pela sua produtora. Nos encontramos em setembro de 2014, na casa da família da

sua namorada, Larissa, onde ele mora desde que chegou em São Luís. Apesar da timidez

evidente, Kaique apresentou uma narrativa bastante detalhada do seu envolvimento com a

música, sua mudança para o Maranhão e os desafios de um artista que deixou de cantar em uma

dupla sertaneja, fazendo segunda voz, para se apresentar sozinho.

Em outubro de 2014, realizei as últimas duas entrevistas, com os irmãos Hilton e Ódon,

em uma chácara em que ambos moram, no bairro Cidade Operária. Conversei primeiro com

Ódon, mantendo a opção de realizar entrevistas individuais, e acompanhei pontos do roteiro de

questões estabelecido previamente para conhecer a trajetória de vida e as condições de trabalho

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dos artistas sertanejos locais. A maior parte do relato foi dada por Ódon, em decorrência da

timidez que levou Hilton a dar respostas bem curtas ao que lhe era perguntado. As entrevistas

foram marcadas pelo pai dos cantores, que é, também, empresário da dupla.

No ato da realização das entrevistas, solicitei que os artistas assinassem um termo de

consentimento (Apêndice B), por meio do qual, além de explicitar a importância da

contribuição deles para a pesquisa, obtive a autorização para a gravação das entrevistas e a

utilização das informações fornecidas com a respectiva identificação da fonte.

5.3.2 Jhonatan & Jardel

Os irmãos Jhonatan e Jardel se declaram procedentes de Paulo Ramos, cidade localizada

a pouco menos de 350 km de São Luís. Entretanto, Jardel nasceu na cidade maranhense de

Santa Inês, em 1981. Jhonatan, por sua vez, nasceu em Belém, capital do estado do Pará, em

1982. Após idas e vindas entre cidades do Maranhão e do Pará, estabeleceram-se por um tempo

em Belém, onde passaram a adolescência. Nessa cidade, os irmãos começaram a frequentar

uma igreja evangélica, onde se envolveram com música. Na igreja, Jardel trabalhava com um

quarteto de vozes e, em função dessa atividade, aprendeu o básico de teclado e piano. Com a

experiência adquirida, tratou de envolver Jhonatan nas atividades musicais. Depois de um

tempo, o irmão mais novo começou a cantar sozinho nos cultos.

Quando voltaram para Paulo Ramos, anos depois, Jhonatan aprendeu a tocar violão.

Começou a trabalhar como motorista, e esse emprego teria lhe possibilitado ir para São Luís

com relativa frequência. Ao longo do tempo, a ideia de montar uma dupla sertaneja foi

ganhando forma e, com um amigo chamado Miguel, Jhonatan se mudou para São Luís.

Conseguiram, de acordo com Jardel, um contrato para tocar no bar Raízes, localizado na

Avenida Litorânea. Gravaram um CD promocional em Lago da Pedra, cidade vizinha a Paulo

Ramos, e vendiam cópias no bar durante as apresentações.

Mas a parceria com Miguel durou pouco e Jhonatan seguiu tocando sozinho.

Insistentemente convidava Jardel para que formassem uma dupla sertaneja em São Luís. Jardel

declarou que acabou aceitando o convite, mas acrescentou que foi para São Luís para realizar

o sonho do irmão. Na capital, a dupla se mantinha com a venda dos CDs cujas cópias e

impressão das capas eles mesmos faziam.

A dupla Jhonatan & Jardel se formou oficialmente em 2006. No começo, tocavam em

bares da Litorânea e festas particulares. Faziam um show no estilo voz e violão. Jardel cita

alguns lugares onde a dupla se apresentou na fase inicial da carreira: Oásis, Paradise, Choppana

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(bares), Fazenda (casa de shows) e Jacaré (lava à jato). Depois de cerca de três anos de

formação, começaram a montar uma banda para acompanhá-los nas apresentações. Os irmãos

tinham compromisso para toda a semana com exceção da segunda-feira, dia que era destinado

às questões burocráticas e logísticas.

Jardel, apesar da timidez nítida, canta, toca violão e tem noções básicas de teclado.

Jhonatan, que faz a primeira voz da dupla na maioria das músicas, toca violão, gaita, guitarra,

piano e violino. Ambos se declararam autodidatas na aprendizagem dos instrumentos. Nos

shows, inclusive, há um momento em que Jhonatan toca violino. A performance com esse

instrumento musical ocorreu em algumas das apresentações às quais assisti.

A gravação do primeiro CD autoral da dupla revelou um impasse: a venda era pequena,

se comparada à do disco cover. As músicas conhecidas, por terem sido gravadas por artistas já

consolidados no cenário sertanejo nacional, pareciam ser mais vendáveis do que as

composições próprias. A perspectiva de Jardel, contudo, era de insistência no trabalho autoral.

Ele disse sobre este aspecto: “Na minha cabeça estava o seguinte: eu tenho que botar músicas

desconhecidas para serem conhecidas com a gente. A gente sempre investiu no que era nosso,

nas nossas gravações, nas nossas composições”.

Com o reconhecimento que a dupla começou a conquistar na cidade, Jhonatan & Jardel

começaram a fazer investimentos em suas vidas pessoais e também na estrutura da banda. Em

2013, gravaram um DVD. Contudo, até a data da realização da entrevista, a produção autoral

ainda não havia sido lançada. A gravação, realizada no dia 12 de julho de 2013, foi noticiada

pela imprensa local. Na matéria publicada pelo portal Imirante no dia 30 de junho daquele ano,

a dupla foi designada como pioneira no sertanejo universitário no estado. Noticiou-se que treze

músicas autorais seriam gravadas. Cerca de cem profissionais estariam direta ou indiretamente

envolvidos na gravação.

Na oportunidade, Rogério Pereira, diretor artístico do show que daria origem ao DVD

afirmou: “A gravação será completamente diferente de tudo que já teve em São Luís, seguirá

padrões musicais existentes em outros estados, com roteiro e um grande investimento em

tecnologia. Os fãs do Jhonatan e Jardel podem aguardar uma noite extraordinária”77.

77 A matéria pode ser acessada no endereço: http://imirante.com/namira/sao-luis/noticias/2013/06/30/dupla-jhonatan-jardel-gravam-primeiro-dvd-em-sao-luis.shtml. Acesso em: 03 out. 2015.

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Figura 16 – Gravação do DVD da dupla Jhonatan & Jardel

Fonte: Perfil da dupla Jhonatan & Jardel no Facebook.

O papel da mídia na formação da identidade artística de Jhonatan & Jardel foi

evidenciado em vários momentos ao longo das entrevistas. Apareceu, primeiro, enquanto Jardel

falava sobre o repertório de Jhonatan na época em que estava aprendendo a tocar violão. O

repertório era formado, basicamente, a partir de músicas das duplas Leandro & Leonardo, Zezé

di Camargo & Luciano e Bruno & Marrone, que ambos ouviam na infância e adolescência.

Sobre a forte presença da música sertaneja nos rádios, Jardel diz: “Era o que a gente escutava

quando era menino. Era só o que tocava nas rádios”. Quanto à formação da identidade artística

dos irmãos, esses nomes se juntam ao de duplas mais recentes, como Victor & Leo e César

Menotti & Fabiano.

Quando perguntei a Jhonatan o motivo de ele cantar música sertaneja, a resposta

reiterou, de certa maneira, a questão: “Eu canto música sertaneja porque eu cresci ouvindo isso.

Leandro & Leonardo, Zezé di Camargo & Luciano, Chitãozinho & Xororó. A minha tia tinha

um disco, ela botava pra gente ouvir”. Milionário & José Rico e João Mineiro & Marciano

foram outras duplas sertanejas citadas pelo cantor.

A influência da mídia foi novamente abordada enquanto Jhonatan tratava da escolha do

repertório. Ele disse a esse respeito:

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Eu estou sempre ligado nos programas musicais e nas bandas que vão se apresentar no Domingão do Faustão. Porque as bandas que se apresentam lá no domingo com certeza são bandas que estão tendo sucesso. Não vão lá à toa. Às vezes é uma coisa lá de Minas ou lá da Bahia que ainda não chegou aqui, mas quando vai para o Faustão, chega aqui.

Quando eu o questionei se a maneira como os artistas são representados através da mídia

exerce alguma influência sobre o seu trabalho, a resposta foi: “Eu procuro sugar pra mim o que

for melhor de cada artista. Por exemplo: eu ouço um cara cantando rock. Se tiver alguma coisa

que puder me inspirar naquele cara, eu vou me inspirar. Às vezes, mesmo os artistas sertanejos

não têm nada para me inspirar”. A fala de Jhonatan reitera, de certa forma, a ideia de consumo

como apropriação e como elemento constituidor da identidade. Ficou claro que o cantor constrói

sua identidade como artista, ainda que parcialmente, por meio daquilo que chega até ele através

da televisão, do rádio e da internet.

Um show da dupla tem duração média de duas horas. O repertório é escolhido, em parte,

a partir daquilo que o público pede. Jardel observou, sobre esse aspecto, que se as pessoas

pedem uma música com muita insistência, é porque elas estão ouvindo aquelas músicas e

gostam delas.

Figura 17 – Dupla Jhonatan & Jardel no palco da casa de shows Lagoa House

Fonte: Perfil da casa de shows Lagoa House no Instagram.

As apresentações, contudo, não se limitam à música sertaneja. Assisti à uma

apresentação de Jhonatan & Jardel que terminou com uma sequência de rock. Jardel me

explicou que o forte da dupla é música sertaneja, mas também toca outros gêneros. Os irmãos

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incluem, esporadicamente, uma música autoral na apresentação. Com exceção do show

registrado em DVD, entretanto, eles não fazem apresentações apenas com suas músicas.

Algo que deve ser destacado a respeito do repertório da dupla é que Jhonatan & Jardel

tem, basicamente, dois tipos diferentes de apresentação. O primeiro, mais dançante, é voltado

para as casas de shows. A banda geralmente está completa e, além do sertanejo, ouve-se arrocha,

forró e, em alguns momentos, trechos de funk. Nos bares, o repertório é bastante diferente.

Predomina a sonoridade dos violões. Sobre a aproximação do sertanejo com outros gêneros

musicais, Jardel comenta que essa é uma característica própria da cidade, com a intenção dos

produtores de atrair públicos distintos para a mesma festa. Como visto no capítulo anterior, a

aproximação da música sertaneja com os gêneros citados é própria do segmento identificado

como sertanejo universitário, o que indica que o cenário local acompanha o que acontece com

o gênero em um contexto mais amplo.

A banda que acompanhava a dupla Jhonatan & Jardel na época da entrevista ensaiava

uma vez por semana e incluía baterista, baixista, percussionista, violonista, guitarrista e

sanfoneiro. A equipe contava ainda com dois roadies78, um sonoplasta, um supervisor, um

motorista e três técnicos. Há ainda uma assessora de imprensa.

Estive presente em diversas apresentações da dupla, em ambientes distintos. Os vi

cantar, por exemplo, na Lagoa House, no Chopp Cancun, no Zig Show e no Mandamentos

Hall79. Foi na Lagoa House, inclusive, que vi, pela primeira vez, Jhonatan tocar violino durante

o show. Uma das apresentações à que assisti aconteceu em um espaço bastante incomum. A

dupla foi convidada para cantar no encerramento de um evento acadêmico realizado por uma

universidade local. O evento foi realizado no dia 24 de outubro de 2014 e teve início por volta

das 18h30min. Jhonatan usava uma camisa quadriculada vermelha, calça jeans e tênis. Jardel

usava uma camiseta básica preta, calça jeans e tênis.

Apesar de estarem em um ambiente incomum, onde o público sequer podia consumir

bebida alcoólica, o show não foi muito diferente daquele realizado, por exemplo, no Daquele

Jeito, exceto pela duração. A apresentação, cujo repertório foi composto por sucessos do

segmento sertanejo que, na oportunidade, eram atuais, durou apenas uma hora e dez minutos.

78 O roadie é um profissional cuja função está relacionada, entre outras coisas, à montagem e desmontagem dos equipamentos usados por uma banda durante um show, desde as caixas de som até os instrumentos musicais. 79 Nessa etapa, fiz a opção por assistir a apresentações dos vários artistas locais, mesmo daqueles que não consegui entrevistar, em ambientes diferentes, espaços voltados para públicos que eu supunha serem diferentes. Acabei percebendo que tanto as casas com porta e bebidas mais caras quanto as mais baratas acabavam sendo frequentadas por pessoas de todas as classes sociais, em função das listas que tornavam o ingresso gratuito. Esse quadro se alterou um pouco no segundo semestre de 2014, quando muitas casas deixaram de ter lista – pelas razões já explicitadas.

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A parte da frente do palco estava tomada por fãs interessados em tirar selfies com os cantores.

Enquanto cantavam, tiravam fotos e citavam nomes de alunos dos cursos de graduação

oferecidos pela instituição, o que causava enorme gritaria entre os presentes. Havia muitos

alunos presentes, muitos dos quais dançavam. Naquela noite, a dupla ainda faria outras duas

apresentações: uma no bar Filial e outra no Chopp Cancun.

Ainda a respeito do repertório, Jhonatan, apreciador assumido da música country, diz

que é muito importante estar atento a tudo. Com frequência, procura na internet as novidades

que os artistas sertanejos lançam. Ele disse que trata, então, de aprender logo aquela música

nova para ser o primeiro a tocar. “Independentemente do que seja. Se for um funk, se for um

sertanejo, se for um forró, se for MPB, eu pego aquela música e transformo para o meu estilo e

canto”.

É um tanto quanto paradoxal, mas Jhonatan é bem mais cauteloso em relação a esta

mistura do sertanejo com outros gêneros musicais. Primeiro, ele observou o crescimento do

cenário sertanejo pelo país, abrangendo estados que estão fora do eixo onde a música sertaneja

nasceu. Depois, apesar de achar boa a referida aproximação pela variedade que permite, afirmou

preferir o que chamou de sertanejo de raiz80. Explicou que é amante da guarânia, do bolero. Ou

seja, não se referiu ao que é considerado propriamente como sertanejo de raiz e ainda citou

gêneros musicais que, num determinado momento, também foram incorporados à música

sertaneja. Ao tratar dessa questão, cantou um trecho de No rancho fundo, música que ficou

famosa nas vozes de Chitãozinho e Xororó, mas foi composta por Ary Barroso e Lamartine

Babo em 1931. E cantou também um trecho de Fogão de lenha, da mesma dupla.

Citei a aproximação da música sertaneja com o funk e perguntei a Jhonatan se ele se

incomodava, ao que ele respondeu: “Por um lado sim porque está mexendo em uma coisa que

é raiz. O sertanejo é a música lá do sertão mesmo, do caboclo que está lá plantando tomate, lá

na roça plantando arroz. Não tem nada a ver com funk, cara com tatuagem. Mas misturou. Pra

balada isso é bom”.

A dupla Jhonatan & Jardel faz uso constante das redes sociais da internet como parte do

trabalho de divulgação. Por meio do Facebook e do Instagram, compartilha trechos de vídeos

de apresentações, flyers digitais, fotos pessoais e banners dos patrocinadores e parceiros. Os

irmãos fazem uso, ainda, de um site próprio para complementar a estratégia de divulgação81.

Abaixo, um dos inúmeros flyers que a dupla Jhonatan & Jardel compartilha através da sua

80 O termo foi mencionado pelo entrevistado e faz referência ao entendimento que ele tem acerca da história do gênero. 81 O site da dupla Jhonatan & Jardel pode ser acessado no endereço a seguir: http://www.jhonatanejardel.com.br/.

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página oficial no Facebook e no perfil do Instagram. Neste último, os artistas se descrevem a

partir dos termos: “irmãos” e “cantores/compositores”. Disponibilizam números de telefone,

um endereço de e-mail e um link para o site.

Figura 18 – Flyer digital de show no Daquele Jeito

Fonte: Página da dupla Jhonatan & Jardel no Facebook.

Questionei Jhonatan sobre os patrocinadores que são citados nas apresentações e cujas

marcas são compartilhadas nos sites de redes sociais e aplicativos. Ele me respondeu que cada

patrocinador tem uma função, que vai desde cuidados com o corpo e com a aparência a apoio

logístico. Na época da entrevista, entre os muitos patrocinadores da dupla estavam uma

academia de musculação, uma loja de suplementos, um salão de beleza e uma loja de roupas.

Sobre o cenário local, Jardel comentou a pouca valorização da produção musical local

em comparação a artistas de outros estados. Segundo ele, há pouco espaço para a disseminação

do repertório autoral, em benefício de músicas que alcançaram alguma popularidade no

mercado da música sertaneja, o que se dá, inclusive, a partir da inserção nos meios de

comunicação. Artistas de fora têm, declarou Jardel, uma repercussão maior na mídia e junto ao

público consumidor do segmento do que os artistas locais.

Ao falar sobre a agenda da dupla durante a semana, Jardel comentou que observou,

sobre o cenário local, três fases distintas: o ápice, a estabilidade e o declive. O ápice corresponde

à época em que não havia, ainda, nenhuma dupla sertaneja na cidade. Com o crescimento no

número de artistas sertanejos em São Luís, a dupla passou então a dividir os espaços

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disponíveis. O momento atual, contudo, seria de crise. O público que, no passado, frequentava

as festas e gastava muito dinheiro, passou a ir com menos frequência e a gastar menos. Também

teria havido um aumento na quantidade de bares e casas de shows, o que, segundo ele, dividiu

o público.

Jhonatan encerrou a entrevista falando sobre os projetos da dupla e a necessidade de

manter um trabalho de qualidade.

A gente só pensa em se manter como a gente está porque é disso que a gente vive. Pra eu fazer show, eu tenho que estar mostrando trabalho: uma música nova, repertório novo, uma boa apresentação. A gente está sempre gravando e jogando músicas na internet, no CD, no nosso site. Vai que, numa dessas, estoura?

O lugar ocupado pela mídia na construção da identidade artística da dupla Jhonatan &

Jardel é evidente e é indicado por eles desde os relatos sobre o começo da carreira, ainda em

Paulo Ramos, até os critérios usados para a renovação do repertório. Nas entrevistas, tanto

Jhonatan quanto Jardel deixaram claro que a rotina semanal de trabalho está alinhada com o

estilo de vida que eles abraçaram. Usar a internet para descobrir novas músicas que possam ser

incluídas nas apresentações faz parte dessa rotina.

5.3.3 Adriano Camargo

Nascido em 1991, Adriano Camargo é natural de Comodoro, cidade do estado do Mato

Grosso. Reside em São Luís desde janeiro de 2011. Afirmou, na entrevista que realizei com ele,

não ter tido uma infância musical. Sobre a infância, aliás, declarou: “Nunca prestei atenção em

música”. O contato com a música aconteceu na adolescência, quando ganhou um violão da avó.

Começou a estudar música sozinho, utilizando os métodos apresentados em revistas de banca

de jornal. Na época, uma tia de Adriano tinha um DVD acústico da dupla sertaneja Bruno &

Marrone. O contato com essa mídia o levou a aprender a tocar as músicas da dupla goiana.

Ao comentar a infância e a adolescência em Comodoro, Adriano falou sobre suas raízes:

“A minha cidade é uma cidade muito pequena, considerada uma cidade sertaneja, caipira”. O

comércio é, nas palavras do cantor, abastecido pelos produtos que os sitiantes trazem para

vender na cidade. As emissoras de rádio executam muita música sertaneja durante todo o ano.

É uma cidade, descreveu Adriano, com muitos festivais de interpretação de música sertaneja e

exposições agropecuárias. Nessas exposições, todos os shows seriam de artistas sertanejos.

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Foi nesse contexto que Adriano começou a se envolver com a música. Sua primeira

apresentação em público aconteceu em uma feira estudantil, onde tocou violão. A escola onde

estudava tinha um projeto que envolvia alunos carentes com o instrumento musical. Adriano

não fazia parte do projeto. Trabalhava em um posto de gasolina e não tinha tempo para

participar das oficinas. Foi convidado pelo coordenador do projeto para participar e tocar

violão. O incentivo recebido deu algum resultado: no final daquele ano, 2006, em um evento

realizado por uma emissora de rádio local, Adriano se apresentou novamente com os colegas.

E assim, passou a ser convidado para participar de outros eventos. Definiu a experiência com

uma palavra: “Desafinadíssimo”. Começou a participar, então, de festivais de músicas onde,

além de tocar violão, passou a cantar, sozinho ou em dupla. Participava, em média, de três

festivais por ano. Não chegou a ganhar, mas disse que foi finalista por duas vezes.

Além dessas apresentações esporádicas, Adriano revelou que também se apresentou na

noite, em bares. Fez parte de uma dupla chamada Lucas & Adriano. Tocou em uma banda

própria e também fez parte de uma banda de garagem. “Na banda de garagem, a gente tocava

sertanejo e tocava rock. Mas na hora do rock eu descia do palco. Não por desrespeito, mas

porque eu não fazia parte do número musical”.

Adriano Camargo, que não tem nenhum parentesco com a famosa dupla goiana, toca,

além do violão, viola caipira de dez cordas, guitarra e tem noções básicas de teclado. Perguntei

a ele como se deu o processo de aprendizagem da viola, ao que ele respondeu: “A gente morava

em uma cidade vizinha à Comodoro, chamada Sapezal, e tinha um rapaz chamado Peninha, que

também era jurado de festivais, que sempre me abraçou nessa parte musical. Eu comprei uma

viola na mão dele e fui aprendendo, olhando na internet”. Nessa época, Adriano já tocava violão

o que, de certa forma, contribuiu para o aprendizado da viola caipira. Embora já tivesse feito

aula de canto e tido orientação de um fonoaudiólogo, na época da entrevista Adriano estudava

canto sozinho, em casa, com o auxílio do teclado.

Depois que chegou a São Luís, passou a prestar mais atenção em outros gêneros

musicais, aprendê-los e incorporá-los ao repertório dos shows. Foi o momento em que se tornou

artista profissional e passou a viver exclusivamente de música.

Perguntei a ele, então, quais eram os artistas que o influenciavam artisticamente e

contribuíram para a sua formação enquanto cantor. Ele respondeu que Bruno, da dupla Bruno

& Marrone, é um dos seus intérpretes preferidos. Também citou Zezé di Camargo & Luciano e

duplas que chamou de mais antigas, como Milionário & José Rico, Matogrosso & Mathias e

Tião Carreiro & Pardinho. “A realidade é que eu gosto de música boa, mesmo dentro do

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sertanejo. Hoje o estilo ficou um pouco vulgar. Os compositores estão vulgarizando as músicas

e a culpa não é deles. O grande responsável pelo caminho que a música toma é o público”.

Perguntei a ele o porquê de ele cantar música sertaneja. Ele disse que cresceu ouvindo

esse gênero musical e que é apaixonado por ele. Depois de ter ganhado o primeiro instrumento

musical, começou a estudar e a maioria das músicas que aprendeu era sertaneja. Há, nesse

depoimento de Adriano Camargo, indícios da centralidade da mídia em sua formação enquanto

músico e enquanto artista.

Aproveitei para perguntar se, pelo fato de ter Camargo como sobrenome, ele considerou

adotar um outro nome artístico. Ele respondeu que sim, e disse que quando veio para São Luís,

adotou o nome de Adriano Viola em função da intimidade com o instrumento. Deixou de usar

esse nome, entretanto, por causa da ligação criada com Paulinho da Viola, o que sugeria que

ele fosse cantor de MPB e não um cantor sertanejo. Acabou decidindo manter o nome de

batismo.

Quando a entrevista foi realizada, Adriano Camargo havia, por razões pessoais (que não

foram apontadas), feito uma pausa nos shows. Estava, entretanto, montando uma nova banda

para acompanhá-lo nas apresentações. Na oportunidade, disse que estava terminando de gravar

um CD e que, consequentemente, recrutar uma banda fazia parte desse projeto.

As apresentações de Adriano duram entre uma hora e meia e três horas. Mas ele me

contou na entrevista que chegou a tocar por mais de sete horas. Isso aconteceu na Expoema,

exposição agropecuária que acontece anualmente no Maranhão. A quantidade de shows que faz

por semana varia e depende da época do ano. Há períodos na cidade, ele disse, que são mais

favoráveis para a música sertaneja que outros. Adriano se referia a períodos como o carnaval e

às tradicionais festas juninas.

Adriano narrou a circunstância em que tocou durante sete horas. Estava em São Luís há

pouco tempo.

Foi no stand do Chinelo de Dedo na Expoema de 2011. Fiz uma parceria com um dono de um estúdio que era responsável pela parte musical do Chinelo de Dedo e comecei a tocar a partir da meia noite. Só que na exposição estava acontecendo um show e não tinha ninguém circulando. Se me contrataram e vão pagar, eu vou tocar. Quando encerrou o meu horário, às três da manhã, foi a hora que acabou o show. O povo começou a passar e eu nunca tinha visto tanta gente na minha vida. E muita gente parou. Aí eu continuei tocando. Quando eu toquei a última música, eram sete e meia da manhã.

A maioria dos artistas sertanejos, de todas as vertentes, tem uma preocupação muito

grande com a aparência. Artistas ligados ao sertanejo universitário, conforme já apontado,

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preocupam-se em ter uma aparência mais urbana que rural. Eles mantém figurino, cabelo,

acessórios (tais como pulseiras) e tatuagens espalhadas por todo o corpo. A ideia é que esses

elementos lhes garantam um aspecto, além de urbano, mais jovem e mais moderno. Perguntei

a Adriano Camargo se ele também investia nisso. Ele me respondeu que dificilmente procura

copiar os outros, imitá-los. Disse que usou chapéu por um tempo, mas depois deixou de usar.

Às vezes usa botas, às vezes vai cantar de tênis. Disse, afinal, que não está preocupado em

manter uma aparência de artista sertanejo.

Figura 19 – Adriano Camargo em apresentação no bar Por Acaso

Fonte: Perfil oficial de Adriano Camargo no Instagram.

Sobre a organização do repertório, Adriano, que também é compositor, afirmou que o

local onde o show vai acontecer implica na escolha das músicas. Essa opinião confirma, de

certa maneira, o relato da dupla Jhonatan & Jardel a esse respeito. “Repertório é uma coisa

muito complicada de mexer”, revelou Adriano.

Assisti a várias apresentações de Adriano Camargo ao longo de 2014. Em alguns casos,

tratou-se apenas de uma breve participação, em que cantou três ou quatro músicas. Em uma

dessas apresentações, realizada no bar Por Acaso no dia 23 de outubro, o cantor usou apenas

um banquinho, o microfone e o violão. Tocou por cerca de uma hora e quarenta minutos. Usava

uma camiseta branca básica, uma calça jeans e uma bota de couro. A primeira música que tocou

foi um sucesso lançado em 1989, Nova York, música gravada pela dupla Chrystian & Ralf. Fez

uma apresentação misturando músicas mais antigas com outras mais atuais. Mas não cantou

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apenas música sertaneja. Entre um pedido e outro que atendia82, Adriano cantou músicas como

Esperando na Janela, gravada por Gilberto Gil, Espumas ao Vento, gravada por Fagner, e

Anunciação, gravada por Alceu Valença. Uma das últimas músicas que cantou foi O Menino

da Porteira, de 1955, gravada por artistas como Tonico & Tinoco e Sérgio Reis.

A organização do repertório de Adriano Camargo tem uma lógica particular. No caso

de uma apresentação em um bar, o cantor diz que uma estratégia que tem usado é a da

cronologia inversa: começa com as músicas mais atuais e, a cada meia hora, vai mudando,

tocando músicas mais antigas. No caso de tocar com banda, precisa adaptar o repertório ao local

e ao tipo de público presente. De qualquer maneira, já sai de casa com o repertório montado –

impresso ou escrito à mão. Quando a apresentação é muito longa, esse roteiro evita que as

músicas sejam repetidas.

Tratamos, em seguida, das vantagens e desvantagens de se apresentar sozinho e em

dupla. Adriano afirmou que uma vantagem de cantar em dupla é ter um companheiro “para o

que der e vier”. Nas palavras dele, alguém para dividir as responsabilidades em cima e fora do

palco. O desgaste da imagem de quem canta sozinho é maior. Outra diferença fundamental: o

cachê é dividido entre a dupla, o que não acontece quando se canta sozinho. A relação entre a

primeira e a segunda voz não foi mencionada.

Falamos também sobre composições. Adriano afirmou ter cerca de vinte músicas

autorais. Disse ainda que canta algumas delas, eventualmente, em suas apresentações nos bares

e casas de shows. Somente quando participa de programas de televisão é que opta por cantar

apenas músicas suas. Ele voltou a mencionar que estava, na oportunidade, desenvolvendo um

projeto autoral a ser posto em prática a partir da gravação e lançamento de um CD. Afirmou

sobre o assunto: “Na questão de trabalhar esse projeto autoral, precisa ter um trabalho de

marketing muito bem feito, de divulgação das músicas. Eu já me apresentei em quase todas as

casas de shows que tocam sertanejo, mas onde as pessoas vão para fazer festa, não vão para ver

o artista”. O cantor reconheceu os riscos de o projeto não dar certo. E completou, citando as

experiências de Bruno & Marrone e outras duplas: “É algo trabalhoso. É algo que demora. Você

pode fazer o primeiro CD e não dar certo, pode fazer o segundo e não dar certo. Quando chegar

no décimo, no décimo quinto, tu consegue alguma coisa”.

Assim como a dupla Jhonatan & Jardel, Adriano Camargo também comentou o uso que

faz dos sites de redes sociais e aplicativos. Disse que esses ambientes são úteis para encurtar a

82 Nas apresentações feitas em bares, Adriano Camargo solicita reiteradamente que os presentes façam pedidos de músicas. As pessoas usam os guardanapos das mesas para participar da organização do repertório da noite. Dificilmente Adriano deixa de atender aos pedidos que recebe.

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relação com os fãs83, com o público que aprecia o seu trabalho. São meios para manter contato

constante e para facilitar a divulgação do trabalho. Tanto no perfil do Facebook quanto no do

Instagram, são postados, além de fotos e informações pessoais, os flyers digitais das festas onde

Adriano se apresenta, como demonstrado abaixo.

Figura 20 – Flyer de show de Adriano Camargo

Fonte: Perfil de Adriano Camargo no Facebook.

Eu quis saber de que maneira Adriano era influenciado pelos meios de comunicação e

por outros gêneros musicais aos quais estava exposto. Ele me disse que tem o costume de ouvir,

além de música sertaneja, pop rock, MPB, forró e pagode. A influência se dá, por exemplo,

quando, ao assistir a um DVD, Adriano observa algum aspecto da performance ou das

composições do artista e, em cima daquilo, cria algo diferente para a sua própria apresentação.

A apropriação mencionada interessa diretamente aos interesses desta tese porque indica que o

consumo que ele faz do que é veiculado pela mídia aparece, de certa maneira, em suas

apresentações. O consumo é importante, nesse sentido, porque pode ser usado para incrementar

o seu próprio repertório. Para Adriano, o objetivo, no final das contas, é sempre agradar ao

público das festas.

Também perguntei a Adriano Camargo que avaliação ele fazia da maneira como a

música sertaneja era representada pela mídia. Para ele, o gênero musical vive, já há algum

tempo, um ótimo momento. Os meios de comunicação realmente abririam portas para que os

83 Adriano Camargo foi o primeiro entrevistado a utilizar a palavra fã.

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artistas possam divulgar o seu trabalho. Ele fez a ressalva, entretanto, de que, mesmo com a

existência de bons artistas no cenário nacional, é necessário aparecer novidades.

Ele fez ainda observações sobre o cenário sertanejo local. Para ele, a música sertaneja

não é um estilo musical no qual as pessoas de São Luís se aprofundam ou do qual sejam fãs.

“Aqui o sertanejo é moda”, disse Adriano, sugerindo que o interesse pelo gênero na cidade é

circunstancial. Essa seria uma dificuldade para que o artista sertanejo consiga se estabelecer na

cidade. E justificou: “Você vai montar um repertório pra tocar em bar ou em casa de show, você

tem que pegar as melhores músicas que estão tocando na rádio, as músicas que tocam na novela,

que têm milhares de visualização no YouTube”. Essa é, aliás, uma das dificuldades apontadas

para a inserção de músicas autorais no seu repertório. Novamente, Adriano explicita a

centralidade da mídia na constituição do cenário sertanejo em São Luís.

Adriano observou que a música sertaneja de hoje é escrita e interpretada por pessoas

muito jovens, o que teria alterado não apenas o ritmo, mas também a temática das canções. A

música sertaneja atual teria se tornado mais apelativa. Sobre esse aspecto, ele disse:

Antigamente, quem fazia música eram pessoas de mais idade. Os músicos eram senhores. Hoje em dia, um menino de doze anos destrincha um instrumento melhor do que gente grande. Os estudantes universitários começaram a levar a música sertaneja pra dentro da faculdade e o jovem quer festa, quer beber, quer mulher, esbanjar dinheiro. Levaram isso pra música e deixaram um pouco o romantismo de lado.

O segmento sertanejo é, na leitura que Adriano faz, um comércio, um empreendimento.

Para não deixar o empreendimento morrer, ele disse, o sertanejo acabou por se juntar a outras

vertentes como o funk, o forró, o reggae e o rock e acabou virando a música que é hoje. Adriano

apontou que a música é implicada pela quantidade de dinheiro que gira ao redor dela. Esse seria

um dos fatores para a aproximação da música sertaneja com outros gêneros, na opinião dele.

Eram músicas românticas, músicas que falavam de coisas da natureza, de romance, contavam histórias, falavam da vida na fazenda. Com o passar do tempo, os artistas buscando ampliar o mercado, se agarravam no que a cultura da região podia oferecer. Pra vir para o nordeste, o sertanejo se agarrou ao forró. Não só ao ritmo, mas às letras. Você acaba aproveitando isso pra conseguir um mercado maior.

Adriano Camargo foi o primeiro cantor de música sertaneja entrevistado por mim que,

embora esteja fazendo carreira nos bares e casas de shows de São Luís, é de outro estado. Esse

não é o percurso mais comum. Como já discutido, o comum é que os artistas sertanejos busquem

as cidades de São Paulo ou Goiânia para tentarem uma carreira mais promissora. Questionei

Adriano sobre essa suposta inversão. Ele me disse que já cogitou a possibilidade de ir para as

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cidades citadas. Segundo ele, são lugares onde se têm as maiores emissoras de rádio e televisão

do país e onde o público a ser alcançado também é muito maior. Há ainda uma oferta maior de

profissionais especializados na gestão da carreira do artista. Por outro lado, também é maior a

disputa por espaço, já que a concorrência entre os artistas passa a ser igualmente maior. “É

melhor, é mais vantajoso você buscar isso. Mas sem alguém que indique, fica muito

complicado”.

A última coisa que perguntei a Adriano Camargo foi onde ele pretende chegar como

artista. Primeiro, ele me disse que gosta de trabalhar e que pretende continuar trabalhando.

Cantar, para ele, é algo que ele sempre vai fazer. Pedi que ele tentasse quantificar esse objetivo,

estimando o número de pessoas em uma suposta gravação de um DVD. Ele objetou: “Eu acho

que vou me sentir um cantor realizado quando eu abrir um show com a minha música e ter

aquele momento em que você para de cantar e todo mundo canta a tua música. Acho que é aí

que eu vou me sentir 100% realizado”.

Adriano Camargo, como indicado, é procedente do interior do estado do Mato Grosso.

É o único artista que declarou saber tocar viola caipira. Merece destaque que apenas parte do

repertório interpretado por esse cantor durante o show seja constituída pelo que está em

destaque na mídia. O mesmo pode ser dito em relação às suas influências artísticas que,

conforme mencionado, incluem nomes como Tião Carreiro & Pardinho – dupla sertaneja

formada na década de 1950.

5.3.4 William Freire

A entrevista com William Freire aconteceu poucos dias depois do fim da dupla William

& Eduardo, da qual fazia parte. Assim como os demais entrevistados, ele me falou sobre sua

infância e sobre como começou a se interessar por música. Falou também a respeito de como

se tornou artista profissional e das condições de produção na sua trajetória de cantor sertanejo,

que passaria a ser solo. A dupla, como relatou, não deu certo e William optou por cantar

sozinho.

William nasceu em 1986 e foi o único artista natural de São Luís que eu entrevistei. Seu

pai era músico e tocava em um grupo de pagode. Por causa disso, William passou, desde cedo,

a vivenciar a atmosfera musical de bares e choperias. Contou que desde os oito anos de idade

acompanhava o pai nas apresentações. Sempre que era convidado, cantava uma ou duas

músicas. O pai, que toca violão, serviu de inspiração para que William aprendesse a tocar o

instrumento. Apesar de ter aprendido o básico do violão com o pai, declarou-se autodidata.

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Também afirmou que não fez estudo formal para aprimorar técnicas de instrumentação musical

nem de canto.

Perguntei a William quais eram suas influências musicais desse período em que estava,

de certa maneira, ligado ao universo do pagode. Ele disse que não tinha nenhuma lembrança

específica de algum grupo que lhe servisse de inspiração, mas citou o grupo paulista Soweto

como um dos que ouvia bastante na época. Já no âmbito da música sertaneja, segmento do qual

passou a fazer parte na fase adulta, citou a dupla Jorge & Mateus, a qual chamou de grande

referência da música sertaneja contemporânea. Citou também o cantor e compositor carioca

Jorge Vercilo, da MPB, como influenciador da sua formação como artista.

A música sertaneja entrou na vida de William por volta de 2009, conforme relatado por

ele. Isso teria acontecido através do contato com Mayara Prado, cantora que, apesar de ser

goiana, fazia parte do cenário sertanejo de São Luís84. William fez uma pequena participação

em um show dela no Zig, casa de shows que funcionava na região da Lagoa da Jansen. Depois

de um tempo, os dois começaram a trabalhar em parceria. Sobre a relação com Mayara, disse:

“Logo depois disso, a gente começou, juntos, aqui em São Luís, a entrar no cenário da música

sertaneja. Ela começou a cantar no Daquele Jeito, no Conserven, e me convidava pra ir”.

A parceria, entretanto, não se dava na modalidade de dupla. William Freire cantava

algumas músicas, tocava violão e fazia segunda voz. Havia, porém, um problema: o repertório.

Ele conhecia apenas algumas músicas antigas do segmento sertanejo. Foi com Mayara Prado

que ele se atualizou quanto ao que fazia sucesso naquele momento. Passou, a partir dessa

experiência, a se apresentar como cantor profissional. A colaboração entre Mayara Prado e

William Freire teria durado cerca de quatro anos. As apresentações, nesse período, eram longas

e já chegaram a durar três horas. O entrevistado comentou sobre essa fase:

Eu lembro que nós pegamos um público de cerca de cinco mil pessoas na Batuque Brasil, em um show da Paula Fernandes. Foi um dia realmente impactante. Era um show muito importante, havia a responsabilidade de fazer um trabalho muito bem feito e foi ali que eu senti o impacto maior.

Viver de música não era um projeto de vida para William, mas a profissionalização

como cantor sertanejo aconteceu em decorrência dos vários convites que recebeu para cantar

na noite de São Luís. Depois da experiência com Mayara, William contou que passou a fazer

84 Mayara Prado foi a vencedora do quadro Mulheres que Brilham, do programa Raul Gil (SBT), no ano de 2014. Assinou contrato com a gravadora Sony Music e mudou-se para a cidade de São Paulo. Antes da mudança, era um dos nomes mais recorrentes nas festas do gênero sertanejo em São Luís. Fiz diversas tentativas no intuito de entrevistá-la, mas não consegui. Em novembro de 2014, Mayara lançou, pela Sony Music, a música Linguagem dos beijos, de cuja gravação participou a dupla Marcos & Belutti.

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dupla com outro goiano residente em São Luís, Luckas Seabra. Em seguida, fez parte de outra

dupla com uma cantora chamada Lana. Cantou mais algum tempo sozinho até que veio a formar

uma nova dupla, com Eduardo. Perguntei em que lugares ele se apresentava nesse período

inicial e ele citou lugares como Choppana, Daquele Jeito, Patrimônio e Zig. “A coisa começou

a ficar séria e eu me apaixonei. Sempre fui apaixonado por música e eu entendi que se eu

pudesse me doar, eu poderia viver daquilo. Foi me conquistando ao longo do tempo”.

William disse que foi procurado pelo Eduardo para a formação da dupla. Fizeram um

período de experiência para se certificar de que as vozes dos dois combinavam. William e

Eduardo oficializaram a dupla e trabalharam juntos por cerca de nove meses. Tocaram com

banda em vários bares e casas de shows da cidade. As apresentações da dupla William &

Eduardo duravam cerca de duas horas.

Na ocasião em que a entrevista foi realizada, William estava trabalhando no projeto de

artista solo. Contou que já tinha entrado em contato com donos de casas de shows e bares na

tentativa de fechar uma agenda semanal. Enquanto falava sobre as estratégias para conseguir

contratos, William discorreu sobre o projeto de gravação de um CD, o que, para ele, dentro do

referido contexto, pode ser comparado a um cartão de visita. Enquanto o CD não era lançado,

a figura de um produtor para fazer a intermediação com os contratantes foi citada como uma

alternativa.

Perguntei a William se ele já havia pensado em parar de cantar música sertaneja.

Considerando a experiência que ele teve com o pagode e a influência Jorge Vercillo, da MPB,

considerei que ele optaria por um dos dois gêneros. A resposta dele foi a seguinte:

Eu acho que o pensamento de deixar de cantar música sertaneja seria pra deixar de cantar. Porque a gente passa por muitas dificuldades. Têm épocas do ano em que a gente praticamente não consegue trabalhar porque a música sertaneja fica numa evidência muito baixa. No carnaval, o axé é mais atrativo. Nós até tentamos bolar o que a gente chamou de sertanejo elétrico, mas essa ideia não vende muito. E na época das festas juninas, os arraiais têm maior destaque.

A declaração de William reitera a observação feita por Adriano Camargo, sobre uma

espécie de sazonalidade que paira sobre o cenário sertanejo local. Ainda falando sobre

dificuldades, William explicou ser consciente da dificuldade de estabilizar suas finanças em

São Luís. Sua pretensão é, ele confessou, deixar a cidade em busca de um leque maior de

oportunidades de trabalho. Ele explicou que até apresentações no interior do estado, promovidas

pelas prefeituras municipais ou por particulares, seriam mais rentáveis que as realizadas em São

Luís.

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A relação com patrocinadores também foi tema da entrevista. William falou que a dupla

que havia sido desfeita recentemente teve patrocínio de uma academia, de um odontólogo, de

uma transportadora e de um buffet. A importância do patrocínio depende muito, apontou

William, do acordo celebrado entre as partes.

Foi interessante pra gente na época porque nós tivemos um auxílio financeiro, não apenas permuta do tipo: “Divulga a minha academia e você pode malhar” ou “Divulga meu nome como dentista e você pode vir aqui e ter um tratamento”. Não era um auxílio financeiro muito alto, mas já era uma ajuda.

Perguntei sobre a preocupação de manter uma aparência de artista sertanejo, o que,

como já sugerido, envolveria, a priori, figurino, cabelo e acessórios. Ele foi enfático ao

responder que essa preocupação existe. Afirmou que, hoje em dia, é muito importante que o

artista pense no visual.

A gente vê isso em artistas de renome do cenário sertanejo. Às vezes o artista nem canta muito bem, mas por ele ser um cara boa pinta, ter o cabelinho espetado, ter uma tatuagem ou ser um pouco “bombado”85, ele já ganhou uns pontos. Não apenas visualmente, mas, em relação ao comportamento, saber falar bem, saber se expressar, estar em cima do palco e saber se comunicar com o seu público são coisas muito importantes.

Na época da entrevista com William, realizada mais de seis meses após minha entrada

em campo para a prática de observação, eu já estava, de certa forma, convencido de que o

cenário sertanejo local não era propício ao trabalho autoral. Segui a proposta de que a formação

artística dos cantores sertanejos de São Luís era moldada pela mídia. Questionei William Freire,

nesse sentido, sobre a formação do repertório dos shows. Ele respondeu:

Pra falar de repertório, eu tenho que dar dois exemplos. Primeiro, tem o que você faz em um barzinho. E tem o que você faz nas casas de shows. Dentro do barzinho, você tem uma liberdade maior para escolher o repertório. Você pode usar as músicas que estão em evidência no momento, o que, ao longo de seis anos, mudou radicalmente.

Antes de continuar a diferenciar o repertório do bar e o repertório da casa de shows, ele

falou sobre o fenômeno do segmento chamado de sertanejo universitário, que, em sua opinião,

começou com a dupla Victor & Leo e se consolidou com a dupla Jorge & Mateus. E então,

prosseguiu:

85 William Freire faz referência a artistas sertanejos que teriam uma preocupação exacerbada com o corpo, a ponto de fazer uso de substâncias para obter uma forma física considerada, em alguns contextos, mais atraente.

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A gente poderia usar isso dentro do barzinho, mas o barzinho precisa que você traga o “modão” sertanejo, músicas de Bruno & Marrone, músicas antigas de Zezé di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo, Gian & Giovani. O show no barzinho é mais longo e eu preciso ter esse repertório maior. Tenho também a possibilidade de não cantar apenas música sertaneja.

A respeito do repertório das casas de shows, William disse que o mesmo precisa ser

composto por músicas mais dançantes e mais atuais. “A pessoa que sai pra beber em pé, hoje,

sai pra dançar. Se a pessoa está disposta a entrar às onze da noite e ficar até às três e meia,

quatro da manhã, numa casa de shows, ela vai pra dançar. Geralmente a gente usa as músicas

que estão em maior evidência”.

Tanto ao se referir aos bares quanto às casas de shows, o cantor fez menção à questão

da evidência. No universo musical, como já sugerido, a popularidade pode ser mensurada pela

quantidade de vezes que uma música foi executada na programação radiofônica e também por

meio dos relatórios de venda. No contexto contemporâneo, um outro fator que pode reiterar o

sucesso de uma determinada música é a quantidade de visualizações no YouTube. De qualquer

forma, mencionar esse fator equivale a ressaltar a centralidade da mídia na formação do

repertório. Fazer uso das músicas que o cantor considera estarem em evidência significa, em

outras palavras, sublinhar o papel da mídia no referido processo.

Figura 21 – Apresentação de William Freire no boteco e restaurante São & Salvo

Fonte: Perfil do boteco e restaurante São & Salvo no Instagram.

William, que compõe desde a época em que frequentava uma igreja evangélica, afirmou

ter entre cem e cento e cinquenta músicas de sua autoria. Dessas, cerca de quarenta seriam

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músicas sertanejas. A composição não necessariamente precisa estar ligada a uma situação que

ele esteja vivenciando. Ele observou que situações vividas por outras pessoas podem servir de

inspiração para compor. E mencionou indiretamente a importância da performance do artista

no ato da composição. Citou Fernando Pessoa: “Já dizia o poema, não é? ‘O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente’. Ou seja, ele

consegue se projetar para dentro de uma situação que ele acaba vivendo aquilo”.

A respeito de os artistas sertanejos locais não terem o hábito de cantar suas músicas nos

shows, William contou que quando começou a compor dentro do segmento sertanejo, encontrou

bastante dificuldade para mostrar suas composições para outras pessoas. Teria sido a cantora

Mayara Prado, já citada, a pessoa a encorajá-lo a continuar compondo. Os dois compuseram

várias músicas em parceria, dentre as quais se destacou a música intitulada Acabou. Gravada

por Mayara, essa música chegou a ser executada em programas de emissoras de rádio locais86.

O que acontece, ele afirmou, é que o artista, às vezes, não tem muito espaço dentro do

show para cantar suas composições. No caso específico das suas músicas, William disse que

espera pelo lançamento do CD autoral para começar a cantá-las com mais frequência. “Quando

eu canto uma música minha só com o meu violão, é provável que ela não dê uma impressão tão

boa quanto a que ela daria se estivesse com todos os arranjos, todos os instrumentos, toda

perfeita”, ele acrescentou.

Assisti a algumas apresentações de William Freire nos bares Por Acaso e São & Salvo.

No primeiro show dele ao qual assisti, ele ainda cantava em dupla com Eduardo. No final de

outubro de 2014, estive no São & Salvo para assistir a uma apresentação individual. William

não guardava nenhum traço de que era um cantor sertanejo. Usava calça jeans, tênis e uma

camiseta básica. Cantou por cerca de duas horas e meia. Tocava violão e teve o

acompanhamento de um baterista e um tecladista que fazia as vezes de sanfoneiro. Abriu a

apresentação com músicas das duplas Jorge & Mateus e Marcos & Belutti. Cantou também

músicas como Só pro meu prazer, gravada por Leoni, e Zen, gravada pela cantora Anitta.

Interpretou também músicas do gênero arrocha, como Homem não chora, do cantor Pablo, e

CDs e livros, da banda Asas Livres. Cantou ainda uma sequência de forrós e de músicas

sertanejas mais antigas, como Amargurado e Telefone mudo. O repertório misturava músicas

do sertanejo universitário, modas de viola e ainda de outros gêneros musicais.

86 Um dos vídeos de Acabou disponibilizados no YouTube, feito com fotos da cantora Mayara Prado, foi visualizado, até outubro de 2015, mais de quarenta e oito mil vezes. O vídeo pode ser visto no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=sz1H23UUxqI. Acesso em: 24 out. 2015.

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A exemplo da questão proposta a Adriano Camargo, eu quis saber de William quais as

possíveis vantagens e desvantagens de cantar em dupla e de cantar sozinho. A primeira

vantagem citada está ligada à história do gênero e à relação entre as vozes: “Pra mim, música

sertaneja sempre foi em dupla. A questão de você ter uma primeira e uma segunda voz, casadas,

em harmonia, é muito bonito, na minha opinião. Tecnicamente falando, cantar em dupla é

melhor”. Como desvantagens, o entrevistado citou questões burocráticas e de convivência com

o parceiro.

Além de ouvir música sertaneja, William tem o hábito de ouvir samba e pagode, gêneros

que ele garante não influenciarem no seu trabalho como cantor. Sobre o consumo que faz de

músicas sertanejas, disse que o faz no intuito de manter o repertório atualizado. “Vou buscando

as músicas que estão em evidência. Vou buscando as músicas que estão sendo lançadas em

Goiânia, em Brasília, para poder enriquecer meu repertório”. No processo de busca por novas

músicas, afirmou utilizar páginas da internet especializadas no gênero. E citou os artistas que

julgava terem, no momento, maior destaque no cenário: as duplas Jorge & Mateus e Matheus

& Kauan e os cantores Gusttavo Lima, Luan Santana e Lucas Lucco.

Perguntei a William de que maneira a mídia o influenciava artisticamente. Ele

respondeu que aquilo à que ele assiste na televisão e mesmo publicações que lê na internet, ou

seja, o cotidiano de pessoas comuns, serve como fonte de inspiração para as composições. Por

outro lado, para William, os meios de comunicação seriam reféns da música sertaneja. O

destaque do segmento é tamanho, na opinião dele, que as emissoras de rádio seriam obrigadas

a executá-lo. As novelas da Globo, por sua vez, seriam obrigadas a tê-lo como parte da trilha

sonora. E o Faustão e a Xuxa seriam obrigados a chamar artistas sertanejos para os seus

programas. William observa, a esse respeito, que os meios de comunicação optariam, se

pudessem, apenas pela música chamada por ele de elitizada. A popularidade que a música

sertaneja alcançou seria, segundo a visão de William Freire, a responsável pela sua presença

exaustiva na mídia.

Questionei se, na perspectiva dele, a mídia poderia ser responsável pela fabricação de

artistas sertanejos. Incluí na questão não apenas a ideia de formação de novos artistas, no

sentido de favorecer a renovação do gênero, mas também um tipo de deslumbramento que os

meios de comunicação poderiam criar, levando à escolha pelo segmento apenas pela fama e por

um aparente e rápido enriquecimento. Ele discordou de ambas as perspectivas. Citou os

programas de TV em que há disputa entre candidatos, tais como The Voice Brasil, Ídolos e

Fama, cujo vencedor seria rapidamente esquecido pela mídia em função desta estar mais

interessada nos artistas que já alcançaram algum sucesso. E completou:

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Eu acho que é justamente o contrário. A mídia procura os artistas de renome. E, pra ser bem sincero, hoje quem tem fabricado novos artistas são os artistas de renome. Alguns artistas têm empresas, produtoras, a figura do caça-talentos, que conseguem achar cantores, fazer um investimento em cima e, por causa do investimento, esses artistas novos começam a aparecer. Mais na frente eles entram na mídia.

Ele comentou também, para finalizar essa parte da entrevista, sobre a apropriação que

faz de produtos midiáticos ligados à música sertaneja, como é o caso de DVDs lançados pelos

artistas. Confessou que assiste a esse material pensando em como o seu próprio DVD poderia

ser feito. Trata-se, neste sentido, de outra fonte de inspiração para o artista.

Os sites de redes sociais em que William tem conta ou perfil são espaços voltados quase

exclusivamente para o aspecto profissional. A internet é, segundo dele, o meio de comunicação

mais eficiente para ser usado no processo de divulgação. Perderia, ele faz a ressalva, apenas

para a televisão. Abaixo, vê-se um flyer digital de uma apresentação de William Freire no bar

Por Acaso, compartilhado pelo próprio artista em sua página pessoal no Facebook e no perfil

oficial dele no Instagram:

Figura 22 – Flyer digital de apresentação de William Freire no bar Por Acaso

Fonte: Perfil de William Freire no Facebook.

Pedi que William avaliasse o cenário sertanejo no país e também o cenário local. Ele

afirmou que a música sertaneja empobreceu muito nos últimos anos. A essência da letra da

música teria se perdido, segundo ele.

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Eu, como compositor, considero a letra o elemento mais importante do conjunto da música. Conseguir transmitir uma mensagem, conseguir tocar uma pessoa que está ouvindo a tua música não tem preço. E isso você consegue fazer com músicas românticas principalmente, não é? Essa música dançante, o que a gente chama de “arrochanejo”, acabou empobrecendo a música sertaneja.

Excluindo a questão das letras, citada acima, William julga que a aproximação da

música sertaneja com outros gêneros musicais é enriquecedora. Entretanto, isso teria criado

uma situação em que as casas de shows deixaram de fazer eventos específicos para o gênero na

cidade. Ele observou que as festas, em São Luís, já contemplam essa mistura de ritmos e isso

teria, de certa maneira, afastado parte do público das casas. “Numa só festa você tem sertanejo,

swingueira e forró. A festa perdeu a característica da música sertaneja. Se eu quiser escutar só

música sertaneja, provavelmente eu vou procurar um barzinho e não uma casa de show”.

Falamos, por último, sobre os projetos para o futuro. William Freire disse ter vontade

de gravar um CD e fazer com que suas músicas, suas composições, tenham projeção nacional.

Gostaria que uma música sua fosse gravada pela dupla Jorge & Mateus. Para ele, todo artista

sonha e deve sonhar com a possibilidade de chegar no país todo com seu trabalho. Caso

contrário, estaria limitado a ser um mero cantor de bar. Contudo, William diz que São Luís não

é uma cidade que lhe possibilitaria a concretização desse sonho. Foi taxativo a esse respeito:

“Eu não espero sucesso em São Luís do Maranhão”.

Da entrevista realizada com William Freire, um aspecto que se destaca é a importância

que o cantor dá às músicas em evidência na mídia. Segundo o que ele relatou, essas músicas

tem um papel-chave na organização do repertório porque garantem uma resposta mais fácil do

público. Esse é, aliás, um dos fatores apontados como justificativa para o pequeno espaço

encontrado pelas músicas autorais nas apresentações: a preferência do público local pelo que já

faz sucesso em detrimento de músicas desconhecidas.

5.3.5 Kaique Mamede

O cantor Kaique Mamede, cujo nome de batismo é Carlos Henrique, nasceu em Goiânia,

capital do estado de Goiás, em 1992. Mas foi criado na cidade de Orizona, localizada a cerca

de centro e trinta quilômetros de onde nasceu. Com a separação dos pais, ocorrida no início da

década de 2000, mudou-se com a mãe para a cidade de Itaguaru. Em 2004, teve seu primeiro

contato com o universo da música profissional. Tornou-se violonista freelancer, tocando para

duplas sertanejas em Goiás. Nessa época, contudo, conforme relatou, não tinha a menor

pretensão de se tornar cantor.

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Aprendeu a tocar violão com um amigo, que lhe passou os princípios básicos a respeito

do instrumento musical. Usava músicas sertanejas para se aperfeiçoar. “Eu cresci ouvindo

sertanejo e peguei o violão para aprender a tocar sertanejo. Eu sempre tive facilidade pra escutar

e pegar as músicas”. Declarou, entretanto, que não teve uma infância musical e nenhum parente

próximo pode ser responsabilizado pelo interesse de Kaique por música. Ainda com relação aos

instrumentos musicais, o artista contou que fez uma tentativa de aprender a tocar viola caipira,

mas não teve a oportunidade de dar continuidade aos estudos.

A centralidade da mídia na formação da identidade artística de Kaique também foi

evidenciada por ele na entrevista. O contato com a música sertaneja se dava, basicamente,

através dos meios de comunicação, especialmente pelo rádio e pela televisão. O sucesso

alcançado pelos irmãos Leandro & Leonardo e Zezé di Camargo & Luciano, provenientes de

Goiás, fizeram com que as músicas desse segmento fossem exaustivamente executadas naquele

estado. Mas há, na trajetória de Kaique, um diferencial em relação aos demais artistas: as

experiências que viveu no campo, nas fazendas do interior, aproximaram-no ainda mais do

gênero musical. Sobre o que costumava ouvir na infância, através do rádio, citou: Bruno &

Marrone e as duplas mencionadas acima. “Meu padrinho gostava muito de moda de viola.

Quando eu fui morar com ele, conheci Tião Carreiro & Pardinho”, completou.

Em 2009, Kaique foi apresentado ao cantor Luckas Seabra, que precisava de um

violonista. Passaram a se apresentar juntos, mas não como dupla, em bares localizados na

cidade de Ceres e em cidades vizinhas, ainda no estado de Goiás. Incentivados por amigos e

familiares, e com o apoio de um empresário que morava, na época, em São Luís, montaram

uma dupla sertaneja.

No início da década de 2010, com 17 anos, Kaique se mudou para São Luís. Na dupla

recém-formada, era responsável pela segunda voz. Entretanto, não tinha nenhuma experiência,

a não ser aquela adquirida nos tempos em que trabalhou na noite como violonista. No começo

de 2011, porém, a dupla se desfez. A causa teria sido divergências com Luckas. Com o fim da

dupla, Kaique ficou sem trabalho durante algum tempo. Voltou para Goiás no intuito de

encontrar um novo parceiro, o que não deu certo. As duas tentativas feitas foram frustradas, o

que o levou a começar a preparar sua voz, junto a um fonoaudiólogo e um professor de canto,

para cantar em primeira voz. Chegou a fazer aulas de canto disponibilizadas no YouTube,

declarou.

Nesse período, manteve a rotina de ensaios com a banda. A primeira formação era

composta por bateria, baixo e dois violões. Percussão, sanfona e backing vocal foram

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acrescentadas com o passar do tempo. A estreia de Kaique como artista solo teria acontecido

no final de 2012, para familiares e amigos, em um bar localizado no bairro do Turu.

Pedi que Kaique explicasse o fato de não ter, inicialmente, a pretensão de se tornar

cantor de música sertaneja. Ele começou dizendo que foi algo que aconteceu aos poucos, a

partir da necessidade. Disse que, pela timidez, tinha medo de cantar. Afirmou ser, na

oportunidade, muito crítico em relação ao seu próprio trabalho. A experiência de se apresentar

por quase um ano no Filial Boteco, na região da Lagoa da Jansen, teria sido responsável por

duas coisas, segundo ele: por uma maior divulgação do seu trabalho como artista sertanejo na

cidade de São Luís e pelo aumento na qualidade vocal de suas apresentações. “Foi uma das

primeiras casas que eu toquei aqui, onde eu passei a ser conhecido, ter gente querendo

patrocinar”.

Perguntei, então, o porquê de Kaique cantar música sertaneja. Ao que ele respondeu:

“Eu gosto muito. Sou apaixonado pela música sertaneja. A minha namorada não aguenta mais

ouvir. Eu escuto outros ritmos, mas o que eu estou estudando o tempo todo, vendo quem está

gravando, lançamentos e composições é a música sertaneja”. Sobre suas influências musicais,

Kaique citou as duplas Victor & Leo e Jorge & Mateus, além de Luan Santana e Gusttavo Lima.

Esses artistas teriam influenciado, de certa maneira, seu aprendizado tanto como violonista

quanto como cantor.

Sobre a história do nome que usa nas apresentações, afirmou que Kaique nasceu no

Maranhão, em função da dupla já mencionada que formava com Luckas. Marca, segundo ele,

uma nova etapa da sua vida, em que começou a trabalhar profissionalmente com música – não

apenas como músico, mas também como intérprete.

Kaique mencionou que quando chegou em São Luís, no final de 2010, havia apenas

cinco artistas, entre duplas e cantores em carreira solo, que faziam música sertaneja na cidade.

O espaço a ser preenchido ainda era grande. Enquanto dupla, tinham uma agenda que ocupava

a semana inteira. Kaique comentou que naquele momento o sertanejo universitário se espalhava

por todo o país e São Luís acompanhava o ritmo. Sua primeira experiência como artista solo,

entretanto, teve um público muito pequeno, composto basicamente por parentes e amigos, no

final de 2012. Foi no interior do estado, na cidade de Urbano Santos, que teve que lidar com

um grande público. Segundo ele, o maior da sua carreira. Em um festejo realizado na cidade,

apresentou-se para cerca de sete mil pessoas.

Depois que a dupla com Luckas se desfez, o cantor passou a morar com a família da

namorada, que se envolveu com o trabalho do artista. A mãe e o pai de Larissa assumiram

papéis importantes como empresários e patrocinadores. Larissa se tornou produtora,

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respondendo pela agenda. Isso deu autonomia para que Kaique pudesse investir tempo no

trabalho de composição, escolha do repertório, ensaios e preparação das apresentações.

Entre as dificuldades enumeradas pelo cantor para a fixação da dupla Luckas & Kaique

na cidade de São Luís estavam a formação da banda, uma vez que os músicos locais não

conheciam os cantores, e a criação de uma agenda de apresentações, já que os proprietários dos

bares e casas de shows exigiam que eles tivessem uma banda completa. Na fase de artista solo,

um novo problema que o cantor precisou enfrentar foi com a voz. Estava acostumado a fazer a

segunda voz da dupla e passar a cantar em primeira voz teria gerado muitas críticas,

principalmente de músicos.

Perguntei se Kaique já havia pensado em deixar de cantar música sertaneja para cantar

outro gênero musical. Ele respondeu que não. Disse que sua preferência era por esse gênero, e

que seu repertório era bastante amplo, desde músicas mais antigas até músicas mais novas.

Uma apresentação de Kaique Mamede tem duração média de duas horas. Mas no

começo da carreira, tocou embaixo do sol por cerca de quatro horas em um evento particular.

“Hoje a gente toca em casa com ar condicionado, por duas horas. Tem que dar muito valor.

Acho que todo mundo já passou por um aperreio assim”. Na época em que a entrevista foi feita,

o artista fazia três apresentações por semana: duas no Beach Bar e uma no Chopp Cancun. Uma

das apresentações no Beach Bar era um projeto acústico, com um repertório mais romântico e

músicas mais antigas. Nas outras apresentações, o repertório era mais dançante, voltado para

músicas mais atuais.

Figura 23 – Kaique Mamede em apresentação no Beach Bar

Fonte: Perfil oficial de Kaique Mamede no Instagram.

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Sobre a escolha do repertório, Kaique falou primeiro sobre suas próprias composições

e as músicas que gravou no CD promocional. Limitou-se a dizer que são músicas que não se

tornaram sucesso. Portanto, monta o repertório dos shows a partir de músicas conhecidas, de

outros artistas. “Eu fico de olho no que está na boca da galera. Eu vejo músicas que os artistas

já reconhecidos estão lançando”. Ele pontuou ainda que recebe muitas indicações de músicas

dos amigos que moram em Goiás, o que, de certa maneira, é um diferencial.

Kaique fez uma comparação entre o público do seu estado de origem e o público

maranhense, em relação ao consumo de música sertaneja:

Lá o pessoal gosta muito de sertanejo romântico. Aqui o pessoal gosta mais do dançante e menos um pouco do romântico. Meu show é caracterizado por pegar músicas que estão lançando na internet, têm mais visualizações no YouTube, que eu vejo tocar nas rádios daqui e que pedem no show.

Kaique ensaiava, pelo que indicou na entrevista, uma vez por semana com a banda

composta por violonista, guitarrista, baterista, baixista e tecladista. A quantidade de ensaios

aumentava quando ocorria, por exemplo, a substituição de algum músico. Segundo ele, o

próprio mercado local leva a mudanças frequentes na formação da banda.

Falamos, então, sobre as vantagens e desvantagens de ser um artista em carreira solo.

Ele respondeu que cantar em dupla é como ter um sócio. Ele vivenciou essa experiência em três

oportunidades desde que chegou a São Luís. Dentro do gênero sertanejo, cantar em dupla seria,

de acordo com Kaique, esteticamente mais interessante. No caso de músicas românticas, ele

afirmou que é muito bom ter uma segunda voz. No show, inclusive, dividir a interação com o

público com um parceiro também seria mais proveitoso do que fazer isso sozinho. A rotina de

um artista solo é, para ele, bem mais cansativa. Contudo, a partir das experiências mal sucedidas

que vivenciou na formação de duplas, concluiu: “Eu acredito que dupla dá certo quando os dois

são da mesma família, são irmãos”.

Kaique Mamede também é compositor. Afirmou na entrevista ter poucas composições,

umas oito. Usa as histórias dos amigos e situações que observa nos shows como fonte para as

letras que escreve. Registrou duas dessas músicas no CD autoral que gravou com o patrocínio

do pai da namorada. Estava com um projeto de gravar, até o final de 2014, um disco

exclusivamente autoral. Nesse ponto, afirmou que inclui suas músicas nas apresentações. A

primeira, chamada Correndo atrás, conta a história de um adolescente que se apaixonou por

uma colega da escola, conseguiu ganhar um beijo, mas depois teve que correr atrás da menina,

que não queria manter um relacionamento com ele. A segunda, conforme Kaique descreveu,

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chamada Livre e desapegado, conta a história de um rapaz que foi deixado pela namorada, ou

conforme ele declarou, “levou um pé na bunda”, e resolveu ir à festa com os amigos na tentativa

de esquecer o relacionamento que não deu certo.

O lançamento do CD de Kaique Mamede virou notícia de jornal. Publicada na página

do jornal O Estado do Maranhão, a matéria representava o cantor como um dos artistas mais

jovens a compor a cena local do sertanejo universitário. Dava destaque ao fato de que o CD

trazia músicas autorais e de compositores locais. Mais de sete mil cópias do disco teriam sido

distribuídas, relata o texto que ainda antecipa os planos do artista de se apresentar em sua cidade

natal87.

Além de passar bastante tempo por dia ouvindo música sertaneja, procurando por

lançamentos e estudando, Kaique afirmou que também costuma ouvir músicas de outros

gêneros musicais, como MPB, música eletrônica, axé e pagode. São músicas que acabavam, de

certa maneira, influenciando as apresentações: “O público aqui de São Luís é um público que

gosta de tudo. Se você for tocar em Goiás, pode ficar tranquilo. Leva só um repertório sertanejo

e pronto. Aqui você tem que variar um pouco mais para o pessoal gostar. Eles pedem axé,

pedem pagode”. Perguntei, aproveitando esse relato, se ele gosta quando o público pede

músicas. Respondeu que gosta quando ele sabe cantar o que foi pedido. É que, segundo ele,

quando ele não sabe a música, a pessoa que pediu fica contrariada. Disse ainda que costuma

atender até pedido de Parabéns pra você. Mas não é o único que faz isso; é muito frequente a

presença de algum aniversariante nas festas, o que leva os cantores a incluírem um momento

na apresentação para essa música.

Assisti a várias apresentações de Kaique Mamede no tempo em que estive em campo.

Numa dessas apresentações, realizadas no bar Por Acaso, o cantor tocou violão e estava

acompanhado por outro violonista, um baterista e um baixista. Usava uma camisa social

estampada e bota. Tocou músicas mais antigas, de duplas como Zezé di Camargo & Luciano e

Bruno & Marrone, e também músicas mais recentes, de Jorge & Mateus e Henrique & Juliano.

Sempre pedia que o público presente no local participasse do show, cantando as músicas junto

com ele. A apresentação durou cerca de duas horas e meia. Finalizou com a música Maus

87 A matéria intitulada Kaique Mamede em projeto individual, publicada em 21 de maio de 2014, pode ser acessada no endereço: http://imirante.com/oestadoma/noticias/2014/05/21/kaique-mamede-em-projeto-individual.shtml. Acesso em: 03 out. 2015.

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Bocados, gravada pelo cantor sertanejo Cristiano Araújo88, que fez parte do repertório de todas

as duplas sertanejas e cantores em carreira solo no ano de 2014.

Outro ponto a ser abordado na entrevista foi o papel desempenhado pelos

patrocinadores. Kaique observou que esses são, normalmente, pessoas que assistiram a algum

show e quiseram ajudar financeiramente. Ele lembrou que na época em que cantava no Filial

Boteco, fazia, com a ajuda de um patrocinador, copos com a sua marca para distribuir. Citou

ainda a ajuda que recebeu do dono de uma empresa local de transportes, o que teria viabilizado

diversas apresentações pelo interior do estado. Mencionou também o patrocínio de uma loja

que fornecia brindes para serem dados nos shows e ainda o de uma ótica. O patrocínio mais

expressivo, porém, teria vindo do pai de Larissa: a gravação do CD promocional.

Além dos gastos com os músicos e com transporte, um gasto que é muito frequente para

alguns dos artistas locais, entre os quais Kaique está inserido, é com a aparência. Alguns

chegam a receber, como já observado, patrocínio de lojas de roupas, academia de ginástica e

salão de beleza. Perguntei a Kaique se ele tinha a preocupação de manter a aparência de um

artista sertanejo, no que diz respeito a figurino, corte de cabelo e acessórios. Ele respondeu que

essa é uma preocupação de todos os cantores. Lembrou que há algum tempo, usava-se chapéu

como acessório para criar identificação com o gênero. Hoje em dia, a preocupação está mais

voltada para o tipo de corte de cabelo e para peças de roupa. Ele, entretanto, diferencia-se dos

demais cantores locais por adotar um estilo mais social nas roupas que usa na maioria dos

shows: camisa de manga comprida e sapato. Às vezes, usa cinto com uma fivela um pouco

maior.

Uma perspectiva a respeito do público que frequenta as festas de São Luís foi

apresentada por Kaique quando perguntei se uma apresentação na capital era muito diferente

de uma apresentação no interior do estado. Ele disse: “Aqui parece que é só mais um. O pessoal

já está acostumado. Já conhece a casa, já conhece tudo, já conhece como funciona mais ou

menos o show. No interior, não. Lá você parece ser um cara super famoso. E tem mais assédio”.

Já em relação às apresentações de outros artistas locais do segmento sertanejo, Kaique

afirmou que prefere não as assistir. Justifica dizendo que não gostaria de se sentir influenciado

a repetir coisas que outros cantores estão fazendo. Prefere dar ouvidos ao público que o

acompanha, quando comentam a respeito do repertório, fazem pedidos de uma música

específica e falam sobre a qualidade do som. “Eu sinto falta de ter mais feedback”, completou.

88 O cantor Cristiano Araújo, um dos nomes da vertente universitária da música sertaneja, morreu em um acidente automobilístico no dia 24 de junho de 2015.

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Kaique ressaltou, em um outro momento da entrevista, que os meios de comunicação,

em especial o rádio e sites de redes sociais são importantes para a divulgação do trabalho de

qualquer artista. Mas fez a ressalva de que não buscou emplacar as músicas do CD promocional

nas emissoras de rádio. Planejava fazer isso com o disco no qual estava trabalhando na época.

O disco novo, ele disse, seria exclusivamente autoral. A internet é o ambiente mais utilizado

pelo artista, que tem uma página no Facebook e um perfil no Instagram. Completando a

estratégia de relacionamento com o público e divulgação de agenda, Kaique faz uso de um

site89, de onde é possível, inclusive, fazer downloads das músicas do artista.

O cantor apontou a importância dos sites de redes sociais para a sua carreira como

artista: “As redes sociais aproximam a gente do público. Às vezes a pessoa me vê no show, não

fala comigo, mas tira uma foto de longe e me marca no Instagram ou no Facebook: ‘Curtindo

Kaique Mamede em tal lugar’”. Essa prática está relacionada, conforme já indicado, com a

possibilidade de interação direta entre o artista e aqueles que o acompanham.

Abaixo, um exemplo do material que circula nos sites de redes sociais e aplicativos

ligados ao cantor Kaique Mamede:

Figura 24 – Flyer digital de apresentação de Kaique Mamede no Beach Bar

Fonte: Página de Kaique Mamede no Facebook.

Outro ponto importante sobre o qual tratamos: o hábito de consumir música sertaneja

através dos meios de comunicação de massa e da internet. O hábito existia, mas precisava ser

89 O site de Kaique Mamede pode ser acessado no endereço a seguir: http://www.kaiquemamede.com/.

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conciliado com a agenda do cantor. Aos domingos, Kaique tocava, na época da entrevista, no

Beach Bar. Então, não tinha como assistir ao Domingão do Faustão ou ao Fantástico, programas

de televisão veiculados pela Rede Globo que dão bastante abertura para a divulgação da música

sertaneja. Então ele faz o acompanhamento através de blogs especializados em lançamentos de

músicas e na divulgação da agenda dos artistas sertanejos de renome. Essa busca, ele sugere, é

importante para a renovação do repertório.

As emissoras de rádio locais teriam, segundo Kaique, – diferentemente do que ocorre

em Goiás –, pouca participação nesse processo. Convém que seja dito, a propósito, que os dois

únicos programas locais voltados exclusivamente para a música sertaneja são o programa

Balada Sertaneja, veiculado pela Difusora FM, e o Manhã Sertaneja, veiculado pela Mais FM.

Abordamos, em seguida, a aproximação da música sertaneja a outros gêneros musicais,

tais como o arrocha, o forró, o funk e a música pop. Kaique afirmou que gosta da aproximação,

inclusive pelo fato de ter descoberto que gostava de outros estilos de música que foram

introduzidos à música sertaneja. Ele citou, entretanto, o que teria ouvido de Sérgio Reis em um

programa de televisão: que ninguém hoje toca sertanejo. E completou:

O sertanejo, o próprio nome já diz: é falar do sertão, do cara que tá morando no campo. As músicas de antigamente só falam disso. Ou fala disso ou fala de amor. Tem várias músicas do Tião Carreiro que são como lições de vida. O que mudou foi a pegada de Chitãozinho, da época do Fio de Cabelo, que fez a dupla ir para o auge.

Kaique Mamede fez observações sobre as transformações pelas quais a música sertaneja

foi passando ao longo das últimas décadas. Falou sobre a introdução das guitarras, da

aproximação com o universo pop, do som diferenciado produzido pela dupla Jorge & Mateus,

ao falar de amor usando violões e sanfona. Ponderou sobre a influência do arrocha baiano.

Concluiu que todas essas mudanças influenciam, de alguma forma, quem está trabalhando com

música sertaneja hoje.

Pedi, então, que Kaique fizesse uma análise da noite em São Luís, no que se refere à

quantidade de casas e a diversidade de atrações. Ele respondeu que a cidade oferece muitos

lugares. A variedade é, para ele, um aspecto bastante positivo. Avalia que de 2010 a 2013,

houve um crescimento das opções ligadas à música sertaneja na cidade. De qualquer maneira,

disse que embora goste de sair para festas onde há música sertaneja e forró, por conta da agenda

de shows, prefere utilizar o tempo livre para ficar em casa com a família.

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Sobre os planos para o futuro como artista, Kaique disse que almeja o sucesso. Falou

sobre exemplos de pessoas que trabalharam com música durante muito tempo e, de repente,

tornaram-se conhecidos no país todo. Finalizou assim:

Eu almejo fazer sucesso com as minhas músicas, compondo. Sou iniciante ainda, muito novinho. Tem muita gente muito mais velha trabalhando nisso, muito mais experiente. Mas apesar de ser novo, eu sou muito crítico comigo mesmo e procuro sempre aprender, melhorar no que estou fazendo. Não me considero um bom cantor ainda, nem um bom músico nem compositor. Mas estou fazendo minhas músicas e esperando acontecer. O que faz o sucesso é o seu trabalho.

É digno de nota que Kaique Mamede tenha deixado o estado de Goiás para tentar a vida

como artista sertanejo em São Luís. Esse aspecto contraria, de certa maneira, a tendência que

leva os artistas a se mudarem para o eixo São Paulo-Goiás. No caso de Kaique, a mudança se

deu em virtude da oportunidade de explorar um cenário que, em 2010, contava com poucos

representantes ligados à música sertaneja. Também é relevante que esse artista tenha tido a

experiência de crescer no interior, no contexto rural, aspecto que não exclui o papel da mídia

na sua formação artística, indicado no relato a respeito da organização do repertório das

apresentações ao vivo.

5.3.6 Hilton & Ódon

Ódon nasceu em 1990 e Hilton, em 1992. Ambos nasceram em Belém, capital do estado

do Pará. No começo da década de 2000, mudaram-se para São Luís. Na oportunidade, o pai

deles veio trabalhar na campanha política do irmão, candidato a vereador. Tiveram o primeiro

contato com música na igreja evangélica que frequentavam na infância. Ódon começou a cantar

na igreja com oito anos de idade. Cantar profissionalmente, entretanto, só aconteceu após a

chegada em São Luís. Ganhou um violão de presente do pai e tratou de aprender a tocar o

instrumento, primeiro em casa, sozinho, e depois com o acompanhamento de um professor. Nas

aulas, tocava músicas de gêneros como MPB, bossa nova e música sertaneja. Fez também aula

de canto, com o objetivo de se aperfeiçoar. Já Hilton, que também cantou no coral da igreja

quando era criança, toca teclado e violão. Fez cerca de dois anos de aula para aprender a tocar

os instrumentos. Na entrevista, Hilton afirmou ser apreciador da música internacional, com um

gosto bastante variado. Mencionou, em relação a esse segmento, a cantora canadense Céline

Dion. Já no tocante à música sertaneja, citou a dupla Jorge & Mateus como sendo a sua

preferida.

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Ainda na infância, Ódon sonhava em ter uma carreira como cantor profissional. “Eu

queria cantar, viajar, fazer show. Eu queria muito aquilo pra mim e não estava satisfeito de estar

só cantando na igreja. Eu queria algo mais, mas eu não sabia por onde começar”. Essa vontade

tem origem, de acordo com ele, na própria família. Os irmãos têm parentes próximos que são

cantores e o avô, autodidata, era considerado pelos amigos um grande violonista.

A carreira de Ódon começou primeiro. Enquanto Hilton estudava canto e buscava se

aperfeiçoar tecnicamente, Ódon já estava envolvido em vários projetos musicais diferentes.

Primeiro, passou a cantar seresta na banda Novo Estilo, formada por amigos do pai. Mesmo

tendo iniciado a carreira nesse estilo musical, afirmou ter uma influência bastante variada. A

lista de artistas citados por ele, além de reunir nomes de gêneros bem distintos, é longa: Marisa

Monte, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Bruno & Marrone, Edson & Hudson, Zezé

di Camargo & Luciano, Jorge & Mateus e Gusttavo Lima. Embora não negue a influência dos

cantores que mencionou, Ódon faz uma ressalva que remete a uma questão central para os

interesses desta pesquisa, isto é, a constituição de uma identidade de cantor sertanejo:

Eu admiro o trabalho de várias pessoas. Mas eu não tenho aquele no qual eu me inspire. Porque eu criei uma identidade própria. É algo que sempre comentam sobre os nossos shows. A gente não tenta imitar outras pessoas. Eu tenho uma identidade que eu criei, tanto no cantar quanto no envolvimento no palco. Eu gosto de ter a minha cara.

Após a apresentação de uma lista tão heterogênea, foi inevitável perguntar a Ódon o

motivo de ele cantar, afinal, música sertaneja. A resposta remeteu, mais uma vez, à infância e

à centralidade da mídia como formadora desse interesse pelo gênero musical:

A gente tem vocação para o sertanejo. Quando começamos a cantar, a nossa voz sempre puxava para o sertanejo. A gente era muito criança e achava que era música de velho. Conforme a gente foi amadurecendo, a gente foi entendendo mais a música e começou a gostar. Eu passei a ouvir sertanejo, bolero, as músicas que meu pai e meu avô ouviam. Eu comecei a ter um outro ouvido pra esse tipo de música.

A mesma pergunta foi feita a Hilton, que afirmou que o pai foi o responsável por

perceber a harmonia existente entre as vozes dos irmãos. Segundo ele, ao ver os irmãos

cantando juntos no karaoke, o pai teria percebido a identificação com a música sertaneja. A

questão da vocação artística é menos evidente em Hilton do que no irmão e parceiro.

A dupla nasceu na época em que Ódon cantava seresta. Hilton passou a fazer pequenas

participações nas apresentações da banda da qual Ódon era vocalista. Depois de mudanças na

formação do grupo, os irmãos passaram a cantar juntos. Mas isso não durou muito. Ódon

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recebeu um convite para cantar numa banda de tecnobrega, gênero musical típico do estado do

Pará. Fez várias viagens com a banda pelo Maranhão e por outros estados, tendo se apresentado,

ele contou, no programa da Xuxa. A experiência teria durado cerca de um ano e meio.

Hilton deu a entender, em vários momentos, que não tinha a mesma intenção do irmão

de se tornar um cantor profissional. Para resolver a questão de uma vez, questionei-o

diretamente. Ele respondeu que não tinha mesmo esse intuito. E declarou: “Ódon sempre foi

mais ansioso que eu. Ele sempre pensou que queria cantar. Eu acho que ele sempre gostou mais

do que eu de música. Eu comecei a gostar de uns tempos pra cá, na verdade. Ele sempre levou

a música a sério e eu sempre admirei o jeito dele”.

A vontade de montar a dupla sertaneja com o irmão fez com que Ódon deixasse a banda

de tecnobrega. “Era um projeto que a gente queria levar pra frente, então tudo o que eu fazia

era momentâneo. Eu estava sempre querendo voltar para o sertanejo”, disse. Antes, porém, de

o projeto se concretizar, outro convite levou Ódon para uma banda de swingueira, ritmo cuja

origem seria o estado da Bahia. Hilton ficou no grupo de seresta e Ódon partiu para esse novo

momento da trajetória como cantor profissional. Foram apenas seis meses na banda, da qual

teve que se afastar para fazer um tratamento de saúde.

Finalmente, após a recuperação de Ódon, os irmãos passaram a cantar como dupla

sertaneja. Ódon narrou o início da carreira dos irmãos como um acontecimento inusitado.

Estavam numa reunião familiar e foram incentivados a cantar algumas músicas. Um dos

convidados, amigo da família, teria se empolgado com a apresentação dos irmãos e incentivado

os presentes a investirem na carreira musical deles. A aposta de que os irmãos fariam sucesso

como dupla foi tão grande que um show foi providenciado para poucos dias depois dessa

reunião, na Choppana. Esse convidado era amigo do dono do referido bar, e o incentivou a

chamar Hilton e Ódon para se apresentarem no local.

Sobre o momento, Ódon disse:

A gente não sabia nem como começar. Não tinha músico, não tinha repertório, não tinha nada. Na segunda-feira, a gente correu atrás de tudo. Conseguimos dois violonistas, um baterista. Foi uma correria. Deu pra ensaiar doze músicas, para um show que seria de duas horas, duas horas e meia. Nós ficamos super preocupados. Não tínhamos nem roupa adequada para cantar sertanejo.

Após a primeira apresentação, ocorrida em 2011, a dupla passou a fazer shows com

relativa frequência na Choppana. Ódon disse que se sentiu realizado com a experiência.

Emocionou-se, ele disse, ao cantar uma das músicas do repertório. “Eu senti que era um sonho

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que estava se realizando”. Hilton, contudo, visivelmente mais tímido que o irmão, encarou esse

momento com bastante medo. Estava, segundo afirmou, muito nervoso.

O show rendeu uma participação em um programa de televisão local, o que,

consequentemente, levou a um contato com um empresário – que contribuiu para a rápida

disseminação do nome dos irmãos pela cidade. Ódon conta que as apresentações por semana

saltaram de uma para cinco. Eles passaram a se apresentar ainda no interior do estado. Além da

Choppana, faziam shows no Daquele Jeito, Patrimônio Show e Jurerê, bar que funcionava na

região da Lagoa da Jansen. Desde então, os irmãos se sustentam exclusivamente com o que

ganham trabalhando com música.

Além da banda que acompanha a dupla, a equipe de trabalho conta com a participação

de mais três pessoas: o pai dos irmãos, que atualmente é o empresário, um roadie e uma

produtora, responsável pela agenda e pelo marketing.

Perguntei a Ódon como o repertório da dupla foi montado no começo da carreira. Ele

respondeu que a primeira música do repertório, em 2011, era Amo noite e dia, da dupla Jorge

& Mateus. “Nosso repertório era muito eclético e ao longo do tempo a gente vem mantendo

esse mesmo padrão. A gente toca músicas românticas, músicas mais dançantes, e vêm mantendo

essa dinâmica nos shows”. Ódon não foi específico quanto a esse aspecto, deixando de

mencionar outros artistas do gênero além da dupla citada.

Perguntei a ele, seguindo essa temática, como a experiência de participar de outras

bandas, ligadas a outros gêneros musicais, influenciou a formação dele como artista. Ele

respondeu:

Foi um aprendizado muito grande que eu adquiri durante esse tempo. Cada lugar que eu passei, eu aprendi algo. A minha formação como artista veio dessa mistura. Com o tecnobrega, eu aprendi a ser performático no palco. O tecnobrega exige isso e eu aprendi a ser artista. Aprendi a ter presença de palco, a me portar frente às câmeras. Na banda de swingueira eu aprendi a dançar. Na seresta eu aprendi a educar mais a minha voz. Eu passava cerca de cinco horas cantando na época da seresta, o que era muito cansativo. Mas é um aprendizado muito grande. Você nem percebe, mas você está adquirindo experiência.

As apresentações da dupla Hilton & Ódon duram, em média, duas horas. Eles faziam,

na época da entrevista, cerca de cinco shows por semana, em bares como o Saloon Brasil, Beach

Bar e Adventure. Eram acompanhados por cinco músicos: baterista, baixista, guitarrista,

tecladista e violonista. Cobram cachê por apresentação, ao contrário do que faziam no começo

da carreira, em que eram pagos por meio do recolhimento de couvert artístico. Além disso, a

dupla também é patrocinada por empresas locais.

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Sobre a importância dos patrocinadores, Ódon disse que eles são fundamentais, tanto na

parte financeira quanto no figurino e na estética. É importante, ele disse, para a manutenção da

imagem da dupla. Há, entre os patrocinadores, uma loja de roupas, um dentista e uma academia

de musculação.

Perguntei a Ódon se ele tinha a preocupação de manter um figurino próprio de artista

sertanejo. Ele respondeu que tem a preocupação de ter uma aparência boa. E completou:

Eu não penso em me parecer com um cantor sertanejo. Eu vivo mudando. Minha mãe é cabeleireira e eu estou sempre mudando o cabelo. Eu tento fazer um estilo. Eu vou procurando na internet. Eu quero estar sempre me sentindo bem e vestido bem, mas não necessariamente como sertanejo.

Sobre esse aspecto, Hilton afirmou: “Quando eu saio pra cantar, eu me preocupo muito

com o visual porque eu sei que vai ter muitas pessoas me olhando naquela festa. Eu tento não

fugir do segmento sertanejo. Às vezes eu mudo um pouco, mas continua parecendo por causa

do chapéu, que eu uso sempre”.

Figura 25 – Apresentação da dupla Hilton & Ódon no Beach Bar

Fonte: Perfil oficial da dupla Hilton & Ódon no Instagram.

Ódon não foi muito específico quanto à formação do repertório dos shows no início da

carreira e o quadro apresentado sobre a fase atual da dupla não foi bastante diferente. Começou

dizendo que o repertório era bastante amplo e que a seleção era feita como base no local da

apresentação. Em bares como o Adventure, o repertório era mais romântico, voltado para

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músicas mais antigas do segmento sertanejo. Nesse ponto, ao falar sobre essas músicas, Ódon

usou o termo “sertanejo raiz”. Perguntei a ele qual sentido ele dava ao termo. Ele respondeu:

“Sertanejo raiz a gente chama as músicas do Chitãozinho & Xororó, do Zezé di Camargo &

Luciano, as guarânias, João Mineiro & Marciano, músicas bem do começo”. Outro tipo de

repertório, mais voltado para as casas de shows, era composto pelo chamado sertanejo

universitário e pelo que chamou de “funknejo”. Os critérios para que determinada música entre

ou saia do repertório eram definidos a cada semana, no ensaio. O repertório se dividia em

blocos. As músicas mais atuais eram tocadas nos primeiros blocos, empurrando as músicas mais

antigas para os blocos subsequentes.

A reação do público, de acordo com Hilton, é o termômetro. Segundo ele, dá para

perceber como as pessoas reagem a cada música executada. Mesmo durante a apresentação de

outras duplas, às quais eventualmente os irmãos assistem, seria possível avaliar se determinada

música deve ou não permanecer no repertório. Entre os artistas que formavam o repertório da

dupla na época em que a entrevista foi realizada, Hilton citou Jorge & Mateus, Munhoz &

Mariano, Jads & Jadson, Bruno & Marrone e Zezé di Camargo & Luciano.

Considerando que Ódon vivenciou a experiência de ter uma carreira individual, em

dupla, em trio e mesmo em uma banda, perguntei a ele quais as vantagens de cantar sozinho em

comparação às demais formações. Entre as vantagens, mencionou o fato de ter o espaço no

palco apenas para si, o que seria muito importante para o aprendizado do que é ser artista. Em

compensação, ele disse que a responsabilidade também aumenta. “Hoje em dia, eu não sei se

eu conseguiria cantar sozinho. Assim como eu sinto necessidade do apoio do meu irmão, eu sei

que ele necessita do meu apoio”.

Ódon é compositor, além de cantor. Mas tem o hábito de compor e não gravar a

composição, o que o leva a perder, por esquecimento, o material. Gravou no CD promocional

da dupla, não lançado até o momento em que essa entrevista foi realizada, algumas de suas

composições. O lugar onde os irmãos moram, uma chácara, é considerado por eles bastante

inspirador. A dupla canta algumas de suas composições nas suas apresentações, embora nunca

tenham feito uma apresentação exclusivamente autoral.

Num determinado ponto da entrevista, com base no relato feito anteriormente, eu disse

a Ódon que imaginava que ele não ouvisse apenas música sertaneja. Ele concordou

prontamente, dizendo que ouve muito MPB. Acrescentou o seguinte: “Eu gosto muito de

músicas que não têm muita exposição através da mídia”. Esse contato com outros gêneros

musicais teria implicações, por exemplo, no uso da voz e no processo de composição.

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Já Hilton, além de ouvir música sertaneja, ouve música pop internacional e música

gospel. Sugeriu, inclusive, que tem a intenção de gravar um CD nesse segmento. Sobre as

influências que sofre por esses outros gêneros musicais na formação de sua identidade como

artista, disse: “Desde pequeno, sempre ouvi música internacional. Eu vejo as performances dos

artistas internacionais e acho impressionante o jeito deles no palco, tanto de se comunicar com

o público quanto de cantar. E isso me influencia bastante na hora de cantar também”.

Nas apresentações da dupla, há espaço para pedidos musicais por parte do público. Ódon

disse que essa é uma prática que os irmãos incentivam. Mas há situações em que eles não sabem

a música que foi pedida ou que o pedido é de uma música completamente fora do contexto,

como em uma oportunidade em que alguém pediu um tecnobrega. “Mas a nossa preocupação

maior”, afirmou, “é sempre deixar o público satisfeito no nosso show”.

A primeira vez que assisti a uma apresentação da dupla foi no Etc&Tal. Depois, os vi

cantar na Lagoa House e no São & Salvo. Como elemento que evoca a identificação com a

música sertaneja, Hilton sempre usava chapéu nas apresentações. No repertório de um show

realizado no Beach Bar, em janeiro de 2015, estavam músicas das duplas João Lucas & Marcelo

e Jorge & Mateus, da banda de forró Garota Safada, dos cantores Matheus Fernandes, Luan

Santana e Cristiano Araújo e até do DJ sueco Avicii.

Quando tem tempo e oportunidade, Ódon costuma assistir a apresentações de outros

artistas locais. Mas o objetivo, além de conhecer o trabalho, é buscar ainda mais se diferenciar

deles. O fato de estarem na mesma cidade, ele disse, cantando no mesmo segmento, exigiria

performances diferentes. Como mencionado, a entrevista com os irmãos foi realizada em

outubro de 2014. Eu já estava no campo há dez meses. Algo que a observação já me permitia

inferir é que o repertório dos artistas locais era basicamente o mesmo, com poucas músicas

cantadas com exclusividade. Geralmente, o repertório se diferenciava apenas no momento em

que músicas autorais eram eventualmente interpretadas. Isso se justifica, de certa maneira, em

função de os artistas entrevistados organizarem seus repertórios a partir do mesmo lugar: a

mídia.

Passamos a discutir a importância dos meios de comunicação. Primeiro, Ódon observou

que são meios muito importantes para a divulgação do trabalho dos irmãos. Afirmou que eles

têm muitos contatos em canais de televisão e emissoras de rádio locais, o que facilita bastante

a promoção do que a dupla realiza no cenário sertanejo de São Luís. Em seguida, mencionou

que o trabalho de divulgação que a dupla realiza com mais frequência é por meio da internet,

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em especial através de site próprio90, dos sites de redes sociais, aplicativos e um canal no

YouTube.

Justificam a utilização de todo esse aparato da seguinte forma: “O contato com a rede

social é fundamental. A gente tem uma preocupação muito grande com a divulgação da banda,

para as pessoas sempre ficarem sabendo o que a gente está fazendo. Hoje em dia, o maior meio

de comunicação é a internet. A gente foca muito no Instagram”.

O flyer a seguir foi amplamente divulgado nos sites de redes sociais e aplicativos.

Promovia a festa de aniversário de três anos da dupla, evento realizado na casa de shows Lagoa

House.

Figura 26 – Flyer digital do aniversário da dupla Hilton & Ódon

Fonte: Página da casa de shows Lagoa House no Facebook.

No site, que não é tão utilizado quanto a página do Facebook, a dupla disponibiliza

gravações de shows para serem baixadas por quem acessa esse canal. O download é gratuito.

Tratamos do consumo que os irmãos fazem do que é veiculado pelos meios de

comunicação e que remete à música sertaneja. Sobre isso, Ódon disse que tem o costume de

acompanhar sempre aquilo que é transmitido pela televisão e que normalmente se apropria de

algum detalhe ou outro daquilo que assiste. “Quando tem alguma coisa ligada ao sertanejo eu

sempre procuro assistir. Só que, às vezes, quando vai passar, a gente tem algum compromisso

e fica muito complicado. Então, eu peço pra gravarem pra mim. Ou então, eu vejo no YouTube”.

90 O site da dupla Hilton e Ódon pode ser acessado no endereço a seguir: http://www.hiltoneodon.com.br/.

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Comentei então, com Ódon, que o período de observação havia me levado à constatação

de que a produção autoral não era incentivada. Além disso, que os artistas raramente

executavam músicas próprias nos shows. Pedi que ele me desse sua opinião a respeito do

assunto, ao que ele respondeu:

A gente tem essa dificuldade. Quando fazemos os nossos shows, a gente tenta manter as nossas músicas. Às vezes a gente se chateia um pouco e diz que não vai tocar música nossa, mas eu paro pra pensar e vejo que é um trabalho nosso. Tem que ser divulgado. Por mais que você componha bem, que você faça música boa, mas você ainda não tem um nome, a música não vai repercutir tanto como repercutiria se você estivesse no auge.

Pedi que Hilton e Ódon fizessem, como artistas, uma análise do cenário sertanejo no

país e que a análise contemplasse também o cenário local. Na opinião deles, houve um

crescimento no cenário nacional, o que seria muito bom para todos aqueles que fazem parte

dele. Quanto a São Luís, porém, os irmãos afirmaram que os artistas locais não seriam

valorizados. “As pessoas dão mais valor a quem vem de fora”, disse Ódon, reiterando as

perspectivas de William Freire e Jardel, apresentadas anteriormente.

Quanto à aproximação da música sertaneja com outros gêneros musicais, tais como o

funk, o arrocha e o forró, Ódon disse que há vantagens e desvantagens. “A música, ela é união.

Eu acho importantes essas parcerias com outros gêneros musicais, acho que deve ter. Mas a

mistura descaracteriza tanto uma coisa quanto a outra”.

Hilton e Ódon já receberam alguns prêmios pelo trabalho que realizam como dupla

sertaneja. O primeiro prêmio foi recebido na cidade de Barreirinhas, no interior do Maranhão.

Os outros três foram recebidos na capital. Trata-se do Troféu Inside by Fofa, premiação local

realizada pela jornalista Ilze Rangel, que tem o intuito de homenagear a classe artística, política

e empresarial do estado. Mas esse reconhecimento parece não ter sido suficiente. A ideia de

sair do Maranhão rumo ao eixo Rio-São Paulo já foi levada em conta. Os irmãos receberam um

convite para se mudarem para o Rio de Janeiro, proposta que, de acordo com Ódon, estaria

sendo estudada. É uma proposta tentadora, ele disse. A decisão, contudo, precisaria ser tomada

com calma. O objetivo seria o de mostrar o trabalho da dupla em um outro nível, para alcançar

um público mais amplo. “O Rio e São Paulo são as duas cidades onde você pode mostrar o

trabalho para o Brasil. Tem a possibilidade maior de isso acontecer”, disse Ódon.

Para Hilton, sair de São Luís aumentaria muito a visibilidade do trabalho da dupla:

“Aqui, a gente já deu nosso recado. O que a gente tinha pra fazer aqui, a gente já fez, que é

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levar música para as pessoas. Mas a gente quer ir além disso. A gente quer levar isso mais à

sério. Aparecer na TV, mostrar o nosso trabalho em rede nacional”.

Como artista, a dupla pretende se aprimorar mais, participar de concursos de música e

tentar chegar mais longe. Ódon disse a esse respeito: “O objetivo maior é conseguir ter um

contrato com uma gravadora, ter um empresário que possa bancar a carreira e nos ajudar no

direcionamento para que a dupla fique mais consolidada e alcançar estabilidade”. E Hilton

completou: “Eu pretendo levar a música o mais longe que eu puder levar. Não só no Brasil todo,

mas no mundo afora também”.

Das entrevistas realizadas com a dupla Hilton & Ódon, chama atenção o fato de que eles

são os artistas que mais declararam estar preocupados em manter uma aparência adequada ao

que eles entendem que o público espera de um cantor sertanejo. Os relatos a respeito da

manutenção de um figurino apropriado para os shows, tanto no início da carreira quanto na

época em que eles foram entrevistados, indicam isso. Além desse aspecto, destaca-se o

depoimento de Ódon sobre como as experiências com outros gêneros musicais foram

importantes para a construção de uma identidade que, segundo ele, é peculiar. O papel da mídia,

contudo, não é menor e é explicitado, por exemplo, no relato acerca da escolha e renovação do

repertório.

5.4 UMA ANÁLISE CULTURAL DO CENÁRIO SERTANEJO DE SÃO LUÍS

O cenário ligado à música sertaneja em São Luís se constitui numa relação intensa com

a mídia. Essa relação se evidencia especialmente nos depoimentos que remetem aos primeiros

contatos dos artistas locais com o referido gênero ainda na infância e no que se refere à

organização do repertório.

Trata-se, em primeiro lugar, de uma atividade produtiva não autoral. Isso quer dizer que

o repertório executado nos bares e casas de shows é montado a partir de músicas que já são

sucesso dentro do segmento. Duplas como Jorge & Mateus, Bruno & Marrone e Henrique &

Juliano e cantores como Luan Santana e Lucas Lucco parecem ser os artistas mais apreciados

no cenário investigado. São poucos os artistas locais que incluem músicas próprias nas

apresentações. Quando o fazem, ficam receosos quanto a aceitação do público.

A ênfase colocada na organização do repertório se justifica porque revela que os artistas

que compõem o circuito da música sertaneja em São Luís não têm o hábito de, nas suas

apresentações, incluírem músicas de sua autoria. Organizam o repertório com base nos locais

onde vão se apresentar e com o intuito de agradar ao público que neles estará presente, e não

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pensando em divulgar suas composições. Eles formam seu repertório, conforme demonstrado,

a partir das músicas que alcançaram alguma visibilidade através da mídia, ou seja, por meio do

rádio, da televisão e de sites da internet.

No que tange as composições, a tendência é a utilização de determinadas fórmulas. O

que se buscou, nesse sentido, foi identificar as apropriações. A música do cantor Kaique

Mamede, intitulada Livre e desapegado, é um exemplo. Essa música narra a solução encontrada

para uma história de amor não correspondido. Ao ser dispensado pela menina por quem estava

interessado, o rapaz busca imediatamente encontrar – na balada – uma nova paixão.

Relacionamentos fortuitos e consumo de álcool fazem parte dos elementos mencionados.

Conforme abordado no capítulo que tratou da música sertaneja, esse tipo de letra é recorrente e

faz parte do universo temático da vertente universitária do gênero91. Um outro aspecto merece

destaque: a utilização de uma batida funk incidental antes do refrão, a exemplo do que acontece

em Gatinha assanhada, do cantor Gusttavo Lima. Esses dois recursos evidenciam que a

produção sertaneja local, embora tímida, procura não se distanciar do que é realizado num

contexto mais amplo.

Em segundo lugar, que se trata de uma atividade produtiva relativamente independente,

o que quer dizer que os artistas são os responsáveis diretos pelos custos, seja de contratação de

músicos, transporte, figurino e assessórios, seja pela gravação e prensagem de discos

promocionais. Em outra oportunidade, ao analisar a circulação da música independente

produzida em São Luís (MONTEIRO, 2013), discuti os níveis de dependência econômica em

que artistas de contextos locais, especialmente nos lugares onde não há gravadoras ou selos,

podem ser classificados. O primeiro nível é o da autonomia completa, em que o artista é

responsável por todos os custos do seu trabalho. O segundo nível é o da associação, em que os

artistas se organizam e compartilham os custos coletivamente. O terceiro nível é o da relação

comercial parcial, em que os artistas mantêm algum tipo de relação com uma gravadora ou selo,

que cuida da distribuição dos discos. O último nível de dependência é aquele em que o artista

recorre aos editais públicos para viabilizar seus projetos musicais.

Um quinto nível de dependência foi identificado a partir da análise do cenário da música

sertaneja de São Luís: o dos recursos oriundos de patrocinadores. Observei e ouvi, sobre esse

aspecto, que além do pagamento que recebem nos lugares onde se apresentam, seja através de

cachê acertado previamente ou por meio do couvert artístico recolhido, os artistas locais

costumam ser patrocinados por pessoas ou empresas da cidade. Eles citam os nomes dos

91 Há, inclusive, uma música lançada em 2012 pelo cantor Thiago Brava, intitulada Lei do desapego, que trata do mesmo assunto.

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patrocinadores nas apresentações e nos posts dos sites de redes sociais. São, em geral, apoios

provenientes de academias de musculação, lojas de suplementos, lojas de roupas e acessórios,

profissionais da saúde e empresas de transporte.

Infere-se que a mídia é a principal fonte de renovação do repertório dos shows. Ela

também influencia todo o aspecto visual das apresentações. Nesse sentido, desempenha um

papel central na constituição da identidade dos artistas que compõem o circuito da cultura da

música sertaneja em São Luís. Quando uma música é lançada, a sua repercussão na internet,

especialmente no YouTube, acaba servindo de critério para que seja incorporada no repertório

das apresentações. Kaique Mamede, a propósito, foi o único artista a declarar que presta atenção

ao que toca nas emissoras de rádio locais, o que sugere, de certa maneira, que elas não

contribuem tanto com esse processo. Como base no que os artistas declararam, a televisão e a

internet contribuem bem mais porque permitem que eles não apenas ouçam as músicas, mas

assistam às performances dos grandes nomes do segmento.

Todos os entrevistados fazem uso constante dos sites de redes sociais para divulgação

da agenda e informações diversas. Não é muito comum a utilização de sites ou do Twitter.

Quando é o caso de o artista ou dupla ter uma página, ela é bem menos utilizada que as outras

ferramentas de comunicação. É mais comum que o artista faça uso do perfil pessoal ou da

página no Facebook e do perfil no Instagram. Foi a partir do mapeamento dessas publicações,

inclusive, que consegui entrar no campo que pretendia investigar.

Alguns artistas que compõem o referido circuito são de outros estados. Kaique Mamede,

Luckas Seabra e Mayara Prado – que mora em São Paulo desde que assinou com a gravadora

Sony – são de Goiás. Adriano Camargo é mato-grossense. Este último, a propósito, é o único

que toca viola caipira, instrumento musical chave na história da música caipira. Dos

entrevistados, William Freire é o único natural de São Luís.

Observei que o circuito local permite e incentiva a mistura de gêneros musicais distintos.

Na apresentação de um cantor sertanejo em São Luís, ouve-se funk, forró, música eletrônica,

arrocha e até swingueira. As festas para as quais os cantores são chamados normalmente

favorecem a referida combinação. Na mesma noite, é comum que seja anunciado um DJ para

abrir a festa, uma banda de swingueira como primeira atração e uma dupla sertaneja como

segunda atração. Conforme indicado no início deste capítulo, a música sertaneja se transformou

em música de festa nos grandes centros urbanos e isso levou a uma aproximação cada vez mais

intensa com outros gêneros musicais que constituem o ramo do entretenimento ao vivo local

(como é o caso do forró eletrônico). Trata-se, desse modo, de um tipo de música sertaneja que

reúne sonoridades bem diversas. O cenário, nesse particular, reproduz o que ocorre, guardadas

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as devidas peculiaridades, em outras capitais brasileiras como Goiânia, São Paulo e Porto

Alegre.

Observou-se que a identificação dos artistas com a música sertaneja é parte de uma

escolha baseada no gosto pessoal em relação ao gênero, com implicações diretas dos meios de

comunicação. O rádio e os discos têm papel central na formação cultural dos artistas durante a

infância. Com exceção de William, todos mencionaram o contato que tiveram com a música

sertaneja através da mídia radiofônica ou com algum produto da indústria fonográfica.

Convém ressaltar que o gosto desses artistas pela música sertaneja, como também o

gosto do público local por esse gênero, é construído. Contribuem para isso a exposição à mídia

e as relações sociais familiares e entre amigos. A mídia exerce um papel fundamental, reafirma-

se aqui, na formação do gosto ao veicular, através de programas de rádio e de televisão, não

apenas a música sertaneja em si, mas a representação de um estilo de vida sertanejo adotado

pelos artistas que estão vinculados a esse gênero. Alguns depoimentos dos artistas entrevistados

indicam a importância dos hábitos familiares de consumo de música sertaneja como parte da

gênese do interesse deles por esse tipo de música. Há também um depoimento, o de William

Freire, que aponta para a influência dos amigos nesse processo.

As listas e a sociabilidade que elas proporcionam seriam, em última instância, outro

forte indicador do papel das relações sociais na construção do gosto pela música sertaneja no

referido cenário. Se, em um primeiro momento, a música sertaneja pode ser vista como um

gênero musical voltado para uma população mais velha, o ramo do entretenimento ao vivo

desconstrói essa visão. As baladas sertanejas são, dessa forma, um elemento de reconfiguração

no consumo desse tipo de música junto aos jovens que moram nos centros urbanos.

O circuito da cultura da música sertaneja de São Luís é resultado do deslocamento do

gênero pelo país. Nesse circuito, o momento do consumo se desdobra, conforme já apontado,

em duas ocasiões distintas. Primeiro, os artistas locais consomem aquilo que é veiculado pela

mídia, o que inclui músicas executadas em programas de rádio e a participação de artistas em

programas de televisão. Consomem ainda CDs e DVDs, além de vídeos disponibilizados no

YouTube e informações diversas publicadas em páginas da internet, blogs, páginas oficiais do

Facebook e perfis do Instagram. Esse consumo está diretamente articulado ao momento da

produção, uma vez que o repertório a ser adotado nos shows, elementos relacionados à

performance e à sonoridade de cada música e mesmo o figurino são influenciados pelo modo

como a música sertaneja é representada pela mídia.

Nos bares e casas de shows, o contato do público com os artistas configura a segunda

ocasião em que o consumo de música sertaneja acontece. Nesses espaços, o público se coloca

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numa relação direta com os artistas sertanejos locais e com o gênero musical com o qual se

identifica. O gosto pela música sertaneja é, portanto, um elemento de coesão. Cimenta, desse

modo, as formas de sociabilidade proporcionadas pelas festas.

Essa relação entre os artistas e o público, como constitutiva de um processo de interação

entre as instâncias da produção e do consumo, é mediada pelas regras definidoras dos gêneros

musicais. Como proposto anteriormente, os gêneros musicais são um elemento fundamental na

produção de sentido. Se a música é vista como um processo comunicativo, a comunicabilidade

é resultado da classificação. As festas locais de música sertaneja recebem essa designação não

apenas porque os produtores ou donos de bares estabelecem que seja assim. Trata-se, com base

na discussão apresentada no segundo capítulo desta tese, de uma estratégia de endereçamento

que associa produção e consumo, que liga espaços, artistas e frequentadores. A vinculação de

uma festa à música sertaneja implica expectativas por parte dos consumidores do tipo de

sonoridade e performance a ser privilegiada.

Em São Luís, o acesso a esses espaços onde há produção e consumo simultâneo de

música sertaneja é regulado, primeiro, pela norma que impõe como mínima a idade de dezoito

anos. Também é regulado pela norma que determina a venda de meia-entrada para estudantes,

embora haja locais em que os ingressos são vendidos por um preço único (em desrespeito à

referida norma). Por último, é regulado pela norma local que trata do horário que as festas

devem ser encerradas. Simbolicamente, a ida a essas festas também é regulada pelo poder de

compra dos consumidores, uma vez que há uma diferenciação evidente entre os que compram

ingresso para a pista (mais barato) e aqueles que compram ingresso para o camarote. Também

há diferenças simbólicas marcadas entre aqueles que consomem as bebidas mais caras, como

vodca e uísque importados, aos quais, normalmente, atribui-se a designação de ostentadores.

Aqueles que consomem as bebidas mais caras, no camarote ou na pista, não compram apenas a

bebida em si; compram um modo de serem vistos pelos demais.

No que diz respeito à sonoridade e à performance dos artistas sertanejos de São Luís, a

observação e as entrevistas ratificam o argumento de que consumo e produção estão articulados,

não havendo determinação do consumo pela produção. Os cantores e duplas fazem apropriações

e adaptações de acordo com um estilo próprio ou com base naquilo que eles pressupõem agradar

ao público.

As identidades dos artistas locais são construídas, atestou-se, em meio aos processos de

apropriação que eles fazem do que parece ser um cantor sertanejo. A representação midiática,

ainda que seja quase sempre estruturada a partir de estereótipos, contribui de maneira decisiva

com essa construção. A preferência deles pela música sertaneja em relação a outros gêneros

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musicais os levam a assumir o consumo dessa música e, também, a optar por ela na definição

de um estilo de vida próprio. Esse estilo de vida de artista sertanejo é, então, atestado por um

discurso construído em torno dessa identificação e também de práticas cotidianas, como, por

exemplo, uma rotina de ensaios e de shows. A identidade sertaneja dos artistas locais é legitima,

portanto, na medida em que se consideram as posições que eles assumem e com as quais se

identificam.

A escolha pela música sertaneja tem consequências numa dimensão mais ampla e

também numa dimensão local. Ao se designarem como cantores sertanejos, os artistas locais

assumem uma identidade atrelada à sonoridade e à performance próprias desse gênero musical.

É uma forma de eles se posicionarem artisticamente, vinculando-se a um grupo mais extenso

que inclui outros artistas, músicos e ambientes. Mas é, ao mesmo tempo, afastando-se de

espaços e atores ligados, por exemplo, à cena rock de São Luís.

Como a identidade é marcada por meio de símbolos, designar-se artista sertanejo

implica em adotar elementos que denotem a vinculação à música sertaneja. Alguns artistas,

como Jhonatan e Hilton, usam chapéu de couro. Adriano Camargo, por sua vez, costuma se

apresentar usando botas. Já Kaique, opta por um cinto com uma fivela maior. Mesmo a adoção

de um visual menos estereotipado, com elementos mais urbanos e modernos, consegue

estabelecer um vínculo com a música sertaneja em função da proposta visual contemplada pela

vertente universitária.

Em suma, a identidade sertaneja local, que é constituída pelas posições assumidas pelos

cantores e duplas, combina discursos e práticas que atestam esse posicionamento. São

discursos, ou seja, modos de falar de si, e ações concretas, como as apresentadas acima, que

dão forma às identidades de Jhonatan, Jardel, Kaique, Adriano, Hilton, Ódon e William. E dão

forma, também, às identidades dos demais artistas que compõem o cenário sertanejo local.

Mesmo os espaços onde ocorrem apresentações dos artistas sertanejos fazem opção por

representar visualmente a vinculação com o gênero, seja apenas por meio de algum elemento

contido no flyer de divulgação, seja através da decoração temática.

Antes de ser apenas um espaço voltado para a descoberta e desenvolvimento de talentos

musicais, o cenário sertanejo local constitui um modo de artistas, roadies, patrocinadores,

donos de bares e casas de shows, produtores de festas, proprietários de estúdios, designers

gráficos, fotógrafos, divulgadores, garçons e fornecedores desenvolverem atividades lucrativas,

ligadas ao ramo do entretenimento ao vivo. É, portanto, um espaço de competitividade, de

conflito.

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Conforme já indicado, a fixação de um cenário ligado à música sertaneja em São Luís é

parte de um fenômeno com uma dimensão muito maior, que é a perda da relação natural da

cultura com os territórios geográficos e sociais. A causa desse fenômeno seria o processo de

globalização, que transformou o distante em próximo. Reitera-se aqui que a música sertaneja é

um gênero musical que foi, de certa maneira, relocalizado do campo para a cidade em função

das migrações e de uma região do país para outra por causa da disseminação midiática.

No que diz respeito à migração, houve um deslocamento parcial dos grandes estúdios e

escritórios ligados ao gênero da capital paulista para a região Centro-Oeste. Os artistas também

passaram a se mover dentro do país. Esse deslocamento implicou bares e casas de shows de

cidades como São Luís, que passaram a contratar artistas ligados à música sertaneja para tornar

o consumo nesses ambientes mais atrativo. O ramo local do entretenimento ao vivo foi

consideravelmente tomado por artistas ligados a esse gênero musical.

Em relação à mídia, intensificou-se a circulação da música sertaneja pelo país e pelo

mundo. Os artistas entrevistados relataram a influência que tiveram da mídia no início de suas

trajetórias na música. Entretanto, mais do que uma simples influência, deve ser destacado que

quando um artista local declara que sua inspiração dentro do gênero são artistas relativamente

recentes como as duplas Zezé di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo e Chitãozinho &

Xororó, evidencia-se a centralidade da mídia na construção da sua identidade sertaneja. As três

duplas citadas, como demonstrado no capítulo que trata das transformações ocorridas na música

sertaneja, adquiriram relevância e reconhecimento em função da visibilidade produzida pela

indústria do disco, pelo rádio e pela televisão. São representantes do chamado sertanejo

romântico, que encontrou lugar nas trilhas sonoras de telenovelas e programas de televisão de

emissoras com altos índices de audiência92.

Conforme já exposto, a mídia serve como fonte de inspiração para artistas em início de

carreira. Os depoimentos apresentados neste capítulo confirmam, de certo modo, que as duplas

e os cantores sertanejos de São Luís se esforçam – na fase em que se encontram – para conseguir

oportunamente assinar contrato com uma gravadora. Eles almejam, portanto, “estourar”. Isso

pode ser traduzido, como já indicado, por vender quantidades expressivas de discos, estar com

relativa frequência em programas de televisão e rádio, “bombar” na internet e lotar shows.

Anseiam, portanto, em alcançar um reconhecimento público que também passa pela mídia.

92 Programas como Sabadão Sertanejo, exibido pelo SBT a partir de 1991, e Amigos & Amigos, veiculado pela TV Globo em 1999, são alguns exemplos do espaço aberto pelas emissoras de televisão para a música sertaneja na década de 1990. A série Bem Sertanejo, exibida pela TV Globo entre julho e novembro de 2014, constitui um exemplo contemporâneo.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação sobre o papel da mídia na construção identitária dos artistas sertanejos

de São Luís considerou a articulação entre os cinco momentos que constituem o circuito da

cultura proposto por Du Gay at al. (1997): identidade, representação, produção, consumo e

regulação. Como se pretendeu demonstrar com esta análise cultural, esses cinco processos

precisam ser compreendidos conjuntamente. Sem isso, não se pode afirmar que o circuito da

cultura tenha sido efetivamente explorado.

A aparente ênfase em uma questão específica do circuito, pelo modo como o título do

trabalho e o objetivo geral foram formulados, indica apenas o ponto de partida do estudo. Em

primeiro lugar, levou-se em conta que as identidades não são fixas nem biologicamente

definidas, mas são construções. A identidade, reitera-se, é uma construção discursiva e pode ser

inventada, sustentada durante um tempo e depois abandonada. Nessa direção, o local de

nascimento ou mesmo o endereço atual dos artistas entrevistados não são fatores que os

classifiquem acertadamente em autênticos ou forjados. Tanto aquele que nasceu no interior de

Goiás – Kaique Mamede – quanto os que nasceram em Belém – os irmãos Hilton e Ódon –

podem estar legitimamente ligados ao universo da música sertaneja.

As identidades são, conforme indicado, resultado de um posicionamento assumido pelo

indivíduo e, ao mesmo tempo, das posições atribuídas a ele pelos outros. No contexto

examinado, ser cantor sertanejo não é meramente uma atividade ocasional; é um estilo de vida

que se expressa no discurso e nas práticas cotidianas dos artistas. A coleta de dados, inspirada

pela abordagem etnográfica, possibilitou que fossem identificados os modos como os artistas

locais se assumem discursivamente como sertanejos. Esse posicionamento é localizado, por

exemplo, nas descrições que eles fazem de si mesmos nos sites de redes sociais. Também está

nos flyers digitais que são compartilhados como parte da estratégia de divulgação dos shows.

Nas entrevistas, especificamente, o posicionamento aparece quando Jardel (da dupla Jhonatan

& Jardel) descreve a nova rotina adquirida após a mudança para São Luís no intuito de formar

a dupla com o irmão. Aparece também quando Adriano Camargo comenta o trabalho de

organização do repertório a partir do que ele acredita atender às expectativas dos apreciadores

desse tipo de música em São Luís. Manifesta-se ainda quando Kaique Mamede fala sobre o

tempo que investe semanalmente em pesquisas sobre novas músicas lançadas, composições e

ensaios. Os depoimentos evidenciam, portanto, que o trabalho como cantores sertanejos é

revelador do estilo de vida ao qual esses artistas abraçaram.

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A identidade sertaneja atribuída a esses artistas pode ser identificada, por sua vez, tanto

nos flyers já mencionados como nas mensagens que circulam pelo WhatsApp, enviadas pelos

divulgadores. Também pode ser localizada nas matérias e notas de jornal que tratam da agenda

cultural da cidade. A matéria a seguir, publicada pelo jornal O Estado do Maranhão, na edição

de 27 de julho de 2014, trata do Villa Mix São Luís – evento que reuniu representantes do

gênero reconhecidos nacionalmente e também artistas locais. É um exemplo de como a

imprensa local reconhece os cantores e duplas mencionados enquanto sertanejos.

Figura 27 – Matéria sobre o Festival Villa Mix

Fonte: Jornal O Estado do Maranhão

Uma discussão a respeito da constituição da identidade se associa espontaneamente à

produção, ao consumo, à representação e à regulação. O repertório dos artistas nos shows é um

dos indicadores de como essa articulação se institui. A maior parte das músicas interpretadas

pode ser rotulada como pertencente ao gênero sertanejo. Conforme abordado anteriormente,

esse pertencimento é relativo ao processo de regulação cultural. Compunham o repertório em

2014, entre outras: a) músicas dançantes como Vai no cavalinho (Israel Novaes), Dia de sorte

(Humberto & Ronaldo) e Quando bebe fica louca (Guilherme & Santiago); b) músicas

românticas atuais, como Caso indefinido (Cristiano Araújo) e Marca evidente (Jorge &

Mateus); e c) músicas designadas pelos artistas locais como modas sertanejas, por exemplo,

Menino da porteira (Sérgio Reis), Ainda ontem chorei de saudade (João Mineiro & Marciano)

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e Evidências (Chitãozinho & Xororó). Músicas de outros gêneros musicais, como Lepo Lepo

(Psirico), Sou ciumento mesmo (Wesley Safadão & Garota Safada) e Fui fiel (Pablo), também

eram frequentemente cantadas. Essa seleção põe em relevo que, de modo geral, o repertório

adotado pelos artistas sertanejos de São Luís compreende um período que vai da década de

1980 até os dias atuais. O mais velho dos entrevistados, Jardel, nasceu em 1981. A relação entre

o intervalo de tempo coberto pela seleção de músicas e a idade dos cantores é uma das

evidências da centralidade da mídia na configuração do cenário sertanejo local. Como sugerido

no terceiro capítulo, é a partir da década de 1980 que a música sertaneja se estabelece como

arrimo para a indústria do disco nacional, o que viria a aumentar a circulação midiática desse

tipo de música.

De modo geral, os artistas sertanejos de São Luís precisam preparar dois formatos

distintos de show. Esse aspecto, observado e apontado nas entrevistas, implica tanto as

condições de produção quanto as de consumo. O primeiro formato, voltado para bares e

restaurantes, é destinado a consumidores que irão assistir à apresentação sentados – enquanto

conversam, comem e bebem. Uma vez que a sonoridade é mais acústica, a banda não precisa

estar completa. O violão, nesse tipo de show, assume o protagonismo. Ambientes como

Mariposa (bairro Calhau) e Salomé (região da Lagoa da Jansen) são alguns dos que recebem

essa configuração. O segundo tipo é pensado para locais em que o público permanece de pé

durante toda a festa, como é o caso da Lagoa House (também na região da Lagoa) e do Chopp

Cancun (bairro Turu). A banda está completa nessa modalidade. Mais elétrica, a sonoridade

inclui, além da formação básica de uma banda – bateria, guitarra, contrabaixo e teclado –, o

toque da sanfona.

A identidade dos artistas sertanejos entrevistados é construída, segundo o que se propõe,

porque a mídia é um agente de circulação e transformação da música produzida numa escala

global e isso repercute nos contextos locais. Esse aspecto tem relação direta com a questão do

repertório, abordada acima. A internet, a televisão e o rádio são parcialmente responsáveis pelo

sucesso internacional de músicas como Ai, se eu te pego..., assim como pela popularização das

vertentes romântica e universitária da música sertaneja, do funk carioca ou da música eletrônica

em São Luís.

O processo de globalização atua sobre as identidades porque expõe a cultura local a

influências externas. As tensões entre o que é considerado próprio da cultura maranhense e o

que vem de fora podem levar à resistência do primeiro elemento em relação ao segundo. Mas

também podem permitir a emergência de práticas culturais híbridas. O cenário sertanejo local

é resultado dessa exposição e, nesse sentido, também é híbrido porque reúne a música sertaneja

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a um conjunto de outras sonoridades que circulam dentro dele, por exemplo, o forró, o funk, o

arrocha e a dance music. Difere, desse modo, do que supostamente ocorre na cena rock ou no

movimento reggae, que buscam preservar, por mais contraditório que isso pareça, uma relativa

especificidade estética.

Outra razão que sustenta que o argumento de que a identidade dos artistas locais é

construída pela mídia é que eles são, antes de qualquer coisa, consumidores de música sertaneja.

Consumo, repete-se, tem o mesmo sentido de apropriação. Eles não apenas escutam músicas

ligadas a esse gênero pelo prazer que elas causam. Consumir música sertaneja através de discos,

do rádio, da televisão e da internet é, também, parte do estilo de vida que os artistas abraçaram.

Faz parte do trabalho deles, do modo como a maioria deles “ganha a vida”. A apropriação,

conforme já assinalado, não se limita à sonoridade. Um outro aspecto ao qual os artistas

afirmaram prestar atenção é a performance, que num sentido mais amplo, tem relação direta

com a representação midiática da música sertaneja. A esse respeito, pontua-se que elementos

da performance que chegam aos artistas principalmente através da mídia são adaptados para o

cenário local.

A internet desempenha um duplo papel na carreira dos artistas locais: é o lugar onde

eles encontram músicas novas, cobertura jornalística de shows e festivais, fotos e vídeos

relacionados à música sertaneja; mas também é o meio mais utilizado para a divulgação e

contato com o público. Sites de redes sociais e aplicativos são ferramentas amplamente

utilizadas para proporcionar uma transmissão mais ágil de informações sobre a agenda, por

exemplo. Se parte da música sertaneja contemporânea chega até eles por meio da internet, é

adequado que eles utilizem esse ambiente para fazer circular sua própria produção.

O cenário da música sertaneja em São Luís segue ainda a tendência nacional de

aproximação com músicas de outros gêneros. As baladas sertanejas locais são festas onde os

presentes vão ouvir também música eletrônica, funk, swingueira e forró. A seguinte estrutura é

reconhecida por qualquer pessoa que tenha o hábito de ir às boates e casas de shows locais: DJs

como Junior Bulacha, Walter Junior e Cosmo fazem a abertura para as apresentações de Bruno

Shinoda & Swingart SL ou Levada do Teco; depois de um curto intervalo, sobem ao palco

duplas como Jhonatan & Jardel ou Stanley & Cristian. A observação permite inferir que o

cenário local confirma, de certa maneira, o argumento de que parte da música sertaneja

contemporânea é produzida para as festas e shows que constituem, nos centros urbanos, o ramo

do entretenimento ao vivo. Segundo o que foi indicado no capítulo anterior, essas festas

proporcionam também formas de sociabilidade entre os jovens que são cimentadas pelo gosto

por música sertaneja.

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O repertório executado é um dos indícios mais fortes de que a identidade artística dos

cantores e duplas locais é construída pela mídia. O cenário local não é propício para o trabalho

autoral. Os artistas reconhecem isso nas entrevistas, embora tentem timidamente fazer suas

composições circularem. A maior parte do que é cantado nas apresentações é formada pelo que

as emissoras de rádio e televisão e a internet apresentam como sucesso no segmento sertanejo.

O que deve ser destacado sobre isso, entretanto, é que esses artistas buscam imprimir uma marca

pessoal nas músicas. Eles observam que não querem simplesmente copiar ou imitar os cantores

que os influenciam; eles querem construir uma identidade própria, um estilo individual.

Os cantores e duplas mantêm o foco no que entendem ser o objetivo dos artistas

independentemente do gênero musical ao qual se vinculam: desenvolver um trabalho de

qualidade, atendendo às expectativas do público que paga para assistir aos shows; compor e

apresentar as composições, de modo a torná-las conhecidas no contexto local; estar em contato

permanente, dentro do possível, com os fãs para receber deles um retorno sobre as

apresentações; gravar discos que funcionem como material promocional e não apenas como

meio para ganhar dinheiro; e, além disso, assumir, nos palcos e diante das câmeras e

microfones, uma conduta coerente com o que se espera de um cantor sertanejo. Performance e

representação, nesse sentido, estão interligadas.

A análise cultural aqui apresentada leva em conta que a produção e o consumo de música

são condicionados apenas parcialmente pelas identidades fabricadas pela mídia. Em outras

palavras: um artista, ao assumir uma identidade sertaneja, passa a consumir e a criar músicas

que são implicadas por essa escolha. Isso não impede, porém, que a dupla Jhonatan & Jardel

encerre uma apresentação com uma sequência de músicas de bandas do chamado rock nacional.

Hilton (da dupla Hilton & Ódon), por sua vez, declarou na entrevista que tem a pretensão de

gravar um disco no segmento religioso. Isso não quer dizer, a rigor, que ele pretenda se afastar

da música sertaneja. Ele tem a opção, inclusive, de manter a sonoridade e modificar apenas o

universo temático tratado nas canções. O padre e cantor Alessandro Campos mostrou que a

mistura é possível. Nesse caso, a principal mudança tem a ver com o fato de que Hilton se

dirigirá a um público bastante diferente daquele que alcança com a dupla da qual faz parte.

Esses dois exemplos sugerem que as identidades artísticas produzidas pelo consumo de música

sertaneja não ficam engessadas nesse gênero musical.

O mesmo pode ser dito em relação ao consumo que ocorre no contexto dos bares e casas

de shows: no geral, ao assumirem certas identidades e hábitos de lazer, os consumidores se

filiam a determinados tipos de música e se afastam de outros. Não se deve perder de vista que

as identidades são construídas através do consumo. Importa, porém, que essas associações não

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sejam dadas como estanques ou permanentes. Alguém pode, num final de semana qualquer, ir

ao bar Por Acaso e se divertir com os amigos ao som de Adriano Camargo ou da banda Forró

Top. Isso não impede que essa mesma pessoa, no final de semana seguinte, possa estar no

Amsterdam Music Pub, num show de rock.

No cenário analisado, a coleta de informações foi inspirada pela etnografia. A

metodologia escolhida para a realização da pesquisa deu conta dos propósitos antecipadamente

estabelecidos. Houve, entretanto, a necessidade de acrescentar a utilização de documentos aos

instrumentos de coleta. Jornais impressos, páginas da internet, revistas, programas de televisão,

relatórios de pesquisa e postagens em sites de redes sociais forneceram informações

fundamentais para complementar a descrição realizada com base na observação e nas

entrevistas.

Conclui-se com essa análise cultural que a mídia desempenha um papel central na

formação identitária dos artistas locais. Esse aspecto, entretanto, não diminui a autenticidade

do cenário estudado. Se São Luís está fora do sertão, isto é, fora do eixo onde a música sertaneja

nasceu e se desenvolveu, esse gênero musical se fixou de tal maneira na cidade que um conjunto

relativamente vasto de lugares e profissionais está ligado a ele. Ser um cantor sertanejo, hoje, é

se posicionar como tal, ou seja, abraçar um estilo de vida que envolve discurso e prática. É

também ser reconhecido como um cantor sertanejo pelos outros atores que formam o cenário

locais, por exemplo, donos de bares e produtores de eventos. O reconhecimento da imprensa

também é importante. O público que aprecia música sertaneja precisa ter, por meio do trabalho

desenvolvido por esses artistas, suas expectativas supridas. Ser um artista sertanejo hoje é,

também, seguir as convenções próprias desse tipo de música, mas estar atento para o que a

mistura com outros gêneros musicais pode proporcionar no que diz respeito à sonoridade e à

performance. A performance, por fim, é outro critério que, ao articular identidade,

representação, produção, consumo e regulação, define o que significa ser um artista sertanejo

hoje. Ninguém precisa nascer ou morar em São Paulo ou em Goiás para se considerar e ser

considerado um cantor sertanejo autêntico. A música sertaneja não se limita a uma região do

país. A música sertaneja pertence ao Brasil.

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APÊNDICE A - Roteiro para entrevista

Grupo 1: infância, formação musical, influências, começo de carreira

Onde você nasceu? Em que ano? Há quanto tempo mora em São Luís? Por que veio para cá? Você teve uma infância musical? Quando a música entrou na sua vida? De que maneira? Você toca algum instrumento musical? Quantos? Quais? Você estudou música? Fez aula de canto ou de algum instrumento musical? Quais são as suas influências musicais? Esses são os seus ídolos? Por que você canta música sertaneja? Qual a história dessa escolha? Foi fácil definir o nome artístico? Cogitou adotar um nome diferente do seu nome de batismo? Quando foi a primeira vez que você se apresentou para uma plateia? Como você se sentiu? Quando você se tornou profissional? Como? Por quê? Vive apenas de música ou tem outra profissão? Quem são os músicos que tocam com você? De onde você os conhece? Já houve muitas mudanças nessa formação? Que fatores implicam a formação de uma banda para tocar na noite de São Luís? Além da banda, você tem uma equipe de trabalho? Quantas pessoas fazem parte dessa equipe? Como essa equipe se formou? Já pensou em mudar de estilo musical, deixar de cantar música sertaneja? O que você cantaria? A que tipo de dificuldade um artista que canta música sertaneja em São Luís está exposto no começo da carreira? Grupo 2: rotina de artista, produção

Quantas horas, em média, dura a sua apresentação? Quantas apresentações você faz por semana? Tem um local fixo? Há quanto tempo se apresenta nesse local? Como é definido o pagamento da sua apresentação? Você se considera um artista bem remunerado? Acha que já consegue oferecer uma boa remuneração para a sua banda e demais componentes da sua equipe? Em suas apresentações, quase sempre cantando músicas que não são suas, você se preocupa em imprimir algo seu na interpretação? Você se preocupa em ter a aparência de um artista sertanejo? Pensa sobre figurino, cabelo e acessórios?

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Como se dá a escolha das músicas que compõem o seu repertório? Como você aprende essas músicas? Você e sua banda têm uma rotina de ensaio? Quanto tempo dura? Você consegue identificar o perfil daqueles que vão às suas apresentações? Você já tem que lidar com assédio de fãs? Como é? É melhor ser um artista solo ou ser dupla? Por que? Você também é compositor? Tem ideia de quantas músicas já compôs? O que te inspira a compor? Toca suas próprias músicas em suas apresentações? Já fez alguma apresentação apenas com músicas suas? Como foi a experiência? Já liberou ou licenciou suas músicas para outros gravarem? Já ganhou dinheiro com suas composições? Você já gravou? Como foi a experiência? Se não, por quê? Você pensa sobre o papel que ocupa na vida daqueles que acompanham você, que admiram o seu trabalho? Como você se sente a respeito disso? Quanto tempo você reserva para ouvir música, tocar, compor? Faz isso todos os dias? Imagino que você não ouça apenas música sertaneja. O que mais você ouve? Isso influencia você de alguma maneira? Você gosta quando as pessoas pedem músicas? Sempre dá para atender aos pedidos? Você já se apresentou em cidades do interior. É diferente de se apresentar em São Luís? Já recebeu convite para se apresentar em outros estados? Você costuma assistir às apresentações de outros artistas locais? Faz comentários sobre a apresentação? A experiência deles influência seu trabalho de alguma forma? As pessoas falam como você sobre suas apresentações? Criticam? Elogiam? Como você lida com isso? Grupo 3: mídia

Os meios de comunicação exercem algum tipo de influência sobre o seu trabalho? Que tipo de influência? O que você pensa sobre o modo como a música sertaneja é representada pelos meios de comunicação? Você tem o costume de ver DVDs e ir a shows de artistas sertanejos? Usa esse material de alguma maneira na formação da sua identidade como artista? Como é a sua relação com a mídia local? As redes sociais são importantes para a sua carreira? De que forma?

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Grupo 4: contexto

Se você tivesse que explicar o que é música sertaneja, o que você diria? O que você acha do atual momento da música sertaneja no país? Há alguns indícios de que a música sertaneja atual se aproxima muito de gêneros como forró, funk, música eletrônica e música pop. O que você acha disso? Qual a sua opinião sobre as opções de diversão na noite em São Luís – bares, festas, shows etc? Qual a sua opinião sobre o momento que São Luís vive em relação à música sertaneja? Como você avalia as estratégias dos produtores e donos de bares locais para a captação de público para os eventos? Grupo 5: futuro

Já cogitou a possibilidade de se mudar para Goiás ou para o eixo Rio-São Paulo, onde a possibilidade de um contrato com uma gravadora parece ser mais real? Quais são os seus planos enquanto artista? Você se imagina tendo uma carreira como a dos artistas que você admira? É onde você quer chegar?

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[Digite texto]

APÊNDICE B – Termo de consentimento livre e esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ____________________________________, declaro para os

devidos fins que:

a) fui informado sobre o objetivo da investigação conduzida pelo

pesquisador para o qual concedi entrevista;

b) autorizei que a entrevista fosse gravada;

c) autorizo a utilização das informações por mim fornecidas durante a

entrevista na publicação dos resultados, em forma de tese de doutorado,

a ser apresentada a este programa de pós-graduação;

d) autorizo ser identificado como entrevistado na referida publicação;

e) estou ciente de que posso desistir de fazer parte da pesquisa em

qualquer momento, devendo comunicar tal interesse, por escrito, ao

autor da pesquisa;

f) estou ciente da minha contribuição para a compreensão do fenômeno

estudado e para a produção de conhecimento científico; e

g) estou ciente de que quaisquer dúvidas relativas à pesquisa poderão

ser esclarecidas pelo próprio pesquisador, por meio do telefone (98)

88032072 ou pelo e-mail [email protected].

Consinto em participar deste estudo e declaro ter recebido uma cópia

deste termo de consentimento.

___________________________ Assinatura do entrevistado

____________________________ Local e data

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Lei Promulgada nº 200 de 24/09/2009

Altera o art. 177, inciso VI da Lei nº 1.790 de 12 de maio de 1968 (Código de Postura) e

dá outras providências.

O Presidente da Câmara Municipal de São Luís, Capital do Estado do Maranhão, promulga

nos termos do art. 70, § 7º da Lei Orgânica do Município de São Luís, a seguinte Lei

resultante do Projeto de Lei nº 191/2007, aprovado pela Câmara Municipal de São Luís.

Art. 1º O art. 177 - inciso VI da Lei nº 1.790/1968 passa a vigorar com a seguinte redação:

VI - os estabelecimentos comerciais deverão obedecer os seguinte horários para

encerramentos de suas atividades:

a) BARES E RESTAURANTES - diariamente às 3:00 horas;

b) BOITES, sem isolamentos acústicos, de acordo com as normas legais, aprovadas pelo

órgão competente às 3:00 horas, com isolamento às 4:00 horas;

c) BUFFETS, CASAS DE EVENTOS E DE RECEPÇÕES com isolamento acústicos de

acordo com as normas legais 4.00 horas, sem isolamento às 3:00 horas;

d) LOJAS DE CONVENIÊNCIAS - 24:00 horas de funcionamento, ficando proibida a

comercialização de bebidas alcoólicas de qualquer espécie ou forma, após às 2:00 horas;

e) SHOWS MUSICAIS - a céu aberto às 2:00 horas;

f) SHOWS MUSICAIS - em locais privados às 4:00 horas, com isolamento acústico de

acordo com as normas legais, aprovados pelo órgão competente;

g) CAFETERIAS - funcionamentos 24 horas sem vendas de bebidas alcoólicas de qualquer

espécie e sob qualquer forma;

h) LANCHONETES, TRAILES E SIMILARES - 24 horas não comercializando bebidas

alcoólicas de qualquer espécie ou forma, caso contrário encerra suas atividades às 2:00

horas;

i) FESTEJOS JUNINOS E CARNAVAL - encerramento às 3:00 horas com som mecânico;

j) PASSAGEM DO ANO NOVO - na virada do ano novo fica liberado o horário;

k) EVENTOS ESPECIAIS - 3:00 horas desde que autorizados pela autoridade competente.

Parágrafo único. Os bares e restaurantes nos domingos e feriados funcionarão até 1:00

horas, mantendo-se às 3:00 horas, desde que no dia imediato não seja dia útil.

Art. 2º Acrescenta-se o art. 177 com a seguinte redação:

Art. 177. É vedada a concessão de licença de funcionamento dos estabelecimentos, previsto

no art. 177, em imóveis localizados no raio de 200m de estabelecimento de ensino,

hospitais, postos de saúde, maternidades, creches e asilos.

§ 1º A inobservância de qualquer dispositivo desta lei sujeitará os infratores as seguinte

penalidades independentes dos dispositivos penais.

I - Advertência, primeira Infração;

II - Multa de R$ 1.000,00 (um mil reais) segunda Infração;

III - Multa de R$ 3.000,00 (três mil reais) terceira Infração;

IV - Fechamento administrativo e cassação do Alvará, decorrido os incisos I, II e III.

§ 2º Os valores das multas serão corrigidas anualmente dos mesmos índices e datas de

reajustes dos tributos municipais.

Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.

PLENÁRIO "SIMÃO ESTÁCIO DA SILVEIRA" DO PALÁCIO "PEDRO NEIVA DE SANTANA",

em São Luís (MA), 24 de setembro de 2009.

Norma Municipal - São Luís - MA Publicado no DOM em 09 out 2009

Lei Promulgada nº 200 de 24/09/2009 http://www.normasbrasil.com.br/norma/lei-promulgada-200-2009-sao-...

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Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.

PLENÁRIO "SIMÃO ESTÁCIO DA SILVEIRA" DO PALÁCIO "PEDRO NEIVA DE SANTANA",

em São Luís (MA), 24 de setembro de 2009.

Aprovado em Primeira Votação em 14 07.2009

Aprovado em Segunda Votação em 14.07.2009

Aprovado em Redação Final 15.07.2009

ANTONIO ISAÍAS PEREIRA FILHO (PEREIRINHA)

PRESIDENTE

*Republicação do DOM nº 192 de 09.10.2009.

Por incorreção

Lei Promulgada nº 200 de 24/09/2009 http://www.normasbrasil.com.br/norma/lei-promulgada-200-2009-sao-...

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