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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC–SP MARIA ÂNGELA LOPES PAULINO PADILHA TRIBUTAÇÃO DE SOFTWARE Exame da constitucionalidade da incidência do ISS e do ICMS-Mercadoria sobre a licença de uso de programa de computador disponibilizado eletronicamente DOUTORADO EM DIREITO São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC–SP

MARIA ÂNGELA LOPES PAULINO PADILHA

TRIBUTAÇÃO DE SOFTWARE

Exame da constitucionalidade da incidência do ISS e do ICMS-Mercadoria sobre

a licença de uso de programa de computador disponibilizado eletronicamente

DOUTORADO EM DIREITO

São Paulo

2016

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MARIA ÂNGELA LOPES PAULINO PADILHA

TRIBUTAÇÃO DE SOFTWARE

Exame da constitucionalidade da incidência do ISS e do ICMS-Mercadoria sobre

a licença de uso de programa de computador disponibilizado eletronicamente

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, como exigência parcial para a obtenção do título de DOUTOR EM DIREITO TRIBUTÁRIO, sob a orientação do Professor Paulo de Barros Carvalho.

São Paulo

2016

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Banca Examinadora:

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Esta tese de doutorado foi desenvolvida pelo aluno na condição de bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e com o apoio da Fundação São Paulo (FUNDASP), às quais se agradece pelo auxílio e financiamento.

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AGRADECIMENTOS

Essa TESE não se realizaria sem o apoio e a ajuda de pessoas que merecem

os meus sinceros agradecimentos:

A Paulo de Barros Carvalho, admirável Professor, pelas preciosas lições e

direcionamento.

Às queridas Maria Leonor Leite Vieira e Sandra Cristina Denardi, pelo

aprendizado e pela amizade na convivência diária.

Ao meu amor, Frederico Padilha, pelo companheirismo incondicional.

Aos meus pais, Marcos Martins Paulino e Beatriz Lopes Paulino, e ao

meu irmão, Luiz Augusto Lopes Paulino, por estarem sempre por perto, transmitindo

segurança e carinho.

A alguém especial, Viviane Strachicini, pela revisão do trabalho e valiosas

colocações, reforçando e testando as minhas.

Aos amigos Fabiana Del Padre e Lucas Galvão de Brito, pelo incentivo e

apoio.

Aos Professores Robson Maia Lins e Charles William MacNaughton,

pelas ricas discussões nas aulas deste curso de Doutorado.

À minha amiga-irmã, Luiza Mesquita, por ter me apresentado o “mundo das

redes e do acesso”.

A Fernando Carrusca, Gabriela Wendland, João Batista Brandão Neto,

Marilia Bezzan R. Alves, Paloma Nunes Gongora, Rafael Bastos Pecoraro, Tamara

Ambra Ciorniavei e Wellington Maia, pelas pesquisas, revisões e imensa ajuda neste

trabalho.

Aos meus colegas e amigos do Barros Carvalho Advogados Associados,

pelo prazeroso dia a dia no exercício da advocacia.

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Information technology and business are becoming inextricably interwoven. I don't think anybody can talk meaningfully about one without the talking about the other – Bill Gates

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RESUMO

A presente tese de doutorado tem por objeto primordial examinar a constitucionalidade da tributação por meio do ICMS-Mercadoria e do ISS sobre o licenciamento de uso de software (programa de computador) disponibilizado eletronicamente. Na primeira parte do trabalho, inicia-se o estudo discorrendo sobre a evolução histórica da computação, a distinção dos componentes básicos do sistema informático (hardware e software) e a criação da rede mundial de computadores, para, então, tratar dos impactos na sociedade decorrentes das inovações no campo da Informática, associadas aos avanços na área das telecomunicações, em especial da Internet, destacando, ao final, a repercussão tecnológica para o direito positivo. Em continuidade ao percurso cognoscitivo, serão examinadas a natureza jurídica do programa de computador, sua proteção autoral como obra intelectual e o tratamento conferido pela Lei nº 9.609/98, visando a construir uma definição de software não só atenta à sua tecnicidade, mas principalmente conformada à sua disciplina jurídica. Ato contínuo, parte-se para o exame da exploração econômica dos programas de computador com o propósito de investigar as suas formas de contratação reguladas pelo direito privado, em especial o licenciamento de uso, sem deixar de realçar a emergente prática negocial do Software as a Service (SaaS), em cotejo com o licenciamento do modelo tradicional Software as a Product (SaaP). Dando início à segunda parte deste esforço teórico, relativa ao sistema jurídico tributário brasileiro, analisam-se alguns princípios constitucionais e a rígida distribuição das competências para instituir tributos, com o aprofundamento dogmático na interpretação dos signos positivados nesse minudente esquema distributivo, a fim de demarcar o papel limitador dos conceitos constitucionais na atuação do aplicador do direito. Abordar-se-á também a função da lei complementar como mecanismo de ajuste que assegura a harmonia do sistema tributário, mormente quando dispõe sobre conflitos de competência tributária. Em seguida, alicerçada na metodologia da regra-matriz de incidência tributária, traçam-se os critérios materiais do ICMS-M e do ISS, com o escopo de definir as expressões “operações relativas à circulação de mercadorias” e “prestar serviços de qualquer natureza”, demarcando rigorosamente o núcleo factual das respectivas hipóteses de incidência. Depois de delimitadas as fronteiras constitucionais dirigidas ao legislador na eleição dos fatos a serem tributados pelo ICMS-M e pelo ISS, dá-se início à terceira e última parte desta tese, com o objetivo de conduzir, assente nas premissas fixadas nos capítulos anteriores, minucioso diagnóstico jurídico dessas incidências tributárias sobre as licenças de uso de softwares disponibilizados eletronicamente, se consistem em prestação de serviço, operação de circulação mercantil ou categoria jurídica diversa.

Palavras-chave: Tecnologia. Informática. Internet. Software. Programa de computador. Natureza jurídica. Software as a Product. Software as a Service. Licença de uso. Competência tributária. Conceitos constitucionais. Lei complementar. Regra-matriz de incidência tributária. Critério material. ISS. ICMS-M. Operação relativa à circulação de mercadoria. Prestação de serviços.

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ABSTRACT

The current doctorate thesis has as primary goal to examine the constitutionality of taxation, by the states and municipalities, through the ICMS-M and ISS, respectively, on the use of software licensing (computer program) available electronically by means of the Internet. In the first part of the work, the study begins discoursing about the computing history, the distinction between the basic components of the system (hardware and software) and the creation of the World Wide Web, to then deal with the impacts on society resulting from innovations in the field of Information Technology associated with advances in telecommunications, particularly the Internet, stand out in the end the technological repercussions for the positive law. Continuing the cognitive path, it will be examined the legal nature of the computer program, a copyright protection as intellectual work and the treatment given by Law nº 9.609/98, aiming to build a software definition not only attentive to its technical nature but also conformed to its legal discipline. Subsequently, it proceeds to the examination of the economic exploitation of computer programs, directly related to their forms of contracting ruled by private law, while highlighting the emerging business practice of Software as a Service (SaaS), in comparison with the traditional model licensing Software as a Product. In the final fundamental approach to any tax study focused on legal business with the software, it analyzes concise formats the theme from a perspective compared with the legislation and case law of other countries and with international law, in order to seek solid semantic-pragmatic references to minutiae the proposed scientific object. Engaging the second part of this theoretical force on the Brazilian legal tax system, it analyzes the basic constitutional principles of national legal order, the rigid distinction of taxation powers by the 1988 Constitution, with the dogmatic deepening in the interpretation of the terms used by the constituent to empower the political entities to establish taxes, as well as the role of complementary law as an adjustment mechanism that ensures the functioning of the tax system. Therefore, based on the methodology of the tax incidence matrix-rule, draw up the material criterion of the ICMS-M and ISS, with the aim of define the expressions “operations relating to the circulation of goods” and “provide services of any kind” strictly demarcating the factual core of their chances of incidence. After the constitutional boundaries were defined and addressed to the legislator in the election of the facts to be taxed by ICMS-M and the ISS, initiated the third and final part of this thesis, in order to guide, based on the assumptions set out in previous chapters, thorough legal diagnosis of these tax implications on software use licenses available electronically if it consists of a providing service, circulation of goods operation or diverse legal category.

Keywords: Technology. Computer. Internet. Software. Computer program. Hardware. Legal nature. Software as a Product. Software as a Service. SaaS. Use license. Tax jurisdiction. Supplementary law. Tax incidence matrix-rule. Material criterion. ISS. ICMS-M. Circulation of goods operation. Provide services.

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LISTA DE ABREVIATURAS

ADI – Ação Direito de Inconstitucionalidade

AI – Agravo de Instrumento

ARg – Agravo Regimental

CF – Constituição Federal

CD – Compact Disc

COFINS – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social

CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária

CONTU – Commission on New Technological Uses of Copyrighted Works

CPU – Central Processing Unit

CR – Constituição Republicana

CTN – Código Tributário Nacional

DRM – Digital Rights Management

GATT – General Agreement on Tariffs and Trade

ICMS – Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação

ICMS-M – Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – Mercadoria

ISS – Imposto sobre serviços

ISSQN – Imposto sobre serviços de qualquer natureza

IN – Instrução Normativa

NIST – National Institute of Standard and Technology

PC – Personal Computer

PIS – Programa de Integração Social

RAM – Random Access Memory

RE – Recurso Extraordinário

REsp – Recurso Especial

RFB – Receita Federal do Brasil

RMIT – Regra-matriz de incidência tributária

ROM – Read-Only Memory

TIC – Tecnologia da informação e da comunicação

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TJ – Tribunal de Justiça

TRF – Tribunal Regional Federal

TRIP – Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights

SaaS – Software as a Service

SF – Secretaria das Finanças

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

VAR – Value Added Reseller

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14 

PARTE 1 – ABORDAGEM FUNDAMENTAL PARA O ESTUDO DA TRIBUTAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ENVOLVENDO

SOFTWARE 

1   NOÇÕES SOBRE A INFORMÁTICA: A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA COMPUTAÇÃO, SEUS ELEMENTOS BÁSICOS (hardware e software) E SEUS IMPACTOS NA SOCIEDADE ............................................................................. 21 

1.1 Informática: o que é? ....................................................................................................... 21

1.2 A evolução histórica da computação............................................................................... 22

1.2.1 A era da computação moderna até os dias atuais ....................................................... 29

1.3 Os componentes básicos do sistema computacional: o hardware e o software .............. 38

1.4 A criação da rede mundial de computadores (Internet) e a emergência de uma comunidade virtual .......................................................................................................... 42

1.5 A inovação tecnológica no campo da Informática e seus impactos na sociedade: rumo a coletividades e economias baseadas na informação ........................................... 47

1.5.1 Reflexos no universo jurídico ..................................................................................... 53

2  A NATUREZA JURÍDICA DO SOFTWARE, A SUA PROTEÇÃO E O TRATAMENTO CONFERIDO PELA LEI Nº 9.609/1998 ........................................... 62 

2.1 As primeiras discussões sobre a natureza jurídica do software e a sua proteção ............ 62

2.2 O tratamento jurídico conferido pela Lei nº 9.609/1998: expressão de um conjunto de instruções e regime protetivo autoral similar ao aplicado às obras literárias ............. 67

2.3 As propostas para rediscutir o enquadramento e a proteção jurídica do software: bem imaterial de caráter utilitário, pilar do sistema global da informação ..................... 76

2.4 A definição jurídica de “software”: bem incorpóreo intelectual desvinculado de seu suporte físico ................................................................................................................... 82

3  O SOFTWARE E A SUA EXPLORAÇÃO ECONÔMICA .......................................... 87 

3.1 Comércio tradicional versus comércio eletrônico ........................................................... 87

3.1.1 O comércio eletrônico direto por meio do download e streaming ............................. 89

3.2 Contexto atual do avanço tecnológico em matéria de software: dinamismo na economia e inovação em produtos e serviços ................................................................. 91

3.3 Contratos de software ...................................................................................................... 95

3.3.1 Contratos de desenvolvimento de software ................................................................ 96

3.3.2 Contratos de customização de software ..................................................................... 98

3.3.3 Cessão de software versus licença de software ........................................................ 100

3.3.4 Contratos de licença de software .............................................................................. 102

3.3.4.1 Contratos de licença para comercialização de software ......................................... 103

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3.3.4.2 Contratos de licença para desenvolvimento de software ....................................... 105

3.3.4.3 Contratos de licença de uso de software: a forma contratual mais comum na disponibilização eletrônica de programas de computador ..................................... 107

3.3.4.3.1 Prestação de serviços técnicos de suporte e manutenção no licenciamento de uso de software .................................................................................................... 113

3.4 Das novas formas de exploração econômica de programas de computador através do licenciamento de uso de softwares baseados na infraestrutura da nuvem (cloud computing) .................................................................................................................... 114

3.4.1 Cloud computing: o que é? ....................................................................................... 115

3.4.2 O Software as a Service (SaaS) como o emergente modelo de negócio no licenciamento de uso de programas de computador ................................................. 124

3.5 Considerações finais sobre os aspectos contratuais no licenciamento de uso de software: da unicidade do negócio jurídico SaaP para a complexidade do negócio jurídico SaaS ................................................................................................................. 132

PARTE 2 – O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS-

MERCADORIA E O ISS 

1  O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA .................................................................................................................. 141 

1.1 Noções propedêuticas sobre o sistema constitucional e a competência tributária ........ 141

1.2 O estudo de alguns princípios constitucionais relacionados ao exercício da competência tributária ................................................................................................... 145

1.2.1 O princípio federativo como formador do Estado Brasileiro ................................... 146

1.2.2 O sobreprincípio da segurança jurídica .................................................................... 150

1.2.3 O princípio da legalidade e tipicidade tributárias ..................................................... 155

1.3 A rígida discriminação das competências para criar impostos na Constituição de 1988 ............................................................................................................................... 159

1.4 A interpretação dos signos linguísticos empregados pelo constituinte na repartição das competências tributárias e os conceitos constitucionais como limitadores da atuação do aplicador do direito tributário ..................................................................... 162

1.4.1 Os conceitos como forma de pensar e conhecer a realidade do direito positivo, viabilizando a comunicação jurídica ........................................................................ 164

1.4.1.1 Distinção entre termo, conceito e definição na compreensão da linguagem do direito positivo ....................................................................................................... 167

1.4.1.1.1 Enunciações conotativa e denotativa como formas de elucidar o campo de aplicabilidade dos conceitos jurídicos ................................................................. 173

1.4.2 Interpretação jurídica e os axiomas da intertextualidade e da inesgotabilidade ....... 175

1.4.3 Texto e contexto: os limites do aplicador do direito na construção dos conceitos constitucionais .......................................................................................................... 182

1.4.4 Art. 110, CTN: a confirmação de que usos linguísticos utilizados no contexto jurídico repercutem na definição do conceito constitucional ................................... 187

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1.4.5 A lei complementar como texto relevante no processo de elucidação dos conceitos constitucionais e na solução de conflitos de competências para criar impostos .................................................................................................................... 196

1.4.6 Conceitos constitucionais como limites à produção normativa infraconstitucional: reflexões sobre o equilíbrio entre a rigidez na discriminação das competências tributárias e a evolução interpretativa na aplicação do direito tributário ................................................................................................................... 205

2  O CRITÉRIO MATERIAL DAS REGRAS-MATRIZES DE INCIDÊNCIA DO ICMS-MERCADORIA E DO ISS.................................................................................. 218 

2.1 O percurso para a construção de sentido dos textos jurídicos e as normas jurídicas em sentido amplo e sentido estrito ................................................................................ 218

2.2 A regra-matriz de incidência tributária ......................................................................... 221

2.2.1 A hipótese tributária e o seu critério material .......................................................... 224

2.2.1.1 Ainda sobre o critério material: o fato “tipo estrutural” e a unidade/pluralidade dos negócios jurídicos e seus reflexos na identificação do fato jurídico tributário ................................................................................................................. 226

2.3 O critério material da regra-matriz de incidência do ICMS-Mercadoria ...................... 229

2.3.1 O conceito de “operações” ....................................................................................... 230

2.3.2 O conceito de “circulação” ....................................................................................... 232

2.3.3 O conceito de “mercadoria” ..................................................................................... 239

2.4 O critério material da regra-matriz de incidência do ISS .............................................. 251

2.4.1 O serviço tributável pelo ISS: considerações preliminares ...................................... 252

2.4.2 O conceito de “serviço” ............................................................................................ 254

2.4.2.1 A prestação-fim como substrato fático da hipótese de incidência do ISS ............. 264

2.4.3 O papel da lei complementar na definição do serviço tributável pelo ISS ............... 266

2.5 Notas finais sobre as feições jurídicas das materialidades do ISS e do ICMS-M e as dualidades obrigação de dar/obrigação de fazer e atividade-fim/atividade-meio na demarcação do campo possível dessas incidências tributárias ..................................... 270

PARTE 3 – A TRIBUTAÇÃO PELO ICMS-M E PELO ISS SOBRE A LICENÇA DE USO DE SOFTWARE DISPONIBILIZADO

ELETRONICAMENTE 

1  A PRAGMÁTICA REVELANDO A COMPLEXIDADE DO TEMA “TRIBUTAÇÃO DE SOFTWARE” .............................................................................. 275 

1.1 A evolução da jurisprudência nos Tribunais Superiores em matéria de tributação de licença de uso de software pelo ICMS-M e pelo ISS ................................................... 276

1.1.1 O entendimento adotado pelo STF no RE nº 176.626 para fins de incidência do ICMS-M no licenciamento de uso de “software de prateleira” ................................ 278

1.1.2 A decisão preliminar proferida na ADI nº 1945-MC: nova perspectiva jurisprudencial? ........................................................................................................ 280

1.2 A pragmática na esfera normativa estadual .................................................................. 283

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1.3 A pragmática na esfera normativa municipal................................................................ 287

2  A INCIDÊNCIA DO ICMS-M E DO ISS SOBRE A LICENÇA DE USO DE SOFTWARE DISPONIBILIZADO ELETRONICAMENTE .................................... 291 

2.1 O licenciamento eletrônico de uso de software e o ICMS-M ....................................... 291

2.1.1 O conceito constitucional de mercadoria não alcança o “software” ........................ 291

2.1.2 Inocorrência de “operações relativas à circulação” nas licenças eletrônicas de uso de software ......................................................................................................... 296

2.2 O licenciamento eletrônico de uso de software e o ISS ................................................ 304

2.2.1 A licença de uso de software no formato tradicional (Software as a Product) e o ISS .......................................................................................................................... 305

2.2.2 A licença de uso na modalidade Software as a Service (SaaS) e o ISS ................... 309

2.3 O licenciamento de uso de software como atividade econômica incluída na competência residual da União ..................................................................................... 313

CONCLUSÕES ..................................................................................................................... 315 

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 346 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ................................................................................... 3465 

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INTRODUÇÃO

O emprego e o uso permanentes e crescentes da tecnologia concernem ao

mundo contemporâneo, desde a realização das mais simples tarefas do nosso cotidiano,

como consultas bancárias, dirigir automóveis, falar ao celular e navegar por sites na

Internet, até o processo produtivo e a administração de uma empresa, em uma crescente

dependência de aparatos tecnológicos na vida em sociedade, cujos membros a todo o

momento demandam acesso à informação.

Neste cenário, os recursos de Informática ocupam papel protagonista, em

virtude das múltiplas utilidades proporcionadas pelos computadores nas áreas

doméstica, profissional, industrial, financeira, comercial, de prestação de serviços e de

empresas em geral. Mediante a atuação conjunta do hardware e do software, cujas

instruções capacitam a máquina na resolução de problemas, o manuseio de sistemas de

computação, tanto no setor público como na esfera privada, auxilia seus usuários na

realização dos múltiplos afazeres.

No âmbito das telecomunicações, a estrada virtual da informação – a Internet

– consolidou a globalização da economia, dos mercados e da transmissão das

informações, contribuindo para um intercâmbio progressivo entre as mais variadas

culturas. Através da rede mundial de computadores temos hoje a mundialização das

relações, em que coletividades e nações não serão mais demarcadas por lindes

territoriais, mas por padrões e identidades culturais. Sob esse modelo universal, torna-

se irrelevante onde o indivíduo nasceu, onde trabalha e onde reside, importando a

conectividade que possui para contatar os demais participantes dessa rede globalizada.

Ao combinar intensa mobilidade, mediante a utilização de aplicativos nos

mais variados dispositivos (PCs, smartphones e tablets), com a disruptiva tecnologia da

computação em nuvem (cloud computing), a qual, situada no ápice do processo de

virtualização, propicia acesso a dados e aplicações a partir de qualquer computador

conectado à Internet, o avanço tecnológico exponencial da era digital favoreceu o

surgimento de meios extraordinários para se comunicar, se informar e se relacionar

social e economicamente, repercutindo na esfera comportamental da sociedade, nos

vínculos firmados entre seus membros, nas instituições e organizações.

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Dada a rápida evolução da tecnologia informática e das comunicações, o

mercado está, a todo momento, suscetível a ofertas cada vez mais amplas de bens e

atividades, que exigem constante (re)invenção de procedimentos, ferramentas e meios

de trabalho, bem como permanente atualização e aquisição de competências multi- e

interdisciplinares pela comunidade empresarial e profissional, nos mais variados setores

do conhecimento.

A dinâmica da sociedade informatizada, que tem a Internet como sua maior

expressão, ocasionou, no campo dos empreendimentos, uma revolução nas bases das

relações econômicas, com a exploração de novas possibilidades de negócios por parte

das empresas através das transações pela via eletrônica, sem a necessidade de atravessar

territórios, assinar papeis e recorrer a intermediários.

Nesse contexto das tendências tecnológicas amparadas pela Internet, que

concorrem para o surgimento de novas oportunidades de empreender e novos modelos

de negócios virtuais, com o consequente fornecimento eletrônico de sortidos conteúdos

digitais1, se destaca a disponibilização onerosa de softwares, ocupando medular espaço

no comércio eletrônico direto.

O software, ou programa de computador, tem ampla presença nas diferentes

esferas sociais, pois, integrado ao sistema informático, confere às pessoas físicas e

jurídicas profusas informações e utilidades na execução das mais variadas tarefas. O

equipamento para nada serve sem a estrutura lógica que capacita o processamento dos

dados e, por isso, os programas representam, nos dias hoje, importante fator de

desenvolvimento e autêntica substância da tecnologia da informação implantada no seio

das comunidades contemporâneas, organizando e otimizando as atividades.

Trata-se de uma tecnologia que está em contínuo processo de inovação, seja

aperfeiçoando suas próprias funcionalidades, seja contribuindo para a criação de novas

experiências, utilidades, produtos e serviços ou potencializando o desempenho dos já

criados, acrescentando-lhes aplicabilidades.

Esse atual panorama tecnológico pertinente à informática e às

telecomunicações, porém, tem tornado muito difícil e complexa a compreensão dos seus

1 Educação on-line, exames on-line, peticionamento eletrônico, SAC digital, assinatura digital,

músicas e livros eletrônicos, softwares etc.

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fenômenos, especialmente quando estudados e aplicados em outras áreas

epistemológicas, como no caso da Ciência do Direito. Disto não escapa o estudo da

disciplina jurídico-tributária a recair sobre os negócios com programas de computador,

instrumentalizados por meio das licenças de uso.

No princípio da sua exploração econômica, os softwares produzidos em larga

escala, designados de Software as a Product, eram licenciados em suportes físicos como

disquetes e CDs, executando-se sua instalação no computador do próprio usuário. Com

o aprimoramento da Internet, a oferta e a utilização dos programas expandiram-se

vertiginosamente no espaço virtual. Em paralelo às licenças de uso dos softwares

padronizados, desenvolveram-se também os programas de computador personalizados,

feitos sob medida a um específico cliente, bem como os denominados softwares

customizados que, apesar de prontos para uso padrão, sofrem modificações a fim de

atender demandas particulares. Mais recentemente, a implementação e disseminação da

infraestrutura em nuvem deu origem a formas complexas de empreender no ambiente

eletrônico, despontando o Software as a Service (SaaS) como um modelo de

licenciamento emergente, distinto das clássicas licenças envolvendo o Software as a

Product.

Tal contextura econômica-tecnológica acarreta problemas tributários de

intrincada solução. Com efeito, da dificuldade em definir (i) a natureza jurídica do

software e das relações contratuais estabelecidas na sociedade da informação, oriundas

da exploração econômica desses bens digitais, e (ii) precisar o seu enquadramento às

materialidades tributárias contempladas no sistema constitucional em vigor, deriva a

celeuma em demarcar a tributação incidente nas licenças eletrônicas de uso de

programas de computador.

Além de a tecnologia do software implicar algo inovador e, em contrapartida,

o direito positivo não conseguir acompanhar realidades sociais provenientes da rapidez

com que progridem inovações científicas e tecnológicas, a complicação e perplexidade

para tratar da tributação dos programas de computador decorrem também do pouco

conhecimento, por parte dos estudiosos do direito, acerca da tecnicidade imanente ao

software, sua atuação e papel dentro do sistema informático e das transações econômicas

tendo-lhe como objeto. Por isso, é de capital importância compreender as complexidades

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técnicas e contratuais que entrecortam os programas de computador, porquanto a

assimilação cuidadosa do dado fato permite formular um raciocínio jurídico mais

adequado, facilitando a tarefa de enquadrá-lo na norma jurídica.

Especificamente na esfera do direito tributário, demarcar os contornos

jurídicos aplicáveis à realidade fenomenológica do software torna-se sobremodo

dificultoso, também, diante de um sistema constitucional tributário rígido, em que a

repartição de competências entre os entes políticos não pode simplesmente acomodar

criações tecnológicas inovadoras arrimada na analogia, na substância econômica dos

fatos, na capacidade contributiva, no interesse da arrecadação, tampouco em

comparações com sistemas jurídicos alienígenas ou em outras técnicas hermenêuticas a

desserviço da federação. Ainda que sob o aspecto da política fiscal e da justiça tributária,

novas formas de negócio devam ser tributadas, é preciso observar os princípios

constitucionais, máxime a legalidade e a segurança jurídica, cabendo ao jurista e

aplicador do direito, a partir de uma visão sistêmica da linguagem do direito positivo,

investigar o regime jurídico adequado.

Dada a abrangência do tema relativo à tributação do software, este trabalho

tem como escopo abordar a incidência do ICMS-Mercadoria e do ISS sobre um conjunto

específico de negócios jurídicos com programas de computador, mormente as licenças

de uso concedidas no âmbito do comércio eletrônico direto, mediante a transmissão de

dados pela Internet, definindo, assim, se tais transações consubstanciam materialidades

destes impostos estadual e municipal, correspondentes, respectivamente, à operação

relativa à circulação de mercadoria e à prestação de serviços.

Destarte, esclareça-se, desde logo, que não serão objeto deste escrito

controvérsias fiscais atinentes, por exemplo, à definição do estabelecimento virtual, à

tributação sobre as remessas ao exterior na importação de software pela contribuição ao

PIS, COFINS, CIDE e pelo IRRF a tributação dos serviços de comunicação pelo ICMS-

Comunicação e a submissão do software ao regime das imunidades. Não irá se adentrar

também no complexo regime tributário dos modelos de serviços baseados na

computação em nuvem distintos da categoria SaaS, nem serão aqui formuladas

considerações políticas sobre o acerto (ou necessidade de reforma) do modelo de

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tributação da circulação de bens e serviços estatuído pelo sistema constitucional

tributário brasileiro.

Calcado nesse intento científico, o desdobramento do tema proposto nos leva

a questões bastante polêmicas e hodiernas, tais como: a definição jurídica do software,

desvinculada de seu suporte material; a proteção jurídica do programa de computador,

conforme tratamento conferido pela Lei nº 9.609/98, que, por sua vez, reflete na forma

contratual adotada, representada, principalmente, pelos contratos de licença de uso; o

Software as a Service como um modelo de negócio em crescimento, contrastante aos

praticados com os softwares tradicionais – Software as a Product; a rígida discriminação

das competências tributárias e os conceitos empregados pelo constituinte ao fixar as

materialidades dos tributos; a incorporação dos uso linguísticos privados pela

Constituição e a aplicação do art. 110 do CTN; o papel do legislador complementar; a

definição da expressão “operação relativa à circulação” e do conceito “mercadoria” para

demarcar, com rigor, o núcleo factual da hipótese de incidência do ICMS-M; a definição

da expressão “prestar serviços de qualquer natureza” para a exata compreensão do

critério material do ISS; a classificação tripartite do software, adotada pelo STF no RE

nº 176.626-3, alheia às transações virtuais do comércio eletrônico direto, onde a grande

maioria dos softwares modernos são licenciados; e, finalmente, a tributação pelo ICMS-

M e do ISS no licenciamento oneroso de uso de softwares disponibilizados

eletronicamente, através da Internet.

A partir das reflexões desenvolvidas nesta investigação dogmática quer-se

aventurar, sempre primando pela consistência e exatidão, no difícil desafio enfrentado

atualmente pelo pensamento jurídico, que é a integração entre tecnologia e direito.

Decerto, sem a pretensão de esgotar o assunto, tampouco conceber posições definitivas,

até porque, além de não condizerem tais anseios com qualquer desiderato científico, as

inovações tecnológicas avançam tão rápida e sucessivamente que o sistema posto e o

próprio jurista não conseguem acompanhar esse acelerado ritmo evolutivo.

À vista disso, assente na legislação vigente e sob uma visão crítica dos

critérios fazendários e precedentes jurisprudenciais a respeito do tema, buscar-se-á

oferecer subsídios e mecanismos para a construção de um raciocínio jurídico adequado

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na solução das questões tributárias decorrentes da inserção dos computadores e seus

programas na rica e heterogênea camada da interação subjetiva.

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PARTE 1

ABORDAGEM FUNDAMENTAL PARA O ESTUDO DA TRIBUTAÇÃO DOS

NEGÓCIOS JURÍDICOS ENVOLVENDO SOFTWARE

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1 NOÇÕES SOBRE A INFORMÁTICA: A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA

COMPUTAÇÃO, SEUS ELEMENTOS BÁSICOS (hardware e software) E

SEUS IMPACTOS NA SOCIEDADE

1.1 Informática: o que é?

Informática, domínio científico voltado especialmente ao computador e às

suas aplicabilidades, constitui termo resultante do processo de aglutinação das palavras

informação e automática. De acordo com a sua acepção lexical, extraída do Dicionário

Houaiss, informática é “o ramo do conhecimento dedicado ao tratamento da informação

mediante o uso de computadores e demais dispositivos de processamento de dados”2.

Nesse sentido, informática pode ser definida como a ciência que estuda a

entrada, o processamento, o armazenamento e o envio automáticos de dados e

informações a partir do uso dos computadores, potencializado, mais recentemente, pelo

surgimento da Internet, que proporcionou a perene conectividade entre as pessoas.

Durante muito tempo, à sociedade importava o computador apenas enquanto

um equipamento, um bem físico, utilizados pelos indivíduos. Na atualidade, porém,

sabe-se que o domínio da informática abrange diferentes e numerosas feições, como o

complexo universo da programação e das suas linguagens, os investimentos necessários

para o desenvolvimento tecnológico, bem como uma série variada de utilidades e

negócios, tudo isso conformando o contexto sociocultural contemporâneo.

Integrada a informática à nossa cultura, impõem-se diversos desafios

ocasionados pelo seu ingresso na vida cotidiana, de caráter social, político, econômico

e jurídico. Com o escopo de tratarmos de parte destes últimos – os desafios jurídicos –,

relacionados especificamente ao Direito Tributário, torna-se relevante neste primeiro

momento, conhecer o universo da informática, mediante breves abordagens sobre a

história do computador, os componentes básicos da estrutura computacional (hardware

e software), a criação da Internet, e, por fim, os impactos da inovação da tecnologia

informática sobre a sociedade, realçando seus reflexos no âmbito jurídico.

2 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, s.v.

informática. Disponível em: ˂https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v2-3/html/index.htm#2˃. Acesso em: 29 out. 2016.

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Passamos, assim, nos próximos tópicos, a discorrer sobre os momentos mais

relevantes da trajetória da computação, que combinam fases da evolução da lógica-

matemática e dos meios comunicacionais. Serão percorridos marcos históricos

importantes, como o surgimento do ábaco e das calculadoras subsequentes, a origem do

computador moderno, o nascimento da microinformática, a criação da rede mundial de

computadores e as tendências atuais do setor computacional.

1.2 A evolução histórica da computação

Ao longo da trajetória da humanidade, o indivíduo sempre buscou

desenvolver instrumentos e ferramentas para auxiliá-lo nos seus afazeres diários.

Indiscutivelmente, o computador, compreendido, em seu significado medular como uma

“máquina para resolver problemas de cálculos”3, figura, desde os seus primórdios, como

um facilitador na realização das tarefas cotidianas.

O princípio da era da computação nos remete à Antiguidade, mais

precisamente à cultura mesopotâmica por volta de 3.000 a.C., quando sucedeu o registro

inaugural do ábaco¸ posteriormente aperfeiçoado por outras civilizações4 para sua

aplicabilidade nos ramos do comércio e da construção civil. Conhecido como a primeira

ferramenta de cálculo criada pelo homem e denominado “contador de bolas”, o ábaco

caracterizava-se como um instrumento mecânico bem rudimentar que, em sua origem,

possibilitava efetuar as operações aritméticas mais simples – adição e subtração.

“Tratava-se de uma prancha de madeira, na qual colunas ocas eram gravadas

de forma paralela. A coluna da direita representava a unidade, sua vizinha as dezenas,

assim por diante até um milhão ou mais. Pedrinhas (calculi em latim), e mais tarde

fichas, eram dispostas nas colunas: cinco pedrinhas na coluna das dezenas para o número

cinquenta etc.”5. Não obstante seu caráter bem primitivo, o ábaco envolvia princípios

técnicos aplicados em grande parte dos instrumentos de cálculos aritméticos inventados

até a metade do século XX, alterando-se apenas a tecnologia relativa aos modos de se

3 IDANKAS, Rodney. Informática para concursos. 5. ed. São Paulo: Método, 2014, p. 2. 4 Esse mecanismo de cálculo foi muito difundido no Oriente e na Rússia, denominando-se soroban, o

ábaco japonês, suan-pan, o ábaco chinês e stchoty, o ábaco russo. 5 BRETON, Philippe. História da Informática. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Universidade

Estadual Paulista, 1991, p. 65.

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realizar os cálculos: do processamento exclusivamente manual sucedeu o mecânico,

sobrevindo, em seguida, o processamento elétrico.

Muito tempo depois, em torno de 1622, Sir William Oughtred concebeu a

régua de cálculo, um dos primeiros mecanismos analógicos da computação. Com

propriedades logarítmicas em escala, permitiu executar operações mais complexas,

favorecendo a presteza na resolução de problemas matemáticos. Foi neste mesmo

século, no ano de 1642, que surgiu a primeira calculadora mecânica, da lavra do

matemático e filósofo francês Blaise Pascal e designada como La Pascaline, cujo

funcionamento apoiava-se num sistema de pequenas engrenagens, executando os

cálculos de adição e subtração.

Em 1673, Gottfried Leibniz aperfeiçoou a máquina de calcular de Pascal,

acrescentando-lhe as operações de dividir e multiplicar. O matemático alemão, aliás, foi

um dos precursores da Lógica Matemática moderna. Leibniz propôs uma espécie de

cálculo universal para o raciocínio que possibilitaria “que verdades de qualquer ciência

pudessem ser ‘calculadas’ por operações aritméticas, desde que formuladas na referida

linguagem universal”. Em última instância, implicaria “substituir o genérico

dialoguemos por um mais exato calculemos” e “as discussões não seriam, assim,

disputas controvertidas, de resultado duvidoso e final não concluído, mas sim formas de

cálculo que estabelecessem a maior ou menor verdade de uma proposição”6. A

concepção de Leibniz por uma linguagem universal, reduzindo o pensamento a cálculos,

é o princípio dos procedimentos formais pela mecanização do ato de raciocinar que,

tempos depois, na primeira metade do século XX, será engendrada pela “máquina de

Turing”.

No início do século XIX, em plena Revolução Industrial, Joseph Maire

Jacquart criou o tear inteiramente automatizado com a introdução da técnica de

armazenamento de informações em placas perfuradas, revolucionando a indústria têxtil.

Apesar de aplicado no ramo da tecelagem, que até então operava pelo sistema manual,

o método do tear automático através da leitura de cartões em uma sequência programada

projetou-se fortemente na área da computação.

6 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia.

Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 51.

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Neste rumo, inspirado pelas placas perfuráveis de Jacquart e no impulso da

industrialização, que demandava gradualmente cálculos mais intrincados, o inglês

Charles Babbage idealizou, em 1822, a Máquina das Diferenças, apta a resolver

equações polinomiais, calculando tábuas de logaritmos com celeridade. Diferentemente

das máquinas anteriores, de operação analógica7, cujos cálculos utilizavam medidas, a

Máquina Diferencial funcionaria de maneira digital8, realizando cálculos mediante a

aplicação de fórmulas numéricas.

Anos depois, em 1833, Babbage arquiteta a Máquina Analítica, a qual,

segundo o próprio matemático, possibilitaria que “uma máquina finita efetuasse cálculos

de alcance ilimitado” e, por conseguinte, a “infinidade espacial” converter-se-ia em uma

“infinidade temporal”9. Embora de caráter incipiente, pode-se afirmar que se trata dos

primeiros traços teóricos de um computador moderno.

A máquina analítica, de certa forma, era semelhante aos computadores atuais, pois dispunha de memória, de programas, de unidade de controle e de periféricos de saída. Era capaz de desempenhar uma ampla gama de tarefas de cálculo que variavam de acordo com as instruções inseridas pelo seu operador por meio de cartões perfurados. E foi graças a esta invenção que Babbage ficou conhecido como o Pai da Informática10.

A invenção do matemático inglês encerrava, portanto, uma concepção

inaugural da máquina de cálculo universal, pois já enunciava os cânones de um

computador programado, que apenas se concretizaria no século seguinte. Babbage

anteviu a necessidade de uma nova linguagem para programar a Máquina Analítica,

portadora de uma sequência de instruções modificáveis e que, portanto, habilitaria o

dispositivo a realizar diferentes funções. Mais tarde, isso seria designado de software.

7 Computador analógico: “computador que opera com dados que se representam por variáveis físicas;

os dados que o alimentam convertem-se nos seus circuitos mecânicos ou elétricos equivalentes, com o que se forma um sistema análogo ao fenômeno físico que se investiga” (cf. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, s.v. computador analógico. Disponível em: ˂https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v2-3/html/index.htm#2˃. Acesso em: 29 out. 2016).

8 Computador digital: “computador que opera com dados discretos ou descontínuos, efetuando com eles processos aritméticos ou lógicos” (cf. ibid., s.v. computador digital).

9 BRETON, Philippe. História da Informática. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 70.

10 PINOCHET, Luis Hernan Conteras. Tecnologia da informação e comunicação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 92.

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Ambos os mecanismos engendrados por Babbage, que exigiam tecnologia

muito avançada, não puderam ser implementados à época por razões de ordem técnico-

financeira. Todavia, sua concepção de máquinas programáveis fortemente contribui

para o desenvolvimento dos futuros computadores.

Em 1854, é publicado o trabalho An Investigation of the Laws Thought11, em

que o inglês George Boole, objetivando automatizar o processo do raciocínio humano,

expõe regras de um sistema simbólico a partir de cálculos da lógica matemática.

Nasceria, assim, a Lógica Simbólica, o primeiro sistema linguístico formal bem-

sucedido para o raciocínio lógico, que teve como entusiasta distante o matemático

Gottfried Leibniz, anteriormente mencionado. A álgebra booleana, ulteriormente

aperfeiçoada por outros matemáticos, servirá como ferramenta para os futuros

projetistas computacionais, representando a base para a criação dos circuitos

empregados nos computadores eletrônicos digitais, visto que da álgebra de Boole

derivaria o sistema binário utilizado nos computadores.

Podemos dizer que a última contribuição do século XIX para a história da

computação foi do engenheiro norte americano Herman Hollerith. Contratado pelo

United States Census Bureau, criou, também com suporte na metodologia das placas

perfuráveis de Jacquart, um processador de dados eletromecânico para o recenseamento

populacional de 1890 nos Estados Unidos. Trata-se do primeiro leitor automático de

cartões perfurados capaz de executar diferentes processamentos de informações, sendo

prescindível a reconstrução do mecanismo e, com isso, economizando-se drasticamente

os anos para a apuração dos dados. Sua invenção despontou como um estágio

embrionário da indústria moderna de processamento de informações, brotando, ainda

que em nível bem principiante, a atividade da programação.

Com o propósito de comercializar sua invenção em outros países, Hollerith

fundou em 1896 a empresa Tabulating Machine Company, que mais tarde, unida a

outras empresas do ramo, tornar-se-ia em 1924, sob a presidência de Thomas Watson, a

International Business Machines (IBM).

Avançando para a primeira metade do século XX, em 1936 foi publicado o

artigo On Computable Numbers with an application to the Entscheidungsproblem, no

11 Tradução livre: “Uma Investigação sobre as Leis do Pensamento”.

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qual o matemático Alan Turing concebe um modelo teórico e hipotético de máquina

capaz de solucionar todos os problemas passíveis de serem descritos em algoritmos.

Com suporte no sistema lógico booleano, Turing parte do “princípio de que a simples

aplicação de regras permite passar mecanicamente de uns símbolos a outros”12.

Desenvolve, então, uma ferramenta teórica que opera automaticamente símbolos de um

sistema formal segundo as regras desse próprio sistema.

A Máquina de Turing “consistia simplesmente em uma fita de papel e um

ponteiro que podia ler, escrever ou apagar um símbolo, deslocar a fita para a direita ou

para a esquerda, marcar uma das casas do papel e parar”13. Neste seu trabalho, Turing

não almejava a feitura física do mecanismo, mas restringia-se a refletir sobre os aspectos

lógicos de seu funcionamento. Como resultado de suas reflexões, formaliza

definitivamente o conceito matemático da noção de algoritmo, provando que “para

qualquer sistema formal existe uma máquina de Turing que pode ser programada para

imitá-lo. Ou em outras palavras: para qualquer procedimento computacional bem

definido, uma máquina de Turing universal é capaz de simular um processo mecânico

que execute tais procedimentos”14.

A concepção e os conceitos dessa “máquina universal” foram um grande

passo teórico para a própria invenção de máquinas com programas capazes de executar

todo tipo de operação, com o processamento automático de informações de forma

eficiente. Vale dizer, a máquina de Turing constitui o arcabouço teórico do que veio a

ser denominado Ciência da Computação.

Desde então, em constante movimento pela inovação tecnológica e sempre

almejando agilizar expedientes e procedimentos, o homem desenvolveu outros inúmeros

mecanismos computacionais, dentre os quais destacam-se os equipamentos arquitetados

por americanos e europeus durante a II Guerra Mundial, período de grande incentivo ao

desenvolvimento de computadores diante da necessidade de prover a defesa nacional de

soluções no campo estratégico, nuclear e balístico.

12 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia.

Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 56. 13 BRETON, Philippe. História da Informática. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Universidade

Estadual Paulista, 1991, p. 59. 14 FONSECA FILHO, Cléuzio, op. cit., p. 76.

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Nesse contexto, os nazistas criaram a máquina eletromecânica Enigma que,

operada por rotores, detinha a função de criptografar códigos de guerra. Os Aliados,

encabeçados pela Inglaterra e escorados em projeto de Alan Turing, construíram a

Colossus com o fim de decifrar e interpretar as mensagens militares do Exército Alemão,

sendo destruída em 1946 para evitar sua apropriação pelas forças inimigas. Sem

aplicabilidade geral, mas concebida para decodificar códigos secretos durante a guerra,

e com sua existência revelada apenas por volta de 1970, a Colossus acabou por não

promover avanços, nem influenciar outros mecanismos no universo tecnológico da

informática.

Em 1944, foi desenvolvida, nos Estados Unidos, a IBM Automatic Sequence

Controlled Calculator, uma calculadora eletromecânica programável, com sistema de

controle automático, oriunda do esforço conjunto de Thomas Watson da IBM, do

Professor Howard Aiken da Universidade de Harvard e da Marinha Americana,

finalmente concretizando-se a máquina analítica tão sonhada por Babbage15.

Denominada Mark I, “era uma máquina de grandes proporções que utilizava

dispositivos de programação controlada por fita papel ou cartões perfurados”16,

destinando-se a calcular os trajetos da marinha norte-americana. Distinguia-se das

máquinas anteriores na medida em que utilizava “memórias separadas para instruções e

dados, o que ficou denominado arquitetura de harvard” 17. Pesava 5 toneladas, media

2,60 metros de altura, 16,6 metros de comprimento e tinha 800.000 partes.

Nesse ponto, importa destacar que a Mark I, embora mais conhecida pelo

público, não representa o prenúncio de dispositivos eletromecânicos programáveis. Em

verdade, o engenheiro civil alemão Konrad Zuse, em 1936, foi o primeiro a construir

modelos com instruções de monitoramento da máquina, similar à estrutura de Babbage,

15 “O MARK I havia sido realizado praticamente segundo os planos de Babbage: o mecanismo de

transferência de certa quantidade de uma parte da máquina para outra, como a adição, fazia-se com o auxílio de um sistema de rodas dentadas movidas por impulsos elétricos que efetuavam uma rotação a cada dez impulsos. O programa era inscrito em uma faixa de papel perfurada e um relógio sincronizava as operações efetuadas pela máquina” (BRETON, Philippe. História da Informática. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 81).

16 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003, p. 5.

17 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia. Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 103.

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totalmente operacional. O seu modelo ZI foi um computador “construído inteiramente

com peças mecânicas e que usava uma fita de película cinematográfica para as

instruções que controlavam a máquina”18.

Contudo, as invenções de Zuse sofreram fortes barreiras em detrimento do

seu reconhecimento. No período pré-guerra, foi obrigado a abandonar sua linha de

desenvolvimento. Após ter retomado os estudos finalizou, em 1941, seu terceiro modelo,

o Z3, que acabou sendo destruído junto com sua casa, em um bombardeio de 1944.

Conquanto tenha iniciado, em concomitância com a conclusão do Z3, o

desenvolvimento do modelo Z4, este processo também teve que ser interrompido ante o

avanço das tropas aliadas na Alemanha, permanecendo a máquina escondida na cidade

de Hinterstein, na Bavária. Somente em 1950, Zuse reconstruiu o Z4, criando sua própria

empresa de informática, posteriormente adquirida pela conhecida empresa Siemens.

Ambas as invenções, as máquinas de Zuse e a Mark I, contribuíram

decisivamente para a concretização da ideia de “programa armazenado”, incorporada

nos computadores vindouros. Empregado separadamente ao hardware, o “programa

armazenado” convertia o mecanismo a uma máquina de propósito geral.

Com o fim da Segunda Guerra, engenheiros norte-americanos constroem, em

1946, o Electronic Numerical Integrator and Computer (ENIAC), a primeira máquina

de calcular de tecnologia eletrônica. Operado por válvulas a vácuo, o ENIAC foi

utilizado para o desenvolvimento da bomba atômica, pesava em torno de 30 toneladas e

ocupava uma superfície de 160m2, porém, era até mil vezes mais veloz do que o Mark

I. Sua idealização representa a fronteira entre a era das grandes calculadoras e a era da

computação moderna. Nas palavras do engenheiro francês Phillippe Breton, o ENIAC

“será efetivamente a máquina que irá operar a transição entre as últimas calculadoras e

os primeiros computadores. Sua concepção obedecia ao princípio das máquinas de

calcular clássicas, mas sua tecnologia, a eletrônica, será a dos primeiros

computadores”.19 Temos, assim, a gênese da computação moderna.

18 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia.

Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 101. 19 BRETON, Philippe. História da Informática. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Universidade

Estadual Paulista, 1991, p. 74.

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1.2.1 A era da computação moderna até os dias atuais

Em consonância ao tópico anterior, a evolução dos mecanismos de cálculo

até a metade da década de quarenta possui estreitos laços com trabalhos pontuais no

campo científico da Matemática e da Física e, dado o caráter mais isolado desses

projetos, fica facilitada a tarefa de periodizá-los, bem como discernir a respectiva

importância na história dos computadores.

A partir da década de cinquenta, coincidente com o início da computação

moderna, enumerar os fatos relevantes, contudo, é missão extremamente difícil e

complexa. Isso porque os estudos e pesquisas na área da informática, patrocinados por

investimentos tanto públicos quanto privados, propagaram-se nas diversas

universidades, nas indústrias e nos grandes laboratórios, inclusive em ambientes

domésticos, o que provocou um desenvolvimento em ritmo vertiginoso da computação,

avançando sua tecnologia em extensão e profundidade.

Daí porque, no presente item, intenta-se realizar um panorama geral sobre o

desenvolvimento da computação moderna, sem dispensar a abordagem dos episódios

mais relevantes, como o surgimento da tecnologia dos transistores e dos circuitos

integrados, a origem dos microcomputadores e a relevância crescente da programação e

de suas linguagens, fatos que propiciaram o desenvolvimento exponencial do hardware

e do software e a criação de novas arquiteturas e conceitos, provocando uma abrupta

mudança do paradigma tecnológico industrial, até então vigorante, para o paradigma

tecnológico digital (vide item 1.5 – Parte 1).

A era da computação moderna, rompida no período pós-guerra, caracteriza-

se pelo forte automatismo, proporcionado pela concepção de um novo modelo de

organização interna do computador. Nesse momento, voltou-se a investigação científica

à estrutura lógica das máquinas com o objetivo de superar o modelo organizacional das

calculadoras até então elaboradas. Percebe-se então que o computador não se restringe

a temas relativos ao hardware, mas também ao software, elevando a arte de programar

computadores a um patamar de maior prestígio na edificação tecnológica

computacional.

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Sem sombra de dúvida, foram imensos os avanços tecnológicos

experimentados pelas máquinas até a década de quarenta (calculadoras mecânicas →

calculadoras eletromecânicas → calculadoras eletrônicas). Todavia, apesar de a

tecnologia eletrônica, empregada nas últimas calculadoras tradicionais, em especial na

ENIAC, caracterizar-se como avançada à época e atributiva de mais rapidez e eficiência

aos mecanismos, a sua lógica organizacional interna permanecia inalterada, vale dizer,

o princípio-base que as orientava remetia à antiquada máquina de Pascal: as válvulas

meramente substituíram as engrenagens.

Nessa senda, estava ficando cada vez mais evidente que, além das questões

referentes à “engenharia física” da máquina, também figuravam fundamentais e

complexas as questões relativas ao componente “não-físico” do computador,

concernente à sua operação lógica interna, à sua codificação.

Diferentemente dos estudiosos antecessores, mais atentos às feições da

engenharia dos dispositivos, o matemático John Von Neumann, dotado de elevada

habilidade de abstração, concentrou seu trabalho nas funções lógicas das máquinas, ou

seja, nas linguagens de programação do computador, compreendidas como a gramática

aplicada às máquinas para alterarem seus próprios cálculos e operações.

Inspirado na estrutura idealizada por Babbage e debruçado nos estudos

formulados por Alan Turing, Von Neumann elabora, em 1945, um modelo de

organização lógica da máquina, assimilado ao funcionamento do sistema nervoso. Esse

novo modelo de “cérebro artificial”, sustentado na ordenação de cálculos algorítmicos,

teria uma programação automatizada, por meio da adoção de ferramentas de cálculo

aptas a solucionar uma diversidade de problemas.

Seu funcionamento prescindiria de ações do ser humano para introduzir

“manualmente” as regras e coordenar os cálculos, uma vez que a máquina, mediante a

prévia inserção de programas, já estaria habilitada a calcular e a processar as

informações. O operador da máquina seria substituído por uma unidade de comando

que, dispondo de um conjunto de instruções armazenadas em memória, cuidaria de

organizar e fazer funcionar todas as outras partes das máquinas. “A instrução, sob a

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forma de código numérico, tem assim a mesma forma que um dado, e torna-se possível

conservá-la em memória: é a noção de algoritmo ou de programa gravado”20.

A própria máquina, portanto, se encarregaria do desenvolvimento das

operações em decorrência de uma disposição lógica específica, de uma linguagem de

programação mais sofisticada, aperfeiçoando-se, assim, a ideia de “programa

armazenado”. “A pilotagem é da própria máquina. O operador só intervém para

introduzir os dados e os programas e para ler os resultados”21. Essa egressão gradual do

homem intervindo na operacionalização dos mecanismos é o que caracteriza o processo

de automatização.

Firmada nessas premissas lógicas, a máquina projetada por Von Neumann,

nomeada EDVAC (Electronic Discrete Variable Computer) em trabalho publicado em

30 de junho de 1945, fundamentou a estrutura dos computadores que lhe sobrevieram e

exerceu enorme influência nas técnicas de linguagens de programação em todo o mundo.

O princípio do funcionamento dos computadores até hoje se baseia nos conceitos

básicos da arquitetura de Von Neumann: máquinas inteiramente automáticas, que

dispõem de uma memória ampliada e de uma unidade de comando interno, que efetuam

operações lógicas de cálculo e de processamento de informações graças a algoritmos

gravados22, com periféricos de saída e entrada de dados.

Sob a influência das bases principiológicas do EDVAC, podemos citar a

construção por universidades inglesas e americanas, entre 1945 e 1952, da Máquina IAS,

BINAC, EDSAC e Manchester MARK I, consideradas como os primeiros principais

exemplares dos computadores modernos e aplicadas para uso militar.

A partir da década de cinquenta, os computadores modernos ultrapassam as

fronteiras universitárias com o objetivo de serem comercializados, destacando-se o

UNIVAC, o IBM 701 e IBM 702.

O UNIVAC, materializado em 1951, foi o primeiro computador

comercialmente disponível, dedicado ao mercado civil. Por deter grande memória,

assumiu as mais variadas funcionalidades: previsão de resultados de eleições,

20 BRETON, Philippe. História da Informática. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Universidade

Estadual Paulista, 1991, p. 100. 21 Ibid., p. 98. 22 Ibid., p. 90.

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32

recenseamento populacional e tarefas administrativas mais simples, como a elaboração

de folhas de pagamento e cálculos matemáticos.

Os computadores IBM 701 e IBM 702 foram produzidos e comercializados,

respectivamente, para uso militar e administrativo. O IBM 702, pioneiro da empresa no

mercado de computadores civis, vendeu 15 exemplares, sobretudo a empresas que

demandavam disponibilização rápida e eficaz de uma quantidade enorme de

informações. O emprego exitoso do UNIVAC e do IBM 702 mostrou que a computação

tinha lugar no âmbito civil, transpondo a sua utilização restrita ao domínio militar e

científico.

Nessa primeira geração de computadores modernos, caracterizados pelo

emprego de válvulas e já estruturados a partir do conceito de programa armazenado, as

máquinas detinham instruções de operação introduzidas para desempenhar funções

específicas. “Cada máquina tinha um programa em código binário diferente que

indicava o fluxo das operações. Isto dificultava a programação e limitava a versatilidade

desses primeiros computadores”23.

Já na segunda metade da década de cinquenta, surge a geração dos

computadores operados por transistores. Em torno de 1956, o Instituto de Tecnologia de

Massachusetts (MIT) desenvolve o primeiro computador transistorizado. Os

transistores, substitutivos das válvulas e menores, permitiram a criação de computadores

menos volumosos, mais potentes e velozes, com um consumo bem menor de energia.

Em meados dos anos sessenta, sobrevêm os computadores baseados em

circuitos integrados (CI)24, tomando lugar dos transistores individuais. A tecnologia CI

constituía um grande número de transistores e componentes eletrônicos miniaturizados

em um chip (microchip), o que viabilizou o desenvolvimento dos microprocessadores,

disponibilizados comercialmente, pela primeira vez, em 1970 pela Intel. Do advento dos

microprocessadores criaram-se os microcomputadores, propiciando a informatização de

empresas e universidades.

23 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia.

Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 106-107. 24 IBM 360, lançado em 1967, com dispositivos de entrada e de saída.

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33

Ante o rápido progresso dos componentes eletrônicos miniaturizados e da

quantidade de integração simultânea de circuitos, o sistema CI avançou

vertiginosamente. Com os circuitos integrados em larga escala, ampliou-se a capacidade

de processamento de dados e de armazenamento, consagrando-se, assim, a geração dos

microcomputadores, bem como aumentando consideravelmente o desempenho dos

denominados supercomputadores.

Os supercomputadores, despontados nos anos 70, impressionam pela sua

arquitetura, com enorme velocidade (vários processadores) e elevada capacidade de

armazenamento, requisitando instalações e sistemas de refrigeração especiais. Dadas

essas características, o emprego dos supercomputadores tem lugar em grandes centros

militares, financeiros e de pesquisa científica, já que executam trabalhos bastante

complexos, que envolvem um grande número de informações e de cálculos

matemáticos.

Como visto, a invenção dos microprocessadores tornou realidade a ideia do

microcomputador, que foi o primeiro passo para o advento dos computadores pessoais

(Personal Computer - PC). O desenvolvimento dos computadores pessoais conferiu

uma nova dimensão à cultura informática ao proporcionar o alcance do computador a

milhares de pessoas. Deveras, a sua popularização desencadeou o uso individual do

computador, voltado para a organização e a execução das tarefas no âmbito profissional

e doméstico, transformando-se o computador em um verdadeiro bem de consumo.

Da trajetória dos computadores pessoais, surge, em 1975, o Altair 8800,

operado pelo processador chip 8080 da Intel e cuja linguagem de programação,

designada BASIC, coube a Bill Gates e Paul Allen, fundadores da Microsoft,

desenvolver.

Inspirados no microcomputador Altair, Steve Jobs e Steve Wozniack lançam,

em 1977, o Apple II, o primeiro computador pessoal comercializado com sucesso, que

já dispunha de teclado integrado, monitor com interface gráfica e cujo sistema

operacional, igualmente elaborado com o auxílio da Microsoft, figurava uma variação

da linguagem BASIC. Na linha dos primeiros computadores pessoais da Apple,

destacam-se também o Lisa (1983) e o Macintosh (1984). Este último pioneiro em

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34

utilizar o mouse e ter a interface gráfica que conhecemos hoje, com menus, ícones, área

de trabalho e pastas.

Por volta de 1981, a IBM ingressa no mercado dos microcomputadores,

consagrando, definitivamente, a força dos computadores pessoais nos múltiplos

domínios sociais. Mais uma vez, recorre-se a Bill Gates, que desenvolve para a gigante

IBM o Sistema Operacional PC-DOS. Deste, em versões modificadas, derivou o MS-

DOS, o qual, largamente comercializado pela Microsoft, consolidou a empresa de

software como a mais bem-sucedida no mercado de microcomputadores.

No espectro da revolução informática, surgem, assim, os grandes sistemas

operacionais, como o acima citado DOS. O sistema operacional, na qualidade de

principal software instalado na máquina, consiste na unidade central de procedimentos

do computador, incumbindo-lhe organizar e administrar os seus recursos. Por estar

relacionado diretamente ao funcionamento da máquina, é o sistema operacional que

torna possível o uso das funcionalidades de um computador, na medida em que executa

as diversas tarefas relativas aos programas nele instalados, bem como às partes físicas

do computador.

Na história dos microcomputadores, o Windows da Microsoft,

irrefutavelmente, vingou como o sistema operacional padrão dos computadores

pessoais, sendo o mais utilizado no mundo25. Isso porque, ao contrário do sistema

operacional da Apple, que era vendido juntamente com o hardware específico montado

pela própria empresa, a Microsoft permitia que as montadoras configurassem com o

hardware livremente e vendessem o computador por conta própria, desde que levassem

o seu sistema operacional (Windows) já instalado. Notadamente, a parceria Microsoft-

IBM, onde a IBM montava o microcomputador (hardware) com o sistema operacional

Windows, foi a que acabou lançando a Microsoft como líder no mercado de sistemas

operacionais.

Observa-se, dessarte, que, em paralelo à evolução da arquitetura física dos

computadores, desenvolveram-se os programas de computadores e suas linguagens,

25 OLHAR DIGITAL. Saiba qual é o sistema operacional mais usado no mundo. São Paulo: UOL, 08

abr. 2016. Disponível em: <http://olhardigital.uol.com.br/noticia/saiba-qual-e-o-sistema-operacional-mais-usado-no-mundo/57024>. Acesso em: 29 out. 2016.

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especialmente a partir da década de 1980. Do leque de investidas destinadas a construir

uma codificação, apta a ser identificada e processada por computadores, podemos citar

as linguagens de programação de baixo nível e as de alto nível.

As chamadas linguagens de alto nível, dotadas de forte abstração,

aproximam-se da linguagem humana, propiciando que algoritmos sejam descritos de

forma semelhante ao raciocínio deduzido intelectualmente pelo programador, criando-

se programas cujos comandos são expressos em código-fonte. Este distancia-se do

código de máquina e, por conseguinte, são ilegíveis pelo hardware. Já a linguagem de

programação de baixo nível refere-se aos programas cuja sequência de instruções

permite pouca abstração lógica e funciona como uma camada que interpreta o código-

fonte para código de máquina, denominado de código objeto ou código binário. O

código objeto, portanto, é o resultado da conversão pelo processo de compilação do

código-objeto para código de máquina, legível e executável pelo hardware.

A analista de sistemas da Marinha norte-americana, Grace Hooper, foi a

responsável pela origem da linguagem de alto nível, concebendo a primeira linguagem

de programação de computador a se aproximar da linguagem natural. Denominada

Flow-Matic, serviu como base para a criação da COBOL (Common Business Oriented

Language). Destacam-se também como linguagens de alto nível a Pascal, Fortran, Lisp

e Ada.

Na atividade da programação, a grande maioria dos softwares é elaborada, a

partir de um algoritmo26, em linguagem de alto nível, cujo código-fonte é traduzido

através de compiladores para a linguagem de baixo nível, a qual, em código binário

(código-objeto), conversa com a máquina. Ou seja, a linguagem de alto nível, expressa

em código-fonte, é transposta para a linguagem de baixo nível, expressa em código-

objeto, que instrui a máquina a processar dados atendendo às necessidades do usuário.

26 O algoritmo é “um conjunto de regras [...] bem definidas para a solução de um problema. Em outras

palavras, vem a ser a ideia ou solução que está na origem do procedimento. O algoritmo é expresso em pseudolinguagem. Não apresente ainda as instruções a serem dadas ao hardware [...]. É o primeiro elemento necessário para a elaboração do software. Uma vez elaborado o conjunto de regras que servirão para alcançar um determinado resultado lógico, o próximo passo é elaborar um procedimento que possibilite uma comunicação entre o programador e a máquina, de forma que sejam elaborados códigos, ao mesmo tempo que sejam inteligíveis para o ser humano, possam representar programas de programação” (BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003, p. 17).

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36

Quanto mais próxima é a camada de software da máquina, de forma mais eficiente o

programa é executado.

As complexidades no processo de elaboração de programas expandiram-se

com a difusão da Internet e do e-commerce (comércio eletrônico), exigindo-se o

desenvolvimento de novas linguagens de software que vencessem os obstáculos

inerentes a esse ambiente digital heterogêneo, tais como a incompatibilidade de

arquiteturas de hardware, de sistemas operacionais e de interfaces gráficas operadas por

plataformas.

Dentre essas linguagens, surgiu a Java, projetada como uma linguagem a ser

utilizada em qualquer computador e independentemente das características da rede.

“Com a linguagem Java se começou a superar a barreira que impedia que a Internet se

tornasse um computador: a barreira que impedia o uso de um software utilizado em um

determinado lugar, executando-o em qualquer plataforma” 27.

Deste cenário, portanto, é possível entrever que as companhias, inicialmente

lideradas pela IBM, passaram a desenvolver gradativamente sistemas de programação

desvinculados do hardware, dando início ao mercado de software que, desde então, tem

cada vez mais protagonizado as inovações tecnológicas no campo da informação e da

comunicação.

Já na história recente da computação e, com isso, já concluindo os seus traços

mais marcantes, sobressai a miniaturização dos equipamentos eletrônicos com

expressivos ganhos de memória, permitindo uma variabilidade de computadores

portáteis de fácil locomoção que, combinados com a perene conectividade, podem ser

acessados a qualquer momento e em qualquer lugar. Isso porque, graças à criação e ao

aprimoramento da Internet, computadores cada vez mais se conectam uns aos outros

(PC, celulares, TV, câmeras de segurança e demais dispositivos computacionais)

mediante a massiva integração entre informática e telecomunicações. Disto resulta a

formação de redes informativas continuamente mais integradas e capazes de transmitir

todo tipo de dado (filmes, fotos, textos, sons etc.).

27 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia.

Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 127.

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37

Dado o relevante papel da rede mundial de computadores na tecnologia

informática, alçando-a a patamares jamais imaginados por seus precursores, reserva-se

tópico próprio para tratar de forma breve sobre esse específico assunto.

Por fim, em desfecho ao elucidado no presente item, sintetizamos abaixo os

avanços na era da computação moderna que, fundada na tecnologia eletrônica e pululada

de heurísticas, costuma ser dividida pela comunidade computacional em cinco gerações,

com as seguintes características28:

Primeira geração (1946-1954)

Fim das calculadoras tradicionais e utilização da tecnologia eletrônica

Computadores operados por válvulas: alto consumo de energia

Computadores com programação voltada à linguagem da máquina,

conforme a tarefa a ser desempenhada

Fixação dos elementos básicos da computação moderna (Arquitetura do

computador do tipo Von Neumann, fruto da combinação dos estudos

científicos de Babbage e Turing)

Aplicação dos computadores na área militar e para fins científicos

Segunda geração (1955 e 1964)

Substituição das válvulas por transistores

Computadores enormes

Uso progressivo do computador na área comercial de grandes companhias,

especializadas no processamento de informações para fins de gestão

empresarial

Terceira geração (1964-1970)

Utilização dos circuitos integrados (microchip)

Equipamentos mais rápidos e mais compactos

Quarta geração (1970-1991)

Comercialização dos microcomputadores e dos computadores pessoais

28 As datas demarcando as gerações da computação moderna são aproximadas, pois não há marcos

temporais definidos, até porque a inovação tecnológica no campo da informática é difusa, constante e cada vez mais complexa.

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Aperfeiçoamento do desempenho dos supercomputadores

Lançamento do sistema operacional Windows

Quinta geração (1991- dias atuais)

Miniaturização dos equipamentos eletrônicos

Processadores com milhões de transistores e enorme capacidade de

memória em discos rígidos (fixos) ou discos removíveis (flexíveis)

Diversificação dos mecanismos e programas, dos respectivos métodos e

utilidades

Conectividade

Automatização crescente das áreas profissional, empresarial, comercial,

industrial e doméstica

1.3 Os componentes básicos do sistema computacional: o hardware e o software

Quando se pretende investigar aspectos jurídicos afetos a programas de

computador, torna-se indispensável uma breve distinção técnica entre o hardware e o

software, componentes elementares da máquina computacional.

O computador consiste numa criação tecnológica, voltada a receber,

processar e enviar informações, em que operam o hardware e o software.

O hardware envolve o conjunto das partes físicas do computador, pertinentes

aos equipamentos e às peças eletrônicas que o integram, composto basicamente pelos

seguintes dispositivos: (i) CPU29 ou Unidade Central de Processamento, responsável

pelo processamento de dados; (ii) periféricos de entrada e/ou de saída, encarregados de

receber e enviar dados (monitor, unidades de áudio e vídeo, teclado, mouse, impressora,

telas sensíveis ao toque, plotters, scanners, light pen etc.); e (iii) memórias, que se

caracterizam por armazenar e reter dados e informações que serão processados pela CPU

(RAM, ROM, Flash etc.). Trata-se, assim, dos suportes eletrônicos da máquina

edificados para executar as tarefas que lhes são requeridas.

29 Central Processing Unit “é o componente mais importante do hardware que permite todo o

processamento de dados, comandando as funções do equipamento, controlando seus componentes e permitindo o acesso às tarefas e a outros dispositivos” (PINOCHET, Luis Hernan Conteras. Tecnologia da informação e comunicação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 120).

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O software, por sua vez, engloba o conjunto dos elementos lógicos do

computador que permitem ao hardware executar uma variedade de ações, atendendo,

em última instância, às necessidades do usuário. São as sequências de instruções e dados

organizadas pelo software que capacitam, controlam e gerenciam as operações do

hardware, habilitando o funcionamento adequado do computador para receber e

transmitir dados. O programa de computador caracteriza-se, portanto, como a

“superestrutura intelectual do processamento eletrônico de dados”30.

Rememorando as linguagens de programação ilustradas no item 1.2.1 (Parte

1), os programas são expressos em (i) código-fonte, por meio do emprego da linguagem

de alto nível, mais aproximada à linguagem humana, e (ii) em código-objeto (ou código

binário), mediante o uso da linguagem de baixo nível, mais complexa, porém legível e

executável pelos equipamentos eletrônicos. Para que os comandos lógicos sejam

reconhecidos pelo hardware, possibilitando ao computador realizar as tarefas solicitadas

pelos usuários, as instruções e os dados, fornecidos em código fonte pela linguagem de

alto nível, precisam ser traduzidos, por compiladores, para a linguagem de baixo nível,

cujas instruções sob a forma de código binário (1 e 0)31 são executáveis pela máquina.

Segundo os ensinamentos de José Oliveira Ascenção:

O computador atinge a sua complexidade através do maior despojamento possível da linguagem. A linguagem do computador assenta unicamente no sinal eletrônico. A combinação de sinais permite chegar a dois símbolos - 1 e 0 – representando 1 a presença do sinal, e 0 a ausência desse sinal. A linguagem do computador é assim uma linguagem binária, em que os únicos elementos perceptíveis pela máquina são 1 e 0. A máquina transforma-os em sinal eletrônico ou omissão de sinal. Todas as combinações possíveis exprimir-se-ão, portanto, sempre sob a forma de uma seriação de 1 e 0. Num programa complexo, essa seriação será longuíssima: ocupará volumes inteiros32.

30 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 36. 31 “A linguagem de máquina utiliza apenas dois algoritmos ou dígitos – 1 e 0 –, significando os 1s a

passagem do circuito elétrico e os 0s o seu bloqueio. Cada dígito – 1 e 0 – constitui um ‘bit’ e o conjunto de 8 ‘bits’ forma um ‘byte’, que, por sua vez, corresponde a um caractere da linguagem humana. É a ordenação convencionada da série de ‘bits’, que compõem o ‘byte’, que determina o caractere correspondente. Assim, por exemplo, a letra ‘a’ em linguagem de máquina corresponde a 00010110, a letra ‘b’ a 00100110, o número ‘1’ a 01101100, o número ‘2’ a 00110010” (LOBO, Carlos Augusto da Silveira. A proteção jurídica dos programas de computador. GOMES, Orlando et al. (Orgs.). A proteção jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 104).

32 ASCENSÃO, José Oliveira. Direito autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 74.

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Em suma: é necessária a transposição para uma linguagem compreensível

pela máquina, compilando-se a linguagem de alto nível para a linguagem de baixo nível.

E o resultado dessa compilação é denominado de código-objeto. Este, portanto, resulta

da conversão do código-fonte em linguagem de máquina, a qual, reconhecida pelo

equipamento, habilita-o a realizar os comandos codificados.

Por analogia, pode-se afirmar que o hardware se refere ao corpo do

computador, enquanto o software é o cérebro da máquina. É a mente-software, por meio

de uma organização lógica pré-definida, que faz com que o corpo-hardware trabalhe.

Em conformidade ao elucidado linhas anteriores, o progresso tecnológico do

hardware proliferou, sobejamente, no campo dos microcomputadores, os quais, graças

à conectividade interligando equipamentos e dispositivos, inserem-se cada vez mais na

vida das pessoas, em especial na área profissional, com o fim de diminuir despesas e

elevar a produtividade e a qualidade do trabalho e dos negócios.

Na trajetória evolutiva da tecnologia do hardware, caracterizada por buscar

soluções às companhias de software e atender às demandas do mercado e do usuário

final, convém mencionar, a título ilustrativo, os seguintes equipamentos eletrônicos: os

desktops (computadores de mesa); os laptops/notebooks (computadores portáteis); os

tablets (computadores munidos das facilidades do notebook e da mobilidade de um

smartphone) e a wearable technology (“tecnologias vestíveis”, como o Google Glass, o

SmartWatch e dispositivos acoplados ao corpo para treinamento cirúrgico).

Dentre os conjuntos de comandos lógicos que habilitam o processamento de

dados e arquivos pelos dispositivos eletrônicos, podemos citar os softwares básicos e os

softwares aplicativos, cada qual comandando uma classe diferente de problemas.

O software básico corresponde ao sistema operacional, sobre o qual já

explicitamos e que funciona como um conjunto de diferentes programas indispensáveis

ao funcionamento do computador, destinado a coordenar e controlar as atividades e os

recursos informáticos, sejam relativos à execução de dispositivos físicos, sejam relativos

a funções de software, permitindo que outros aplicativos sejam operados. “Ele determina

quais recursos computacionais serão utilizados para a realização de tarefas, para a

solução de problemas e determina a frequência e a prioridade de atividades a partir de

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alocação e monitoramento dos recursos computacionais disponíveis”, desempenhando

importante papel de “apoio ao sistema global do computador, atuando com a CPU”33.

É o sistema operacional quem fornece uma interface gráfica, a qual,

manipulada pelo usuário, recebe e interpreta suas instruções para executar tarefas e

programas. É ele, portanto, que viabiliza o funcionamento do computador e permite o

utente interagir com a máquina e seus componentes, servindo, grosso modo, como um

intermediário entre a densa camada de programas (aplicativos) e o próprio hardware

(Exemplos de sistemas operacionais: DOS, Windows, Mac OS, Linux).

Ao passo que os aplicativos são programas elaborados com o propósito de o

computador solucionar problemas específicos e realizar tarefas determinadas, de acordo

com o interesse do usuário final. Justamente em virtude de sua extensão finalística, com

aptidão para ser aproveitado em qualquer atividade passível de automatização, o tipo

software-aplicativo forma uma categoria complexa e de extrema diversidade, assumindo

funções domésticas, industriais, comerciais, científicas, jurídicas, educacionais, de

entretenimento, artísticas, financeiras, de recursos humanos etc. (Exemplos: sistema de

cálculos, de edição de textos, de vendas e folhas de pagamentos).

Devido ao funcionamento conjunto do sistema operacional e dos aplicativos,

torna-se possível o manuseio do computador pelo usuário para satisfazer as suas

necessidades. Daí a importância da padronização no uso de interfaces por diferentes

programas de computador a fim de que o software aplicativo seja compatível com o

sistema operacional. A interoperabilidade entre diferentes sistemas informáticos, através

do compartilhamento de interfaces semelhantes, assegura o intercâmbio de informações

e dados de um programa para outro, permitindo ao computador executar as tarefas

especificadas pelos usuários. Justamente por proporcionar a comunicação, “a

compatibilidade é uma questão fundamental para a indústria de software, que procura

estabelecer padrões que permitam aos softwares originários de fabricantes diversos

funcionar conjuntamente”34.

33 PINOCHET, Luis Hernan Conteras. Tecnologia da informação e comunicação. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2014, p. 136. 34 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 44.

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Por fim, distinguindo de forma sintética os tipos de softwares apontados e

atentos à ilustração abaixo, podemos concluir que o sistema básico (ou operacional), na

qualidade de “administrador geral”, presta-se como uma plataforma para o hardware

executar os aplicativos e diversos programas instalados no computador, satisfazendo,

assim, as necessidades dos usuários.

1.4 A criação da rede mundial de computadores (Internet) e a emergência de uma

comunidade virtual

Memorando o arcabouço histórico traçado anteriormente, a progressão

tecnológica na área da Informática, impulsionada, sobretudo, nos períodos da Revolução

Industrial, da Segunda Guerra e da Guerra Fria, caracterizou-se pela incansável busca

de transferir à máquina a execução de cálculos, cada vez mais complexos, que caberia

ao ser humano realizar.

Evoluíram os dispositivos computacionais na medida em que se ampliava a

automação das operações, aperfeiçoando seu uso na resolução dos problemas e no

processamento de dados e informações. Nesse desiderato, buscou-se reduzir as ações

Usuário

Camada de programas (aplicativos)

Sistemas operacionais

Hardware

Insere dados, informações e instruções

Traduz “dados, informações e instruções”

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intermediárias no processo de calcular, com a supressão de operações entre o ato de

inserção de números/símbolos até a obtenção do resultado/informação.

Paralelamente à mecanização, substituindo-se gradualmente o homem pelas

máquinas, desenvolveu-se a tecnologia dos meios de comunicação, atores decisivos para

a conexão do mundo em rede e o processo de globalização.

A primeira grande inovação tecnológica dos veículos de comunicação

manifestou-se no século XV, com a invenção da prensa gráfica de Gutenberg. A técnica

de impressão em massa, ocasionando o surgimento dos jornais, arruinou o monopólio

da informação pelas autoridades eclesiásticas, e o acesso à informação, antes restrito a

uma minoria, passou a atingir as diversas camadas sociais. Os primeiros impressos

desvelaram um novo mundo, despertando, assim, o prelúdio da era da informação e sua

disseminação, catalisadoras das transformações e progressos da sociedade.

Além da imprensa, contribuíram fortemente para o desenvolvimento dos

meios de comunicação o telégrafo, o rádio e a televisão. A introdução dessa última

tecnologia trouxe uma nova forma de o homem interagir e se relacionar com o mundo.

Combinando efeitos visuais e acústicos, a televisão diversificou a forma de transmitir

informações, imagens e ideias. A comunicação sequencial e linear, inerente aos veículos

impressos jornalísticos, cede lugar à simultaneidade comunicacional.

Contudo, a grande revolução no campo da tecnologia da informação e da

comunicação, influenciando padrões comportamentais e impactando todas as áreas do

conhecimento, se deu com a ascensão de um novo modelo eletrônico para as pessoas se

comunicarem: a Internet35. Ao interligar computadores e suas redes para a transmissão

e recepção de informações em nível global, a Internet reúne todas as modalidades de

interagir – as formas escrita, oral e audiovisual (som e imagem) –, provocando

progressos acelerados na forma de pensar a comunicação, numa difusão inédita de

funções e conceitos, que mudaram para sempre a nossa cultura.

A origem da Internet derivou da necessidade, em plena Guerra Fria, do

Departamento de Defesa norte americano de criar um meio de comunicação

35 Definição do conceito Internet contida na Portaria nº 148, de 31/05/1995, do Ministério da Ciência

e Tecnologia: “Internet: nome genérico que designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem como o "software" e os dados contidos nestes computadores”.

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descentralizado, apto a conectar militares e pesquisadores independentemente de sua

posição geográfica, permitindo a troca rápida de dados protegidos, bem como

minimizando os riscos de uma iminente guerra nuclear desmantelar os canais de dados

e informações, que até então funcionavam a partir de um mesmo servidor36 e comando

central.

À vista disso, o Pentágono financia a criação, em 1969, da ARPAnet

(Advanced Research and Projects Agency Network), precursora da Internet na qualidade

de primeira experiência de compartilhamento de computadores, conectando centros de

pesquisas, agências do governo e forças militares. Nessa incipiente comunidade virtual,

a atividade realizada resumia-se ao envio de mensagens via correio eletrônico.

Após a ARPAnet, outras entidades, inicialmente relacionadas a grandes

departamentos de estudos científicos, passaram a construir redes de computadores e a

investigar como redes poderiam acessar outras redes de computadores, desenvolvendo

protocolos37 de interoperacionalidade e interconexão que possibilitassem que

informações fossem compartilhadas. Nessa senda, uma série de tecnologias e

especificações foi elaborada, dentre as quais se destacam, em 1974, os protocolos TCP

(Transmission Control Protocol) e IP (Internet Protocol), responsáveis,

respectivamente, pela transmissão e roteamento de dados em rede. Aplicados

simultaneamente, o TCP/IP resultou no principal conjunto de protocolos para a

comunicação entre computadores conectados em redes.

Apesar de empregada originariamente na área militar e depois acadêmica, a

Internet passou a ser utilizada para fins comerciais a partir da década de oitenta,

alcançando a classe dos usuários comuns quando do aparecimento das empresas

provedoras de acesso à Internet, viabilizando a conexão de dentro de casa. Na Europa,

a implementação do protocolo TCP/IP também teve início nos anos oitenta, culminando,

em 1988, na primeira conexão entre Europa e Estados Unidos.

36 Servidor pode ser compreendido como um computador, numa rede de computadores, que é

otimizado, em ordem de hardware e software, para atender acessos remotos. 37 “Devemos ter em mente que os protocolos são essenciais nas comunicações dos equipamentos de TI

quando conectados em redes de computadores. São eles que criam regras rígidas no transporte de dados nas conexões entre equipamentos. [...] Devemos entender que protocolos são as regras específicas de como um equipamento conectado em rede ‘conversa ou dialoga’ com outro por meio de regras específicas no transporte de seus dados de modo a estabelecer uma comunicação entre eles” (IDANKAS, Rodney. Informática para concursos. 5. ed. São Paulo: Método, 2014, p. 291-292).

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Até então o acesso às redes de computadores era baseado apenas na digitação

de textos e demandava programas distintos para buscar e visualizar informações. Diante

desse cenário, o cientista em computação Timothy Berners-Lee, no intento de centralizar

os recursos necessários para acessar as informações na rede global por qualquer

computador, idealiza novos métodos para aprimorar a identificação e referência de

conteúdo a ser transportado, concebendo, assim, os três pilares da Internet moderna: o

protocolo HTTP (Hypertext Transfer Protocol – protocolo de transferência de

hipertexto38), a linguagem HTML (HyperText Markup Language39) e o navegador de

Internet (Internet Browser). Esse projeto batizou-se de WorldWideWeb (WWW).

A WWW é um dos recursos disponíveis para acessar e transmitir informação

entre redes, encerrando um modelo de “information-sharing” que se vale principalmente

do protocolo HTTP para transportar dados. Qualquer servidor que pretenda

disponibilizar e compartilhar informações na WWW faz uso de protocolos (normalmente

o HTTP) para se comunicar. Já ao navegador incumbe receber, interpretar e processar

os arquivos e documentos na rede, possibilitando aos usuários da WWW acessá-los e,

por conseguinte, visualizar imagens, sons e vídeos; além de permitir, através dos

hyperlinks, fazer referência de uma página para outra.

A criação da WorldWideWeb foi decisiva para a expansão da Internet, pois,

de modo eficaz e prático, assegurou aos computadores conectados o acesso a uma

infinidade de informações descentralizadas, disponíveis nas redes por meio de links. Daí

porque muitos acabam empregando os termos como sinônimos. Porém, a WWW, como

já explicitado, consiste em uma das formas pelas quais a informação é disponibilizada e

transportada na Internet.

Consoante o professor de informática, Rodney Idankas, a sigla “www”

representa a estrutura de documentos vinculados por páginas na Internet, tendo como

objetivo transferir dados de hipermídia da Internet para o computador que está

acessando páginas na Internet40. Na atualidade, a WWW consubstancia o serviço mais

38 Hipertexto é um termo utilizado para denotar a forma não linear de apresentação de informações na

Informática, uma vez que as informações são dispostas e organizadas sem obedecer a uma sequência específica. Ao modelo digital de informação agregam-se diferentes formatos textuais: escritos, imagens, sons vídeos, cujo acesso se dá através de hiperlinks.

39 Linguagem de marcação aplicada na construção de páginas na Web (sítios eletrônicos). 40 IDANKAS, Rodney. Informática para concursos. 5. ed. São Paulo: Método, 2014, p. 302.

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acessado e popular, tornando-se também uma plataforma comum para que outros

serviços sejam disponibilizados na rede, tais como serviços de correio eletrônico

(webmail) e de compartilhamento de arquivos.

Com a evolução da Informática, dos recursos da Internet e demais meios de

comunicação, tornando a comunicabilidade cada vez mais interativa e dinâmica,

multiplicaram-se o intercâmbio de informações e os usuários em rede. Estes, conectados

à “rede das redes”, animam-se na busca de dados, por meio de pesquisas online, e de

pessoas para se relacionar, vivenciando, cada vez mais, esse extraordinário ambiente

denominado ciberespaço.

Nesse contexto, a Internet desempenha papel fundamental na área de

comunicação. Com capacidade de transmissão rápida com alcance global, colabora para

novas formas de socialização entre os seres humanos (redes sociais, blogs, sites de

compras online, mensagens instantâneas, acesso remoto etc.), mesmo que situados em

localidades distantes, bastando estarem conectados por seus dispositivos

computacionais.

Ao interligar a multiplicidade midiática através do uso dos computadores em

redes, e mais recentemente, através do uso de aparelhos celulares e tablets, a Internet

definiu padrões de comportamento e transformou as organizações pós-industriais dos

Estados modernos, provocando uma nova dinâmica nas relações entre indivíduos,

empresas, Estados e demais instituições. Com efeito, os meios de comunicação

tradicionais (televisão e telefonia) e as atividades econômicas e empresariais vivem

constantemente num processo de remodelagem e adaptação à tecnologia virtual,

ensejando novos negócios e/ou funcionalidades agregadas aos já existentes.

Ante essa conjuntura metamórfica, passe-se agora a discorrer sobre as

repercussões socioeconômicas advindas da inovação tecnológica na Informática e na

área das comunicações, na medida em que a difusão das máquinas computacionais,

juntamente com a Internet, tornou possível a comunicação rápida e abundante,

sedimentando uma sociedade, cada vez mais, alicerçada na informação.

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1.5 A inovação tecnológica no campo da Informática e seus impactos na

sociedade: rumo a coletividades e economias baseadas na informação

“A informática não tem mais nada a ver com computadores. Tem a ver com a vida das pessoas”41

Etimologicamente, o vocábulo tecnologia42 origina-se da junção das palavras

gregas “tekne” e “logos” que denotam, respectivamente, “técnica” e “estudo”. Nessa

toada, tecnologia pode ser compreendia como o emprego de técnicas e métodos

estudados, adquiridos e desenvolvidos em uma determinada área, com o fim de

simplificar e favorecer a execução das mais variadas tarefas. Serve como instrumento

que auxilia o homem nas suas múltiplas atividades, como na criação de novos produtos

e serviços.

Penetrando em todas as áreas do conhecimento, as tecnologias impulsionam

a evolução da humanidade, transformando o meio circundante com vistas a atender as

necessidades do indivíduo. Projeta-se sobremaneira no campo da Informática, uma vez

que os computadores, enquanto aparelhos processadores de informação, configuram

ferramentas tecnológicas que, muito, aprimoram e facilitam a gestão de atividades, o

desempenho de funções e a resolução de problemas.

Diante da complexidade e heterogeneidade crescentes das relações sociais

contemporâneas e dos limites e incapacidades do homem em solucionar todo tipo de

problema, observa-se uma busca progressiva pela substituição das funções humanas

pelas máquinas computacionais, figurando o computador como um personagem inerente

à sociedade moderna, dedicada primordialmente à comunicação de dados e informações.

Conforme avança a tecnologia informática, associada ao aperfeiçoamento da

tecnologia da comunicação, maior é o volume de dados processados e o alcance do uso

dos computadores nas esferas cotidianas, abrangendo transações econômicas, educação,

41 NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 12. 42 Tecnologia: “1. Teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e

instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana (por ex., indústria, ciência etc.) [o estudo da t. é fundamental na informática]. 2. p. met. técnica ou conjunto de técnicas de um domínio particular. 3. qualquer técnica moderna ou complexa” (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, s.v. tecnologia. Disponível em: ˂https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v2-3/html/index.htm#2˃. Acesso em: 29 out. 2016).

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noticiários, lazer, burocracia administrativa, gestão de empresas, produção industrial,

transportes, circulação monetária, administração doméstica, entre outras.

Na função de auxiliar o homem ou substituí-lo na realização de suas tarefas,

o computador contribui para uma dinâmica da vida social cada vez mais acelerada. Em

último grau, a criação de “cérebros artificiais”, deslocando a “inteligência humana” para

uma máquina, tem levado à superação do homem pelas suas próprias invenções e

inovações.

Luis Pinochet, ao tratar sobre como a tecnologia interfere nos costumes e

hábitos do corpo social, das organizações e das pessoas em sua obra Tecnologia da

Informação e Comunicação43 (TIC), esclarece que houve uma mudança nas formas de

compreensão e conhecimento, de como as informações são absorvidas e utilizadas. Na

sociedade pós-industrial, observa-se a tecnologia, cada vez mais, intervindo e

programando o dia-a-dia do ser humano, com a transmissão instantânea de informações,

perda de fronteiras e a percepção de que o mundo está cada vez menor em razão dos

avanços tecnológicos. Na pós-modernidade vivemos num ambiente altamente virtual e

apressurado.

No quadro sinótico abaixo, o autor muito bem expõe essa transição do

paradigma da economia industrial para o paradigma da economia digital, definido este

último pela conectividade, pela desintermediação, pelo conhecimento como insumo

essencial, pelas organizações ágeis e adaptáveis e pela globalização, com novos

mercados, novos competidores e a internacionalização de “modelos e práticas”44:

43 PINOCHET, Luis Hernan Conteras. Tecnologia da informação e comunicação. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2014. 44 Ibid., p. 9.

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Transição do paradigma industrial para o digital

PARADIGMA INDUSTRIAL PARADIGMA DIGITAL

Informação analógica Informação digital

Criação de valor: métodos repetitivos de trabalhos

Criação de valor: aplicação do conhecimento ao trabalho (produtividade com inovação)

Fator de produção: mão de obra Fator de produção: conhecimento

Interação entre vendedores e compradores como ocorre no ponto de venda

Relacionamento entre vendedores e compradores acontece no mercado virtual

Conteúdo, contexto e infraestrutura estão agregados ao produto

Conteúdo, contexto e infraestrutura estão desagregados, criando novas formas de

negócios

Não cansamos de afirmar que essa transição tecnológica está penetrando em

todos os domínios da atividade do homem, na sua forma de pensar, de socializar, de

trabalhar, de negociar, conquistando o computador espaço cada vez maior na execução

das tarefas domésticas e profissionais. Numa era de revolução digital, em que a

tecnologia informática encontra-se disseminada na integralidade das esferas humanais,

são diversas as suas consequências sobre a sociedade.

Na esfera sociológica, a evolução do computador no seu papel de transportar

dados, combinado às expressivas fontes e meios de comunicação, gerou o aumento

exponencial, quase ilimitado, da transmissão instantânea de informações entre os

indivíduos. O corpo social passou a organizar-se e reorganizar-se ao redor desse ente

abstrato, que é a informação. Esse excesso informativo marcado pela não linearidade,

contudo, tem prejudicado a própria capacidade do homem de verificar a origem e a

veracidade das informações, selecionar quais são relevantes, assimilá-las e refletir a seu

respeito, muitas vezes em detrimento do raciocínio preciso e aprofundado.

Se de um lado, a tarefa de buscar e descobrir conteúdos nunca foi tão

facilitada, por outro, nunca foi tão difícil selecionar e absorver as informações

encontradas. “A imersão na informática traz o risco de se deixar de lado o cultivo ou

mesmo a perda de aptidões fundamentais como a leitura, a reflexão, a criatividade etc.”45

Como, então, administrar essa “explosão de informação”?

45 FONSECA FILHO, Cléuzio. História da computação: o caminho do pensamento e da tecnologia.

Porto Alegre: EDIPUC-RS, 2007, p. 144.

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Em contrapartida, carecer de acesso à tecnologia informática e permanecer

alheio ao ciberespaço e, por conseguinte, não obter o fluxo de informações, provocam a

desagregação digital, dando ensejo a duas civilizações distintas: “aqueles que vivem

dentro de portões eletrônicos do ciberespaço e aqueles que vivem do lado de fora

deles”46. Divide-se, então, a sociedade global entre os conectados e os desconectados.

Estes últimos, vítimas da desigualdade social e que abarcam a maior parte da

humanidade, por não terem acesso à tecnologia informática e às redes de comunicações

digitais, ficam tolhidos de firmarem relações sociais e econômicas com os participantes

desse novo ambiente eletrônico. Tem-se, assim, uma profunda e crescente defasagem

de grande parte da população mundial relativamente aos recursos tecnológicos e à

cultura informática.

Na esfera econômica, a transformação de paradigmas, de um mercado

industrial para um mercado digital, trouxe vicissitudes significativas no tocante às

relações e integração dos operadores de um processo produtivo, nos estímulos para o

empreendedorismo e nos padrões negociais, com a adoção de novos métodos e técnicas.

Inseridas nesse paradigma contemporâneo, novas empresas surgiram e as organizações

empresariais já existentes, diante de um mercado globalizado e altamente competitivo,

passaram a adaptar seus serviços e produtos a esse nupérrimo quadro tecnológico.

A respeito dessa transição de mercados, o presidente da Foundation on

Economic Trends, Jeremy Rifkin, aponta o momento contemporâneo como a Era do

Acesso. Em sua obra homônima, esclarece que “os mercados estão cedendo lugar às

redes, e a noção de propriedade está sendo substituída rapidamente pelo acesso. […] A

troca de bens entre vendedores e compradores – o aspecto mais importante do sistema

de mercado moderno – dá lugar ao acesso […] entre servidores e clientes que operam

em rede”47.

Sob essa nova realidade mercadológica, a força do capital intelectual e do

conhecimento figura como o genuíno valor da nova economia, com a consequente

marginalização do capital físico. Conceitos, imagens, ideias, frutos da criatividade e da

46 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso – A Transição para Networks e o Nascimento de uma Nova

Economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 11. 47 Ibid., p. 4.

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imaginação se sobrepõem às coisas e aos bens materiais, então muito valorizados na era

industrial.

Para ilustrar esse novo mundo, Rifkin cita a alteração no vínculo entre bens

e serviços que acompanham as relações comerciais: “Enquanto na maior parte da Era

Industrial a ênfase era em vender bens e dar garantias de serviços aos produtos

gratuitamente como incentivo de compra, agora as relações entre bens e serviços estão

se invertendo. Um número crescente de empresas entrega gratuitamente seus produtos,

na esperança de iniciar relacionamento de serviço de longo prazo”48.

A partir dessa tendência, de uma relação econômica baseada no acesso a

serviços e geração de experiências, produtores e revendedores passaram a empregar

produtos como plataformas para a realização de melhorias e/ou prestação de serviços de

valor agregado. “O produto se torna mais um custo de fazer negócios que um item de

venda em si ou por si”49, já que se mostra mais vantajoso cuidar da sua manutenção e

aperfeiçoamento, adicionando-lhe utilidades, acessíveis ao cliente, do que simplesmente

vendê-lo.

Rifkin traz como exemplo de produto utilizado como plataforma para a

execução de serviços, o sistema de regar plantas conectado à Internet da empresa

emWare, Inc. O regador, ao ser programado, verifica as condições de clima e rega a

grama de acordo com o tempo. Ilustram também essa nova forma de conduzir negócios:

(i) empresas fabricantes ou revendedoras de veículos que, ao invés de vendê-los, fornece

a sua locação, encarregando-se da manutenção do carro, do seguro e demais encargos;

bem como (ii) fabricantes e comerciantes de equipamentos para imprimir ou de

equipamentos de ar-condicionado que preferem locá-los, se responsabilizando pela

instalação, manutenção e troca do produto se necessário. Com isso, salienta Rifkin,

firmam-se relacionamentos mais duradouros com o cliente e, por conseguinte, as

relações entre fornecedor e cliente são transformadas em verdadeiras commodities.

Ainda segundo o autor, essa transmutação de negócios, muito beneficiada

pelas inovações tecnológicas que, em ritmo acelerado, transformam e atualizam

48 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso – A Transição para Networks e o Nascimento de uma Nova

Economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5. 49 Ibid., p. 71.

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continuamente um produto, dificultam a noção tradicional de propriedade e tornam a

vida de um produto cada vez mais efêmera, pois tudo fica quase que instantaneamente

obsoleto. Quando um consumidor adquire um novo produto ou serviço, já está sendo

elaborado um próximo mais sofisticado, detentor de inéditas funcionalidades, que, sem

demora, estará disponível para ser acessado.

Nesse universo volátil da economia, em que se justifica cada vez menos

adquirir a propriedade de um produto ou uma tecnologia, cede-se ao “acesso” de bens e

serviços a prazos, mediante relações contratuais contínuas e renováveis, na forma de

leasing, alugueres, assinaturas, taxas etc. Paga-se pelo acesso às mais variadas

experiências e utilidades: música, filmes, notícias, jogos softwares etc.

A tecnologia informática e o acesso eletrônico favorecem ainda uma

economia baseada no ciberespaço, de tal sorte que produtos e coisas estão

sucessivamente desmaterializando-se. Caso emblemático é a transformação das

enciclopédias em formato digital, que, agora constantemente atualizadas e aprimoradas,

tornam-se, cada vez mais, interativas com a aplicação de recursos audiovisuais. Outro

exemplo foi o fornecimento de serviço de voice mail pelas empresas de

telecomunicações, substituindo-se as secretárias eletrônicas pelo acesso a sistemas de

armazenamento e recuperação de voz. “Se o acesso pode ser adquirido sem a secretária

eletrônica, o cliente ganha os benefícios dos serviços definidos de software sem o

incômodo de adquirir e manter um produto com definição de hardware”50.

Sobre essa transformação dos paradigmas econômicos provocada pela

evolução dos meios informáticos, são perfeitas as colocações de Cezar Taurion,

consultor em transformação digital e autor de vários livros sobre o tema:

No final do século XVIII, a revolução industrial iniciou a transição da economia baseada na força de trabalho manual pela economia baseada na tecnologia, com máquinas e ferramentas que potencializaram nossos braços e pernas. O nascimento e a evolução da tecnologia nos permitiram criar a sociedade da informação, com os computadores potencializando nossa capacidade de pensar e criar. Evoluímos e, nos últimos vinte anos, saímos da simples automação de processos para usar computadores como ferramentas de apoio à inovação. Hoje, estamos dando mais um passo, saindo da era industrial para uma sociedade

50 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso – A Transição para Networks e o Nascimento de uma Nova

Economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 73.

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focada em serviços. As 25 maiores economias do planeta têm serviços como parte importante e muitas vezes dominante de seu PIB. E uma economia de serviços é basicamente fundamentada em informação51.

Enfim, a tecnologia digital, inerente à era do acesso, provoca uma nova

estruturação das relações econômicas e novas maneiras de se conduzir negócios,

priorizando-se as funcionalidades do produto em desfavor da sua propriedade.

Disponibiliza-se o produto e cobra-se pelo acesso às utilidades e às experiências que o

acompanham, criando-se relacionamentos atemporais, que perduram no tempo. Em

derradeiro: “os mercados cedem às redes, os vendedores e compradores são substituídos

pelos fornecedores e usuários, e praticamente tudo é acessado”52.

1.5.1 Reflexos no universo jurídico

No campo do direito positivo é indiscutível a influência do emprego dos

recursos informáticos no domínio da Internet. A Informática, associada à rede mundial

dos computadores, modificou a realidade social e os vínculos intersubjetivos,

ocasionando inéditos conceitos, novas formas de se comunicar, praticar atos,

desempenhar atividades e firmar negócios.

À medida que aumentam e diversificam-se as aplicações dos computadores,

com o aperfeiçoamento constante da linguagem eletrônica desde quando Von Neumann

concebeu a arquitetura computacional, irrompem complexidades jurídicas. Como

prudentemente observou Orlando Gomes defronte dos problemas jurídicos advindos

com o desenvolvimento da Informática:

A linguagem eletrônica operou, como todos percebemos, uma verdadeira revolução na história da comunicação, a ponto de se dizer que fez da informação um novo setor econômico (quaternário), de primeira grandeza, ao lado dos setores tradicionais. A Informática tornou-se um bem jurídico, isto é, a pesquisa, a posse, a troca e o uso das informações elaboradas em forma simbólica com a linguagem

51 FREIRE, Flávia. Cezar Taurion ameniza as tempestades de questionamentos sobre Cloud

Computing. Entrevista. Revista TI Digital, Rio de Janeiro: Arteccom, n. 12, p. 40-47, fev. 2010. Disponível em: ˂http://www.arteccom.com.br/revistatidigital/downloads/12/link_12_4047.pdf˃. Acesso em: 10 ago. 2016.

52 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso – A Transição para Networks e o Nascimento de uma Nova Economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5.

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própria dos computadores adquiriram relevância jurídica e originaram disciplina adequada53.

O processo de expansão do espaço digital, com a utilização crescente de

computadores em rede por empresas, organizações da sociedade civil, governos e

pessoas demandou a criação de novas legislações e a atualização das existentes para

adequá-las ao mundo das redes, fazendo despontar até mesmo um ramo didaticamente

autônomo no sistema jurídico: o direito de informática. Também denominado direito

eletrônico, digital ou cibernético, cuida de disciplinar as relações sociais estabelecidas

no âmbito da tecnologia da informação, decorrentes do uso dos computadores e da

Internet.

A publicação da Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, sobre a qual avante

abordaremos, foi um importante passo voltado a implementar uma disciplina jurídica às

luzes da realidade informática, dispondo sobre a proteção da propriedade intelectual do

programa de computador e a sua comercialização no País.

Recentemente, no rumo de propor normas voltadas a abarcar ocorrências e

situações intrínsecas à rede, editou-se o Marco Civil da Internet, promovido por uma

forte mobilização da sociedade em defesa de um funcionamento ideal da rede e por um

amplo processo colaborativo plurissetorial. Este processo ocorreu mediante a realização

de consultas públicas e a disponibilização do material em discussão no sítio da Câmara

dos Deputados. Pretendia-se, com isso, uma normatização que propiciasse ao Direito

dialogar com a Internet, respeitando sua natureza e assegurando as liberdades emanadas

do advento da rede.

[…] o escopo do Marco Civil estaria em criar uma camada de interpretação, entre a internet e o direito, que permitisse exigir a observação de normas que positivassem a compreensão da rede mundial como um espaço que extrapola as fronteiras nacionais de comunicação e se estrutura pelo compartilhamento de informações, fundado em protocolos abertos e com governança mundial. Nesses termos, essa interface jurídico-tecnológica seria essencial para que a aplicação das normas legais pudesse identificar os limites adequados.54

53 GOMES, Orlando. A proteção dos programas de computador. In: ______ (Orgs.). A proteção

jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 3. 54 SANTARÉM, Paulo Rená da Silva. O direito achado na rede: a emergência do acesso à Internet

como direito fundamental no Brasil. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito Estado e Constituição) – Universidade de Brasília, 2010.

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Estatuído pela Lei nº 1.965, de 23 de abril de 2014, o marco regulatório

estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso e o desenvolvimento

adequados da Internet, bem como as diretrizes para a atuação do Estado em relação à

matéria. Visando a minorar as incertezas jurídicas concernentes à aplicação dos meios

digitais e à governança pelo Poder Público na rede, as disposições do marco regulatório

dedicaram-se a questões fundamentais como a tutela da proteção à privacidade de dados,

registros e comunicações privadas, da garantia à neutralidade e à inimputabilidade da

rede.

Temática indutora de intenso debate, a neutralidade resguarda a liberdade de

escolha do usuário ao outorgar ao “responsável pela transmissão, comutação ou

roteamento o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem

distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação” (art. 9º). Pela

neutralidade da rede veda-se às empresas de telecomunicações tratar de forma

discriminatória o tráfego de dados em detrimento dos fornecedores de conteúdo e dos

usuários. Ao passo que, nos dispositivos sobre a responsabilidade por danos decorrentes

de conteúdo gerado por terceiros, garantiu-se a inimputabilidade dos intermediários –

provedores de conexão e conteúdo – por atos praticados pelos usuários da Internet (arts.

18 e 21).

O Marco Civil zelou também pela função social da rede, principalmente para

assegurar a liberdade de expressão e o direito de todos ao acesso à Internet e às

informações nela veiculadas, reconhecendo-o como essencial ao exercício da cidadania.

Afinal, há tempo o ciberespaço redimensionou a maneira de se operar direitos e deveres,

dando lugar à interação entre os atores sociais em um ambiente virtual: meros usuários

de informação evoluem contínuo e gradativamente para internautas ativos em criar,

divulgar e propagar conteúdo.

Veja-se, por exemplo, a criação da plataforma E-democracia55 da Câmara

dos Deputados, cuja proposta consiste em incentivar a participação da sociedade no

55 “O Portal e-Democracia, desenvolvido pela Câmara dos Deputados, é dividido em dois grandes

espaços de participação: as Comunidades Legislativas e o Espaço Livre. No primeiro, você pode participar de debates de temas específicos, normalmente, relacionados a projetos de lei já existentes. Essas Comunidades oferecem diferentes instrumentos de participação e, ainda, orientações quanto ao andamento da matéria no Congresso Nacional. Já no Espaço Livre, você mesmo pode definir o

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debate de temas importantes para o país por meio da Internet, envolvendo os cidadãos

na discussão de novas propostas de lei. Aqueles tolhidos dos meios para acessar a rede

privam-se, assim, desse novo modo de manifestação política, dentre uma gama de outras

formas para gozar direitos civis e políticos no universo digital.

Neste processo de informatização das relações, em que a Internet figura, cada

vez mais, como um modo de comunicar-se e informar-se, a rede tornou-se um espaço

próprio e imprescindível para o desenvolvimento da cidadania, impondo reconhecer, em

prol da democratização digital, o acesso às tecnologias de informação e de comunicação

como um direito fundamental: a Sociedade da Informação tem de ser uma sociedade

para todos.

Deste cenário de avanços tecnológicos oriundos da Informática e seus

impactos no campo do direito positivo destaca-se a inovação no âmbito dos negócios,

na medida em que as possibilidades interativas propiciadas pela tecnologia informática

e comunicacional também careciam (e ainda carecem) de disciplina jurídica adequada

às suas peculiaridades.

Como muito bem pontuado por Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras

de Freitas, em excelente artigo sobre os desafios à doutrina advindos de novas

tecnologias introduzidas em mercados consolidados, os tempos atuais sinalizam uma

constante de “inovações disruptivas”, em que tecnologias transformam estratégias ou

modelos de negócios, rompendo com a forma de oferecer um bem ou serviço, sem que

a legislação, porém, consiga acompanhar esse processo de rupturas e mudanças

frequentes.

Quando isso ocorre em setores de baixa regulação estatal, o desafio é absorvido por leis de mercado. Quando, porém, a inovação disruptiva tem lugar em setores regulados (serviços públicos tradicionais, por exemplo) a questão se apresenta mais complexa. A reação natural dos agentes econômicos dominantes se soma ao estranhamento do regulador estatal (que vê o risco de perder o protagonismo regulatório

tema da discussão e ser o grande motivador dela. O debate será acompanhado pela equipe e-Democracia e pode vir a se tornar uma Comunidade Legislativa” (BRASIL. Câmara dos Deputados. e-Democracia. O que é. Brasília, 2011. Disponível em: <http://edemocracia.camara.gov.br/o-que-e#.VzH6SzdwXIV>. Acesso em: 10 maio 2016).

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frente à contestação de mercado) e à baixa aderência das novas tecnologias a um framework que não a tomava em consideração56.

Os autores ilustram esse quadro reportando-se à plataforma tecnológica

UBER que, apoiada no método de economia compartilhada, conecta motoristas e

passageiros por meio de um aplicativo, o que provocou fortes reações dos

permissionários de táxi, cujo serviço público de transporte individual de passageiros,

além de estar condicionado à autorização municipal, presta-se sob regime de monopólio

público nos moldes do disposto no art. 2º da Lei nº 12.468/2012. As outras duas espécies

de tecnologia disruptivas citadas concernem ao setor de telecomunicações, envolvendo

os denominados serviços Over-The-Top57. Trata-se do aplicativo Whatsapp e do Netflix,

os quais, valendo-se do serviço prestado pela empresa de telecom, oferecem utilidades

que se confundem com o próprio serviço que lhes dá suporte.

Complementam os autores que essas formas de inovação tecnológica, ao

reacenderem “o conflito entre serviços públicos e competição, entre monopólio e

regulação de um lado, e concorrência e mercado de outro”, desafiam o direito

administrativo, cabendo à regulação “modelar as ‘doses’ de concorrência que incidirão

na prestação de serviços de utilidade pública, de modo que possam ser equacionados:

de um lado, o direito do cidadão de receber serviços essenciais e, de outro, o direito de

exploração de atividades econômicas” 58.

Impulsionado pela expansão e aperfeiçoamento da rede e de seus meios de

acesso, prosperou o fenômeno da contratação eletrônica de forma globalizada,

56 NETO, Floriano de Azevedo Marques; FREITAS, Rafael Véras de. Uber, Whatsapp, Netflix –

Quando o mercado e a tecnologia desafiam a doutrina. Jota, São Paulo, 26 jan. 2016. Disponível em: <http://jota.uol.com.br/uber-whatsapp-netflix-quando-o-mercado-e-a-tecnologia-desafiam-a-doutrina>. Acesso em: 12 maio 2016.

57 “An over-the-top (OTT) application is any app or service that provides a product over the Internet and bypasses traditional distribution. Services that come over the top are most typically related to media and communication and are generally, if not always, lower in cost than the traditional method of delivery. You can think of an over-the-top application as anything that disrupts traditional billing models - from telcos or cable/satellite companies. […]. The creation of OTT applications has led to a wide-ranging conflict between companies that offer similar or overlapping services. […] Think, for example, of the conflict between a company like Netflix and a cable company. Consumers still pay the cable company for access to the Internet, but they might get rid of their cable package in favor of the cheaper streaming video over the Internet” (TECHNOPEDIA. Over-the-Top Application (OTT). Bridgetown, Barbados, 2016. Disponível em <https://www.techopedia.com/definition/ 29145/over-the-top-application-ott>. Acesso em: 24 maio 2016).

58 NETO, Floriano de Azevedo Marques; FREITAS, Rafael Véras de, op. cit.

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extrapolando-se fronteiras. Esse crescente de transações comerciais internacionais

efetivadas por intercâmbio eletrônico de dados motivou a Comissão das Nações Unidas

para o Direito Comercial (UNCITRAL) a aprovar, em 16 de dezembro de 1996, a Lei

Modelo sobre Comércio Eletrônico (Resolução nº 51/162). Com o intuito de fixar

diretrizes e recomendações aos países na busca pela segurança jurídica no uso do

processamento automático de dados no comércio internacional, a Lei Modelo propôs

aos Estados uniformidade às respectivas legislações pertinentes à matéria.

No âmbito nacional, o Decreto nº 7.962/13 regulamentou o Código de Defesa

do Consumidor para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico. Em virtude do

caráter abstrato circunscrito ao meio virtual, que potencializa a condição de

vulnerabilidade do consumidor, referido diploma atribuiu aos sítios eletrônicos,

utilizados para oferta e conclusão do contrato de consumo, o dever de disponibilizar, em

local de destaque e de fácil visualização, as informações necessárias para o contato,

favorecendo um canal de atendimento, bem como a identificação do fornecedor

responsável pelo sítio eletrônico e do fornecedor do produto ou serviço ofertado.

Disciplinou ainda acerca do direito ao arrependimento do consumidor numa compra

virtual, obrigando os sítios de e-commerce a informar os meios adequados e eficazes

para troca e devolução de produtos, dentre outras prescrições relevantes.

É preciso ter em mente que o uso do computador e da rede trouxe uma nova

conjuntura reverberada na compreensão tradicional de “comércio” e “prestação de

serviços” e seus elementos caracterizadores, repercutindo fortemente na seara tributária.

Fácil entrever esse quadro transformador diante do desenvolvimento do “comércio

eletrônico”, cujos amplos desdobramentos impedem distinguir duas situações, na linha

orientada por Marco Aurélio Greco59: (i) operações com tangíveis por meios eletrônicos

e (ii) operações com intangíveis.

Nas operações com bens materiais, o computador e a Internet cumprem o

papel instrumental de viabilizar o costumeiro ato comercial: pela via eletrônica

executam-se a encomenda e o pagamento, enquanto a entrega física sucederia do modo

tradicional. Em que pese o ato de comprar um bem de consumo corpóreo em uma loja

física ou virtual não interfira sobremaneira na delimitação da natureza do fato jurídico

59 GRECO, Marco Aurélio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000, p. 8.

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tributário, armam-se aqui problemas jurídicos próprios do modelo federativo instituído

pela Constituição de 1988, relativos a uma repartição tributária compatível à realidade

econômica baseada em transações financeiras através de dispositivos e plataformas

eletrônicas.

Nesse sentido, mirando uma distribuição de receitas mais justa entre os

Estados, a Emenda Constitucional nº 87/2015 inaugurou um novo regime de

recolhimento do ICMS nas operações e prestações que destinem bens e serviços a

consumidor final, não contribuinte do imposto e localizado em outro Estado. Acerca dos

objetivos almejados pelo Poder Constituinte Derivado, transcreve-se trecho do Parecer

da Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, opinando pela

constitucionalidade do Projeto de Emenda:

A maioria das lojas virtuais é sediada em poucos Estados, geralmente os mais ricos e desenvolvidos, que, mantida a sistemática atual de distribuição da arrecadação do ICMS, retêm toda a arrecadação do tributo. A fórmula constitucional atual permite tal anomalia ao determinar a incidência da alíquota interna, geralmente elevada, em operações envolvendo mercadorias destinadas a compradores não contribuintes do imposto e localizados em outro Estado. Trata-se, em última análise, da própria radicalização do princípio da origem. A PEC em comento procura reequilibrar essa relação, ordenando que parte dos recursos auferidos pelo recolhimento do ICMS seja canalizada para o Estado de destino, numa justa adequação à realidade dos fatos, que mostra tendência crescente de utilização do e-commerce nas mais diversas transações.

Antes da EC nº 87/2015, nas vendas interestaduais a consumidor final não

contribuinte, o ICMS era devido integralmente ao Estado de origem. Ao alterar o art.

155, §2º, incisos VII e VIII da Carta Magna, repartiu-se o ICMS devido nessas

operações: ao Estado de origem foi concedido o direito ao imposto correspondente à

alíquota interestadual e ao Estado de Destino, observada a proporção progressiva fixada

no art. 99 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória, conferiu-se o direito ao

imposto correspondente à diferença entre a sua alíquota e a alíquota interestadual,

responsabilizando o remetente da mercadoria pelo recolhimento do diferencial de

alíquota.

Ocorre que, a pretexto de efetivar o princípio federativo, criaram-se

transtornos de toda ordem à classe dos contribuintes, capazes de embaraçar o livre

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exercício das suas atividades econômicas. Deveras, a partir da vigência dessa nova

sistemática de cobrança do ICMS, impôs-se às lojas virtuais, que vendem mercadorias

para consumidores em operações interestaduais, o conhecimento das legislações das 27

unidades federadas para o regular cumprimento dos deveres fiscais. Com isso,

vincularam as operações a uma infinidade normativa a ser absorvida pela infraestrutura

contábil-fiscal das empresas, o que acabou por instaurar inúmeras discussões em sede

judicial, com a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade60.

No tocante à segunda hipótese mencionada a respeito da evolução das

transações eletrônicas, estreita à proposta científica deste trabalho, destaca-se a

negociação de intangíveis (livro eletrônico, software, informações, utilidades das mais

variadas etc.), em que as etapas do negócio sucedem no ambiente cibernético, inclusive

a entrega é eletrônica, suscitando enorme celeuma e complexidades para o direito

tributário, tais como a definição jurídica do conceito de mercadoria e serviço no plano

virtual e a fixação dos critérios espaço-temporais na demarcação da incidência tributária.

Ambas as questões jurídicas subjazem problemas tributários relativos a operações com

software.

Especificamente em matéria fiscal relativa à software, citam-se, por exemplo,

o julgamento do Recurso Extraordinário nº 176.626, no qual o Supremo Tribunal

Federal, respaldado na distinção entre software de prateleira, personalizado e

customizado, delimitou o âmbito possível da incidência do ICMS-M sobre os programas

de computador padronizados e veiculados em mídias, bem como os Decretos do Estado

de São Paulo nºs 61.522/2015 e 61.791/16 que pretenderam incluir no âmbito de

incidência do ICMS as operações de software disponibilizados mediante transferência

eletrônica de dados (download e streaming), Trata-se de temática jurídica cujos

desdobramentos serão examinados neste trabalho.

A evolução da tecnologia informática repercutiu ainda no cumprimento dos

deveres instrumentais pelos contribuintes. A substituição gradual do papel para a

emissão de documentos fiscais em formato digital exigiu das pessoas físicas e pessoas

jurídicas uma nova organização e conhecimento para se adaptarem às legislações

atinentes à elaboração eletrônica da sua escrituração contábil-fiscal. Além de a

60 Vide ADIs nºs 5469, 5464 e 5439.

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informatização conferir uma nova dimensão jurídica ao lançamento tributário, tornou-

se fundamental a gestão prévia dos riscos fiscais, pois “os dados encaminhados

digitalmente ao Fisco podem ser utilizados para cruzamento eletrônico de dados obtidos

com a entrega dos deveres instrumentais em formato digital com todas as demais

informações existentes nos sistemas tecnológicos das Receitas Federal, Estadual e

Municipal, suas autarquias e dos demais órgãos brasileiros”61.

Em derradeiro, convém sublinhar que as questões jurídicas levantadas

sinteticamente neste tópico apenas visaram a ilustrar parte dos desafios e problemas

enfrentados pela comunidade jurídica, sendo que muitos outros existem e mais ainda

estão por emergir dado o sempiterno e veloz desenvolvimento tecnológico, motor

dinâmico e enérgico de novas formas de interação e modelos de negócio.

Enfim, depois de tecidos os acontecimentos históricos relevantes que

precederam a atual conjuntura da era computacional, evidenciando a incansável busca

pela mecanização do raciocínio, os aspectos distintivos dos componentes

computacionais, bem como os impactos na sociedade contemporânea, em especial no

direito, decorrentes dos avanços tecnológicos da informática e da complexa

infraestrutura de comunicações liderada pela Internet, cuidemos no próximo capítulo de

investigar a natureza jurídica do software e sua proteção pelo direito positivo brasileiro.

61 SANTELLO, Fabiana Lopes Pinto. Direito Tributário Digital. Informatização fiscal. O uso da

tecnologia no Sistema Tributário Nacional. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

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2 A NATUREZA JURÍDICA DO SOFTWARE, A SUA PROTEÇÃO E O

TRATAMENTO CONFERIDO PELA LEI Nº 9.609/1998

2.1 As primeiras discussões sobre a natureza jurídica do software e a sua proteção

A Informática, enquanto esfera do conhecimento cujo substrato material é o

tratamento de dados através dos computadores, apoia-se fundamentalmente, como visto,

nos elementos básicos do sistema computacional - o hardware e o software. Serve-se,

portanto, dos equipamentos aptos a receber, armazenar e fornecer informações e dos

programas que, capacitados para gerenciar o funcionamento da máquina mediante a

aplicação de um conjunto de instruções com vistas à obtenção de um resultado,

convertem dados em impulsos elétricos que penetram nos equipamentos, fazendo com

que estes desempenhem ou executem determinadas funções e tarefas, processando dados

que podem lá ser armazenados e acessados pelos usuários.

O surgimento desses instrumentos informáticos, oriundos da revolução

tecnológica, representavam bens intelectuais que reclamavam proteção jurídica. Como,

a princípio, o programa de computador era elaborado para operar em máquinas

específicas, atrelando-se ao dispositivo eletrônico do qual fazia parte, sem exprimir per

se uma valia econômica significativa, sua proteção jurídica associava-se a do hardware.

Somente com a comercialização dos computadores pessoais a partir da década de 70, o

software passou a ter relevância econômica e identidade independente, com o

lançamento dos denominados softwares houses62, o que fomentou maior empenho por

buscar uma proteção adequada à parte lógica e imaterial dos computadores.

Na maioria dos sistemas jurídicos nacionais, inclusive no direito brasileiro,

os bens intelectuais, inseridos na categoria de bens incorpóreos, apresentam-se em duas

categorias clássicas: obras protegidas pelos direitos da propriedade industrial e obras

tuteladas pelos direitos do autor63. O direito autoral disciplina as relações jurídicas

62 Companhias desenvolvedoras de programas de computador para fins comerciais. 63 “Ressalte-se que há bens imateriais – de expressão econômica – sobre os quais se exerce a titularidade

do direito de propriedade, mas que não estão agrupados em quaisquer dos dois conceitos já formalizados e tradicionalmente consagrados (a propriedade industrial e os direitos autorais). Como exemplo, podem ser considerados as apólices de seguro, o fundo de comércio, os créditos em geral, e os direitos, em geral, quando passíveis de valoração econômica – os quais – igualmente são obras

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derivadas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais de cunho literário,

artístico e científico, permitindo ao seu criador que impeça o uso não autorizado de sua

obra por terceiros. Já as leis de propriedade industrial protegem as criações do intelecto

humano que resultam em invenções técnicas ou métodos de processos produtivos, desde

que atendido o tripé condicional representado pela novidade, atividade inventiva e

aplicação industrial64, ou ainda, marcas e logotipos criados para identificar produtos65.

Enquanto que o direito autoral protege a expressão original e concreta de uma ideia, o

direito patentário tutela a ideia técnica subjacente a uma invenção aplicada na produção

de outros bens e serviços.

A ideia e os princípios científicos que alicerçam e viabilizam a produção do

hardware, caracterizada como operação fabril, poderão ser patenteados em benefício do

criador, contanto que aperfeiçoado o tripé condicional acima descrito, ou seja, a

invenção deve traduzir um incremento técnico inovador de utilidade prática. Dado que

a proteção da propriedade industrial, pela outorga de patentes, é garantida a inventos de

uso prático, como utensílios, ferramentas e dispositivos mecânicos, marcados pela

novidade, pouco prosperou no início o entendimento pela proteção patentária do

programa de computador. Ainda que o desenvolvimento de um software fosse destinado

a um processo produtivo, justificava-se que ele representaria as instruções da máquina,

a quem caberia executar a produção de bens e serviços. Eventual caráter inovador,

inventivo e prático decorreria da atuação preponderante do hardware combinada com a

do programa de computador.

da criação e da ficção humana” (CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina, práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, 2011, p.).

64 Roberto Chacon de Albuquerque define os requisitos para a proteção patentária da seguinte forma: (i) atividade inventiva: a contribuição criativa deve consistir num incremento em relação a tudo o que já foi conhecido no domínio da técnica, aprimorando o patrimônio tecnológico da coletividade; (ii) novidade: é necessário que a invenção nunca tenha sido explorada comercialmente; e (iii) aplicação industrial: a invenção deve ser passível de ser utilizada praticamente, mediante a sua aplicação na produção de bens ou serviços, dotando-se de utilidade econômica (A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 106-108).

65 ALMEIDA, Diego Perez; DEL MONDE, Isabela Guimarães; PINHEIRO, Patrícia Peck (Coords.). Manual de Propriedade Intelectual (Versão 2012-2013). Universidade Estadual Paulista (UNESP); Núcleo de Educação a Distância (NEAD). Disponível em: <http://www.acervodigital.unesp.br/ bitstream/123456789/65802/1/unesp_nead_manual_propriedade_intelectual.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2016.

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Seguiu-se, assim, grande debate sobre quais seriam o enquadramento jurídico

do software e a proteção cabível a quem proporciona a plena utilização do equipamento

ao criar as instruções para o processamento de dados66.

Em meritória edificação científica por juristas brasileiros, assomada em

meados da década de oitenta, predominava o entendimento de que o software se

caracteriza como obra imaterial resultante da criatividade e do esforço intelectual do

programador, na medida em que o ato de programar reivindica conhecimentos

especializados e capacitação técnica. Por consistir o conjunto de instruções, elaborado

pelo programador, numa expressão concreta e original de ideias humanas compreensível

pelo hardware, sujeita à exploração econômica e comercial, o software comportaria a

proteção de direito autoral pela Lei nº 5.988/1973, à época vigente.

Nas preciosas lições de Gilberto de Ulhôa Canto, em obra pioneira voltada

aos estudos da proteção jurídica do software no Brasil, sendo o programa “obra da

criação humana, com características de palpabilidade, utilidade e originalidade”, o seu

autor há de ser protegido como proprietário, “assegurando-lhe o direito de usá-la,

autorizar o seu uso por terceiros, preservar a sua inteireza, reproduzi-la e aliená-la”67.

Também sufragando a tese de que software constitui criação intelectual tutelada pelos

direitos do autor, são as ponderações do saudoso civilista Orlando Gomes:

Entendo que o “software” é uma expressão criativa do trabalho intelectual e pessoal de quem o prepara. Essa criação da inteligência, materializando-se num corpus mechanicum que torna comunicável sua expressão, adquire individualidade definitiva, tal como se fosse um romance, um filme cinematográfico ou uma composição musical. Para ser protegido como tal basta a criatividade subjetiva, entendida como trabalho pessoal do programador – como se admite quando na obra

66 De acordo com a publicação nº 814 dos Dispositivos-Modelo sobre Proteção do Software, a

Organização Mundial da Propriedade Intelectual prevê uma acepção ampla para o termo “software”, abrangendo não só o programa de computador em si, enquanto conjunto de instruções que capacitam o hardware a processar informações, mas também a descrição do programa e seu material de apoio, destinados, respectivamente, à apresentação completa e detalhada do procedimento, expressa em palavras, esquemas ou outro modo, e à compreensão ou aplicação do programa (por ex.: instruções para usuários). No desenvolvimento do presente trabalho, convém desde já registrar que será adotado o sentido estrito para o “software”, coincidente com o de “programa de computador”, empregando-os, assim, como sinônimos.

67 CANTO, Gilberto Ulhôa. Apresentação. In: GOMES, Orlando et al. (Orgs.). A proteção jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. XIV.

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protegida o elemento criatividade consiste na idealização do seu plano68.

Essa corrente prógona da doutrina nacional, reconhecendo o ato de

programar e sistematizar instruções como um ato de criação intelectual, harmonizava-

se com a legislação e a jurisprudência de países desenvolvidos projetadas a partir de

meados da década de 70. Arnaldo Wald, em excelente artigo sobre a proteção do

software no direito comparado, demonstrou que diversos sistemas jurídicos nacionais,

como França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, tendiam a considerar, tanto na

esfera legislativa quanto na orientação jurisprudencial, os direitos do titular do

programador como amparados pelos princípios e regras do direito autoral, vez que,

veiculado em meio de expressão tangível, o software estriba-se em trabalho original do

autor, cuja contribuição intelectual é determinante para a obtenção dos resultados

almejados.

A fim de mostrar a tendência forânea de vincular a proteção dos programas

de computador às normas de direito autoral, o jurista menciona o caso “Apple Computer

Inc. c. S.A.R.L. Segimex et S.A.R.L. C. Data”, julgado em 22.09.83, pelo Tribunal de

Grande Instance de Paris. Naquela oportunidade, concluiu-se que não há diferença entre

o programa de computador e as “obras de espírito” tuteladas pela lei de direitos autorais,

fixando a corte francesa os seguintes pontos fundamentais sintetizados por Wald:

a) se os programas de computador não são facilmente perceptíveis ao senso comum, como ocorre com as obras plásticas ou literárias, por outro lado, eles são acessíveis e inteligíveis graças à sua transcrição em suportes materiais, tais como as telas e as fitas magnéticas; b) se a sua leitura não é acessível a todos e requer determinados conhecimentos técnicos, tal particularidade não pode excluir os programas de computador da categoria de “obras do espírito”, da mesma forma que não são excluídas, por exemplo, as composições musicais, as quais são expressas em uma linguagem codificada e complexa, cuja compreensão pressupõe igualmente uma formação especializada; c) os programas de computador tornam-se inteligíveis pela utilização de um instrumento, o computador, da mesma forma que a voz humana ou o instrumento musical revelam o conteúdo das partituras musicais; d) por conseguinte, a contribuição pessoal do criador de programas é determinante para a obtenção dos resultados desejados, como ocorre com o compositor de

68 GOMES, Orlando. A proteção dos programas de computador. In: ______ (Orgs.). A proteção

jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 4.

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uma música; e) a experiência demonstra que programas com as mesmas funções, uma vez postos em práticas por operadores diferentes, apresentam numerosas variações.69

Da incipiente produção legislativa de outros países, convém mencionar

também o relatório final norte-americano da Comission on New Technological Uses

Copyrighted Works (CONTU), no qual se concluiu por recomendar uma emenda à

“Copyright Law” para tornar expresso que programas de computador são obras

intelectuais protegidas pelos direitos autorais, confirmando assim a posição prevalente

na doutrina e na jurisprudência. Com a edição da Lei nº 96.517, de 21 de dezembro de

198070, foi aprovada, pelo Congresso dos Estados Unidos, a emenda à Lei de Direitos

Autorais americana, cujo art. 101 passou a definir programas de computador como “uma

série de declarações ou instruções a serem utilizadas direta ou indiretamente num

computador de maneira a provocar um certo resultado”71.

No plano das relações internacionais, a Convenção de Berna de 1886 e a

Convenção Universal de Genebra da Unesco em 1952, incorporadas ao ordenamento

brasileiro por meio dos Decretos nºs 75.699/95 e 76.905/75, respectivamente, foram

importantes tratados em matéria de direitos autorais. Apesar de não disciplinarem

expressamente sobre os programas de computador, cuja proteção internacional

específica somente sucedeu-se no âmbito do GATT em 1994, doutrinadores e juristas

aliavam-se na defesa do software como obra intelectual protegida pelo direito autoral,

determinando assim seu enquadramento jurídico às normas internacionais já existentes.

Não obstante a merecida atenção dos sistemas jurídicos estrangeiros e do

direito internacional pela temática, carecia o cenário jurídico brasileiro de um maior

debate e regulamentação sobre o assunto. Em 1984, foi publicada a Lei nº 7.232 para

tratar da Política Nacional de Informática, porém sem regular a natureza jurídica do

69 WALD, Arnaldo. Da natureza jurídica do “software”. In: GOMES, Orlando et al. (Orgs.). A proteção

jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 29-30. 70 Cf. KOLLE, Gert; ULMER, Eugen. A proteção sob o direito autoral do programa de computador.

In: GOMES, Orlando et al. (Orgs.). A proteção jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 123-124.

71 Art. 101, LDA Norte Americana: “A computer program is a set of statements or instructions to be used directly or indirectly in a computer in order to bring about a certain result” (UNITES STATES OF AMERICA. Copyright Law and Related Laws Contained in Title 17 of the United States Code. Circular 92. Washington, DC, Dec. 4th, 2014).

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software e a sua proteção. Pelo contrário, seu artigo 43 reforçou a preferência do Poder

Legislativo pela edição de diploma legal específico dedicado à tutela do software:

Art. 43. Matérias referentes a programas de computador e documentação técnica associada (software) e aos direitos relativos à privacidade, com direitos da personalidade, por sua abrangência, serão objeto de leis específicas, a serem aprovadas pelo Congresso Nacional.

Urgia então delimitar, no âmbito do direito positivo brasileiro, a natureza

jurídica do programa de computador para então definir o regime dos direitos do seu

proprietário. E, afinal, qual foi o caminho trilhado pelo legislador para definir o software

e protegê-lo juridicamente?

2.2 O tratamento jurídico conferido pela Lei nº 9.609/1998: expressão de um

conjunto de instruções e regime protetivo autoral similar ao aplicado às obras

literárias

O Brasil editou, em dezembro de 1987, a sua primeira legislação específica

sobre a proteção da propriedade intelectual dos programas de computador e sua

comercialização – a Lei nº 7.646 –, seguindo a posição majoritária da época no sentido

de aplicar ao software o regime de proteção de direitos autorais.

Com o propósito de amoldar a disciplina jurídica da proteção do software à

conjuntura econômica em formação, conferindo-lhe maior eficiência e aplicabilidade

com a supressão do regime protecionista de reserva de mercado até então vigorante e

adequando-a aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, foi editada nova lei

especial, a Lei nº 9.609/1998, ainda válida no ordenamento pátrio e comumente

designada como a Lei do Software. No mesmo ano foi publicada a Lei nº 9.610/98,

consolidando a legislação brasileira sobre direitos autorais.

De acordo com o artigo 1º da Lei de Software, programa de computador é a

expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou

codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em

máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou

equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los

funcionar de modo e para fins determinados. O artigo 2º, por sua vez, estabelece que o

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regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido

às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País,

observado o disposto nesta Lei.

A atual disciplina jurídica confirmou mais uma vez as posições até então

prevalentes de qualificar o programa de computador como trabalho intelectual protegido

pelos direitos autorais, determinando, inclusive, a aplicação subsidiária da Lei nº

9.610/199872. Esse entendimento decorre também do disposto na Lei nº 9.279/96, que

regula direitos e obrigações relativas à propriedade industrial e cujo art. 10, inciso V, é

categórico em excluir o “programa de computador em si” como bem passível de registro

de patente, por não o considerar como invenção, nem modelo de utilidade.

Ressalta-se que o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) tem

concedido patentes apenas quando o software faz parte de processos produtivos ou é

integrante de equipamentos diversos. Se o software influi tecnicamente no

funcionamento da máquina, este processo ou a máquina resultante pode se caracterizar

como uma invenção patenteável se presentes os requisitos da novidade, atividade

inventiva e aplicação industrial73.

A proteção patentária nesses casos não se circunscreve ao programa de

computador isoladamente considerado, mas a processos informáticos relativos ao

72 Neste sentido, menciona-se o seguinte julgado do STJ: “O programa de computador (software)

possui natureza jurídica de direito autoral (obra intelectual), e não de propriedade industrial, sendo-lhe aplicável o regime jurídico atinente às obras literárias” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 443.119/RJ. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em: 08 maio 2003. Órgão Julgador: Terceira Turma. Publicação: DJ 30 jun. 2003).

73 “[...] é importante ressaltar que, em alguns casos, determinado processo produtivo depende exclusivamente do funcionamento de um software para que possa atingir o seu ápice produtivo, caso contrário, não irá preencher os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial para que possa ser concedida a sua patente. Nesses casos, a legislação permite que um determinado software seja patenteado, desde que, porém, não seja a peça principal do processo inventivo ou que o objeto da patente seja tão somente as funcionalidades do software. É preciso que ele seja parte integrante de todo um processo, não podendo ser encaminhado para análise de forma isolada. Pode-se dizer que o programa de computador poderá ser objeto de patente quando este for parte integrante de uma criação industrial e tal criação, como um todo, apresente um efeito técnico positivo, ou seja, tenha como finalidade a solução de um problema encontrado na técnica, mas que ao mesmo tempo não diga respeito tão somente à forma como o software tenha sido programado ou à linguagem que tenha sido utilizada para tanto” ALMEIDA, Diego Perez; DEL MONDE, Isabela Guimarães; PINHEIRO, Patrícia Peck (Coords.). Manual de Propriedade Intelectual (Versão 2012-2013). Universidade Estadual Paulista (UNESP); Núcleo de Educação a Distância (NEAD). Disponível em: <http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/65802/1/unesp_nead_manual_propriedade_intelectual.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2016.

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emprego do software como expediente de “maximização do funcionamento de um

computador de uma maneira absolutamente inovadora, ou como meio de controle de um

processo industrial”74. Normalmente, o pleito por patentes ocorre quando o programa

está inserido em chips de equipamentos eletrônicos, tais como micro-ondas, veículos,

telefones celulares, tablets etc.

Da leitura dos comandos normativos da Lei nº 9.608/98 – arts. 1º e 2º supra

transcritos –, que definem o software como um conjunto de instruções em linguagem

natural (código fonte) ou codificada (código objeto) que pode ser expresso em suporte

físico de qualquer natureza e de emprego necessário no uso de computadores para

executar determinadas tarefas e funções, identifica-se que, dentre os elementos do

software abarcados pela proteção autoral, incluem-se os códigos desenvolvidos pelo

programador mediante o emprego das linguagens de alto nível e de baixo nível. De

acordo com a Lei de Software, “nenhuma distinção jurídica deve ser adotada entre

softwares básicos ou aplicativos; a proteção jurídica abrange todas as espécies de

instruções”75 que habilitam o computador a executar tarefas, seja em código-fonte, seja

em código-objeto.

Aliás, o regime protetivo previsto na lei brasileira é confirmado pelo Acordo

sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio,

comumente conhecido por sua abreviação inglesa TRIP’s76 e celebrado em 1994 no final

da Rodada do Uruguai no âmbito das Negociações Multilaterais do GATT, sob forte

intervenção dos Estados Unidos e de centros produtores de alta tecnologia. Considerado

o mais relevante instrumento multilateral de uniformização da produção normativa

internacional sobre a propriedade intelectual no comércio de bens intangíveis, o TRIP’s

foi internalizado ao sistema jurídico brasileiro com a edição do Decreto Legislativo nº

1.355, de 30 de dezembro de 1994, e estabeleceu, em seu art. 10º, item 1, que os

74 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 72-

73. 75 Ibid., p. 97. 76 Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights.

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programas de computador, em código fonte ou objeto, serão protegidos como obras

literárias pela Convenção de Berna (1971)77.

Posteriormente, em 1996, o Tratado da Organização Mundial de Propriedade

Intelectual (OMPI) sobre Direitos do Autor acolheu as orientações prescritivas da

Convenção de Berna e do Acordo TRIP´s, consagrando-se, mais uma vez, a aplicação

do regime autoral para o programa de computador, análogo ao outorgado às obras

literárias.

Observa-se que a Lei nº 9.609/98, ao aludir ao “conjunto organizado de

instruções em linguagem natural ou codificada” e o TRIP’s, ao dispor que programas de

computador expressos “em código fonte e em código objeto” são objetos da tutela

jurídica autoral, fazem referência a elementos textuais e escriturais ajustados à figura do

software, o que conduz à assertiva de que a proteção, pelo direito positivo atualmente

vigente, comporta os elementos literais relacionados à sequência de instruções que

preparam o hardware para a obtenção de determinados fins e resultados.

Não constitui, porém, objeto do direito autoral elementos que, apesar de

intrínsecos ao programa de computador, são estranhos à codificação elaborada pelo

técnico em computação. Estão, assim, desprovidos da proteção autoral aspectos não

literais do software, concernentes à sua aparência e à sua funcionalidade, as quais,

juntas, representam o que se denominou de “look and feel” do programa de computador:

A expressão “look and feel” refere-se: (a) ao conceito visual geral da obra (o “look” do programa), abrangendo as telas de vídeo e outras representações visuais do programa, como o aspecto gráfico e a estrutura de menus, constituindo assim parte da interface do usuário; e (b) ao funcionamento do programa, ou seja, a sequência de operações, comando, símbolos, ou de teclas de função (“keytrokes”) que produzem comandos (o “feel” do programa), assim como as técnicas de interatividade, aos quais alguns se referem como a “funcionalidade do programa”, ou seja, o modo como as funções são executadas78.

77 BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Instituto Nacional da Propriedade

Industrial. Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Promulgo a Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT. Brasília: DOU, 31 dez. 1994. Disponível em: <http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf/view>. Acesso em: 08 jun. 2016.

78 SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. A proteção autoral de programas de computador. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 289.

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Tais elementos, alheios à expressão concreta literal protegida pelo direito

autoral, representam a denominada estrutura organizacional do programa de

computador, relacionada ao conteúdo funcional e utilitário da obra intelectual. Para a

melhor compreensão acerca desses componentes de finalidade prática, destinados a

maximizar a performance do software, convém mencionar os esclarecimentos de

Roberto Chacon de Albuquerque:

Alguns dos elementos do software que podem ser alvo de proteção jurídica pertencem à estrutura interna do programa, tais como a estrutura de dados – o número de itens relacionados que são tratados como uma unidade pelo computador; a estrutura de arquivos – o modo pelo qual um arquivo de dados é organizado; as sequências de comunicação entre programas; e vários aspectos estruturais da interface do usuário, incluindo o conteúdo e a organização dos elementos audiovisuais presentes na tela quando o software for utilizado – como o menu, ícones e outros componentes textuais e gráficos, bem como a sequência de toques de teclado mediante a qual o usuário transmite dados ao programa.79

Logo, escapam do horizonte protetivo autoral as soluções tecnológicas

implementadas pelo programa de computador, relacionadas ao seu componente

funcional. Não é por acaso que o art. 6º da Lei nº 9.609/98 descaracteriza como ofensa

aos direitos do titular de programa de computador a ocorrência de semelhança de

programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de

sua aplicação.

O art. 8º, incisos I, II e VII da Lei nº 9.610/98, aplicável subsidiariamente aos

programas de computador, exclui também da proteção como direitos autorais as ideias,

procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos; os

esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; e o

aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras. Essa ausência de

proteção justifica-se na medida em que esses elementos – ideias, regras e ensinamentos

em geral - pertencem à doutrina científica, que deve ser acessível e disponível a todos.

A Lei dos Direitos do Autor brasileira dispõe ainda que, no âmbito das

ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu

conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais

79 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 125.

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campos da propriedade imaterial (art. 7º, §3º). Ou seja, a proteção autoral objetiva,

fundamentalmente, versar sobre a criatividade literária e artística do autor da obra, sem

contemplar inovações técnicas e científicas, circunscritas ao domínio das ideias.

Dessarte, no estágio atual da legislação brasileira, moldurada pelos princípios

previstos no Acordo TRIP’s, os elementos não literais do software, referentes às

funcionalidades nele desempenhadas e aos efeitos gráficos gerados pelo código fonte,

através da disposição de elementos visuais como cores, caixas, menus de comandos,

janelas, botões etc., favorecendo a compreensão e a utilização do software pelo utente

ao executar as tarefas do computador, estão excluídos da proteção jurídica específica

conferida aos programas de computador pelo ordenamento pátrio.

Além de não encerrarem componentes próprios da linguagem de

programação, esses elementos referentes à interface gráfica do usuário e às soluções

técnicas implementadas pelo software através dos algoritmos, que competem,

precipuamente, à funcionalidade do programa, podem, nos termos dos artigos 6º e 8º

citados, ora equiparar-se com a própria ideia, pois, de tão restrita que é a forma como

são expressos, apresentam-se como solução necessária ou limitada, ora se caracterizar

como métodos operacionais para fins unicamente utilitários do software. Nessas

hipóteses, os elementos da expressão do software decorrem, necessariamente, da ideia

e quando a expressão é indispensável, ou ao menos padronizada, para o tratamento da

questão, não tem lugar a proteção autoral, justamente porque, nessas circunstâncias em

que ideias e expressões são inseparáveis, proteger juridicamente a expressão equivaleria

a conferir um monopólio sobre a ideia, sobre o próprio pensamento80.

Pois bem. Esclarecido que os elementos literais de um programa de

computador, afetos à sequência de instruções codificadas, são os únicos expressamente

contemplados pelo legislador e que gozam de proteção jurídica pela disciplina específica

instaurada pela Lei nº 9.610/98 e também pela Lei Geral de Direitos do Autor, convém

retomar as breves reflexões registradas no item anterior, a fim de demarcar, com maior

rigor analítico, as características de uma produção tutelável pelo direito autoral,

cotejando-as com o trabalho realizado pelo programador no desenvolvimento do código

fonte e do código objeto.

80 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 127.

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Em conformidade com o art. 7º da Lei nº 9.610/9881, compreende-se como

obra protegida pelo direito autoral aquela (i) expressa por qualquer meio ou fixada em

qualquer suporte, fazendo-a perceptível pelos sentidos humanos, e (ii) resultante de um

esforço intelectual criativo e pessoal do autor da obra. Para merecer a proteção autoral,

portanto, exige-se primeiro a exteriorização da obra, até porque, tratando-se de bem de

essência intangível, aquela é condição para que terceiros dela tomem conhecimento e

passem a utilizá-la. Igualmente reclama-se uma criação de espírito do seu autor, vale

dizer, a forma pela qual a ideia se exterioriza há de manifestar tom criativo efluído do

intelecto do autor da obra.

Nesse ponto, importa reforçar que o regime de proteção de obras literárias,

artísticas e científicas, estabelecido pela Lei nº 9.610/98, visa a proteger as criações de

espírito de qualquer modo exteriorizadas. Sob esse prisma, não são tuteladas as ideias

em si mesmo consideradas, mas a expressão concreta de determinadas ideias, de tal sorte

que um mesmo assunto pode ser tratado por diversos autores literários, como também

um mesmo algoritmo, uma mesma linguagem de programação e uma mesma função

podem ser aplicados em diferentes programas de computador.

O que é protegido por direitos autorais não é a criação intelectual do ser humano de forma isolada, mas sim aquela que de alguma forma tenha sido materializada em um suporte e que possa ser objeto de reprodução. Somente assim poderá ser considerada como obra intelectual. A simples ideia ou visualização mental de um trabalho do intelecto humano não pode ser protegida. Entretanto, a partir do momento em que tal criação passou da mente de seu criador para o suporte que a sustenta, podendo ser transmitida para outras pessoas, tal criação poderá ser considerada como obra intelectual, e consequentemente protegida pelo direito autoral82.

Portanto, a criatividade, tutelada pelo direito autoral, recai na forma de

expressão da ideia. Para caracterizar a criatividade, a obra deve exprimir uma criação

pessoal, diretamente relacionada à imaginação do autor. Não há que falar em

81 “Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou

fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro [...].” 82 ALMEIDA, Diego Perez; DEL MONDE, Isabela Guimarães; PINHEIRO, Patrícia Peck (Coords.).

Manual de Propriedade Intelectual (Versão 2012-2013). Universidade Estadual Paulista (UNESP); Núcleo de Educação a Distância (NEAD). Disponível em: <http://www.acervodigital.unesp.br/ bitstream/123456789/65802/1/unesp_nead_manual_propriedade_intelectual.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2016.

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criatividade, intrínseca à obra tutelável, quando a sua expressão consubstancia a única

forma de manifestar a ideia, ou a aplicação de ideias comuns em grau de obviedade ou,

ainda, a simples representação de uma realidade (por ex.: notícia jornalística e

calendário). Inexiste subjetividade na representação se a forma de expressão da ideia é

bastante limitada e até necessária, ou traduz o padrão para a solução do problema,

implicando certa identidade entre a ideia e expressão, sob pena de a proteção, nessas

hipóteses, tolher a própria manifestação do pensamento.

Transpondo esses pressupostos legais para a elaboração de programas de

computador, do próprio teor do art. 1º da Lei de Software, é possível deduzir que o

software, embora de essência intangível, expressa-se em linguagem natural ou

codificada exteriorizada em meios físicos (disquetes, CD-ROM, pen drives, fitas

magnéticas e hardwares em geral etc.).

Também se observa a criatividade intelectual como inerente à atividade de

programação, uma vez que há ampla liberdade de criação na codificação de um software,

de tal sorte que dois ou mais programas, ainda que voltados para solucionar idênticos

problemas, distinguem-se quanto à maneira lógica de instruir o hardware para realizar a

mesma tarefa. Decerto, a projeção e o desenvolvimento de um programa de computador,

com base num algoritmo, exigem do programador conhecimento técnico-especializado,

elevada aptidão lógica e analítica, riqueza imaginativa e capacidade de planejar todos os

estágios da elaboração do software, organizando informações e seletando os melhores

caminhos e soluções, tudo isso refletido na obra final83.

Em cada software produzido manifesta-se a criatividade pessoal e individual

do programador, decorrente das escolhas e soluções por ele empregadas durante o

83 “Para exercer suas funções, o programador tem de ter capacidade analítica de alto nível, conjugada

com a aptidão de pensar em estágios, segundo um planejamento; tem de selecionar e organizar as informações relativas ao setor de conhecimentos e de atividades no qual se aplicará um programa. Basta lembrar que a elaboração de um programa de computador tem de ser precedida de uma fase em que o programador, após estudar, analisar e compreender as atividades do usuário, define ‘a priori’ os objetivos do programa, para, em seguida, passar a determinar as suas especificações funcionais e elaborar o seu projeto. Esse projeto nada mais é do que o resultado de uma projeção mental das sequencias de dados e instruções que comporão o programa. Daí se passa, então, à elaboração das diversas sequencias, com a solução passo a passo de cada um dos problemas que a compõem, adrede testados e aperfeiçoados, até chegar-se ao programa-produto” (LOBO, Carlos Augusto da Silveira. A proteção jurídica dos programas de computador. GOMES, Orlando et al. (Orgs.). A proteção jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 107).

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desenvolvimento do código. Diante da multiplicidade de arranjos possíveis imanentes à

atividade de programação, o conjunto de decisões tomadas para projetar e elaborar um

programa específico influem diretamente na sua forma, substância e excelência. Quanto

mais complexo o programa, maior será seu grau de individualidade, inexistindo

programas coincidentes se trabalhados separadamente por diferentes técnicos em

computação.

Em sentido similar rumam as conclusões dos autores alemães Eugen Ulmer

e Gert Kolle84:

Embora o desenvolvimento do software seja influenciado por diversas condições invariáveis, por exemplo, o problema a ser resolvido e o resultado a ser almejado, a linguagem de programação utilizada, as normas e padrões específicos, essas condições apresentam simplesmente o arcabouço geral a ser obedecido por aqueles que desenvolvem programas, porém de modo algum limitam a ampla liberdade para a escolha, decisão e projeto individuais, a riqueza de soluções melhores ou piores que se encontram disponíveis para a criação de qualquer programa e que especificamos acima. Programas feitos por programadores diferentes, para resolver o mesmo problema e utilizando a mesma linguagem de programação, poderão todos atender às suas finalidades. Contudo, diferirão consideravelmente uns dos outros quanto à sua forma, conteúdo e qualidade.

Na atual conjuntura da revolução da tecnologia informática, a tutela jurídica

vigente para a propriedade intelectual dos programas de computadores, porém, tem-se

mostrado, segundo parte da doutrina, uma solução complicada e insuficiente. Há tempo

bradam, em nível nacional e internacional, críticas à aplicação do Direito do Autor no

sentido de que, além dessa tutela revelar-se uma proteção excessiva, o software não se

enquadraria perfeitamente na categoria de obra literária protegida pelo direito autoral.

Apesar da temática tratada neste capítulo não pertencer ao específico objeto

deste escrito, alongar-se um pouco mais na presente digressão e expor brevemente as

opiniões sobre a impropriedade da proteção autoral aos programas de computador têm

o propósito de já ir desvelando as complexidades jurídicas afetas à realidade dessa

tecnologia e sua inserção no corpo social.

84 KOLLE, Gert; ULMER, Eugen. A proteção sob o direito autoral do programa de computador. In:

GOMES, Orlando et al. (Orgs.). A proteção jurídica do software. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 145.

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2.3 As propostas para rediscutir o enquadramento e a proteção jurídica do

software: bem imaterial de caráter utilitário, pilar do sistema global da

informação

Numa sociedade baseada na informação, os programas de computadores

cumprem papel central em um ambiente cada vez mais globalizado e eletrônico,

contribuindo para a transmissão de dados e comunicação intersubjetivas, para a

realização de múltiplas e variadas atividades, modos de entretenimento, formas de

acesso à cultura e práticas de negócios, num impulso crescente do contemporaneamente

denominado e-business. Por atuar nesse espaço digital como elemento fundamental, a

produção do software experimenta hoje um processo de disseminação e padronização

com o objetivo de aprimorar as opções ofertadas no mercado, implementar tecnologias

mais acessíveis e conferir uniformidade entre os recursos informáticos, facilitando sua

interoperacionalidade e aplicação cada vez mais ampla e integrada à concretude social.

Diante dessa imensa demanda tecnológica da sociedade contemporânea, o

direito autoral como regime protetivo do software acaba por desvelar uma proteção

excessiva considerando os contornos tradicionais do instituto. Como brilhantemente

explanado por Manoel Joaquim Pereira dos Santos85, se o software é a substância

fundante desse sistema, viabilizando diversas atividades e oferecendo a estrutura básica

para o e-business, o produtor de um programa não pode sempre deter o monopólio dessa

forma de expressão, sob pena de obstar o próprio pilar dessa estrutura comunicativa. A

tutela excessiva, adverte o autor, afetará diretamente o desenvolvimento de um sistema

global de informação baseado nessa arquitetura tecnológica. No mesmo sentido,

pondera Rodrigo Guimarães Colares:

Uma proteção assim não atenderia aos interesses dos usuários em geral, não atenderia aos interesses econômicos da indústria de software e, sob o ponto de vista estritamente jurídico, atentaria às normas de garantia da livre concorrência previstas na Constituição Federal, posto que seria capaz de condicionar todo um mercado dinâmico como o da tecnologia da informação durante um período de mais de 50 anos, que é estabelecido para a proteção dos programas de computador na Lei nº

85 SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. A proteção autoral de programas de computador. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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9.609/1998. Uma tutela assim seria uma “desproteção” parafraseando os ensinamentos do professor Goffredo Telles Jr., pois seria uma proteção que não queremos86.

Muito além dessa perspectiva socioeconômica, parte da doutrina tem

entendido que o regime autoral para os programas de computador revela-se insuficiente,

porquanto o software transcenderia a uma simples categorização do direito do autor na

qualidade de expressão de conjunto lógico de instruções para o uso de computadores,

caracterizando-se sobretudo como uma obra técnica e funcional, cujo valor está

diretamente relacionado à sua utilidade perante o usuário.

A corroborar o caráter utilitário dominante no software, argumenta-se que os

equipamentos eletrônicos se tornam imprestáveis sem um programa de computador que

os instrua acerca de como executar tarefas e funções, obtendo-se o resultado desejado

pelo usuário. “Quando o hardware executa qualquer operação”, não são os dispositivos

eletrônicos, “mas sim o programa de computador que é responsável pela produção de

tal resultado”87. A própria expressão do conjunto de instruções, contida no código-fonte,

assume papel instrumental, precisamente para fazer com que a máquina realize funções

específicas.

Para Tarcísio Queiroz Cerqueira a ideia generalizada de software como um

simples resultado de “criação de espírito” é equivocada, porquanto, diferentemente das

obras relacionadas na Lei nº 9.610/98, o programa de computador é um bem de utilidade,

comercializável, aplicado para prestar um serviço e que modifica o trabalho do homem,

aumenta sua produtividade e qualidade. Segundo Cerqueira “o conceito de direitos

autorais se distancia cada vez mais do de programas de computador”: na medida em que

a tecnologia se desenvolve, com a comercialização cada vez mais frequente de sistemas

de inteligência artificial, realidade virtual e multimídia, “os programas de computador

acentuam suas características de bem de utilidade”88.

86 COLARES, Rodrigo Guimarães. Proteção jurídica do software: uma análise crítica dos elementos

protegidos pelo direito. Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro: ABPI, n, 105, mar./abr. 2010, p. 37.

87 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 55. 88 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina,

práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 31-32.

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Apoiado nesse prisma de que o programa de computador gravita em torno de

sua vocação utilitária e não se esgota na expressão literal, compreende-se como também

elemento constitutivo do software a sua estrutura organizacional, relacionada aos seus

componentes gráficos e funcionais, que favorecem a identificação e a utilização do

software à medida em que a ele os usuários vão se habituando (“look and feel”). Esses

aspectos não literais constituem formas de expressão do software que manifestam, em

valor comercial, aspectos importantes da criação de um programa de computador,

justamente por serem os elementos com o que os usuários estão acostumados e através

dos quais percebem sua utilidade.

Objeta-se, sob esse enfoque, que a marca distintiva entre dois programas é a

forma pela qual o usuário obtém e sente a utilidade e a finalidade do software: é a

interface do software que influi na opção por um programa em detrimento de outro de

mesma funcionalidade. “Tanto melhor será um software, quanto mais ele corresponder

às expectativas do usuário, que pretende, por seu intermédio, utilizar da maneira que

melhor lhe convier o computador.”89 Acerca do valor ínsito à interface gráfica e à

funcionalidade proporcionadas pelo programa de computador elucida Denis Borges

Barbosa:

A par da estrutura interna de um programa, subsiste a questão da aparência e da funcionalidade deste em relação com o usuário – como este sente o programa que atua em sua máquina. É o tema da extensa discussão jurisprudencial relativa ao look and feel – o “jeitão” dos softwares. O fato de dois softwares terem, em confronto, o mesmo “jeitão”, é extremamente importante para o novo concorrente que entra no mercado, porque o usuário não sente maiores dificuldades de aprendizado decente de cada um deles, pela coincidência de telas e pela sequência de comandos ou pelo tipo de resposta90.

Nesse passo, a ausência de uma tutela efetiva para o aspecto utilitário do

software, relativos ao “look and feel”, que, aliás, também é fruto do esforço intelectual

do programador, propicia que a aparência e a funcionalidade de um programa exitoso

sejam reproduzidas por terceiros concorrentes, sem quaisquer limitações e garantias.

89 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 79. 90 BARBOSA, Denis Borges. A Proteção do Software. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 09 jan.

2007. Disponível em: <http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/2846/a_protecao_do_software>. Acesso em: 09 jun. 2016.

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79

À vista desses outros elementos constitutivos do software, pertinentes ao seu

modo organizacional e funcional, a proteção jurídica equivalente à destinada a criações

de espírito literárias e, por isso, restrita à expressão literal do conjunto lógico de

instruções na forma de códigos, tem sofrido objeções como solução única para proteger

os programas de computador. Estes, em oposição às obras literárias, artísticas e

científicas que consubstanciam obras intelectuais de alto valor cultural e estético,

qualificam-se também como bem intangível de natureza técnica, criados para cumprir

determinada função e economicamente valorizados muito mais em razão de sua

funcionalidade e utilidade do que em virtude de seu valor cultural diretamente associado

à personalidade de um autor.

Não é por acaso que a Lei nº 9.609/98 objetiva primordialmente resguardar

os direitos de ordem patrimonial do autor do software, referentes à sua utilização

econômica, excluindo da proteção os direitos de ordem moral, concernentes à defesa da

personalidade do criador, ressalvando tão somente o seu direito de reivindicar a

paternidade do programa de computador e de opor-se a alterações não-autorizadas,

quando implicarem deformação, mutilação ou outra modificação do programa de

computador, que prejudiquem a sua honra ou a sua reputação (art. 2º, §1º).

Mesmo que, num intenso esforço hermenêutico, se extrapolassem os limites

semânticos do Direito do Autor, com a extensão de suas normas aos caracteres não

literais do software, fica extremamente difícil aplicar-lhes a tradicional dicotomia

“ideia-forma”, subjacente à sistemática autoral, pois, como dito, as inovações

tecnológicas no campo do software, canalizadas para a implementação de soluções

técnicas, tem sua forma de expressão estreitamente vinculada à funcionalidade e à

utilidade almejadas com o desenvolvimento do programa, barrando nas disposições do

art. 6º da Lei nº 9.609/98 e dos arts. 8º e 7º da Lei nº 9.610/98. Ademais, “caso as

interfaces que asseguram a transmissão de dados de um programa para o outro ou a

comunicação com o usuário forem rigidamente protegidas, o caráter utilitário de outros

softwares pode ser restringido. Eles não poderão fazer uso dessas interfaces para

assegurar sua interoperabilidade com outros programas”91.

91 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 121.

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Deste cenário de forte resistência à tutela do autor para a propriedade

intelectual dos programas de computador, ensejando novos debates no âmbito nacional

e internacional, surgem propostas pela adoção de uma disciplina específica (sui generis)

a constar num único diploma legislativo, o qual, atento também à sua natureza de criação

tecnológica inovadora e, por conseguinte, aos seus traços utilitários, instauraria um

regime adequado à integralidade constitutiva do software92, protegendo sua codificação

e o seu modo de funcionamento.

No entanto, segundo Manoel Joaquim Pereira dos Santos93, essa tutela

especial, derivativa dos institutos tradicionais da propriedade intelectual, demandaria

novo consenso da comunidade internacional, visto que o Acordo TRIP´s determina o

enquadramento dos programas como obras intelectuais na forma prevista pela

Convenção de Berna.

Outra alternativa, ressalta o autor, seria a coexistência do direito autoral e do

direito patentário, tendo este último ganhado progressiva importância, desde o início do

Século XXI, como alternativa de proteção por força dos traços utilitários e funcionais

do software94. Essa segunda proposta, apesar de se coadunar com o referido tratado

internacional, traz a dificuldade não só de demarcar o âmbito de proteção de cada um

desses regimes, mas também de apurar se o programa de computador per si atenderia

aos requisitos de patentabilidade, traduzidos na novidade, atividade inventiva e utilidade

industrial.

De todo modo, seja por uma disciplina sui generis, seja por uma coexistência

de direitos, dada a conjuntura tecnológica contemporânea, é fundamental adotar um

modelo que beneficie tanto a indústria de software como também o usuário/consumidor,

na busca por um maior equilíbrio entre os interesses privados daquele que investe na

92 SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. A proteção autoral de programas de computador. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 432-435. 93 Ibid., p. 436-437. 94 “Na medida em que componentes da interface do usuário servem para viabilizar a operação do

programa, há a tendência de buscar para eles a proteção patentária. Contudo, não é claro até que ponto essa funcionalidade resulta de um conhecimento técnico no domínio do direito patentário” (ibid., p. 421). Nesse sentido, o autor menciona as decisões norte-americanas nos casos Baterman v. Mnemonics, 79 F.3d 1532 (11th. Cir. 1996) e Mitek Holdings, Inc. v. Arce Engineering Co. 89 F. 3d. 1548 (11th. Cir. 1996).

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elaboração de um programa de computador e o interesse público pelo acesso de todos à

informação e à disseminação do conhecimento.

De fato, o regime jurídico a ser aplicado deve assegurar a recuperação do

investimento de forma eficiente e, ao mesmo tempo, não resultar numa apropriação

excessiva da ideia e do intelecto, em detrimento da inovação e, por conseguinte, do

desenvolvimento econômico, social e cultural. Afinal, a propriedade intelectual não é

um fim em si mesmo, mas um “meio” para avançar e progredir em todas as esferas do

conhecimento, consoante expressamente preconizado pelo art. 7º do Acordo TRIP’s:

A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social e econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.

Finalizando, é preciso realçar que as noções sobre a proteção jurídica do

software foram aqui descritas de forma breve e pontual, longe de exaurir a temática e

seu profuso desdobramento. Pretendeu-se, nessa particular reflexão, mostrar,

principalmente, que as discussões e divergências sobre a melhor forma de proteger

juridicamente o programa de computador, positivado como um conjunto de instruções

lógicas organizadas para a solução de problemas específicos, origina-se da

caracterização híbrida desse bem intangível por parte da doutrina: o software é,

simultaneamente, dotado de elementos literais (“textuais”), pois expresso em códigos,

protegidos pelo direito autoral, e também de elementos não literais, representados pela

sua funcionalidade, uma vez que, aplicado para o manuseio do equipamento

informático, presta-se, sobretudo, a executar determinadas tarefas, provendo utilidades

aos usuários do computador.

E esse caráter heterogêneo ínsito à natureza do programa de computador –

obra intelectual contida, num suporte físico de qualquer natureza, de nítida vocação

utilitária – tem repercutido na seara tributária, promovendo em certa medida a famosa

dicotomia “produto versus serviço”.

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2.4 A definição jurídica de “software”: bem incorpóreo intelectual desvinculado

de seu suporte físico

Bens, no direito civil, “são coisas materiais, concretas, úteis aos homens e de

expressão econômica, suscetíveis de apropriação, bem como as de existência imaterial

economicamente apreciáveis”95. O software é um bem, uma vez que pode ser objeto de

relações intersubjetivas, sendo suscetível de avaliação econômica e, portanto, apto a

integrar à esfera patrimonial de pessoas físicas e jurídicas96. Inclusive, a Lei nº 9.610/98,

no seu art. 3º, combinado com o art. 83, inciso III, do Código Civil de 2002, equipara o

direito autoral como bens móveis97 para os efeitos legais, justamente para confirmar que,

ainda que se trate de um bem imaterial, o autor poderá exercer seus direitos reais sobre

ele.

A equiparação do direito autoral a bem móvel teve o condão de conferir ao

autor da obra intelectual a faculdade de usar, gozar e dispor dos seus direitos, mediante

o seu aproveitamento econômico: “o direito real é aplicável enquanto aspecto

econômico, já o da personalidade enquanto vínculo intrínseco e indissociável em relação

ao criador”98. Assim, a propriedade autoral absorve duas vertentes jurídicas: de um lado,

o direito da personalidade, afeto à face moral dos direitos do autor, que, no caso dos

softwares, limita-se à prerrogativa do titular de reivindicar a paternidade do programa e

a objetar eventuais alterações no software que prejudiquem sua honra e reputação e, de

outro, o direito patrimonial, outorgando ao autor a faculdade de explorar

economicamente o bem intangível, por meio da sua reprodução, comercialização,

modificação, uso ou disposição.

Ao definir essa bissecção jurídica, leciona Maria Helena Diniz que o direito

autoral:

95 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V. 1: parte geral – de acordo com a Lei nº

12.874/2013. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 96 São também objeto do direito bens sem expressão econômica, vinculados, por exemplo, aos direitos

da personalidade do indivíduo, nomeadamente a vida, o nome, a honra e a dignidade humana. 97 Art. 82, CC/02: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força

alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. 98 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003,

p. 30.

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[…] representa uma relação de natureza pessoal, no sentido de formar a personalidade do autor um elemento constante do seu regulamento jurídico, e porque seu objeto constitui, sob certos aspectos, uma exteriorização da personalidade do autor, de modo a manter o direito de autor, constantemente, sua inerência ativa do criador da obra; representa, por outro lado, uma relação de direito patrimonial, porquanto a obra do engenho é, concomitantemente, tratada pela lei como bem econômico99.

Sob o aspecto da materialidade, divide-se a classe de bens jurídicos em bens

corpóreos e incorpóreos100. Enquanto os primeiros são entes palpáveis, existentes no

mundo físico e concreto, e, por isso, percebidos diretamente pelos sentidos, os segundos

carecem de dimensão tangível. Não obstante os bens incorpóreos sejam de per si entes

abstratos, podem ser veiculados em suportes físicos e, assim, percebidos mediatamente

pela intuição sensível.

Essa classificação torna-se relevante e útil, pois, conforme pontua Orlando

Gomes, aos objetos materiais e aos imateriais “não se pode dispensar tratamento jurídico

igual”101. Trata-se de divisão que influi na forma de negociação do bem: enquanto os

bens corpóreos são comumente transacionados pela operação de compra e venda e

locação, os incorpóreos circulam economicamente pelas formas contratuais da cessão102

e da licença, ambas a serem esmiuçadas no próximo capítulo. Respaldado nesse critério

distintivo concernente à substância material do bem, elucida Antônio Lopes de Sá que

os bens incorpóreos podem ser negociados, mas, por serem abstratos, não podem ser

fisicamente trocados e sim comprovados103.

99 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 4, 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.

359. 100 “Corpóreos são bens possuidores de existência física, como uma mesa, um carro, um alfinete ou um

navio. Incorpóreos são bens abstratos, que não possuem existência física, como os direitos autorais, a vida, a saúde etc.” (FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 5. ed. rev. atual. e ampl. de acordo com o Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 176).

101 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Edição revista atualizada e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito e Reginaldo Paranhos Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 165.

102 Os seguintes artigos do Código Civil de 2002 indicam a cessão como a forma contratual empregada para negociar bens intangíveis: art. 286 e seguintes; art. 980-A, §5º; art. 918; art. 1003; art. 1081, §2º; e art. 1149.

103 SÁ, Antônio Lopes de. Dicionário de Contabilidade. 9. ed. São Paulo: Atlas, 1995.

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Na categoria dos bens incorpóreos, encontram-se os bens digitais, no formato

de dados constituídos por bits104 e bytes105, transitados pelas redes ou transportados de

um dispositivo para outro através de gravações em mídias. De acordo com Emerenciano

Adelmo da Silva, os bens digitais:

[…] são compostos sempre por bits que formam modelos matemáticos complexos em que se constituem os processos tradutórios encapsulados na própria máquina, que revertem a ordem inteligível para a ordem do sensível, nas imagens e sons que se projetam, criando os componentes do chamado mundo virtual.106

Dentre esses componentes do denominado mundo virtual, sobressai o

software transacionado pela Internet.

Consoante delineado nos tópicos precedentes e nos moldes prescritos pela

Lei nº 9.609/98, o software, ou programa de computador, isoladamente considerado, é

definido como o conjunto de instruções e comandos organizado em linguagem própria

que habilita o equipamento (hardware) a processar informações, executar determinadas

funções e tarefas, com vistas a produzir um certo resultado, e que não se confunde com

o suporte físico que o contempla. Trata-se de obra intelectual, amparada pelos direitos

do autor, que indica a série de expedientes a serem executados pela máquina, voltados

a atender as necessidades do usuário do computador.

O corpo material que lhe dá suporte consiste num instrumento necessário

para a apreensão e a divulgação do programa, propiciando sua disponibilização a

terceiros, sem o condão de afastar a sua natureza de bem incorpóreo, protegido pelo

regime jurídico autoral. Essa relação acessória entre o software e o seu suporte físico

resta mais inconteste no atual estágio da era da informação, em que a grande maioria

dos programas são disponibilizados pela Internet, de forma eletrônica, reforçando que o

programa de computador não está vinculado a um corpus mechanicum específico.

A despeito do forte caráter utilitário do software, possibilitando a utilização

do equipamento, o que vem ensejando intensas discussões sobre a sua proteção jurídica,

104 Bit é a contração da expressão Binary digiT e consiste na unidade de medida elementar para

transmitir informações. 105 Conjunto organizado de bits. 106 EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB; Síntese,

2003, p. 92.

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em conformidade com o já explicitado, é preciso pontilhar que as soluções práticas e

funções buscadas pelo programa dependem também da aplicação dos outros

componentes do sistema informático, tocantes aos dispositivos eletrônicos. A

automatização das atividades humanas, cada vez mais entranhada nos domínios do

conhecimento, não é executada isoladamente pelo software, na medida em que suas

instruções se voltam a capacitar o hardware na obtenção dos resultados desejados. A

execução das tarefas pelo computador, conferindo utilidades aos seus usuários, depende

da atuação conjunta do software e do hardware, elementos básicos do sistema

informático107.

Apoiado justamente nessas ponderações, adverte Roberto Chacon de

Albuquerque que, “como criação dotada de expressão concreta e originalidade”, o

programa de computador há de ser compreendido como uma obra intelectual

“independentemente de seu destino manifesto de caráter utilitário e de seu conteúdo

técnico”108, conformando-se o instituto ao tratamento jurídico conferido ao software

pelo direito internacional e pela maioria dos sistemas jurídicos nacionais, inclusive pelo

sistema jurídico brasileiro.

Em derradeiro, convém ponderar que o software, tal como a música e o filme

fornecidos eletronicamente, são bens digitais, que, todavia, não se confundem. O

programa de computador, através da sua linguagem codificada, aciona e instrui a

máquina a executar tarefas. Seu valor agregado está diretamente relacionado às

utilidades por ele providas. Filmes e músicas exprimem obras intelectuais muito mais

reconhecidas economicamente pelo seu valor cultural e são bens digitais, cujos dados,

para serem processados, necessitam ser interpretados pelos dispositivos segundo

instruções fornecidas pelo programa de computador correspondente. Deveras, um “livro

107 De acordo com Renato Borusso, sistema informático é “um complexo unitário de máquinas com

funções diferenciadas, com extraordinária capacidade de memorizar qualquer tipo de dado e, portanto, de incorporar o pensamento passado ou presente, com capacidade de operar em velocidade vertiginosa, cálculos e pesquisas [...] e realidades complexas que, por dimensão e quantidade, escapam da possibilidade de um controle humano e que, por consequência, se transforma numa inteligência artificial operativamente superior às próprias faculdades do homem que o criou” (apud BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003, p. 10).

108 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 83.

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em papel somente é convertido para o formato digital com a utilização de determinado

software que aliado ao hardware transforma os bytes em textos (imagens, sons etc.)

sensíveis à percepção humana (à visão)”109.

Enfim, definido o conceito jurídico de software, traçando as linhas gerais da

sua proteção e seu enquadramento pela Lei nº 9.609/98, inevitável abordar os modos de

exploração econômica do programa de computador, diretamente relacionados às suas

formas de contratação.

109 IWASE, Raquel Harumi. Aspectos controvertidos da tributação do uso de software. 2013.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 63.

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3 O SOFTWARE E A SUA EXPLORAÇÃO ECONÔMICA

A evolução mercadológica do software, representada pela sofisticação

crescente dos negócios jurídicos tendo-lhe como objeto, é o retrato certeiro da evolução

técnica da informática e dos meios de comunicação. Somente com os avanços

tecnológicos dessas áreas, marcadas pelo aprimoramento da Internet e da capacidade

computacional, foi possível a migração da exploração econômica do software do mundo

físico para o universo virtual.

É inegável que o ciberespaço impulsionou, e continua a impulsionar,

profundas mudanças no modus operandi de empreender com programas de computador,

despertando novas formas de contratar e novos modelos de negócio, o que pode

repercutir na esfera tributária. Daí advém a suma importância de nos ocuparmos, em

capítulo próprio, da exploração econômica do software e seus desdobramentos no atual

estágio do progresso tecnológico.

3.1 Comércio tradicional versus comércio eletrônico

Retomando parte das reflexões ensaiadas no item 1.5.1 (Parte 1), o avanço

dos recursos informáticos e das telecomunicações favoreceu, e muito, o

desenvolvimento do denominado “comércio eletrônico”. Distintamente do conceito

tradicional de comércio, em que as transações comerciais são marcadas pela

tangibilidade e pelo contato direto entre os sujeitos envolvidos, a modalidade eletrônica

baseia-se nos negócios jurídicos realizados de forma não-presencial (por meio de

telemarketing, redes de computadores ou qualquer outro meio eletrônico).

Neste universo da contratação eletrônica, destacam-se as transações em

ambiente virtual (e-business), que se servem dos recursos informáticos como ferramenta

para formação, instrumentalização ou execução do liame contratual. Arrimadas no

processamento automático de dados através da Internet, tais transações desdobram-se

em negócios com tangíveis e intangíveis: os primeiros consistentes em atos negociais

que, a despeito da oferta e firmamento do contrato efetivarem-se eletronicamente, têm

como objeto bens corpóreos; e os segundos, relativos a operações com produtos e

serviços virtuais, reportam-se às hipóteses em que a Internet é o meio pelo qual se

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perfazem não só a oferta e a contratação, mas a própria disponibilização do conteúdo

digital transacionado.

No âmbito da União Europeia, conforme Comunicado da Comissão Especial

de Iniciativa no Setor do Comércio Eletrônico, costuma-se discernir essas duas

modalidades em: (i) o comércio eletrônico indireto, representado pela encomenda

eletrônica de bens tangíveis que precisam ser entregues fisicamente e, por isso,

dependem de uma série de fatores externos, tais como a eficiência do sistema de

transporte e serviço postal; e (ii) o comércio eletrônico direto, alusivo à encomenda, ao

pagamento e à entrega eletrônicas de bens intangíveis, tais como software e conteúdo

de entretenimento110.

Tendo em mente a segunda categoria mencionada, referente a operações com

intangíveis, nota-se que o vocábulo “comércio” é empregado com uma conotação

bastante ampla, na medida em que alcança também qualquer forma negocial de

disponibilização de conteúdo e informação digital. A respeito dessa extensão

significativa pontua Arnaldo Wald que, “numa visão mais ampla, concebe-se comércio

eletrônico como o conjunto de usos comerciais de redes, com a alienação ou a simples

apresentação de produtos ou serviços”111.

Essa dinâmica do mercado virtual pressupõe uma nova compreensão às

relações intersubjetivas e um desafio para a tributação sobre o consumo, porquanto o

fato de o objeto negociado inexistir fisicamente impacta diretamente na forma de

110 Tradução livre do seguinte texto: “Electronic commerce, based on the electronic processing and

transmission of data, encompasses many diverse activities including electronic trading of goods and services, on-line delivery of digital content, electronic funds transfers, electronic share trading, public procurement, and so on. These activities may be divided into two categories: (i) indirect electronic commerce, i.e. the electronic ordering of tangible goods that must still be physically delivered and which therefore depends on a number of external factors, such as the efficiency of the transport system and postal services; and (ii) direct electronic commerce, i.e. the on-line ordering, payment and delivery of intangible goods and services such as computer software and entertainment content. Electronic commerce is not limited to the Internet, but includes other applications such as videotex, tele-shopping and catalogue sales on CD-Rom” (EUROPE. European initiative on electronic commerce. The principal aim of this communication is to encourage the vigorous growth of electronic commerce in Europe. 18 April 1997. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=URISERV%3Al32101>. Acesso em: 12 jul. 2016).

111 WALD, Arnoldo. Um novo direito para a economia: os contratos eletrônicos e o Código Civil. In: GRECO, Marco Aurélio; MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coords.). Direito e Internet: relações jurídicas na sociedade informatizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 17.

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apropriá-lo e utilizá-lo, ainda que as funcionalidades do bem digital percebidas pelo

consumidor sejam as mesmas112.

De acordo com Estudos da Secretaria da Receita Federal sobre “O Brasil e o

Comércio Eletrônico” 113, quando a circulação do produto, vendido on-line, é física,

apesar de surgirem problemas de controle de documentação fiscal e de distribuição de

receitas entre Estados de origem e destino da mercadoria em operações interestaduais, a

tributação segue a legislação existente e aplicável para as transações de mercadorias e

serviços fornecidos por estabelecimentos empresariais não-virtuais, pois “a natureza

jurídica do negócio continua sendo a mesma”, alterando-se apenas “o ambiente de

troca”.

Sublinha o Fisco Federal, todavia, que demarcar a tributação de bens virtuais

é a grande dificuldade enfrentada pelas administrações fazendárias, acentuada nos casos

de “download ou execução de programas, músicas e filmes; prestação de consultorias e

treinamentos; e disponibilização de diversões/jogos virtuais”. Isso porque, diante da

desmaterialização do objeto da transação no comércio eletrônico direto, torna-se

bastante complexo não só fiscalizá-lo, mas principalmente definir a natureza jurídica do

negócio celebrado.

3.1.1 O comércio eletrônico direto por meio do download e streaming

O comércio eletrônico direto, com o fornecimento virtual do objeto

transacionado através da Internet, operacionaliza-se basicamente por meio do download,

compreendido como a transferência de dados de um dispositivo remoto para um

dispositivo local, assim graficamente retratado114:

112 EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB; Síntese,

2003, p. 32. 113 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria da Receita Federal. O Brasil e o Comércio Eletrônico.

Brasília, abr. 2001. Disponível em: <http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/estudos-diversos/brasil-e-o-comercio-eletronico>. Acesso em: 12 jul. 2016.

114 WIKIPÉDIA. Download e upload. 2016. Disponível em ˂https://pt.wikipedia.org/wiki/Download_ e_upload˃. Acesso em: 17 ago. 2016.

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Ao realizar o download, as informações são transferidas para o computador

do usuário, mais propriamente “para o disco rígido, que retém as informações gravadas,

ou para outros meios, próprios para o armazenamento temporário, como por exemplo

para a memória RAM ou flash do computador”115. Fazer download, portanto, é

transportar cópia de arquivos de um hardware para outro, ainda que o conteúdo baixado

fique temporariamente armazenado no dispositivo local. Um software licenciado através

de download, por exemplo, implica baixá-lo remotamente, de outro computador para o

computador do usuário, procedendo ou não a sua instalação116.

Com o aumento da capacidade e velocidade da transmissão de dados

(iniciada com o avanço da banda larga), a tecnologia streaming, que nada mais é do que

um download de dados que não são armazenados permanentemente, consolidou-se

como um dos principais meios de fornecer conteúdo multimídia pela internet. Essa

técnica envia os dados de forma comprimida pela rede, disponibilizando-os

imediatamente ao usuário e excluindo-os logo depois de reproduzidos, fazendo com que

o arquivo de multimídia não fique armazenado no computador local. Seu conteúdo é

exibido praticamente em tempo real, cuja qualidade fica, por isso, bastante condicionada

à velocidade da conexão do usuário117.

A respeito dos traços distintivos entre essas modalidades de disponibilização

de conteúdo digital, elucida Ana Carolina Carpinetti:

115 CARPINETTI, Ana Carolina. Tributação pelo ICMS da venda de conteúdo pela Internet por meio

de download. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

116 A necessidade da instalação do software licenciado, a fim de possibilitar a sua utilização, será abordada no item 3.4.2, Parte 1.

117 Cf. definição de streaming media (WHATIS. Multimedia and graphics glossary. Auburndale, MA, US: Tech Target, Apr. 2009. Streaming media. Disponível em: <http://whatis.techtarget.com/ definition/streaming-media>. Acesso em: 13 jul. 2016).

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[…] a principal diferença entre as duas formas de acesso a conteúdos relaciona-se com o fato de que no caso de utilização da tecnologia streaming, os dados multimídia chegam ao computador, fazem buffer (arquivo em memória de curta duração) antes de iniciar a reprodução e, então, são descartados, ou seja, não sendo armazenados no computador do cliente/usuário.118.

Referidas formas de transmissão de dados, asseguradas pela tecnologia da

informação e da comunicação, propiciando a contratação de bens intangíveis por meio

eletrônico, permitiu, nas próprias palavras de Bill Gates, “inovações na maneira pela

qual a propriedade intelectual, tal como a música ou o software, é licenciada. […] Você,

o consumidor não necessitará de CDs, fitas ou qualquer outra espécie de aparato

físico”119.

Dado que um bem digital é armazenado em bits de informação num servidor,

quando uma música, um filme ou um software é fornecido eletronicamente, significa,

segundo o fundador da Microsoft, que o usuário adquiriu o direito de acessar o conteúdo

digital, vale dizer, os bits armazenados num dispositivo de informação qualquer. Eis

aqui o retrato certeiro dos dias de hoje, apontado por Rifkin como a Era do Acesso, em

que mercados tradicionais estão sucumbindo às redes, onde tudo é acessado120.

3.2 Contexto atual do avanço tecnológico em matéria de software: dinamismo na

economia e inovação em produtos e serviços

Quando versamos a respeito do que se entende pelo termo “tecnologia”, seu

conceito foi balizado como um “conjunto de conhecimentos” de utilidade prática nas

mais variadas esferas do indivíduo, podendo decorrer “tanto da vivência e da experiência

adquiridas nas atividades empresariais, como de processos específicos de pesquisa e

118 CARPINETTI, Ana Carolina. Tributação pelo ICMS da venda de conteúdo pela Internet por meio

de download. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

119 Apud GONÇALVES, Renato Lacerda de Lima. A Tributação do Software no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 53.

120 Vide item 1.5, Parte 1.

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desenvolvimento empreendidos para obtenção de um determinado resultado

tecnológico”121.

A partir da definição contida no art. 17, §1º, da Lei nº 11.196/2005,

denomina-se inovação tecnológica a concepção de novos produtos/serviços ou

processos de produção, bem como a agregação de novas funcionalidades ou

características a produtos/serviços ou processos existentes que impliquem melhorias e

efetivo ganho de qualidade ou produtividade, conferindo-lhes maior competitividade no

mercado.

O progresso tecnológico é altamente dinâmico, sofrendo incessantes

incrementos, aperfeiçoamentos e adaptações pelas partes envolvidas: criadores,

fornecedores e usuários da tecnologia. Em matéria de software, impulsionam o seu

processo contínuo de inovação a elevada heterogeneidade na organização das atividades,

com a predominância de empresas de médio e pequeno porte atuando no

desenvolvimento de programas de computador, bem como a informalidade decorrente

da ação intensa de agentes inovadores, mediante a rica colaboração dos próprios

usuários de softwares introduzindo fluxo de novas ideias e funcionalidades, ou seja,

contribuindo para uma nova proposição de valor.

Como visto no capítulo inicial ao delinearmos acerca da história da

computação, verificamos que, no processo de desenvolvimento tecnológico dos recursos

da Informática, o hardware, num primeiro momento, detinha maior importância aos

olhos da sociedade, exercendo o software papel secundário no manuseio do computador.

Gradualmente, os programas de computador foram ganhando relevância, com a

percepção de que, enquanto “cérebros da máquina”, tornam-se indispensáveis para que

o hardware funcione.

A crescente importância dos programas de computador no sistema

computacional reflete na sua própria evolução mercadológica. Inicialmente, os

programas, pré-instalados no hardware, consistiam em parte integrante da máquina que

121 VIEGAS, Juliana L. B. Contratos de fornecimento de tecnologia e de prestação de serviços de

assistência técnica e serviços técnicos. In: SANTOS, Manoel J. Pereira dos; JABUR, Wilson Pinheiro (Coords.). Propriedade intelectual: contratos de propriedade industrial e novas tecnologias. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 145-197 (Série GVlaw).

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era objeto de comércio. Hardware e software eram vistos como elementos

indissociáveis, formando um produto único (uma mercadoria).

As empresas de software, cientes de que os programas eram os responsáveis

por conferir as utilidades e as comodidades almejadas pelos usuários do computador e

detectando um fértil e lucrativo mercado de usuários e consumidores, passaram a

também comercializá-los separadamente por meio de outros suportes físicos, como

disquetes e CDs. Paralelamente à massificação na comercialização dos programas de

computador, desenvolveram também softwares personalizados, elaborados

exclusivamente para atender demandas específicas de usuários, ou ainda, softwares

customizados que, embora prontos, são modificados para se adaptarem às necessidades

do cliente.

Por combinar agilidade e inovação, decorrências diretas da criatividade

inerente ao campo da programação, a todo o momento são lançados no mercado

programas com novas utilidades ou incrementam-se os existentes na resolução de

problemas, atribuindo-lhes maior precisão e rapidez na execução das tarefas. Consolida-

se então a atividade de programação autonomizada da estruturação do próprio

equipamento informático, com o surgimento de empresas exclusivamente voltadas para

o desenvolvimento de software.

Com os avanços tecnológicos no campo da informática, aliados à difusão e

aprimoramento da rede mundial de computadores, foi possível a disponibilização

eletrônica de programas de computador, facilitando transações nacionais e

transfronteiriças. O desenvolvimento progressivo da infraestrutura e dos meios técnicos,

com o incremento da capacidade e da velocidade da comunicação, ampliaram

extraordinariamente o domínio da interatividade. Mas não é só. O processamento de

dados por meio do Cloud Computing (computação em nuvem) propiciou a “utilização

virtual de memória de armazenamento e área de cálculo em servidores compartilhados

e interligados na Internet” 122. Tudo isso favoreceu a migração do mundo físico para o

universo virtual, em que softwares podem ser acessados remotamente através da rede,

provendo a disponibilização de conteúdos digitais associados a uma gama de utilidades.

122 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina,

práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 23.

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No âmbito empresarial, as inúmeras inovações habilitadas pelas tecnologias

de informação e de comunicação, com o uso de ferramentas digitais cada vez mais

aprimoradas, causaram mudanças organizacionais, novos processos de conhecimento e

de relacionamento com parceiros e clientes. Os programas de computador, expoentes

máximos desse cenário tecnológico, estruturam o cotidiano das empresas interna e

externamente: gerenciam e controlam a estrutura administrativa e toda a cadeia

produtiva da companhia, integrando os departamentos nela existentes, desde o controle

das finanças até o planejamento de produção e vendas.

Sobre essa relação direta entre Tecnologia de Informação e Comunicação

(TIC) e inovação no campo corporativo, explicita Alessandro de Orlando Maia que:

[…] o principal impacto do uso de TIC nas organizações não reside propriamente na solução de gargalos ou na aceleração dos processos preexistentes, mas, sim, em inovações organizacionais mais radicais envolvendo a participação de novos agentes, ferramentas digitais, arranjos organizacionais, modelos de negócios e práticas gerenciais, que podem ser combinadas para gerar novos processos, bens e serviços.123

Nessa senda, as empresas de software colaboram significativamente para

elevar a capacidade de inovação no campo econômico, até porque, como elucidado no

capítulo anterior, o software assume notável caráter utilitário e funcional, transmitindo

comandos ao computador para a execução de tarefas, e essa sua qualidade técnica de

aplicar soluções a problemas o tem transformado em um ente comercial e

economicamente, cada vez mais, valioso. Sem sombra de dúvida, o emprego desse

recurso informático cria condições para o aprimoramento ou até revolução do setor

produtivo de uma determinada empresa, disponibilizando ferramentas digitais que

auxiliam nas atividades de gestão, desenvolvimento e criação de serviços e produtos.

Essa perene transição propicia inéditas experiências ao mercado consumidor,

necessariamente acarretando consequências econômicas, sociais e jurídicas.

Especificamente na seara fiscal, todas essas mudanças no mercado de software

impactaram fortemente nos limites para o exercício da competência tributária pelos

123 MAIA, Alessandro de Orlando; TIGRE, Paulo Bastos. Proposta de investigação sobre o uso de

software no suporte à inovação em serviços. Revista de Administração de Empresas – RAE/FGV-EAESP, São Paulo, v. 55, n. 5, p. 578-592, set./out. 2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/ 10.1590/S0034-759020150509>. Acesso em: 17 maio 2016.

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entes políticos para exigir os tributos incidentes sobre os negócios envolvendo

programas de computadores. A distinção tradicional, inclusive adotada pelo Supremo

Tribunal Federal, entre software de prateleira, software personalizado e software

customizado não atende plenamente as novas modalidades de negócio, vez que não

remete às transações realizadas exclusivamente em ambiente virtual. E é justamente

nesse espaço digital que são oferecidos os softwares modernos, nos mais variados

formatos e utilidades, cuja exploração econômica atinge uma quantidade

incomensurável de pessoas físicas e jurídicas, interessadas em automatizar as mais

variadas tarefas e ter acesso a todo tipo de informação e conteúdo.

Dessa conjuntura advém a grande celeuma em definir a natureza jurídica dos

atos negociais praticados e os reflexos tributários relativamente à disponibilização

virtual e onerosa de software, a qual, apoiada nas tecnologias de processamento de dados

e comunicacional, prescinde do meio físico para a realização do negócio jurídico.

3.3 Contratos de software

A discussão na doutrina e na jurisprudência em torno da competência para

tributar transações com programas de computador deriva, como prenunciado, da

complexidade em definir a natureza jurídica da exploração econômica do software: se

denota operação de circulação de mercadoria, prestação de serviços ou atividade distinta

das duas primeiras.

Definir a essência jurídica do fato econômico e sua tributação impõe

delimitar os contornos dos negócios celebrados para a disponibilização eletrônica do

programa de computador enquanto obra intelectual, suscetível de ser protegida pelo

direito autoral.

Tomando como ponto de partida o arquétipo legal enunciado na Lei de

Software (Lei nº 9.609/98) e na Lei de Direito Autoral (Lei nº 9.610/98), esta aplicada

subsidiariamente aos programas de computador124, passa-se nos itens subsequentes a

tratar das modalidades contratuais para a exploração econômica desse bem intangível.

124 Cf. art. 7º, inciso VII, Lei nº 9.610/98 e art. 2º, caput, Lei nº 9.609/98.

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Nesse desiderato, quadra sempre ter em mente o surgimento perene de novas

formas de empreender, consequência direta da evolução dos meios informáticos e

comunicacionais, a liberdade de estipulação na esfera privada, bem como as

recomendações de Carlos Alberto Bittar no sentido de que “não importa o nomen iuris

do contrato, mas sim o seu conteúdo, buscando-se a intenção das partes no

equacionamento de questões que surjam, respeitadas sempre as normas de ordem

pública da lei”125.

3.3.1 Contratos de desenvolvimento de software

O contrato de desenvolvimento de software, também designado de contrato

de encomenda (tailor made software) ou contrato de desenvolvimento de sistemas,

objetiva a elaboração de um sistema sob medida, segundo as especificações do

interessado. Entenda-se por sistema “um conjunto de programas, ou de módulos de

programas, ou de subsistemas, que precisa ser desenvolvido por completo ou apenas

parcialmente – por existirem programas, ou rotinas, ou módulos já desenvolvidos”126.

Assim, o sistema, objeto do contrato de desenvolvimento de software, pode ser

concebido, em termos de programação, desde as primícias ou executado com base em

softwares pré-compostos.

Em virtude da complexidade dessa atividade, o contrato de desenvolvimento

pode combinar a encomenda de sistemas com o fornecimento de módulos de programas

já prontos ou, ainda, incluir o fornecimento de equipamentos, conjugando um pacote

“software-hardware”. Daí porque adverte Tarcísio Queiroz Cerqueira que, além da

celebração do contrato de prestação de serviços de desenvolvimento de sistemas, “o

fornecimento dos programas prontos pode se dar por contratos de licenciamento de uso,

em separado, e o fornecimento dos equipamentos, quando for o caso, por contratos de

locação, por exemplo”127.

125 BITTAR, Carlos Alberto. Os Contratos de Comercialização de Software. In: ______ (Coord.). Novos

Contratos Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. 126 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina,

práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 67. 127 Ibid., loc. cit.

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O programa de computador, quando desenvolvido por encomenda, aplicar-

se-á ou para uso próprio do contratante ou para fins de comercialização a terceiros. No

primeiro caso, o software é desenvolvido para uso pontual e pessoal do solicitante,

enquanto destinatário final; no segundo, o programa é elaborado para integrar um ciclo

produtivo, pois o contratante, dotado de finalidades comerciais, irá destiná-lo ao

mercado consumidor.

O art. 4º128 da Lei nº 9.609/98 aponta as relações estatutária, de emprego e de

prestação de serviços profissionais como os laços contratuais que permeiam a realização

dessa atividade introdutiva do ciclo produtivo do software, interessando-nos, para o

presente intento científico, o terceiro vínculo – contrato de prestação de serviços sem

subordinação ou elo estatutário –, tendo em vista a definição de serviço tributável pelo

ISS, mais à frente objeto de nossos estudos.

De acordo com o disposto, mutatis mutandis, no parágrafo 2º do citado art.

4º129, pertencerá com exclusividade ao contratante os direitos concernentes ao programa

de computador gerado. Nada impede, todavia, que fique estipulado que o sistema

pertença ao desenvolvedor ou até a ambos, em propriedade condominial.

Dado que a propriedade intelectual do software por encomenda, via de regra,

nasce sob a titularidade do encomendante, o contrato de desenvolvimento acaba por

figurar como “umas das formas previstas em Lei pela qual se adquire originariamente a

propriedade de direitos autorais sobre programas de computador”130. Disto resulta o

equívoco de se inserir cláusulas de cessão dos direitos da propriedade intelectual nessa

espécie de contrato, cuja falta de tecnicidade poderá implicar consequências jurídicas

128 “Art. 4º Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de

serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos.”

129 “§ 2º Pertencerão, com exclusividade, ao empregado, contratado de serviço ou servidor os direitos concernentes a programa de computador gerado sem relação com o contrato de trabalho, prestação de serviços ou vínculo estatutário, e sem a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, da empresa ou entidade com a qual o empregador mantenha contrato de prestação de serviços ou assemelhados, do contratante de serviços ou órgão público.”

130 AMAD, Emir. Contrato de desenvolvimento de software e suas particularidades. In: JABUR, Gilberto Haddad; PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge (Coords.). Direito dos Contratos – II. São Paulo: Quartier Later, 2008, p. 124.

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quanto à titularidade dos direitos morais de reivindicar a paternidade e a integridade do

software, uma vez que poderá ser postulada pelo desenvolvedor, e não pelo contratante,

à luz do previsto nos arts. 27131 e 49, I132, da Lei de Direito Autoral.

Esta regra geral prevista no parágrafo 2º, além de mostrar-se mais

conveniente, pois o solicitante é quem arca com os custos necessários para investir em

pesquisa e desenvolvimento do software, permite também concretizar os propósitos

acima delineados: se o contratante é o proprietário do programa de computador

desenvolvido, poderá então explorá-lo economicamente da maneira que lhe aprouver,

inclusive promover eventuais modificações e reproduções.

3.3.2 Contratos de customização de software

É prática corriqueira na área de gestão empresarial, companhias, empenhadas

em solucionar problemas que lhes são peculiares, recorrerem a desenvolvedores para a

criação de um software exclusivo e específico. Porém, ao negociarem, verificam que o

oferecido no mercado, muitas vezes, refere-se a softwares prontos passíveis de

customização, isto é, programas ofertados por desenvolvedores que podem ser

adaptados às necessidades específicas da parte interessada.

Juridicamente, o contrato de encomenda difere do contrato de customização

sob duas perspectivas. A uma, porque, no primeiro, o programa criado é de titularidade

do contratante (art. 4º, §2º, Lei nº 9.609/98), enquanto que, nos softwares customizados,

contratam-se adaptações e ajustes sobre um programa pronto de propriedade do

desenvolvedor e, por conseguinte, os direitos das modificações por ele procedidas serão

igualmente de sua titularidade. Deste modo, salvo estipulação em contrário, o contratado

que faz a customização de seu software é o detentor dos direitos patrimoniais dessa

aplicação de valor agregado. A duas, porque nos clássicos contratos de

desenvolvimento, temos atividade de prestação de serviços, em que o programa

131 “Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.” 132 “Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou

por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações: I - a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei; […]”.

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elaborado é de titularidade do tomador, ao passo que, nos contratos de customização,

além de o desenvolvedor prestar serviços de adaptação do programa, também licencia o

uso do software customizado em favor do contratante, vez que o contratado é quem

detém os direitos da customização133.

Justamente em razão da segunda dissemelhança jurídica, vem a calhar, nesse

instante, uma breve digressão para expor sobre os contratos de depósitos em garantia,

também designados de escrow agreements. Tendente a ser pactuado no

desenvolvimento de softwares customizados, o depósito em garantia consubstancia um

acordo firmado entre licenciador, licenciado e depositário, por meio do qual protege-se

o código fonte e a documentação correlata (material de apoio e descrição do programa),

os quais serão mantidos em sigilo por depositário independente, cuja quebra apenas

ocorrerá, em favor do licenciado, nas situações combinadas entre as partes.

A despeito de prescindível nos contratos típicos de desenvolvimento de

software, vez que ao contratante, titular do programa criado, é fornecido o código fonte,

o depósito torna-se indispensável nas contratações de customizações de programas,

assegurando ao contratante, mediante o acesso ao conteúdo do programa, a continuidade

do uso do objeto contratado caso a empresa desenvolvedora deixe de realizar

adequadamente o suporte técnico e a manutenção do software customizado, ou acabe

por ficar impedida de dar sequência à utilização do programa pelo licenciado diante, por

exemplo, de falência ou encerramento das suas atividades ou de quaisquer outros

acontecimentos de força maior e caso fortuito .

O depósito de software tem por escopo proteger os direitos de propriedade intelectual do licenciador, bem como os direitos do licenciado de utilizar um suporte alternativo ao programa, no caso de o licenciador não cumprir os termos de licença de uso. Assim, o depositário, ao revelar o código fonte, possibilita o acesso às informações de processos críticos para a continuação das operações do licenciado, sob circunstâncias previamente acordadas, ao passo que protege a propriedade exclusiva do licenciador, desde que este cumpra as condições da licença.134

133 Por envolverem relações jurídicas distintas e autônomas, é preciso discriminar as contraprestações

relativas à customização e à licença para fins tributários, conforme será estudado na parte final deste trabalho.

134 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003, p. 95.

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Desvendadas as especificidades dos contratos de desenvolvimento e

customização de software e antes de adentrarmos nas características singulares dos

contratos de licença, que assumem maior relevância em matéria de software, cumpre

distinguir, com clareza, os institutos da cessão e da licença, terminologias adotadas pelo

legislador nas Leis nºs 9.609/98 e 9.610/98.

3.3.3 Cessão de software versus licença de software

O titular da obra intelectual, detentor dos direitos autorais, nos quais se

incluem as faculdades patrimoniais de usar, gozar e dispor do bem incorpóreo, pode

explorá-lo economicamente, desde que observadas as normas fundamentais do direito

contratual e, em especial, as prescrições contidas nas leis supramencionadas.

A Lei Brasileira dos Direitos do Autor, no seu art. 49135 e seguintes, versa

sobre a cessão dos direitos autorais, a qual desdobra-se (i) na cessão total, traduzida na

transmissão da totalidade dos direitos patrimoniais do autor; e (ii) na cessão parcial,

correspondente à transmissão de parte desses direitos. “Com esse contrato, o autor ou

titular despe-se de seus direitos, parcial ou integralmente, ficando o cessionário com

parte ou plenitude dos de cunho patrimonial”136, o qual passa a explorá-los livremente

nos termos ajustados no negócio jurídico celebrado entre as partes.

135 “Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou

por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:

I - a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei;

II - somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita;

III - na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo será de cinco anos; IV - a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação em

contrário; V - a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato; VI - não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado

restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato.”

136 BITTAR, Carlos Alberto. Os Contratos de Comercialização de Software. In: ______ (Coord.). Novos Contratos Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 43.

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Já a Lei de Software, nos arts. 9º, 10º e 11, trata expressamente da modalidade

de licença de programas de computador, através da qual “alguém, denominado

licenciante, concede a outrem, denominado licenciado, o direito de exploração

econômica e/ou utilização do programa de computador”137.

A cessão e a licença são figuras contratuais que não se confundem: na

primeira, tem-se a transferência, sempre em caráter exclusivo e não temporário, de

parcela ou de todos os direitos patrimoniais do autor em favor do cessionário; na

segunda, é conferida uma autorização para que o licenciado utilize ou explore o bem

imaterial. Desta feita, quando se realiza uma cessão de software, os direitos patrimoniais

sobre o programa de computador, especificados no contrato, são transmitidos exclusiva

e definitivamente ao cessionário138.

Esclarece Eduardo Vieira Manso que, nos contratos de cessão total, “se opera

a substituição subjetiva do titular de tais direitos” 139, transmitindo-se a outrem a

propriedade do bem incorpóreo e, por conseguinte, todos os direitos patrimoniais que

lhe são subjacentes, inclusive com a transferência do código fonte, possibilitando ao

novo titular alterar o programa, bem como reproduzi-lo, cedê-lo ou licenciá-lo a

terceiros, não mais intervindo o antigo titular nas relações contratuais a serem firmadas.

Seguindo idêntico raciocínio a respeito do contrato de cessão, discorre Carlos

Alberto Bittar, em clássica obra sob sua coordenação:

O contrato em questão é próprio de negócios em que o titular pretende trespassar a terceiros seus direitos, inclusive o segredo, permitindo-lhes todos os usos possíveis. Corresponde, pois, à alienação do bem envolvido, sob o prisma patrimonial, de modo que o interessado fica livre para as utilizações que couber, quando total a transmissão. Quando

137 SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Licença de Software. Revista da Associação Brasileira de

Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro: ABPI, n. 25, nov./dez. 1996, p. 39. 138 “Frequentemente, confundem-se as expressões ‘cessão parcial’ e ‘licença’ de direitos autorais.

Embora ambas tenham alcance menor e mais delimitado do que a cessão total, a licença realiza uma simples autorização de uso, não gerando transferência de direitos, ou seja, despojamento de direitos patrimoniais sobre a obra intelectual, normalmente em troca de prestação pecuniária” (ASSUNÇÃO, Matheus Carneiro. O ICMS nas transferências eletrônicas de software. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 11, n. 93, fev./maio 2009, p. 22).

139 MANSO, Eduardo Vieira. Contratos de Direito Autoral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 22.

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parcial, prevalece a mesma orientação, naturalmente restrita aos direitos e aos termos em que se concluir o negócio140.

A cessão total serve, frequentemente, como modelo contratual entre

negócios firmados entre indústrias de máquinas em geral (eletrodomésticos, por

exemplo) e empresas que fazem aplicativos para serem tão somente acoplados numa

máquina específica. Nessas hipóteses, os criadores de software não obtêm quaisquer

vantagens em permanecer com o controle patrimonial de um programa exclusivamente

adaptável a um determinado dispositivo eletrônico, permitindo ao fabricante do

hardware (com software residente ou firmware) comercializar suas máquinas

livremente, enquanto verdadeiras mercadorias.

Na licença, por sua vez, o proprietário do software concede autorização para

a exploração econômica e/ou a utilização do bem imaterial, inexistindo transferência,

em favor do licenciado, da titularidade de quaisquer dos direitos patrimoniais, que

permanecem sob a propriedade do licenciador, o qual, inclusive, pode licenciar o uso a

outros interessados. A diferença entre esses ajustes privados, portanto, se esteia na

transferência da titularidade dos direitos patrimoniais da obra intelectual.

Demarcados, sinteticamente, os traços distintos entre a cessão e a licença de

software, passa-se agora a destrinçar os contratos de licença celebrados na exploração

econômica dos programas de computador.

3.3.4 Contratos de licença de software

Salvo as exceções previstas no art. 6º141 da Lei nº 9.609/98, toda e qualquer

reprodução, comercialização, alteração etc. do programa de computador dependem da

140 BITTAR, Carlos Alberto. Os Contratos de Comercialização de Software. In: ______ (Coord.). Novos

Contratos Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 43-44. 141 “Art. 6º Não constituem ofensa aos direitos do titular de programa de computador: I - a reprodução, em um só exemplar, de cópia legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia

de salvaguarda ou armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de salvaguarda;

II - a citação parcial do programa, para fins didáticos, desde que identificados o programa e o titular dos direitos respectivos;

III - a ocorrência de semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos normativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão;

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expressa autorização do seu respectivo titular. Por isso mesmo que as licenças de

software, que permitem a permanência da propriedade dos direitos patrimoniais com o

titular e, por conseguinte, do aproveitamento econômico dos frutos correlatos, simboliza

a fórmula fundante e principal nas transações envolvendo esse bem informático.

Na prática dos negócios com software existem três categorias básicas de

contratos de licença: (i) licença para comercialização de software; (ii) licença para

desenvolvimento de software e sistemas; e (iii) licença de uso de software.

Iniciemos nossa análise com a primeira espécie contratual mencionada.

3.3.4.1 Contratos de licença para comercialização de software

Em conformidade com os ensinamentos de Manoel J. Pereira dos Santos, a

finalidade do contrato de licença de direitos para comercialização de software, previsto

no art. 10142 da Lei nº 9.609/98, consiste, basicamente, na outorga pelo titular a terceiros

de uma parte do direito de exploração econômica, caracterizada na faculdade de

conceder licenças de uso do programa para usuários finais. Por meio desta licença, o

licenciado, muitas vezes qualificado como “distribuidor”, fica autorizado a “(i)

reproduzir o programa, (ii) sublicenciar terceiros para comercializar o programa e (iii)

conceder licenças de uso”143, configurando uma espécie de segunda licença de uso.

IV - a integração de um programa, mantendo-se suas características essenciais, a um sistema

aplicativo ou operacional, tecnicamente indispensável às necessidades do usuário, desde que para o uso exclusivo de quem a promoveu.”

142 “Art. 10. Os atos e contratos de licença de direitos de comercialização referentes a programas de computador de origem externa deverão fixar, quanto aos tributos e encargos exigíveis, a responsabilidade pelos respectivos pagamentos e estabelecerão a remuneração do titular dos direitos de programa de computador residente ou domiciliado no exterior.

§ 1º Serão nulas as cláusulas que: I - limitem a produção, a distribuição ou a comercialização, em violação às disposições normativas

em vigor; II - eximam qualquer dos contratantes das responsabilidades por eventuais ações de terceiros,

decorrentes de vícios, defeitos ou violação de direitos de autor. § 2º O remetente do correspondente valor em moeda estrangeira, em pagamento da remuneração de

que se trata, conservará em seu poder, pelo prazo de cinco anos, todos os documentos necessários à comprovação da licitude das remessas e da sua conformidade ao caput deste artigo.”

143 SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Licença de Software. Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro: ABPI, n. 25, nov./dez. 1996, p. 44.

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Corriqueiramente denominada de contratos de distribuição de programas, ou

de forma imprópria de contratos de “revenda” de programas, a licença de direitos de

comercialização assume, na maioria das vezes, as seguintes características: o

fornecedor, para manter a proteção da propriedade, obriga o distribuidor ou

“revendedor” a empregar certos padrões de condições de licença de uso; o fornecedor é

quem dá a garantia ao usuário final e determina a política de preços, descontos etc.; o

fornecedor é quem presta os serviços de manutenção e suporte ou treina distribuidores

para fornecer o que se chama de suporte de primeiro nível, ou seja, o atendimento

imediato para resolver problemas que não requeiram acesso ao código-fonte; e o

distribuidor recebe treinamento para a comercialização do produto144.

Muitas vezes, esses contratos são necessários para que o programa seja

ofertado em um canal de contato mais próximo ao potencial usuário do software,

possibilitando a obtenção, ainda que indireta, da licença de uso do programa.

Quanto ao escopo da licença para comercialização, a autorização pode ser

também “de valor agregado” (igualmente denominada de Value-Added Reseller –

VAR145), em que uma determinada companhia agrega valor a um produto existente para

então comercializá-lo, normalmente destinando esse “novo produto” a usuários finais.

Assim, através dessa forma de licença para comercialização de software, a empresa

licenciada acrescenta, de alguma forma, um diferencial ao programa de computador

além do que seria oferecido pelo titular do programa146.

A licença do tipo VAR, em que produtos são oferecidos com conteúdo

tecnológico agregado, corresponde à prática negocial que promove maiores vantagens

concorrenciais às empresas e bastante frequente na indústria de hardwares, em que, por

exemplo, sistemas operacionais são instalados em dispositivos eletrônicos do tipo PCs

e smartphones, adicionando-se valores sobre o custo dos softwares licenciados. Nessas

situações, também é comum determinar, no contrato de licença para comercialização,

que o licenciado adquira do desenvolvedor do programa uma “cota mínima” de

144 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina,

práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 63. 145 Revenda com Valor Agregado. 146 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003,

p. 53.

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autorizações para conceder licenças de uso: as aquisições antecipadas “são

transformadas em metas de licenciamento junto aos usuários, as quais servirão para

avaliação do desempenho do distribuidor na sua respectiva área ou região”147.

3.3.4.2 Contratos de licença para desenvolvimento de software

A licença para desenvolvimento de software visa a conceder licenças para

“desenvolver modificações tecnológicas e derivações do programa original”148. O titular

do programa autoriza o licenciado a proceder alterações no software original, numa

espécie de customização ou upgrade, agregando-lhe funcionalidades, e/ou a realizar

derivações no software original, criando-se um novo programa de computador, distinto

do originário e, por isso, sujeito a uma nova forma de aproveitamento econômico. As

modificações, se consideráveis e substanciais, alterando profundamente o software,

podem resultar numa autêntica obra derivada.

Em linguagem leiga, podemos dizer que enquanto na customização tem-se

“dois pacotes” – o software original e a customização nele aplicada – passíveis de serem,

autonomamente, objetos de licenças, na derivação identifica-se “um pacote só” – o

software derivado - a ser licenciado.

Na primeira situação, a customização consubstancia uma maneira de agregar

valor a um software existente, que per si tem utilidade própria, acrescentando-lhe uma

aplicação específica para melhor atender a classe de usuários do software original.

Grandes suítes de softwares conhecidas no mercado como o Microsoft Office e o Adobe

CC oferecem a possibilidade para que os seus usuários mais avançados consigam

customizar o software, expandindo as barreiras originais e atendendo demandas

específicas de seu uso. Essa customização normalmente se dá através do

desenvolvimento dos chamados add-ins ou add-ons, que fazem uso de livrarias de

funções disponibilizadas pelo próprio desenvolvedor do software para facilitar a

integração de outras soluções no software original.

147 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003,

p. 58. 148 SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Licença de Software. Revista da Associação Brasileira de

Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro: ABPI, n. 25, nov./dez. 1996, p. 39.

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No caso da suite Adode CC, por exemplo, a empresa até dedica um espaço

para que os desenvolvedores de add-ons possam publicar e expor suas criações,

facilitando que outros usuários a encontrem mais facilmente e, caso sejam soluções

pagas, já efetuem a licença diretamente pela ferramenta, tornando assim o seu software

numa verdadeira plataforma para que outros desenvolvedores possam explorar149.

Já na segunda situação, a derivação resulta na integração do software

licenciado a um novo sistema. Para se aperfeiçoar uma derivação relevante, com o

surgimento concreto de um “novo pacote de sistemas”, o licenciado tem que ter acesso

ao código fonte ou, no mínimo, a uma livraria de funções em código objeto, o que é

prescindível na customização, a qual pode ser praticada, inclusive, sem acesso e

alteração do código fonte do software original, bastando que o titular do software

original disponibilize uma interface para a modificação tecnológica150.

Na derivação, arrisca-se dizer que o software original, licenciado de forma

perpétua e com acesso ao código fonte, serviria como uma espécie de “insumo” para o

software derivado, haja vista ser desnecessário e, muitas vezes, contraproducente para a

realidade empresarial desenvolver desde o início programas cuja parte da codificação a

ser empregada já se encontra elaborada. Existem softwares, aliás, voltados estritamente

para o desenvolvimento de programas de computador derivados, em que o programador

parte de pedaços de software para criar um novo programa.

Por exemplo, muitas empresas baseiam seu software em um projeto de

código aberto para então criar um software derivado para comercialização. Tal projeto

permite-lhes envolver qualquer um disposto a ajudar na criação de um software de forma

espontânea. O caso do famoso navegador Google Chrome surgiu na verdade de uma

iniciativa de código aberto, chamada The Chromium Project, promovida pela própria

Google. A partir do Chromium, a Google criou uma derivação que chamou de Chrome,

e a distribuiu como o seu navegador de Internet. Isso significa que muitas pessoas

149 ADOBE. Adobe Add-ons. San José, CA, US, 2006. Disponível em:

˂https://creative.adobe.com/addons˃. Acesso em: 25 ago. 2016. 150 Meras adições ao programa de computador, sem qualquer alteração ao código fonte do software

original, também são denominadas de “extensões”. Nessa linha classificatória divide-se, assim, a classe “modificações” em “customizações” e “extensões” (cf. BELLINTANI JÚNIOR, Hélio Alberto. Contrato de licenciamento de uso dos programas de computador destinados à gestão empresarial. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003, p. 90-91).

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ajudaram a formar o que o Google Chrome é hoje em dia através de contribuições ao

código aberto do projeto Chromium, e também implica que qualquer um pode acessar o

projeto Chromium e derivar o seu próprio navegador (que, aliás, terá muito em comum

com o próprio Chrome).

A Lei nº 9.609/98, em seu art. 5º151, prevê que os direitos sobre as derivações

autorizadas pelo titular dos direitos de programa de computador, inclusive os frutos de

sua exploração econômica, pertencerão à pessoa autorizada que as fizer, salvo

estipulação contratual em contrário. Nesse tipo de contrato de licença para

desenvolvimento de software, opera-se, assim, “a autorização, pelo titular do direito,

para que alguém desenvolva derivações do programa original e, em seguida, o

licenciamento de uso dessas derivações”152.

Em conclusão, conforme os esclarecimentos sumulares e precisos de Manoel

J. Pereira dos Santos153, o resultado do contrato de licença para desenvolvimento de

software pode compreender, dessarte, tanto (i) a realização de melhoramentos e

aperfeiçoamentos do software original, “caso em que os direitos sobre essas

modificações pertencerão ao licenciado, que os exercerá isoladamente”, quanto (ii) a

elaboração de obra derivada, isto é, de “uma criação autônoma, caso em que o licenciado

adquire direitos distintos sobre a obra derivada”.

3.3.4.3 Contratos de licença de uso de software: a forma contratual mais comum

na disponibilização eletrônica de programas de computador

Na licença de uso de software concede-se a autorização em favor do usuário

para utilizar o programa sob determinadas condições. O detentor dos direitos

151 “Art. 5º Os direitos sobre as derivações autorizadas pelo titular dos direitos de programa de

computador, inclusive sua exploração econômica, pertencerão à pessoa autorizada que as fizer, salvo estipulação contratual em contrário.”

152 AMAD, Emir. Contrato de desenvolvimento de software e suas particularidades. In: JABUR, Gilberto Haddad; PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge (Coords.). Direito dos Contratos – II. São Paulo: Quartier Later, 2008.

153 SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Licença de Software. Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro: ABPI, n. 25, nov./dez. 1996, p. 44.

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patrimoniais do bem imaterial concede o seu uso, normalmente numa cópia em código-

objeto, estipulando os termos de utilização, o prazo, as restrições de reprodução etc.

Percebe-se logo, em paralelo didático entre as convenções firmadas para bens

incorpóreos e corpóreos e reservadas as peculiaridades entre esses objetos154, que

enquanto a cessão total, previamente explicitada, se aproxima muito mais da compra e

venda na medida em que se opera a transferência definitiva da titularidade dos direitos

patrimoniais, figurando o cessionário como o novo proprietário do bem intangível155, a

licença de uso assemelha-se à locação, permanecendo o licenciante titular dos direitos

patrimoniais sobre o software.

Enunciada no art. 9º156 da Lei nº 9.609/98, a licença de uso constitui a

modalidade mais comum na contratação de softwares, disseminada amplamente a partir

do advento dos microcomputadores, da difusão das redes e da consequente massificação

dos programas, sendo que, acaso inexistente a formalização, o parágrafo primeiro do

dispositivo citado estabelece que o documento fiscal emitido servirá como prova para

instrumentalizar e regularizar a licença de uso do programa.

Aliás, não só na disponibilização eletrônica de programas de computador,

mas também nas hipóteses de software oferecido em embalagem lacrada nas lojas de

departamentos, denominados “softwares de prateleira”, efetua-se a licença de uso do

programa. Não há que falar aqui em operação de compra e venda do programa de

computador, porquanto o usuário não passa a deter os direitos sobre a propriedade

intelectual do software, sendo-lhe vedado dele dispor ou reproduzir cópias sem o

consentimento do titular. Tão somente o domínio do suporte físico, no qual é veiculado

o software para fins de apresentação a terceiros interessados, é transmitido ao

consumidor. Caso contrário, se admitida a transferência da totalidade dos direitos

154 A ressalva tem cabimento, porquanto, ainda que a comparação quadra para efeito didático, quando

se fala em licenciamento de uso software é possível licenciar várias cópias, com utilização simultânea por vários licenciados, fato impraticável na locação de bens corpóreos.

155 Cf. NETTO, João Carlos Costa. Direito Autoral no Brasil. São Paulo: FDT, 2008, p. 59. 156 “Art. 9º. O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença. Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caput deste artigo, o

documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso.”

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patrimoniais nesses casos, estaria impedido o proprietário de realizar outros negócios

jurídicos tendo como objeto o software de prateleira transacionado157.

A oferta massificada desses softwares veiculados em mídias postas à

disposição em estabelecimentos físicos (CDs, disquetes etc.), destinados a uma

pluralidade de usuários, é efetuada mediante termo de adesão de licença de uso, em que

o usuário aceita as condições pré-fixadas pelo ofertante sem a possibilidade de discuti-

las. Registrado no interior de uma embalagem selada, esse contrato de adesão é

denominado de shrink-wrap agreement, cuja expressão, traduzida livremente, quer dizer

“contrato encolhido e embalado”. A contratação aperfeiçoa-se sem a assinatura do

aderente, constando no termo de adesão o aviso de que o rompimento da embalagem

envolvendo o programa implica automaticamente o consentimento com as disposições

de seu uso. Esse ato de aceitação dos termos, apto a vincular a parte usuária ao contrato,

foi designado de tear me open (“rasgue-me para abrir”)158.

Diante dos avanços tecnológicos no processamento de dados e nos meios

comunicacionais, sabe-se que o licenciamento de software em suporte físico move-se

depressa para o esvaecimento no mercado informático, onde os termos e condições da

licença impressos no pacote vêm perdendo lugar para os contratos eletrônicos.

Atualmente, a grande maioria dos softwares produzidos em larga escala, ou mesmo

encomendados ou customizados para atender as necessidades de usuários específicos,

têm seu uso licenciado através da transmissão de dados pela Internet.

Nas hipóteses de software padronizados, fornecidos indistintamente aos

usuários pela Internet, os termos de adesão da licença de uso são gerados e visualizados

quando o usuário opta por fazer a instalação do software no hardware ou ter acesso ao

programa processado remotamente, concordando assim com as condições estipuladas.

Trata-se da contratação denominada click-wrap agreement (ou clickthrough

157 IWASE, Raquel Harumi. Aspectos controvertidos da tributação do uso de software. 2013.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 46.

158 Há uma grande discussão sobre a validade e a eficácia das licenças do tipo shrink-wrap, combinada com a técnica do tear me open, mormente quanto ao momento do consentimento da parte e da sua vinculação às cláusulas do contrato. Contudo, abstém-se aqui de aprofundar a questão, sem debater sobre a caracterização legítima de um acordo de vontades formalmente concluído, por não corresponder ao objeto específico do presente estudo.

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agreement), em que durante o processo de instalação, o usuário clica no botão “ok” ou

“eu concordo/aceito” numa caixa de diálogo ou janela pop-up.

Nessa sistemática de registro on-line, caso rejeitadas as cláusulas para a

utilização do programa, basta clicar em cancelar ou fechar a janela e, com isso, a

instalação do software simplesmente não será finalizada ou ficará vedado o acesso

remoto ao programa. Formalizada, porém, a licença, exige-se a criação de uma conta de

usuário ou a digitação de uma chave de acesso, com o escopo de identificar o licenciado

e, com isso, liberar o uso do software.

É certo que os contratos de licença de uso de software negociados, com a

estipulação bilateral de cláusulas, continuam a ser celebrados, principalmente na

contratação dos softwares personalizados e customizados entre grandes empresas e

corporações. Todavia, a modalidade contratual por adesão shrink-wrap e,

principalmente, a click-wrap, a qual está profundamente inserida no estágio atual da

sociedade da informação, permitiram às empresas de software realizar negócios de

forma massificada, atingindo um sem-número de usuários em nível global.

Vale insistir que o programa licenciado continua na propriedade intelectual

do titular dos direitos patrimoniais, de tal sorte que o usuário há de usufruir do software

adstrito às condições estabelecidas para o uso do programa licenciado. Tais condições

são extremamente variáveis, a depender das especificidades do contrato.

A licença pode levar em conta o número de instalações por terminal de

hardware, o número de usuários com acesso simultâneo independentemente do

dispositivo em que o programa é acessado ou o número de cópias, observado o direito

ao back up assegurado pelo art. 6º, I, da Lei nº 6.609/98. Pode igualmente alternar-se

em função dos conteúdos disponibilizados e versões contratadas. O conjunto dessas

variáveis, aliás, corroboram que, na mera licença de uso, o objeto da relação é a

autorização, é a outorga do direito para utilizar o software, tudo em concordância com

as permissões acordadas perante o titular dos direitos.

Na licença de direitos de uso pode também estar incluso serviços técnicos

remunerados de manutenção para o uso e funcionamento adequados do programa;

serviços de adaptações e atualizações; a possibilidade de realizar modificações no

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software para uso próprio; e, ainda, a licença pode ocorrer por período limitado

(temporária) ou ilimitado (perpétua).

[…] a perpetuidade não representa um momento ad infinitum. Não é sinônimo de vida útil do programa ou de existência do licenciado (seja este pessoa física ou jurídica). A licença é denominada perpétua porque prevalece enquanto aquele determinado programa estiver sendo protegido pela Lei de Software, ou seja, cinquenta anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao da sua publicação ou, na ausência desta data, da sua criação (art. 2º, §2º). Como esse período e demasiadamente longo em termos de software, este cai em desuso antes que a Lei não mais proteja os direitos de autor159.

Em ambas as situações por último descritas – licença temporária e licença

perpétua –, esclarece Ana Carolina Carpinetti que “os sistemas estão configurados, por

questões de segurança, a não autorizar cópias em CDs, DVDs” etc., o que é

implementado pela tecnologia DRM (Digital Rights Management) que “permite, de

forma segura, a distribuição, promoção e venda de conteúdos de mídia digital pela

Internet”160, restringindo a multiplicação de cópias e, com isso, preservando os direitos

autorais do titular.

No tocante ao tempo de disponibilização do software em favor do usuário,

adianta-se que, com a difusão da infraestrutura baseada na cloud computing, a

contratação eletrônica temporária, renovável periodicamente e cuja remuneração é paga

em períodos de tempo na forma ajustada, tem ganhado força em detrimento das licenças

perpétuas, conforme será exposto a seguir quando dilucidarmos a respeito do modelo de

negócio Software as a Service (SaaS).

Para encerrar essa exposição sobre licenciamento na disponibilização de

software, faz-se oportuno, a título ilustrativo, diferençar software proprietário (property

software), software livre (free software), software gratuito (freeware software) e

software compartilhado (shareware software), uma vez que espelham reinante

nomenclatura adotada pela comunidade técnica e comercial.

159 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003,

p. 65-66. 160 CARPINETTI, Ana Carolina. Tributação pelo ICMS da venda de conteúdo pela Internet por meio

de download. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 28-29.

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O software proprietário compreende licença de programas sem a

possibilidade de os usuários acessarem o seu código fonte e, por conseguinte, ao

licenciado é vedado reproduzi-lo, alterá-lo ou distribuí-lo. Opõe-se ao software livre,

cuja tecnologia é acessada gratuitamente pelo usuário diante da abertura do código fonte

para diferentes formas de aproveitamento, podendo o programa ser livremente

executado, estudado, distribuído ou modificado de acordo com as necessidades do

licenciado161.

O software proprietário poder ser licenciado a título oneroso ou a título

gratuito, caracterizando, nessa segunda hipótese, o freeware. Pode ainda ser fornecido

como shareware, em que o programa é licenciado gratuitamente de forma limitada, por

um determinado período de tempo ou com algumas funções disponíveis, sendo

necessário pagar caso o usuário queira continuar utilizando o programa e/ou ter acesso

ao seu conteúdo funcional completo. O shareware confere ao usuário a oportunidade de

experimentar o software, testando-o antes de ser requisitado o pagamento para

prosseguir com a licença.

Enfim, depois de todo o explicitado, com o exame minucioso das formas

contratuais de licenciamento de programas de computador e a ilustração dos termos

correntes para fazer referência a tipos de softwares licenciados, é possível observar o

amplo espectro dos contratos de licença nas transações com software, figurando como

o instrumento principal para o titular difundir o programa e explorar os respectivos

direitos patrimoniais.

Com efeito, por meio dos contratos de licença, o titular concede sucessivas

autorizações para a exploração econômica e/ou a utilização do bem imaterial numa

cadeia mundialmente extensível, fiscalizando a atividade dos licenciados relativamente

às práticas negociadas. A cada ajuste firmado, seja com distribuidores, intermediários

ou usuários finais, fixa-se uma remuneração em troca do licenciamento de direitos,

facultado ao titular manter sob sigilo a fórmula e o conteúdo do programa.

161 Em conformidade com as 4 (quatro) liberdades elencadas pela Free Software Foundation (FSD) para

caracterizar o software livre: use, study, share e improve (FSDE. Free Software Foundation Europe. Free Software's Four Freedoms. Berlin, Germany, 2015. Disponível em: <https://fsfe.org/ freesoftware/basics/4freedoms.en.html>. Acesso em: 20 jul. 2016).

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Especificamente no tocante às licenças de uso de programas de computador,

reserva-se, a seguir, tópico próprio para abordar a prestação de serviços técnicos de

suporte e manutenção do software que, a depender da complexidade do programa e dos

tipos de serviços demandados pelo licenciado, pode consubstanciar atividade autônoma,

remunerada à parte, para além da contraprestação fixada pela licença contratada.

3.3.4.3.1 Prestação de serviços técnicos de suporte e manutenção no

licenciamento de uso de software

Em virtude do previsto no art. 8º da Lei nº 9.609/98, inclusive com base nas

disposições do Código de Defesa do Consumidor, o licenciador do software fica

obrigado a prover aos respectivos usuários a prestação de serviços técnicos relativos ao

adequado funcionamento e uso do programa.

Referidos serviços técnicos podem compreender: (i) serviços de suporte sem

custo adicional, prestados durante o prazo de validade técnica da versão contratada, ora

relacionados à garantia do software para reparos de eventuais erros e defeitos gerados

na concepção do programa, ora concernentes à orientação básica sobre o seu uso e

funcionamento conforme manuais e especificações; bem como (ii) serviços técnicos

complementares, passíveis de remuneração162, denominados usualmente de serviços de

manutenção.

Os serviços de manutenção, prestados através de e-mails, telefonemas,

acesso remoto ou até de visita de técnicos especializados, podem envolver uma gama de

atividades, tais como serviços de treinamento e consultoria; serviços de recuperação de

arquivos e de correções decorrentes do uso indevido do programa, de defeitos do próprio

equipamento e do sistema operacional ou de falhas elétricas; serviços de migração e

conversão de dados para outros equipamentos; e serviços destinados a atualizar o

162 “Não há, no entanto, nada que impeça a cobrança de remuneração pelos serviços técnicos

complementares ou de manutenção do programa, durante ou após o prazo de validade técnica, a critério do fornecedor dos serviços, em comum acordo com o usuário, já que a lei não diz que tais serviços devam ser sem ônus” (CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina, práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 41).

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programa relativamente às variáveis operadas pelo programa – como índices

financeiros, valores monetários e informações fiscais.

A propósito, as tratativas envolvendo estes últimos serviços, caracterizados

como uma espécie de manutenção evolutiva do software, tornaram-se bastante

relevantes e indispensáveis para a utilização do programa pelo licenciado, tendo em vista

“o advento dos sítios de Internet, os quais necessitam ininterruptamente de atualização,

através de uma constante manutenção do programador”163. Cabe ter em mente que tais

serviços de atualização (updates) não se identificam com o fornecimento de novas

versões do software (upgrades)164, em que há acréscimos de comandos, funções e rotinas

que melhoram o desempenho da aplicação, ensejando, inclusive, uma nova licença de

uso.

Na prática comercial, as condições e ajustes para a prestação dos serviços

técnicos complementares podem representar uma cláusula no próprio contrato de licença

ou decorrer de instrumentos autônomos, que, aliás, são recomendáveis em casos de

programas de alta complexidade. Independentemente das formas escolhidas, importa

consignar que a prestação desses serviços, cobrados à parte, acabam por revelar uma

prestação de importância econômica individualizada. Por envolverem especificidade

negocial própria, ainda que vinculados à licença propriamente dita, os serviços de

manutenção remunerados com ela não se confundem, assumindo a licença e o serviço

suportes fáticos de naturezas jurídicas díspares e, portanto, efeitos fiscais igualmente

diversos.

3.4 Das novas formas de exploração econômica de programas de computador

através do licenciamento de uso de softwares baseados na infraestrutura da

nuvem (cloud computing)

A Internet, enquanto espaço altamente dinâmico para se relacionar, contribui

para a perene inovação na exploração econômica do uso dos programas de computador

163 BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Contratos de Software. Florianópolis: Visual Books, 2003,

p. 67. 164 Update é uma atualização de uma versão de software (por ex.: a Microsoft vai fornecendo

atualizações para melhorar a versão Excel 2013), enquanto upgrade é a mudança para uma nova versão, para um novo “produto” (por ex.: a Microsoft lança a versão Excel 2016).

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e para a oferta de novas soluções virtuais ao usuário. Sem sombra de dúvida, os negócios

com software representam a realidade da evolução tecnológica inerente à sociedade

informatizada, pois, combinados com os avanços dos meios comunicacionais, rompem

inéditas formas de empreender e uma gama de novas utilidades, justificando o

firmamento de relações contratuais mais complexas, que não se limitam por completo a

uma única figura clássica de contrato.

Nessa contextura econômico-tecnológica, a implementação e difusão da

cloud computing (computação em nuvem) tornou viável um leque de novas

possibilidades negociais. Dado o influxo da infraestrutura de nuvem na exploração

econômica do licenciamento de uso de software, cabe uma breve exposição a respeito

dessa disruptiva tecnologia de gerenciar e fornecer TI para, na sequência, adentrarmos

na prática comercial denominada Software as a Service (SaaS).

3.4.1 Cloud computing: o que é?

De acordo com publicação do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologias

(National Institute of Standard and Technology – NIST) 165, agência governamental

pertencente ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos, cloud computing

(computação em nuvem) pode ser definida como um modelo que permite acesso

conveniente, de qualquer lugar e sob demanda, a uma rede compartilhada de recursos

de computação (por exemplo, redes, servidores, armazenamento, capacidade de

processamento e memória, banco de dados e aplicações) que podem ser rapidamente

disponibilizados e liberados através de mínimo esforço de gestão ou interação com o

provedor do serviço.

A computação em nuvem, na definição do instituto estadunidense, é

composta por cinco características essenciais: autoatendimento sob demanda, amplo

acesso à rede, reunião de recursos, elasticidade rápida e serviços medidos.

165 MELL, Peter; GRANCE, Timothy. The NIST Definition of Cloud Computing. Recommendations of

the National Institute of Standards and Technology. Special Publication 800-145. Gaithersburg, MD, US: NIST. National Institute of Standards and Technology, Sept. 2011. Disponível em: <http://nvlpubs.nist.gov/nistpubs/Legacy/SP/nistspecialpublication800-145.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2016 (tradução livre).

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O autoatendimento sob demanda (on-demand self-service) permite ao

consumidor dispor, segundo as suas necessidades, de recursos de computação, tais como

tempo de processamento e capacidade de armazenamento, prescindindo de interagir com

o fornecedor desses recursos. Com o amplo acesso à rede (broad network access),

recursos são disponibilizados pela Internet e acessados através dos navegadores

instalados em dispositivos padrões (celulares, notebooks, estações de trabalho), com

diferentes capacidades de processamento.

A reunião de recursos (resource pooling) quer dizer que os recursos

computacionais, virtual e fisicamente arranjados e rearranjados de acordo com a

demanda dos usuários, servem para atender vários deles mediante a adoção de modelo

“multi-inquilino”, sendo que geralmente eles não detêm controle ou conhecimento sobre

a exata localização dos recursos fornecidos. Já a elasticidade rápida (rapid elasticity)

assume elemento fundamental da nuvem, proporcionando que os recursos oferecidos

sejam elasticamente provisionados e liberados, em alguns casos automaticamente, a fim

de se adaptar à demanda dos clientes.

Por último, no tocante aos serviços medidos (measured services), tal

característica determina que, para a medição do uso dos recursos fornecidos via

computação em nuvem, empreguem-se mecanismos de sistema de medição apropriados

para o tipo de recurso disponibilizado (por exemplo, volume de dados processados e

armazenados, largura de banda e contas de usuários ativas), possibilitando a fixação da

contraprestação devida pelo cliente, bem como o uso dos recursos de forma monitorada,

controlada e reportada e, com isso, oferecendo transparência tanto para o provedor

quanto para o usuário.

Assente nas recomendações técnicas do Instituto Nacional de Padrões e

Tecnologias, a computação em nuvem significa, em termos sintéticos e singelos, oferta

de recursos informáticos de armazenamento, processamento e transferência de dados,

arquivos e programas, dentre outros, através da Internet, a qualquer hora, a partir de um

dispositivo conectado, independentemente da sua localização, prescindindo, em alguns

casos, de instalar programas em ambiente local de computação, isto é, nos servidores de

uma rede doméstica ou no disco rígido do seu computador.

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É a virtualização do conjunto de recursos computacionais, pois alocados em

servidor ou servidores alheios ao sistema informático dos usuários e desenvolvedores e

que podem ser por estes acessados de forma onipresente, bastando que o dispositivo

esteja conectado à Internet166. “Para que possa ser considerado computação em nuvem,

você precisa acessar seus dados ou seus programas através da Internet, ou, pelo menos,

tem que ter esses dados sincronizados com outras informações através da Internet”167.

Ademais, os recursos da cloud, compartilhados por uma pluralidade de

usuários e cobrados com base na utilização do recurso oferecido, são dinamicamente

provisionados e realocados conforme a escala de demanda e remanejados de acordo com

as necessidades do fornecedor, exigindo pouco ou quase nada de gerenciamento pelo

usuário e interação entre ele e cada provedor do serviço.

A fim de implementar as suas características principais, os provedores de

cloud computing dispõem de um suporte estrutural congregando hardware e software168.

Deste modo, a infraestrutura da nuvem compreende uma camada física, correspondente

aos equipamentos que sustentam os recursos oferecidos na cloud, e uma camada potente

de abstração, relacionada aos inúmeros programas instalados sobre a camada física, que

coordenam a execução das tarefas atinentes às características fundamentais da nuvem.

166 Dentre os modelos de implementação de cloud computing, importa destacar: (i) o modelo nuvem

privada, cujo acesso é restrito a uma determinada empresa ou entidade, a qual, por razões de segurança e privacidade, opta por um ambiente particular, em que os seus próprios funcionários ou prestadores de serviços controlam e se responsabilizam pelo firewall, organização e gerenciamento dos recursos virtualizados e, por conseguinte, não compartilhados com terceiros; e (ii) o modelo nuvem pública, cuja infraestrutura e recursos computacionais são fornecidos por um servidor externo, através da Internet, passíveis de serem utilizados e compartilhados pelo público em geral. Neste trabalho, a análise e raciocínio desenvolvidos pressupõem o segundo modelo de implementação, firmado entre servidores externos e usuários, já que no primeiro, por figurar como uma espécie de “autosserviço” de computação em nuvem, a questão tributária dos gravames em estudo não assume relevância.

167 Tradução livre do seguinte texto: “For it to be considered ‘cloud computing’, you need to access your data or your programs over the Internet, or at the very least, have that data synced with other information over the Web” (GRIFFITH, Eric. What is cloud computing? Pcmag, New York, US, May 3, 2016. Disponível em: <http://www.pcmag.com/article2/0,2817,2372163,00.asp>. Acesso em: 08 ago. 2016).

168 MELL, Peter; GRANCE, Timothy. The NIST Definition of Cloud Computing. Recommendations of the National Institute of Standards and Technology. Special Publication 800-145. Gaithersburg, MD, US: NIST. National Institute of Standards and Technology, Sept. 2011. Disponível em: <http://nvlpubs.nist.gov/nistpubs/Legacy/SP/nistspecialpublication800-145.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2016.

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A evolução ao cloud computing deriva de um processo de virtualização dos

data centers (centro de processamento de dados), tradicionalmente concebidos como o

espaço das instalações físicas do servidor, onde ficam mantidos os componentes de

hardwares necessários para o armazenamento e gerenciamento de dados. Nesse passo, a

computação em nuvem nada mais é do que um data center com uma extensa e robusta

camada de software que permite a livre distribuição de variados recursos

computacionais entre as máquinas.

A respeito desse processo evolutivo da tecnologia estrutural do data center,

expandindo suas capacidades e recursos com base num modelo sob demanda, voltado a

suportar o consumo dinâmico de aplicações, é a visão geral da companhia Palo Alto

Networks:

Data centers têm evoluído significativamente nos últimos anos, adotando tecnologias como a virtualização para otimizar a utilização dos recursos e aumentar a flexibilidade de TI. Como empresas de TI precisam continuar a evoluir na oferta de serviços sob demanda, muitas organizações estão se movendo em direção a serviços e infraestrutura baseados em nuvem169.

Dentre os principais modelos de atividade que se servem da computação em

nuvem170, o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologias norte-americano elencou-os e

definiu-os na seguinte conformidade:

Infrastructure as a Service (IaaS): o recurso fornecido ao consumidor é

provisionar processamento, armazenamento, comunicação de rede e outros

recursos de computação fundamentais, onde o consumidor é capaz de instalar e

executar softwares em geral, desde sistemas operacionais a aplicações; o

consumidor não gerencia ou controla a infraestrutura de nuvem subjacente, mas

tem controle sobre sistemas operacionais, armazenamento e aplicativos

169 PALOALTO NETWORKS. What is a data center? Santa Clara, CA, U.S.: Paloalto Networks, 2016.

Disponível em: <https://www.paloaltonetworks.com/documentation/glossary/what-is-a-data-center>. Acesso em: 08 ago. 2016.

170 Cabe salientar que a tipologia de negócios baseados na cloud computing é bastante variável, especialmente em função do progresso dinâmico dessa tecnologia. Todavia, para os propósitos deste trabalho, apenas cumpre elucidar os modelos principais enunciados pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST), com o objetivo de esquadrinhar, na sequência, a respeito do Software as a Service (SaaS).

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instalados, e possível controle limitado de alguns componentes de rede (por

exemplo, firewalls).

Plataform as a Service (PaaS): o recurso fornecido ao consumidor é instalar na

infraestrutura da nuvem aplicativos criados ou adquiridos pelo consumidor,

desenvolvidos com linguagens de programação, bibliotecas, serviços e

ferramentas suportados pelo fornecedor. O consumidor não administra ou

controla a infraestrutura de nuvem subjacente, incluindo rede, servidores,

sistemas operacionais ou armazenamento, mas tem o controle sobre os

aplicativos instalados e possíveis configurações para o ambiente de hospedagem

de aplicativos.

Software as a Service (SaaS): o recurso fornecido ao consumidor visa à utilização

dos aplicativos do provedor rodados e executados em uma infraestrutura de

nuvem; as aplicações são acessíveis a partir de vários dispositivos do cliente, quer

através de uma interface “leve” (“thin”), tal como um navegador da web (por

exemplo, webmail), ou uma interface de programa; o consumidor não gerencia,

tampouco controla a infraestrutura de nuvem subjacente, incluindo rede,

servidores, sistemas operacionais, armazenamento ou até mesmo recursos de

aplicativos individuais, com a possível exceção de limitadas configurações do

aplicativo por usuário.

Cezar Taurion171 elucida sobre referidas variedades de cloud computing ao

abrigo da analogia de camadas, que podem ser compreendidas como níveis de abstração

das funcionalidades e dos recursos físicos da infraestrutura computacional.

A camada mais básica da computação em nuvem seria a Infrastructure as a

Service (IaaS) com oferta de recursos atinentes à infraestrutura fundamental para a

computação, como hospedagem de capacidade computacional e armazenamento de

dados (memória), prescindindo o usuário de TI de se preocupar em adquirir e instalar

servidores e equipamentos localmente. Contrata, assim, um provedor externo desses

recursos computacionais, que os aloca de forma escalonável segundo as necessidades

dos clientes, cobrando-os em função do número de servidores virtuais, volume de dados

171 TAURION, Cezar. Cloud Computing – Computação em Nuvem: Transformando o Mundo da

Tecnologia da Informação. Rio de Janeiro: Brasport, 2009, p. 99-101.

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trafegados e armazenados, dentre outros critérios de medição a depender do serviço

efetivamente utilizado.

A IaaS, representando a camada responsável por toda a infraestrutura central

e imprescindível para o fornecimento das camadas PaaS e SaaS, consubstancia típico

atividade digital provida pelos gigantes da tecnologia, como Amazon, Microsoft e

Google (por exemplo, o Netflix, que disponibiliza conteúdo multimídia via streaming

aos seus consumidores, é cliente dos serviços de nuvem do tipo IaaS fornecidos pela

Amazon).

Já na camada Plataform as a Service (PaaS), que se vale dos recursos da

camada mais básica, são fornecidas facilidades aos desenvolvedores em cima da

estrutura física. Se o IaaS é a oferta on demand da estrutura física e atividades de

manutenção de hardware, o PaaS é o fornecimento do IaaS somado ao serviço de

instalação e configuração das primeiras camadas de software para agilizar e facilitar

problemas como escalabilidade de processamento e transferência de dados para o

desenvolvedor do produto final, o SaaS ou website. No PaaS, são fornecidas

“ferramentas dentro de um ambiente necessário para criar aplicações que podem ser

rodadas no modelo Software as a Service”172.

Portanto, em um ambiente necessário e adequado às aplicações

desenvolvidas, o PaaS fornece meios e instrumentos para que seus usuários

desenvolvam outros programas, sites e outras aplicações na nuvem, gerenciando

recursos ofertados em camadas mais externas. O cliente do PaaS contrata o modelo “as

a service” de uma infraestrutura de alto nível de integração de ferramentas e

desenvolvedores para se eximir de adquirir uma variedade de hardwares e licenças de

software necessária para criar produtos e serviços na área de informática.

Um bom exemplo de uma plataforma de serviço em nuvem seria a ofertada

pelo Heroku, de propriedade da Salesforce.com e que roda numa IaaS fornecida pela

Amazon. Suportando várias linguagens de programação, essa plataforma de

desenvolvimento de alta disponibilidade, além de oferecer aos desenvolvedores

172 No original: “The Platform as a Service model provides the tools within an environment needed to

create applications that can run in a Software as a Service model” (SOSINSKY, Barrie. Cloud Computing Bible. Indianapolis, IN, US: Wiley Publishing, 2010, p. 145).

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múltiplas ferramentas online para programar seus sistemas e hospedá-los e, dessa

maneira, desobriga-os de ter que arcar com grandes estruturas físicas e instalações locais

para mantê-los, também facilita a execução de serviços de desenvolvimento, de

configuração e de manutenção de software, que é justamente o que a camada PaaS

adiciona sobre o a IaaS.

Nota-se que “nas camadas de infraestrutura e plataforma, o serviço ofertado

se dirige, via de regra, a um usuário intermediário que projetará ou se utilizará delas para

o oferecimento de outros tipos de serviço, dentre eles o oferecimento de software”173.

Seria uma espécie de terceirização de ferramentas informáticas mais básicas, porquanto

o usuário irá usufruir de recursos computacionais contratados na nuvem, ou seja, fora

dos computadores locais e pessoais, para assim desenvolver e gerenciar outras

aplicações, eventualmente disponibilizadas no mercado.

A seu turno, o Software as a Service (SaaS), por estar situado na camada mais

externa da nuvem, interagindo diretamente com os usuários, é a camada mais perceptível

da cloud computing, em que as vantagens para os clientes manifestam-se com mais

evidência. Consoante será abordado no próximo item, esse novo modelo de licença de

uso de software não se identifica por completo com o licenciamento clássico e típico.

Trata-se de uma disponibilização de software mediante forma contratual complexa,

pagando-se uma espécie de “assinatura” pelo direito de usar o programa, combinado

com recursos informáticos.

Sob todas essas camadas, podemos imaginar, “uma camada zero, onde se

situam os fornecedores de tecnologias básicas, que são exatamente os servidores, discos,

equipamentos de rede, sistemas operacionais. Estes componentes são a base tecnológica

das nuvens”174. Para fins didáticos e melhor compreender os níveis de abstração da

173 SANTOS, Eduardo Barboza dos. Conflito de competência entre as hipóteses materiais de incidência

de ICMS e ISS na Cloud Computing-Software as a Service. Monografia (Conclusão do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Disponível em: ˂http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/36538˃. Acesso em: 09 ago. 2016.

174 FREIRE, Flávia. Cezar Taurion ameniza as tempestades de questionamentos sobre Cloud Computing. Entrevista. Revista TI Digital, Rio de Janeiro: Arteccom, n. 12, p. 40-47, fev. 2010. Disponível em: ˂http://www.arteccom.com.br/revistatidigital/downloads/12/link_12_4047.pdf˃. Acesso em: 10 ago. 2016.

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tecnologia em nuvem e sua relação com provedores, desenvolvedores e usuários finais,

é possível representá-los na seguinte forma gráfica175:

Interpretando o gráfico acima, observa-se que o desenvolvedor de SaaS é

quem “consome” (contrata) as utilidades fornecidas pelo desenvolvedor de PaaS e IaaS,

necessárias para viabilizar o licenciamento de programas na forma SaaS, destinado ao

usuário final.

Isto posto, fácil compreender como a cloud computing tem transformado o

padrão econômico de TI, seja da perspectiva do usuário/desenvolvedor, seja da ótica do

fornecedor: de uma descentralização da computação, caracterizada pelo processamento

e armazenamento em computadores pessoais e redes domésticas, caminha-se para uma

centralização dos recursos informáticos apoiados na computação em nuvem, onde

diferentes provedores externos oferecem, pela Internet, um rol de ferramentas de

175 SOUSA, Flávio R. C.; MOREIRA, Leonardo O.; MACHADO, Javam C. Computação em Nuvem:

Conceitos, Tecnologias, Aplicações e Desafios. In: III ERCEMAPI – Escola Regional de Computação Ceará, Maranhão e Piauí. Parnaíba-PI: SBC, 2009, p. 158. Disponível em: ˂https://www.researchgate.net/profile/Javam_Machado/publication/237644729_Computacao_em_Nuvem_Conceitos_Tecnologias_Aplicacoes_e_Desafios/links/56044f4308aea25fce3121f3.pdf˃. Acesso em: 10 ago. 2016.

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computação com elevado grau de flexibilidade e elasticidade, promovendo, através do

modelo “pay-per-use”, uma diminuição dos custos arcados pelos usuários e

desenvolvedores com infraestrutura e manutenção de softwares. Eis a locomoção do

conteúdo digital armazenado nos computadores pessoais para as nuvens

computacionais.

Afinal,

[…] para que dispor de 120 GB de disco rígido se podemos, via comunicações de alta velocidade, ter acesso a terabytes de dados? As pessoas poderão usar equipamentos portáteis, como smartphones ou netbooks, com um browser para acesso à internet. Através deste browser será possível acessar qualquer informação pessoal e aplicativos, pois estarão todos disponíveis nas nuvens. O PC pode ser praticamente um chip com um monitor ligado à internet. Toda a inteligência estará na rede. Uma frase propagandeada pelo Google reflete bem isso: “meu outro computador é um data center”176.

A cloud computing, portanto, representa uma ferramenta mercadológica

disruptiva, na medida em que viabilizou economicamente novos paradigmas de

negócios que, gerenciados e conduzidos na Internet, servem-se, ao extremo, dos

benefícios da virtualização e abstração de processos, métodos e meios. Nesse sentido,

deu lugar a oferta de recursos computacionais de alta disponibilidade e escalabilidade,

tanto em ordem de hardware quanto de software, dispensando os usuários de terem

conhecimento sobre a localização física e demais circunstâncias envolvendo a entrega

de serviços de TI, com vistas, sobretudo, a atender as necessidades dos utentes da

tecnologia da informação, a menor custo de infraestrutura, com agilidade de acesso, sem

transtornos burocráticos, de forma transparente e facilmente gerenciável.

Dentre esses novos parâmetros de mercado, favorecidos pela abstração de

recursos através da computação em nuvem e acima brevemente demarcados, interessa-

nos à presente proposta científica o modelo denominado Software as a Service (SaaS).

Reserva-se, assim, o próximo item para uma abordagem mais exata desta solução virtual

que está despontando fortemente na estrada tecnológica da informação, a fim de

176 FREIRE, Flávia. Cezar Taurion ameniza as tempestades de questionamentos sobre Cloud

Computing. Entrevista. Revista TI Digital, Rio de Janeiro: Arteccom, n. 12, p. 40-47, fev. 2010. Disponível em: ˂http://www.arteccom.com.br/revistatidigital/downloads/12/link_12_4047.pdf˃. Acesso em: 10 ago. 2016.

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124

identificar suas características essenciais, facilitando a tarefa de investigar a subsunção

dessa atividade às hipóteses de incidência do ICMS-M e do ISS.

3.4.2 O Software as a Service (SaaS) como o emergente modelo de negócio no

licenciamento de uso de programas de computador

Graças ao aprimoramento da infraestrutura em torno da Internet, à elevada

capacidade computacional e à tecnologia em nuvem, o espaço empreendedor dos

programas de computador experimenta, nos dias de hoje, significante irrupção do

licenciamento do Software as a Service (SaaS), distintos dos clássicos Software as a

Product (SaaP)177.

A respeito das transações com o Software as a Product, nos primórdios

apenas negociados nas lojas físicas em suporte armazenadores como CD-ROM e DVD,

conhecidos como softwares de prateleira, ou posteriormente também de forma

eletrônica indireta, o programa é instalado e rodado no próprio computador do usuário

mediante o pagamento de uma taxa única. Nessas espécies de licenças, contrata-se uma

versão do programa e passa-se a utilizá-la até o lançamento de uma nova versão, a ser

comercializada nas lojas físicas ou estabelecimentos virtuais, via comércio eletrônico

indireto.

Com o desenvolvimento da Internet, que consolidou o comércio eletrônico

direto, possibilitando transações dos Softwares as a Product exclusivamente em

ambiente eletrônico, a versão do programa licenciada é instalada no computador do

usuário e, com certa frequência, são executados updates (atualizações menores e

gratuitas). Nesses casos, o fornecedor notifica o usuário, a atualização é baixada e

instalada no programa licenciado. Já as grandes atualizações ensejam a realização de

upgrades (novas versões), ou seja, a contratação de novas licenças.

Todas essas tradicionais licenças de Software as a Product, seja em

estabelecimentos físicos, seja via comércio eletrônico direto ou indireto, processam-se,

177 A comparação aqui empreendida se dá entre o SaaS e os programas de computador padronizados,

pois, em virtude de ser um modelo de disponibilização de software “um-para-muitos”, ofertados num sistema multi-inquilino, a personalização do software fica operacionalmente prejudicada. Customizações, porém, podem ser autorizadas conforme ferramentas ofertadas pelo próprio provedor de SaaS.

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em sua vasta maioria, através de licenças perpétuas. A despeito do caráter “perpétuo”

da autorização, na prática, após o lançamento de novas versões, o usuário acaba por

contratar upgrades, uma vez que versões antigas não são mais atualizadas, o que as torna

ao longo do tempo incompatíveis com as novas tecnologias, prejudicando o uso e o

funcionamento do software pelo licenciado. Assim, o usuário obtém licenças de novas

versões por forças do mercado, a fim de capitalizar recentes recursos, correções e

manter-se atualizado.

No tocante às licenças de uso da nova geração de softwares, designados por

s Software as a Service e viáveis economicamente através da tecnologia em nuvem, o

usuário adere a uma espécie de “assinatura”, mediante o pagamento de uma taxa mensal

ou anual, e o programa de computador é disponibilizado pela Internet, com o

fornecimento de login e senha, podendo ou não ser instalado em máquinas locais. Eis

aqui as primeiras notas distintivas entre os licenciamentos de programas de computador

tradicionais e o SaaS: além de se basear sempre numa licença temporária, o acesso ao

SaaS pelo usuário pode suceder exclusivamente pelo navegador da Internet, em razão

do processo de virtualização dos meios e recursos informáticos através da cloud, sem a

necessidade de uma cópia do software ser instalada e processada localmente.

Porém, a grande inovação no modo de explorar economicamente a licença de

softwares, refletindo no conteúdo do negócio jurídico, é que o objeto convencionado no

modelo SaaS consiste em usufruir o software licenciado, combinando-lhe a oferta de

recursos informáticos, assegurados pela infraestrutura de nuvem, a qual é contratada

pelo próprio fornecedor do programa de computador. Assim, cabe ao fornecedor do

SaaS, independentemente da vontade e de ações do usuário, controlar e implementar,

serviços de atualizações (updates), inserção de novas funcionalidades e melhorias

(upgrades), serviços de backup (cópias de segurança), serviços de infraestrutura,

processamento, hospedagem e armazenamento de dados etc., dentre outros recursos

computacionais para a contínua utilização dos aplicativos licenciados a qualquer

momento, de qualquer local, pelo consumidor.

Na vigência desse negócio jurídico, paga-se periodicamente com base nas

soluções virtuais contratadas, intrínsecas às licenças de SaaS, e que serão providas

automática e continuamente pelo fornecedor enquanto perdurar o direito de o usuário

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acessar o programa. No SaaS, o adequado uso do software licenciado não depende

apenas do hardware do usuário, mas do desempenho e performance do provedor no

fornecimento da totalidade das soluções computacionais contratadas.

Percebe-se assim que, com a chegada dos softwares baseados na cloud, a

distinção entre update e upgrade está ficando cada vez menos relevante, na medida em

que o processo de atualização e aprimoramento do software e de suas utilidades passa a

ser contínuo, compondo parte indissociável do licenciamento de uso do SaaS.

A partir dessas considerações, desenham-se os gráficos abaixo, que muito

bem ilustram os aspectos distintivos dos modelos de disponibilização de software acima

mencionados:

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Software as a product ‐ transação em suporte físico(lojas físicas e comércio eletrônico indireto)

Tempo

Valor do Software

(aumenta somente a 

cada upgrade)

2ª licença(upgrade)

1ª licença 3ª licença(upgrade)

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Por ser um programa de computador com amplo alcance na sociedade, o

pacote Office da Microsoft, que inclui os softwares Word, Excel, Power Point e One

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Software as a product ‐ transação eletrônica(comércio eletrônico direto)

Tempo

Valor do Software(aumenta pouco com updates e muito comupgrade)

2ª licença(upgrade)

1ª licença 3ª licença(upgrade)

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Note, é um ótimo exemplo para retratar a transição do modelo de licença do Software

as a Product para o do Software as a Service, já que a empresa oferece ao interessado

em utilizar suas aplicações as duas modalidades: o clássico Office Desktop e o Office

365.

O primeiro, cuja última versão é o Office 2016, é a suíte tradicional que os

usuários licenciam uma única vez, em caráter perpétuo, instalando-se o pacote de

aplicativos contratado na área de trabalho do computador pessoal. O segundo é a suíte

de multiusuários de aplicativos e recursos informáticos via computação em nuvem,

baseada num modelo de assinatura mensal ou anual que, acaso suspensa, torna o

conteúdo digital indisponível.

Conforme já explicitado e graficamente demonstrado, essas formas distintas

de disponibilização do software refletem no ciclo de upgrades: os usuários do pacote

Office 365 têm suas aplicações atualizadas automaticamente pelo provedor, assim que

uma nova “versão” sair, ao passo que os usuários do pacote Office tradicional devem

adquirir uma nova licença para obterem as mais recentes atualizações178.

O Office 365 apenas assemelha-se à versão tradicional na medida em que

seus clientes podem instalá-lo em suas máquinas, a fim de habilitar o funcionamento

dos aplicativos off-line, porém, com o adicional elementar de prover, continuamente, o

uso do pacote de aplicativos, agregados a funcionalidades e acessibilidade através da

Internet, bastando que o dispositivo manuseado tenha conexão à rede. O modelo SaaS

da Microsoft abrange “a versão completa do Outlook, armazenamento online adicional

através do OneDrive, versões online da suíte acessíveis através do Office On

Demand”179, que proporcionam aos licenciados usufruir do programa e respectivas

ferramentas e recursos informáticos, a qualquer hora, de qualquer lugar, em qualquer

dispositivo conectado à Internet.

É preciso ter em mente que a parcela de recursos informáticos oferecidos pelo

fornecedor do SaaS, sustentados na infraestrutura da computação em nuvem, irão variar

conforme o tipo de SaaS contratado. Em casos extremos, fala-se numa terceirização de

178 Cf. Tradução livre (IDEALWARE. Comparing Microsoft Office 2013 with Office 365. Minneapolis,

MN, US: Idealware, Nov. 2013. Disponível em: ˂http://www.idealware.org/articles/comparing-microsoft-office-office-365˃. Acesso em: 16 ago. 2016).

179 Tradução livre (ibid.).

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serviços de TI, porquanto todo o processamento e armazenamento de dados sucedem

através da Internet, no servidor externo, inclusive compartilhado com outros usuários.

Por ser um novo mecanismo de entrega de softwares, combinada com

soluções tecnológicas, por meio da Internet, o SaaS revolucionou a área de TI das

empresas. A uma, porque os departamentos de TI ficaram isentos de implementar e dar

suporte aos equipamentos e aos aplicativos utilizados na empresa, uma vez que as

atividades de “implantar um aplicativo e mantê-lo em funcionamento, dia após dia -

testando e instalando patches, gerenciando atualizações, monitorando o desempenho,

assegurando alta disponibilidade, etc. - ficarão sob a responsabilidade do provedor”180.

Com isso, o setor de TI, agora restrito a gerenciar as soluções oferecidas pelo

provedor de SaaS, consegue focar suas atividades nas metas comerciais da empresa,

como estrategista de uso e aplicação da tecnologia no alcance das demandas e objetivos

corporativos. A duas, porque possibilitou empresas de menor porte a usufruírem de

sistemas informáticos de larga escala, que exigem elevados custos e um exército de

profissionais altamente capacitados para a sua personalização e integração com os outros

sistemas e dados da organização empresarial envolvida. “Os aplicativos de SaaS não

exigem a implantação de grande infraestrutura no local do cliente e isso elimina ou

reduz, drasticamente, o compromisso de recursos adiantados”181. Afinal, o próprio

desenvolvedor do SaaS é quem contrata os recursos de hardware e software, necessários

para licenciar o seu programa de computador

Scott Sehlhorst, em estudo comparativo entre o Software as a Service e o

tradicional Software as a Product, faz perfeita distinção entre essas licenças de uso de

programas de computador, quando o sistema de aplicações depende fortemente da

infraestrutura de nuvem:

Sobre a licença envolvendo um Software as a Product:

Imagine uma típica “aquisição” de software do estilo “década de noventa”: - Você compra um sistema de controle de código fonte. - Você configura um servidor e instala o software.

180 CARRARO, Gianpaolo; CHONG, Fred. Software como Serviço (SaaS): uma perspectiva

corporativa. Redmond, WA, US: Microsoft, 29 jan. 2007. Disponível em: ˂https://msdn.microsoft.com/pt-br/library/aa905332.aspx˃. Acesso em: 15 ago. 2016.

181 Ibid.

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- Você paga os custos de suporte em curso: fornecendo energia para o servidor, mantendo o servidor refrigerado, aplicando atualizações de segurança e do sistema operacional para o servidor. - Você paga os custos associados à administração do hardware e os custos para update e upgrade o software. - Você se responsabiliza pelos riscos - um upgrade mal feito ou uma falha de hardware -, o que pode causar tempo de inatividade ou perda de dados. - Você arca com os custos de concepção e manutenção de um sistema seguro: você permite seus funcionários acessarem o software (no servidor) a partir de outros computadores em sua rede?; você os permite acessar o software quando não estão na rede (viajando, trabalhando a partir de casa, etc.)?; como você evita que os seus concorrentes roubem ou, pior ainda, destruam os seus dados?

Sobre a licença envolvendo um típico Software as a Service:

Agora imagine que você está terceirizando todas as atividades acima: - Você paga uma empresa de serviços de TI para gerenciar o hardware e o software para você, incluindo o modelo de segurança. - E você só usa o software182.

Na mesma linha, Fred Chong, Professor de Arquitetura da Computação da

Universidade de Chicago, e Gianpaolo Carraro, consultor na área de aplicações,

distinguem as características marcantes do software tradicional e do SaaS, sob três

aspectos – como é licenciado, onde está localizado e como é gerenciado:

Licenciamento: Em geral, os aplicativos instalados no local são licenciados para sempre, com pagamento único relativo a cada usuário ou local […]. Os aplicativos SaaS são licenciados, quase sempre, de acordo com um modelo de transação baseado no uso: cobra-se do cliente apenas as transações de serviço usadas. […] Local: Os aplicativos SaaS são instalados no local do hoster do SaaS, enquanto os aplicativos on-premise (locais), naturalmente, são instalados no seu próprio ambiente de TI. […] Gerenciamento: Tradicionalmente, o departamento de TI é responsável por prestar serviços de TI aos usuários, ou seja, deve estar familiarizado com redes, servidores e plataformas de aplicativos, dar suporte e fazer diagnóstico de falhas e, ainda, resolver problemas de TI relativos à segurança, confiabilidade, ao desempenho e à disponibilidade. […]. Na outra ponta do espectro, os aplicativos SaaS são completamente gerenciados pelo fornecedor ou pelo hoster do

182 Tradução livre (SEHLHORST, Scott. The Economics of Software as a Service (SaaS) vs. Software

as a Product. Scottsdale, AZ, US: Pragmatic Marketing, Nov. 25, 2008. Disponível em: ˂http://pragmaticmarketing.com/resources/the-economics-of-software-as-a-service-saas-vs-software-as-a-product˃. Acesso em: 12 ago. 2016).

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SaaS; na verdade, a implementação das tarefas e responsabilidades de gerenciamento não fica transparente para o consumidor183.

Pelas distinções acima, observa-se que no modelo tradicional de licença de

software os dados são processados e armazenados em ambiente local, as aplicações

somente podem ser acessadas nos dispositivos do usuário e a ele incumbe a

responsabilidade pela segurança do banco de dados e pelos demais recursos informáticos

necessários para o uso e a manutenção do programa, muitas vezes contratando

funcionários de TI ou terceiros para a prestação do serviço.

Diversamente, o modelo SaaS é uma disponibilização de software, em que

soluções de tecnologia por meio da Internet lhe são subjacentes. Os sistemas de

aplicações e de hardwares são gerenciados e disponibilizados pelo fornecedor do SaaS,

variando os recursos informáticos oferecidos em função do quanto o software se apoia

na infraestrutura da nuvem, contratada pelo desenvolvedor do programa. É da

responsabilidade do provedor externo proceder a atualizações e upgrades, adicionar

hardwares e servidores de acordo com as demandas individuais dos usuários, gerenciar

o acesso e manter a estrutura de conectividade, segurança, armazenamento e

processamento de dados necessários para dar cumprimento às soluções virtuais

contratadas, tudo com a finalidade de possibilitar o objeto preponderante do negócio

jurídico que é o licenciamento de uso do software.

Exemplos emblemáticos de Software as a Service que dependem bastante da

infraestrutura de nuvem são os aplicativos Slack, Dropbox, Office 365 for Business e

Google Apps for Work, bem como os softwares cuja transmissão de dados se dá pela

tecnologia streaming (Spotify e Netflix). São igualmente abarcados na classe SaaS,

porém, menos assistidos por recursos da cloud, o Adobe Criative Cloud e o Pacote Office

365, este último pormenorizado linhas anteriores. Independentemente do quanto

dependa o software da cloud, o que influi diretamente na extensão das soluções

informáticas agregadas à licença, a utilização dos aplicativos licenciados, nessa relação

negocial complexa, subsiste como o escopo contratual preponderante, como o fim

comum da estrutura do negócio jurídico contratado.

183 CARRARO, Gianpaolo; CHONG, Fred. Software como Serviço (SaaS): uma perspectiva

corporativa. Redmond, WA, US: Microsoft, 29 jan. 2007. Disponível em: ˂https://msdn.microsoft.com/pt-br/library/aa905332.aspx˃. Acesso em: 15 ago. 2016.

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132

Nesse contexto, verifica-se que o SaaS traz uma nova concepção de

exploração econômica de softwares. Ao invés de tão somente licenciar o uso do

programa e instalar uma cópia no computador pessoal sob o manto de uma licença

perpétua, o usuário contrata a autorização para usufruir o software, associada a outros

elementos negociais, com base num modelo de assinatura: o provedor do SaaS fornece

recursos informáticos, tanto em ordem de software quanto em ordem de hardware,

necessários e indispensáveis para o uso, a manutenção e o funcionamento adequados do

programa, acessível por qualquer dispositivo conectado à Internet, já que, muitas vezes,

sua instalação sequer é executada no computador do usuário. Enquanto vigente o

contrato de SaaS, o processo de atualização e aprimoramento do software, efetivado

pelo provedor externo, é contínuo, acrescentando-lhe melhorias e novas

funcionalidades, sem qualquer interferência do usuário.

3.5 Considerações finais sobre os aspectos contratuais no licenciamento de uso de

software: da unicidade do negócio jurídico SaaP para a complexidade do

negócio jurídico SaaS

Em breve síntese sobre a evolução da exploração econômica do

licenciamento de uso de software, vimos que, nos primeiros negócios com programas

padronizados, adquiria-se um CD com um programa nele instalado, cujo uso estava

autorizado por meio da licença denominada shrink-wrap agreement. Considerando que

a operação tomava como base um suporte físico, falava-se na comercialização de

software de prateleira, porém, ainda nessas hipóteses não há que falar em “aquisição”

do programa de computador, mas em meras licenças de uso de software.

Nessa época, o programa era instalado no computador do usuário e nele

permanecia, sem sofrer quaisquer atualizações e modificações pelo detentor da licença,

e para dispor de novas versões do software veiculado em suporte físico, aguardava-se o

lançamento de uma nova versão do software, a ser disponibilizada nas prateleiras das

lojas de departamentos. Mais recentemente, com a evolução da tecnologia da

informação e das comunicações, o uso do software passou a ser licenciado

eletronicamente através da Internet, o que possibilitou obter, em ambiente digital,

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atualizações das versões já licenciadas (updates), sequer cobradas, ou novas versões

lançadas pela empresa desenvolvedora dos programas (upgrades).

Igualmente nesses casos, o software é baixado para o servidor do usuário e,

tal como na sua comercialização em suporte físico, instala-se o programa em ambiente

local, responsabilizando-se o licenciado pelos recursos de TI atinentes ao funcionamento

e uso apropriados do software licenciado, como também controlando as atualizações,

optando ou não por procedê-las. Todas essas licenças tradicionais, negociadas em

caráter perpétuo, em meio físico ou eletrônico, em que o software é baixado no

computador do usuário, envolvem o que se denominou de Software as a Product.

Já a nova geração de softwares altera sobremaneira a forma de explorar

economicamente o licenciamento dos programas de computador, justamente por figurar

o Software as a Service como uma licença suportada na infraestrutura de nuvem. No

modelo de “assinatura” SaaS, combinam-se à autorização de usar o programa de

computador, objeto primordial do contrato, outros elementos negociais, tais como

serviços contínuos de manutenção (correções, atualizações, melhorias significativas),

serviços de processamento e armazenamento, bem como outros recursos informáticos,

cuja oferta e disponibilização ao licenciado irão variar em função de quanto o programa

licenciado dependa da infraestrutura de nuvem.

Referidos procedimentos a serem executados pelo licenciante do software

exprimem elementos negociais indissociáveis desse tipo de contratação. Fornecido o

programa na cloud computing, as atividades de updates e entrega de soluções de TI

permitem que os aplicativos licenciados sejam acessados a qualquer hora a partir de

diferentes dispositivos conectados à Internet. Figuram, portanto, como tarefas

intrínsecas e necessárias ao uso adequado do programa de computador, convergindo,

assim, para o fim comum e preponderante do negócio jurídico, que é o licenciamento na

forma SaaS.

Uma vez delineado, sinteticamente, o cenário evolutivo da exploração

econômica do software, colhemos o ensejo para tratar de forma breve sobre a unidade e

a pluralidade dos negócios jurídicos e distinguir, em relação à primeira, os contratos

unitários dos contratos complexos e, em relação à segunda, a coligação contratual da

união de contratos. Trata-se de reflexão jurídica imprescindível para melhor

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compreendermos as formas negociais aplicadas em matéria de licenciamento de uso de

software disponibilizados eletronicamente e podermos avançar para a análise que

consome nosso trabalho – a tributação.

Acerca da unidade e pluralidade dos negócios jurídicos, valemo-nos da

explicação de Marcos Bernardes de Mello, inspirado no magistério de Pontes de

Miranda:

A unidade do negócio jurídico se refere à especificidade de que se atribui ao ato jurídico. Diz-se uno, ou único, o negócio jurídico quando as suas disposições constituem um todo indissociável, não se podendo separá-las em partes distintas sem descaracterizá-lo. Há um só negócio jurídico porque se lhe atribui especificidade única, o que se identifica pela existência de um só fim (=objeto) específico. Os negócios jurídicos típicos, considerados em seus suportes fáticos específicos, são atos jurídicos unos (ex.: compra e venda, doação, locação). No entanto, se no mesmo negócio jurídico há elementos de negócios jurídicos vários, inclusive atípicos, o negócio jurídico se torna complexo, ou misto, mas essa complexidade não exclui a unidade sempre que existir subordinação do todo à especificidade deles, que é preponderante (= especificidade preponderante), e ao fim comum do negócio jurídico complexo ou misto (ex.: contrato de leasing, contrato de franquia, […])184.

Assim, a unidade do negócio jurídico nada tem a ver com o seu ato de

conclusão, com a sua forma de instrumentalização, tampouco com o seu conteúdo, mas

sim relacionada à especificidade única ou preponderante e ao fim comum da estrutura

negocial.

A propósito, cotejando a unidade e a pluralidade contratual, convém

transcrever os esclarecimentos de Marcos Bernardes de Mello:

À unidade se opõe à pluralidade, que ocorre quando existem dois ou mais negócios jurídicos, cada um com sua especificidade própria, mesmo que tenham os mesmos figurantes, as prestações (diferentes) recaiam sobre um mesmo bem e constem em um mesmo instrumento negocial (A compra de B o apartamento X e na mesma escritura o dá em locação ao próprio vendedor […])185.

No que toca à unidade do negócio jurídico, acaso verificada, o contrato pode

ser unitário ou complexo, a depender do conteúdo do contrato. Segundo os ensinamentos

184 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva,

1999, p. 190-191. 185 Ibid., p. 191.

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ponteanos, a discussão sobre ser o negócio jurídico unitário ou complexo, já assenta na

convicção de que é único o negócio jurídico: será unitário qualquer negócio jurídico em

que houver identidade dos elementos fáticos relativos ao sujeito, ao objeto ou à

manifestação da vontade e será complexo quando algum desses elementos não é

unitário, mas pelo menos um o é.

Nos contratos complexos, quando qualificados pela pluralidade de

manifestações de vontade e, por conseguinte, de elementos negociais, justifica o jurista

sua característica de negócio jurídico único, pois, ainda que haja a combinação de

“elementos de diferentes tipos de negócios jurídicos, inclusive de negócios jurídicos

atípicos, suscetíveis de serem suporte fáctico de regras jurídicas especiais”, esses

elementos estão “subordinados à especificidade preponderante e ao fim comum do

negócio jurídico complexo (=misto)”186. Não há uma “mistura” de negócios jurídicos,

pois esta ocorre no suporte fático, é pré-jurídica (antes de o negócio se juridicizar). Dessa

mistura pré-jurídica resulta um negócio jurídico de espécie própria, em que as diversas

manifestações de vontade se coagulam e nenhuma declaração existe por si só. Essa

coagulação leva à unidade e complexidade volitiva do negócio jurídico.

Se o suporte fático contém elementos que seriam de dois ou mais negócios jurídicos, e só um entra, é que a unidade se fez pela composição complexa do suporte fático. […]. Quando o negócio jurídico é único, mas complexo, não se pode dizer que é, em parte, contrato de compra e venda, e em parte contrato de sociedade (por exemplo); é envoltório, cápsula, parte de elementos de compra-e-venda e parte de elementos da sociedade. Por isso mesmo, as regras jurídicas essenciais que incidem sobre esses elementos não levam consigo a sua especificidade, se esses elementos não são os de caráter específico preponderante, do negócio jurídico187.

Deste modo, os contratos complexos caracterizam-se um negócio jurídico

unitário de múltiplo conteúdo, combinando partes de espécies negociais diferentes,

porém essa combinação de elementos negociais diversos leva a um liame impartível, na

medida em que existe uma subordinação do todo a um elemento específico, que é o

preponderante. Com efeito, se verificada a preponderância da especificidade própria de

186 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Geral. Tomo III. São

Paulo: Bookseller, 2001, p. 173-174. 187 Ibid., p. 176-177.

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um dos elementos, ao qual todos os demais aspectos negociais estão submetidos,

aperfeiçoa-se a unidade. Eis o critério - especificidade preponderante - que permite

discernir, perante o elemento volitivo plural, o negócio jurídico único complexo da

pluralidade de negócios jurídicos.

Já na pluralidade de negócios jurídicos, em que cada elemento tem sua

especificidade própria individualizada, manifestam-se a coligação contratual, se

caracterizada a interdependência funcional, e a união de contratos, se configurada a

autonomia. Nos negócios coligados, apesar de as avenças, tal como nos contratos

complexos, serem interdependentes umas das outras para a fiel execução de cada uma

delas, os liames mantêm sua individualidade. Os contratos coligados, preleciona Caio

Mario da Silva Pereira:

[…] são resultado de uma hipercomplexidade contratual que decorre da necessidade de concretização de interesses cada vez mais intrincados e que devem se conectar com outras situações jurídicas que a estes interesses estejam ligados. Ocorre uma conexão funcional entre os contratos, fazendo com que um só tenha executividade jurídica se o outro também tiver, formando assim, uma rede contratual interdependente. Vale dizer, a classificação dos contratos coligados não se refere especificamente a uma característica substancial do contrato, mas a um grupo de contratos que se conectam entre si de tal maneira que a execução fiel de um fica subordinada à execução de outro. Exemplo típico encontra-se no contrato de planos de saúde, em que se coligam contratos de prestação de serviços médicos, de hospitalização, de fornecimento de medicamentos e de seguro etc.188.

A coligação não se confunde com a simples união contratual. Nesta,

conquanto os ajustes sejam instrumentalizados ao mesmo tempo ou num mesmo

documento, os negócios celebrados são distintos e completamente autônomos entre si,

sem qualquer vínculo funcional. Sobre a união de contratos, destaca Pontes de Miranda,

que “cada negócio jurídico tem o seu suporte fático, os seus elementos, nucleares ou

não; e a forma é acidental, sem qualquer influência de um na sorte do outro negócio”

(por exemplo, compro o chapéu por x e, no mesmo momento, deixo outro para conserto

por y)189.

188 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atualizado por Caitlin Mulholland.

19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 68. 189 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Geral. Tomo III. São

Paulo: Bookseller, 2001, p. 181.

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Faz-se oportuno realçar que a exploração econômica envolvendo contratos

coligados, onde há pluralidade, não se confunde com um contrato complexo, marcado

pela unidade. Enquanto a complexidade representa um só negócio jurídico, em que é

inviável alcançar jurídica e economicamente a finalidade específica preponderante

pretendida pelas partes “sem o liame incindível dos vários elementos considerados no

acordo e coordenados formalmente”190, na coligação há diferentes contratos celebrados

pelas partes que se apresentam interligados por um nexo funcional, em que as

vicissitudes de um interferem sobre o outro.

Em suma, a reunião contratual em ambos é feita com dependência, porém os

negócios coligados conservam sua individualidade191, incidindo as regras jurídicas

próprias de cada um, e os negócios complexos caracterizam-se por um específico

elemento negocial preponderante, a que todos os demais se submetem, em uma

combinação indissociável, voltada ao escopo comum do pactuado, que irá determinar a

regra a incidir.

Transpondo-se os esclarecimentos acima às formas contratuais aplicadas no

licenciamento de uso de software, tem-se que o Software as a Product pressupõe

negócio jurídico único com unitariedade e o Software as a Service pressupõe negócio

jurídico único com complexidade. Expliquemos melhor.

No modelo tradicional SaaP, tem-se um típico licenciamento de uso de

programas de computador, na forma prevista na própria Lei nº 9.609/98, enquanto

espécie contratual para atender relações econômicas em matéria de software. Aqui, a

unidade do negócio jurídico configura-se na existência de um só fim específico,

consistente na outorga ao licenciado do direito de usufruir o software, permanecendo os

direitos patrimoniais do programa sob a propriedade do licenciador, o qual, inclusive,

pode licenciar para outros interessados.

Diversamente, o licenciamento do Software as a Service compõe-se de

diversos elementos negociais indissociáveis, cuja combinação é operada em razão de os

aplicativos apoiarem-se na infraestrutura da cloud. Não se trata de somatório de

190 TRABUCCHI, Alberto apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: contratos e

atos unilaterais. V. 3, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 191 Cf. ibid.

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contratos individualizados – interdependentes ou autônomos. Ao contrário, trata-se do

encadeamento de diversos deveres e correspondentes direitos na formação de um

contrato uno que tem como específica finalidade preponderante o licenciamento de uso

do programa. Todos os elementos negociais reunidos no SaaS subordinam-se à

especificidade preponderante, que é outorga do direito de uso do software.

A estrutura negocial complexa do SaaS adequa-se à categoria jurídica de

licenciamento de uso, pois a reunião e conjugação de diferentes avenças,

interdependentes umas das outras, visa a um fim comum: a utilização do programa de

forma contínua de qualquer lugar e a qualquer hora pelo licenciado. Misturando vários

elementos negociais, em que prepondera como elemento específico o licenciamento, a

execução do contrato SaaS realiza-se de forma una e global e qualquer investida com o

fim de dissociar esses elementos negociais acabaria por desnaturar o negócio jurídico.

Eis porque, conforme veremos mais a frente, os contratos de SaaS não podem ser

desmembrados para fins de consideração jurídica, tampouco para fins tributários.

Ademais, cumpre lembrar que, no licenciamento de uso do software, nada

impede que haja uma pluralidade de negócios, a depender dos interesses envolvidos, da

aplicabilidade/destinação do software e da complexidade em manuseá-lo. A celebração

de outros negócios vinculados ao licenciamento de uso é fruto da liberdade de

estipulação na esfera privada, como também algumas vezes necessária. É possível então

contratar, à parte, serviços técnicos complementares (vide item 3.3.4.3.1) e

customizações do programa, adaptando-o para atender as necessidades específicas do

licenciado. Nessas hipóteses de contratos coligados, os serviços de manutenção e

customização têm importância econômico-jurídica própria e individualizada, são

dissociáveis do licenciamento de uso sem descaracterizá-lo.

Para encerrar esse esforço crítico e darmos início aos estudos na seara

tributária, importa registrar que jamais pretendeu-se, neste capítulo, exaurir a extensa

temática sobre os negócios de software, especialmente tendo em conta as ilimitadas

modalidades e particularidades do ato de pactuar no âmbito do direito privado.

Também não foi nossa intenção tratar aqui de temas específicos, e não menos

relevantes, que rodeiam os contratos eletrônicos no tocante à aplicação das normas

consumeristas e de direito civil, tais como as incertezas quanto à validade desses

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contratos e sua formação, aos requisitos para aferir a presunção de veracidade das

declarações de vontade, apta a vincular a parte aos termos ajustados, a legislação

aplicável etc. Tampouco objetivou-se, nos tópicos precedentes, pormenorizar as

intrincadas tecnicidades da computação em nuvem, suas complexidades jurídicas e a

totalidade das práticas negociais baseadas na sua infraestrutura.

Em verdade, a presente intenção cognoscitiva foi a de articular as figuras

contratuais de licença de uso de softwares ofertados eletronicamente, enquanto prática

comercial prevalecente e objeto deste escrito, bem como destacar a licença do tipo

Software as a Service como modelo de negócio em ascensão nas transações eletrônicas

com programa de computador, identificando, assim, as relações negociais estabelecidas

na exploração econômica do software e seus contornos jurídicos específicos, a fim de

adiante investigar, com rigor e afinco, a tributação pelo ICMS-M e pelo ISS sobre o

licenciamento de uso de programas de computador disponibilizados pela Internet.

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PARTE 2

O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA

TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS-MERCADORIA E O ISS

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1 O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA

TRIBUTÁRIA

1.1 Noções propedêuticas sobre o sistema constitucional e a competência

tributária

Compreendido como um conjunto de elementos relacionados sob um

princípio unificador, o sistema jurídico é expressão empregada para designar conjuntos

proposicionais nomoempíricos distintos: o sistema do direito positivo, correspondente

ao plexo de normas existentes aqui e agora, destinadas a regular condutas interpessoais,

e o sistema da Ciência do Direito, definido como a reunião de enunciados científicos

que descrevem e tornam compreensível as normas jurídicas.

A racionalidade sistêmica do direito positivo deriva da sua própria tessitura

linguística prescritiva, a qual, aplicada para motivar e alterar o comportamento humano

no seio da sociedade, há de portar mínima ordenação lógico-racional a fim de ser

assimilada pelos destinatários das mensagens jurídicas. Inserido num contexto

comunicacional, em que o enunciador da mensagem jurídica realiza um ato de fala

direcionado ao enunciatário, o material bruto dos comandos legislativos já pressupõe a

condição de sistema192. Deveras, tanto o conjunto de enunciados, que fazem parte do

plano de expressão S1, quanto o conjunto das normas jurídicas organizadas segundo

relações de coordenação e subordinação, no arranjo do plano S4193, assumem foros

sistemáticos.

O sistema do direito positivo é constituído por diferentes subsistemas, cujas

unidades normativas, alinhadas numa estrutura hierarquizada pela fundamentação ou

derivação, vinculam-se de diferentes maneiras, reunindo-se debaixo de seu fundamento

último de validade semântica, que é a Constituição da República. Esta, na qualidade de

vetor comum, respaldando todas as manifestações jurídicas, atribui o caráter unitário ao

conjunto normativo posto. “Sem a definição de uma hierarquia entre os enunciados

192 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.

147. 193 Cf. percurso gerador de sentido dos textos jurídicos proposto por Paulo de Barros Carvalho (vide

item 2.1. – Parte 2).

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prescritivos não há caminhos para decidir sobre a solução de conflitos ou antinomias

entre os distintos conteúdos normativos”194.

A Constituição, a seu turno, também consubstancia um subsistema que, dada

a sua posição sintática no ordenamento, de máxima hierarquia, figura como o mais

proeminente, ocupando a camada súpera do sistema e alojando os traços diretivos

fundamentais a imperarem sobre a integralidade dos diversos institutos a serem criados

pelo legislador comum. Ao abrigo do subsistema constitucional estatuíram-se os direitos

e garantias fundamentais, a base axiológica sólida dos princípios, a disciplina básica da

ordem econômica e social, o regime político, as diretrizes que informam a estrutura do

Estado, a sua forma de governo, bem como o modo de aquisição e o exercício do poder,

a organização de seus órgãos e os limites da sua atuação195. Destarte, é no altiplano

constitucional que encontramos os aspectos fundantes das várias entidades e instituições

por quem os focos ejetores de normas infraconstitucionais hão de zelar, minimizando

conflitos e alcançando o equilíbrio harmônico no exercício legislativo.

Do subsistema das normas constitucionais, extraímos outro subsistema: o

subsistema constitucional tributário. Na organização do Texto Maior, o legislador

constituinte, embora não modele a totalidade da matéria tributária, optou por criar um

conjunto extenso e complexo de prescrições, desenhando, em miúdos e de forma tesa,

os contornos essenciais desse subsistema jurídico. Cuidou, assim, de erigir princípios

constitucionais tributários e garantias fundamentais do contribuinte, classificar as

espécies de tributos, partilhar receitas fiscais, destinar o produto arrecadado, discriminar

competências, dentre outros assuntos lindeiros da persecução tributária.

Em razão da particularizada e abundante disciplina tributária plasmada pelo

constituinte, assevera Geraldo Ataliba196 que a nossa Carta Republicana não se

caracteriza pela plasticidade e elasticidade jurídicas, próprias das constituições sintéticas

e genéricas que autorizam o legislador a agir em ampla esfera de liberdade para adaptar

o sistema tributário às necessidades emergentes ou às solicitações das mutações sociais

194 BARRETO, Paulo Ayres. Ordenamento e sistema jurídicos. In: CARVALHO, Paulo de Barros

(Coord.). Contructivismo lógico-semântico. V. 1. São Paulo: Noeses, 2014, p. 256. 195 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004,

p. 36. 196 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.

14-15.

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e econômicas. Ao contrário, a nossa Constituição, marcada pela rigidez em matéria de

fixação de competência tributária e formas de seu exercício, não deixou margem –

jurídica – para grandes desenvolvimentos e integração pela legislação ordinária, e

menos ainda, pelos costumes, colaborando restritivamente o legislador

infraconstitucional brasileiro no delineamento jurídico das feições e traços fundamentais

do sistema tributário.

Do leque de assuntos fiscais versados pela Carta de 1988 estão os comandos

específicos que repartem as competências legislativas entre as pessoas políticas - União,

Estados, Distrito Federal e Municípios - para instituir tributos e legislar, em termos

inaugurais, sobre matéria tributária, já revelando esse subsistema “a orientação do

constituinte em impregnar as normas de inferior hierarquia com uma série de conteúdos

de preferência por núcleos significativos”197. Afinal, é por meio do exercício da

competência tributária, respeitados os preceitos contidos nas normas de estrutura198, que

se inserem, na lei instituidora, todos os enunciados que fundamentam a regra-matriz dos

tributos, prescritora de suas hipóteses tributárias, seus sujeitos ativos e passivos e da

prestação pecuniária a ser cumprida em favor dos cofres públicos.

Alerta Paulo de Barros Carvalho que a acepção acima assinalada é uma das

várias significações abrangidas pela expressão “competência tributária”, na medida em

que têm igualmente competência tributária, porém num alcance semântico mais amplo

da locução:

[…] o Presidente da República, ao expedir um decreto sobre IR, ou o seu ministro ao editar a correspondente instrução ministerial; o magistrado e o tribunal que vão julgar a causa; o agente da administração encarregado de lavrar o ato de lançamento, bem como os órgãos que irão participar da discussão administrativa instaurada com a peça impugnatória; aquele sujeito de direito privado habilitado a receber o pagamento de tributo (bancos, por exemplo); ou mesmo o particular que, por força de lei, está investido na condição de praticar a

197 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 244. 198 A competência tributária também é norma jurídica, construída a partir do texto constitucional e, por

isso, apresenta uma estrutura normativa lógico-condicional, tal como indica o jurista Tácio Lacerda Gama: “No antecedente dessa norma, descreve-se um fato – o processo de enunciação necessário à criação dos tributos –, imputa-se a esse fato uma relação jurídica, cujo objeto consiste na faculdade de criar tributos” (Contribuição de intervenção no domínio econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 73).

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sequência procedimental que culminará com a produção de norma jurídica tributária, individual e concreta (casos de IPI, ICMS, ISS etc.)199.

Mirando o emprego da expressão adstrita à atividade de legislar em marcas

inaugurais, quadra advertir que a discriminação constitucional das competências para

criar, em abstrato, tributos há de ser o ponto de partida para a investigação dos fatos

tributáveis pelas unidades federativas e pelos Municípios. Isso porque toda atribuição

de competência não se resume a autorizações, mas também a limitações, sendo vedado

à unidade política competente, no exercício de instituir imposições tributárias,

extrapolar as fronteiras de atuação demarcadas na Constituição. “A aproximação que o

intérprete haverá de fazer ao direito posto terá não apenas como ponto de partida a

Constituição Federal”. Mais do que isso, reforça Paulo Ayres Barreto, “exigir-se-á um

longo e espinhoso trabalho exegético, realizado exclusivamente nesse plano

constitucional, para então se perquirir sobre o conteúdo de comandos normativos

infraconstitucionais”200.

Justamente por conta da extensividade e minudência do trato da matéria

tributária pelo constituinte, conhecer as porções do sistema tributário brasileiro, reclama,

a todo instante, investigar e conhecer as diretrizes mestres e sobranceiras estabelecidas

pela Constituição. Iniciar o processo interpretativo a partir do Texto Supremo trata-se

de providência indispensável sobretudo perante um subdomínio jurídico composto por

comandos normativos, cada vez mais, numerosos e complexos, conduzindo-nos à

assimilação da multiplicidade de enunciados emanados das várias fontes de produção

do direito tributário e ao adequado discernimento a respeito das questões controversas

suscitadas nesse submundo jurídico.

Sem perder de vista essa postura cognoscente, não é demasiado lembrar que,

para todo esforço hermenêutico rigoroso dos textos jurídicos, o método sistemático

figura como o percurso interpretativo por excelência. Se as prescrições emergem do

sistema jurídico, para melhor interpretá-las faz-se imprescindível o exame do

199 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 245. 200 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle. São Paulo: Noeses.

2006, p. 28.

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ordenamento como um todo, assimilado nos seus vínculos de coordenação e

subordinação, com incursões nos níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem

do direito positivo. A tomada de posição consciente sobre qualquer norma jurídica

requer o trato com a globalidade do conjunto. “Como já dissera Carnelutti, ‘em torno de

uma simples relação jurídica gira o sistema do direito positivo’”201.

Certamente, em qualquer estudo das unidades normativas, tal como as regras

de competência que disciplinam o ICMS e o ISS, ater-se à literalidade do texto pode

acarretar leituras irrefletidas e conclusões apressuradas, em desacordo com a ordem

jurídica em vigor. Daí porque, no ato de interpretar e aplicar o direito, não se pode

ignorar a inteireza lógico-semântica do contexto jurídico, em especial as diretrizes

constitucionais principiológicas erigidas para proteger o contribuinte dos abusos do

Estado na criação e cobrança de tributos.

Assim, para voltarmos nossa atenção ao estudo das normas de competência

dos referidos impostos, com foco específico nos respectivos campos materiais de

incidência, as considerações precedentes nos convidam para um exame mais detido dos

cânones basilares da Federação, da Segurança Jurídica e da Legalidade que, por

orientarem a atividade legislativa, tangenciam fortemente o exercício da competência

tributária.

1.2 O estudo de alguns princípios constitucionais relacionados ao exercício da

competência tributária

Consoante linhas anteriores, o sistema do direito positivo é formado por

estruturas prescritivas válidas num dado país que se projetam sobre as condutas

intersubjetivas, disciplinando e ordenando os comportamentos humanos em função de

valores socialmente consagrados. Sendo o direito objeto do mundo da cultura, suas

unidades normativas carregam consigo graus axiológicos variáveis.

Nesse contexto, o termo “princípio” é empregado para designar normas que

exercem significativo papel sintático no conjunto normativo e carregam elevada

201 Apud CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo:

Noeses, 2015, p. 237.

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conotação valorativa, o que as coloca em patamar hierárquico mais relevante na

contextura jurídica Por serem preceitos de forte vetor axiológico, os princípios atuam

sobre grandes porções do ordenamento, influindo na construção, estruturação e

aplicação das demais significações jurídicas.

Para mais dessa correspondência semântica – princípio como norma jurídica

de posição privilegiada e portadora de valor expressivo –, Paulo de Barros Carvalho

emprega o termo “princípio” para denotar “normas que fixam importantes critérios

objetivos, além de ser usado, igualmente, para significar o próprio valor,

independentemente da estrutura a que está agregado e, do mesmo modo, o limite

objetivo sem a consideração da norma”202.

Seja qual for a significação que lhe for atribuída, por deter posição de

preeminência nos vastos quadrantes do direito, o princípio possui um papel fundamental

na interpretação e aplicação da linguagem jurídico-prescritiva, contribuindo para sua

compreensão e também lhe atribuindo caráter de unicidade.

1.2.1 O princípio federativo como formador do Estado Brasileiro

O princípio federativo, estatuído no art. 1º da Constituição e alçado à cláusula

pétrea203, consiste numa das vigas mestras formadoras do Estado Republicano

Brasileiro. A Federação, enquanto forma de estruturação do poder, pressupõe, por

intermédio de uma Constituição, a associação político-administrativa de Estados

autônomos sob um comando central unificado, conciliando os benefícios de uma

autonomia política com aqueles oriundos da instituição de um comando centralizado.

Em sua essência, portanto, um Estado Federal implica a autonomia das

unidades federadas salvaguardada pela Constituição e a coexistência de ordens jurídicas

distintas incidentes sobre um mesmo território e um mesmo grupo de indivíduos,

mostrando-se esteio crucial para a promoção da democracia, pois, além de o exercício

202 CARVALHO, Paulo de Barros; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Guerra Fiscal: reflexões sobre a

concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012, p. 29. 203 Art. 60, §4º, da CF/88: “§4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado”.

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do poder achar-se mais perto do povo, um poder repartido, nas proveitosas lições de

Celso Bastos, é mais difícil de ser arbitrário204.

No tocante ao Estado Brasileiro, sua formação contrai certas particularidades.

Primeiro, porque, diferentemente do sucedido nos Estados Unidos, em que as treze

colônias inglesas, depois de declaradas Estados americanos independentes, adotaram

uma ordem político-jurídica unificada, capaz de atender os desafios advindos da

soberania recém-adquirida, a nossa unidade nacional precedeu à própria implementação

do federalismo, vale dizer, a Nação antecedeu à Federação205.

A experiência brasileira, em que a federação resultou da desagregação de um

Estado unitário, reflete nos contornos específicos da nossa estrutura associativa, a qual,

sustentada em um poder central bem mais fortalecido do que os titularizados pelas

demais pessoas políticas, não se identifica plenamente com o modelo descentralizador

de Estados com tradições federativas marcantes e mais desenvolvidas, onde impera a

escolha por uma atribuição mais ampla de aptidões em favor dos Estados-membros.

Essas dissemelhanças, cotejadas entre o federalismo norte-americano por agregação e o

federalismo brasileiro por desagregação, só vêm a confirmar o asserto de Tácio Lacerda

Gama, segundo o qual, “como todos os conceitos, o sentido de Federação varia segundo

o contexto político, econômico, jurídico ou cultural”206.

Segundo, porque, não só a União e os Estados-membros figuram como

unidades autônomas, visto que a Constituição, no seu art. 18207, ao traçar o perfil jurídico

da República Federativa do Brasil, consagrou um terceiro nível de autonomia: o

municipal. Por obra do constituinte, os Municípios, embora não integrem a Federação

brasileira, ostentam semelhante autonomia à conferida aos Estados-membros, avocando

competências, órgãos, autoridades, leis e aparato organizacional próprios. Em vista

204 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 419. 205 Cf. ibid., p. 415-425. 206 GAMA, Tácio Lacerda. Federação, autonomia financeira e competência tributária: é possível uma

federação sem repartição de competências tributárias? In: CARVALHO, Paulo de Barros; SOUZA, Priscila de (Orgs.). X Congresso Nacional de Estudos Tributários – Sistema Tributário Brasileiro e as Relações Internacionais. São Paulo: Noeses, 2013, p. 1148-1149.

207 “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”

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disso, na compreensão do Estado Brasileiro, os indivíduos estão submetidos à

sobreposição de três distintas ordens jurídicas e esferas de governo.

Não se pode esquecer também que o art. 1º da CR/88, combinado com o

disposto no art. 18, determina que a República Federativa é formada “pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Assim, nas reais

dimensões jurídicas da formação do Estado nacional, também o Distrito Federal detém

personalidade política, conforme anotam Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet

Branco:

Para abrigar a sede da União, o constituinte criou o Distrito Federal […]. O Distrito Federal goza de autonomia, podendo auto organizar-se, por meio de lei orgânica própria. Dispõe também das atribuições de autogoverno, autolegislação e autoadministração nas áreas de sua competência exclusiva208.

Reclamo indissociável do pacto federativo e da autonomia municipal consiste

na repartição constitucional de competências entre os órgãos do poder central e das

esferas regional e localmente organizadas para o desempenho de suas atividades

normativas. Nesta distribuição de aptidões traçada no Texto Supremo, sobressai o direito

das entidades políticas de disciplinar sobre a obtenção de recursos para fazer frente às

suas despesas. Tal prerrogativa de prover suas próprias receitas, na qual se inclui o

direito de criar, cobrar e arrecadar tributos, dá lugar à autonomia financeira da União,

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assegurando-lhes, em consequência,

as respectivas autonomias nas esferas política e administrativa209.

208 MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Augusto Ganet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São

Paulo: Saraiva, 2013, p. 782. 209 “A autonomia abrange essencialmente três aspectos: a) a autonomia política, que assegura ao ente

competência para legislar, para participar nas decisões do poder central, a delimitação de competências para fornecer bens e serviços e a existência de órgãos próprios; b) a autonomia administrativa, que confere aos entes capacidade de se auto organizarem, criando e mantendo órgãos, meios e formas pelas quais cumprirão as atribuições que lhe forem destinadas; e c) a autonomia financeira, por meio da qual os entes federados alcançam independência na obtenção de recursos, de modo que não tenham de se sujeitar a outro para conseguir os meios financeiros que precisam; e suficiência dos recursos obtidos, para que os tenham em quantidade bastante para atender as necessidades públicas que estejam sob sua responsabilidade” (CONTI, José Maurício. Federalismo fiscal a repartição das receitas tributárias. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valter do; MARTINS, Rogério Gandra da Silva. Tratado de Direito Tributário. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 188-189).

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Na contextura federativa brasileira, cada ente político goza, em condições

isonômicas, da faculdade de tomar decisões e dispor sobre determinados assuntos,

editando suas normas, porém, delimitada essa permissão pelo próprio direito positivo,

nos moldes do quadro jurídico fixado na Constituição. Eis aqui os principais aspectos

distintivos entre uma Confederação de Estados e um Estado Federal: a

soberania/autonomia e a igualdade jurídica.

Consoante cuidadosamente exposto por Roque Carrazza210, a soberania,

embora presente nos Estados confederados, não o é nos Estados federados, já que,

nestes, a Constituição, por meio da atribuição de competências, conferiu autonomia ao

Estado Central e aos Estados-membros. Como entes federados autônomos, não são

soberanos, “já que encontram limites em seu agir na Constituição que, encimando-os,

dá validade aos atos jurídicos que praticam”. Quanto ao aspecto isonômico, esclarece o

tributarista que, nas Federações, “geralmente há absoluta igualdade jurídica” entre as

unidades federativas (Estados e União), ao passo que os Estados confederados, apesar

de iguais entre si, “ocupam posição de preeminência jurídica, diante da Confederação”.

Vê-se, portanto, que, sob o manto do princípio federativo, a autonomia

recíproca dos entes políticos é limitada pela própria Constituição ao distribuir

competências entre a ordem central e as ordens periféricas. Com efeito, as pessoas

políticas de direito constitucional interno ficam tolhidas de exceder as barreiras postas

pelas diretrizes constitucionais que circundam as atividades de seus Poderes Legislativo,

Executivo e Judiciário, sob pena de invadir a competência alheia de legislar, administrar

e julgar, em detrimento dos próprios cidadãos.

Em nome da autonomia recíproca, cada pessoa política detém capacidade

para auto-organizar-se, autogovernar-se e, nesse espectro, exercer a sua competência

tributária, deliberando sobre as prioridades, se irá ou não tributar e em que intensidade.

Paralelamente, em respeito ao vínculo da reciprocidade e com o objetivo de resguardar

a federação e, em última instância, prestigiar os direitos e garantias dos contribuintes,

os entes políticos devem coexistir harmonicamente, criando tributos atentos às

instruções que receberam do constituinte.

210 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 154.

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Por força desses dados característicos da República Federativa Brasileira, um

Poder Judiciário íntegro e sólido, na reveladora atuação do Supremo Tribunal Federal,

exprime peça elementar para dirimir conflitos competenciais e, com isso, assegurar o

exercício equilibrado das competências tributárias, circunscrito ao campo de ação que

foi reservado a cada unidade política.

Em suma, a forma federativa, combinada no Brasil com a autonomia

municipal, alicerça-se na autonomia recíproca entre União, Estados, Distrito Federal e

Municípios, cada qual, iguais entre si, dotados de capacidade de autoconstituição,

organizando-se juridicamente e dispondo de receitas tributárias e orçamentárias

suficientes para agir nas respectivas áreas administrativa, legislativa e política. Todavia,

no desempenho de suas atividades, notadamente na instituição e na arrecadação

tributárias, encontram-se as unidades políticas subordinadas aos critérios de repartição

positivados pelo constituinte, almejando, assim, garantir a convivência harmônica entre

pessoas distintas e autônomas, bem como a segurança dos contribuintes.

1.2.2 O sobreprincípio da segurança jurídica

No sistema do direito positivo brasileiro, assumem a condição dos

denominados “sobreprincípios” as normas jurídicas que dependem fortemente da

atuação de outras postas pelo legislador. Dada a amplitude significativa das normas

qualificadas como sobreprincípio e da magnitude axiológica a elas inerente, referidas

normas de sobrenível são verdadeiros norteadores de todo o ordenamento jurídico,

posicionando-se no topo da pirâmide hierárquica dos valores positivados.

A segurança jurídica é um valor de sobrenível por excelência, uma vez que é

realizada por meio da aplicação de outros normas, tais como: a coisa julgada, a

legalidade, a irretroatividade, a anterioridade, a reserva de competências tributárias etc.

Aparece então pela conjunção de várias normas jurídicas e seu desrespeito sucede

justamente quando as diretrizes normativas que lhe servem de suporte e fundamento

venham a ser violadas.

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De acordo com o Professor Roque Antonio Carrazza,211 o primado da

segurança jurídica engloba todos os direitos fundamentais dos contribuintes, previstos

na Carta Suprema. No mesmo rumo reflexivo, sublinha José Souto Maior Borges que a

segurança jurídica é um sub-rogado dos dispositivos constitucionais que a contemplam

nas dobras dos direitos e garantias individuais212. A própria denominação deste

princípio exprime sua importância finalística: dar segurança às relações intersubjetivas.

Em atenção a este propósito, o objeto da segurança jurídica consiste em

capacitar o cidadão de prever e conjecturar os resultados atribuídos aos seus atos pelas

normas jurídicas, em nível abstrato e concreto, possibilitando-lhe depositar sua

confiança no ordenamento e, com isso, planejar suas ações a salvo de riscos e surpresas.

A partir dessa perspectiva semântica, afirma Paulo de Barros Carvalho213 que a

segurança transparece quando a sociedade tem a possibilidade de prever os efeitos

jurídicos decorrentes da aplicação das regras jurídicas sobre as condutas humanas. “Tal

sentimento tranquiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações

futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a

aplicação das normas do direito se realiza”214.

A previsibilidade e a confiabilidade na regulação das relações sociais tocam

a essência particular do sistema do direito positivo, na medida em que, por ser posto em

textos de lei, o ordenamento jurídico pressupõe comandos acessíveis e inteligíveis pelos

seus destinatários, visando a tolher qualquer arbítrio do Estado perante a sociedade.

A positividade e a institucionalização das normas jurídicas, porém, não são

suficientes para assegurar a segurança jurídica, porquanto, ainda que as regras sejam

minimamente acessíveis e inteligíveis pelos cidadãos, romperá a insegurança se sua

aplicação ocorrer de forma instável ou arbitrária, carecente de raciocínio objetivo e

uniforme. Nessa medida, pondera Humberto Ávila ser fundamental um estado de

cognoscibilidade da linguagem prescritiva, o qual reclama do aplicador do direito, seja

nas vezes de legislador, executor ou julgador, que preze pelos núcleos de significação

211 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012. 212 Ibid., p. 26. 213 CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. Revista de

Direito Tributário, São Paulo: Malheiros, v. 61, n. 3, p. 74-90, jul./set. 1994. 214 Id. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2015, p. 288.

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paulatinamente construídos pela doutrina e jurisprudência com suporte nos textos

jurídicos, sobretudo naqueles locados na Carta Maior.

Segundo o autor, dada a ausência de termos semanticamente unívocos, o

órgão dotado de competência tributária (em sentido amplo), diante das alternativas

interpretativas para a produção de textos jurídicos e construção de normas jurídicas,

deve ater-se ao conteúdo deôntico mínimo que serve de orientação para os contribuintes,

sob pena de comprometer a credibilidade do próprio sistema posto. Nas exatas palavras

de Ávila:

A ideia de cognoscibilidade deve ser reconhecida como a capacidade de o contribuinte ter acesso material e inteligível ao conceito normativo, ainda que se saiba que esse conceito, embora apresente um halo de certeza ou núcleo de significação (serviço é obrigação de fazer), pode apresentar, em maior ou em menor medida, margens de indeterminação (operação de leasing envolve ou não um serviço?). Adota-se, pois, uma concepção determinável da interpretação, no sentido de que as regras contêm conceitos, contudo estes são, em virtude da linguagem, em alguma medida indeterminados, possuindo, entretanto, núcleos de sentido já fixados intersubjetivamente, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, ao longo do seu uso, dos quais o intérprete não pode se afastar215.

E, ainda que conhecido o conteúdo prescritivo, caso a norma introduzida pelo

aplicador dele se distancie, em afronta a prescrições hierarquicamente superiores, o

próprio sistema do direito positivo prevê mecanismos que venham a limitar os efeitos

dela produzidos.

Percebe-se que a possibilidade de o contribuinte prever as consequências

jurídicas de seus atos e, consequentemente, confiar no ordenamento para pautar suas

condutas, guarda estreita relação com a atividade de aplicação do direito exercida nas

três esferas dos poderes republicanos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Ou seja, a

previsibilidade e a confiança estão diretamente condicionadas à observância do estado

de cognoscibilidade da linguagem do direito positivo, a ser garantido pela atuação dos

órgãos competentes.

Nesse ponto, convém já ponderar que a busca pela previsibilidade e

confiabilidade não significa impor a imutabilidade da ordem jurídica vigente. Mas para

215 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito

tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 256-257.

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que mudanças ocorram no seio do direito, elas devem observar as diretrizes positivadas

no ordenamento, em especial os enunciados principiológicos, como a legalidade, a

anterioridade e a irretroatividade, e as regras de competência que, formal e

materialmente, dispõem sobre os processos de enunciação. “Até se admite a mudança,

mas ela deve ser feita de maneira respeitosa, com proteção da confiança, com regras de

transição e com cláusulas de equidade”216.

A segurança jurídica há de permear sobretudo nesses processos decisionais

que rompem paradigmas normativos até então estabilizados, afetando diretamente o

planejamento do contribuinte e as condutas a serem praticadas, de modo a garantir,

também e principalmente nessas hipóteses, condições suficientes para que o indivíduo

conheça, preveja e confie no direito, submetendo, com segurança e sem surpresas, suas

ações às novas consequências jurídicas impostas. Resta frustrada a segurança jurídica,

obstando o contribuinte de planificar seus atos futuros, se ele apenas tem a capacidade

de prever que a norma pode mudar, entretanto não possui a mínima aptidão para saber

como e em que medida, tampouco o espectro temporal dentro do qual as consequências

jurídicas serão aplicadas217.

Desta feita, a segurança jurídica não repousa exclusivamente na

institucionalização e positivação das normas e no respeito aos conteúdos jurídicos

mínimos, construídos em processos interpretativos anteriores. Edifica-se também na

obediência de uma extensa sequência procedimental, em nível material e formal,

necessária a qualquer processo de enunciação de normas, tornando o proceder decisório

também previsível para o destinatário da norma.

No campo do direito tributário, a observância do primado da segurança

jurídica assume notável relevância por relacionar-se a pretensão fiscal diretamente com

a propriedade e a liberdade individuais, na medida em que visa à transferência

compulsória de parcela do patrimônio do contribuinte em favor dos cofres públicos e,

também, funciona como ferramenta de controle para incentivar ou desestimular

condutas. Principalmente por conectar-se a persecução tributária com o direito à

216 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito

tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 273. 217 Ibid., p. 258-259.

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propriedade que o constituinte de 1988 enuncia os princípios tributários da

anterioridade, irretroatividade e legalidade estrita. Ao assim proceder, permite ao

contribuinte não se surpreender, da noite para o dia, com uma nova obrigação tributária,

proíbe a norma fiscal de atingir fatos pretéritos, preservando o direito adquirido, o ato

jurídico perfeito e a coisa julgada, e impõe a criação ou a majoração de tributos por

veículos introdutores primários que tipifiquem, pormenorizadamente, os aspectos

normativos mínimos para a compreensão da mensagem jurídica.

A diretriz axiológica da segurança jurídica na seara tributária é igualmente

reforçada pelo Texto Supremo quando este fixa um esquema rígido de distribuição das

competências tributárias. Se competência tributária, tal qual já definimos, encerra uma

autorização e uma limitação, a segurança jurídica realiza-se justamente a partir do

produto da união entre esses ambos comandos, vale dizer, a partir dos critérios

constitucionais que demarcam, com rigor, as possibilidades de atuação das pessoas

políticas.

Daí a importância, na instituição e exigência dos gravames fiscais, do

respeito aos conceitos constitucionais construídos com base nas regras distributivas, sob

pena de extrapassar a outorga ordenada pelo constituinte de 1988, o que pode levar à

usurpação competencial e à superposição de cargas tributárias. Deveras, adquirindo as

pessoas políticas a incumbência legislativa para instituir os tributos, restando-lhes criar

as respectivas regras-matrizes de incidência conforme os limites de sua esfera de ação,

à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cabem interpretar e aplicar

corretamente as disposições discriminatórias enunciadas no Texto. Devem estar atentos

aos conteúdos significativos construídos e estabelecidos pela comunidade jurídica,

auxiliados pela doutrina e balizados pela jurisprudência, formadas no decorrer da

tradição hermenêutica do sistema tributário, possibilitando assim demarcar, com maior

segurança, o alcance de cada faixa de competência impositiva.

Não obstante a proteção especial à segurança jurídica no subsistema

constitucional tributário, a realidade em torno das relações entre Fisco e contribuintes

nos mostra o contrário. Isso porque a uniformidade e continuidade dos comandos

normativos são constantemente comprometidas, tendo em vista a dissonante e mutável

jurisprudência judicial e administrativa ao propor soluções aos conflitos existentes, e

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também as sucessivas normas infraconstitucionais editadas segundo os interesses

arrecadatórios das pessoas políticas e respectivas Administrações Fazendárias. Não é

por acaso a reflexão de Eduardo Marcial Ferreira Jardim:

O direito tributário brasileiro apresenta uma incredível contradição, pois, de um lado, abriga o mais bem elaborado sistema no plano constitucional, enquanto, de outra parte, produz uma legislação subconstitucional na contramão da Carta Magna e, vezes sem contra, afronta direito e garantias fundamentais […]218.

A falta de confiança na legislação tributária acaba por empecer o contribuinte

de ter conhecimento seguro de suas obrigações fiscais e, logo, das condutas a serem

regularmente praticadas, prejudicando a execução planejada das suas atividades

privadas e, indiretamente, o próprio desenvolvimento socioeconômico do País.

Em conclusão, no interior do ordenamento do direito positivo, encontra-se a

segurança jurídica como uma das grandes diretrizes que formam a camada axiológica

das normas tributárias, nelas penetrando e incutindo-lhes dimensão significativa. Trata-

se de sobreprincípio que exprime a previsibilidade em relação aos efeitos da aplicação

das normas tributárias e a confiança na totalidade do ordenamento, sustentadas na

compreensão pelos contribuintes, em nível concreto e abstrato, dos comandos jurídicos

a que estão submetidos e, portanto, no conhecimento, em alto grau e com antecedência,

da conduta regrada.

Voltada maiormente para a estabilidade das relações intersubjetivas, a

segurança jurídica postula a criação e a exigência de tributos em conformidade com a

Constituição, em especial as regras principiológicas e as normas que distribuem as

competências tributárias entre as pessoas políticas, projetando assim continuidade e

confiabilidade na ordem jurídica posta.

1.2.3 O princípio da legalidade e tipicidade tributárias

O Estado Democrático de Direito garante o exercício do poder estatal

somente por meio de lei, como expressão da vontade soberana do povo. Na Constituição

218 JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. O Federalismo e a Tributação no Estado Brasileiro. In: GIOIA,

Fulvia Helena de; PIERDONÁ, Zélia Luiza (Coords.). Pacto Federativo, Tributação e Cidadania: Homenagem ao Professor Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 129-130.

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de 1988, o cânone da legalidade está enunciado no rol dos direitos individuais,

especificamente no art. 5º, inciso II, ordenando que “ninguém será obrigado a fazer ou

deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O preceito da legalidade insere-se com maior força sobre os domínios do

direito tributário, por conta do previsto no art. 150, inciso I, da Carta Fundamental,

segundo o qual, “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado

à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo

sem lei que o estabeleça”. Esse reforço do constituinte no setor fiscal representa a estrita

legalidade tributária.

De acordo com a diretriz da legalidade, a inserção pelas pessoas políticas de

direito constitucional interno de normas tributárias inaugurais, impositivas de deveres

aos contribuintes, há de ocorrer sempre por intermédio de lei, no mais das vezes lei

ordinária, abrangendo tanto as regras que contemplam o fenômeno da incidência,

instituidoras de tributos ou que majoram os existentes, como as que estatuem os deveres

instrumentais previstos em prol do interesse da arrecadação e da fiscalização.

No entanto, a observância da legalidade não revela expediente infalível e

suficiente para assegurar a interpretação e a aplicação das normas em harmonia com os

valores constitucionais. Ainda que, formalmente, a instituição e a majoração de tributo

atendam à exigência do veículo legal, os enunciados inseridos e os respectivos

conteúdos normativos podem afrontar a Carta Republicana, despontando aqui o

relevante papel tonificante da tipicidade tributária.

Corolário do princípio da estrita legalidade, a tipicidade representa, em

termos pragmáticos, instrumento mais capaz e eficiente de assegurar a produção de

normas tributárias em conformidade com os preceitos constitucionais. Isto se dá por

exigir que elementos integrantes da hipótese e do vínculo normativos sejam

especificados, com clareza e precisão, na formulação legal, impondo um ato de

aplicação normativo rigorosamente subsuntivo.

Nessa senda, a tipicidade tributária pode ser definida em duas dimensões: a

legislativa e a fática. No plano legislativo, a tipicidade determina que a lei especifique,

de maneira clara e inequívoca, todos os elementos indispensáveis para a edificação da

regra-matriz de incidência, isto é, aquele mínimo irredutível deôntico necessário à

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percussão tributaria. A lei deve conter os elementos descritores do fato jurídico,

representados, na composição do antecedente, pelos critérios material, espacial e

temporal, e os dados prescritores da relação jurídica firmada no consequente, traduzidos

nos critérios pessoal e quantitativo da obrigação tributária.

No plano dos fatos, a tipicidade significa a exigência do pleno

enquadramento do conceito do fato jurídico tributário ao conceito do fato da hipótese

normativa, como condição para o surgimento da relação tributária. “Para que se

configure o fato jurídico tributário, a ocorrência da vida real tem de satisfazer a todos os

critérios identificadores tipificados na hipótese.219

Sob essa ótica, a tipicidade corresponde então à estrita subsunção do fato à

norma que faz romper a obrigação particularmente nascida, também em conformidade

com a sua previsão genérica estipulada no consequente normativo, razão pela qual,

aponta Fabiana Del Padre Tomé, que se faz indispensável, na esfera da tributação, que

“tanto os atos de lançamento e de aplicação de penalidades como as decisões proferidas

no curso de processos administrativos tributários sejam pautados em provas”220.

A exigência da tipicidade resta inclusive confirmada pela leitura de outros

dispositivos plasmados no direito positivo: no art. 146, III, ‘a’, da Constituição ao dispor

que cabe à lei complementar, em relação aos impostos, estabelecer normas gerais sobre

seus fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; no art. 97 do CTN quando

estabelece que somente à lei cabe definir o fato gerador da obrigação tributária; no art.

108 do CTN, proibitivo do uso de analogia na exigência de tributos; como também no

art. 114 do CTN, segundo o qual o fato gerador da obrigação principal é a situação

definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.

Destarte, à luz da legalidade e tipicidade tributárias, é possível concluir que

são condições necessárias para o regular nascimento da obrigação tributária: (i) lei

anterior descrevendo o fato; (ii) subsunção do fato à hipótese normativa; e, através da

219 CARVALHO, Paulo de Barros. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética

de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, n. 34, 1998, p. 111. 220 TOMÉ, Fabiana del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. Noeses: São Paulo, 2008, p. 294.

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devida constituição em linguagem competente, (iii) a equivalência dos elementos do

vínculo jurídico instaurado àqueles prescritos na lei221.

O princípio da legalidade, quer na sua dicção genérica (art. 5º, II), quer na

sua redação específica para o direito tributário (no art. 150, I), desdobrando-se na

tipicidade, encerra, pois, uma garantia fundamental aos contribuintes e um obstáculo

intransponível aos interesses arrecadatórios nos planos federal, estadual, distrital e

municipal. Vigilante dos ideais da segurança jurídica e do pacto federativo, esse cânone

impede a atuação arbitrária do Estado, cujos atos, subordinados à lei, estão sujeitos a

controles com o escopo de averiguar se os respectivos órgãos e agentes não excederam

suas competências.

Importa destacar, e assim já finalizando os estudos principiológicos, que

todos os órgãos revestidos de competência tributária (na acepção ampla) hão de

obedecer ao conjunto de princípios constitucionais acima delineados, fontes

inesgotáveis de direitos e garantias dos indivíduos. Não apenas ao legislador das normas

gerais e abstratas destinam-se as regras da federação, da segurança jurídica e da

legalidade, mas a todo aplicador do direito – juiz, administrador, particular etc. - a quem

foi atribuído a função de cumprir ou fazer cumprir o direito.

Por fim, além dos limites jurídicos erigidos pelos grandes princípios

constitucionais aqui abordados, e por outros tantos enunciados pelo constituinte, que

também pairam sobre a extensão do exercício de tributar, cabe sempre realçar que o

legislador está adstrito de forma direta aos específicos comandos das competências

tributárias. Por atuarem pontualmente como balizas irresistíveis à tributação, o estudo

do perfil da discriminação das competências tributárias, focalizada para este feito

investigativo na instituição de impostos, apresenta providência primordial quando se

propõe a conhecer o direito tributário, merecendo, a seguir, nossa atenção cuidadosa e

detida para, ato contínuo, debruçarmo-nos sobre os aspectos materiais das hipóteses de

incidência do ICMS-M e ISS.

221 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Guerra Fiscal: reflexões sobre

a concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012 p. 34.

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1.3 A rígida discriminação das competências para criar impostos na Constituição

de 1988

À luz do pacto federativo, especialmente no Brasil, em que Municípios, tal

como a União, os Estados e o Distrito Federal, exercem funções, encargos e poderes de

forma autônoma, o constituinte de 1988 empenhou-se em municionar as unidades

políticas de recursos, com o escopo de lhes garantir a possibilidade de arcar com as

respectivas despesas. No rumo de prover-lhes receitas e assim assegurar clima de

harmonia, estreme de conflitos, a Constituição procedeu a uma pormenorizada

atribuição das competências tributárias, estipulando, a cuidados superlativos, as

molduras normativas com base nas quais as entidades federadas e os Municípios podem

instituir tributos222.

Desta feita, mediante hirtos e extensos traços constitucionais na distribuição

das aptidões tributárias, alcançou-se logicamente a rigidez do próprio sistema

constitucional tributário. Ao demarcar e limitar, rigorosamente, não só o exercício da

competência para criar tributos, mas toda a atividade fiscal, tomada na globalidade das

diversas esferas competenciais, o sistema constitucional tributário buscou refrear

conflitos de competência e bitributação, bem como consagrar a isonomia e autonomia

financeira das pessoas políticas e a estabilidade nas relações entre Fisco e contribuintes.

No que diz respeito aos impostos, classe de tributos propínqua ao presente

escrito cientifico, o constituinte procedeu a uma divisão categórica dos cenários

legiferantes entre os entes federados e os Municípios: pela técnica tabular, arrolou

imposto por imposto, estipulando as situações em que o poder legislativo de cada

entidade dotada de personalidade política está autorizado a instituir a exação tributária.

Os artigos 153, 155 e 156 da Carta Magna prescrevem os quadros fáticos

suscetíveis de compor o núcleo da incidência e integrarem o critério material dos

impostos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nesses tributos

não vinculados à uma atividade estatal, o critério de partilha da competência tributária

“se apoia na tipificação de situações materiais (‘fatos geradores’) que servirão de suporte

222 Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968,

p. 37.

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para a incidência”223, reservando-se a cada unidade política a atribuição de instituir

impostos sobre certos e distintos signos presuntivos de riqueza, reveladores de

capacidade contributiva. “Operação de circulação de mercadoria”, “prestação de

serviços”, “doação de bens”, “propriedade predial e territorial urbana”, “importação de

produtos estrangeiros”, “operações financeiras” e “renda e proventos de qualquer

natureza” são alguns desses acontecimentos positivados pela Carta Republicana.

Sobre a compostura da fisionomia jurídica dos impostos, Paulo de Barros

Carvalho224 acrescenta que, em virtude das titularidades residual e extraordinária

previstas no art. 154, incisos I e II, é lícito concluir que à União foram conferidas, além

da competência específica para tributar as situações contempladas no art. 153: (i) a

faculdade legislativa concorrente com os demais entes políticos para criar os impostos

extraordinários em face de iminência ou no caso de guerra externa, bem como (ii) a

permissão residual de instituir, por meio de lei complementar, gravames não-

cumulativos sobre situações remanescentes, ou seja, impostos que não tenham fato

gerador ou base de cálculo próprios dos já discriminados na Constituição.

Especificamente no tocante à austeridade do sistema tributário e sua

aplicação relativamente aos impostos, têm lugar, mais uma vez, as salutares reflexões

de Geraldo Ataliba - obviamente acomodadas ao contexto constitucional vigente -

quando distingue a rigidez jurídica da disciplina constitucional tributária e a sua

flexibilidade econômica, concernente à possibilidade de adaptá-la aos progressos

científicos e econômicos. Enfatiza o jurista que, sob o aspecto jurídico, a rigidez sempre

estará presente, pois o legislador está adstrito e vinculado em seus atos à literalidade

textual e ao conteúdo dos mandamentos que compõem o quadro de competências.

Assim, qualquer hipótese que não se conforme a esse quadro é de inconstitucionalidade. Diante de casos concretos duvidosos o intérprete deverá percorrer, em rigoroso […] exame, os dados desse quadro, procedendo por eliminação. Se não vier caracterizada, precisamente, a subsunção do caso concreto às diversas hipóteses permissivas da

223 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 97. 224 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.

223-224.

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Constituição, então é seguro e certo que está diante de exigência inconstitucional e, portanto, não vinculante juridicamente225.

Por outro lado, sob o ângulo econômico, ao legislador foi concedido a

faculdade de “atualizar-se com as conquistas da ciência econômica e acompanhar o

progresso das especulações financeiras, adaptando-se às exigências fluidas e mutáveis

das realidades condicionais do comércio privado”226. Isso porque, o rol dos arts. 153,

155 e 156 não exaure todas as manifestações de capacidade contributiva suscetíveis de

serem oneradas pelos impostos.

O constituinte de 1988, ciente do porvir inovador, imanente à rica e

heterogênea tessitura das relações interpessoais firmadas no âmbito do direito privado,

outorgou à União, no art. 154, inciso I, a competência residual para tributar os fatos de

relevância econômica que não se subsomem às materialidades já rigorosamente

elencadas no Texto Supremo, ou seja, para criar impostos novos, não previstos pelo

constituinte. A competência residual só vem a reforçar a rigidez do quadro

competencial, pois evidencia que a amplitude da disciplina da aptidão para instituir

impostos é total na medida em que todo e qualquer fato que revele conteúdo econômico,

salvo aqueles albergados pelas normas de imunidade, poderá ser objeto de tributação.

Destarte, na perseguição de assegurar simultaneamente a rigidez jurídica e a

flexibilidade econômica do sistema constitucional tributário, ante o surgimento de novos

negócios e formas de exploração econômica, caberá ao aplicador do direito verificar se

tais fatos adequam-se à expressa e estrita faixa para instituir impostos, enumerados nos

arts. 153, 155 e 156 da Constituição, e, não o sendo, pertencerão forçosamente ao campo

da competência residual da União, donde se conclui, consoante recomendações do

próprio Geraldo Ataliba, que não existe, juridicamente, possibilidade de qualquer tipo

de imposto escapar ao dilema: ou se configurará como privativo (arts. 153, 155 e 156)

ou será residual (art. 154, I)227.

225 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.

30-31. 226 Ibid., p. 38. 227 Ibid., p. 213.

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Enfim, todas essas regras que compartem competências, corolários da

autonomia recíproca das pessoas políticas, “têm por destinatário imediato o legislador,

que se acha, assim, impedido de expedir leis (lato sensu) desdobrantes destes valores

constitucionais”228. O acatamento dessas normas nacionais, encrustadas no altiplano da

Constituição e que demarcam, em caráter rígido e minudente, os campos possíveis para

União, Estados, Distrito Federal e Municípios levarem a efeito a tributação, além de

condicionar a criação legítima dos impostos pelo legislador, condiciona também sua

regular exigência pelos demais aplicadores do direito, produtores dos comandos

individuais e concretos.

Firmadas, assim, as primeiras premissas para a análise das regras

constitucionais que delimitam a competência tributária, apoiadas na percepção

fundamental de que a rigidez da repartição das aptidões entre as pessoas políticas,

conformada pelo influxo de princípios constitucionais, em especial, o federativo, a

segurança jurídica, legalidade e tipicidade, encerra, de um lado, uma autorização para

criar tributos e, de outro, uma limitação para fazê-lo, passa-se, nos tópicos subsequentes,

ao campo especulativo da interpretação dos signos empregados pelo constituinte nesse

rigoroso esquema distributivo.

1.4 A interpretação dos signos linguísticos empregados pelo constituinte na

repartição das competências tributárias e os conceitos constitucionais como

limitadores da atuação do aplicador do direito tributário

No desenho da repartição das competências para instituir impostos, o

constituinte emprega termos e vocábulos para fazer referência a acontecimentos que

revelam capacidade econômica, atribuindo a cada pessoa política uma situação material

específica sobre a qual está autorizada a incidência do gravame fiscal. Ao enunciar

quadros fáticos aptos a integrar as hipóteses de incidência dos impostos, o sistema

constitucional tributário elege preferências por núcleos de significação, vinculativos da

produção de normas de inferior hierarquia, e, com isso, subtrai do legislador ordinário

228 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 565.

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“a possibilidade de livremente definir o alcance das normas jurídicas criadoras in

abstracto de tributos”229.

Pressupor um conteúdo material para os dispositivos outorgantes de

competências impositivas emana da compostura de toda e qualquer competência, que já

nasce limitada, do contrário, tratar-se-ia, em verdade, não de competência tributária, mas

sim de poder para criar tributos. Deveras, a aptidão para tributar resulta do fatiamento

do poder fiscal entre as pessoas políticas que, ao concretizarem os signos constitucionais

introduzindo as regras-matrizes de incidência tributária, hão de considerar as variantes

de significação admitidas pelo texto constitucional.

Disto resulta que os processos decisórios relacionados à imposição dessas

figuras tributárias hão de ser precedidos por intenso esforço exegético pelo aplicador do

direito (legislador, administrador e julgador) a partir do texto constitucional, com o

escopo de traçar os conceitos constitucionais que traduzem as fronteiras semânticas

ordenadas pela Constituição, norteadoras da integralidade da trama tributária, seja na

eleição dos fatos a comporem a hipótese da norma-padrão de incidência dos impostos,

seja na produção das demais regras atinentes à persecução tributária.

Em virtude da importância dos conceitos constitucionais, limitadores da

atuação das pessoas políticas e respectivos órgãos e condicionantes da efetiva

previsibilidade na regulação das relações entre Fisco e contribuinte, o presente estudo

dos signos linguísticos utilizados nas disposições discriminatórias de faixas

competenciais com enfoque nos enunciados que apontam as materialidades dos

impostos, a despeito de exprimir missão das mais árduas, mostra-se providência

gnosiológica inevitável para demarcar, com maior solidez, os parâmetros do legislador

e demais órgãos competentes na cobrança e exigência do ICMS-M e ISS, adiante

investigados.

229 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p.

39.

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1.4.1 Os conceitos como forma de pensar e conhecer a realidade do direito

positivo, viabilizando a comunicação jurídica

No século XX, uma transformação no contexto filosófico refletiu

substancialmente nas teorias sobre o conhecimento e sua relação com a linguagem. Em

contraposição à filosofia da consciência, até então prevalente, segundo a qual o

conhecimento exprime a simples apreensão mental das coisas, figurando a linguagem

como um instrumento de revelação de uma realidade já conhecida pelo sujeito

cognoscente, na concepção filosófica inaugurada pelo giro linguístico, conhecer o

mundo passa a ser um processo de intelecção pelo homem, no qual a linguagem é

condição para assimilar as concretudes do universo. Por meio das funções sensoriais, o

indivíduo entra em contato com o mundo e projeta os dados recolhidos das experiências

ao plano da realidade através da linguagem, sob uma forma de consciência.

A partir daí rompe-se o modo tradicional de projetar a relação entre

conhecimento, linguagem, sujeito e objeto, pois a linguagem deixa de ser apenas uma

ferramenta de comunicação entre o sujeito e o objeto já conhecido, transformando-se na

edificadora dos fenômenos, capaz de arquitetar tanto o sujeito cognoscente como o

próprio objeto do conhecimento. A realidade existe, cognitivamente, para o indivíduo se

houver uma linguagem que a constitua. Toda e qualquer compreensão está condicionada

e limitada linguisticamente. Por isso tem lugar o famoso trecho da obra Tractatus logico-

philosophicus de Ludwig Wittgenstein: “os limites do meu mundo significam os limites

da minha linguagem”.

Com o advento dessa nova atitude epistemológica, o modo de compreender

as coisas, reduzindo suas complexidades, torna-se, essencialmente, um processo

interpretativo, em que a noção de conhecimento desvia-se da ideia de mera reprodução

das coisas apanhadas do mundo exterior, passando a ser a constituição do real pelo

intérprete. A realidade percebida e compreendida só é possível pela manifestação da

linguagem, é obra do próprio pensamento.

Nesse passo, para termos acesso e assimilar os objetos e a sucessão de

acontecimentos que marcam o mundo circundante, valemo-nos do uso de palavras e

vocábulos, veiculadores de um conjunto de ideias que se tem sobre algo. Criamos, assim,

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conceitos com o intuito de falar sobre essa diversidade fenomênica e conferir-lhe

sentido. Não nos é possível apreender as múltiplas situações e objetos da vida sem a

manipulação de conceitos. Enquanto unidade primeira do pensamento, o conceito

condiciona a atividade cognitiva e permite uma infinidade de maneiras de interpretar e

conceber o mundo. O pensar e o conhecer se realizam na medida em que criamos e

utilizamos conceitos230. “Assim, quando o ser se aproxima do objeto com fins

epistemológicos, em verdade está se relacionando com uma linguagem desse objeto. Ou

melhor, com a ideia, utilizando a terminologia husserliana, que o homem irá

conhecer”231.

A respeito da atividade de criar conceitos, condicionando a compreensão da

gama de ocorrências experimentadas pelo homem, vale conferir a passagem de Alice

Maria Araújo Ferreira em seu prefácio ao livro Que é um Conceito? de Benoit Hardy-

Valée:

A necessidade de compreender, que nos parece óbvia hoje, se construiu com a história e a necessidade de dar sentido. Para produzir um conjunto de conhecimentos sobre um objeto, criamos os conceitos – estas ferramentas mentais que, podemos dizer, nascem com a linguagem, que cria mundos. Mundos no plural porque há uma diversidade de línguas e de indivíduos que as falam232.

Nesse incessante propósito de interpretar o mundo e reduzir suas

complexidades, criando e empregando conceitos, o homem o faz a partir da noção que

já detém sobre outros objetos, sempre relacionando as significações percebidas com

230 Além dos “conceitos”, os denominados “tipos” também são apontados como forma de se pensar e se

referir à realidade. Explica Misabel Derzi que “ao contrário dos conceitos de classe, os tipos se interpenetram em ordenação gradativa, sem limites rigorosos”, uma vez que “as notas do tipo apresentam-se em diferente graus de intensidade e se combinam de forma distinta, podendo faltar uma ou alguma delas em certos objetos” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 96, 125). É bom destacar que não será aplicado neste escrito o pensamento tipológico, pois, perfilhando das advertências da autora mineira, a adoção de tipos, permitindo acolher ou não, conforme as circunstâncias, determinadas notas referenciais do objeto, não se compadece com a rigidez na distribuição de competências tributárias, que compõe justamente a temática relacionada a este estudo científico.

231 LINS, Robson Maia. Considerações sobre o conceito de norma jurídica e a pragmática da comunicação na decisão judicial na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Contructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2014, p. 178.

232 FERREIRA, Alice Maria Araújo. Prefácio. In: HARDY-VALLÉE, Benoit. Que é um Conceito? Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2013, p. 11.

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outras camadas linguísticas dantes conhecidas. O conhecimento aparece assim como

relação entre linguagens, entre significações233, donde se infere que o mundo que

conhecemos é o mundo linguístico, nunca a coisa “em si”.

Submerso o indivíduo nesse mundo linguístico, conhecer pressupõe um

sistema de referência. Portador dos fatores culturais e das vivências particulares do

exegeta num dado tempo e lugar, o sistema de referência orienta a compreensão sobre o

objeto experimental. Este só “é inteligível à medida que é conhecida sua posição em

relação a outros elementos, tornando-se clara sua postura relativamente a um ou mais

sistema de referência234”.

Por isso, afirmar algo como verdadeiro só o é dentro de um contexto, o qual,

afetado por mudanças circunstanciais, alterações de valores e crenças de uma dada

sociedade, pode ensejar novas interpretações, com a reformulação de conceitos

tradicionais. A verdade não mais se caracteriza pela correspondência (entre a linguagem

e o objeto), mas pelo consenso interpretativo sobre um específico objeto, resultante de

um acordo firmado entre os indivíduos de uma comunidade linguística. Sem resistir os

sentidos ao passar do tempo, é um desacerto falar em verdades absolutas, variando os

conceitos segundo os horizontes culturais daquele que fala em nome da verdade, em

determinado marco espaço-temporal.

Essa mudança de paradigma filosófico do conhecimento, ocasionado pelo

giro linguístico, tem seus reflexos na própria concepção da atividade de interpretar os

textos. Não mais se concebe, tal como afirmava a corrente ontológica, de que a

interpretação constitui mecanismo de revelação do conteúdo contido no texto, extraindo

ou descobrindo os utentes da linguagem o sentido das palavras, como se o ato de

interpretar retirasse do suporte físico uma única realidade, ou seja, uma única

interpretação possível.

Com base na filosofia da linguagem, o ser cognoscente entra em contato com

o texto e constrói significações, atribuindo sentidos aos vocábulos, palavras e termos.

Interpretar, portanto, é outorgar sentidos aos textos, ao suporte físico investigado,

construindo o intérprete conceitos e respectivas definições, em consonância com o meio

233 TOMÉ, Fabiana del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. Noeses: São Paulo, 2008, p. 01. 234 Ibid., p. 08.

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social, o momento histórico e as vivências, ou seja, conforme o sistema de referência

em que opera o exegeta.

1.4.1.1 Distinção entre termo, conceito e definição na compreensão da

linguagem do direito positivo

Apoiados no paradigma filosófico do giro linguístico, para o qual o

conhecimento resulta de um processo interpretativo-reducionista em que o indivíduo

atribui significações aos objetos pela linguagem, concluímos no item anterior que não

temos acesso à essência dos objetos e eventos, mas aos termos e às palavras,

veiculadoras de conceitos, que a eles fazem referência. Em virtude da intangibilidade

dos dados físicos, tudo que conhecemos são interpretações e construções significativas

acerca das experiências, são ideias e juízos que o intérprete tem relativamente aos

objetos referenciados pelos termos. Não atribuímos sentidos ao objeto em si mesmo,

mas ao vocábulo que o representa.

As ideias abstratas e gerais que o intérprete formula acerca dos objetos,

possibilitando-lhe conceber a unidade de uma pluralidade de fenômenos, denominamos

conceitos. Manipulados na mente do indivíduo e representativos de uma categoria de

objetos, os conceitos traduzem “um conhecimento geral que transcende a particularidade

das percepções ao mesmo tempo que permite dar sentido a elas”235. Por formar uma

classe de fenômenos, o conceito pressupõe propriedades e qualidades que não variam

entre eles, devendo, por isso, ser apresentadas por todos os membros da categoria

conceituada.

A propósito, aponta Benoit Hardy-Valée:

Os conceitos são universais, abstratos, organizados sistematicamente, que aplicam a representação de propriedades invariantes de uma categoria de objetos particulares em função de um critério. O conceito serve diferentes funções epistemológicas (inferência, categorização, gnosiologia, linguagem) e metafísicas (taxonomia normativa e modalidade)236.

235 HARDY-VALLÉE, Benoit. Que é um Conceito? Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola,

2013, p. 16. 236 Ibid., p. 20.

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Todo pensamento e ato de conhecer iniciam-se com palavras, expressivas de

conceitos, os quais, por implicarem noções gerais acerca das coisas, qualificam-se pela

predicabilidade: são capazes de ser predicado de vários. Quer-se com isso dizer que o

conceito assume contornos compreensivos e extensivos: é dotado de compreensão, pois

é composto de caracteres pertinentes a objetos que representa, e de extensão, pois

aplicável a certo número de coisas ou entidades, representando uma classe237. A

compreensão, enquanto conjunto de notas e características que o conceito possui, auxilia

na identificação da extensão, isto é, do grupo de elementos e indivíduos abarcados pelo

conceito, com idêntica compreensão.

Dessa maneira, conceito corresponde à significação universal atribuída ao

objeto, à forma de uso do termo em um contexto linguístico, localizando-se entre o

termo e o objeto por ele referido. Conhecer o conceito é saber empregar a palavra dentro

de uma formação linguística, do contrário, caso ignoto o conceito, o processo

comunicacional restaria prejudicado, justamente em razão da impossibilidade de

construir e transmitir mensagens.

Inexistindo uma relação de correspondência ontológica entre o conceito,

expresso pelo termo, e o objeto mencionado, mas uma relação criada artificialmente pela

linguagem, referindo-se o conceito não ao objeto em si mesmo considerado, mas à ideia

universal a ele atribuível, o conceito pressupõe um sentido já reconhecido

uniformemente por uma determinada comunidade linguística.

Todo conceito é uma suma de ideias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinado; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de ideias, não chega a ser conceito.238

Expliquemos melhor com base nas lições da Semiótica.

Toda palavra, vocábulo ou nome, enquanto signo linguístico, pressupõe, no

âmbito do fenômeno comunicacional, uma relação triádica culturalmente estabelecida

237 Cf. DANILEVICZ, Igor. Contribuições: do conceito à definição. Direito Tributário em Questão –

Revista da FESDT/Fundação Escola Superior de Direito Tributário, v. 1, n. 1. Porto Alegre: FESDT, 2008, p. 108.

238 GRAU, Roberto Eros. Ensaio e discurso sobre a Intepretação – Aplicação do Direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 231.

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entre seu (i) suporte físico (porção material do signo, relativa a tudo aquilo captado pelas

funções sensoriais do ser humano – fonemas e grafemas); (ii) significado (conceito geral

que se tem acerca do dado físico em um determinado contexto cultural)239 e (iii)

significação (ideia ou conceito individualizado sobre o significado, que é suscitado na

mente do intérprete). A partir do momento em que travamos contato com o signo que

tem início o processo de atribuição de sentidos: interpreta-se o suporte físico (termo),

dando origem ao significado (conceito geral) para fazer referência a determinado objeto;

em seguida, interpreta-se o significado, surgindo a significação (conceito particular).

Pois bem, se todo termo que empregamos corresponde a um significado, a

uma classe, mais ou menos extensa, de objetos por ele designados, sempre é possível

deduzir o seu conteúdo semântico. Quando criamos nomes, recortamos a realidade a fim

de identificar aquele corte que, conforme a nossa decisão, corresponde ao nome

inventado. E ao emprestarmos um nome, uma palavra, para cada corte, para cada ideia,

retratando-a num suporte físico, realiza-se a comunicação, possibilitando-nos fazer o

uso e a menção dessa ideia, dessa noção, em um discurso qualquer. Como já dizia Vilém

Flusser: “As palavras são apreendidas e compreendidas como símbolos. Isto é, como

tendo significado. Substituem algo, apontam para algo, são procuradores de algo”240.

Não é diferente no campo do direito positivo, que manifesta-se e constitui-se

pela linguagem. Toda palavra utilizada na produção dos textos jurídicos designa algo e

possui um significado, segundo determinados critérios. Pressupor um conceito jurídico,

convencionalmente estabelecido, é condição necessária para a aplicação das normas

jurídicas com um mínimo de certeza e segurança. Do contrário, se os termos jurídicos

fossem desprovidos de sentidos, os vocábulos empregados pelo legislador

consubstanciariam meros “ruídos”, sem qualquer direção semântica, o que tornaria a

comunicação jurídica inviável. Como compreender o comando da norma do ICMS-M e

do ISS de competência dos Estados e Municípios e, com isso, pautar a conduta no campo

da licitude, sem conhecer o conteúdo semântico dos signos mercadoria e serviço?

239 Sob a perspectiva ontológica entende-se que o “significado” consiste no objeto, verificado no mundo

concreto, a que se refere o suporte físico. Contudo, adotando a concepção filosófica inaugurada pelo “giro-linguístico”, não há que falar em referência ao objeto em si mesmo considerado, pois só conhecemos as manifestações linguísticas das experiências.

240 FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2007, p. 40.

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É plenamente possível que uma mesma palavra apresente duas ou mais

acepções, deflagrando-se assim a ambiguidade. Também consubstancia característica

inerente aos vocábulos a vaguidade, revelada quando ainda não estão devidamente

delimitados quais objetos estão compreendidos pelo conceito, impedindo de distinguir

um significado de outro. De acordo com Aurora Tomazini de Carvalho, a vagueza

corresponde à “uma zona de penumbra” que se consolida pela “carência de designação

precisa”241.

Tais problemas semânticos, que prejudicam a comunicação, podem ser

melhor solucionados por meio do processo de elucidação dos conceitos, em que o

intérprete explicita a forma de uso do termo utilizada no discurso. Definem-se os termos

inseridos na realidade linguística em que foram emitidos, atentando-se às concepções

sociais, econômicas, políticas ou jurídicas predominantes. Toda vez que um termo,

aplicado em um mesmo discurso, refere-se a um conceito distinto daquele anteriormente

elucidado, faz-se necessário realizar outro processo de elucidação, esclarecendo o seu

sentido pela contextualização com outros termos. Porém, se o problema da ambiguidade

tem solução mais fácil mediante a delimitação das características de um conceito, com

a vaguidade é diferente. Por mais rigorosa que seja a definição do conceito, por

utilizamos outros termos que também são vagos para explicitar suas propriedades

comuns, remanescerá um mínimo de zona de penumbra a ser remediada por outras

definições, tudo num ciclo interpretativo contínuo.

A atividade definitória, portanto, consiste na delimitação explicativa acerca

do conceito formulado. É demarcar com palavras o que se entende pelo conceito,

enunciando os critérios necessários e suficientes para ajustar determinado objeto a uma

classe. É uma valoração elucidativa que o sujeito faz a respeito dos atributos e

propriedades que conferem unidade ao objeto em meio à complexidade e

heterogeneidade do mundo. Ao delimitar em vocábulos a ideia, indicando seus

caracteres fundamentais, identifica-se melhor o uso do termo dentro do contexto, o qual

há de ser respeitado do início ao fim do discurso.

241 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-

semântico. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2014, p. 71.

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As definições dos termos/conceitos empregados na produção da linguagem

do direito positivo assumem extrema relevância, uma vez que, em alguns casos, as

significações atribuídas às palavras neles introduzidas não lhes é a usual, vale dizer, não

assumem o sentido convencionado ordinariamente, daí porque o legislador (em sentido

amplo) têm o dever de informar aos receptores da mensagem o sentido que lhes atribuiu.

Além do mais, por recorrer à linguagem natural, empregada nas conversas informais, os

termos utilizados na linguagem jurídica tendem a suscitar ideias mais imprecisas/vagas

e, potencialmente, ambíguas, o que prejudica a compreensão exata das mensagens

prescritivas.

À vista disso, qualificado o direito positivo como um sistema linguístico,

operado inevitavelmente por textos e, logo, pela utilização de conceitos, vagos e

potencialmente ambíguos, não há como proceder à atividade de aplicação do direito sem

recorrer às definições, com o objetivo de assegurar aos cidadãos o conhecimento seguro

e adequado da realidade jurídica.

Na seara do conhecimento jurídico, as definições são efetuadas em dois

níveis linguísticos: na linguagem do sistema do direito positivo e na linguagem da

Ciência do Direito. Em trabalho profícuo sobre a operação lógica de definir, Tárek

Moysés Moussallem traça os aspectos distintos entre as definições expressas no direito

positivo e aquelas levadas a cabo pela doutrina, denominadas, respectivamente, pelo

autor de definições legais e definições científicas, ambas também conhecidas, pelo

pensamento kelseniano, como interpretação autêntica e não autêntica.

A respeito das primeiras, que mais nos interessam para os propósitos do

presente estudo, esclarece Moussallem que “podem ser vistas como atos de fala cujos

aspectos perlocucionários” visam a “influenciar ou dirigir a atividade do intérprete na

construção de sentido normativo”242. Destinam-se a auxiliar a construção das normas

jurídicas e, a despeito de assumirem efeito prescritivo-vinculante, sempre apresentam

feições relativas, porquanto não há nenhuma garantia de que o legislador empregará os

termos/conceitos no mesmo sentido em textos editados posteriormente. Sobre a

formulação das definições legais complementa Moussallem que, ao delimitar os

242 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Sobre as definições. In: BRITTO, Lucas Galvão (Org.);

CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016, p. 264.

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contornos da realidade normativa, “não só pode, mas muitas vezes, deve o legislador

inserir novos conceitos ou redefinir antigos […] para imprimir fronteiras à atividade do

destinatário do direito positivo (intérprete/aplicador)”243.

No tocante às segundas, compõem-se por um plexo de proposições

descritivas e formuladas em sobrenível discursivo, com o escopo de transmitir o

conhecimento e as informações sobre as normas jurídicas. Como o cientista deve manter

um discurso coerente, a salvo de contradições, registra o autor que as definições

científicas “exercem importante função, pois ocupam as posições centrais do núcleo

rígido da teoria a ser desenvolvida”244.

É oportuno realçar que a interpretação do direito feita pela Ciência do Direito

é apenas “determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas”245, como escreve

Hans Kelsen, pois somente aquele a quem o sistema jurídico, pela norma de

competência, outorga poderes para positivar normas – o aplicador do direito - é quem

as faz ter validade, possuindo tal aptidão o legislador, como também agentes da

administração pública, juízes e particulares. Tanto o aplicador do direito quanto o jurista

interpretam os textos do direito posto enquanto ato de conhecimento e formulam, a partir

dos termos positivados, noções, ideias, ou conceitos de cunho prescritivo, em perfeita

consonância com a relação triádica pela qual é estruturada o signo. Ambos criam,

portanto, normas jurídicas, percebendo que dado o fato “F”, então dever ser a

consequência “R”, prescritora de direitos e deveres correlatos.

“Reservar a uma seleta classe de sujeitos, ditos competentes, o papel

exclusivo da construção de sentido das normas jurídicas é negar o direito como sistema

comunicacional”246, regulador das condutas interpessoais. Isso porque a suposição de

que o processo de interpretação dos textos de lei é realizado tão somente pelo aplicador

do direito é o mesmo que pressupor, em disparate, a impossibilidade de os cidadãos

243 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Sobre as definições. In: BRITTO, Lucas Galvão (Org.);

CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016, p. 265. 244 Ibid., p. 266. 245 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2009, p. 395. 246 GAMA, Tácio Lacerda. Obrigação e crédito tributário: anotações à margem da teoria de Paulo de

Barros Carvalho. CheckPoint, São Paulo: Thomson Reuters, 29 set. 2003. Disponível em: ˂http://artigoscheckpoint.thomsonreuters.com.br/a/2fct/obrigacao-e-credito-tributarioanotacoes-a-margem-da-teoria-de-paulo-de-barros-carvalho-tacio-lacerda-gama˃. Acesso em: 20 set. 2016.

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conhecerem a linguagem do direito positivo e, consequentemente, acatarem as condutas

impostas.

Interpretar como ato de conhecer o direito, que pode ser procedido por

qualquer indivíduo, é distinto de interpretar como ato de aplicar o direito, executado

exclusivamente pelo sujeito competente. Caso os conceitos ou normas jurídicas sejam

revestidos em linguagem escrita, a definição empreendida somente será documento

normativo, i.e., direito positivo, quando o agente competente assim o fez segundo

procedimento previsto em lei. Ao passo que ao jurista somente é possível construir a

linguagem da Ciência do Direito, uma vez que não detém legitimidade para regular o

comportamento humano. Assim, definidos os conceitos prescritivos pelo jurista ter-se-

á Ciência do Direito; se pelo aplicador competente, direito positivo.

A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito247.

Em simples assertivas concludentes: ainda que o cientista julgue uma

interpretação correta ou incorreta, é a autoridade competente quem diz o que é válido

ou inválido, qual a definição integrará o sistema do direito positivo, capaz de regular

condutas inter-humanas. Como efeito dessa relação dialógica entre essas modalidades

linguísticas, a Ciência do Direito influencia o direito positivo, mas não o condiciona.

1.4.1.1.1 Enunciações conotativa e denotativa como formas de elucidar o

campo de aplicabilidade dos conceitos jurídicos

Dentre as formas de delimitar o espectro de aplicabilidade de um conceito,

tem-se a denotação (extensão) e a conotação (intensão). Enquanto que, na conotação,

enumeram-se os critérios de uso de uma palavra, indicando suas características comuns

que permitem inserir determinados objetos sob o manto de um mesmo termo/conceito,

na denotação, enunciam-se os objetos particulares – indivíduos ou membros -

247 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2009, p. 395-396.

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nominados pelo termo. A definição conotativa abrange todas as possibilidades

semânticas do termo a ser utilizado em um discurso, ao passo que a definição denotativa

aponta o elemento que pertence à classe ou conjunto referido pelo termo. Proceder a

modificações nos critérios adotados na conotação alteram substancialmente a denotação.

Sobre esses institutos definitórios elucidam Ricardo Guibourg, Alejandro

Gigliani e Ricardo Guarinoni:

El conjunto de todos los objetos o entidades que caben en la palabra ‘ciudad’ se llama la denotación de esta palabra. […]. Es conjunto de estos requisitos o razones, es decir, el criterio de uso de una palabra de clase (determinante y demostrativo del concepto correspondiente) se llama designación de esa palabra. 248

No intento de melhor ilustrar as diferenças entre a definição conotativa e

denotativa, tomemos como exemplo o termo “tributo”. Conotativamente, tributo pode

ser definido, nos termos do art. 3º do Código Tributário Nacional, como “toda prestação

pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não

constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade

administrativa plenamente vinculada”. Enquanto que enunciar “ICMS”, “ISS”, “IRPJ”

e “CSLL” é definir de forma denotativa.

Convém anotar que o emprego de definições denotativas, no campo da

Ciência do Direito, deve ser preterido pelo uso de definições conotativas, justamente

porque aquelas restringem-se a apontar um elemento particular da classe e, por isso,

acabam por reclamar uma definição conotativa, edificante do conteúdo semântico

aplicado no contexto. Por elegerem as características definitórias do conceito, a

conotação é mais apropriada para a excelência do conhecimento científico.

No âmbito do direito positivo, o uso das definições conotativas transparece

já no ato de propositura das leis. O legislador, ao editar normas para regular

determinadas condutas, utiliza-se de modelos linguísticos gerais e abstratos que

possuem maior extensão conceptual. Referidas normas são compostas de enunciados

conotativos, apontando, no seu antecedente, os critérios ou notas que os eventos

precisam ter para pertencer à determinada classe de fatos condicionantes da realização

248 GHIGLIANI, Alejandro; GUARINONI, Ricardo; GUIBOURG, Ricardo. Introducción al

conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000, p. 26.

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de certas consequências, e, no seu consequente, os critérios e notas identificadoras da

relação jurídica apta a produzir efeitos assim que instaurada em decorrência da

imputação normativa.

As previsões genéricas e abstratas amoldam-se à atividade jurídica na medida

em que, por conservar a linguagem conotativa uma certa vagueza, com a eleição de

traços tidos como mais relevantes para a identificação do objeto empírico,

representativos não do real, mas de um ponto de vista sobre o real, permitem albergar

as oscilações irrepetíveis e inesgotáveis dos eventos verificados no plano concreto.

A conotação será sempre marcada por algum grau de vagueza, pois precisa abranger os elementos de um conjunto que não se entrega pronto e acabado, muito menos conhecido em todos os seus infindáveis aspectos. É por isso que certos termos como tipo penal, hipótese tributária, contrato de compra e venda, são expressões que encerram sempre alguma vagueza, pois precisam permanecer abertas à variabilidade e infinitude do fenômeno que pretendem descrever249.

Em contrapartida, a enunciação de textos jurídicos na forma denotativa,

elencando uma a uma as situações, com intento de esgotar as possibilidades factuais,

revela técnica insatisfatória diante da impossibilidade de o legislador prever e dispor

sobre todas as ocorrências futuras. Deste modo, ante a imensidão e a complexidade das

relações interpessoais, o emprego de enunciados jurídicos conotativos na edição de

normas gerais e abstratas permite a produção de normas individuais e concretas de forma

contínua e duradoura, atenta à contemporaneidade das variações empíricas.

1.4.2 Interpretação jurídica e os axiomas da intertextualidade e da

inesgotabilidade

Recapitulando reflexões anteriores, o direito positivo, enquanto fenômeno

comunicacional, se manifesta exclusivamente por intermédio da linguagem,

especificamente a verbal-escrita, pré-ordenando os comportamentos possíveis no

entrelaçamento do convívio social. É por meio de manifestações linguísticas que um

fato social é juridicizado para integrar a hipótese normativa de uma dada lei. Também a

249 BRITTO, Lucas Galvão de. Sobre o uso de definições e classificações na construção do

conhecimento e na prescrição de condutas. In: BRITTO, Lucas Galvão (Org.); CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016, p. 349.

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incidência normativa, geradora da norma individual e concreta, realiza-se mediante

manifestações linguísticas.

Por efeito do princípio da autorreferencialidade da linguagem, a realidade

jurídica é criada pela própria linguagem do direito posto. Nada ingressa no sistema

jurídico-prescritivo senão pela forma por ele próprio preconizada: a forma normativa.

Sem norma, sem linguagem competente, um fato jamais adquire qualificação jurídica.

Cumprem esse papel constitutivo da realidade jurídica tanto as normas gerais e abstratas

e gerais e concretas como as individuais e abstratas e individuais e concretas, ou seja,

todo o conjunto de enunciados jurídico-prescritivos introduzidos pelos órgãos

competentes - Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e também os particulares.

Considerando que a realidade jurídica é linguística, conformada pelos

enunciados válidos introduzidos pelos órgãos competentes, qualquer intérprete – jurista,

aplicador ou profissional do direito – que se propõe a investigar, estudar e interpretar o

direito tem que recorrer ao manuseio dos textos jurídicos, ao corpus por meio do qual o

direito se exterioriza, adjudicando-lhes significações e, por intermédio dessas, fazendo

referências às condutas reguladas.

Apenas é possível imitir-se no conhecimento da ordem jurídica posta através

da literalidade textual, pelo contato com a forma que se apresenta o signo jurídico para

então conhecer o âmago do seu significado e atribuir-lhe significação. Sem forma,

nenhum fato existe para o direito, pois é por meio do seu plano de expressão, veiculador

introdutório de normas, que se tem acesso ao plano de conteúdo, possibilitando

compreender o fenômeno jurídico. Existindo forma, o sujeito aproxima-se dela pela ação

interpretativa, ingressando no campo da subjetividade para construir a mensagem

jurídica: “a forma passa a implicar um conteúdo”250.

Nunca é demasiado insistir que, à luz do movimento do giro linguístico, não

se extrai o sentido que está oculto nas palavras e vocábulos. Na trajetória da

interpretação, o exegeta, em contato com literalidade textual, constrói os conteúdos

significativos dos enunciados prescritivos, em função das circunstâncias culturais e

ideológicas que informam o seu contexto. O suporte físico é apenas o ponto de partida,

250 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 191.

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a instância material, para o desenvolvimento hermenêutico, pressupondo todo texto um

sistema de referência que lhe seja subjacente. Com efeito, não há texto sem contexto,

pois, na qualidade de objeto cultural, todo texto encontra-se inserido numa conjuntura

histórico-social onde influem posicionamentos ideológicos. Do contrário, se o sentido

estivesse contido no próprio texto positivado, independentemente do contexto

circundante, como então explicar decisões divergentes e posicionamentos díspares entre

os membros da comunidade jurídica tomando como base um mesmo suporte físico?

Assente nessas premissas, já podemos afirmar, com segurança, que

interpretar a linguagem do direito é outorgar sentidos aos textos positivados e, com isso,

delimitar o alcance semântico da mensagem legislada, construindo normas jurídicas. As

normas jurídicas são as significações formuladas pelo exegeta com base nos suportes

físicos dos enunciados prescritivos: a cada enunciado corresponderá uma significação.

Nessa difícil tarefa de atribuir valores aos símbolos, sobressaem dois axiomas

inerentes à interpretação: a intertextualidade e a inesgotabilidade.

A intertextualidade é procedimento constitutivo dos textos na medida em que

todo enunciado é construído a partir de outro enunciado251, num incessante diálogo

interdiscursivo: conteúdos conversam com outros conteúdos. Para apreender o sentido

de um texto, não basta considerá-lo de forma isolada, restringindo-se o intérprete a

identificar apenas o significado dos signos que se quer interpretar. O comando de uma

determinada norma jurídica está em constante diálogo com os comandos de outras

normas jurídicas e, numa perspectiva mais ampla, com significações doutrinárias,

econômicas, políticas, sociais etc. Se todo texto é dialógico, é preciso perceber as

relações que ele estabelece com outros textos.

A linguagem do direito positivo como texto apresenta duas formas de

interação textual: a intertextualidade interna ou intrajurídica e a intertextualidade

externa ou extrajurídica. Na primeira relação dialógica, o intercâmbio de comunicações

é intrassistêmico, em que as conversas são estabelecidas entre as unidades normativas

advindas dos vários ramos do direito posto (normas de lei ordinária dialogando com

preceitos constitucionais, lei nova dialogando com lei revogada etc.). Na segunda, o

251 FIORIN, José Luiz. Introdução do Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006, p. 19.

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sistema do direito positivo relaciona-se cognoscitivamente com outros sistemas (social,

econômico, político, científico, etc.), firmando conversas extrassistêmicas.

Relativamente a esse intenso dialogismo linguístico, convém sempre

recordar que os conceitos e as definições não circulam livremente, senão pelo imperioso

caminho da recepção pela linguagem do direito positivo. Como decorrência imediata da

autopoiese do sistema do direito positivo, dotado de autonomia e autorreprodução,

participando sua linguagem da sua própria constituição, o sistema jurídico não pede

emprestado conceitos de fatos de outras disciplinas para construir sua realidade, seu

objeto, suas categorias e unidades de significação 252, de tal sorte que seus enunciados

prescritivos não se confundem ou se alteram com o emprego de outras camadas

linguísticas (linguagem social, linguagem contábil-econômica, linguagem política etc.).

Quer-se com isso consignar que, a despeito do dialogismo existente entre os

textos do direito positivo com outros textos, somente interessa ao direito aquilo que for

vertido em linguagem prescritiva, a qual colhe da linguagem social, contábil, financeira,

dentre outras, os conceitos de fatos que reputa relevantes para compor os enunciados

prescritivos e definir hipóteses normativas. Com amparo na máxima do mundo do ser

não se transita livremente para o mundo do dever ser, “para que um conceito seja

juridicamente relevante, ele deve estar no interior do sistema do direito positivo”253.

A Contabilidade, por exemplo, não cria, modifica ou extingue por si só

direitos e deveres. Cabe-lhe apenas realizar os registros quantitativos e qualitativos da

dinâmica patrimonial das empresas, retratando os acontecimentos relacionados, direta

ou indiretamente, à vida negocial das entidades empresariais. Um conceito contábil, para

ingressar no sistema jurídico, se submete ao filtro do próprio direito positivo, o qual irá

defini-lo em termos jurídicos. Igualmente eventos sociais, destituídos de linguagem

competente, não acarretam modificações no conjunto das normas jurídicas válidas. A

realidade social assume relevância para o direito na medida em que seus fatos, imersos

na multiplicidade intensiva e extensiva do real-social, são colhidos, segundo

procedimento previsto em lei, pela autoridade competente, que lhes imputa eficácia

252 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo:

Noeses, 2015, p. 231. 253 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Sobre as definições. In: BRITTO, Lucas Galvão (Org.);

CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016, p. 251.

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jurídica. É a linguagem do direito positivo incidindo sobre a linguagem social, formando

a linguagem da facticidade jurídica.

Vê-se que a autopoeise da linguagem do direito positivo traduz um

fechamento sintático e uma abertura semântica: o sistema é fechado operativamente,

pois somente o direito cria a sua própria realidade, mediante a autogeração normativa e,

ao mesmo tempo, é aberto cognoscitivamente por sofrer, quando se autorreproduz, o

influxo de fatores externos, num ciclo interpretativo contínuo, receptor de novas

ocorrências factuais, com o fim de manter o sistema do direito positivo contemporâneo

à realidade social.

A inesgotabilidade, por sua vez, corresponde ao caráter infinito de que é

provida a trajetória da interpretação. Os textos jurídicos estão sempre sujeitos ao

processo interpretativo, em que uma lei é interpretada e reinterpretada diversas vezes,

num ciclo contínuo e interminável, motivado pelas alterações sociais e temporais que

sofrem os seres humanos e, consequentemente, transformam os planos semânticos e

pragmáticos em que estão inseridos.

Tendo em vista que as concretudes do universo circundante estão em

constante mutação e expansão, dando origem a novos negócios e atos jurídicos, a

linguagem do direito positivo não permanece inalterável ou finita, subsistindo, no labor

interpretativo, possibilidades de atribuir novos valores aos símbolos e cada uma dessas

possibilidades resulta em uma interpretação diferente acerca do suporte físico. Toda

palavra, todo texto pode ser reinterpretado infinitamente.

Paulo de Barros Carvalho, sempre preciso em seus ensinamentos, elucida

sobre a flagrante instabilidade semântica que acompanha a vida das palavras na

linguagem do direito positivo, decorrência direta da dinâmica da convivência humana

em produzir, numa sequência inexaurível, novas manifestações de relacionamentos

sociais:

A instável relação entre os homens, no turbulento convívio social, gera inevitáveis mutações semânticas, numa sucessão crescente de alterações que se processam no interior do espírito humano. Aquilo que nos parecia objeto de inabalável convicção, em determinado momento de nossa existência, fica desde logo sujeito a novas conformações que os fatos e as pessoas vão suscitando, no intricado entrelaçamento da convivência social. O mundo experimenta mudanças estruturais de configuração sob todos os ângulos de análise que possamos imaginar.

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E essa congênita instabilidade, que atinge as quatro regiões ônticas, está particularmente presente no reino dos objetos culturais, território onde se demoram as prescrições jurídico-normativas. Os signos do direito surgem e vão se transformando ao sabor das circunstâncias. Os fatores pragmáticos, que intervém na trajetória dos atos comunicativos, provocam inevitáveis modificações no campo de irradiação dos valores significativos, motivo pelo qual a historicidade é aspecto indissociável do estudo das mensagens comunicacionais254.

Da imprevisibilidade e infinidade das manifestações sociais advém a grande

dificuldade em padronizar conteúdos jurídicos de termos e expressões positivadas no

ordenamento. Novas ocorrências empíricas provocadas pela variabilidade das relações

sociais podem ensejar mutações semânticas, com a introdução de novos conceitos,

modificando os critérios pertinentes a uma determinada classe válida no sistema. Já dizia

Vilém Flusser: “cada palavra, cada forma gramatical é não somente um acumulador do

passado, mas também um gerador de todo o futuro”255.

É precisamente em razão das incertezas do real-social, aliás, bastante

fecundas na complexidade das sociedades atuais, que a linguagem do direito positivo é

expressa em termos gerais e abstratos. Pela via da conotação, o direito torna-se apto a

recepcionar as inesgotáveis variações empíricas. Sem descreverem seus enunciados

condutas objetivamente concretizadas, mas um universo possível de comportamentos a

serem regulados, seus enunciados conotativos carregam elevada carga valorativa e grau

de vaguidade, mais suscetíveis, por isso, a múltiplas possibilidades interpretativas.

Deste cenário, surge o intérprete dos textos jurídicos, aplicador do direito

posto, como condição não só para que haja a comunicação efetiva entre emissor e

receptor das mensagens jurídicas, mas também para a inelutável atualização

significativa dos textos, das normas jurídicas a incidirem sobre a região material das

condutas intersubjetivas. Os textos jurídicos, depois de editados segundo as

circunstâncias histórico-culturais à época de sua produção, se completam e se atualizam

com a colaboração do intérprete autêntico, acompanhando a infinda evolução do mundo

do ser.

254 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 209. 255 FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2007, p. 348.

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Não é por outra razão que Eros Grau afirma ser o direito contemporâneo à

realidade, sem envelhecer, nem permanecer jovem. “O Direito é um dinamismo, e isso

fazem os juízes: manter os textos adequados à realidade, adequá-los a realidade.”256

Compartilhando idêntico entendimento, posicionam-se Celso Ribeiro Bastos e

Samantha Meyer-Pflug: “através da interpretação torna-se possível a adaptação das

normas jurídicas às mudanças ocorridas no seio da sociedade, à sua natural evolução,

ou até mesmo o surgimento de novos valores e ideologias”257.

Nessa senda, o aplicador do direito, na qualidade de intérprete que detém a

competência para dizer o direito, conferindo concretude ao processo de positivação das

normas jurídicas, assume papel de vital importância, pois é ele quem imprime o

tratamento jurídico atualizado à conjuntura das condutas reguladas, numa construção

contínua de normas jurídicas, o que só é possível, frise-se, por constar a linguagem

jurídico-prescritiva expressa em modelos linguísticos gerais e abstratos. O aplicador do

direito, quando interpreta os textos jurídicos, revertendo as significações prescritivas em

linguagem competente, cria novos enunciados prescritivos, ampliando a realidade

jurídica. Deveras, o direito surge mediante atos de enunciação, atos interpretativos,

sendo-lhe pressuposto sua contínua expansão, revisão e alteração no decorrer do tempo.

Não há dúvida de que, nesse ininterrupto percurso construtivo de sentidos,

desde o contato com os termos até a formulação das normas jurídicas, influi a

subjetividade do aplicador que, tendo como suporte físico enunciados conotativos,

atribui valores aos vocábulos de acordo com o uso que faz deles no seu sistema de

referência. Diante desse caráter retórico que marca as mensagens legisladas, indaga-se:

quais os limites dessa atividade interpretativa? Até onde vai a liberdade de interpretar

do aplicador?

Pretende-se, com tais indagações, refletir nas próximas linhas, inspirando-se

neste desiderato científico, em que medida a interpretação dos enunciados do nosso

sistema constitucional tributário autoriza as pessoas políticas, competentes para instituir

256 Interpretação da lei tributária e segurança jurídica. Revista de Direito Tributário, São Paulo:

Malheiros, n. 113, 2011, p. 223. 257 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de

desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Coord.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 157.

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impostos, a abarcar as novas situações tecnológicas e, por conseguinte, definir seus

aspectos jurídicos, a fim de que a potestade tributária abarque essa multidiversidade

factual, sempre, é claro, em observância às diretrizes do direito posto.

1.4.3 Texto e contexto: os limites do aplicador do direito na construção dos

conceitos constitucionais

Vimos de ver que os textos jurídicos vão ganhando sentido por meio da

interpretação contínua daqueles que detêm o poder de prescrever condutas. Como

sistema autopoiético que é, o direito positivo transforma-se e amplia-se pelo fluxo

progressivo de decisões proferidas pelos aplicadores do direito, revelando-se em novas

leis, novas sentenças, novos atos administrativos e em várias outras espécies normativas.

Afirmar, contudo, que os sentidos jurídicos são construídos pelo intérprete, suportando

o processo interpretativo os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade, não

implica ausência de limites na atividade hermenêutica da linguagem do direito positivo,

conforme, aliás, já se pronunciou a nossa Corte Suprema:

Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício gratificante da arte de interpretar, é vedado ao intérprete inserir na regra de direito o próprio juízo - por mais sensato que seja - sobre a finalidade que ‘conviria’ fosse por ela perseguida258.

É por idêntico raciocínio que Lourival Vilanova censura a atividade

jurisdicional baseada nas impressões pessoais do julgador, como se o ordenamento

jurídico não fosse o limite. Argumenta que, quando julga, o juiz implica, em rigor, o

Estado sentenciando em prol do interesse público, sujeitando-se a arte de julgar aos

limites fixados pelo próprio sistema do direito positivo. Vale a menção de suas palavras:

Decidir não segundo um critério pessoal seu, mas segundo medidas objetivas, que não as pode desfazer, importa para o julgador em dessubjetivar-se, também, incorporando-se como membro da

258 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 166.772/RS. Relator: Ministro

Marco Aurélio. Julgamento: 12 maio 1994. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 16 dez. 1994.

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comunidade e órgão dela. O juiz, nesse aspecto, impessoaliza-se ao meramente cumprir o direito, como qualquer cidadão, e impessoaliza-se como órgão julgador da comunidade, pois, julgando, é a comunidade por meio dele, juiz, que ajuíza e sentencia.259

Por certo, a despeito da liberdade estipulativa que é conferida ao aplicador

do direito, o ato de atribuir sentidos aos enunciados jurídicos não é arbitrário, porquanto

toda intepretação é balizada na moldura de cada língua. A construção de sentidos é

delimitada pelo próprio texto e o seu contexto. A respeito desses limites da interpretação

jurídica logo esclarece Paulo de Barros Carvalho que todo ato interpretativo tem por

base “o texto: nele tem início, por ele se conduz e, até o intercâmbio com outros

discursos, instaura-se a partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico-positivo e o

ingresso no plano de seu conteúdo tem de levar em conta as diretrizes do sistema”260.

Dado que se parte do texto - matéria prima – para a construção das normas,

esse é o limite-primeiro à interpretação. Toda atividade interpretativa vincula-se aos

textos positivados introduzidos pelos veículos legislativos, devendo o intérprete partir

sempre dos enunciados prescritivos válidos no ordenamento.

Com arrimo nas lições de semiótica, já objeto de nossas reflexões, aos termos

utilizados pelo legislador correspondem conceitos, veiculadores de um conjunto de

ideias, de um conteúdo semântico consagrado com o passar do tempo, quer pelos usos

linguísticos gerais, preexistentes no seio da sociedade, quer principalmente pelos usos

linguísticos específicos261 pensados no seio da comunidade jurídica, decorrentes da

atuação dos órgãos competentes e, de forma mediata, do labor doutrinário, cujos estudos

descritivos servem para auxiliar na motivação dos processos decisionais.

As formas de uso específica dos termos jurídicos enunciados pelo legislador

(em sentido amplo), no contexto do direito positivo, são fundamentais para direcionar o

processo de interpretação e aplicação das normas, reduzindo as variantes semânticas dos

vocábulos e palavras positivadas e estruturando as fronteiras da atuação do exegeta. E

259 VILANOVA, Lourival. O poder de julgar e a norma. Escritos Jurídicos e Filosóficos. V. 1. São

Paulo: Axis Mundi/IBET, 2003, p. 357-358. 260 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 205. 261 Cf. nomenclatura adotada por Karl Larenz (Metodologia da Ciência do Direito. 4. ed. Trad. José

Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005).

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ainda que autorizado o abandono da “regra de prevalência do uso linguístico jurídico”,

a definição de conceitos jamais dependerá do “arbítrio do intérprete, que, sempre sujeito

a limitação pelos usos linguísticos, deverá ater-se ao âmbito semântico do uso linguístico

geral, se outro não existir262.

O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados os institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força dos estudos acadêmicos, quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios263.

Partindo-se então do plano da expressão, a construção dos sentidos dos

enunciados jurídicos pelo exegeta, além de estar condicionada aos horizontes culturais

e ideológicos daquele que interpreta, há de levar em conta as formas de uso dos termos

dentro do contexto ao qual o texto pertence, vale dizer, os conceitos empregados pelos

utentes da linguagem. Dentre as possibilidades interpretativas, a forma de uso

preexistente, moldurada pela cultura, figura como um passo inicial – mas não suficiente

- para demarcar os parâmetros significativos dos termos positivados, pois é de rigor

averiguá-la dentro do particular contexto normativo. É no próprio contexto jurídico,

resultante do complexo prescritivo sedimentado, de tempo em tempo, pelos

participantes do sistema jurídico, sejam legisladores, administradores e, principalmente,

julgadores, onde o aplicador do direito deve, acima de tudo, considerar os conceitos e

respectivas definições utilizadas.

Ressaltando a importância das relações pragmáticas, que interferem no

processo comunicacional-jurídico, para a demarcação dos limites da interpretação da

linguagem do direito positivo, assevera Sônia Mendes, alicerçada nos ensinamentos de

Ludwig Wittgenstein, Umberto Eco, Paulo de Barros Carvalho, Gregorio Robles e

Vilém Flusser:

[…] os limites do intérprete ou a procura do sentido do enunciado normativo deve ser buscado […] não apenas no sentido literal, mas no uso que é feito dentro do contexto jurídico, mais especialmente, no

262 VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005, p. 146. 263 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 166.772/RS. Relator: Ministro

Marco Aurélio. Julgamento: 12 maio 1994. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 16 dez. 1994.

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contexto das normas, dos intérpretes/juízes […]. Portanto, deve-se buscar os usos, criando standards, tanto dos paradigmas legislativos, desde os dados pela Constituição até os das normas infralegais; como nos paradigmas jurisdicionais, desde as técnicas até às construções jurisdicionais, como por exemplo, os princípios264.

Ora, se os textos jurídicos se constituem pelo incessante diálogo

interdiscursivo, em que normas conversam com outras normas, inexistindo enunciados

prescritivos de forma isolada, o sentido a ser atribuído ao suporte físico deve estar

adequado à integralidade do contexto normativo. A definição de conceitos jurídicos

empreendida pelo aplicador deve observar o contexto do direito positivo, que é o sistema

de referência onde a ação hermenêutica irá ser operada. Não se pode esquecer também

que a linguagem da Ciência do Direito e a linguagem do direito positivo dialogam entre

si e, apesar das intepretações científicas não serem dotadas de coatividade, as definições

doutrinárias influem, mediatamente, no contexto jurídico, porquanto orientam a

produção de textos prescritivos, em particular a fundamentação de julgados proferidos

pelo Poder Judiciário.

Nesse perene dialogismo da comunicação jurídica, adverte Tácio Lacerda

Gama que, em razão da inesgotabilidade da ação interpretativa, o grande problema está

em legitimar a significação proposta: “os problemas de sentido não são superados pelas

definições, mas sim pelas técnicas de legitimação que empregamos para que uma

(definição) seja aceita por interlocutores no lugar de outra”265. Esclarece o autor que,

no processo de aceitação de um sentido em detrimento de outro, “aquele que prescreve

condutas e, portanto, fala em nome do sistema jurídico […], tem o dever de ser coerente

com o próprio sistema e com outras interpretações suscitadas pelo próprio sistema”. A

proposição, complementa, “será tanto mais legítima quanto maior for a coerência com

264 MENDES, Sonia. Interpretação jurídica: um diálogo entre diferentes contextos. In: HARET,

Florence; CARNEIRO, Jerson (Coords.). Vilém Fluser e juristas: comemorações dos 25 anos do grupo de estudos de Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, 2009, p. 192.

265 GAMA, Tácio Lacerda. Sentido, consistência e legitimação. In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson (CoordS.). Vilém Flusser e juristas: comemorações dos 25 anos do grupo de estudos de Paulo de Barros Carvalho São Paulo: Noeses, 2009, p. 232.

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o sistema que faz parte”266. Em suma, ainda que haja uma definição, ela deve ser aceita.

E ela é aceita se coerente, de acordo com o contexto jurídico.

Ainda no tocante à legitimação da interpretação, é preciso ter em mente que

a intertextualidade no âmbito do sistema do direito positivo é ordenada e hierarquizada:

requer o envolvimento do intérprete com as proporções inteiras da sistemática jurídica,

percorrendo as partes de mais alta hierarquia e de lá retornando com os vetores

axiológicos supremos, ditados pelas normas constitucionais, principalmente as diretrizes

principiológicas. A maior ou menor aceitação da definição proposta está diretamente

relacionada ao grau hierárquico em que se situa a competência da autoridade que emitiu

o veículo introdutor normativo.

Logo, para a devida aceitação de um discurso prescritivo, é fundamental que

os agentes competentes, ao realizarem a incidência normativa, edifiquem o plano de

conteúdo da linguagem do direito positivo em obediência às relações de hierarquia

presentes no sistema jurídico-prescritivo, atentos assim à dinâmica interpretativa própria

do âmbito contextual em que operam, o qual, fundado nas denominadas regras de

estrutura, impõe menor nível de liberdade na criação de normas prescritoras de condutas,

conforme esclarece Tárek Moysés Moussallem:

[…] o direito positivo por meio de regras de estrutura limita a atividade do intérprete/aplicador. Por isso não é qualquer sentido que pode ser atribuído pela União Federal, Estados, Municípios às palavras renda, serviço, mercadoria, tributo, funcionário público e várias outras. Se assim fosse de nada valeriam os textos legais267.

Por derradeiro, depois das colocações aqui meditadas, forçoso concluir que,

embora a doação de sentidos esteja sempre imbuída pela subjetividade daquele que trilha

a trajetória da interpretação, variando as relações significativas construídas em função

das suas crenças e valores, a tomada de decisões pelo aplicador do direito por uma

definição jurídica em detrimento das demais há sempre de considerar os limites textuais

266 GAMA, Tácio Lacerda. Sentido, consistência e legitimação. In: HARET, Florence; CARNEIRO,

Jerson (CoordS.). Vilém Flusser e juristas: comemorações dos 25 anos do grupo de estudos de Paulo de Barros Carvalho São Paulo: Noeses, 2009, p. 249.

267 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Interpretação restritiva no direito tributário. In: SOUZA, Cecília Priscila de (Org.). Direito tributário e os conceitos de direito privado. São Paulo: Noeses, V. 7, p. 1215-1216, 2010, p. 1215-1216.

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e contextuais impostos pelo ordenamento, articulando as normas em harmonia com as

diretrizes do sistema do direito positivo.

Atenta às circunstâncias referenciais presentes quando da edição da lei e

também no momento da sua interpretação, a autoridade competente, no processo de

positivação das normas, tem de produzir sentidos de um texto considerando sua relação

com os demais pertencentes à realidade posta, sendo-lhe vedado desprezar a hierarquia

sistêmica, a pragmática legislativa e jurisprudencial, bem como embrenhar-se em planos

linguísticos alheios ao direito posto, sob pena de tornar incoerentes - logo, ilegítimas e

inaceitáveis - as significações jurídicas produzidas.

1.4.4 Art. 110, CTN: a confirmação de que usos linguísticos utilizados no

contexto jurídico repercutem na definição do conceito constitucional

Diz-se que o direito tributário se caracteriza como linguagem de

“sobreposição”, aplicável sobre outros arranjos jurídicos que lhe precedem, pois colhe

ocorrências – fatos ou seus efeitos – juridicizadas por outros ramos do direito e confere-

lhes tratamento fiscal. Especificamente na organização dos impostos, tendo em vista que

a sua tributação recai sobre eventos relacionados aos particulares e que revelam

conteúdo econômico, constata-se que a Constituição, na outorga das competências

tributárias à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, reporta-se a formas e

institutos já regulados pelo direito privado. Assim ocorre quando dispõe sobre os

impostos incidentes sobre a propriedade de veículos automotores, as operações de

crédito, câmbio e seguro e relativas a títulos imobiliários, as operações de circulação de

mercadorias, a transmissão causa mortis de bens, as doações, a prestação de serviços, a

propriedade imobiliária e a transmissão inter vivos onerosa de imóveis e direitos reais

sobre eles.

Eis as razões pelas quais o art. 110 do Código Tributário Nacional, ao regular

sobre a interpretação da legislação fiscal, desautoriza o legislador e demais aplicadores,

no exercício de suas competências tributárias, a desprezar o conteúdo, o alcance e a

definição dos institutos reconhecidos pelo discurso jurídico-privado quando

empregados, expressa ou implicitamente, pelo constituinte:

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Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

A prescrição deste preceito é o reconhecimento inevitável da

intertextualidade, porquanto consigna expressamente o influxo de usos linguísticos

jurídicos na construção dos sentidos dos termos enunciados na outorga de competência

impositivas pela Constituição, restringindo a esfera de liberdade do legislador

infraconstitucional.

Não sendo o art. 110 objeto específico de nossas investigações, sabe-se,

porém, que sua interpretação rende incontáveis debates e divergências doutrinárias. De

acordo com Paulo de Barros Carvalho268, Ricardo Mariz de Oliveira269 e Luís Eduardo

Shoueri270, quando o próprio legislador constituinte não faz uso distinto da palavra

relativamente àquele encontrado no contexto da realidade civil, haveria a recepção dos

seus conceitos e institutos pela Constituição. Em idênticas reflexões, esclarece

Humberto Ávila que “se havia um conceito e o legislador constituinte resolveu não

modificá-lo pela instituição de um novo conceito, a referência à expressão significa uma

opção sua pela incorporação desse conceito legal ao ordenamento constitucional”271.

No mesmo sentido, atesta Alfredo Augusto Becker272 que “uma definição,

qualquer que seja a lei que a tenha enunciado, deve valer para todo o direito; salvo se o

legislador expressamente limitou, estendeu ou alterou aquela definição ou excluiu sua

aplicação num determinado setor do direito”. Especificamente ao tratar da interpretação

do direito tributário, esclarece Becker que a lei tributária “ao fazer referência a conceito

ou instituto de outro ramo do Direito, assim o faz, aceitando o mesmo significado

jurídico que emergiu daquela: expressão (fórmula ou linguagem literal legislativa),

quando ela entrou naquele outro ramo do direito”. Conclui, citando Ernst Blumenstein,

268 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.

118. 269 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reflexos do Novo Código Civil no Direito Tributário. Revista de

Estudos Tributários, Porto Alegre: Síntese, v. 5, n. 29, p. 117-136, jan./fev. 2003. 270 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, Capítulo IV, item 5. 271 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 205. 272 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p.

129-137.

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para ressalvar que, no silêncio do direito tributário, apenas resta autorizada a

transfiguração do conceito do direito civil quando o instituto ou o conceito de direito

privado foi empregado pelo contribuinte com a finalidade de fraudar o fisco, evadindo-

se da carga tributária.

Espelham decisões do Supremo Tribunal Federal, sustentadas nessa

identidade conceitual quando o constituinte, sem qualquer ressalva, enuncia termos

oriundos do direito privado, as proferidas: (i) no Recurso Extraordinário nº 232.467-5,

no qual se assentou que o saque em conta de poupança, por não conter promessa de

prestação futura e, ainda, porque não se revestir de propriedade circulatória, tampouco

configurando título destinado a assegurar a disponibilidade de valores mobiliários, não

pode ser tido por compreendido no conceito de operação de crédito ou de operação

relativa a títulos ou valores mobiliários, não se prestando, por isso, para ser definido

como hipótese de incidência do IOF, previsto no art. 153, V, da Carta Magna; (ii) no

Recurso Extraordinário nº 166.772, no qual decidiu-se pela inconstitucionalidade da

contribuição social incidente sobre os valores pagos a autônomos e administradores,

pois referida exigência tributária ampliava os contornos semânticos do termo

“empregador” e da expressão “folha de salários”, previstos originariamente no art. 195,

I, da CR/88, antes, portanto, da redação conferida pela EC nº 20/98; e (iii) no Recurso

Extraordinário nº 116.121, em que foi firmada a inconstitucionalidade da incidência do

ISS sobre a locação de bens móveis – atividade elencada no item 79 da lista anexa ao

Decreto-lei nº 406/68, com a redação dada pela LC nº 56/87 –, justamente porque

referida atividade não figura como elemento da classe prestação de serviços conforme

determinado conceitualmente pela terminologia constitucional do Imposto sobre

Serviços.

Andrei Pitten Velloso, em extenso e fecundo estudo sobre conceitos e

competências tributárias, avalia criticamente uma concepção predominantemente

apriorística pela recepção constitucional de conceitos aplicados na contextura do direito

privado, como se o art. 110 ordenasse o império do direito infraconstitucional e a

submissão do sistema tributário ao direito privado.

Tampouco assume o autor uma posição pela autonomia extrema do direito

tributário, segundo a qual caberia ao legislador fiscal a formulação de conceitos próprios

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e específicos, alheios a significações consagradas em outros ramos jurídicos273. Decerto,

o isolamento do direito tributário, absolutamente independente de outros textos, jamais

pode consolidar-se como ponto de partida na trajetória interpretativa, pois a

compreensão do sentido e alcance do enunciado é sempre resultante da soma de vários

outros enunciados, dispostos hierarquicamente em relações de subordinação e no mesmo

patamar em relações de coordenação274.

Com o abandono completo do intercâmbio terminológico-conceitual estar-

se-ia a encorajar a prática de arbitrariedades e a criação de analogias no âmbito da

fenomenologia da incidência tributária, a desserviço da rígida discriminação de

competências impositivas e dos princípios constitucionais tributários. Sem dúvida,

reinaria a insegurança jurídica se a presunção fosse para que cada termo, introduzido

pelo legislador e válido no sistema, recebesse um significado próprio tendo em conta

apenas o contexto jurídico específico de que faz parte, olvidando a integralidade

contextual do direito positivo.

Nesse passo, em defesa por uma linha interpretativa desprovida de

apriorismos, destaca inicialmente Andrei Pitten Velloso que o art. 110 destina-se ao

legislador infraconstitucional vedando-lhe alterar formas e institutos privados

incorporados pelo direito constitucional tributário. Não consubstancia regra de

hermenêutica constitucional, sob pena de se admitir, em última instância, que a

legislação infraconstitucional pudesse modificar a Constituição ampliando as faixas das

competências impositivas.

Com arrimo nessas premissas, afirma o jurista que o preceito em comento

preconiza, como regra, a identidade conceitual diante do silêncio do constituinte na

outorga de competências tributárias, presumindo-se, assim, a recepção tácita do conceito

preexistente no direito civil. Enquanto máxima presuntiva, conclui que é tarefa do

intérprete averiguar se o conceito prévio não se acomoda perfeitamente à construção dos

conceitos constitucionais utilizados na repartição das competências tributárias,

273 VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005,

Capítulo I. 274 Cf. SOUZA, Priscila. Intertextualidade na linguagem jurídica: conceito, definição e aplicação. In:

CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Constructivismo Lógico Semântico. V. 1. São Paulo: Noeses, 2014, p. 95.

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embasando-se o aplicador nos enunciados positivados, em especial aqueles constantes

na Constituição, e nos usos linguísticos predominantes, conforme o contexto da lei

interpretada.

Para espelhar com exatidão a linha de raciocínio defendida por Andrei Pitten

Velloso, transcreve-se passagem que bem colige seu pensamento:

Tal preceito (110, CTN) regula a possiblidade de alteração de conceitos utilizados pela Constituição, e não a utilização de conceitos pela Constituição, que é definida pela via interpretativa. Por isso, pressupõe que tenha sido acolhida determinada solução exegética (no sentido de incorporação de conceitos jurídicos preexistentes) para que incida. Exemplificando-se, apesar de o texto constitucional empregar o signo “serviço”, que conota um conceito específico no direito privado, se for concluído, com base na interpretação constitucional, que a Constituição não utilizou o conceito de direito privado, não incidirá o art. 110 do Código Tributário Nacional, pela não configuração de sua hipótese275.

Em outras palavras, se o conceito é fruto do labor interpretativo, primeiro

impõe-se firmar se o constituinte adotou o uso linguístico privado, se houve a

incorporação de acepções prévias em decorrência da interpretação do sistema, para

então incidir o art. 110, restringindo a atuação do legislador infraconstitucional na

interpretação das regras de competências impositivas. Para o autor, o art. 110 incide

quando o conceito constitucional corresponde ao conceito de direito privado consoante

já firmado em sede de interpretação constitucional.

Para ilustrar o seu ponto de vista, traz como exemplo julgados do STF276 no

sentido de que o conceito de “faturamento”, para fins fiscais, não coincide com o

empregado tradicionalmente na legislação privada, à época vigente, compreendido

como o resultado das vendas acompanhadas de faturas representativas da compra e

venda mercantil, isto é, restrito às operações inerentes ao exercício da atividade do

comerciante. A Corte Suprema, ao argumento da necessidade de acomodar o conceito

de “faturamento”, estampado no art. 195, I, da Constituição, às exigências históricas da

evolução empresarial para dentro dos limites da resistência semântica do vocábulo,

atribuiu à noção de faturamento, acolhida pelo constituinte, como sendo a receita bruta

275 VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005, p. 98-

99. 276 RE nº 150.755, RE 150.764, RE nº 150. 755-PE, ADC nº 1-DF.

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decorrente das vendas de mercadorias e da prestação de serviços, definindo conceito

mais abrangente daquele aceito na esfera privada.

É preciso ressaltar que o posicionamento firmado no STF não foi unânime,

entendendo alguns Ministros pelo alargamento infraconstitucional do conceito usado

pela Constituição na outorga de competência tributária. É o que se extrai do voto do

Min. Marco Aurélio no RE nº 175.555:

Não posso, onde está escrito “receita bruta”, entender que houve referência ao que contemplado na Carta, a faturamento, a receita líquida. Não posso! Se o fizer, Senhor Presidente, estarei partindo para um campo de absoluto subjetivismo. Tenho que enfrentar a lei tal como ela se contém. Tenho que proceder ao cotejo sem substituir-me como que ao legislador, sem alterar o próprio texto legal. Reafirmo: o que nós temos no artigo 28 em comento, e creio que todos ou quase todos concordam com essa assertiva, é a disciplina da contribuição, pelo menos assim se pretendeu, prevista no inciso I do art. 195. Só que se abandonou por completo, o vocábulo “faturamento”. Abandonou-se a base de incidência constitucional para cogitar-se, em substituição indevida, da receita bruta.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal tem-se posicionado pela

possibilidade de o direito tributário adotar conceitos próprios, sendo prescindível a

identidade conceitual do termo tributário com aquele conceito já consagrado no âmbito

privado. No entender do Pretório, os usos linguísticos jurídico-privados, apesar de

exercerem importante papel na interpretação dos conceitos constitucionais tributários,

não exauririam a atividade interpretativa.

É o que já anunciou no Recurso Extraordinário nº 547.245, oportunidade em

que, declarada a constitucionalidade da incidência do ISS sobre o leasing financeiro,

sinalizou a Corte que o conceito de serviços no texto constitucional é mais amplo do que

o conceito civil de obrigação de fazer, enfatizando a importância da utilidade conferida

ao usuário através do financiamento e o papel do legislador complementar no

enquadramento de atividades à categoria de serviços sujeitos à incidência do tributo

municipal.

No Recurso Extraordinário nº 651.703, o STF reafirmou essas reflexões,

registrando que, diferentemente da configuração dada pelo direito privado, o conceito

de prestação de serviços, para fins fiscais, “estaria relacionado ao oferecimento de uma

utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades imateriais, prestadas com

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habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens

ao tomador”. Fez constar ainda que embora “a contraposição entre obrigações de dar e

de fazer para fins de dirimir o conflito de competência entre o ISS e o ICMS fosse

utilizada no âmbito do direito tributário, novos critérios de interpretação

progressivamente teriam ganhado espaço”, como métodos literais e teleológicos277.

Parece-nos, infelizmente, que o rumo tomado pelo STF em tempos mais

atuais, além de abrir espaço para considerações políticas e econômicas, capazes de

arruinar a juridicidade dos enunciados prescritivos, descuida do postulado da unidade

do ordenamento, da rigidez na discriminação das competências e dos princípios

constitucionais tributários. Ao ignorar as formas jurídicas prévias para a definição da

incidência da norma tributária, acaba por ampliar demasiadamente as possibilidades

interpretativas, adentrando no perigoso terreno da aplicação analógica e casuística da lei

fiscal em detrimento do regramento previsível das condutas intersubjetivas. É,

reproduzindo a advertência do Min. Marco Aurélio no RE nº 175.555, partir para um

campo de absoluto subjetivismo.

Em oposição à jurisprudência hodierna, a vertente pela preservação de

institutos, conceitos e formas de outros ramos jurídicos não só traduz uma exigência do

próprio sistema constitucional tributário, que imprimiu uma rígida repartição de

competências, como também oferece critérios mais seguros e objetivos para a

composição da hipótese de incidência tributária. O legislador tributário somente poderá

requalificar conceitos de direito privado para definir o critério material dos impostos

quando tais conceitos não se encontram incorporados na Constituição como delimitador

das competências impositivas.

Já dizia Geraldo Ataliba que, se a Carta Republicana incorpora conceitos de

direito privado, “o legislador tributário entra de mãos amarradas, pelo legislador

privado, e é obrigado a respeitar a articulação que o legislador privado já tenha feito

para fins de direito privado, daquela matéria278”. Não se trata de um reconhecimento da

277 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo nº 845. Brasília, 24-28 out. 2016. Disponível em

˂http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo.htm˃. Acesso em: 15 out. 2016. 278 ATALIBA, Geraldo. ICMS na Constituição. Revista de Direito Tributário, n. 57, jul.-set. 1991, p.

94.

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194

prevalência do direito privado sobre o direito tributário, mas de prevalência do próprio

direito constitucional279 que relaciona, na distribuição de competências tributárias,

formas de atos e negócios jurídicos emanados da autonomia privada que poderão

compor as hipóteses de incidência dos impostos e, assim, justificar a imposição de

obrigações fiscais. “Pudessem a União, Estados, Distrito Federal e Municípios

manipular os conceitos que servem a repartição das competências impositivas mediante

leis suas”, adverte Heleno Tôrres280, “restaria prejudicada a hierarquia normativa (da

Constituição em face das leis) e os princípios garantísticos da certeza e segurança

jurídica”. No mesmo sentido, são as lições de Paulo de Barros Carvalho:

O imperativo não vem, diretamente, do preceito exarado no art. 110. É uma imposição lógica da hierarquia de nosso sistema jurídico. O empenho do constituinte cairia em solo estéril se a lei infraconstitucional pudesse ampliar, modificar ou restringir os conceitos utilizados naqueles diplomas para desenhar as faixas de competências oferecidas às pessoas políticas. A rígida discriminação de campos materiais para o exercício da atividade legislativa dos entes tributantes, tendo estatura constitucional, por si só já determina essa inalterabilidade. Em todo caso, não deixa de ser oportuna a lembrança que o art. 110 aviva281.

Com efeito, as formas de uso dos termos no direito privado prestam-se como

indispensável parâmetro semântico para a investigação do conteúdo dos vocábulos e

expressões positivadas na Constituição. A compreensão dos signos constitucionais em

consonância com acepções já consolidadas pelos operadores do direito, em

contraposição a modelos interpretativos com viés econômicos ou teleológicos

sustentados na capacidade contributiva e no interesse público, busca prevenir variações

semânticas a cada nova inserção de diplomas normativos, tolhendo a adoção casuística

e extremamente subjetiva de critérios na construção de conceitos constitucionais, bem

279 Nesse sentido, é o precedente do STJ: “[...] ART. 110 DO CTN. MERA REPRODUÇÃO DO

PRINCÍPIO DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL. [...] A apontada violação ao art. 110 do CTN não pode ser analisada em sede de recurso especial, uma vez que tal dispositivo, sendo mera explicitação do princípio da supremacia da Carta Magna, possui nítida carga constitucional. Precedente da Turma” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 453.250/RS. Relator: Ministro Castro Meira. Julgamento: 18 maio 2006. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJ, 30 maio 2006, p. 134).

280 TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 81.

281 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 118.

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como harmoniza-se com a adequada interpretação sistemática do ordenamento,

compreendido como um todo unitário. Além de prestigiar a segurança jurídica, a adoção

de idênticas formas de uso do termo, enunciado em textos pertencentes a ramos jurídicos

distintos, tende a legitimar a definição proposta com maiores chances de aceitação, pois

coerente com a integralidade do contexto jurídico-prescritivo.

Negar procedência a essas assertivas, não só contraria as premissas fixadas

linhas anteriores de que todo termo veicula um conceito, uma ideia, na medida em que

significações construídas relacionam-se com camadas linguísticas já conhecidas no

contexto de que faz parte o texto interpretado, viabilizando assim o fenômeno

comunicacional, mas também importa desprezar a rigidez impressa pelo constituinte na

fixação das parcelas do ius tributandi e assumir a inocuidade prescritiva dos enunciados

plasmados na Constituição. É, em última instância, atribuir ao aplicador e intérprete

infraconstitucionais a função superior de demarcar os domínios das competências

tributárias, preterindo a axiomática hierarquização do ordenamento282.

Enfim, o respeito aos conceitos jurídicos de direito privado exprime uma

premissa necessária para o bom funcionamento do sistema tributário, sobretudo quando

a materialidade eleita pelo constituinte para fazer incidir o gravame fiscal traduz atos e

negócios jurídicos tipicamente regulados por essa seara jurídica. Isto é, se o constituinte

enuncia vocábulos e expressões como “operação relativa à circulação de mercadoria”,

“prestação de serviço”, “propriedade de bem imóvel”, “transmissão de direitos” etc.,

sem manifestar-se expressamente por um sentido diferente a ser atribuído aos termos

enunciados, impõe-se, para o direito tributário, que correspondem aos usos linguísticos

empregados no mundo jurídico em que originariamente foram firmados e aceitos, no

caso, no interior do direito privado.

282 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Imposto sobre a renda – depósitos bancários – sinais

exteriores de riqueza. Revista de Direito Tributário, São Paulo, ano VII, n. 23-24, p. 91-103, jan./jun. 1983.

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1.4.5 A lei complementar como texto relevante no processo de elucidação dos

conceitos constitucionais e na solução de conflitos de competências para

criar impostos

Em virtude do elevado grau de abstração e vagueza da linguagem posta na

Constituição, grande parte das disputas no âmbito do direito tributário provém das

variadas interpretações acerca dos dispositivos que discriminam competências

impositivas, lançando-se juristas e aplicadores do direito em discussões inflamadas na

busca de imprimir uma definição preponderante aos conceitos constitucionais, lindeiros

da persecução fiscal.

O legislador constituinte, antecipando-se desses choques hermenêuticos

relativos à esfera de ação de cada unidade tributante e ciente de que algumas soluções,

por reclamarem tutela mais acurada, não caberiam a cada ente político propô-las por

meio de suas leis próprias, elegeu veículo introdutor normativo de alcance nacional – a

lei complementar submetida ao quórum qualificado de maioria absoluta nas duas casas

do Congresso, conforme disposto no art. 69 da CR/88 –, tudo com o escopo de preservar

a rigorosa discriminação das competências tributárias.

Referida lei complementar não se confunde com as leis complementares

federais. Estas, destinadas a executar funções constitucionais privativas

independentemente da produção posterior de outras normas, atuam em campos materiais

próprios e cingem-se à esfera jurídica da União, tal como se verifica nas hipóteses

contempladas nos arts. 148 e 154, I, da CR/88, outorgantes da competência para criar

empréstimos compulsórios e impostos residuais, respectivamente.

Diversamente, o veículo complementar, de que aqui se fala, é diploma

legislativo de caráter nacional, cujas normas por ele introduzidas representam regras de

estrutura circunscritas, conjunta ou isoladamente, à esfera jurídica das pessoas políticas

de direito constitucional interno. Serve de fundamento para outros atos normativos, pois,

com base nos enunciados introduzidos pela lei complementar, a pessoa política exerce

sua competência tributária. Observa-se, nessas hipóteses, uma relação de hierarquia

semântica, de tal sorte que a lei ordinária, seja ela produzida pela União, Estados,

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Distrito Federal ou Municípios, subordina-se aos conteúdos de significação ditados pela

legislação complementar.

Nesse contexto, a Constituição de 1988 elencou campos materiais a respeito

dos quais ao legislador complementar incumbe editar normas nacionais, balizadoras da

produção legiferante das pessoas políticas. Dispõe, assim, o art. 146:

Art. 146. Cabe à lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Sobre o papel das leis complementares em matéria fiscal, na forma prevista

pelos incisos I, II e III, alíneas ‘a’ e ‘b’, do art. 146, ergueram-se duas emblemáticas

correntes científicas, discordantes quanto à compreensão que há de se ter a respeito da

expressão “normas gerais de direito tributário”.

Apoiada em uma interpretação literal dos preceitos constitucionais citados, a

corrente tricotômica, defende a tese de que cabe à lei complementar três funções

distintas: dispor sobre conflitos de competência entre as pessoas políticas em matéria

tributária (inciso I); regular as limitações constitucionais ao poder de tributar,

relacionadas nos arts. 150 a 152, que tratam dos princípios constitucionais tributários e

das imunidades dos impostos (inciso II); e estabelecer normas gerais (inciso III) para

definir tributos e suas espécies, fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos

impostos (alínea ‘a’); bem como obrigação, lançamento, crédito, prescrição e

decadência (alínea ‘b’).

Em contrapartida, a corrente dicotômica (ou monotômica), sustentada numa

interpretação sistemática do texto constitucional, posiciona-se no sentido de que cabe à

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lei complementar introduzir normas gerais de Direito Tributário destinadas a dispor

sobre conflitos de competência e regular as limitações constitucionais ao poder de

tributar. A lei complementar, que definir fatos geradores, bases de cálculo e

contribuintes com fulcro no inciso III, ‘a’, do art. 146, assim o faria no cumprimento das

funções previstas nos incisos I e II.

A preferência pela corrente dicotômica justificar-se-ia, segundo Paulo de

Barros Carvalho283, Roque Antonio Carrazza284 e Maria do Rosário Esteves285 na

medida em que: (i) atribui conteúdo mais preciso à expressão “normas gerais de direito

tributário”; (ii) consagra, em maior intensidade, os princípios federativo e da autonomia

municipal e distrital, impedindo que a União adentre nas especificidades da instituição

dos tributos das demais pessoas políticas, sendo que (iii) o legislador complementar

estaria autorizado a ocupar-se de qualquer matéria tributária, inclusive no tocante a fato

gerador, base de cálculo e contribuinte, desde que para cumprir os desígnios de evitar

conflitos e regular as limitações do ius tributandi.

Entende essa vertente doutrinária que, se de outra maneira fosse interpretado

o texto constitucional, equivaleria a admitir que a União, por meio de lei complementar,

está autorizada a cuidar dos pormenores da tributação de cada unidade política. No

mesmo sentido, também é a advertência de Clélio Chiesa:

Não há como, por exemplo, compatibilizar a faculdade concedida no art. 146 da Constituição, para o Congresso definir os ‘fatos geradores’ dos impostos com as normas contidas no próprio texto constitucional que já definem os ‘fatos geradores’ dos impostos, vedando o legislador ordinário de redefini-los286.

Em toada bastante crítica à visão dicotômica, José Souto Maior Borges

afirma que, sob o pretexto de corrigir a literalidade do dispositivo, a posição dualista do

regime das normas gerais em direito tributário proclama por uma interpretação

283 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 407-408, 411-412. 284 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 1040. 285 ESTEVES, Maria do Rosário. Normas Gerais de Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1997,

p. 123. 286 CHIESA, Clélio. A competência tributária do Estado brasileiro: desonerações nacionais e

imunidades condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 152.

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derrogatória do texto constitucional, excluindo do âmbito material do art. 146 campos

remanescentes de normatividade abarcados pelo inciso III. São suas palavras:

Percebe-se que a interpretação dicotômica é parcialmente destrutiva do âmbito de validade do art. 146, III, que disciplina normas gerais de direito tributário com uma amplitude não circunscrita aos itens I e II desse preceito. Para a doutrina dicotômica só conflitos e limitações são reguláveis no item III. Essa alternativa exegética não apenas corrige a literalidade do item III, mas destrói o seu campo remanescente de aplicabilidade. […]. Se o constituinte de 1988 tivesse querido reduzir aos conflitos e limitações o campo de normas gerais, bastava omitir o item III. Contudo, essas conclusões são provisórias, porque restringem a análise ao art. 146, isoladamente287.

Complementa o autor que a interpretação extensiva do item III aos itens I e

II até seria possível, pois os conflitos e limitações estão acolhidos implicitamente no

âmbito total do item III: “se, por hipótese, fossem revogados os itens I e II do art. 146,

o seu item III teria condições necessárias e suficientes para a instituição de lei

complementar sobre conflitos e limitações” 288. Sua crítica à corrente dualista tão pouco

se projeta para subscrever a versão tricotômica, já que o próprio jurista pondera que a

atitude pleonástica da tricotomia, restrita a expressar, em outras palavras, o que diz o

art. 146, acaba por resultar num exame científico sem a adequada profundidade.

Longe de nos determos neste tópico sobre qual das alternativas

interpretativas do art. 146 é melhor ou pior, minudência temática prescindível para os

propósitos deste trabalho, optamos aqui por uma leitura intermediária, conciliadora de

aspectos da tricotomia e dicotomia, tendo em mente a compreensão sistemática do texto

positivado e o regime das denominadas “normas gerais” introduzido pela ordem

constitucional de 1988, a qual preferiu, diversamente do enunciado pela Constituição

anterior289, separar, em três incisos distintos, conflitos, limitações e outras matérias

tributárias a merecerem um trato especial pelo legislador complementar.

Firmes então nesse propósito, finquemos a assertiva de que a lei

complementar possui a função intrínseca de editar normas nacionais, vinculativas da

287 BORGES, José Souto Maior. Normas Gerais de Direito Tributário: Velho Tema sob Perspectiva

Nova. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, n. 213, jun. 2013, p. 50, 55. 288 Ibid., p. 50. 289 EC 01/69 à CF/1967: “Art.18, §1º. Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário,

disporá sobre os conflitos de competência nessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder de tributar”.

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produção legiferante fiscal dos subsistemas preordenados na Constituição – o federal, o

estadual e o municipal –, com o objetivo de conferir unidade e uniformidade ao sistema

tributário, indispensáveis à sua racionalidade e equilíbrio, propiciando um tratamento

isonômico entre contribuintes que se encontram em situações equivalentes e maior

previsibilidade e confiança aos particulares quanto aos deveres e direitos que lhes são

aplicáveis.

O legislador complementar concretiza os primados da igualdade e da

segurança jurídica não só quando dispõe sobre conflitos de competência e regula

limitações ao poder de tributar, mas também quando dispõe, por exemplo, sobre

lançamento, prescrição, decadência, suspensão da exigibilidade e extinção do crédito

tributário. Trata-se de interpretação que, por consagrar a robustez normativa da

Constituição, é chancelada, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal, vez que “permitir

regulação distinta sobre esses temas, pelos diversos entes da federação”, no entender da

Corte, “implicaria prejuízo à vedação de tratamento desigual entre contribuintes em

situação equivalente e à segurança jurídica”290.

Por sujeitar-se a procedimentos formais mais rigorosos e estar jungido a uma

generalidade de destinatários, o veículo complementar tende a satisfazer melhor os

valores da Carta Republicana, agindo como mecanismo de ajuste mais efetivo para o

funcionamento harmônico do sistema, pois visa a coibir a produção legislativa ordinária

segundo os interesses de cada ente tributante e, o mais importante, retirando-lhe a

faculdade de definir, a seu talante, o alcance das normas que instituem tributos. Reforça

Eurico Marcos Diniz de Santi que “a expressão normas gerais em matéria de legislação

tributária não arranha o pacto federativo”, pelo contrário, “funciona como expediente

demarcador desse pacto, uma vez que, com a sua generalidade, além de uniformizar a

legislação, evitando eventuais conflitos interpretativos entre as pessoas políticas,

garante o postulado da isonomia”291 entre elas.

290 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 556.664/RS. Relator: Ministro

Gilmar Mendes. Julgamento: 12 jun. 2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 13 nov. 2008.

291 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. O Código Tributário Nacional e as normas gerais de Direito Tributário. In: SANTI, Eurico Marcos Dinis de (Coord.). Curso de direito tributário e finanças públicas. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 327-328.

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Na linha do magistério de Tércio Sampaio Ferraz292, para o qual a linguagem

do direito positivo deve criar condições de certeza e igualdade ao regular o

comportamento humano, com vistas a refrear um cenário de insegurança nutrido por um

sistema deixado ao sabor da oportunidade das legislações locais e da jurisprudência

muitas vezes vacilante, o papel das chamadas normas gerais em matéria tributária deve

ser delineado com suporte nessa dinâmica de promover a função-certeza e a função-

igualdade. Alicerçado, então, nessa dupla função das normas gerais, conclui o jurista:

(i) A partir da função-certeza, mais reforçada pela teoria tricotômica, as

normas gerais de direito tributário têm a função de atribuir unidade

semântica ao sistema tributário mediante a tipificação genérica de alguns

conteúdos, a serem observados na edição das leis tributárias federais,

estaduais e municipais, possibilitando ao sujeito antever as

consequências de seus atos.

(ii) A partir da função-igualdade, mais prestigiada pela corrente dicotômica,

identificam-se na lei complementar os critérios gerais que delimitam o

espaço da atuação legiferante dos entes tributantes com o fim de coibir

conflitos competenciais, criando-se uma unidade de competência para o

sistema tributário, preventiva de decisões contraditórias e, por isso, apta

a conferir tratamento isonômico aos destinatários dos comandos

jurídicos.

Nessa tarefa de racionalizar o sistema tributário através da produção de

normas nacionais atributivas de uniformidade semântica e unidade competencial, o

legislador complementar, tal como sucede em toda e qualquer tomada de decisão no

contexto do direito positivo, deve obediência à Constituição Republicana, sendo-lhe

vedado distorcer os limites das competências impositivas dos entes políticos, alargando-

as ou restringindo-as, seja para veicular normas gerais em nome de quaisquer das

finalidades dispostas nos incisos I, II e III, ‘a’ e ‘b’, do art. 146.

Sob pena de sobrepor-se à hierarquia do ordenamento, não pode a lei

complementar, por exemplo, fixar elementos da regra-matriz de incidência tributária

292 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Segurança Jurídica e Normas Gerais Tributárias. Revista de Direito

Tributário, v. 5, n. 17/18, jul./dez. 1981.

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senão para dispor sobre conflitos de competência, nem inserir no rol de serviços

tributáveis pelo ISS os serviços de comunicação sujeitos ao ICMS, tampouco delimitar

como hipótese de incidência do Imposto sobre a Renda valores que não se qualifiquem

como acréscimo patrimonial ou estender o regime jurídico do ISS à atividade que não

se qualifique como obrigação de fazer, tudo para além das demarcações supremas.

Eventual afronta ao arquétipo constitucional de distribuição de competências

tributárias, submeter-se-á ao controle do Poder Judiciário, cabendo ao guardião da Carta

Política – o Supremo Tribunal Federal – a integridade dos princípios da federação e da

autonomia dos Municípios. Esse mecanismo de freios e contrapesos, fundado no

controle recíproco dos poderes estatais, permite corrigir eventuais usurpações do

legislador complementar no âmbito de competência privativa das leis ordinárias dos

Estados e Municípios, em prol da convivência harmônica entre a autonomia das

unidades políticas e a função das normas gerais, esta indispensável para conferir

uniformidade e unidade ao sistema tributário.

Esclarecidas algumas questões introdutivas a respeito da exegese do art. 146

da Constituição, interessa-nos, para o desenvolvimento do nosso tema, destacar o papel

do legislador complementar como expediente linguístico fundamental para inibir

conflitos de competência tributária que, eventualmente, possam se suceder no âmbito

pragmático em virtude da aproximação entre as materialidades dos impostos.

A partir de uma interpretação conjunta dos seus incisos I e III, alínea ‘a’,

vimos que o constituinte autoriza o legislador complementar definir fatos geradores,

bases de cálculo e contribuintes dos impostos desde que diante de situações de possível

ocorrência de conflitos entre os entes políticos. Conforme adverte Roque Carrazza, “a

Constituição não conferiu ao legislador complementar um cheque em branco para

apontar os ‘fatos geradores, bases de cálculos e contribuintes’ dos impostos nela

discriminados”, competindo à complementação legislativa fixar “os pormenores

normativos que facilitarão a correta aplicação das normas constitucionais tributárias”293

àquelas hipóteses fáticas propensas a dubiedades quanto à incidência tributária cabível.

293 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p.

59.

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Nessas situações de maior potencial conflituoso, a lei complementar é texto

fundamental constitutivo das formas de uso dos termos empregados pelo constituinte na

partilha das aptidões para criar impostos. Com efeito, ao oferecer diretrizes para dirimir

conflitos, contribui para um processo mais uniforme de elucidação de aspectos da regra-

matriz de incidência quando da instituição e posterior cobrança dos impostos,

favorecendo a previsibilidade da tributação a recair sobre as condutas praticadas pelos

contribuintes.

Por essas e outras que Paulo Barros Carvalho afirma que, no curso do

processo de positivação do direito, as formulações normativas gerais “vão tecendo a

estrutura das outras regras, pelo direito positivadas, não sendo possível que se faça

construção de norma individual e concreta nenhuma sem que se passe pelos limites

normativos impostos pelas normas gerais”294. Similares são também as considerações

de Frederico Araújo Seabra de Moura:

Normas gerais que tenham a função secundária de dirimir conflitos de competência, o fazem por meio da definição de algum critério da regra-matriz de incidência (art. 146, III, a da CF), como, por exemplo, o material, o especial, o quantitativo (quanto à base de cálculo) ou o pessoal (no elemento sujeito passivo)295.

Ilustram manifestações do legislador complementar destinadas a reforçar o

perfil constitucional de cada imposto, porquanto definem com mais clareza os contornos

que separam os campos legiferantes de cada unidade política: (i) a LC nº 116/2003, cujos

arts. 1º, §2º, e 3º prescrevem, respectivamente, que (i.a) ressalvadas as exceções

expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS,

ainda que sua prestação envolva o fornecimento de mercadorias e que (i.b) o serviço se

considera prestado e o ISS devido no local do estabelecimento; (ii) a LC nº 87/96, cujo

art. 2º, incisos I e IV, determina que o ICMS incide sobre o fornecimento de alimentação

e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares, bem como sobre o

fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na

294 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 399. 295 MOURA, Frederico Araújo Seabra de. Função primária e secundária das normas gerais em matéria

tributária. In: Congresso Nacional de Estudos Tributários: Derivação e positivação do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011, p. 527.

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competência tributária dos Municípios; e (iii) o art. 32 do CTN c.c. o art. 15 do Decreto-

lei º 57/66, os quais, recepcionados como lei complementar pela CR/88, definem zona

urbana e zona rural para fins de incidência do IPTU e ITR.

Aliás, além da prescrição geral do art. 146, I, há enunciados na própria

Constituição que evidenciam o papel estrutural da lei complementar voltado a evitar

conflitos de competência. Toma-se, como exemplo, o art. 155, §2º, III, que exige

referido veículo legislativo para regular a competência dos Estados na instituição do

ITCMD quando o doador tiver domicílio ou residência no exterior e quando o falecido

possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve seu inventário processado no exterior.

A complementação legislativa, redutiva de incertezas no tocante à pretensão

política para instituir impostos, traduz expediente orientador de extrema relevância

diante das atuais explorações econômicas, cada vez mais complexas, relativas à

circulação de bens e prestação de serviços. Por envolverem um cipoal de fatos, é comum

os negócios contemporâneos importarem concomitância de operação de circulação de

mercadoria, prestação de serviços e/ou atividade de categoria jurídica diversa e, por isso,

situarem-se em zonas de intersecção entre materialidades reservadas a distintos entes

tributantes.

É inegável que, diante de determinada atividade econômica situada em zona de penumbra, na qual seja difícil a definição acerca do reconhecimento de prestação de serviço ou de circulação de mercadorias, seguir o critério adotado pela lei complementar traz maior segurança jurídica para o contribuinte, que pode planejar seus negócios com previsibilidade acerca de qual tributação irá sofrer, ou seja, para que ente político deverá pagar o tributo296.

Também acerca da função estrutural da lei complementar nas situações acima

aventadas, não excede recordar o papel do Supremo Tribunal Federal no controle

jurisdicional sobre os critérios eleitos pelo legislador complementar quando este, sob a

justificativa de disciplinar conflitos de competência, acabe por modificar a distribuição

constitucional das aptidões para criar impostos, até porque “se a lei pudesse chamar de

296 OLIVEIRA, Gustavo da Gama Vital de. Federalismo fiscal, jurisdição constitucional e conflitos de

competência em matéria tributária: o papel da lei complementar. In: GOMES, Marcos Lívio, VELLOSO, Andrei Pitten (Orgs.). Sistema constitucional tributário: dos fundamentos teóricos aos hard cases tributários: estudos em homenagem ao ministro Luiz Fux. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 200.

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compra e venda o que não é compra; de exportação, o que não é exportação; de renda,

o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição”297. Um caso

que muito bem ilustra o STF reconhecendo a inconstitucionalidade da solução oferecida

pelo legislador complementar consiste no já mencionado julgamento do Recurso

Extraordinário nº 116.121, em que se declarou a inconstitucionalidade da incidência do

ISS sobre a locação de bens.

Por todo o exposto, não sobejam dúvidas que, na difícil missão

constitucional de minuir dubiedades acerca da incidência tributária sobre determinados

fatos, as regras de caráter nacional, veiculadas pela lei complementar, cumprem

relevante papel institucional de prevenir conflitos de competência tributária entre as

pessoas políticas por conduzirem a definição de conceitos constitucionais, aos quais

vinculam-se as prerrogativas legislativas ordinárias para criar impostos federais,

estaduais e municipais.

A fim de superar as insuficiências intelectivas do texto constitucional que

poderiam ocasionar usurpações competenciais pelos entes tributantes, não é dado,

porém, à lei complementar redesenhar o quadro de aptidões da União, dos Estados, dos

Municípios e do Distrito Federal, submetendo-se, nessas hipóteses, ao comando do

Supremo Tribunal Federal que age para preservar a rigorosa discriminação de

competências impositivas, afastando qualquer extrapolação na atividade de interpretar

e aplicar a Constituição.

1.4.6 Conceitos constitucionais como limites à produção normativa

infraconstitucional: reflexões sobre o equilíbrio entre a rigidez na

discriminação das competências tributárias e a evolução interpretativa na

aplicação do direito tributário

Pois bem. A expressiva rigidez do nosso sistema tributário deriva da

disciplina ampla e profunda enunciada na Constituição, cujos preceitos dispõem sobre

diretrizes principiológicas e discriminam esquema minudente de distribuição de

297 Voto do Ministro Luiz Gallotti, proferido em 1972, no Recurso Extraordinário nº 71.758-GB (RTJ

n. 66/165).

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competências tributárias, repercutindo, com fins restritivos, na autonomia do legislador

para instituir os tributos e das demais autoridades competentes para interpretar e aplicar

o direito tributário. E, ao conferir, densidade e amplitude à regulação da matéria

atributiva de competências impositivas, o constituinte visa a resguardar a convivência

harmônica entre a ação estatal de tributar e o exercício dos direitos fundamentais à

liberdade e ao patrimônio pelos cidadãos.

Na distribuição das aptidões para criar impostos incidentes sobre ocorrências

sociais que revelam capacidade econômica, o constituinte enuncia termos e expressões,

designativos de conceitos já assimilados pelas práticas de uso no meio em que se

inserem os participantes e os observadores do sistema do direito positivo. De fato, se a

linguagem é fenômeno cultural, supõe-se uma convenção sobre o conteúdo semântico

das palavras positivadas no Texto Republicano, decorrente de uma acepção imanente ao

seu uso na sociedade e, principalmente, por força das relações pragmáticas firmadas

pelos utentes da linguagem do direito positivo, viabilizando-se, assim, a comunicação

jurídica.

Destacando o importante papel dos conceitos constitucionais, colacionam-se

ensinamentos de Roque Antonio Carrazza:

[…] o conteúdo semântico mínimo é um relevantíssimo fator de solução de conflitos de competência tributária, porque permite – se por mais não fosse, pelo critério de exclusão – distinguir para fins de tributação, um evento de outro. Assim, auferir renda não é o mesmo que manter patrimônio; praticar venda mercantil não equivale a prestar, em caráter negocial, serviço de qualquer natureza; praticar operação financeira não é o mesmo que doar bens etc.298

Tomando como base então os conceitos constitucionais, enquanto forma de

uso dos termos, plasmados na Constituição, pela comunidade jurídica e representativos

de um conteúdo para referenciar determinada categoria de fatos, os entes políticos criam,

por meio de lei, os tributos, conferindo aos conceitos noções mais nítidas, mediante a

eleição de caracteres e propriedades que devem ser observados uniforme e

rigorosamente pelas demais autoridades competentes no proceder da mecânica

subsuntiva das incidências normativas tributárias.

298 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p.

39.

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A adoção de conceitos constitucionais para abalizar os domínios legiferantes

dos entes políticos vai ao encontro da estrutura rígida procedida pelo constituinte na

repartição das competências impositivas, tolhendo a formulação de sentidos altamente

variados. Consoante magistério de Misabel Derzi, diferentemente da natureza flexível e

aberta dos tipos, cujos caracteres comportam transições fluidas, imprimindo o raciocínio

tipológico “mais ou menos” ou “tanto mais...quanto menos” ao pensar jurídico, os

conceitos, por assumirem propriedades necessárias e irrenunciáveis, impõem

“ou...ou”299 na ordenação da realidade do direito positivo e, com isso, impedem um agir

com vasta liberdade por parte das pessoas políticas e seus órgãos, vedando-lhes recorrer

a analogias, o que poderia levar à criação de tributos não previstos ou à bitributação.

A delimitação rígida do campo de atuação dos aplicadores do direito

tributário, com a observância aos conceitos constitucionais na interpretação das regras

de competência, não quer significar a imutabilidade absoluta da linguagem do direito

positivo. Em virtude da inesgotabilidade da interpretação e da vaguidade inerente às

palavras, os textos positivados estão sempre sujeitos à atribuição de sentidos, com a

constante formulação de novas normas jurídicas e a introdução de novos textos válidos.

Ora, se o conceito é uma maneira de pensar sobre os objetos empíricos e o pensar é

sempre cambiante, pois produto da subjetividade de cada indivíduo, inserido num

determinado sistema de referência, a possibilidade de reconstruções conceptuais por

determinada comunidade linguística é pressuposto inexorável da arte de interpretar.

Ademais, conquanto a adoção por modelos normativos gerais e abstratos,

compostos por enunciados conotativos – e, por isso, providos de maior vagueza –,

permita ao intérprete albergar uma imensidão de futuras ocorrências factuais, a moderna

contextura econômica, com o surgimento de produtos e serviços, acaba por demandar

revisões no domínio jurídico. Ante o rápido avanço tecnológico, o Poder Legislativo,

porém, não é capaz de acompanhar, na maior parte das vezes, as transformações sociais,

o que exige dos demais aplicadores do direito incessante atividade hermenêutica na

solução para novos e complexos conflitos de interesse, interpretando e reinterpretando

enunciados prescritivos válidos no ordenamento, a fim de investigar a escorreita

299 DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1988, p. 103.

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tributação de novos negócios pelos impostos e, por conseguinte, a sua subsunção às

respectivas hipóteses tributárias, sempre em compasso com as faixas de competências

delineadas na Constituição.

Deste cenário, sobreluz a atuação fundamental dos membros do Poder

Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, como verdadeiros atualizadores

da linguagem jurídico-prescritiva, dedicados a acomodar as normas de competência

tributária ao rico progresso relacional intersubjetivo, seja mediante a incidência dos

conceitos já legitimados às situações propiciadas pelas novas tecnologias, seja por meio

da adaptação semântica, se assim permitido pelo ordenamento, dos enunciados válidos

e vigentes, discriminatórios de competências tributárias, às inovadoras ocorrências

sociais. Nessa última hipótese, caso a reformulação do conceito não se amolde ao

perímetro semântico permitido pelas regras de competência, exigir-se-á do legislador

constituinte a produção de textos para introduzir novos contornos gerais e abstratos à

realidade tributária, abarcado assim os novos negócios e demarcando, de forma mais

satisfatória, as fronteiras de atuação do legislador infraconstitucional.

Como vimos de ver, a despeito da perene atualização da construção

significativa dos textos postos, o raciocínio exegético não é ilimitado, pois abalizado

pela própria linguagem do direito positivo, conformada nos seus planos de expressão e

de conteúdo, tendo em vista o contexto em que se inserem os enunciados interpretados

e os diálogos textuais que com eles se estabelecem. Especificamente no campo do direito

tributário, para o qual o legislador constituinte optou por uma minudente disciplina

jurídica no altiplano supremo do ordenamento, a atualização interpretativa das normas

fiscais pelos órgãos competentes é bastante limitada e de restrita aplicabilidade.

Antes de tudo, qualquer tomada de conhecimento acerca das regras

instituidoras de tributos há de tomar como base-primeira os textos positivados pelo

constituinte. Por força da Constituição, alguns enunciados necessariamente “deverão

compor as normas jurídicas instituidoras dos tributos. Estes enunciados formam o

mínimo necessário (o átomo), de cada tributo. São o ponto de partida inafastável do

processo de criação in abstracto dos tributos”300.

300 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 582.

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Nesse percurso de atribuição de novos sentidos aos comandos voltados à

cobrança e arrecadação tributárias, os enunciados da Carta Republicana que versam as

competências impositivas cumprem papel decisivo “para a estipulação das fronteiras

dentro das quais o factum tributário pode acontecer”301. Referidos dispositivos

constitucionais, por intermédio de referência a materialidades tributárias, prescrevem os

contornos semânticos fundamentais dos impostos. Por maiores que sejam as

imprecisões, reconhece nossa Corte Suprema que “há sempre um limite de resistência,

um conteúdo semântico mínimo recognoscível a cada vocábulo, para além do qual,

parafraseando ECO, o intérprete não está ‘autorizado a dizer que a mensagem pode

significar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria

despropositado sugerir’”302.

E para investigar a dimensão significativa da parcela de competência

tributária outorgada pela Constituição ao ente político, requer-se o dialogismo

interdiscursivo, edificante da completude contextual que informa os textos

interpretados, sempre primando-se pela estrutura hierárquica do ordenamento. Deveras,

para superar a vagueza que se encontra constitucionalmente estatuída, realiza-se o

percurso da positivação do direito tributário a partir das normas de mais alta hierarquia

para assim produzir normas providas de maior conotação das materialidades dos

impostos, objetivando a individualização e a concretude normativas que motivam os

comportamentos inter-humanos.

Nesse contexto jurídico-dialógico, as circunstâncias e justificativas

existentes quando da edição da regra de competência interpretada, os fatores histórico-

culturais presentes no momento do ato de interpretar, as formas de uso linguístico dos

termos aceitas culturalmente, articuladas na rica e heterógena camada social e

portadores de uma pré-compreensão dos signos, bem como a Ciência do Direito,

descritora de possíveis sentidos dos textos positivados contribuem, sem dúvida, para a

301 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 246. 302 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 390.840/MG. Relator: Ministro

Marco Aurélio. Julgamento: 09 nov. 2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 15 ago. 2006.

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as decisões atributivas de sentidos aos enunciados constitucionais e para legitimar a

definição jurídica proposta, porém, assim o fazem em nível secundário.

Deveras, figuram, como aspectos contextuais mais relevantes para delimitar

o alcance semântico dos termos empregados na discriminação das competências

tributárias, os usos linguísticos já aceitos e utilizados no contexto de que faz parte o

texto interpretado, ou seja, os usos positivados pelos órgãos competentes na criação da

realidade do direito positivo.

Desse conjunto de significações jurídicas adotadas pelos aplicadores do

direito, vimos de ver que os conceitos empregados no âmbito do direito privado

consistem parâmetro hermenêutico seguro para a construção conceptual na esfera

tributária. Dado que o constituinte, ao eleger os suportes fáticos sujeitos à incidência dos

impostos, faz referência a atos e negócios jurídicos regulados pelo direito civil, o

respeito aos conceitos privados consubstancia exigência decorrente da própria

Constituição e premissa necessária para o bom funcionamento do ordenamento jurídico,

pois impede definições casuísticas, em prol da unidade sistemática e da segurança

jurídica. Daí porque o art. 110 do Código Tributário Nacional confirma, em tom

didático, que o legislador infraconstitucional não pode alterar o alcance dos institutos e

das formas atinentes ao direito privado incorporadas pela Constituição na repartição das

competências tributárias.

E mesmo que as forma de uso de um termo concebida à época da

promulgação da Constituição não mais condiz com os usos do termo no direito privado,

conformados, pois, ao progresso e à contemporaneidade da realidade econômico-social,

as novas concepções significativas no âmbito privado tão somente repercutem na esfera

fiscal se, frise-se, autorizado pelo próprio regime constitucional tributário. E essa

ressalva, anunciadas repetidas vezes neste escrito, é de extrema importância e coincide

com ponderações já registradas no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma aberta constitui, isso sim, uma violação à Constituição. Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade […]. As disposições legais a ela relativas têm, portanto, inconfundível caráter

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concretizador e interpretativo. E isso, obviamente, não significa a admissão de um poder legislativo ilimitado. Nesse processo de concretização ou realização, por certo serão admitidas tão-somente normas que não desbordem os múltiplos significados admitidos pelas normas constitucionais concretizadas303.

Com efeito, a simples alteração de conceitos de direito privado no plano

infraconstitucional não importa alteração automática do conceito constitucional, uma

vez que se impõe verificar se o novo conceito privado está de acordo com a dimensão

semântica das porções distributivas de competência tributária. Em outros dizeres, “se o

novo conceito adotado, e.g., no Código Civil, for admitido pela Constituição, haverá

possibilidade de o legislador tributário instituir uma regra-matriz com base neste, pois

possui competência para tanto”304.

No mais, na tentativa de uniformizar as variedades interpretativas em

consonância com o texto constitucional, explicitamos também o papel fundamental do

legislador complementar que, nos moldes do previsto no art. 146 da Constituição,

oferece diretrizes nacionais para solucionar conflitos de competência tributária diante

de atividades econômicas situadas em zona de confluência de materialidades tributárias

distintas.

O intenso processo dialógico operado pela pragmática jurisprudencial,

derivado das manifestações judiciais e, em menor grau, dos pronunciamentos dos órgãos

julgadores administrativos também informam os enunciados constitucionais. O labor

jurídico deve ser praticado em harmonia e com coerência sobretudo em relação às

interpretações constitucionais procedidas pelo Supremo Tribunal Federal, para que,

assim, prepondere uma significação, pondo fim às numerosas possibilidades semânticas

indutoras de insegurança jurídica. Aliás, a própria Corte Suprema há de zelar por

definições ordenadas e constantes, mediante a adoção uniforme de propriedades e

critérios, possibilitando a previsibilidade na regulação dos vínculos estabelecidos entre

Fiscos e contribuintes.

303 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 390.840/MG. Relator: Ministro

Marco Aurélio. Julgamento: 09 nov. 2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 15 ago. 2006.

304 VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005, p. 233.

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Não se pode perder de vista que essa enérgica intertextualidade inerente ao

contexto jurídico, fundamental para a devida aceitação e legitimação de interpretações,

opera-se num ordenamento hierarquicamente estruturado. Num sistema jurídico como o

nosso, em que a forma (texto) e o conteúdo (contexto) vêm das normas superiores,

incumbe ao legislador e aplicador in concretu produzir normas ajustadas aos diversos

níveis hierárquicos dos veículos introdutores de enunciados, acima de tudo afinadas com

a Constituição da República, arcabouço de extenso catálogo de direitos fundamentais

dos contribuintes, mormente as regras de reserva de competências e os princípios

constitucionais tributários (irretroatividade, legalidade, anterioridade etc.). De fato, para

superar a vagueza que se encontra constitucionalmente estatuída, realiza-se o percurso

da positivação do direito tributário a partir das normas de mais alta hierarquia para assim

produzir normas providas de maior conotação das materialidades dos impostos,

objetivando a individualização e a concretude normativas que motivam os

comportamentos inter-humanos.

É por essa razão que a alteração semântica de conceitos constitucionais não

cede às vicissitudes dos usos linguísticos gerais, fruto da progressão mundana, tampouco

às vontades do legislador infraconstitucional, devendo, sempre, decorrer do plano

constitucional, conforme corrobora Andrei Pitten Velloso reportando-se aos

ensinamentos de Canotilho:

Não obstante se deva reconhecer certo espaço à interpretação da Constituição conforme as leis, não há como se pretender que as alterações legislativas determinem a mutação de conteúdo dos signos constitucionais, como bem enfatiza Canotilho ao abordar especificamente o tema da mutação constitucional: “Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição conforme as leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizantes, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos ‘metajurídicos’ (sociológicos e políticos)305.

A nova definição do conceito somente repercutirá no campo das

competências tributárias se for admitido pelo próprio Texto Supremo, ficando então a

pessoa política autorizada a instituir e exigir o imposto a partir dessa inovação

305 VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005, p. 231.

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interpretativa, já que, frise-se, possui competência para tanto. Se a exegese jurídica

pretendida rompe com a Constituição, ditando a modificação da própria competência

tributária, exigir-se-á processo formal de alteração do texto da Carta Suprema,

implementado pelo Poder Constituinte, a fim de introduzir enunciados que

fundamentem a aplicação do novo conceito proposto.

Um exemplo emblemático concerne às inovações, em matéria de PIS e

COFINS, introduzidas pelo art. 3º, §1º, da Lei nº 9.718/1998. Conquanto a redação do

texto constitucional, vigente à época da edição da lei em comento, apenas autorizava a

incidência sobre o faturamento e não sobre a receita, o que só veio a ocorrer, em

momento posterior, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 20/98, o legislador

federal pretendeu equiparar os conceitos de receita e faturamento para fazer incidir

referidas contribuições sobre a totalidade das receitas auferidas pelas pessoas jurídicas,

independentemente da atividade por elas desenvolvidas e da classificação contábil

adotada.

Submetida a matéria a julgamento no STF306, firmou-se entendimento pela

inconstitucionalidade do art. 3º, §1º, da Lei nº 9.718/1998, sob o argumento da

impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de

consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou

implicitamente pelo constituinte. Registrou também a Corte Suprema que as

modificações trazidas pela EC nº 20/98 sobre as possíveis novas fontes de financiamento

da seguridade social, só produzem efeitos para o futuro, não estando habilitadas a

juridicizar fatos concretizados antes de sua entrada em vigor, afastando a figura da

constitucionalidade superveniente.

O entendimento da Corte no caso acima demonstra, mais uma vez, que, por

mais vagas que sejam as formulações linguísticas, gerais e abstratas, na Constituição,

possibilitando ao legislador do ente político instituir a regra-matriz de incidência

tributária para abarcar as perenes ocorrências empíricas, há limites para alcançar a

profusão factual. Com efeito, quando o legislador constituinte empregou vocábulos

306 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 390.840/MG. Relator: Ministro

Marco Aurélio. Julgamento: 09 nov. 2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 15 ago. 2006.

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como “mercadoria”, “serviço”, “propriedade” e “renda”, o fez pressupondo os seus

contornos semânticos, de tal sorte que a atualização interpretativa não pode extrapolar a

dimensão normativa escolhida pelo constituinte, estruturada para garantir o exercício

harmônico das competências por cada pessoa política e evitar incursões na esfera de

outro ente tributante responsáveis pela perversa bitributação em detrimento do

contribuinte. Do contrário, no intento de redesenhar o perfil jurídico de gravames fiscais,

não só a competência residual perderia sua razão de estar contemplada no art. 154, I,

como todo o esquema textual discriminativo das competências estaria comprometido,

restando inócuas suas disposições.

Não cansamos de anunciar, retomando as preciosas recomendações de

Geraldo Ataliba, que, sob o manto da rigidez jurídica do quadro constitucional de

distribuição de aptidões para instituir impostos, o legislador não é livre para eleger suas

materialidades e os conteúdos de significação dos termos empregados na Constituição.

Para toda e qualquer persecução fiscal, o agente competente está adstrito ao texto

constitucional e, por conseguinte, diante de progressos nas áreas econômicas e

financeiras, a interpretação dos enunciados de competência tributária reclama o

indeclinável dilema jurídico: ou tais fatos ajustam-se à expressa e estrita faixa de instituir

impostos elencados nos arts. 153, 155 e 156 ou concernem à competência residual,

destinada a criar impostos novos, não previstos pelo constituinte.

Se não bastasse, caso aceita a mutação de conceito constitucional, pois

harmonizada com as faixas de competências impositivas, a nova interpretação reivindica

obediência ao cânone da legalidade tributária. Se a lei prevê em sentido diverso, é

imprescindível que o Poder Legislativo do ente político competente redefina, em termos

legais, o novo conceito constitucional adotado, vale dizer, redefina os critérios de uso e

os atributos segundo os quais um termo pode ser utilizado num certo contexto,

delimitando, hipoteticamente, o conjunto de fatos suscetíveis à tributação. “Assim,

havendo a alteração de sentido de um enunciado constitucional, as normas

infraconstitucionais previamente existentes, se incompatíveis com o mesmo, devem ser

revistas”307, requisitando a produção de um novo regramento infraconstitucional e, com

307 BARRETO, Simone Rodrigues Costa. Mutação do conceito constitucional de mercadoria. São

Paulo: Noeses, 2015, p. 65.

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isso, amoldando a disciplina legal à contemporaneidade das relações interpessoais, tudo

em conformidade com a ordem constitucional tributária.

A edição de novo regramento especial é providência imprescindível para dar

cumprimento efetivo à tipicidade tributária, corolário da estrita legalidade. A tipicidade,

ao exigir que a lei especifique em seu bojo, os aspectos descritores mínimos do fato

sobre o qual recai a carga tributária, indispensáveis para que o destinatário da norma

compreenda as situações tributadas, consubstancia relevante barreira no movimento

normativo autogerador do sistema do direito positivo, pois, de acordo com os

ensinamentos de Alberto Xavier, determina o emprego de “conceitos determinados,

entendendo-se por estes (e tendo em vista a indeterminação imanente a todo o conceito)

aqueles que não afetam a segurança jurídica dos cidadãos, isto é, a sua capacidade de

previsão objetiva dos seus direitos e deveres tributários”308.

A definição conotativa do núcleo factual da hipótese normativa por

intermédio de lei, para fins de atendimento à tipicidade, permite ainda verificar se, no

processo de interpretação e aplicação da lei no caso concreto, o aplicador procedeu,

corretamente, ao ato de subsunção entre a descrição do evento jurídico (fato relatado) e

a sua tipificação no antecedente da norma tributária (previsão hipotética).

[…] a regra individual e concreta deve guardar correspondência total com o tipo previsto pela regra geral e abstrata […]. Ao mesmo tempo que o fiscal, pela vinculação de sua atividade, é obrigado a aplicar a regra ao caso concreto, só pode fazê-lo se o caso se subsumir à regra […]. Por exemplo, não basta um serviço enquanto tal ser suficiente como suporte fático para a aplicação do ISS. É mister que este esteja expressamente tipificado, não autorizando interpretações analógicas ou ficcionais309.

Igualmente deve ser garantido aos particulares a possibilidade de prever os

efeitos jurídicos das inovações interpretativas, assegurando-lhe a planificação de seus

atos. “Em nome da boa-fé no diálogo e tendo em vista a colaboração que deve guiar os

interlocutores, qualquer mudança abrupta de significação há de ser devidamente

308 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética,

2001, p. 19. 309 CARVALHO, Cristiano. Ficções jurídicas no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2008, p. 268-

273.

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anunciada”310, permitindo sua compreensão, sem surpresas, pelos destinatários da nova

mensagem, à luz da diretiva axiológica do princípio constitucional tributário da

anterioridade.

Com essas reflexões, e já em rumo às conclusões, pretendemos deixar claro

que, na demarcação rígida do quadro de competências tributárias, o constituinte faz uso

de palavras que, enquanto criações humanas, veiculam núcleos significativos

convencionados por fatores culturais e, principalmente, sedimentados, de tempo em

tempo, pelos utentes da linguagem jurídica. Designados tais conteúdos de conceitos

constitucionais, estes são indispensáveis à própria mecânica subsuntiva do direito, pois,

definidos, permitem conhecer o fato descrito hipoteticamente no antecedente normativo

em cotejo com o fato sobre o qual a norma irá incidir. Partindo dos conceitos

constitucionais, o legislador define seus contornos para a instituição legítima dos

tributos. É na definição dos conceitos constitucionais que melhor identificamos os

limites interpretativos para a persecução tributária.

Dada a infinidade do processo de compreensão dos fenômenos, a vagueza

dos vocábulos e as perenes mudanças na realidade fático-social referida pelas palavras

e expressões jurídicas, não se pode negar que interpretações são revistas e os conceitos

podem sofrer, ao longo do tempo, reconstruções significativas pelos operadores do

direito. Contudo, nesse caminho incontornável de dar respostas e soluções às exigências

contemporâneas, a tomada de decisões pelas reconstruções conceptuais, sempre

revestidas de fundamentação racional-explícita e fundadas no primado da segurança

jurídica, encontra rigorosos limites para sua legitimação no campo dos tributos,

impondo-se considerar, acima de tudo a Constituição na parte em que enuncia os

princípios e a distribuição minudente das competências tributárias.

Como efeito direto da regra do jogo do sistema do direito positivo de exigir

obediência à hierarquia das normas, a interpretação e a aplicação, pelos órgãos

competentes, dos dispositivos outorgantes de competências tributárias, a pretexto de

conferir maior precisão e concreção às normas superiores, estão sempre circunscritas ao

arquétipo semântico plasmado na Constituição, conformado pelo intenso dialogismo

310 MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Competência tributária: entre a rigidez do sistema e a

atualização interpretativa. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 76.

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resultante das relações pragmáticas que interferem na comunicação jurídica, tudo com

o fito de assegurar o pacto federativo e garantir aos contribuintes o conhecimento

previsível das prescrições a que estão submetidos.

É a partir dessa intensa vigilância hermenêutica, afinada ao texto e ao

contexto na conformação hierárquica da realidade jurídica, atentando-se às concepções

semânticas possíveis a partir da interpretação do texto supremo, que serão examinadas

as materialidades do ICMS-Mercadoria e do ISS.

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218

2 O CRITÉRIO MATERIAL DAS REGRAS-MATRIZES DE INCIDÊNCIA DO

ICMS-MERCADORIA E DO ISS

Alicerçados no contexto normativo vigente, propomos, no desenrolar deste

capítulo, definir os conceitos dos termos e expressões enunciadas pelo constituinte na

outorga das competências aos Estados e aos Municípios para criar, respectivamente, o

ICMS-Mercadoria e o ISS, demarcando o conjunto de eventos que podem ser

qualificados como “operações relativas à circulação de mercadorias” e “prestação de

serviços”.

Para tanto, torna-se indispensável recorrermos à esquematização lógico-

semântica da regra-matriz de incidência tributária que, como ferramenta metodológica

para pensar o direito, permite-nos delimitar, com maior precisão, o campo nuclear dessas

incidências normativas.

2.1 O percurso para a construção de sentido dos textos jurídicos e as normas

jurídicas em sentido amplo e sentido estrito

As normas jurídicas resultam da tomada de consciência acerca do fenômeno

jurídico a partir da leitura dos textos legislados. São construções semânticas alcançadas

pelo intérprete que, em contato com a linguagem do direito positivo, passa a formular

noções e juízos sobre os enunciados jurídicos, conforme seu sistema de referência.

O trajeto percorrido para a construção de sentidos dos textos jurídicos inicia-

se no plano da expressão, exteriorizado pelos documentos legislativos (S1). Em contato

com a literalidade textual ingressa o exegeta no universo dos conteúdos, adjudicando

significações isoladas às orações prescritivas, cuja sentença é considerada na sua

individualidade e sem qualquer forma específica de agrupamento lógico (S2). Ato

contínuo, essas significações isoladamente produzidas são contextualizadas,

confrontadas com outras, para edificar juízos hipotéticos-condicionais de sentido

deôntico completo, simbolizados na seguinte fórmula proposta por Hans Kelsen:

D(H→C), a qual interpreta-se “Se o antecedente, então deve-ser o consequente”, em que

significações construídas no plano anterior realizam a hipótese, implicando

significações que realizam a consequência (S3). Por fim, essas unidades completas de

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sentido, hábeis a orientar definitivamente a conduta, são articuladas em relações de

coordenação e subordinação para a composição da forma superior do sistema jurídico

(S4)311.

As diferentes acepções de norma jurídica empregadas pelos teóricos do

direito fundam-se, especialmente, por se referirem a ela como as unidades contempladas

nos 4 (quatro) subsistemas interpretativos acima explicitados (S1, S2, S3, S4). Assim,

norma jurídica é designada como enunciado prescritivo312 se tomada no plano da

expressão (S1); como proposição jurídica313 quando concebida no plano das

significações isoladas (S2); e, com base no plano das significações estruturadas com

sentido deôntico completo (S3), que mantêm entre si relações de subordinação e

coordenação (S4), é também designada como norma jurídica em sentido estrito314. Esta

última, formulada pelo exegeta com sentido prescritivo completo, mediante a

combinação de proposições jurídicas, expressa “a unidade mínima e irredutível de

manifestação do deôntico”, de que devem se revestir os comandos jurídicos para que

sejam adequadamente cumpridos pelos seus destinatários.

Posta nesses termos, podemos definir norma jurídica (i) em sentido amplo,

que compreende tanto os enunciados prescritivos quanto as proposições jurídicas, como

também as significações com estrutura lógica de um juízo hipotético-condicional; e (ii)

em sentido estrito, consistente nestas últimas significações de sentido deôntico

completo, em cujo antecedente (hipótese) tem-se a proposição de natureza descritiva,

apontando as propriedades do enunciado factual, às quais deve atender o evento do plano

311 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo:

Noeses, 2015, p. 192-197. 312 Enunciado prescritivo: é o dado material/físico do Direito (palavras, vocábulos, frases), produto da

enunciação. Trata-se do conjunto de fonemas ou de grafemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma, tornam possível a comunicação da mensagem isolada.

313 Proposição prescritiva: são os conteúdos significativos construídos isoladamente a partir dos enunciados prescritivos (oração). Aurora Tomazini de Carvalho classifica as proposições prescritivas, segundo o critério da posição que cada uma ocupará na composição da estrutura normativa, em: “(i) nucleares do fato; (ii) espaciais; (iii) temporais; (iv) de sujeitos: (iv.a) ativo e (iv.b) passivo; e (v) nucleares da conduta prescrita” (CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2014, p. 353).

314 Tanto a proposição quanto a norma jurídica em sentido estrito consubstanciam significações. Porém, a primeira é incompleta, do ponto de vista deôntico, enquanto que a segunda prescreve conduta de forma completa. Em relação à norma jurídica em sentido estrito, constrói-se o sentido do texto positivado, inserido em um contexto jurídico.

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concreto, e, no consequente, localiza-se a proposição de natureza prescritiva, definindo,

conotativamente, os critérios para a identificação da relação jurídica.

Na organização formal da unidade normativa em sentido estrito, percebe-se

que há dois nexos relacionais, sempre de caráter deôntico: (i) o vínculo

interproposicional, operado pelo functor deôntico neutro e denominado functor-do-

functor (D), interligando as proposições antecedente e consequente da norma jurídica; e

(ii) o vínculo intraproposicional, cujo operador deôntico, modalizado nas formas

obrigatório, permitido ou proibido (O, P e V), conecta dois sujeitos de direito em torno

do objeto prestacional. Em linguagem totalmente formalizada, temos: D[H→R(S’, S”)],

em que “D” é o functor-do-functor (deve ser o vínculo implicacional entre hipótese e

tese); “H” é a hipótese; “→”, o conectivo lógico implicacional; “R(S’, S”)”, a tese

(consequente). Na tese, “R” é variável relacional, tripartindo-se nos modais obrigatório

(O), permitido (P) e proibido (V); e S’ e S”, os termos-sujeitos desta relação.

Referidos vínculos na configuração lógico-formal da norma jurídica

traduzem uma tomada de decisão do próprio legislador que, ao produzir os textos

legislativos, julgou relevante a vinculação para a persecução dos valores que a sociedade

quer ver implementados. O liame internormativo expressa a vontade da autoridade

competente em relacionar determinado fato social a determinada conduta, ao passo que

o nexo intraproposicional, se modalizado como “obrigatório” e “permitido”, reflete

valores positivos, pois demonstra que a sociedade aprova a conduta prescrita para um

melhor convívio social, e, quando modalizado como “proibido”, traz um valor negativo,

reprovando os indivíduos o comportamento regulado.

A pretexto de remate, não podemos deixar de registrar que as normas

jurídicas nada afirmam ou informam acerca da realidade, sendo que permanecem válidas

no sistema, ainda que o fato descrito na hipótese normativa não se confirme no plano da

realidade social315. O descritor da norma não constitui proposição empírica, relatando

fato que efetivamente se verificou. Trata-se apenas de uma proposição tipificadora de

315 “[...] a hipótese, que é proposição descritiva de situação objetiva possível, é construção

valorativamente tecida, com dados-de-fato, incidente na realidade e não coincidente com a realidade. Falta-lhe, pois, status semântico de enunciado veritativo” (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o sistema do Direito Positivo. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2005, p. 86).

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um conjunto de fatos que, se constituídos juridicamente por meio de linguagem

competente, implicarão consequências jurídicas.

2.2 A regra-matriz de incidência tributária

Dentre as acepções de normas jurídicas explicitadas, todas elas produto de

cortes simplificados e abstratos sobre o dado jurídico, importa-nos especificamente a

norma jurídica em sentido estrito, instrumento básico de funcionalidade do direito e cuja

estrutura e locução de juízo hipotético-condicional têm o mesmo alcance sintático-

semântico da regra-matriz de incidência, modelo teórico concebido, com rigor, por

Paulo de Barros Carvalho, a partir de uma investigação minudente da fórmula kelseniana

e inspirado nas lições de Alfredo Augusto Becker e Geraldo Ataliba.

A regra-matriz de incidência traduz expediente metódico essencial para a

aproximação do ser cognoscente com o fenômeno jurídico, favorecendo sua fórmula a

compreensão dos elementos atinentes à incidência normativa. Ao conhecer a fórmula

com que fazem as normas, o jurista “passa a entender que fatores são relevantes para

dizer que há – ou não – os pressupostos necessários à incidência dessa ou daquela regra

e compreender, criticamente, o trajeto de positivação das normas jurídicas”316.

No campo do direito tributário, a regra-matriz de incidência constitui a norma

de comportamento por excelência ao dispor sobre a instituição dos tributos. Quando

identifica, no seu antecedente, os critérios de uma classe de eventos de possível

ocorrência para que reste considerado ocorrido o fato jurídico tributário e, no

consequente, os critérios de uma classe de vínculos intersubjetivos no qual se encaixam

infinitas relações jurídicas, estabelece quais os dados da experiência social devem ser

considerados para a realização da persecução impositiva e, por conseguinte, que

autorizam o agente competente a produzir as normas individuais e concretas em face

dos sujeitos ativo e passivo.

Desmembrada a regra-matriz de incidência tributária, encontramos, na sua

hipótese normativa, a descrição de um comportamento humano (critério material),

316 BRITTO, Lucas Galvão de. Notas sobre a regra-matriz de incidência tributária. Revista de Direito

Tributário, São Paulo: Malheiros, n. 115, p. 84-95, 2012.

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condicionado num determinado intervalo de tempo (critério temporal) e de espaço

(critério espacial), e, na sua tese, a prescrição de um vínculo jurídico conectando o

sujeito ativo e o sujeito passivo (critério pessoal) em torno da prestação pecuniária

(critério quantitativo). Renunciando a qualquer conteúdo significativo na composição

desses termos antecedente e consequente, extraímos a seguinte linguagem simbólica317:

D{[Cm (v.c).Ce.Ct]→[Cp (Sa.Sp).Cq(bc.al)]}

Em que: Cm é o critério material, correspondente ao núcleo factual, no qual

se encontra descrito um agir humano, representado por um verbo (v) e seu complemento

(c); Ce significa o critério espacial, que indica, expressa ou tacitamente, as condições de

lugar onde se reputa ocorrido o fato desencadeador da relação jurídica; Ct traduz o

critério temporal que demarca os elementos para saber o exato instante em que se

considera ocorrido o fato; Cp é o critério pessoal formado pelos sujeitos que irão compor

a relação jurídico-tributária, situando-se, de um lado, o sujeito ativo (Sa), titular do

direito subjetivo de exigir a prestação pecuniária, e, do outro, o sujeito passivo (Sp), de

quem se exige o cumprimento da prestação; e Cq é o critério quantitativo que possibilita

precisar o objeto da prestação obrigacional, composto pela base de cálculo (bc),

caracterizada como a perspectiva dimensível do fato jurídico tributário, e pela alíquota

(al), a qual, congregada à base de cálculo, delimita o montante do valor devido a título

de tributo.

Os critérios presentes na hipótese e na consequência reúnem o quantum de

enunciados prescritivos indispensáveis para a compreensão plena da mensagem jurídica.

Toda norma instituidora de direitos e deveres correlatos há de preencher cada um desses

critérios da fórmula, imprescindíveis para a formação do sentido deôntico completo.

Nesse passo, o esquema lógico-semântico da regra-matriz de incidência

auxilia o jurista e o aplicador do direito na análise das leis tributárias, pois a partir dele

constroem-se as normas jurídicas de acordo com as materialidades eleitas pelo

constituinte e demais conteúdos dos textos positivados. Esse preenchimento da

317 CARVALHO, Paulo de Barros. IPI – Comentários sobre as Regras Gerais de Interpretação da Tabela

NBH/SH (TIPI/TAB). Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, n. 12, p. 42-60, set. 1996.

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esquematização da regra-matriz, consoante elucida Aurora Tomazini de Carvalho318,

cumpre funções operacionais extremamente úteis na interpretação e aplicação do direito.

Facilita ao intérprete determinar com precisão o campo de extensão dos conceitos

conotativos do fato hipoteticamente previsto e da relação a ser instaurada juridicamente,

identificando o âmbito de incidência normativa.

Além do papel de fornecer todas as informações para definir os conceitos da

hipótese e do consequente, outra função operacional, decorrente da primeira, é o

controle do ciclo de positivação para apurar eventual constitucionalidade e/ou legalidade

da norma. Isso porque, preenchido o conteúdo da sua estrutura lógica, incumbe ao

exegeta investigar, primeiro, se a linguagem do legislador, produzida para a instituição

da própria norma-padrão de incidência, guarda consonância com as normas superiores,

e, segundo, se a norma individual e concreta produzida está de acordo com a regra-

matriz de incidência que lhe serve de fundamento.

Com estes torneios pretende-se aqui assinalar que a regra-matriz de

incidência tributária, como ferramenta metodológica que organiza o texto bruto do

direito positivo, conjugando critérios mínimos na hipótese e na consequência, serve

como fórmula simplificadora extremamente útil para aprofundar os estudos em matéria

de tributos, pois não só oferece ao estudioso do direito “um ponto de partida

rigorosamente correto, sob o ângulo formal”, como também “favorece o trabalho

subsequente de ingresso nos planos semântico e pragmático, tendo em vista a

substituição de suas variáveis lógicas pelos conteúdos da linguagem do direito

positivo”319.

Firmadas essas assertivas, ocupemo-nos, no próximo item, com apenas um

dos critérios conceptuais estipulados para a identificação da hipótese normativa,

isolando, assim, o critério material, núcleo do acontecimento fáctico descrito no

antecedente da norma instituidora do tributo, abstraindo, com isso, as condicionantes de

tempo e espaço eleitas para a realização do evento tributário.

318 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-

semântico. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2014, p. 424. 319 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 154-155.

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2.2.1 A hipótese tributária e o seu critério material

Retomando linha de raciocínio já desenvolvida neste trabalho, a linguagem

do direito positivo reduz a linguagem social na medida em que, valendo-se de modelos

linguísticos gerais e abstratos, seleciona da rica heterogeneidade das condutas

intersubjetivas determinados eventos, os quais, ostentando signos presuntivos de

riqueza, servirão para compor o antecedente das regras-matrizes dos impostos,

desprezando outros dados empíricos irrelevantes.

Nessa escolha de acontecimentos que servirão de base para a incidência

tributária, o legislador seleciona propriedades e traços específicos do fato, constituindo

conceitos, aqui denominados “hipótese”. A hipótese, portanto, figura como um conceito

abstrato identificativo do fato tributário, condicionante da realização de consequências

jurídicas. Ela “não contém o evento, nem o fato jurídico, ela descreve uma situação

futura, estabelece os critérios que identificam sua ocorrência no tempo e no espaço”320.

É sempre oportuno consignar que, antes de o evento ser descrito na hipótese,

este em nada significa para a fenomenologia do direito. O evento se torna juridicamente

relevante, capaz de produzir efeitos prescritivos de condutas, quando ingressa no

universo do direito através da porta aberta da hipótese. Mas, ainda aqui, não há que falar

em fato jurídico propriamente dito. Trata-se tão somente de fato do plano da facticidade

social que, colhido pela linguagem do direito positivo para compor o antecedente da

norma geral e abstrata, tornou-se relevante no campo jurídico. Ter-se-á fato jurídico,

propagando os efeitos que lhe são próprios, quando o acontecimento, delimitado no

tempo e no espaço, é constituído em linguagem competente, com a expedição da norma

individual e concreta.

Pois bem. Considerando que a hipótese da regra-matriz tributária oferece as

notas conceptuais que possibilitam identificar o acontecimento toda vez que ele se

sucede, vimos que as propriedades eleitas pelo legislador para o reconhecimento do fato

descrito na integralidade conceptual do antecedente normativo compreendem diretrizes

de comportamento, de tempo e de lugar. São assim seus elementos constitutivos: (i) o

320 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-

semântico. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2014, p. 387.

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critério material, que abriga as propriedades da ação nuclear do evento; (ii) o critério

espacial, que identifica o local onde ocorre o evento; e (iii) o critério temporal, que traz

o momento da ocorrência do evento. Todos esses aspectos exprimem os dados

significativos mínimos para a concretização do fato jurídico tributário, apto a instaurar

o vínculo entre o sujeito ativo e o sujeito passivo.

Observa-se, portanto, que o critério material representa apenas um dos

aspectos conceptuais do arcabouço da hipótese. É uma das notas identificativas da classe

de fatos tipificada na lei que autoriza a persecução fiscal. Nele encontramos a descrição

de um comportamento humano, ora traduzido em um ser, ora em ações de um fazer ou

de um dar. Por conter o próprio núcleo do fato, o critério material estampa o elemento

central que o legislador passa a condicionar, quando faz referência aos demais critérios.

E, ao demarcar esse núcleo factual, o legislador o compõe de (i) um verbo, que exprime

a ação ou o estado da pessoa, (ii) seguido de seu complemento, adjetivando o proceder

humano. Encontraremos, por exemplo, no critério material, “industrializar produtos”,

“prestar serviço”, “realizar operações de circulação de mercadorias”, “auferir renda”,

“ser proprietário de bem imóvel” etc.

É preciso enfatizar que a interpretação jurídica não se exaure no plano formal,

pois sabe-se que é imprescindível tornar as variáveis lógicas significativas a partir dos

conteúdos do direito positivo. De fato, não obstante o estudo das propriedades formais

das normas jurídicas configure ferramenta eficiente para a compreensão da realidade

jurídica, ele não é suficiente, havendo a necessidade de investigar os conteúdos de

significação da linguagem do direito positivo (semântica) e as formas e os modos de

aplicação dos signos jurídicos (pragmática), caso contrário ter-se-á apenas uma

categoria algorítmica, imprestável para a dogmática jurídica321.

À vista de tais fundamentos, já convém antecipar que concentraremos nossa

pesquisa, logo adiante, nos específicos critérios materiais das regras-matrizes de

incidência do ICMS-M e do ISS, com o propósito de preencher, a partir dos textos do

direito positivo, seus conteúdos significativos e, assim, averiguar quais marcas nucleares

321 “O reducionismo da norma ao fato (sociologia), da norma positiva à norma ideal (jusnaturalismo),

dos valores e normas às estruturas lógicas (logicismo) é sempre um desconhecimento da experiência integral do Direito” (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o sistema do Direito Positivo. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2005, p. 24).

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necessárias os acontecimentos sociais eleitos pelo legislador constituinte devem ter para

serem considerados fatos jurídicos desses impostos.

Frisamos, novamente, que não será examinada na presente investigação

científica a integralidade conceptual da hipótese, procedendo, por abstração, à

desagregação dos demais componentes – o espacial e o temporal –, exclusivamente para

efeito de análise do proceder humano apto a ser promovido à categoria de fato jurídico

do ICMS-M e do ISS.

2.2.1.1 Ainda sobre o critério material: o fato “tipo estrutural” e a

unidade/pluralidade dos negócios jurídicos e seus reflexos na

identificação do fato jurídico tributário

Como já tivemos a oportunidade de estudar, a Carta Republicana na

distribuição das competências tributárias estipulou de forma rígida e categórica as

situações materiais reveladoras de capacidade contributiva, suscetíveis de serem

tributadas pelos impostos da União, dos Estados e dos Municípios. Para compor o núcleo

factual das respectivas hipóteses tributárias, verificamos também que o constituinte

elege acontecimentos econômicos relacionados aos particulares, fazendo, muitas vezes,

referência a conceitos e institutos jurídicos afetos ao direito privado.

Paulo de Barros Carvalho322 distingue essas situações passíveis de tributação

selecionadas pelo constituinte em “tipos estruturais” e “tipos funcionais”. Em suas

palavras, o tipo funcional “consiste na atribuição de competência para tributar um fato

sem qualquer relação com a categoria de direito privado pré-concebida”. Aqui, a

hipótese é integrada pela obtenção de um resultado econômico, independentemente do

negócio jurídico praticado, tal como se verifica no imposto sobre a renda e proventos de

qualquer natureza, em que são irrelevantes as formas pelas quais a renda é auferida. De

outra sorte, o tipo estrutural estaria evidenciado “quando a hipótese normativa

apresentar notas características de formas e atos de direito privado”, como nas situações

tributadas pelo ITCMD e ITBI apontadas pelo autor.

322 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 499.

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Essa distinção se faz de extrema relevância, porque, nos tipos estruturais, a

forma como o negócio jurídico é executado e formalizado importa para averiguar se o

fato é ou não tributável por determinada exação fiscal. Vale dizer:

[...] nos casos em que a regra-matriz tributária elege em sua hipótese um “tipo estrutural”, a fenomenologia da incidência somente se verificará quando o procedimento adotado pelo particular corresponder inteiramente à forma normativamente prevista. Se o procedimento empregado pelo particular é diverso daquele utilizado para concretizar-se o negócio conotativamente descrito pela norma jurídica, distintos são os fatos jurídicos, ainda que seus efeitos econômicos sejam semelhantes. E a incidência normativa deve respeitar tal peculiaridade, surgindo o liame obrigacional nos exatos termos prescritos pela regra-matriz relativa ao tipo estrutural verificado323.

Em similar linha de raciocínio, elucida Alfredo Augusto Becker que, quando

negócios jurídicos entram como elementos do suporte fático, eles não perdem sua

juridicidade, e é exatamente pressupondo a peculiar estrutura jurídica, designada por

determinados conceitos e formas do direito privado, integrando o conteúdo da hipótese,

que a regra tributária há de ser interpretada, abstraindo os efeitos econômicos

produzidos. Diante de “tipos estruturais” compondo o núcleo factual tributário, os

contornos de negócio jurídico traduzem o elemento mais importante, permitindo

distinguir as regras de tributação umas das outras.324

Uma vez demarcado o “tipo estrutural”, aproveitamos a ocasião para

retomar325, brevemente, nossas reflexões acerca da unidade e pluralidade dos negócios

jurídicos, em especial sobre os negócios jurídicos complexos, sua repercussão na

identificação do fato e respectivo enquadramento fiscal.

Estar-se-á diante da pluralidade quando a relação contratual refletir negócios

jurídicos diversos, devendo eles ser considerados em separado no trato das questões

cíveis e, por conseguinte, para fins de incidência tributária. Assim, diversamente dos

negócios jurídicos únicos, na estrutura plural cada liame negocial conserva sua

323 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 499-500. 324 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p.

347, 351. 325 Vide item 3.5, Parte 1.

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especificidade e individualidade e, por isso, sobre cada um deles incidem regras

jurídicas próprias, independentemente de como se dá a respectiva instrumentalização.

Por sua vez, nos negócios jurídicos únicos, quando do tipo complexos, em

que vários elementos negociais representam uma combinação incindível, voltados para

um fim comum, vimos que é preciso identificar a finalidade negocial específica

preponderante que confere à estrutura jurídica sua unidade, para então determinar as

regras jurídicas aplicáveis. Por inexistir na complexidade uma mistura de negócios

jurídicos diversos e autônomos, mas, no máximo, manifestações volitivas que não

existem por si só, perfazendo-se um negócio jurídico único a partir da composição

complexa do suporte fático, a incidência normativa sobre esses elementos, conforme

lições de Pontes de Miranda já reproduzidas, não leva em conta a especificidade de cada

um deles, se esses elementos não são os de caráter específico preponderante da

estrutura negocial celebrada.

Desta feita, é a preponderância da especificidade própria de um dos

elementos negociais que servirá de importante critério objetivo para determinar o regime

tributário nos contratos complexos, configurando-se os demais elementos, subordinados

à parte preponderante, atividades-meio necessárias para alcançar jurídica e

economicamente o fim comum pretendido pelas partes contratantes.

As considerações suso desenvolvidas importam para identificar se um fato se

subsome à hipótese da regra-matriz de incidência de determinado imposto. Primeiro,

porque o legislador, quando tipifica o antecedente normativo, não seleciona um conjunto

de eventos que, juntos, são promovidos à categoria de fato jurídico. Ainda que para a

tipificação da hipótese parta o legislador, no pleno pré-jurídico, de dados fáticos

conjugados, colhidos na esfera socioeconômica, ao ingressar no universo jurídico, essa

conjugação adquire uma feição lógica unitária, provocando as devidas consequências

jurídicas conforme seu enquadramento como fato jurídico tributário326. Segundo, porque

o nosso sistema constitucional, nos arts. 153, 155 e 156, repartiu, de forma acurada e

rigorosa, as competências tributárias, distribuindo faixas privativas à União, aos Estados

e aos Municípios para onerar específicas categorias de riquezas, e uma faixa residual à

326 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo:

Noeses, 2015, p. 485.

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União para tributar outros fatos de substrato econômico que não correspondam àqueles

abrigados pelas zonas privativas, exaurindo, assim, o constituinte a disciplina da

competência para instituir impostos.

Após todo o exposto, desvendado o esquema lógico da regra-matriz com a

minudência sobre o núcleo factual da hipótese, passemos agora a traçar as notas

características do conceito nuclear do fato, eleito pelo legislador constituinte, para

integrar o critério material das regras-matrizes do ICMS-M e do ISS. Afinal, tendo em

mente a legalidade e tipicidade tributárias, fatos jurídicos são concretizados por meio da

perfeita subsunção, isto é, desde que respeitados os requisitos linguísticos das hipóteses

normativas.

2.3 O critério material da regra-matriz de incidência do ICMS-Mercadoria

Da leitura do texto constitucional, Roque Antônio Carrazza327 reconhece, no

art. 155, cinco materialidades distintas sob a “sigla ICMS”, a saber: (i) operações

relativas à circulação de mercadorias, que compreende o que nasce da entrada, na

Unidade Federada, de mercadoria ou de bens importados do exterior; (ii) serviços de

transporte interestadual intermunicipal; (iii) serviços de comunicação; (iv) produção,

importação, circulação, distribuição ou consumo de energia elétrica; e (v) extração,

circulação, distribuição ou consumo de minerais.

Dentre as situações apontadas pelo jurista, investigaremos neste escrito a

formulação constitucional do imposto concernente a operações relativas à circulação

de mercadorias, enunciada no artigo 155, primeira parte do inciso II328, e por nós

apelidada de ICMS-Mercadoria (ICMS-M) com o único fim de facilitar a identificação

da específica materialidade objeto de nossos estudos, passando, assim, ao largo da

pesquisa sobre as outras hipóteses previstas na Carta Maior.

Aclarada a temática das presentes meditações, importa observar que, numa

análise sintática do critério material do ICMS-M, o núcleo factual da hipótese encerra

327 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. rev. e ampl. até EC 88/2015, e de acordo com a Lei

Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 42-43. 328 “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: II - operações relativas

à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

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uma obrigação de dar, representada pelo verbo “realizar” acompanhado de seu

complemento “operações relativas à circulação de mercadorias”. Referido objeto direto

já nos revela os dados essenciais para a compreensão do pressuposto normativo da

incidência deste imposto estadual, fazendo-se necessário proceder à investigação

sintático-semântica dos componentes (i) operações, (ii) circulação e (iii) mercadorias.

Por estarem conjugados na frase constitucional, cada um desses vocábulos

impregna o outro com suas características e somente então, quando perseguidas as

respectivas significações, tornar-se-á possível compreender a amplitude significativa

desse trinômio jurídico e objetivar, com exatidão, o que o legislador constituinte

pretendeu alcançar.

2.3.1 O conceito de “operações”

Na arrumação lógica dos termos integrantes do critério material do ICMS-M,

o termo “operações” constitui o cerne da locução completiva do verbo “realizar”. Os

demais componentes – “circulação” e “mercadoria” – adjetivam esse núcleo,

especificando a gama de operações relevantes e, com isso, restringindo o alcance

semântico da proposição jurídica.

No contexto constitucional, tal vocábulo central há de ser interpretado como

“operações jurídicas”, isto é, como negócios jurídicos329 de substrato econômico que

criam, conservam, modificam ou extinguem direitos. Eleger um ato negocial como

elemento nuclear da materialidade do ICMS-M não só se impõe com arrimo no próprio

significado léxico da palavra “operação” que, no campo das atividades econômicas,

denota “qualquer transação comercial”330. Mas resulta também do próprio texto

positivado pelo constituinte, o qual optou expressamente por enunciar, no art. 155, II, a

329 “Negócio Jurídico é aquela espécie de ato que, além de se originar de um ato de vontade, implica a

declaração expressa da vontade, instauradora de uma relação entre dois ou mais sujeitos tendo em vista um objeto protegido pelo ordenamento jurídico” (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 208-209).

330 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, s.v. operação. Disponível em: ˂https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v2-3/html/index.htm#2˃. Acesso em: 29 out. 2016 e também em AULETE DIGITAL. Rio de Janeiro: Lexicon, 2016, s.v. operação. Disponível em: ˂http://www.aulete.com.br˃. Acesso em: 29 out. 2016.

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expressão “operações relativas à circulação de mercadorias”, qualificando o termo

“operação” pela locução adjetiva “circulação de mercadoria”.

Ao assim proceder, quis evidenciar a relação de “causa e efeito” entre

referidos signos: é por intermédio de um negócio jurídico que se tem, como efeito, uma

circulação de mercadoria. Ou seja, na enunciação constitucional, para fins de incidência

do ICMS-M, operações jurídicas representam a condição necessária para que ocorra a

circulação: se sobreveio circulação, é porque lhe antecedeu uma operação jurídica;

porém, inexistindo operação jurídica, incorreu circulação.

Qualquer alternativa exegética, no intento de afastar a prática negocial como

pressuposto de incidência, desprezando a positivação do termo “operação”, provoca um

desvio no sentido da mensagem posta e, em último grau, uma interpretação derrogatória

da Constituição, como se o constituinte estivesse enunciado apenas “circulação de

mercadoria”, cuja consequência implicaria alcançar qualquer tipo de atividade

circulatória, sem considerar a natureza e efeitos jurídicos dos atos praticados. Avalia

Paulo de Barros Carvalho331 que significaria até mesmo reputar consumada a incidência

tributária em hipóteses extremas de ações de furtos de mercadoria, bem como saídas

provocadas por enchentes, desabamentos ou situações semelhantes.

Corroborando a interpretação acima, são elucidativas as colocações do

Ministro Marco Aurélio no julgamento do Recurso Extraordinário nº 158.834332, ao

registrar que a mera saída física “não é de molde para motivar a cobrança do imposto de

circulação de mercadorias. Requer-se, como consta do próprio texto constitucional, a

existência de uma operação que faça circular algo passível de ser definido como

mercadoria”. O Supremo reafirma essa posição há tempos, destacando, em uma das

oportunidades, que simples circulações físicas, sem a ocorrência prévia de operações

jurídicas, não preenchem a figura típica da hipótese de incidência do ICMS-M, a qual

está condicionada à ocorrência de um fato econômico de relevância jurídica333 para

então irradiar consequências tributárias.

331 Parecer inédito. 332 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 158.834/SP. Relator: Ministro

Sepúlveda Pertence. Relator para o Acórdão: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 23 out. 2002. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 05 set. 2003.

333 Id. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento nº 605.950/MG. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: 26 set. 2006. Publicação: DJ, 09 out. 2006.

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Decerto, incluída a palavra “operações” na estrutura frástica, condicionando-

a como dado indeclinável para a própria compreensão global da substância significativa

do complemento ao verbo “realizar”, o legislador constituinte pretendeu atribuir um

sentido diverso à hipótese de incidência do ICMS-M daquele que se construiria com o

simples emprego do termo “circulação”. Exigiu assim que os processos circulatórios

sejam precedidos por operações jurídicas, conforme as formas previstas no direito posto

para circular economicamente mercadorias.

É por essas e outras que Geraldo Ataliba afirma que, para a perfeita exegese

dessa exação fiscal, “toda ênfase deve ser posta no termo ‘operação’ mais do que no

termo ‘circulação’. A incidência ocorre sobre operações e não sobre o fenômeno da

circulação. O fato gerador do tributo é a operação que causa a circulação e não esta” 334.

Na mesma linha, Paulo de Barros Carvalho adverte que o entendimento doutrinário de

que o imposto incide sobre singela circulação implica ignorar o vocábulo do Texto

Supremo, suprimindo “desautorizadamente a palavra-chave, a pedra de toque do

comando constitucional para enfatizar a locução adjetiva”335.

Reconhecida a relevância do termo “operação”, compreendido como negócio

jurídico, parte-se, no item seguinte, para analisar o requisito constitucional da

“circulação”, a qual, enquanto elemento qualificativo daqueloutro, limitou o conjunto

de práticas negociais que ensejam a instauração de obrigações tributárias relacionadas

ao ICMS-M.

2.3.2 O conceito de “circulação”

Por necessidade lógico-jurídica e sempre prezando por uma interpretação

sistemática, o conteúdo significativo do termo adjetivo “circulação” há de ser

demarcado a partir do conceito do termo substantivo “operação”, construído no tópico

anterior. Deste modo, uma vez definida “operação” como ato negocial, impõe-se

averiguar o que é “circular” sob o pálio de um título jurídico.

334 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.

246. 335 Apud ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do ICM. Revista

de Direito Tributário, ano 7, n. 25/26, jul./dez. 1986, p. 106-107.

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Firmes nessa premissa, Geraldo Ataliba e Cléber Giardino336 definem

circulação de mercadorias como a transferência de direitos de disponibilidade jurídica

sobre a mercadoria. Quando circulada nesses moldes, o novo titular da mercadoria passa

a deter os direitos de dela dispor, sendo ou não seu proprietário. Realçam os autores que

“circular” na compostura do ICM – do qual derivou o atual ICMS –, além de não se

limitar às operações jurídicas específicas oneradas pelo antigo imposto sobre vendas e

consignações (IVC) concebido no art. 8º, I, ‘e’, da Constituição de 1934337, é conceito

mais amplo do que a transferência de domínio estritamente considerada no âmbito do

direito privado. Por não se restringir a materialidade deste imposto estadual, no entender

destes juristas, à transferência de propriedade strictu sensu, afirmam que “a mera

transferência de posse – a título negocial – produz circulação” tributável, desde que –

relevante frisar – “implique transferir poderes jurídicos típicos de domínio, conferindo

ao transmitido disponibilidade jurídica sobre a mercadoria”338.

Por essa vereda, Ataliba e Giardino concluem, então, que há circulação de

uma mercadoria se a pessoa passa a ter o direito de dispor da coisa, como sucede nos

contratos de consignação, compra e venda, comissão mercantil, penhor etc. De outra

sorte, não representam atos negociais que impulsionam o fato imponível do ICMS-M os

contratos de depósito, locação, comodato etc., justamente porque, nesses ajustes

jurídicos, sequer se transfere o poder de disponibilidade sobre a mercadoria.

Embora sobre idênticos alicerces de que circulação há de ser compreendida

como fenômeno jurídico em decorrência do sentido do termo “operação” como ato

negocial, Paulo de Barros Carvalho339, Roque Antonio Carrazza340 e José Eduardo

336 ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do ICM. Revista de

Direito Tributário, ano 7, n. 25/26, jul./dez. 1986. 337 O IVC teve vigência no Brasil até o advento da reforma tributária introduzida pela EC nº 18/1965,

cujo art. 12 previu, pela primeira vez, o ICM, atribuindo aos Estados a competência para instituir o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por comerciantes, industriais e produtores.

338 Ibid., p. 112-113. 339 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 754. 340 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. rev. e ampl. até EC 88/2015, e de acordo com a Lei

Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 59.

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Soares de Mello341, de cuja opinião compartilhamos, restringem as práticas negociais

que promovem circulação jurídica. Por entenderem que a mera transmissão do direito

de dispor não satisfaz o critério material do ICMS-M, esclarecem que os negócios

jurídicos circulatórios, para efeitos constitucionais, pressupõem mudança do titular de

domínio, mediante a transmissão efetiva da propriedade em seu sentido privado estrito.

A fim de relatar com fidelidade o pensamento desses autores, são os dizeres

dos dois primeiros: “Deveras, só quando há transferência da titularidade das mercadorias

(o domínio ou a posse indireta, como exteriorização da propriedade) é que o fato

imponível do ICMS se verifica”342; e “Circulação, por sua vez, é a passagem das

mercadorias de uma pessoa para outra, sob o manto de um título jurídico, com a

consequente mudança de patrimônio”343.

O entendimento pela circulação jurídica para fins de incidência do ICMS-M,

todavia, não é unânime na seara doutrinária. Há juristas de peso, como Alcides Jorge

Costa, Bernardo Ribeiro de Moraes e Hugo de Brito Machado, para os quais “circular

mercadoria”, na forma disposta na Constituição, pode denotar puro e simples fenômeno

econômico, prescindindo a circulação da prévia tutela do direito. De acordo com

reflexões iniciais do primeiro autor, em sua obra clássica ICM na Constituição e na Lei

Complementar344, “circulação” é o encaminhamento da mercadoria em direção ao

consumo, inclusive para o autoconsumo, sendo desnecessária prévia transação jurídica

que venha a ocasionar transferência de propriedade ou posse de mercadoria. Parte o

jurista do pressuposto de que operação é qualquer ato voluntário que leve mercadorias

341 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 13,

15-16. 342 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. rev. e ampl. até EC 88/2015, e de acordo com a Lei

Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 59. 343 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 754. 344 Posteriormente, em estudo acerca da tributação do ICMS-Importação sobre arrendamento mercantil,

o autor tende a reformular seu posicionamento inicial. Afirma que: “não pode haver a mais remota dúvida de que a alínea ‘a’ do inciso IX do parágrafo 2º [do art. 155] diz respeito ao próprio ICMS – que requer operação de circulação de mercadorias, vale dizer, negócio jurídico translativo de propriedade” (COSTA, Alcides Jorge. ICMS – Fato Gerador – Arrendamento Mercantil – Importação de Mercadoria – Interpretação da Constituição Federal antes e depois da Promulgação da Emenda Constitucional nº 33, de 2011 – Comentário a Acórdão do STF. In: ______ (Coord.). Estudos sobre IPI, ICMS e ISS. São Paulo: Dialética, 2009, p. 39).

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da fonte de produção até o consumo final, seja ou não acobertado por um negócio

jurídico345.

Igualmente são as orientações de Hugo de Brito Machado, o qual equipara

“circulação” à movimentação econômica, esta caracterizada como “a marcha que as

coisas realizam desde a fonte de produção até o consumo”. Preleciona que “pode haver

circulação sem que tenha havido mudança de propriedade”, bastando que “a coisa saia

da posse da unidade econômica em que se encontra, no trajeto da fonte ao consumo” 346.

Em análoga perspectiva, Bernardo Ribeiro de Moraes afirma que a expressão

utilizada pelo constituinte – “operações relativas à circulação de mercadorias” – está

desvinculada de qualquer negócio ou instituto jurídico. Operações, na visão do autor,

são atividades praticadas por determinados profissionais (comerciantes, industriais ou

produtores) que tenham por finalidade circular mercadorias, seja mediante uma saída

física (circulação física), seja por meio de um negócio jurídico de compra e venda

(circulação jurídica), seja através do trânsito da mercadoria das mãos do comerciante

até o consumidor final (circulação econômica). Eis o excerto que bem sintetiza sua

posição:

Portanto, o vocábulo circulação não pode ser examinado senão dentro da expressão de que faz parte (“circulação de mercadoria”), possuindo, assim, um sentido eminentemente econômico. O certo é que as operações relativas à circulação de mercadorias, praticadas por comerciantes industriais ou produtores, podem ser dos mais variados tipos, originando circulações (sentido unitário) físicas, jurídicas ou econômicas, mas tendo por fim último a circulação de mercadorias, expressão de sentido exclusivamente econômico (etapa econômica da produção ao consumo de bens)347.

Em que pesem as respeitáveis manifestações proclamadas por essas

importantes figuras da dogmática nacional, o Supremo Tribunal Federal, afinado ao

posicionamento exposto neste trabalho, consagrou, em diversas oportunidades, como

345 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária,

1979, p. 88, 91, 92. 346 MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos fundamentais do ICMS. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999, p.

26-27. 347 MORAES, Bernardo Ribeiro de. O imposto sobre circulação de mercadorias no sistema tributário

nacional. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, p. 25-108, 1978, p. 81.

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condição material para autorizar a tributação do ICMS-M, a circulação jurídica da

mercadoria, a qual só se perfaz com a transferência da propriedade do bem.

Sem o objetivo de adentrar nas peculiaridades dos contratos de leasing,

tampouco realizar exame crítico acerca das alterações promovidas no art. 155, §2º,

inciso IX, alínea ‘a’, pela Emenda Constitucional nº 33/2001, os julgados que

apreciaram a constitucionalidade da incidência do ICMS sobre o arrendamento

mercantil internacional servem como paradigmas que muito bem ilustram a

jurisprudência firmada pelo Pretório Excelso. Exemplificando, nos Recursos

Extraordinários nºs 461.968-7348 e 226.899349, em que restou decidido pela sua não

incidência sobre leasing internacional sem opção de compra, assentou-se que a matriz

constitucional do ICMS-M, prevista no art. 155, II, reivindica a transferência de

propriedade, pois essa é a única maneira de poder interpretar a expressão ‘circulação

de mercadoria’.

No julgamento do segundo recurso acima mencionado, foram superados os

argumentos desenvolvidos pela então Ministra Ellen Gracie no sentido de que haveria a

incidência do ICMS mesmo que inexistente a opção de compra pelo arrendante, pois

bastaria uma operação de conteúdo econômico apta a transformar um bem em

mercadoria. Segundo a julgadora, um bem se transforma em mercadoria quando a

operação resulta em “acréscimo” para ambos os polos da relação econômica: “o

acréscimo será financeiro para o vendedor ou arrendador, porque o negócio para ele se

resolve em ingresso de numerário ou em crédito. E será de utilidade necessária ao

desenvolvimento do negócio (ou ao bem-estar ou comodidade) para o

comprador/arrendatário”, prescindindo para a imposição fiscal, na ótica da magistrada,

a verificação da natureza do negócio jurídico ensejador da importação.

Contrárias à tese fundada em critérios econômicos foram as colocações do

Ministro Eros Grau, que, em apreço a um rigoroso exame sintático-semântico da oração

constitucional “operações relativas a circulação de mercadorias”, acabaram por

348 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 461.968/SP. Relator: Ministro Eros

Grau. Julgamento: 30 maio 2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 24 ago. 2007. 349 Id. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 226.899/SP. Relatora: Ministra Rosa

Weber. Relatora para o Acórdão: Ministro Cármen Lúcia. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 01 out. 2014. Publicação: DJ, 11 dez. 2014.

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prevalecer em ambos os julgamentos da Corte, conforme trecho de seu voto no RE nº

461.968:

[...] ainda que se fale em leasing, as arrendadoras (= indústria aeronáutica direta ou indiretamente) permanecem, ao final do termo do contrato, proprietárias dos bens transferidos temporariamente ao uso das companhias de navegação aérea. Esse é um fato notório. Quando aeronaves e/ou peças ou equipamentos que as componham são importadas em regime de leasing não se prevê a sua posterior transferência ao domínio do arrendatário. Ora, essa circunstância importa em que não se verifique, no caso, circulação de mercadoria, pressuposto da incidência do tributo de que se cuida. [...]. A circulação de que aqui se trata é circulação econômica envolvendo transferência de domínio.

No próprio teor deste julgado distinguem-se as hipóteses passíveis de

tributação pelo ICMS, nas quais, destinado o bem ao ativo fixo da empresa arrendatária,

a opção de compra é mesmo inevitável, passando a mercadoria a integrar o respectivo

patrimônio, daquelas situações onde não se cogita de transmissão de titularidade do bem,

em que o leasing apenas significa transferência para fins de uso de determinados bens

sem que o arrendador deixe de ser seu proprietário, conservando o registro do bem no

seu ativo fixo.

Esse entendimento do STF pela não tributação do ICMS-M na operação de

arrendamento mercantil internacional, quando não efetivada a antecipação de opção de

compra, foi confirmado em sede de repercussão geral pelo Tribunal Pleno, oportunidade

em que a Corte Suprema pacificou a orientação no sentido de que, se não configurada

a transferência de titularidade de bem, mas mera posse decorrente de arrendamento,

não se pode cogitar de circulação econômica apta a ensejar a tributação pelo imposto

estadual350. Aliás, a própria Lei Complementar nº 87/96, no seu art. 3º, exclui

expressamente as operações de arrendamento mercantil do campo de incidência do

imposto.

350 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 540.829/SP. Repercussão Geral.

Relator: Ministro Gilmar Mendes. Relator para o Acórdão: Ministro Luiz Fux. Julgamento: 11 set. 2014. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 17 nov. 2014. Conferir também AI 418155 AgR-ED, DJ 14-04-16, que confirma o entendimento do STF pela não incidência do ICMS-M em todos os contratos de leasing em que não há circulação mercantil.

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238

Cabe mencionar também que são diversos os precedentes no STF351 e

também no Superior Tribunal de Justiça que afastam a cobrança do ICMS-M no simples

deslocamento de mercadoria entre estabelecimentos da mesma empresa. A Corte

Superior consignou, em sede de julgamento submetido à sistemática dos recursos

repetitivos, que circulação jurídica pressupõe a transmissão de propriedade (de uma

pessoa para outra): “Sem mudança de titularidade da mercadoria, não há falar em

tributação por meio de ICMS”352.

Ainda no âmbito pragmático-judicial, vale menção os seguintes julgados que

afastaram a exigência do ICMS-M nas hipóteses de consignação mercantil e comodato,

pois ausente a transferência de domínio do bem:

[...] constata-se que a mera consignação do veículo cuja venda deverá ser promovida pela agência de automóveis não representa circulação da mercadoria [...]. Com efeito não há transferência de propriedade (domínio) à agência de automóveis, pois, conforme assentado no acordão recorrido, ela não adquire o veículo de seu proprietário, mas, apenas, intermedeia a venda da coisa a ser adquirida diretamente pelo comprador. [...] Em verdade, a consignação do veículo significa mera detenção precária da mercadoria para fins de exibição, facilitando, dessa forma, a consecução do serviço de intermediação contratado353.

[...] Se os equipamentos são cedidos em comodato, não se pode falar em “saída”, sob a perspectiva da legislação do ICMS, entendida como circulação de mercadoria com transferência de propriedade. Nesse caso, os bens não deixam de integrar o patrimônio do contribuinte [...]354.

Pelos precedentes colacionados, constata-se que está sedimentado no âmbito

dos Tribunais, como requisito para identificar o fato jurídico tributário do ICMS-M, a

concretização de processos circulatórios de mutações na propriedade da mercadoria, i.e.,

351 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº

764.196/SP. Relator: Ministro Roberto Barroso. Julgamento: 24 maio 2016. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: Acórdão Eletrônico DJ, 06 jun. 2016 e id. Supremo Tribunal Federal. Segundo Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 769.582/BA. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 20 out. 2015. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgamento: DJ, 16 dez. 2015.

352 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.125.133/SP. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento: 28 ago. 2010. Órgão Julgador: Primeira Seção. Publicação: DJe, 10 set. 2010.

353 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.321.681/DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Julgamento: 26 fev. 2013. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: Dje, 05 mar. 2013.

354 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.307.876/SP. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgamento: 05 fev. 2013. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe, 15 fev. 2013.

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que traduzam movimentação jurídica capaz de transferir os direitos de dono, outorgando

ao transmitido o poder de domínio sobre a mercadoria. Por conseguinte, a concepção

econômica de “circulação de mercadoria” vai na contramão da jurisprudência,

justamente por desprezar o termo “operação”, o qual, positivado pelo constituinte como

elemento nuclear do critério material do ICMS-M, condiciona a sua incidência à prática

de negócios jurídicos específicos.

Sem mais delongar neste assunto, fácil perceber a preferência do legislador

por eleger um fato do “tipo estrutural”, valendo-se de usos linguísticos do direito privado

na conformação da materialidade do imposto. Por isso, a forma negocial empregada pelo

contribuinte representa dado fundamental para averiguar se o evento é tributado,

restringindo a atuação do legislador infraconstitucional nos moldes versados no art. 110

do CTN.

Quer-se assim afirmar, em notas conclusivas, que, para fins de tributação do

ICMS-M, a circulação constitucionalmente prevista, inclusive em consonância com o

posicionamento jurisprudencial dominante, é a de feição jurídica, direcionada a ajuste

próprio, que é o negócio translativo de propriedade sobre a mercadoria.

2.3.3 O conceito de “mercadoria”

Nos tópicos antecedentes, concluímos que, segundo a previsão

constitucional, o fenômeno “circulação de mercadorias”, apto a irradiar obrigações

tributárias, corresponde a movimentos de mercadorias de uma pessoa para outra,

acobertados por um título jurídico, que provoquem modificações na esfera patrimonial

das partes envolvidas, ocasionando direitos e deveres antes inexistentes.

Da própria dicção do Texto Maior infere-se que o constituinte não inclui na

extensão do critério material do ICMS-M toda e qualquer “circulação”, visto que reduziu

e especificou o seu campo significativo ao agregar-lhe o adjunto adnominal

“mercadoria”. Assim, unicamente os negócios jurídicos translativos de propriedade, que

têm como objeto mercadorias, são passíveis de serem tributados pelos Estados.

Dos enunciados da Constituição que disciplinam o ICMS-M, nenhum deles

traz uma delimitação clara e específica de “mercadoria”, o que exige do jurista e

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aplicador um intenso labor exegético para averiguar o conceito deste termo adotado na

Carta de 1988, tendo em vista, principalmente, os usos linguísticos jurídicos empregados

segundo as regras de direito privado, conformados, é claro, à rígida discriminação das

competências tributárias.

A incursão aos dicionários da língua portuguesa – Houaiss355 e Aulete356 –

mostra-nos que o conceito de mercadoria, na sua forma mais simples, define-se como

qualquer produto que se pode comprar ou vender, que é objeto de comércio. A

etimologia confirma a acepção lexical: o termo mercadoria origina-se da palavra

“mercar”, do latim mercare – que é tudo aquilo que pode ser objeto de compra e venda,

que se comprou para pôr à venda357; evoluiu de merx, o que é objeto de comércio.

De pronto, identificamos que, nos horizontes culturais da nossa sociedade,

para um bem ser considerado mercadoria importa a destinação que lhe é dada: há de ser

comprovado que o bem seja objeto de atividade de mercancia, produzido ou adquirido

para ser posto em processo de circulação comercial, para ser (re)vendido com intuito de

lucro, até chegar ao consumo.

Nos quadrantes do direito privado, a doutrina também identifica a

significação jurídica com o sentido empregado na linguagem comum. Conforme lições

de Plácido da Silva, mercadoria caracteriza-se como o objeto ou coisa adquirida pelo

comerciante ou mercador para servir de objeto de seu comércio, para ser posto à

mercancia com o fim de vender e obter lucro358. Seguindo idêntica linha interpretativa,

Maria Helena Diniz, em seu dicionário jurídico, define o conceito de mercadoria para o

355 “1. qualquer produto (matérias-primas, gêneros, artigos manufaturados etc.) suscetível de ser

comprado ou vendido; mercancia; 2 negócio, comércio realizado entre mercadores; mercancia; 3 obsl. a ocupação, a profissão de mercador, mercancia; 4 a carga de gêneros transportada por terra ou mar” (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, s.v. mercadoria. Disponível em: ˂https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v2-3/html/index. htm#2˃. Acesso em: 29 out. 2016).

356 “1. Econ. Produto que se pode comprar ou vender, que é objeto de comércio; MERCANCIA; 2. Gênero comprado ou vendido, ou exposto à venda” (AULETE DIGITAL. Rio de Janeiro: Lexicon, 2016, s.v. mercadoria. Disponível em: ˂http://www.aulete.com.br˃. Acesso em: 29 out. 2016).

357 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010, s.v. mercadoria.

358 Apud COSTA, Alcides Jorge. ICMS – Fato Gerador – Arrendamento Mercantil – Importação de Mercadoria – Interpretação da Constituição Federal antes e depois da Promulgação da Emenda Constitucional nº 33, de 2011 – Comentário a Acórdão do STF. In: ______ (Coord.). Estudos sobre IPI, ICMS e ISS. São Paulo: Dialética, 2009, p. 40.

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direito comercial como “coisa que serve de objeto à compra e venda mercantil”, como

“aquilo que se compra para vender ou como o conjunto de móveis apropriáveis que são

objeto de comércio ou de circulação econômica”359.

Com essas diretrizes hermenêuticas iniciais pretende-se já assentar que o

critério jurídico crucial para distinguir entre um bem (gênero) e uma mercadoria

(espécie) está atrelado à sua característica extrínseca: o precípuo objetivo de destinação

comercial. Tanto é assim que o art. 4º da Lei Complementar nº 87/96 define como

contribuinte do ICMS-M “qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com

habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação

de mercadoria”. Mercadoria para o direito privado, portanto, não se confunde com bens

de disponibilidade, uso e consumo próprios. Daí porque a jurisprudência consagrou o

entendimento de que não se enquadram na significação-base de “mercadorias” – logo,

como fatos tributáveis pelo ICMS-M – os bens do ativo imobilizado de uma empresa,

ocasional e esporadicamente, negociados360.

A corroborar a caracterização de um bem como “mercadoria” por efeito de

sua destinação comercial, é oportuno ainda mencionar a discussão travada na vigência

da ordem constitucional de 1967, relativamente ao conceito de “mercadoria” para fins

de incidência do antigo ICM na importação, em decorrência de os Estados terem passado

a exigir o imposto sobre bens importados, destinados, porém, ao uso e consumo dos

contribuintes. Apesar de a jurisprudência firmada à época ter sido pelo reconhecimento

da inconstitucionalidade da exigência, acolhendo os argumentos do sujeito passivo em

favor da noção de “mercadoria” condizente com a aplicada pelo direito comercial, i.e.,

bens para servir ao objetivo de mercancia, foi alterada a redação da Constituição de 1967

pela EC nº 23/83361, para então restar autorizada a tributação sobre a importação de

mercadoria, inclusive quando se tratar de bens destinados ao consumo ou ativo fixo do

estabelecimento.

359 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 360 Cf. RE 194.300, DJ 12-09-1997; REsp 68.455/SP, DJ 18-03-1996; REsp 43.057/SP, DJ 27-06-1994;

e AP nº 0005505-51.2013.8.26.0572, julgado no TJ-SP em 02-02-2016. 361 “Art. 1º - Os dispositivos da Constituição Federal abaixo enumerados, passam a vigorar com as

seguintes alterações: ‘Art. 18. §11 O imposto a que se refere o item II incidirá, também, sobre a entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria importada do exterior por seu titular, inclusive quando se tratar de bens destinados a consumo ou ativo fixo do estabelecimento.’”

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Melhor dizendo: dado que o texto constitucional anterior não autorizava

construir o conceito de “mercadoria” na forma pretendida pelo Fisco, foi necessária, por

obra do poder constituinte derivado, a ampliação do campo semântico do critério

material para os específicos casos de incidência do ICM na importação. Recorreu-se à

alteração formal do suporte físico para também fazer referência a “bens” e exigir o

tributo estadual na entrada de produtos advindos do exterior para uso próprio do

contribuinte. A respeito das modificações promovidas pela EC nº 23/83, anota Hugo de

Brito Machado que este veículo introdutor não alterou o conceito de mercadoria; pelo

contrário: “reconheceu que não são mercadorias os bens destinados ao consumo ou ao

ativo fixo”362.

Assim sendo, partindo do pressuposto de que mercadorias exprimem bens

cujo destino é a comercialização, produzidos para serem alienados ou adquiridos para

serem revendidos a outro comerciante ou a consumidor final, a doutrina, a partir da

interpretação dos dispositivos do Código Comercial de 1850, vigente à época da

promulgação da Constituição de 1988, empregava o vocábulo “mercadoria”, ora em um

sentido mais amplo, para fazer referência a todos os bens móveis que podem ser objeto

de comércio, alcançando inclusive os imateriais, ora em sentido estrito, para designar

bens móveis corpóreos, de existência física autônoma, que valem por si e não pelo que

representam.

É por essa razão que Pontes de Miranda escreve que o signo “mercadoria” é

aplicado “no sentido de bem, corpóreo ou incorpóreo, com que se comercia

(=mercancia)”, referente “a bem que pode entrar na circulação comercial (Código

Comercial, arts. 200, 201, 219, 446, 816, 874, etc.), ou em sentido, estritíssimo, de bem

comercial que não fosse dinheiro, papéis de crédito, efeitos e valores (Código

Comercial, arts. 10, IV, 33, 273, etc.)”363.

Também apontando essa variação significativa no contexto do direito

privado, José Xavier de Carvalho de Mendonça elucida que o Código Comercial não

362 MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos fundamentais do ICMS. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999, p.

29. 363 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo XV. São Paulo:

Bookseller, 2001, p. 449.

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trazia uma definição expressa do signo “mercadoria”, sendo utilizado, a teor do disposto

no seu art. 191364, ou “como antítese a coisas móveis, dinheiro, papeis de crédito, efeitos

e valores”, ou como “qualquer objeto que, tendo valor de troca, pode entrar na circulação

comercial”. Afirma que:

Em sentido amplo, a fórmula mercadoria abrange não somente as coisas materiais, corpóreas, inclusive a moeda, o papel-moeda e os títulos ou documentos, nos quais se incorporam créditos, que, destarte, são considerados objetos de valor, como as coisas imateriais, entre elas os direitos, os créditos, os riscos etc. Em sentido estrito, porém, aquela palavra se limita ao conceito da coisa material, corpórea365.

Em que pese a ambiguidade do termo “mercadoria”, deflagrada no seio da

comunicação do direito comercial em função da gama de bens considerados como objeto

de atos de mercancia, reconhece Cesare Vivante que “a palavra costuma empregar-se

num sentido mais estrito para indicar os produtos da indústria agrícola e manufatura, em

contraposição aos títulos de crédito, que, contrariamente às mercadorias, não contém em

si o próprio valor”366.

Nesse rumo de adotar a acepção mais restrita é a doutrina de Rubens Requião,

que inclui “dentre os bens corpóreos que ocupam o mundo exterior” as mercadorias,

caracterizando-as pelos seguintes atributos: “a) corporalidade, que a distingue dos

direitos e dos bens imateriais; b) mobilidade, que exclui os bens imóveis; c) aptidão para

o tráfico; d) valor patrimonial próprio, intrínseco da própria coisa, excluindo-se os

títulos de crédito; e) permanência atual no tráfico mercantil”367.

364 “Art. 191 – [...] É unicamente considerada mercantil a compra e venda de efeitos móveis ou

semoventes, para os revender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso; compreendendo-se na classe dos primeiros a moeda metálica e o papel moeda, títulos de fundos públicos, ações de companhias e papéis de crédito comerciais, contanto que nas referidas transações o comprador ou vendedor seja comerciante.”

365 MENDONÇA, José Xavier de Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. V. 3, Tomo I. Campinas: Russel, 2003, p. 35-36.

366 VIVANTE, Cesare. Instituições de Direito Comercial. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003, p. 141.

367 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. V. 1, 34. ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 373.

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E é nessa última acepção – a estrita –, realça José Xavier de Carvalho de

Mendonça368, que a Constituição e a leis fiscais a empregam.

Não é diferente o entendimento dominante na seara tributária. Para Paulo de

Barros Carvalho369, Roque Antonio Carrazza370, Alcides Jorge Costa371, Hugo de Brito

Machado372, José Eduardo Soares de Melo373 e Bernardo Ribeiro de Moraes374,

“mercadoria” há de ser compreendida como coisa móvel, corpórea, que está no

comércio: “corporabilidade do bem (aspecto objetivo) e o destino a lhe ser dado por seu

proprietário ou possuidor (aspecto subjetivo) são os dois requisitos considerados

essenciais para a caracterização de um bem como mercadoria”375. E, por isso, “excluem-

se do conceito de mercadoria, os bens imóveis, os direitos, os serviços e os bens

incorpóreos em geral”376. Percebe-se que tanto a vertente científica pela circulação

jurídica quanto a corrente pela circulação econômica, anteriormente explicitadas,

convergem para a mesma conclusão: a feição corpórea do bem circulado como requisito

para a tipificação do núcleo conceitual da hipótese de incidência do ICMS-M.

Com efeito, se levarmos em conta o contexto normativo constitucional, a

partir de uma interpretação sistemática das faixas de competência tributária distribuídas

entre os entes políticos, é possível deduzir que a significação adotada pelo constituinte

para o termo “mercadoria” corresponde ao conceito de direito privado em sentido estrito,

isto é, como bem móvel corpóreo, destinado à mercancia.

É bem móvel na medida em que a circulação de bens imóveis se submete à

incidência de regime tributário específico, pois o art. 156, inciso II, da Constituição

368 MENDONÇA, José Xavier de Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. V. 3, Tomo I.

Campinas: Russel, 2003, p. 35-36. 369 CARVALHO, Paulo de Barros. A Regra Matriz do ICM. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p.

205. 370 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. rev. e ampl. até EC 88/2015, e de acordo com a Lei

Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 52, 54. 371 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária,

1979. 372 MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos fundamentais do ICMS. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999, p.

29. 373 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 18-

19. 374 MORAES, Bernardo Ribeiro de. O imposto sobre circulação de mercadorias no sistema tributário

nacional. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, p. 25-108, 1978, p. 83. 375 COSTA, Alcides Jorge, op. cit., 1979. 376 CARRAZZA, Roque Antonio, op. cit., 2015, p. 52, 54.

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atribui aos Municípios a aptidão para instituir impostos sobre a transmissão onerosa de

bens imóveis e dos direitos reais sobre ele, inclusive sobre a cessão de direitos à

aquisição de bens imóveis.

Por sua vez, a natureza corpórea do bem sujeito ao ICMS-M afere-se da

própria opção do constituinte em adotar impostos distintos para onerar atos

representativos de circulação de riquezas, preterindo a adoção de um imposto geral que

gravasse as manifestações de realidade econômica. Desde a reforma tributária

empreendida em 1965 pela Emenda Constitucional nº 18, destaca Bernardo Ribeiro de

Moraes a coexistência de regimes tributários específicos conforme a atividade

econômica, prevendo exações fiscais diferentes para onerar: operações de importação,

operações de circulação de mercadorias, prestação de serviços de transporte e

comunicações, prestação de serviços de qualquer natureza, operações de crédito,

câmbio, seguro e relativas a títulos e valores imobiliários, bem como operações com

energia elétrica, derivados de petróleo, combustíveis e minerais.

Deste cenário jurídico, esclarece o autor que o imposto sobre operações

relativas à circulação de mercadorias não comporta a venda e circulação em geral, “mas

sim tão somente uma de suas faixas” para alcançar a circulação de mercadoria, a qual

para fins fiscais exige que “o bem seja móvel, ou semovente, e corpóreo”. Segue

finalmente para complementar que não se pode olvidar “que os conceitos que

correspondem às diferentes espécies de impostos, se constam na Constituição, são

conceitos de direito constitucional, que o legislador ordinário não pode macular. Assim

acontece com o objeto do ICM, que está no bojo da Constituição”377.

Equivalente arranjo no trato da repartição das competências, enunciando

cargas tributárias distintas conforme a atividade econômica, incorporou-se no sistema

constitucional atualmente vigente. A opção do constituinte de 1988 pelo emprego do

vocábulo “mercadoria” em seu sentido mais estreito é confirmada, por exemplo, diante

377 MORAES, Bernardo Ribeiro de. O imposto sobre circulação de mercadorias no sistema tributário

nacional. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, p. 25-108, 1978, p. 67, 74, 83.

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do enunciado nos arts. 153, V378, e 155, §3º379, que prescrevem incidências sobre

negócios jurídicos que visam à transferência de titularidade.

O art. 153, V, ao outorgar à União a competência para criar impostos

incidentes sobre operações de crédito, câmbio, seguro, e sobre operações relativas a

títulos ou outros valores mobiliários, suprimiu do espectro semântico de “mercadoria”

e, por conseguinte, do campo de incidência do ICMS-M, a moeda nacional e estrangeira,

as ações, as debêntures e demais títulos ou papéis que neles se incorporam créditos

representativos de direitos patrimoniais.

Sem nos concentrarmos criticamente nas particularidades jurídicas sobre o

regime tributário a recair na comercialização do ouro, faz-se interessante mencionar aqui

as previsões contidas nos arts. 153, §5º380, e 155, §2º, X, ‘c’381, da CR/88. Ao interpretar

esses dispositivos, o STF assinalou que “em estado natural, ou industrializado, o ouro

estará sujeito, nas operações mercantis, ao ICMS. Todavia, se utilizado como ativo

financeiro (ou instrumento cambial), estaria sujeito ao IOF”382. Tal digressão oferece

mais subsídios assertivos do pressuposto constitucional da corporabilidade do bem

circulado, incidindo o ICMS quando o ouro é utilizado como matéria-prima ou insumo

industrial para fabricar, por exemplo, joias e bijuterias, em contraposição àquelas

situações em que o ouro, enquanto ativo adquirido por instituições financeiras para

negociar em mercado próprio, passa a valer como se título fosse, expressivo de direitos

a valores e créditos.

Já o art. 155, §3º, evidencia que, quando o constituinte pretendeu incluir na

competência dos Estados a circulação jurídica de bens incorpóreos de expressão

378 “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou

relativas a títulos ou valores mobiliários.” 379 “Art. 155. § 3º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I

e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.”

380 “Art. 153. § 5º O ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial, sujeita-se exclusivamente à incidência do imposto de que trata o inciso V do "caput" deste artigo, devido na operação de origem […].”

381 O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: “X - não incidirá: c) sobre o ouro, nas hipóteses definidas no art. 153, § 5º; […].”

382 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 190.363/RS. Relator: Ministro Carlos Velloso. Julgamento: 13 maio 1998. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 12 jun. 1998.

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econômica, assim o fez expressamente, determinando, neste dispositivo, que as

operações relativas à circulação de energia elétrica não sofreram tributação de qualquer

outro imposto que não seja o ICMS.

No âmbito jurisprudencial, a discussão sobre o requisito da corporabilidade

ganhou maior relevância diante dos negócios jurídicos que têm como objeto os

denominados “bens digitais”, merecendo citar as decisões no Recurso Extraordinário nº

176.626-3383 e na ADI 1945/MC384 para, neste momento, apenas demonstrar os

diferentes critérios eleitos pela Corte na definição do conceito constitucional de

mercadoria. A análise crítica e aprofundada desses precedentes terá lugar mais para

frente, quando nos ocuparemos da incidência do ICMS-M e do ISS no licenciamento de

uso de programas de computador.

Na ocasião do julgamento do RE nº 176.626-3, restou consignado que o

“conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos

em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo”.

O mesmo conceito foi aplicado no julgamento do RE nº 199.464-9. Com base nessa

premissa, o Supremo entendeu que a produção em massa para comercialização e revenda

de exemplares de programas de computador se materializados num corpus mechanicum

traduz genuína operação de circulação de mercadoria.

Em momento posterior, na apreciação da medida cautelar formulada nos

autos da ADI nº 1945, a Corte sinalizou por uma possível mutação do conceito

constitucional de mercadoria, para admitir, em juízo preliminar, a incidência do ICMS-

M sobre “softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados”,

posicionando-se pela irrelevância de o bem móvel negociado não corresponder a bem

corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Para tanto, fundamentou que o “Tribunal não

pode se furtar a abarcar as situações novas, consequências concretas do mundo real, com

383 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 176.626-3/SP. Relator: Ministro

Sepúlveda Pertence. Julgamento: 10 nov. 1998. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 11 dez. 1998.

384 Id. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.945/MT. Relator: Ministro Octavio Gallotti. Relator para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 26 maio 2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 11 mar. 2011.

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base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas” diante dos novos

tempos385.

Mais recentemente, aliás, têm despontado posicionamentos doutrinários em

favor da evolução conceitual de “mercadoria” para fins de incidência do ICMS-M. Essas

inovações interpretativas, segundo seus defensores, encontram respaldo sobretudo na

necessidade de ajustar a materialidade constitucional às novas formas de exploração

econômica resultantes dos avanços tecnológicos, em grande parte realizadas no

ambiente da Internet.

Justificam também a mutação semântica em virtude de o sentido mais amplo

ter ganhado força no direito privado após o advento do Código Civil de 2002 que

incorporou a Teoria da Empresa, passando-se a empregar o termo para designar uma

gama enorme de bens suscetíveis de circulação comercial, objetos de diferentes

operações jurídicas realizadas no campo empresarial. Diversamente da Teoria dos Atos

de Comércio adotada pelo Código Comercial de 1850, o regime jurídico fundado na

Teoria Empresarial abarca toda atividade econômica organizada para a produção e

circulação de bens ou serviços, nos termos do art. 966386 do CC/2002, pouco importando

a especificidade da atividade explorada para identificar os sujeitos submetidos à sua

disciplina normativa.

Dentre os juristas pela ampliação do conceito de “mercadoria” podemos citar

Simone Rodrigues Costa Barreto e Luciano Garcia Miguel. Reconhece a primeira autora

que a “mutação constitucional de mercadoria, diante da realidade atual, é mandatória”

por atender melhor aos progressos dos negócios jurídicos no espaço virtual, concluindo

que, “se o bem incorpóreo for objeto de mercancia, ter-se-á uma operação relativa à

circulação de mercadoria, passível de incidência do ICMS”387.

385 Dado que referidos julgados envolvem temática diretamente relacionada ao presente estudo,

deixemos para analisar seus fundamentos, de forma crítica e aprofundada, quando tratarmos, na Parte 3 deste trabalho, especificamente sobre a tributação pelo ICMS-M no licenciamento de uso de software.

386 “Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”

387 BARRETO, Simone Rodrigues Costa. Mutação do conceito constitucional de mercadoria. São Paulo: Noeses, 2015, p. 164, 172.

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De acordo com o segundo autor, o conceito de mercadoria foi formulado em

um contexto econômico que, de tanto sofrer profundas alterações nas últimas décadas,

deu origem a novos modelos de negócios na Internet, criando-se “uma distância abissal

entre as relações deles advindas e as normas jurídicas que devem discipliná-las”388.

Tecemos abaixo alguns dos seus argumentos para, já na sequência, examinar cada um

deles criticamente, segundo as premissas firmadas no decorrer deste trabalho:

[argumento] “Para definir o conceito de mercadoria, o intérprete deve ir além

dos textos normativos, pesquisando a orientação da doutrina [...] e até mesmo

outros sistemas sociais relevantes, como o econômico”389: [análise] nos

domínios do direito, institutos econômicos, políticos ou sociológicos não se

prestam para descrever o fenômeno jurídico, existindo apenas entidades

transportadas pelo tom da juridicidade; ainda que o sistema do direito

positivo relacione-se cognoscitivamente com outro sistemas, sofrendo,

quando se autorreproduz, o influxo de fatores externos e recebendo novas

ocorrências factuais, conceitos e definições não circulam livremente, senão

pela forma normativa, se colhidos pela linguagem prescritiva, de tal sorte

que, ao construírem o conceito constitucional de mercadoria, o jurista e o

aplicador devem recorrer ao manuseio dos textos postos pelo constituinte,

verificando se o conceito proposto está no interior do sistema do direito

positivo.

[argumento] Se a CR/88 considera operação com energia elétrica como

sujeita ao ICMS, “fica difícil argumentar que as coisas incorpóreas tenham

sido excluídas do conceito de mercadoria”390: [análise] pelo contrário, a

ressalva expressa no texto constitucional, dispondo, em enunciado outro e

específico, sobre a incidência do imposto estadual na circulação de energia

388 MIGUEL, Luciano Garcia. A hipótese de incidência do ICMS e a evolução dos conceitos tradicionais

de mercadoria e serviço de comunicação. 2015. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 89.

389 Ibid., p. 99. 390 Ibid., p. 100.

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só vem a certificar a compreensão de mercadoria como dotada de

corporabilidade.

[argumento] Pela leitura do art. 191 do Código Comercial é possível tanto

uma leitura mais restritiva para definir mercadoria como bem corpóreo

quanto uma mais ampla para incluir o subconjunto dos bens incorpóreos391:

[análise] não há que negar que a legislação comercial permitia ambas as

interpretações, porém, como já aclarado, o constituinte optou pelo sentido

estrito para autorizar os Estados a instituírem o ICMS-M sobre operações de

circulação de bens móveis corpóreos, produzidos e adquiridos com a

finalidade de alienar e auferir lucro.

Em que pesem as respeitáveis orientações doutrinárias em favor da mutação

constitucional do termo “mercadoria”, convém ainda sublinhar que alterações dos usos

linguísticos na esfera do direito privado, bem como variações dos usos linguísticos

gerais resultantes dos progressos e alterações no ambiente socioeconômico, tão somente

repercutem no conceito constitucional, até então aceito pela comunidade jurídico-

tributária, se assim autorizado pelo Texto Supremo.

Não nos parece, porém, pelos motivos e razões que expusemos ao longo deste

tópico, que a inclusão dos bens incorpóreos na extensão do termo “mercadoria” está em

consonância com o contexto constitucional atualmente vigente, que, frise-se, previu

incidências distintas conforme a categoria econômica de produção de riquezas, sem

instituir um regime tributário único ou geral para a atividade empresarial produtiva e

circulatória de bens e serviços, sendo sempre oportuno lembrar a competência residual

da União para criar impostos sobre atividades econômicas não contempladas no texto

constitucional.

Dando por superada a questão atinente ao sentido da palavra “mercadoria” e

sem mais prolongar a temática, cumpre em derradeiro observar que, na hipótese de a

Corte Suprema vir a admitir a evolução do respectivo conceito constitucional, impõem-

391 MIGUEL, Luciano Garcia. A hipótese de incidência do ICMS e a evolução dos conceitos tradicionais

de mercadoria e serviço de comunicação. 2015. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 104.

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se duas advertências de extrema importância para que os Estados fiquem autorizados a

tributar operações de circulação com bens incorpóreos, prestigiando minimamente uma

leitura harmonizada à completude do sistema do direito positivo.

Primeiro, com suporte numa interpretação conjunta dos conceitos

“operação”, “circulação” e “mercadoria”, essencial para a caracterização da incidência

do ICMS-M, o negócio jurídico com bens incorpóreos deve envolver uma circulação

jurídica, causadora de transferência de titularidade do bem de uma pessoa para outra.

Segundo, para restar viabilizada a cobrança, em respeito aos princípios da legalidade e

tipicidade tributárias, requisita-se a produção normativa infraconstitucional para

adequar ao novel conceito constitucional adotado as regras que lhe são incompatíveis,

procedendo a alterações na legislação complementar para depois serem editadas leis

estaduais delimitadoras dos novos fatos suscetíveis à tributação, definindo-se o

momento e o local da incidência do imposto.

Traçados os limites impostos na Constituição que deverão ser observados

pelo legislador infraconstitucional na eleição dos fatos a serem submetidos ao ICMS-M

– cujo critério material “realizar operações relativas à circulação de mercadorias”

pressupõe negócios jurídicos credenciados a propiciar a transmissão da propriedade

(domínio) de bem móvel corpóreo, destinado à mercancia –, passe-se agora ao estudo

sobre o critério material da regra-matriz de incidência do ISS.

2.4 O critério material da regra-matriz de incidência do ISS

À semelhança do trajeto percorrido para demarcar os eventos sujeitos ao

ICMS-M, o caminho a ser aqui trilhado consistirá na investigação sintático-semântica

do núcleo factual da hipótese da regra-matriz de incidência do Imposto sobre Serviços

(ISS), a partir dos enunciados da Constituição que disciplinam a competência tributária.

Firmes em tais premissas, encontramos no seu art. 156, inciso II, a outorga de

competência aos Municípios para “instituir impostos sobre serviços de qualquer

natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.

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Pela literalidade do Texto Maior, nota-se, para além das previsões genéricas

estipuladas no art. 146, o papel acentuado atribuído à lei complementar na definição dos

serviços onerados pelo ISS, o que será mais à frente esmiuçado.

Preenchendo o critério material do ISS com a linguagem do direito positivo,

o comportamento constitucionalmente previsto para compor o miolo do seu antecedente

normativo consiste em “prestar (verbo) serviços de qualquer natureza (complemento)”.

Com a intenção de investigar o conteúdo significativo dessa expressão nuclear da

hipótese de incidência do ISS – atitude cognoscitiva impreterível para discorrer sobre a

sua tributação no licenciamento de uso de software através da Internet –, torna-se preciso

antes tecer algumas considerações preliminares a respeito dos serviços atingidos por

essa figura fiscal.

2.4.1 O serviço tributável pelo ISS: considerações preliminares

Inicialmente, quadra advertir que os acontecimentos submetidos à tributação

do ISS não envolvem todo e qualquer serviço executado no plano fenomênico,

revelando-se distinta a forma de uso do termo “serviço” no contexto do regime tributário

do ISS daquela empregada pela linguagem ordinária e comum. Isso porque, do conjunto

de serviços prestados na realidade social, a linguagem do direito positivo colhe parte

deles para integrar o antecedente da norma-padrão deste imposto.

Não estão compreendidos no campo de incidência do ISS, por exemplo, os

serviços de transporte interestadual e intermunicipal e os serviços de comunicação, ante

expressa previsão do art. 156, inciso II, e por integrarem a esfera da competência dos

Estados e Distrito Federal, nos moldes do art. 155, inciso II. Igualmente não se inserem

na dimensão significativa da sua materialidade constitucional os serviços prestados em

regime de direito público, abarcados pela imunidade recíproca prevista no art. art. 150,

inciso VI, alínea ‘a’392. Mutatis mutandis os serviços gravados pelo ISS encerram

392 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos

Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; […].”

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atividades realizadas sob o manto do direito privado, no que engloba a prestação de

serviços públicos explorados economicamente393.

O ISS também não incide sobre as prestações de serviços com vínculo de

subordinação, concernentes a atividades situadas fora do comércio, desprovidas de

caráter negocial394. De igual sorte, tampouco recai o imposto sobre serviços sem

conteúdo econômico. A fixação de um preço pela utilidade material ou imaterial em prol

do tomador deflui, inclusive, do princípio da capacidade contributiva estatuído no art.

145, §1º da Constituição. Daí porque serviços gratuitos e aqueles realizados em proveito

próprio estão subtraídos da competência dos Municípios.

Com efeito, o fato jurídico tributário do ISS há de configurar atividade

onerosa, passível de ser apreciada economicamente, bem como irreflexiva, com a

presença da bilateralidade, traduzida esta numa relação jurídica entre prestador e

tomador do serviço. Adotando equivalentes diretrizes hermenêuticas, esclarece Natália

de Nardi Dácomo que a norma do ISS pressupõe uma:

[...] relação jurídica que nasce de um acordo, de um contrato de prestação de serviços. Pois não basta uma pessoa, física ou jurídica, começar a prestar serviço a outra sem o seu consentimento, pacto ou ajuste. Dessa forma, é necessário um acordo, um contrato (verbal ou escrito), uma relação entre pessoas, física ou jurídica, para fazer nascer a prestação de serviços395.

Em síntese dessas breves reflexões introdutórias, já podemos testificar que é

serviço tributável pelo ISS a atividade economicamente mensurável, desenvolvida em

favor de outrem, sem subordinação e sob o regime de direito privado, excetuada do

âmbito de competência dos Estados e do Distrito Federal.

Tendo em mente essas primeiras notas conceptuais e com o objetivo de

alcançar a percepção completa do critério material do ISS, cumpre no próximo item

definir o âmago significativo do termo “serviço” empregado pelo constituinte,

393 “Art. 1º, § 3º, LC nº 116: O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os

serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.”

394 “Art. 2º, II, LC nº 116/03: O imposto não incide sobre a prestação de serviços em relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, dos diretores e membros de conselho consultivo ou de conselho fiscal de sociedades e fundações, bem como dos sócios-gerentes e dos gerentes-delegados; […].”

395 DÁCOMO, Natália de Nardi. Hipótese de incidência do ISS. Noeses: São Paulo, 2007, p. 29.

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delimitando com maior precisão a natureza jurídica da atividade executada em benefício

de terceiros que, em termos constitucionais, atrai a incidência do ISS.

2.4.2 O conceito de “serviço”

Como já tivemos a oportunidade de estudar, quando o constituinte faz

referência a conceitos e institutos de direito privado para distribuir as competências

tributárias, sem enunciá-los de forma diversa, é porque optou por incorporar as

convenções linguísticas já firmadas nesse domínio jurídico. Eventual abandono a esse

dialogismo textual, olvidando a unidade do sistema posto, prejudicaria o fenômeno

comunicacional de acordo com os ditames da segurança jurídica, a encorajar

construções arbitrárias de sentido pelos operadores do direito, em afronta à supremacia

da Constituição, pedagogicamente avivada pelo art. 110 do Código Tributário Nacional.

Nessa perspectiva, a fim de circunscrever os fatos abrangidos pela

competência dos Municípios para criar o ISS, o constituinte reportou-se de forma

expressa ao termo “serviço”, tipicamente alusivo ao direito privado. E sem fazer menção

distinta do vocábulo para disciplinar a faixa municipal, aceitou o uso linguístico do

termo encontrado originariamente naquela seara jurídica. Por idêntica vereda, ensina

Aires F. Barreto que “a esfera da competência dos Municípios para a tributação dos

‘serviços de qualquer natureza’, enclausura-se no interior dos lindes do conceito de

“serviço” empregado no direito privado, “visto que foi por ele que a Constituição

Federal, de modo expresso, a discriminou, identificou e demarcou”396.

Isto posto, mediante incursão no plano jurídico-privado, reparamos que o

Código Civil de 2002, no art. 593 e seguintes, regula de forma genérica o contrato de

prestação de serviços, dispondo no art. 594 que constitui prestação de serviços “toda

espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, [...] contratada mediante

remuneração”. O próprio Código regula ainda figuras contratuais típicas e nominadas

de prestação de serviços, conforme disposto nos artigos 623 (empreitada), 703

(comissão), 717 (agência e distribuição), 722 (corretagem) e 738 (transporte).

396 BARRETO, Aires Fernandino. ISS, IOF e Instituições financeiras. Noeses: São Paulo, 2016, p. 03.

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Da leitura desses artigos, que trazem extensa disciplina relativa à contratação

de prestação de serviços, já é possível deduzir que, em nosso sistema, tais atividades

apresentam natureza jurídica de trabalho, de uma obrigação de fazer, consistente numa

conduta de prestar algo, tanto braçal/físico como intelectual, assumida pelo prestador

em troca de uma remuneração devida pelo tomador. A ideia de um facere humano físico

ou intelectual, como qualificação jurídica da atividade “prestar serviços”, confirma-se

também pelos comandos insertos no art. 601397 – que veda ao tomador exigir do

prestador a execução de algo incompatível com suas condições físicas e com o seu

intelecto – e no art. 606398 – que determina que o prestador deve estar habilitado a prestar

os serviços para os quais foi contratado.

Trata-se de inferência jurídica igualmente extraída da exegese de outros

enunciados dispersos no Código Civil, que, em menção ao signo “serviço”, reportam-se

a atividades que envolvem a execução de certas tarefas e trabalhos, de cunho físico ou

intelectual, cuja finalidade é produzir uma utilidade material ou imaterial em benefício

de alguém mediante remuneração. Exemplificando, compreendem atividades citadas

nesses termos na legislação civil vigente: os serviços de profissionais liberais (art. 206,

§5º, II), os serviços domésticos (art. 965, VII), os serviços de edificação e

melhoramentos em imóvel (art. 964, IV), os serviços agrícolas de cultura e colheita (art.

964, V), como também os serviços militares (arts. 1776 e 1893).

Convém salientar que as assertivas acima se aplicam integralmente às

prescrições do antigo Código Civil de 1916, em vigor quando da promulgação da

Constituição de 1988, identificando-se também nos seus dispositivos a compreensão de

serviços como o fazimento por alguém de uma obra intelectual ou material em benefício

de outra pessoa. É o que se verifica, por exemplo, nos seguintes enunciados do código

revogado: art. 178, §6º, X (serviços médicos e farmacêuticos); art. 390 (serviços de

magistério); art. 414, VII (serviços militares); art. 1216 e seguintes (locação de serviços

397 “Art. 601. Não sendo o prestador de serviço contratado para certo e determinado trabalho, entender-

se-á que se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com as suas forças e condições.” 398 “Art. 606. Se o serviço for prestado por quem não possua título de habilitação, ou não satisfaça

requisitos outros estabelecidos em lei, não poderá quem os prestou cobrar a retribuição normalmente correspondente ao trabalho executado. Mas se deste resultar benefício para a outra parte, o juiz atribuirá a quem o prestou uma compensação razoável, desde que tenha agido com boa-fé.”

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em geral); art. 1330 (serviços advocatícios); art. 1566, IV e V (serviços de edificação e

serviços agrícolas de cultura e colheita); e art. 1569 (serviços domésticos).

Na redação do antigo Código, os mais desavisados são surpreendidos ao

constatar que, sob a epígrafe de “locação”, o legislador regulou em seções autônomas a

respeito de três modalidades contratuais: locação das coisas, locação de serviços e

locação da empreitada. Como muito bem explanado por Sílvio de Salvo Venosa, a

enunciação de serviços como sendo atividade de “locação” procedeu-se no Código de

1916 por simples amor à tradição romana, já que “no direito romano, era natural que se

denominasse locação tanto o contrato pelo qual era cedido o uso de uma coisa, como

aquele em que era prometido um serviço, pois este dependia na maior parte das vezes

do trabalho escravo”, o qual era de “propriedade de um senhor que o alugava a outrem

como quem hoje aluga uma coisa”399.

Contudo, segue o autor, “a denominação locação de serviços ao homem livre

não tem sentido, não somente porque desapareceram as razões históricas, mas também

porque o instituto não guarda maior relação com a locação das coisas”400. Do próprio

étimo da palavra “serviço”, originário do latim servire, significando “viver ou trabalhar

como servo”, ou também denotando “ajudar ou auxiliar”401, transparece a impropriedade

terminológica. Deste modo, acertou o Código Civil de 2002 ao adotar a denominação

“prestação de serviços”, visando à melhor compreensão da relação jurídica e,

consequentemente, a operosidade da lei.

A corroborar os fundamentos explicitados acima são os ensinamentos de

Carlos Roberto Gonçalves, que identifica, no objeto do contrato de prestação de

serviços, tanto um trabalho braçal como um trabalho intelectual, gerando essa espécie

contratual obrigações para ambas as partes: “o prestador assume uma obrigação de fazer

perante o dono do serviço, que, por sua vez, compromete-se a remunerá-lo pela atividade

desenvolvida” 402. Na mesma linha, esclarece César Fiuza que, na prestação de serviços,

399 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos em espécie. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2014

(Coleção Direito Civil, v. 3), p. 225. 400 Ibid., loc. cit. 401 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

Lexicon, 2010, s.v. serviço. 402 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. V. 3, 9. ed. São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 362.

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o prestador coloca à disposição sua capacidade física ou intelectual para executar

determinada tarefa ou trabalho no tempo, local e dentro das especificações combinadas

com o tomador403.

Apoiada em idênticas bases interpretativas, Maria Helena Diniz define a

natureza jurídica da atividade de prestar serviços como “uma obrigação de fazer, ou seja,

a prestação de atividade lícita, não vedada pela lei e pelos bons costumes, oriunda da

energia humana aproveitada por outrem, e que pode ser material ou imaterial”404.

Acrescenta a autora que, na prestação de serviços, a obrigação de fazer do prestador se

contrapõe à obrigação de dar (remunerar) do tomador do serviço.

Embora a distinção entre esses vínculos – de dar e de fazer – não configure

tarefa das mais fáceis, pode-se afirmar que, enquanto as obrigações de dar objetivam a

entrega de algo já existente a outrem, transferindo-se ao credor direitos sobre o bem

entregue, nas obrigações de fazer ao devedor cabe executar algo até então inexistente.

Nesse ponto, convém prevenir, consoante assinala Pontes de Miranda, que “a

passagem da coisa não é característica da obrigação de dar”405, uma vez que as

obrigações de fazer podem resultar num dar uma coisa. Porém, diferentemente do que

ocorre com as obrigações de dar, a eventual concretização da passagem da coisa é

simples consequência de uma prévia feitura, objeto primordial do contrato de prestação

de serviços. Para expor com excelência os aspectos distintivos entre esses vínculos

jurídicos, recorremos aos ensinamentos de Washington Monteiro de Barros:

O substratctum da diferenciação está em diferenciar se o dar ou o entregar é ou não consequência do fazer. Assim, se o devedor tem de dar ou de entregar alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é de dar; todavia, se, primeiramente, tem ele de confeccionar a coisa para depois entregá-la, se tem ele de realizar algum ato, do qual será mero corolário a de dar, tecnicamente a obrigação é de fazer406.

403 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 5. ed. rev. atual. e ampl. de acordo com o Código Civil

de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 521. 404 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. V. 3, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.

313. 405 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo XXII, 2. ed. Rio de

Janeiro: Borsoi, 1958, p. 8. 406 Apud BARRETO, Aires Fernandino. ISS, IOF e Instituições financeiras. Noeses: São Paulo, 2016,

p. 17.

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Pois bem. Transpondo-se as reflexões até aqui desenvolvidas para o campo

do direito tributário e tendo em vista que o ISS, na configuração constitucional,

pressupõe uma prestação de serviço segundo a conceituação no direito privado, a

atividade suscetível de tributação pelo imposto municipal deve ostentar categoria

jurídica de uma obrigação de fazer, compreendida como um esforço humano, físico ou

intelectual, de executar algo antes inexistente em benefício de terceiros.

Nessa mesma perspectiva, preleciona Paulo de Barros Carvalho que “a

incidência do ISS pressupõe atuação decorrente do dever de fazer algo até então

inexistente, não sendo exigível quando se tratar de obrigação que imponha a mera

entrega, permanente ou temporária, de algo que já existe”407. A natureza jurídica das

obrigações de fazer, que motivam a incidência do imposto municipal, contrapõe-se,

assim, à natureza das denominadas obrigações de dar, condicionantes materiais para a

exigência do ICMS-M.

Nos dizeres de Geraldo Ataliba e Aires F. Barreto, tendo como baliza

necessária o conceito constitucionalmente pressuposto, “serviço” há de ser

compreendido, nos domínios do direito tributário, como o desenvolvimento de um

esforço humano pessoal, traduzido num ato ou conjunto de atos, num realizar uma

tarefa, objetivando proporcionar a terceiros, sob regime de direito privado, um proveito,

uma utilidade ou comodidade, ou a satisfação de uma necessidade. Reforçam os autores

que “a circunstância do resultado do comportamento ser material ou imaterial é

irrelevante. O que importa é ter sido obtido como fruto do esforço humano de

alguém”408, porquanto o contrato de prestação de serviços engendra obrigação de fazer,

em oposição à obrigação de dar.

Aires F. Barreto vai além para enfatizar que o registro “material ou

imaterial”, embora a rigor desnecessário, se faz proposital, haja vista os equívocos de

certos autores em asseverar “que o ICMS é um imposto que grava a ‘circulação de bens

407 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 795. 408 Id. A natureza jurídica do ICM. In: DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio; ATALIBA, Geraldo;

CARVALHO, Paulo de Barros Carvalho (Coords.). Textos selecionados para o X Curso de Especialização em Direito Tributário – IBET – IDEP – ESAF. São Paulo: Resenha Tributária; Revista dos Tribunais, 1983, p. 158.

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materiais’ e que o ISS é um imposto que incide sobre a ‘circulação de bens

imateriais’”409. Para evitar conclusões precipitadas dessa afirmativa, forcejamos por

entender que, no que diz respeito ao ISS, se o esforço humano resultar num bem material

(num quadro ou numa obra, por exemplo), não há que falar em operação mercantil e,

portanto, em incidência do ICMS. Por outro lado, se a relação jurídico-contratual

importar a entrega de um bem imaterial, o ISS apenas incidirá se este bem imaterial for

resultado de uma obrigação de fazer definida como o objeto contratado entre as partes

envolvidas.

No universo da jurisprudência, vale mencionar o emblemático julgamento do

Supremo Tribunal Federal no RE nº 116.121410, inclusive já citado neste escrito e que

cuidou de afastar a pretensão fiscal de exigir o ISS na locação de bens. Alicerçada na

supremacia constitucional e na tipicidade, posicionou-se a Corte pela preservação dos

institutos de direito privado utilizados pelo constituinte na repartição das competências

tributárias. Partindo assim de premissas jurídicas, concluíram os Ministros que somente

as obrigações de fazer, caracterizadas juridicamente como o esforço humano de elaborar

uma utilidade em favor de terceiro, qualificam-se como prestação de serviços passíveis

de serem tributadas pelo ISS e que não se confundem com a definição civil de locação

de bens móveis.

No intento de sintetizar com fidelidade o entendimento do STF, destacamos

os seguintes excertos dos votos dos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, na

sequência em que foram proferidos no julgamento:

Na espécie, o imposto, conforme a própria nomenclatura revela e, portanto, considerado o figurino constitucional, pressupõe a prestação de serviços e não o contrato de locação. [...]. Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento. Prevalece a ordem natural das coisas cuja força surge insuplantável; prevalecem as balizas constitucionais e legais, a conferirem segurança às relações Estado-contribuinte; prevalece, alfim, a organicidade do próprio Direito, sem a qual tudo será possível no

409 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética: 2009, p. 64. 410 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 116.121. Relator: Ministro Octavio

Gallotti. Relator para o Acórdão: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 11 out. 2000. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 25 maio 2001.

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agasalho dos interesses do Estado, embora não enquadráveis como primários (Voto Min. Marco Aurélio).

Cabe advertir, neste ponto, que a locação de bens móveis não se identifica e nem se qualifica, para efeitos constitucionais, como serviço, pois esse negócio jurídico [...] não envolve a prática de atos que consubstanciam um ‘prestare’ ou um ‘facere’. Na realidade, a locação de bens configura verdadeira obrigada de dar. [...] Veja-se, pois, que para efeito de definição e de identificação e do alcance dos institutos, dos conceitos e formas de direito privado, o Código Tributário Nacional, em seu art. 110, ‘faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial’ [...], razão pela qual esta Suprema Corte, para fins jurídico-tributários, não se pode recusar, ao instituto da locação de bens móveis, a definição que lhe é dada pelo Código Civil (art. 1.188), sob pena de prestigiar, no tema, a interpretação econômica do direito tributário, em detrimento do postulado da tipicidade (Voto Min. Celso de Mello).

Trata-se de importante precedente na medida em que superou orientação

anterior do STF no julgamento do RE nº 112.947411, fundada numa interpretação

econômica dos fatos e alheia à unidade e hierarquia do sistema jurídico. Naquela

ocasião, havia decidido o Tribunal Supremo pela incidência do ISS na locação de

guindastes, basicamente, sob as seguintes justificativas: (i) a prestação de serviços, na

lei complementar, é toda operação que não constitua venda de bem material e, portanto,

a sua acepção no direito tributário é mais ampla do que aquela compreendida no âmbito

privado; e (ii) para a identificação do fato jurídico tributário do ISS importaria o destino

da coisa locada, pois, se voltada à prestação de um serviço, manifestaria atividade com

consistência econômica, de modo a tornar-se índice de capacidade contributiva do

imposto. À época, registrou expressamente o Pretório Excelso que se deveria levar em

conta “a realidade econômica, que é a atividade que se presta com o bem móvel e não a

mera obrigação de dar, que caracteriza o contrato de locação, segundo o art. 1188 do

Código Civil”.

411 “TRIBUTÁRIO. ISS NA LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS. O que se destaca, 'utilitatis causa, na

locação de bens móveis, não e apenas o uso e gozo da coisa, mas sua utilização na prestação de um serviço. Leva-se em conta a realidade econômica, que e a atividade que se presta com o bem móvel, e não a mera obrigação de dar, que caracteriza o contrato de locação, segundo o artigo 1188 do Código Civil. Na locação de guindastes, o que tem relevo e a atividade com eles desenvolvida, que adquire consistência econômica, de modo a tornar-se um índice de capacidade contributiva do imposto sobre serviços. Recurso não conhecido” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 112.947. Relator: Ministro Carlos Madeira. Julgamento: 19 jun. 1987. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJ, 07 ago. 1987).

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261

A argumentação firmada nesse julgado da Corte Suprema, contrastante às

premissas expostas ao longo deste trabalho, obtém maior respaldo na doutrina de

Bernardo Ribeiro de Moraes. De acordo com esse autor, o conceito de “serviço”,

enunciado na outorga de competência para instituir o ISS, é eminentemente econômico,

definindo-se como todas as atividades que não constituam circulação de mercadorias,

isto é, bens corpóreos ou materiais, que ocupam um lugar no espaço. Afirma que essa

foi a opção do legislador complementar que, ao relacionar os serviços tributáveis pelo

ISS, baseou-se na classificação econômica de bens em materiais (mercadorias) e

imateriais (serviços). Sustentado nesse arrazoado, conclui o jurista que o ISS tem por

objeto “a operação habitual e econômica (o imposto é sobre a circulação de bens), de

uma pessoa para outra, de venda de bens imateriais”412, abrangendo o simples

fornecimento de trabalho, a locação de bens móveis e imóveis e a cessão de direitos.

Encontramos também resistência ao conceito de “prestação de serviços”

empregado no direito privado, como critério apto a demarcar a materialidade

constitucional do ISS, nos fundamentos dos votos proferidos no RE nº 592.905413,

julgado pela sistemática da repercussão geral e em favor da incidência do imposto nos

contratos complexos de leasing financeiro. Basicamente decidiu o STF que,

diferentemente do arrendamento mercantil operacional, o núcleo do leasing financeiro

representaria um financiamento, e tal atividade, no entender da Corte, seria serviço e

não uma obrigação de dar, inclusive assim declarado e indicado na lei complementar.

Lê-se dos votos dos Ministros os seguintes trechos, no que interessam às

presentes reflexões:

A lei complementar “inclui serviços que, não exprimindo a natureza de

outro tipo de atividade, passam à categoria de serviços para fins de

incidência do tributo, por força de lei, visto que, se assim não

considerados, restariam incólumes a qualquer tributo”.

412 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Imposto sobre serviços. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva Curso

de Direito Tributário (Coord.). São Paulo: Saraiva e Centro de Estudos de Extensão Universitária, 1982, p. 374.

413 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 592.905/SC. Relator: Min. Eros Grau. Julgamento: 02 dez. 2009. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJe, 05 mar. 2010.

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“Há serviços que, para os efeitos do inciso III do art. 156 da Constituição,

não consubstanciam típicas obrigações de fazer. Raciocínio adverso a este

conduziria à afirmação de que haveria serviço apena nas prestações de

fazer nos termos do que define o direito privado”.

“Os operadores de leasing estão no melhor mundo possível porque eles

não pagam ISS, não pagam ICMS, não pagam IOF. Qual seria o tributo,

então, que incidiria sobre essa operação? Ele está indicado na lei

complementar”.

Contudo, as conclusões desenvolvidas em ambos os recursos – RE nº

112.947 e RE nº 592.905 – distanciam-se de um raciocínio profundo no plano jurídico

e harmonizado ao sistema constitucional tributário, o que nos convida a analisar

criticamente seus principais fundamentos:

[fundamento] Na locação de bens, se a atividade a que se destina o bem

locado assume consistência econômica, subsiste a capacidade contributiva

para a exigência do ISS: [análise] a desconsideração, pelo aplicador do

direito, das formas jurídicas eleitas pelo constituinte para priorizar os efeitos

econômicos que delas decorrem, com fundamento na capacidade

contributiva, despreza os signos positivados pelo constituinte, viola a

legalidade e a tipicidade que impõem a correspondência conceitual do fato

que se pretende tributar àquele descrito hipoteticamente na norma e, por

conseguinte, ocasiona a aplicação analógica da lei tributária, ampliando o

âmbito constitucional de incidência do ISS. Dado que o princípio da

capacidade contributiva é informador de todos os impostos, considerá-lo de

forma isolada não exprime critério seguro para apartar os fatos tributáveis

pelo ISS daqueles graváveis por impostos de outras esferas políticas. Sobre

esse ponto, merecem transcrição as valiosas lições de Geraldo Ataliba e Aires

F. Barreto, segundo as quais a definição a ser formulada pelo legislador na

criação do tributo “deverá circunscrever-se aos fatos que correspondam à

conceituação constitucional e concomitantemente permitem atender às

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exigências da capacidade contributiva”414. Em tom de censura aos que

renunciam à atuação mental jurídica para priorizar uma interpretação

econômica dos enunciados prescritivos, leciona Alfredo Augusto Becker:

[...] só porque a justificação do imposto é a existência de uma determinada capacidade contributiva – uma empreitada que produza efeitos econômicos análogos aos da venda deve, só por tal circunstância, ser tributada como venda porque demonstra uma igual capacidade contributiva, [...] corresponde à esquema lógico de raciocínio que pode ser autorizado e concludente no plano econômico-financeiro, contudo é inadmissível no plano jurídico415.

[fundamento] A prestação de serviços, na lei complementar, é toda operação

que não constitua venda de bem material: [análise] a definição por exclusão

para delimitar os campos materiais dos tributos, em que os conceitos são

delimitados por meio da diferenciação dos demais conceitos atributivos de

competências privativas não condiz com o próprio sistema constitucional

tributário, pois resultará, segundo adverte Andrei Pitten Velloso, na

possibilidade de tributar todas as manifestações de capacidade contributiva a

partir das competências específicas já previstas pela Constituição, “o que é

inadmissível, porquanto o próprio texto constitucional leva facilmente à

ilação de que essas competências são fragmentárias, ao prever a competência

residual da União para instituir novos impostos e novas contribuições”416 nos

seus arts. 154, I e 195, §4º.

[fundamento] São serviços tributáveis pelo ISS as atividades assim definidas

pela lei complementar, caso contrário ficariam a salvo da tributação:

[análise] este argumento estimula, pela via legislativa infraconstitucional, o

alargamento do conceito de serviço utilizado na Constituição, além de servir

para a ampliação conceitual das demais competências tributárias. Como

perfeitamente argumentado no voto vencido, proferido pelo Ministro Marco

414 CARVALHO, Paulo de Barros. A natureza jurídica do ICM. In: DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio;

ATALIBA, Geraldo; CARVALHO, Paulo de Barros Carvalho (Coords.). Textos selecionados para o X Curso de Especialização em Direito Tributário – IBET – IDEP – ESAF. São Paulo: Resenha Tributária; Revista dos Tribunais, 1983, p. 157.

415 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 129-131.

416 VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005, p. 43.

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Aurélio no RE nº 592.905, não se pode estender competências tributárias

específicas a pretexto de preencher lacuna normativa, cabendo somente à

União, no exercício de sua competência residual, tributar fatos não inseridos

no âmbito privativo da competência dos entes políticos.

Pelas razões dilucidadas, na sua ordenação constitucional, o ISS incide sobre

a “prestação de serviço”, cuja definição parte do conceito prévio de “serviço” aceito no

direito privado, pois assim incorporado pelo constituinte de 1988. A conceituação nesses

moldes do critério material do ISS, além de privilegiar a supremacia do Texto Maior, a

unidade do ordenamento e a segurança jurídica, acomoda-se melhor e perfeitamente às

demais materialidades previstas na rígida distribuição de competências, evitando

usurpações e bitributação pelas esferas de governo.

Sob esses alicerces, “prestar serviços” qualifica-se, na dicção constitucional,

como uma obrigação de fazer, um esforço humano, físico ou intelectual, de elaborar

algo antes inexistente em proveito de terceiros, em decorrência de um negócio jurídico

oneroso celebrado entre tomador e prestador.

2.4.2.1 A prestação-fim como substrato fático da hipótese de incidência do ISS

Ao perquirir sobre a redação constitucional do art. 156, II, concluímos que o

ISS incide sobre atividades que correspondem a uma obrigação de fazer, pressupondo

um acordo de vontades entre pessoas. Nesse ajuste volitivo são delimitados os contornos

das prestações envolvidas, expressivas dos comportamentos sujeitos à tributação.

É a partir do contrato que se depreende a natureza jurídica da prestação-fim,

convencionada que, assim que adimplida, faz extinguir direitos e deveres. Conhecida a

finalidade precípua do contrato, seja obrigação de fazer ou de dar, o intérprete não só

consegue detectar se demais atos eventualmente praticados consistem em atividades-

meio – ações intermediárias, porém necessárias para atingir o fim específico do contrato

–, como também lhe é possível identificar o regime tributário aplicável ao negócio

jurídico.

Em idêntica perspectiva, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça para

consignar que:

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Envolvendo a atividade, bens e serviços, a realidade econômica que interessa ao Direito Tributário impõe aferir o desígnio final pretendido pelo sujeito passivo tributário, distinguindo-se a atividade meio, da atividade fim, esta última o substrato da hipótese de incidência417.

Acerca desse pressuposto fundamental para discernir incidências tributárias

a recaírem sobre as atividades dos particulares, pontua Aires. F Barreto que não

concerne à ontologia das atividades ser meio ou ser fim, uma vez que podem se

apresentar como fim ou como um meio, a depender do contexto em que são realizadas:

“muitas vezes, as mesmas ações humanas antes focalizadas não mais se caracterizam

como atividades condicionantes da concretização de um fim, ao revés, o próprio objeto

colimado418.

Tais ponderações mostram-se relevantes, porquanto a prestação de serviço

tributável pelo ISS circunscreve-se à prestação-fim do contrato, decisiva para concluir

se há ou não sua incidência419. A série de atos praticados que viabilizam a prestação de

serviços de qualquer natureza – atividades-meio – não pode ser apartada da prestação-

fim para efeito de tributação. Esclarece Roque Antonio Carrazza que, em última análise,

essas atividades-meio são levadas a cabo “no interesse da própria pessoa (física ou

jurídica) que presta, em caráter negocial, o serviço de qualquer natureza”420.

Em outras palavras, a tributação pelo ISS está condicionada à realização de

um esforço humano enquanto prestação-fim do acordo celebrado entre as partes, sendo

que eventuais ações-meios – de fazer ou de dar –, necessárias para concluir a ação-fim

e, por isso, indissociáveis do contratado e cujos custos agregam ao preço final, não são

consideradas como atividades autônomas para efeito de aplicação do ISS ou de outro

tributo. Da mesma maneira, quando a atividade-fim consistir num dar, eventuais

prestações de fazer necessárias para o seu cumprimento traduzem atividades-meio, não

alcançadas pelo ISS. Ao encontro destas considerações, segue precedente do Superior

Tribunal de Justiça:

417 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 912.036/RS. Relator: Ministro Luiz Fux.

Julgamento: 06 set. 2007. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 08 out. 2007. 418 BARRETO, Aires Fernandino. ISS, IOF e Instituições financeiras. Noeses: São Paulo, 2016, p. 34. 419 BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma – Doutrina e Jurisprudência da EC 18/65 à LC

116/03. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 283-284. 420 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p.

122.

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Deveras, o ISS, na sua configuração constitucional, incide sobre uma prestação de serviço, cujo conceito pressuposto pela Carta Magna eclipsa ad substantia obligatio in faciendo, inconfundível com a denominada obrigação de dar. 4. Desta sorte, o núcleo do critério material da regra matriz de incidência do ISS é a prestação de serviço, vale dizer: conduta humana consistente em desenvolver um esforço em favor de terceiro, visando a adimplir uma "obrigação de fazer" (o fim buscado pelo credor é o aproveitamento do serviço contratado). 5. É certo, portanto, que o alvo da tributação do ISS "é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim" [...]421.

Por último, é interessante anotar que a dicotomia atividade-fim/atividade-

meio para a identificação do fato jurídico tributário vem a confirmar linhas anteriores,

em que demonstramos que, diante de contratos complexos, é preciso discernir, dentre

os elementos negociais envolvidos, a especificidade preponderante do contrato, isto é, a

atividade-fim contratada, constitutiva do objeto convencionado e que permitirá

determinar as normas tributárias aplicáveis.

2.4.3 O papel da lei complementar na definição do serviço tributável pelo ISS

Dentre as diversas discussões empreendidas pela doutrina e jurisprudência

no tocante ao ISS, perdurou o debate acerca do caráter taxativo ou exemplificativo da

listagem de serviços estabelecida, primeiramente, no Decreto-lei nº 406/68 e, depois, na

Lei Complementar nº 116/03. De um lado, uma corrente defendia que serviço não

contemplado na lista não poderia sofrer a incidência do imposto municipal, pois o

constituinte condicionou a eficácia plena do art. 156, III, à integração de seus comandos

pela legislação nacional422 e, de outro, uma vertente sustentava que a lista não exauriria

421 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 888.852/ES. Relator: Ministro Luiz Fux.

Julgamento: 04 nov. 2008. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe, 01 dez. 2008. 422 Representam essa corrente Paulo de Barros Carvalho (Imposto sobre serviços de qualquer natureza:

delimitação dos serviços tributáveis pelos municípios. In: ______. Derivação e Positivação no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2013, p. 316-321); Hugo de Brito Machado (Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 402-404); e Ives Gandra da Silva Martins (O ISS e a Lei Complementar n° 116/2003 – Aspectos Relevantes. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003, p. 195).

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o universo de possibilidades fáticas sujeitas ao imposto para assim preservar a

autonomia dos Municípios423.

Não sendo tema específico de nossas investigações, cumpre apenas destacar,

sem maiores digressões no assunto, que a jurisprudência dos Tribunais Superiores424, ao

interpretar o art. 156, III, na parte em que dispõe que os serviços de qualquer natureza

serão “definidos em lei complementar”, consagrou o entendimento de que a lista de

serviços prescrita nesse veículo legislativo é taxativa, admitindo-se, contudo, uma

leitura extensiva de cada item. A interpretação extensiva, segundo a jurisprudência,

justificava-se na medida em que a mera designação do serviço constitui critério

imprestável a fim de averiguar se a atividade será ou não tributada pelo ISS, porquanto,

se assim não fossem interpretados os itens listados, a simples nomenclatura do serviço

pelo contribuinte excluiria o serviço do campo material da incidência desse imposto.

Nesse contexto, e já partindo do entendimento consolidado por nossos

Tribunais, a lei complementar contribui na definição do critério material do ISS ao

elencar denotativamente atividades qualificadas como serviços abrangidos no âmbito da

competência dos Municípios. E ao elencar serviços particulares nominados por termos

enunciados em cada item listado, acaba por tipificar classes de serviços, vinculando

todas as esferas jurídicas municipais, de modo que os Municípios, na criação e cobrança

do ISS, deverão respeitar os caracteres semânticos identificadores de cada classe

positivada. A lei complementar, portanto, funciona como um mecanismo de ajuste da

423 Representam essa corrente José Souto Maior Borges (ISS (Imposto sobre Serviços) na Constituição.

Revista de Direito Tributário, n. 03, p. 200, 1978); Aires F. Barreto (ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética: 2009, p. 114-115); Roque Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 1102-1103) e Clélio Chiesa (O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza e Aspectos Relevantes da Lei Complementar n° 116/2003. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003, p. 52-76).

424 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.111.234/PR. Relatora Ministra Eliana Calmon. Julgamento: 23 set. 2009. Órgão Julgador: primeira Seção. Publicação: DJe, 08 out. 2009; e id. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 903.258/PR. Relator: Ministro José Delgado. Julgamento: 21 fev. 2008. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: Dje, 05 mar. 2008. id. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 75.952/SP. Relator: Ministro Thompson Flores. Julgamento: 29 out. 1973. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgamento: DJ, 02 jan. 1974 e id. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 450.342/RJ. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento: 05 set. 2006. Segunda Turma. Publicação: DJ, 03 ago. 2007.

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produção legislativa desses vários entes políticos espalhados pelo território brasileiro

em consonância com as regras de competência tributária.

Sobre esse papel da lei complementar de relacionar classe de serviços

onerados pelo ISS, preleciona Paulo de Barros Carvalho:

Diante da complexidade desse imposto e visando a evitar eventuais conflitos de competência, o constituinte houve por bem eleger a lei complementar como veículo introdutor de normas jurídicas tributárias definidoras de quais sejam os serviços de qualquer natureza, susceptíveis de tributação pelos Municípios. [...]. Eis caso típico do papel de ajuste reservado à legislação complementar para garantir a harmonia que o sistema requer425.

O mesmo autor faz importante ressalva no sentido de que essa tarefa há de

ser executada à luz do contexto constitucional, de tal sorte que o legislador

complementar ao enumerar as atividades econômicas suscetíveis de tributação pelos

Municípios, especificando a extensão da locução “serviços de qualquer natureza”, está

jungido ao conceito constitucional de serviços, sendo-lhe terminantemente vedado

inovar em matéria de competência tributária. Os termos enunciados na lei

complementar, e também nas legislações municipais, frisa o jurista, “só podem ser

compreendidos se considerada a totalidade sistêmica do ordenamento, respeitando-se os

limites impostos pela Constituição à disciplina do ISS” 426.

Ora, as ilações precedentes decorrem do próprio sistema constitucional

tributário, que, empregando termos veiculadores de conceitos, não cede espaço para o

legislador infraconstitucional modificar as faixas de competência para instituição de

tributos. Ao legislador complementar cabe apenas explicitar o conceito constitucional

de serviço, ainda que assim o faça por intermédio de processos denotativos, com o

objetivo primordial de evitar bitributação. Por óbvio, ao contribuir nas feições

conceituais do critério material do ISS definindo serviços, a atuação do legislador

complementar deve ser compatível com a Constituição, sob pena de subverter a

hierarquia do ordenamento posto.

425 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e Método. 6. ed. São Paulo: Noeses,

2015, p. 790-791. 426 Ibid., p. 791.

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Precisamente por isso, o Supremo Tribunal Federal decidiu que compete à

lei complementar, para harmonizar-se com o Texto Magno, apenas elucidar e reforçar

os comandos veiculados pelo constituinte:

Estabelecer normas gerais sobre a definição do fato gerador do imposto não pode significar outra coisa senão fixar os lindes conceituais desse importante elemento do tributo, a partir do fato ou atividade de natureza econômica (materialidade) especificada na Constituição como de competência tributária de determinado ente titular de competência impositiva [...].427

Da mesma maneira entendeu o Superior Tribunal de Justiça no sentido de

que a dicção constitucional não autoriza o legislador nacional a incluir no rol de serviços

atividade que não represente obrigação de fazer, “porque a isso corresponderia franquear

a modificação de competência tributária por lei complementar, com violação do pacto

federativo”428.

Por essas e outras, Aires F. Barreto reprova análises doutrinárias e esparsas

decisões – aliás, cada vez mais frequentes –, “que tomam por ponto de partida a

definição apresentada pela lei complementar, como se esta fosse uma norma suprema,

acima da Constituição”429. Para uma exegese coerente com o sistema, o primeiro passo

deve ser averiguar a abrangência do conceito de serviço constitucionalmente positivado,

para só depois investigar se a lei complementar conferiu tratamento adequado à Carta

Maior, vale dizer, se a atividade elencada na lista anexa guarda plena sintonia com o

arquétipo constitucional.

Com o objetivo de demonstrar o iter interpretativo a ser percorrido pelo

aplicador do direito para investigar se o fato submete-se ao ISS, arremata o autor que

somente depois de concluir que a atividade é classificada como serviço configurador de

obrigação de fazer e, sendo serviço, concluir que concerne ao âmbito de competência

dos Municípios e não dos Estados, “é que se poderá, então, ir à lei complementar para

constatar se se trata de atividade constante da lista que a acompanha430.

427 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 158.834/SP. Relator: Ministro

Sepúlveda Pertence. Relator para o Acórdão: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 23 out. 2002. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 05 set. 2003.

428 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 912.036/RS. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento: 06 set. 2007. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 08 out. 2007.

429 BARRETO, Aires Fernandino. ISS, IOF e Instituições financeiras. Noeses: São Paulo, 2016, p. 01. 430 Ibid., p. 02.

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Por fim, convém realçar que o presente tópico não se propôs a interpretação

e a aplicação dos itens e subitens da lista anexa à LC nº 116/03, o que renderia neste

escrito muitas outras linhas de reflexão. Pretendeu-se aqui demonstrar que, para incidir

o ISS, a atividade econômica, além de qualificar-se como uma obrigação de fazer nos

moldes elucidados nos tópicos precedentes, há de estar especificada na lei

complementar, respeitando-se a repartição constitucional das competências tributárias.

2.5 Notas finais sobre as feições jurídicas das materialidades do ISS e do ICMS-

M e as dualidades obrigação de dar/obrigação de fazer e atividade-

fim/atividade-meio na demarcação do campo possível dessas incidências

tributárias

Neste capítulo discorremos sobre as propriedades nucleares que os fatos hão

de apresentar para subsumirem-se às notas conceptuais do critério material das regras-

matrizes do ICMS-M e ISS, segundo os ditames da Constituição de 1988.

Para a perfeita identificação do fato jurídico tributário do ICMS-M, vimos

que a situação material disposta pelo constituinte como passível de tributação pelo

imposto estadual corresponde a “realizar operações relativas à circulação de

mercadorias”. A partir de uma análise sintático-semântica do trinômio operação-

circulação-mercadoria, concluímos que o ICMS-M incide sobre negócios jurídicos, de

substrato econômico, que importam na transmissão da propriedade da mercadoria, i.e.,

que traduzam circulação jurídica capaz de transferir o poder de domínio sobre a

mercadoria, compreendida esta como bem móvel corpóreo, adquirido ou produzido para

ser posto em processo de circulação comercial.

No tocante ao arranjo constitucional da materialidade do ISS, descrita como

“prestar serviços de qualquer natureza”, concluímos que são fatos tributáveis por esse

imposto municipal (i) as atividades com conteúdo econômico (ii) que representam um

esforço humano, físico ou intelectual, (iii) desenvolvido sem subordinação e (iv) sob o

regime de direito privado, (v) conferindo uma utilidade material ou imaterial em favor

de terceiro, desde que tais atividades estejam (vi) definidas em lei complementar, (vii)

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excetuadas da competência dos Estados e do Distrito Federal e (viii) representem a

prestação-fim objetivada no contrato celebrado entre tomador e prestador.

Tanto na contingência do ICMS-M como na do ISS há a presença de um

processo e um produto: no primeiro, a realização de um negócio jurídico para transferir

a titularidade (processo) de mercadorias (produto); e, no segundo, a realização de um

negócio jurídico para produzir (processo) uma utilidade material ou imaterial (produto).

Justamente em virtude da existência dessa associação “processo/produto” em ambas as

figuras tributárias, torna-se preciso ter em mente as condições específicas eleitas pelo

constituinte para que se dê tal combinatória, capacitando o jurista e o aplicador a

distinguir as porções competenciais: no ICMS-M, o negócio jurídico resume-se num dar

daquele que deve adimplir a obrigação; e, no ISS, o negócio jurídico resume-se num

fazer daquele que deve cumprir a prestação.

Deveras, tendo em mente o núcleo conceptual dos acontecimentos

selecionados pelo constituinte para a concretização dos fatos jurídicos tributários do

ICMS-M e do ISS, a distinção fundamental entre os tipos estruturais que integram os

respectivos critérios materiais ampara-se na dualidade entre um fazer e um dar: a

transmissão de propriedade da mercadoria caracteriza-se como uma obrigação de dar; e

a prestação de serviços representa uma obrigação de fazer.

Todavia, nem sempre é fácil apontar a presença do dar ou do fazer, até

porque, em última análise, nas duas condutas obrigacionais o fazer e o dar estarão

presentes. De acordo com o magistério de Paulo de Barros Carvalho, toda prestação

encerrará sempre um fazer e um dar: “ninguém entrega a outrem um objeto, móvel ou

imóvel, fungível ou infungível, corpóreo ou incorpóreo, sem exercitar a conduta própria

que implementar a ação de dar”; em contrapartida, “não é possível dar sem o

comportamento de fazer, o que não impede o duplo fazer, quando alguém se encarrega

de executar um serviço, por exemplo, e, de seguida, o entrega ao tomador”431.

A diferença é saber se o dar ou entregar é consequência de um fazer

objetivado e especificado no negócio jurídico. Com efeito, enquanto que, no ICMS-M,

o conteúdo essencial do convencionado é promover circulação de mercadoria, no ISS, o

objeto contratual entre tomador e prestador consubstancia um facere. Neste, acorda-se,

431 Parecer inédito.

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antes de tudo, a execução de um fazer, com as especificações e condições em que os

serviços deverão ser realizados segundo as especificidades do tomador, remanescendo

a entrega do serviço produzido como simples cláusula contratual. Em suma: no primeiro,

o produto circulado, com a transferência do domínio, é não personalizado; no segundo,

tem-se a personalização do objeto contratado.

Ademais, conquanto o critério “obrigação de dar” para o ICMS-M e o critério

“obrigação de fazer” para o ISS figurem como solução jurídica apta a demarcar os

respectivos campos possíveis de incidência, vimos também que, diante de contratos

complexos, em que a relação jurídica firmada entre as partes envolva elementos

negociais de dar e de fazer indissociáveis, reclama-se investigar a especificidade

negocial preponderante, constitutiva da atividade-fim a que se obrigou o devedor no

contexto contratual, apartando-a das atividades-meio, necessárias para a consecução da

prestação-fim.

Nas operações complexas, entrelaçando-se dar e fazer, é a preponderância de

um ou de outro, reveladora da atividade-fim convencionada pelas partes, que servirá

como substrato fático para a exigência fiscal: nas hipóteses em que imperar o fazer,

incidirá o ISS; onde sobrepuser o dar, o ICMS-M. Por isso, afirma Ricardo Anderle que

o critério ‘atividade-meio’ e ‘atividade-fim’ acaba por revelar-se como um subcritério

da distinção entre obrigação de fazer e obrigação de dar432.

Para encerrar esse esforço crítico, cumpre dizer que a adoção dessas diretrizes

interpretativas se coaduna com a completude do sistema jurídico, pois toma como ponto

de partida os signos empregados na repartição das competências tributárias,

conformados no seu plano de expressão e de conteúdo, tendo em vista o próprio contexto

do direito positivo e os diálogos textuais que com eles se estabelecem, sempre primando

pela hierarquia do ordenamento.

Não cansamos de repetir que a observância dos conceitos constitucionais para

demarcar a atuação legiferante dos entes políticos vai ao encontro da estrutura rígida da

fixação das competências impositivas procedida pelo constituinte, o qual optou por

432 ANDERLE, Ricardo. Conflitos de competência tributária entre o ISS, ICMS e IPI. 2015. Tese

(Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 155.

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distribuir materialidades minuciosamente e adotar regimes tributários diversos sobre as

atividades econômicas desenvolvidas pelos contribuintes.

Ao fragmentar a tributação das manifestações de riqueza, a distinção entre

obrigações de dar e de fazer e sua preponderância nas relações contratuais mostram-se

como critérios jurídicos eficientes para estremar a persecução desses impostos, inclusive

para também indicar traços distintivos relativamente a outros impostos previstos na

Constituição, como o IOF e o IPI.

Por meio desse raciocínio é possível identificar a natureza peculiar de uma

exação fiscal de modo a privilegiar as disposições plasmadas no Texto Constitucional.

Afastam-se, então, expedientes exegéticos baseados na interpretação econômica e

teleológica dos fatos, na aplicação estrita da lei complementar e na necessidade de

adaptar as normas jurídicas ao progresso socioeconômico, que, isoladamente

considerados, desprezam a dimensão semântica permitida pelas faixas de competência

tributária.

O descarte dos conceitos constitucionais, legitimados na integralidade

contextual do direito positivo, em favor do casuísmo e do forte subjetivismo, importará

na aplicação do direito de forma instável e arbitrária, resultando na construção de

sentidos altamente variados e no uso de analogias no âmbito da fenomenologia da

incidência tributária, a desserviço da tipicidade e da segurança jurídica que há de

permear as relações entre Estado-contribuinte.

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PARTE 3

A TRIBUTAÇÃO PELO ICMS-M E PELO ISS SOBRE A LICENÇA DE USO

DE SOFTWARE DISPONIBILIZADO ELETRONICAMENTE

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1 A PRAGMÁTICA REVELANDO A COMPLEXIDADE DO TEMA

“TRIBUTAÇÃO DE SOFTWARE”

Compreendida, genericamente, como o uso que os falantes da língua fazem

dela, a pragmática cuida de investigar, no campo do direito positivo, como os agentes

competentes executam os valores na utilização e aplicação da linguagem jurídica. É no

plano pragmático que se examina como o Judiciário aplica os textos positivados no

exercício jurisdicional e como sucedem a criação e a aplicação das normas nas outras

esferas do Poder Público e no âmbito privado.

Sem sombra de dúvida, o estudo das normas gerais e abstratas, especialmente

aquelas estatuídas na Carta Maior, assume extrema relevância para a compreensão do

fenômeno jurídico, até porque servem de fundamento de validade para as demais normas

do sistema jurídico. Porém, a previsão geral e abstrata é insuficiente para cogitar o

direito interferindo e regulando condutas intersubjetivas. Faz-se imprescindível realizar

o percurso da positivação, por meio do qual o aplicador do direito parte das normas de

hierarquia superior para produzir novas normas jurídicas, objetivando maior

individualidade e concretude e, com isso, tocar o tecido social e motivar as condutas na

consecução dos valores almejados pelo ordenamento.

Por essa razão, ensina Paulo de Barros Carvalho que

[...] não basta o trabalho preliminar de conhecer a feição estática do ordenamento positivo. Torna-se imperioso pesquisarmos o lado pragmático da linguagem normativa, para saber se os utentes desses signos estão empregando com os efeitos que a visão estática sugere. De nada adiantam direitos e garantias individuais, placidamente inscritos na Lei Maior, se os órgãos a quem compete efetivá-los não o fizerem com a dimensão que o bom uso jurídico requer433.

Em vista dessas considerações, a fim de ter o conhecimento rigoroso do

objeto pesquisado, passemos neste instante a realizar o estudo complementar da

aplicação do direito em matéria de tributação do ICMS-M e do ISS sobre os negócios

jurídicos com software, com enfoque nas licenças de uso formalizadas pela Internet.

433 CARVALHO, Paulo de Barros. Segurança Jurídica no Novo CARF. In: ROSTAGNO, Alessandro

(Coord.). Contencioso administrativo tributário: questões polêmicas. São Paulo: Noeses, 2011, p. 7.

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Iniciaremos o estudo proposto com a análise dos atos de fala produzidos pelo

Poder Judiciário, cujas decisões “trabalham para aperfeiçoar o sistema jurídico”434,

atualizando-o e constituindo-o.

1.1 A evolução da jurisprudência nos Tribunais Superiores em matéria de

tributação de licença de uso de software pelo ICMS-M e pelo ISS

Foi no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, notadamente nos Recursos

Especiais nºs 39.797-9435 e 39.457-0436, que foram proferidas as primeiras manifestações

dos Tribunais Superiores sobre a cobrança do ICMS-M e do ISS na exploração

econômica com programas de computador por meio de contratos de licenciamento.

Com base na definição de software prevista no art. 1º, parágrafo único, da

Lei nº 7.646/89437, vigente à época, firmaram seus membros que o programa de

computador não se confunde com o seu suporte físico (disquete, fita cassete ou chip) e,

por exprimir o software trabalho de atividade criativa que exige esforço intelectual do

seu autor, configura bem imaterial, e não mercadoria. Ao afastar a incidência do ICMS-

M, concluíram que “a exploração econômica de programas de computador mediante

contratos de licença ou de cessão, de que trata o art. 27 da Lei nº 7.676/89, dada a sua

natureza jurídica de prestação de serviço, sujeita-se à cobrança do ISS”, nos termos do

item 24438 da lista anexa ao Decreto-Lei nº 406/68.

Esses primeiros posicionamentos se cingiram a examinar a natureza jurídica

do programa de computador, sem adentrar nas peculiaridades jurídicas dos contratos de

licença, tampouco diferenciar essa espécie de ajuste dos contratos de desenvolvimento

434 LINS, Robson Maia. Considerações sobre o conceito de norma jurídica e a pragmática da

comunicação na decisão judicial na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.). Contructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2014, p. 170.

435 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 39.797/SP. Relator: Ministro Garcia Vieira. Julgamento: 15 dez. 1993. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 21 fev. 1994.

436 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 39.457/SP. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Julgamento: 03 ago. 1994. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 05 set. 1994.

437 “§1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.”

438 “Item 24. Análises, inclusive de sistemas, exames, pesquisas e informações, coleta e processamento de dados de qualquer natureza.”

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de software, legitimando a cobrança do imposto municipal diante da previsão contida

na lista de serviços. Outrossim, apoiam-se no raciocínio de que o ICMS-M gravaria a

circulação de bens materiais e o ISS, a circulação de bens imateriais, o qual, como já

demonstramos439, é incompatível com a discriminação constitucional das competências

tributárias.

Em julgamentos posteriores440, o STJ passou a discernir entre os programas

de computador produzidos especialmente para determinado usuário, traduzindo

prestação de serviço sujeita ao ISS, e os programas que, elaborados em larga escala e de

maneira uniforme, possuiriam natureza de mercadorias de livre comercialização no

mercado, transferíveis a pessoas indefinidas e, por esse motivo, passíveis de incidência

do ICMS-M:

Se as operações envolvendo a exploração econômica de programa de computador são realizadas mediante a outorga de contratos de cessão ou licença de uso de determinado "software" fornecido pelo autor ou detentor dos direitos sobre o mesmo, com fim específico e para atender a determinada necessidade do usuário, tem-se caracterizado o fenômeno tributário denominado prestação de serviços, portanto, sujeito ao pagamento do ISS (item 24, da lista de serviços, anexo ao dl 406/68). [...]. Se, porém, tais programas de computação são feitos em larga escala e de maneira uniforme, isto é, não se destinando ao atendimento de determinadas necessidades do usuário a que para tanto foram criados, sendo colocados no mercado para aquisição por qualquer um do povo, passam a ser considerados mercadorias que circulam, gerando vários tipos de negócio jurídico (compra e venda, troca, cessão, empréstimo, locação etc.), sujeitando-se, portanto, ao ICMS441.

Entretanto, referidos julgados, tais como os primeiros, não se detiveram na

análise jurídica das transações realizadas e sua subsunção às hipóteses normativas do

ICMS-M e do ISS, limitando-se a adotar a destinação subjetiva do software como

critério isolado para demarcar os respectivos campos de incidência.

439 Vide item 2.3.2, Parte 2. 440 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandato de Segurança nº 5.934/RJ.

Relator: Ministro Hélio Mosimann. Julgamento: 04 mar. 1996. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJ, 01 abr. 1996 e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 123.022/RS. Relator: Ministro José Delgado. Julgamento: 14 ago. 1997. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 27 out. 1997.

441 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 123.022/RS. Relator: Ministro José Delgado. Julgamento: 14 ago. 1997. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 27 out. 1997.

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1.1.1 O entendimento adotado pelo STF no RE nº 176.626 para fins de incidência

do ICMS-M no licenciamento de uso de “software de prateleira”

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o tratamento tributário dos

programas de computador logrou maiores traços definitórios no julgamento do Recurso

Extraordinário nº 176.626442, até hoje um dos principais paradigmas a embasar decisões

judiciais relativas à tributação de contratos de software.

Com a relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, nele foi adotada a

classificação proposta por Rui Saavedra para distinguir os programas de computador

em: (i) software de prateleira (padronizado), produzido em série para ser

comercializado no varejo a uma pluralidade de utilizadores; (ii) software por

encomenda, desenvolvido para atender às necessidades específicas de determinado

usuário; e (iii) software adaptado (customizado), caracterizado como uma forma híbrida

dos anteriores, que se baseia em programa padronizado, porém é modificado para se

adequar às necessidades de um cliente em particular.

Especificamente sobre o “software de prateleira”, destinado a uma clientela

potencialmente vasta através de sua materialização em um corpus mechanicum, o

Ministro Relator traz relevantes observações de Saavedra para subsidiar seu voto.

Segundo o jurista português, embora a propriedade do software em si não seja cedida ao

cliente, mas apenas um direito de uso não exclusivo, “isso não obsta que se considere

que o cliente adquire as ‘manifestações físicas’ do software”, tendo em vista que, quando

o “software de prateleira” é licenciado, “há na verdade dois contratos: por um lado, um

contrato para que sejam fornecidas as manifestações físicas do software; e por outro, um

contrato para atribuição de uma licença de uso do software”.

Além da classificação tripartite – softwares de prateleira, por encomenda e

customizado –, consignou-se também no julgado que “o conceito de mercadoria

efetivamente não inclui os bens corpóreos, como os direitos em geral”, pois, nos moldes

constitucionais, refere-se a “bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-

lo”, ao passo que as operações de licenciamento ou cessão de direito de uso de

442 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 176.626-3/SP. Relator: Ministro

Sepúlveda Pertence. Julgamento: 10 nov. 1998. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 11 dez. 1998.

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programas de computador “têm como objeto um direito de uso” que é “bem incorpóreo

insuscetível de ser incluído no conceito de mercadoria, [...] nem se aliena com o

licenciamento de seu uso” e, consequentemente, está “fora do raio de incidência do

ICMS”.

A partir das ponderações acima, foram deduzidas as seguintes ilações no teor

do decisum: (i) seja qual for o tipo de programa, “é certo que não se confundirão a

aquisição do exemplar e o licenciamento ou cessão do direito de uso, também presente

até quando se cuide de software ‘enlatado’ ou ‘de prateleira’”; e (ii) “o comerciante que

adquire exemplares para revenda, mantendo-os em estoque ou expondo-os em sua loja,

[...] não negocia os direitos do autor, mas com o corpus mechanicum de obra intelectual

que nele se materializa”, recaindo sobre essa operação a incidência do ICMS-M. Aliás,

conforme transcrições constantes do relatório do acórdão, o próprio Estado de São Paulo

argumenta que “quem adquire o disquete contendo o programa passa a ter o domínio

sobre o disquete e não sobre a obra intelectual que ele contém”.

É possível constatar que este julgado do STF, distintamente das posições até

então sustentadas no STJ, empenhou-se em eleger premissas consentâneas com o

arquétipo constitucional do ICMS-M. Deveras, solucionou a controvérsia assente na

precisão do conceito de mercadoria e nas características da forma jurídica empregada

para explorar economicamente o software – a licença de uso –, comparando-a com o

tipo estrutural contemplado no critério material desse imposto.

Vários outros pronunciamentos seguiram-se nos Tribunais Superiores, os

quais, fazendo menção ao RE nº 176.626, assinalaram, em toada mais genérica, que

operações com softwares despersonalizados, feitos em larga escala e de modo uniforme,

sujeitam-se à tributação pelo ICMS-M, enquanto os programas desenvolvidos para

clientes de forma personalizada atraem a incidência do ISS443.

443 Vide: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 199.464/SP.

Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento: 02 mar. 1999. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 30 abr. 1999; Id. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 285.870. Relator: Ministro Eros Grau. Julgamento: 17 jun. 2008. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe, 31 jul. 2008; Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 216.967/SP. Relator: Ministra Eliana Calmon. Julgamento: 28 ago. 2001. Órgão Julgador: segunda Turma. Julgamento: DJ, 22 abr. 2002; Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 633.405/RS. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento: 24 nov. 2004. Órgão Julgador: Primeira Turma.

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Nesse ponto, vale destacar que o critério da destinação subjetiva do software

– se voltado a uma pluralidade de usuários ou a um usuário em especial – foi aplicado,

no julgamento do RE nº 176.626, para classificar as espécies de programa exploradas

economicamente.

Independentemente do tipo de programa de computador – padronizado,

personalizado ou customizado –, fez-se registrar nas razões de decidir do STF que: SE

(i) o software é bem intelectual, de feição incorpórea, que não se enquadra no conceito

de mercadoria; e (ii) a licença figura como forma contratual de conceder a terceiros o

direito de usufruir da obra intelectual “software”; ENTÃO, (iii) o ICMS-M apenas deve

incidir sobre as “manifestações físicas” do software, já que somente o suporte material

que o contém é capaz de ser objeto de operação de circulação mercantil.

No mais, em nenhum momento, foi matéria de julgamento neste recurso a

tributação pelo ISS dos contratos de licenciamento de uso, de desenvolvimento e

customização de software.

1.1.2 A decisão preliminar proferida na ADI nº 1945-MC: nova perspectiva

jurisprudencial?

O julgamento do RE nº 176.626 cuidou de analisar o licenciamento de uso

de “software de prateleira”, cuja forma física de ser transacionado, há tempos, tem

perdido lugar no mercado para a contratação por meio da Internet. Nessa realidade

tecnológica de firmar negócios com software em ambiente virtual, o Estado de Mato

Grosso instituiu o ICMS-M sobre operações com programas de computador realizadas

por transferência eletrônica de dados, nos termos do artigo 2º, §1º, item 6, da Lei nº

7.098/98, o qual foi contestado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.945.

Na apreciação da medida cautelar444 formulada para a suspensão do

dispositivo impugnado, o Ministro relator Octavio Galotti, dentro do entendimento

Publicação: DJ, 13 dez. 2004; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 222.001/SP. Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Julgamento: 03 maio 2005. Órgão Julgador: segunda Turma. Publicação: DJ, 05 set. 2005.

444 Id. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.945/MT. Relator: Ministro Octavio Gallotti. Relator para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 26 maio 2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJe, 11 mar. 2011.

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firmado pelo STF no RE nº 176.626, deferiu o pleito provisório para fixar exegese

conforme a Constituição, “no sentido de restringir a incidência do ICMS às cópias ou

exemplares dos programas produzidos em séries e comercializados no varejo”,

excetuando expressamente do campo da materialidade do imposto “o licenciamento ou

cessão de uso”.

Nos termos propostos pelo relator, o Ministro Ricardo Lewandowski citou

jurisprudência e doutrina destacando o magistério de Ives Gandra da Silva Martins pela

“impossibilidade de incidência do ICMS nas operações de licenciamento e sub-

licenciamento de programas de software em razão do nítido exercício de direito autoral

que sustentam”. Ponderou ainda que a matéria, por merecer uma reflexão mais

aprofundada, deveria ficar reservada ao exame do mérito, com destaque para as

seguintes questões: (i) saber se o software negociado eletronicamente enquadra-se no

conceito de bem incorpóreo ou mercadoria para fins de incidência do ICMS-M e (ii)

determinar se é possível, no caso de optar-se pela primeira alternativa, a incidência do

referido imposto sobre bens incorpóreos.

Também deferindo o pedido acautelatório, o Ministro Marco Aurélio

ratificou a “interpretação conforme” preconizada pelo relator, sob a justificativa de que

“o figurino (do ICMS-M) pressupõe operação de circulação de mercadoria”,

acrescentando ainda que a Lei Complementar nº 87/96, exigida pelo art. 146 da CR/88,

não aborda esse fato gerador, cuja matéria “deve ser tratada em todo território brasileiro

e não de forma setorizada, considerada esta ou aquela unidade da Federação”.

Nada obstante, a maioria dos membros do STF decidiu pela vigência e

aplicação do dispositivo da lei mato-grossense até o julgamento do mérito da ADI.

Embora muitos dos ministros que tenham optado por manter a lei em vigor o fizeram

fundados também na ausência de periculum in mora, pois a norma já produzia efeitos

há 11 anos445, indeferiram a liminar, acolhendo as razões expostas no voto-vista do

Ministro Nelson Jobim, orientado pelas seguintes diretivas:

445 A título de curiosidade, a apreciação da medida cautelar teve início no ano de 1999 e foi concluída

em maio de 2010.

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Seja por meio de um disquete ou via download, adquire-se “o que se

contém dentro do disquete ou aquilo que é transmitido via sistema de

Internet”.

A diferença fundamental está hoje na forma como se dá a aquisição de

programas de computador: “ou se transmite pelo sistema material, sistema

de disco rígido, ou pelo sistema da Internet”.

O art. 155, §3º, do art. 155 “não está dizendo [...] que a energia elétrica é

excepcionalmente base do ICMS”, mas sim que “é tratada como

mercadoria”. E, energia elétrica, tal como o programa de computador, é

bem incorpóreo.

Dos magistrados que acompanharam o voto-vista, o Ministro Gilmar Mendes

indeferiu a liminar não só em razão dos fundamentos expendidos pelo Ministro Nelson

Jobim, acolhendo a ideia de que “comercialização ou circulação passa a ocorrer por via

eletrônica”, mas também, como ele mesmo destacou, por “razões de conveniência

política”. Sobre estas, justificou que, ante a substituição da transferência física pela

eletrônica, há forte risco de que “determinado objeto de tributação desapareça por

completo” e, logo, de “esvaziamento de uma base tributária que é importante para o

Estado”, daí porque clamou que “a mudança na realidade afeta a interpretação do texto

constitucional, ou vai afetar, ou poderá afetar”.

Nessa mesma linha enleada ao plano hermenêutico, concordaram os

Ministros Eros Grau e Ayres Barreto para indeferir a liminar sob a justificativa de que

“o movimento da vida e da realidade é que dá o significado normativo dos textos” e “o

ser das coisas é o movimento, e as palavras, para efeito de movimento, são coisas”. Na

própria ementa do acórdão, constou expressamente que “o Tribunal não pode se furtar

a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em

premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas”.

Em linhas gerais, nota-se que o entendimento não levou em conta os

fundamentos jurídicos do RE nº 176.626. Nesta ocasião, a Corte havia afirmado a não

incidência de ICMS-M sobre o negócio jurídico de licença de uso de software, de modo

que apenas ocorreriam “operações relativas à circulação de mercadoria” na

comercialização dos meios físicos que veiculam o programa

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Transportando para a realidade tecnológica virtual, sem a devida prudência

jurídica, a noção de que software padronizado configura forma de aquisição de software

tal como se dá na “aquisição” do “software de prateleira” mediante tradição física,

afirmou o STF, em juízo preliminar, que as operações com programas de computador

pela Internet são passíveis de serem tributadas pelo ICMS-M. Desconsiderou, assim, a

natureza jurídica do software enquanto obra intelectual: quando licenciado, mostra-se

absolutamente incompatível com qualquer ato de compra e venda com transferência de

titularidade.

Por derradeiro, cumpre destacar que, em parecer apresentado posteriormente

nos autos da ADI, a Procuradoria Geral da República defendeu que as operações de

download de softwares estão excluídas do âmbito de incidência do ICMS, porquanto

“não constituem operações de compra e venda, mas sim negócios jurídicos de

licenciamento ou cessão de direito de uso”.

1.2 A pragmática na esfera normativa estadual

A fim de demonstrar a evolução legislativa do ICMS-M incidente sobre

operações com software, focalizemos a produção normativa no âmbito do Estado de São

Paulo.

A partir da publicação da Lei paulista nº 8.198/92446, os contribuintes

passaram a se submeter ao recolhimento do ICMS-M nas transações com programas de

computador, prescrevendo o Decreto nº 35.674/92 que a base de cálculo corresponderia

ao dobro do valor do suporte informático (mídia). Essa metodologia específica de

apuração do montante devido foi mantida no Decreto nº 51.619/2007.

Recentemente, esse decreto foi revogado pelo Decreto nº 61.522, de 29 de

setembro de 2015. De acordo com a Secretaria da Fazenda447, a revogação objetivou

adequar a tributação do ICMS-M incidente nas operações com software àquela aplicada

em outras Unidades Federadas, com o fim de adotar como base de cálculo o valor global

446 “Art. 3º. Fica dispensado o pagamento do Imposto de Circulação de Mercadorias - ICM e do Imposto

sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte lnterestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS em relação à operações ocorridas até a data da publicação desta lei, com: II - programa para computador ("software"), personalizado ou não.”

447 Ofício GS nº 771/2015.

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da operação, que inclui o valor do programa, do suporte informático e outros valores

que forem cobrados do usuário do software. Ao aplicar a regra geral de apuração do

ICMS-M prevista no art. 24 da Lei nº 6.374/89, mediante a eleição do preço da operação

a título de base de cálculo, a exigência fiscal não ficaria mais condicionada à existência

de um suporte físico, alcançando-se, por conseguinte, as transações eletrônicas.

Na sequência da publicação do Decreto nº 61.522, o CONFAZ, em 28 de

dezembro, editou o Convênio ICMS-181, autorizando vários Estados a (i) conceder

redução na base de cálculo do ICMS-M, de forma que a carga tributária corresponda ao

percentual de, no mínimo, 5% (cinco por cento) do valor da operação com softwares

padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer

meio, inclusive nas operações efetuadas por meio da transferência eletrônica de dados;

e (ii) não exigir, total ou parcialmente, os débitos fiscais do ICMS, lançados ou não,

inclusive juros e multas, relacionados com essas operações, desde que ocorridas até a

data de início da vigência desse convênio.

Em virtude do Convênio mencionado e dos diversos questionamentos por

parte da classe de contribuintes relativamente ao Decreto nº 61.522/15, o Estado de São

Paulo publicou o Decreto nº 61.791, de 11 de janeiro de 2016, introduzindo alterações

no RICMS (Decreto nº 45.490/00). Referida norma regulamentar estabeleceu a

tributação com a alíquota mínima de 5% sobre as operações com software, porém, na

forma proposta pela Secretaria da Fazenda no Ofício GS-CAT nº 012/2015, determinou

a suspensão da exigência do ICMS-M nas operações realizadas por meio de

transferência eletrônica de dados (download ou streaming), até que fique definido o local

de ocorrência do fato gerador para determinação do estabelecimento responsável pelo

pagamento do imposto.

Reconheceu o ente político estadual a ausência de dados normativos

suficientes no seio da legislação complementar, para que possa instituir a regra-matriz

de incidência nessas hipóteses.

Ademais, cabe destacar que a constitucionalidade dos decretos paulistas

citados é questionada na ADI nº 5576, ajuizada pela Confederação Nacional de Serviços

(CNS). Dentre as razões aduzidas, alega-se que os decretos incorrem em bitributação,

uma vez que a LC nº 116 já arrola o licenciamento ou cessão de uso de software como

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hipótese de incidência do ISS. Além disso, alega a CNS a inexistência de operação

mercantil nos contratos de licença de uso, nos quais não há transferência de propriedade,

uma vez que o software é bem incorpóreo desprovido de natureza jurídica de

mercadoria.

Explicitada a evolução das leis e decretos que dispõem sobre a incidência do

ICMS-M nas operações com software, investiguemos agora as manifestações da

Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, em resposta a consultas tributárias

formuladas pelos contribuintes.

Em conformidade com o Decreto nº 51.619/07, outrora em vigor, e com o

posicionamento do STF no RE nº 176.626, o Fisco Estadual esclarecia que o ICMS-M

incide, única e exclusivamente, sobre o suporte físico no qual são gravados os programas

de computador, o que não inclui o valor comercial do respectivo conteúdo gravado, ou

seja, dos próprios programas de computador, tampouco livros e manuais

comercializados junto com o software448.

Após a decisão liminar proferida na ADI nº 1.945, mantendo-se os efeitos da

lei do Estado do Mato Grosso para tributar softwares disponibilizados por meio de

transferência eletrônica de dados, o órgão paulista da Consultoria Tributária passou a se

manifestar no sentido de que essas operações via Internet estariam inseridas no campo

de incidência do ICMS-M, exigindo-se a emissão da nota fiscal. Todavia, complementa

que a cobrança do imposto estaria obstaculizada diante da inexistência de suporte

informático, cujo valor era exigido para compor a base de cálculo do tributo no contexto

da legislação estadual vigente à época449. Nesse sentido, transcreve-se abaixo excerto da

ementa da Resposta à Consulta Tributária nº 4752/2015:

O “upload” e o “download” de programa para computador (“software”) e quaisquer outros produtos em massa digitalizados, copiados a partir de uma matriz e transferidos eletronicamente, por contrato de compra e venda ou de licença de uso, é operação de circulação de mercadoria sujeita ao ICMS, por estar inserida no campo constitucional abrangido pelo inciso II do artigo 155 da Constituição Federal. Quando as operações realizadas com programas para computador (“software”) não têm um suporte informático, em face das normas atuais, não são passíveis de exigência de recolhimento do ICMS, embora estejam inseridas no campo de incidência do tributo (Decreto 51.619/2007).

448 Vide: Resposta à Consulta Tributária nº 187, de 15/04/2009. 449 Vide: Resposta à Consulta Tributária nº 234, de 10/06/2011.

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Depois do advento dos Decretos nºs 61.522/2015 e 61.791/2016, atualmente

vigentes, a Secretaria da Fazenda tem entendido pela legitimidade da incidência do

ICMS-M, a uma alíquota mínima de 5%, na comercialização de software padronizado,

mesmo na hipótese de ser adaptado ou customizado à necessidade do usuário, seja por

mídia física ou por transferência eletrônica de dados. Esclarece que a incidência,

inclusive, recai sobre o valor cobrado pela licença ou cessão de uso, já que o STF, na

ADI nº 1.945, entendeu que a cobrança do ISS não está condicionada à corporificação

do bem digital.

O escólio fazendário, porém, traz a ressalva de que, nas transações em

ambiente digital, o ICMS ainda não será exigido até a definição do critério espacial para

demarcar o estabelecimento responsável pelo pagamento do imposto. As respostas à

consulta explicitam, também, que na produção de software sob encomenda, para atender

necessidade exclusiva e específica de determinado usuário, prepondera a atividade

intelectual, caracterizando-se prestação de serviços não sujeita ao ICMS450.

No concepção do Estado de São Paulo – exteriorizada, por exemplo, na

Resposta à Consulta Tributaria nº 5285, de 25/05/2015 –, a pretensão de exigir ICMS-

M nos negócios com softwares disponibilizados através da Internet está inserida no

campo constitucional da incidência do ICMS, uma vez que “mercadoria” abrange

qualquer objeto disponibilizado no mercado, caracterizando-se operação relativa à

circulação de mercadoria aquela inserida no ciclo mercantil que destina bens, ainda que

imateriais, da produção ao consumo, mediante a agregação do valor econômico.

Além dessas diretrizes interpretativas, as autoridades fiscais afirmaram que a

exigência funda-se na manifestação da capacidade contributiva e também no princípio

da isonomia, pois nenhum privilégio pode ser concedido a um comerciante que “venda”

programa de computador pela internet em relação ao que os “vende” em lojas, já que

ambas as operações têm a mesma utilidade de mercadoria.

450 Vide: Resposta à Consulta Tributária nº 8714, de 11/05/2016.

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1.3 A pragmática na esfera normativa municipal

À semelhança do caminho percorrido no tópico anterior, optamos aqui por

colacionar atos normativos produzidos pelo Município de São Paulo e, assim,

demonstrar como os textos do direito positivo estão sendo interpretados e aplicados pelo

Fisco Municipal para fins de exigência do ISS sobre os negócios de licenciamento de

uso de software.

Seguindo a previsão da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003, o

Município de São Paulo editou a Lei nº 13.701/2006, incluindo, na classe de serviços

informáticos tributáveis pelo ISS, o subitem 1.05, referente ao “licenciamento ou cessão

de direito de uso de programas de computação”. Foram também discriminados nessa

categoria, entre outros subitens: elaboração de programas de computador (1.04),

assessoria e consultoria em informática (1.06) e suporte técnico em informática,

inclusive instalação, configuração e manutenção de programas de computação (1.07).

Especificamente no que diz respeito à interpretação do subitem 1.05, objeto

deste escrito, convém reproduzir algumas Soluções de Consulta, na ordem em que foram

emitidas pela Secretaria das Finanças da Prefeitura paulistana.

Na Solução de Consulta SF/DJUG nº 69, de 07/082007, o contribuinte

indagava sobre o procedimento para cumprir deveres instrumentais, uma vez que seu

objeto social consistia em “locação de softwares” e, por se tratar de locação de bens

móveis, sua atividade, na sua opinião, estaria fora do âmbito de incidência tributária do

ISS e, por conseguinte, estaria desobrigado de emitir notas fiscais de serviços.

Nos esclarecimentos prestados, o Fisco confirmou que a locação de bens

móveis não estava submetida ao imposto municipal em razão do veto presidencial para

a inclusão dessa atividade na lista anexa à LC nº 116/03. Contudo, ao analisar o modelo

apresentado pelo contribuinte de “Contrato de Locação de Sistemas”, definindo

“Sistema” como conjunto de soluções de software, consignou que “no caso em questão

não se verifica locação de bens móveis”. No entender fazendário, “a descrição correta

para a atividade de ‘locação de software’ é ‘licenciamento de programas de

computação’, ou então ‘cessão de direito de uso de programa de computação’”. E por

tal serviço estar previsto no item 1.05, orientou o contribuinte a promover o cadastro

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municipal, pagar o ISS e emitir as notas fiscais correspondentes quando da prestação de

serviços constantes de seu objeto social.

Esse posicionamento restou confirmado na Solução de Consulta nº 29/2009,

oportunidade em que, ao examinar um contrato abrangendo locação de equipamentos

de informática e licenciamento de programas de computador, registrou que não era

possível a emissão de Nota Fiscal de Serviço para suportar a realização das atividades

de locação de hardware, excluídas do campo de tributação do ISS, porém os deveres

tributários deveriam ser adimplidos no que se referia ao licenciamento de software.

Em momento posterior, quando do pronunciamento do STF na ADI nº 1.945,

dúvidas surgiram acerca do dever de pagar o ISS sobre os valores referentes à licença

de uso de “software de prateleira”, visto que, com base no precedente judicial, as

transações físicas ou eletrônicas com softwares padronizados, produzidos em massa e

destinados a uma pluralidade de usuários, caracterizariam fato tributável pelo ICMS-M.

Em resposta a tais questionamentos, esclareceu o Município de São Paulo que

A venda de programas de computador padronizados (softwares de prateleira), desempenhada pela consulente, enquadra-se no subitem 1.05 da lista de serviços do art. 1º da Lei nº 13.701, de 24 de dezembro de 2003, relativo ao código de serviço 02798 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação [...] Neste caso, há a incidência do ISS, calculado pela aplicação da alíquota de 2%, sendo a base de cálculo do imposto o preço do serviço, como tal considerada a receita bruta a ele correspondente, sem nenhuma dedução, excetuados os descontos ou abatimentos concedidos independentemente de qualquer condição, consoante art. 1, § 2 e art. 14 da Lei n 13.701, de 24 de dezembro de 2003, e art. 16, I, “a”, da Lei n 13.701, de 24 de dezembro de 2003, com a redação da Lei nº 14.256, de 29 de dezembro de 2006451.

Sem distinguir transações físicas e eletrônicas, consignou, então, a

Municipalidade que, mesmo nos negócios jurídicos com softwares padronizados, está

obrigado o contribuinte a efetuar o recolhimento do ISS sobre o preço estipulado, haja

vista que a licença de uso de software encontra-se prevista na lista de serviços.

Para finalizarmos a investigação pragmática na esfera municipal, convém

fazer menção a mais duas Soluções de Consulta, especificamente voltadas a orientar o

451 Solução de Consulta SF/DJUG nº 21, de 24/05/10. Vide também Solução de Consulta SF/DJUG nº

25, de 08/06/2011; Solução de Consulta SF/DJUG nº 31, de 31/08/2011; e Solução de Consulta SF/DJUG nº 22, de 16/09/2014.

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contribuinte a respeito dos deveres tributários nos contratos de licença de uso de

programas de computador disponibilizados através da Internet. São elas:

(a) Solução de Consulta SF/DEJUG nº 65, de 06 de dezembro de 2012:

Questionada se o entendimento do contribuinte pela não incidência do ISS

na disponibilização de conteúdo multimídia via streaming estava correto, esclareceu a

Fazenda Municipal, a partir da análise dos documentos intitulados de “Termos de Uso”,

Política de Privacidade” e “Contrato de Licença de Usuário Final”, que a atividade

consistia em disponibilizar a utilização de software, protegido pelos direitos autorais e

voltado à “transmissão online que oferece para seus assinantes acesso a filmes, TV e

outros produtos de entretenimento audiovisual, transmitidos pela internet para

televisores, computadores e outros aparelhos conectados à internet”.

Com base nesses fatos, foram as conclusões fazendárias:

O software não é vendido nem dado ao usuário, mas licenciado pela ************ para ser utilizado sob os termos do Contrato de licença. 6.1.4. Referido contrato prevê a concessão de uma licença não exclusiva, limitada, pessoal e intransferível, sujeita ao cumprimento das restrições estabelecidas neste contrato de licença, para a instalação e utilização do software, somente em código objeto, fornecido pela ou em nome ************ com relação ao uso do serviço ************. 6.2. A consulente esclareceu ainda, mediante notificação, que o contrato apresentado é feito entre o usuário e a ************. 7. À vista de todo o exposto, constata-se que o cliente, ao pagar a tarifa mensal, passa a ter direito a usar o software da ************, que lhe permitirá assistir aos vídeos constantes do acervo da consulente. 8. Desta forma, no caso em questão não se verifica locação de bens móveis. O serviço descrito pela consulente, objeto do contrato apresentado, enquadra-se no item 1.05 da lista de serviços constante do art. 1º da Lei 13.701, de 24 de dezembro de 2003, relativo ao código de serviço 02798 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação [...].

Conclui, pois, que o acesso a conteúdo multimídia por meio de transmissão

de dados via streaming baseia-se numa licença de uso de software, obrigando-se o

cliente a pagar uma tarifa mensal para ter o direito de utilizar o programa de computador.

Segundo o Fisco municipal, trata-se de atividade que não representa qualquer compra e

venda do programa de computador, tampouco locação de bens móveis, mas serviço

descrito no item 1.05 da lista, relativo ao licenciamento de uso de programas de

computação.

(b) Solução de Consulta SF/DEJUG nº 40, de 01 de agosto de 2013:

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Nesta consulta, esclarecimentos solicitados dizem respeito à incidência do

ISS nas atividades de “Plataforma como serviço” (PaaS) e “Software como serviço”

(SaaS), as quais, suportadas na computação em nuvem, compreendem respectivamente,

segundo a descrição do sujeito passivo: (i) disponibilização de uma plataforma como

banco e dados, capaz de gerar relatórios e análises de acordo com as necessidades do

cliente e (ii) disponibilização de acesso a dados e programas de computador

armazenados em ambiente de nuvem, os quais são objetos de contratos independentes

firmados em apartado.

Em que pese o entendimento do contribuinte no sentido de que tais atividades

atinentes à computação em nuvem não se encontram dentre os itens da lista de serviços

anexa à Lei Complementar nº 116/2003 e, portanto, não sujeitas à incidência do ISS,

assentou a autoridade fiscal municipal que: (i) os serviços de plataforma em nuvem

enquadram-se no subitem 1.03, relativo a processamento de dados e congêneres, sujeitos

à alíquota de 5%, e (ii) os softwares disponibilizados em ambiente de nuvem, objetos de

contratos independentes firmados em apartado, enquadram-se no subitem 1.05, relativo

a licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, sujeitos à

alíquota de 2%452.

Enfim, por todo o panorama pragmático exposto neste capítulo, percebe-se

que, num sistema em que convivem entes dotados de autonomia legislativa, financeira,

administrativa e política, influenciados por uma textura social em constante evolução,

vivemos hoje o reino da incerteza jurídica em matéria de tributação de software.

Em detrimento do contribuinte, edificam-se pretensões fazendárias, que se valem

da interpretação da lei e da oscilação jurisprudencial, para acomodar seus interesses

arrecadatórios às novas formas de negócios tecnológicos, olvidando-se dos conceitos

empregados pelo constituinte na rígida e minudente distribuição das competências tributárias.

452 Apenas para fins ilustrativos, cabe mencionar que, diante da popularização das atividades

relacionadas à tecnologia streaming e cloud computing, tramita, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei Complementar nº 386/2012 para, dentre outras providências, alterar a redação do subitem 1.03 e incluir o subitem 1.10 à Lista Anexa da LC nº 116/03, nos seguintes termos propostos: 1.03 – Processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos, sistemas de informação, entre outros formatos, ou congêneres; e 1.10 – Disponibilização de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto em páginas eletrônicas, exceto no caso de jornais, livros e periódicos.

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2 A INCIDÊNCIA DO ICMS-M E DO ISS SOBRE A LICENÇA DE USO DE

SOFTWARE DISPONIBILIZADO ELETRONICAMENTE

Depois de muito discorrer sobre temas de abordagem fundamental para a

análise que consome esse escrito, chega-se, finalmente, ao último capítulo. E com o

objetivo de, nos próximos tópicos, examinar a constitucionalidade da incidência, pelo

ICMS-M e pelo ISS, nos contratos de licença de uso de software disponibilizados via

Internet, retomaremos premissas e raciocínios perfilhados no decorrer deste trabalho,

sempre o fazendo de forma sucinta e evitando, assim, repetições desnecessárias.

2.1 O licenciamento eletrônico de uso de software e o ICMS-M

2.1.1 O conceito constitucional de mercadoria não alcança o “software”

Em conformidade com o exposto em linhas antecedentes, ao selecionar o

acontecimento social apto a ensejar o dever de recolher o ICMS-M, o constituinte de

1988 enunciou a expressão “operações relativas à circulação de mercadoria”. Elegeu

como um dos traços nucleares para o reconhecimento do fato tributável por esse imposto

a natureza mercantil do bem a ser objeto da operação de circulação, fazendo menção

expressa ao termo “mercadoria” e, com isso, restringindo o alcance semântico da

proposição jurídica.

Rememorando linhas anteriores, a destinação comercial e a corporabilidade

do bem móvel são atributos essenciais para a qualificação de um bem como mercadoria

na compreensão do texto constitucional.

A finalidade de mercancia é qualificativo extrínseco do bem “mercadoria”

confirmado não só por acepções etimológicas e lexicais, mas também pelas formas de

uso empregadas no âmbito de direito privado e na esfera jurisprudencial: todos esses

contextos linguísticos convergem para caracterizar mercadoria como bem produzido ou

adquirido para ser posto em processo de circulação comercial, para ser (re)vendido com

intuito de lucro, até chegar ao consumo.

A corporabilidade, por sua vez, inferimos da própria interpretação

sistemática da Constituição, que empregou o termo “mercadoria” na acepção estrita do

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direito privado, para tão somente designar os bens móveis materiais, de existência física

autônoma, contrapondo-se à significação ampla que incluía, nos termos do Código

Comercial de 1850, vigente à época da promulgação da CR/88, os títulos ou documentos

nos quais se incorporam créditos, direitos e valores em geral.

A opção do constituinte pelo conceito de direito privado em seu sentido mais

estreito, para fins de exigência do ICMS-M, restou confirmada a partir das seguintes

assertivas, ora reproduzidas sinteticamente:

(i) A Carta Republicana prevê hipóteses de incidências distintas de

impostos conforme a categoria econômica de produção de riquezas,

inexistindo um regime geral ou único de tributação para a atividade

empresarial produtiva e circulatória de bens e serviços, sendo que, em

determinadas exações, exigiu que o fato econômico seja revestido de

forma jurídica particular.

(ii) Essa coexistência de regimes tributários distintos para onerar

específicos signos presuntivos de riqueza não só se afere das

materialidades já expressamente incluídas nas faixas competenciais

dispostas nos arts. 153, 155 e 156, mas da previsão de uma competência

residual em favor da União para instituir impostos sobre atividades

econômicas não contempladas pelo constituinte.

(iii) O art. 153, inciso V, ao atribuir a competência à União para tributar

operações financeiras, suprimiu do espectro semântico de “mercadoria”

a moeda nacional e estrangeira, as ações, as debêntures e demais títulos

ou papéis nos quais se incorporam créditos representativos de direitos

patrimoniais, evidenciando que a materialidade do ICMS-M não

comporta qualquer tipo de operação de circulação, mas aquela relativa

a bens móveis corpóreos.

(iv) O próprio STF assinalou que o ouro como insumo industrial, em estado

natural, está sujeito ao ICMS-M, enquanto que o ouro como ativo

financeiro, expressivo de direitos a valores e créditos, negociado em

mercado próprio, está sujeito ao IOF.

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(v) A ressalva expressa no art. 155, §3º, dispondo o constituinte, em

enunciado outro e específico, sobre a incidência do imposto estadual na

circulação de energia, só vem a certificar a compreensão de mercadoria

como dotada de corporabilidade.

À evidência, no conceito de mercadoria incorporado pela Constituição de

1988, estão excluídos os programas de computador. Ainda que softwares sejam

explorados economicamente com intuito de lucro, os negócios que os têm como objeto

são incompatíveis com típicos atos de mercancia. E, acima de tudo, falta-lhes a

indispensável natureza corpórea.

Em conformidade com a primeira parte deste trabalho, quando nos ocupamos

do tratamento jurídico conferido ao programa de computador pela Lei nº 9.609/98,

vimos que, com base nos seus arts. 1º e 2º, o software traduz um bem imaterial

consistente num conjunto de instruções, organizado em linguagem própria (código fonte

e código objeto) e destinado a habilitar o hardware para processar informações, executar

determinadas funções e tarefas, com vistas a atender as necessidades do usuário do

computador.

Essa sequência lógica de comandos, fruto do espírito criativo humano,

corresponde à obra intelectual protegida pelos direitos do autor, nos moldes do art. 2º da

Lei nº 9.609/98. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “software, ou

programa de computador, como disciplinado em leis específicas (9.609∕98 e 9.610∕98),

possui natureza jurídica de direito autoral (trata-se de ‘obra intelectual’, adotado o

regime jurídico das obras literárias)”453.

Enquanto elaboração de instruções resultante de atividade criativa

intelectual, que possibilita o funcionamento de um equipamento, suscetível de tutela por

uma das categorias dos direitos intelectuais, os atos negociais para empreendê-los

visando ao lucro, não se identificam, nos patamares do direito, como “compra e venda

mercantil” regulada pelo regime jurídico comercial454.

453 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 443.119/RJ. Relator: Ministra Nancy

Andrighi. Julgamento em: 08 maio 2003. Órgão Julgador: Terceira Turma. Publicação: DJ 30 jun. 2003, p. 240.

454 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. rev. e ampl. até EC 88/2015, e de acordo com a Lei Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 41.

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O titular de um programa de computador não o elabora com a intenção de

inseri-lo em circulação comercial para ser trocado ou vendido. As formas jurídicas para

explorar economicamente esse bem imaterial encontram-se previstas em legislação

específica concernente à proteção jurídica dos programas de computador (Lei nº

9.609∕98) e aos direitos autorais (Lei nº 9.610∕98), sendo que todas elas são

incompatíveis com típica atividade mercantil. Essa incompatibilidade ficará em maior

evidência no próximo tópico, quando tratarmos, especificamente, sobre a incidência do

imposto diante dos contornos jurídicos dos contratos de licença de uso de software.

Atento à natureza jurídica dos programas de computador e ao regime a que

estão submetidos é o magistério de Aires F. Barreto: “quando se trata de operações com

software, resta claro que bens desta espécie não podem ser considerados mercadorias

pois, além de incorpóreos, não se destinam ou se sujeitam a atos de mercancia”455.

Em razão da intangibilidade do programa de computador, o suporte físico ao

qual é aplicado constitui apenas a veste material para a sua apreensão e divulgação à

sociedade, propiciando, inclusive, que seja objeto de transações econômicas. O corpo

mecânico que dá suporte aos softwares, tornando-os inteligíveis, sejam disquetes, CDs

e DVDs postos à disposição nas prateleiras das lojas, sejam equipamentos e dispositivos

onde são instalados ou por meio dos quais são acessados, não tem repercussão jurídica

sobre a sua natureza intangível, que, aliás, prevalece independentemente de seu

conteúdo técnico, das funcionalidades e utilidades que provê aos usuários de

computadores.

De acordo com Roberto Chacon Albuquerque, quer se trate de cartões

perfurados, fitas magnéticas, disquetes, discos rígidos, CD-ROM, memória RAM ou

memória ROM conferindo ao software uma expressão concreta, ainda assim o programa

de computador constitui o componente imaterial do sistema informático:

[...] o programa de computador é um conjunto de instruções estruturado em códigos e edificado em linguagem própria, cuja natureza de obra intelectual não é maculada em função dos diversos suportes mecânicos nos quais se encontre armazenado. [...]. Essa característica imaterial parece ser relegada a segundo plano nos softwares padronizados, vendidos em grande escala como um produto qualquer. Se os

455 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética: 2009, p.

140.

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295

especialistas em informática os associam a um produto desprovido de natureza imaterial, isto se deve a um abuso de linguagem. Uma justificativa para esse costume pode ser encontrada no fato de o mundo durante muito tempo ter sido dominado por riquezas materiais, cujo valor comercial ainda evoca o conceito de produto. Mas há uma identidade de natureza entre os softwares. Eles são sempre obras intelectuais, provenientes do esforço espiritual do ser humano456.

O próprio STF, no julgamento do RE nº 176.626, fez consignar que

mercadoria pressupõe bem corpóreo destinado ao comércio, sendo que as mídias que

veiculam “softwares de prateleira” para serem negociados em lojas físicas ou no

comércio eletrônico indireto não teriam o condão de afastar a sua feição jurídica de bem

intelectual amparado pelo direito autoral. A desvinculação jurídica do software a um

corpus mechanicum específico é reforçada no atual estágio da era da informação, em

que a maioria dos programas é disponibilizada pela Internet.

A título complementar, não obstante os contornos do Imposto sobre Produtos

Industrializados (IPI) não figurem tema de nossas investigações, a estrutura jurídica

desse imposto federal também exige a caracterização de mercadoria. Esclarece Ives

Gandra da Silva Martins que o IPI e o ICMS-M “geram incidência dupla, quando da

produção, sobre o produto que circula, sendo apenas o ICMS mais abrangente, por

estender-se à própria comercialização na 2ª operação, quando já fora dos

estabelecimentos produtores”457. Por essas e outras que a Receita Federal do Brasil

entendeu que as transações de software padronizados, comercializados através de

download na rede mundial de computadores, não “constitui fato gerador do IPI”, uma

vez que, “no caso do software transferido por meio eletrônico, sem a utilização de

suporte físico, verifica-se a inexistência de um bem material que pudesse ser entendido

como mercadoria”458.

456 ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A propriedade informática. Campinas: Russel, 2006, p. 45-

46. 457 MARTINS, Ives Gandra da Silva. O licenciamento e o sub-licenciamento de programas de software

não se confundem com circulação de mercadorias: impossibilidade de incidirem sobre as respetivas operações ICMS, IPI e II – Parecer. In: ______. A Constituição aplicada, v. 3. Belém: CEJUP, 1991. p. 111-133. Disponível em: ˂http://www.gandramartins.adv.br/parecer/detalhe/id/PA01123˃. Acesso em: 25 nov. 2016.

458 BRASIL. Sistema Normas. Solução de Consulta DISIT/SRRF09 nº 149, de 5 de agosto de 2013. Brasília: DOU, 06 set. 2013, p. 45. Disponível em: ˂http://normas.receita.fazenda.gov.br/ sijut2consulta/link.action?visao= anotado&idAto=45663˃. Acesso em: 25 nov. 2016.

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296

Malgrado as nossas reflexões, vimos que, na ADI nº 1.945, a Corte Suprema

sinalizou possível alteração do conceito constitucional de mercadoria. Sob a justificativa

de adequar o ordenamento jurídico aos novos modelos de negócios realizados no

ambiente da Internet, afirmou, em manifestação preliminar, que a corporabilidade não

condiciona a particularidade de um bem como mercadoria, concluindo que, na transação

de softwares padronizados, disponibilizados em larga escala, pela via de transmissão

eletrônica de dados, também sucede a comercialização ou a circulação para efeito de

exigência do ICMS-M.

Contudo, na eventualidade de vir a ser confirmada a evolução do conceito de

mercadoria, retirando-lhe como propriedade significativa o caráter corpóreo, ainda

assim a exploração econômica do software mediante o licenciamento de seu uso

distancia-se da forma jurídica eleita pelo constituinte para que reste autorizada a

cobrança do ICMS-M.

Conforme será melhor demonstrado no item subsequente, nessas hipóteses,

não se aperfeiçoa, tal como faz crer a decisão proferida na ADI mencionada, “aquisição

de software” ou “transmissão pelo sistema da Internet” em harmonia com o arquétipo

constitucional “operação relativa à circulação de mercadoria”.

2.1.2 Inocorrência de “operações relativas à circulação” nas licenças eletrônicas

de uso de software

Já expusemos neste escrito que, na composição do critério material da

hipótese da regra-matriz de incidência do ICMS-M, o constituinte elegeu um tipo

estrutural, significando a locução “operação relativa à circulação” atos negociais de

transmissão de propriedade.

Em conformidade com o delineado na Parte 2 deste trabalho, quando o

constituinte positivou a palavra “operações”, quis conferir um sentido diverso que

assumiria a hipótese de incidência do ICMS-M com o emprego apenas do termo

“circulação”, o que implicaria alcançar qualquer atividade circulatória que destine

mercadoria da fonte de produção até o consumo final, independentemente de uma

prática negocial prévia voltada para realizar o evento econômico. Nas palavras de

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297

Geraldo Ataliba: a tributação é sobre operações e não sobre circulação459. Qualquer

alternativa exegética é ignorar o vocábulo “operação” formulado no comando

constitucional.

Vimos também que circular sob o manto de um título jurídico, para a correta

identificação do fato jurídico tributário do ICMS-M, compreende a concretização de

mutações na propriedade da mercadoria, i.e., que traduzam movimentação jurídica

capaz de transferir os direitos de dono, outorgando ao transmitido o poder de domínio

sobre a mercadoria.

Não é por outra razão que, consoante julgados colacionados anteriormente460,

o STF suprimiu do campo de incidência do imposto estadual a simples circulação física

de mercadorias ou o seu deslocamento entre estabelecimentos da mesma empresa. A

prática de negócios jurídicos com transferência de propriedade como pressuposto

material do ICMS-M restou igualmente sedimentada em sede repercussão geral,

oportunidade em que a Corte Suprema afastou a sua tributação na posse decorrente de

leasing internacional, justamente porque a arrendatária não adquire a propriedade do

bem arrendado. Além disso, registramos entendimento do STJ consolidado sob a

sistemática dos recursos repetitivos, no qual assinalaram seus Ministros que a

persecução tributária por parte dos Estados fica tolhida se ausente a mudança de

titularidade da mercadoria.

Enfim, a expressão “operação relativa à circulação de mercadoria”, mesmo

que alcance bens incorpóreos, impõe, inevitavelmente, um negócio jurídico translativo

de propriedade, circunstância inexistente nas licenças de uso de programa de

computador, pois não há nessas hipóteses quaisquer modificações na esfera patrimonial

do licenciante e licenciado. E mesmo se aplicada a linha doutrinária defendida por

Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, no sentido de que a incidência do ICMS-M não se

limita a atos negociais de transferência de domínio, bastando que se transmita o poder

de disponibilidade jurídica do bem, também não subsiste a exigência do imposto,

porquanto sequer é transferido ao licenciado o poder de dispor do software. Vejamos.

459 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p.

246. 460 Vide item 2.3.2, Parte 2.

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298

No estudo a respeito das modalidades contratuais previstas para a exploração

econômica do software, abordamos os contratos de licença de software previstos nos

arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 9.609/98, distinguindo-os da cessão de direitos disciplinada

no art. 49 e seguintes da Lei nº 9.610/08, do seguinte modo: enquanto na cessão tem-se

a transferência, sempre em caráter exclusivo e não temporário, de parcela ou de todos

os direitos patrimoniais do autor em favor do cessionário, na licença é conferida uma

autorização para que o licenciado utilize ou explore o bem imaterial.

Ou seja, no universo da contratação de licenças de softwares, substrato

instrumental basilar para negociar os respectivos direitos autorais, não há a transferência

da propriedade do programa de computador, “o que acontece, juridicamente, é uma

outorga de direitos de usar e fruir e comercializar, alterar, se for o caso, o bem intelectual

contido no meio físico ou simplesmente transmitido para outro computador, sem meio

físico”461.

Na ocasião, enfatizamos que apenas se cogitaria em transferência da

propriedade intelectual do software nos contratos de cessão total, por meio dos quais

todos os direitos patrimoniais que lhe são subjacentes são transmitidos, inclusive com a

transferência do código fonte, possibilitando ao novo titular alterar o programa, bem

como reproduzi-lo, cedê-lo ou licenciá-lo a terceiros, não mais intervindo o antigo titular

nas relações contratuais a serem firmadas com o bem intangível. Conforme perfeitas

lições de Carlos Alberto Bittar, a cessão total é o contrato que corresponde à alienação

do bem sob o prisma patrimonial462.

Especificamente no que toca aos contornos da licença de uso de software,

salientou-se que, tanto na transação com suporte físico como na contratação eletrônica,

inexiste qualquer transferência de titularidade dos direitos sobre a obra intelectual.

Nessa modalidade contratual, o detentor dos respectivos direitos patrimoniais concede

apenas uma autorização em favor do licenciado para utilizar o programa sob

determinadas condições, estipulando os termos de utilização, tais como prazo, número

de cópias e restrições a modificações. Em simples paralelo didático entre as convenções

461 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software – direito e tecnologia da informação: legislação, doutrina,

práticas comerciais, modelos de contratos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 33. 462 BITTAR, Carlos Alberto. Os Contratos de Comercialização de Software. In: ______ (Coord.). Novos

Contratos Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 43-44.

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firmadas para bens incorpóreos e corpóreos, comparamos a cessão total ao contrato de

compra e venda e a licença de uso ao contrato de locação.

Em vista dessas ponderações, já podemos sublinhar que o critério da

destinação subjetiva do software, fazendo incidir o ICMS-M nas transações com

programas de computador produzidos em larga escala e destinados a uma pluralidade

de consumidores, ainda que adequado ao plano das relações econômicas, não condiz

com a realidade jurídica, em especial com aquela posta no texto constitucional.

Inclusive, tampouco é consentânea com o entendimento firmado no RE nº 176.626.

Decerto, é precipitado afirmar que programas de computador

disponibilizados através da Internet, indistintamente para vários usuários de forma

uniforme, estão sujeitos ao ICMS-M, tendo em vista o entendimento firmado no RE nº

176.626 a favor da tributação do “software de prateleira”. Tais conclusões apressadas

olvidam da singularidade afeta à realidade tecnológica contextualizada naqueles autos,

o que levou o Supremo a chancelar a incidência do ICMS-M, qual seja: a existência

efetiva de circulação de um bem corpóreo (o suporte físico que contém o programa de

computador).

A distinção entre o suporte material que contém o software e o bem

intelectual licenciado foi crucial para o STF, no recurso extraordinário, delinear os

contornos da incidência do ICMS-M sobre os “softwares de prateleira” transacionados

no varejo: autorizou a cobrança do imposto sobre a “manifestação física”, cuja

propriedade era transferida, e não sobre o negócio jurídico relativo à licença de uso do

programa. A propósito de aclarar o posicionamento da Corte, pontuam Leo e Ricardo

Krakowiak:

Ainda que vendido em grandes magazines ou mesmo supermercados, o preço cobrado não corresponderia à ‘compra’ do software em si, mas sim englobaria em realidade duas operações, uma de aquisição de seu suporte físico e outra relativa ao licenciamento ou cessão do direito de uso do programa que nele se contém463.

463 KRAKOWIAK, Leo; KRAKOWIAK, Ricardo. Tributação aduaneira e problemas jurídicos

decorrentes da informatização do comércio exterior. In:GRECO, Marco Aurélio; MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coords.). Direito e Internet: Relações Jurídicas na Sociedade Informatizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 72.

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300

As próprias legislações estaduais conformaram-se ao entendimento do

Pretório Excelso para exigir o imposto apenas sobre o valor do suporte físico, sem

abarcar o valor da licença, consoante, por exemplo, a previsão contida no art. 1º do

Decreto do Estado de São Paulo nº 51.619/07, explicitado anteriormente464.

Essas relevantes reflexões desenvolvidas no RE nº 176.626, para concluir que

há efetiva “operação relativa à circulação de mercadoria” no que concerne aos meios

físicos transacionados, foram cuidadosamente anotadas no voto vencido proferido pelo

Ministro Relator Octavio Gallotti na ADI nº 1.945, o qual afastou a incidência do ICMS-

M sobre o software disponibilizado eletronicamente, sob pena de incidir o imposto sobre

mera licença de uso.

Outra questão merece aqui esclarecimento. Dentre as formas de explorar

economicamente o software, identificamos os contratos de licença de direitos para

comercialização de software, pelo quais o titular do bem intelectual autoriza terceiros a

conceder licenças de uso do software para usuários finais.

Nessas hipóteses, há manifestações465 no cenário jurisprudencial que

justificam o caráter mercantil da operação, na medida em que terceiros, que não detêm

a propriedade intelectual do software, comercializam, em larga escala, exemplares para

usuários finais. Consignam que essas operações “de distribuição de software” envolvem

nítida atividade mercantil que não se confunde com simples licenciamento de uso de

software, pois são colocados no mercado por pessoas distintas do titular dos direitos

autorais.

Independentemente dessa intermediação na exploração econômica das

licenças de uso de programas de computador, convém, mais uma vez, realçar que esses

julgados tratam de operações com os denominados “softwares de prateleiras”, de tal

sorte que apenas as manifestações físicas (CDs, DVDs etc.) circulam enquanto

mercadorias, não podendo recair a carga tributária do ICMS-M, por conseguinte, sobre

o sublicenciamento de programas de computador.

464 Vide item 1.3, Parte 2. 465 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 633.405/RS. Relator: Ministro Luiz Fux.

Julgamento: 24 nov. 2004. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 13 dez. 2004, p. 241; RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação nº 70035850031. Relator: Arno Werlang. Julgamento: 01 dez. 2010. Órgão Julgador: Segunda Câmara Cível. Publicação: DJ, 01 dez. 2010.

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Sob essas diretrizes hermenêuticas fica fácil constatar que o ICMS-M não

pode ser exigido no licenciamento de uso de programas via transmissão eletrônica de

dados. Deveras, em ambiente digital são apenas outorgados os direitos autorais para

utilizar o programa de computador, sem qualquer transferência do domínio de uma

mercadoria. Ademais, na vasta maioria das transações virtuais, os programas são

disponibilizados via download diretamente do site do fornecedor e detentor da

propriedade intelectual.466

Tendo em mente essa nova realidade tecnológica, distinta daquele entorno

fático existente no julgamento do RE nº 176.626, em que imperava a exploração das

licenças de uso do software em lojas físicas, seguem os esclarecimentos de Luiz Roberto

Peroba e Vinícius Jucá Alves:

[...] Hoje nada mais circula, não existe qualquer bem que possa ser sujeito à “circulação de mercadorias”. A única coisa em negociação é a licença de uso, que como vimos não é mercadoria – aqui o direito autoral não circula, somente é “alugado” o direito de usar o software. Além disso, a relação de quem baixa o programa por meio de download é direta com o detentor dos direitos autorais467.

É importante lembrar que houve uma alteração dos fatos analisados na decisão do “software de prateleira”. Antes havia a efetiva circulação de um meio físico (o “CD”), que era vendido por terceiros que não detinham os direitos autorais. No download não há circulação de qualquer meio físico, e os termos da licença de uso são pactuados diretamente entre o detentor do direito autoral e o consumidor468.

Com efeito, o usuário que realiza o download não se torna “dono” do

programa de computador; pelo contrário, faz uso dele com severas limitações, sendo-

lhe vedado dele dispor ou reproduzir cópias sem o consentimento do titular dos direitos

466 Vide: Parecer nº 904/2013-GEOT, no qual a Gerência de Orientação Tributária da Secretaria de

Fazenda do Estado de Goiás esclarece a não incidência do ICMS-M nas transações eletrônicas com software, pois inexiste ato negocial mercantil.

467 PEROBA, Luiz Roberto; ALVES, Vinicius Jucá. A ação direta de inconstitucionalidade (“ADI”) nº 1.945 e a tributação pelo ICMS do download de programas de computador. In: LIMA, Maurício Rodrigues de; RABELO FILHO, Antônio Reinaldo; PINHEIRO, Vera Lígia Arenas; LARA, Daniela Silveira (Coords.) Tributação em Telecomunicações: Temas Atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 259.

468 PEROBA, Luiz Roberto; ALVES, Vinicius Jucá. A ação direta de inconstitucionalidade (“ADI”) nº 1.945 e a tributação pelo ICMS do download de programas de computador. In: LIMA, Maurício Rodrigues de; RABELO FILHO, Antônio Reinaldo; PINHEIRO, Vera Lígia Arenas; LARA, Daniela Silveira (Coords.) Tributação em Telecomunicações: Temas Atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 263.

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autorais. Tanto é assim que, ultrapassado o limite de cópia autorizado, outras licenças

deverão ser contratadas. Essas condições atinentes à licença de uso, limitando as formas

de usufruir o software pelo licenciado foram inclusive apontadas na decisão do RE nº

176.626:

As cláusulas desses contratos (licenças de uso) – voltadas à garantia dos direitos do autor, e não à disciplina das condições do negócio realizado com o exemplar – limitam a liberdade do adquirente da cópia quanto ao uso do programa, estabelecendo, por exemplo, a proibição de uso simultâneo do software em mais de um computador, a proibição de aluguel, e reprodução, de decomposição, de separação dos seus componentes e assim por diante.

Com o intento de melhor demonstrar que licenciar o uso não implica

transferir a propriedade intelectual do software, cabe uma breve menção ao julgamento,

em regime de repercussão geral, do RE nº 607.056469, no qual concluiu o STF pela não

incidência do ICMS-M no fornecimento de água tratada por concessionária de serviço

público. Embora a temática nele discutida não esteja adstrita ao objeto específico do

presente estudo, parte das reflexões feitas pelos Ministros, pinçadas do teor do acórdão,

são muito bem-vindas para reforçar a nossa tomada de posição.

Isso porque, na ocasião do julgamento, registrou-se que as concessionárias

de serviço público de fornecimento de água potável não se tornam proprietárias da água

captada por meio da concessão de direito de uso de recursos hídricos. Justificaram para

tanto que, na outorga do direito de uso, o agente econômico não passa a deter “poderes

jurídicos de disposição”, tampouco se perfaz a transferência da propriedade da água

“através do exercício concreto de tal direito de uso”. Daí porque, no entender da Corte,

dentre outros fundamentos tecidos no acordão, não se pode exigir o ICMS-M sobre o

fornecimento de água pelas concessionárias.

À semelhança do raciocínio desenvolvido nesse julgado, no licenciamento de

uso de software não há de cogitar que a outorga dos direitos de usar o programa de

computador implique que o licenciado dele se apropriou, tornando-se o novo titular do

bem incorpóreo. De igual sorte, não procede a cobrança do ICMS-M perante terceiros,

não detentores dos direitos autorais do software, que estão autorizados pelo proprietário

469 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 607.056. Relator: Ministro Dias

Toffoli. Julgamento: 10 abr. 2013. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 16 maio 2013.

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do bem intelectual a conceder licenças de uso, pois, também aqui, o terceiro não se

transfigura proprietário do programa de computador.

Nunca é demasiado insistir que a mera concessão do direito de utilização do

software constitui um obstáculo à assimilação da licença de uso a um negócio jurídico

de compra e venda mercantil, pois, frise-se: (i) o programa de computador é um bem

intelectual, desprovido de corporabilidade, tutelável pelos direitos do autor, não se

subsumindo ao conceito de mercadoria; e (ii) no licenciamento de uso inexiste negócio

translativo da propriedade intelectual do software, porquanto não é transferido o

conjunto de faculdades patrimoniais relativas ao domínio do programa (uso, gozo e

disponibilidade). Para efeito de equiparações, pode-se afirmar, tão somente, que o

vínculo entre licenciante e licenciado assemelha-se à relação jurídica de uma locação.

Sob idêntica vereda, citamos o entender conclusivo de Clélio Chiesa, para

quem essas transações com software não podem ser qualificadas como operações

relativas à circulação de mercadorias:

[...] pois não há transferência efetiva da propriedade do bem negociados e este não se constitui numa mercadoria. Trata-se de bem imaterial, não suscetível de ser colocado num processo de circulação como se fosse mercadoria. [...] Trata-se de negócio jurídico que tem por objeto a cessão do direito de uso de um programa de computador padrão, cuja transferência não pode ser qualificada como um negócio de compra e venda de mercadoria470.

Pelas assertivas expostas, feitas as distinções entre as transações de

licenciamento eletrônico de uso de software e as operações relativas à circulação de

mercadoria, forçoso concluir que não haverá a incidência do ICMS-M, justamente

porque a licença de uso não traduz negócio jurídico mercantil translativo de propriedade.

E é pressupondo essa peculiar estrutura jurídica que há de ser interpretado o dispositivo

constitucional que outorga competência aos Estados, abstraindo os efeitos econômicos

envolvidos no evento praticado. Se o negócio jurídico firmado pelo particular não

corresponder a essa forma jurídica, ele está, portanto, excluído do campo de incidência

do ICMS-M.

470 CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares).

Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 36, p. 41-53, jan./fev. 2001, p. 52-53.

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304

2.2 O licenciamento eletrônico de uso de software e o ISS

Antes de nos debruçarmos no exame da incidência do ISS, convém retomar,

brevemente, os contornos do licenciamento de uso do tipo Software as a Product (SaaS)

e do licenciamento de uso na modalidade Software as a Service (SaaS)471.

Trata-se digressão preambular necessária, uma vez que optamos por abordar

a constitucionalidade da tributação pelo ISS a partir dessas duas variedades empregadas

para licenciar o uso de programas de computador no ambiente da Internet. E assim

decidimos em virtude da complexidade negocial do modelo contratual SaaS que, por

agregar ao licenciamento soluções tecnológicas, pode levar ao equívoco do exegeta de

que essa hipótese caracterizaria serviço inserido na competência dos Municípios.

Desta feita, rememorando a evolução dessa espécie contratual, vimos que o

aprimoramento da infraestrutura em torno da Internet, a elevada capacidade

computacional e a tecnologia da cloud computing permitiram inovações na maneira pela

qual se licencia o uso dos programas de computador padronizados: a forma tradicional

de licenciamento de uso de software, abrangendo os clássicos Software as a Product

(SaaP), tem perdido espaço para um modelo de negócio de licenciamento denominado

Software as a Service (SaaS).

Em relação à oferta do tipo SaaP, os programas eram, inicialmente, apenas

licenciados em suportes físicos como CD e DVD, postos à disposição em lojas físicas e,

a partir do desenvolvimento do comércio eletrônico indireto, em estabelecimentos

virtuais. Usualmente denominados tais programas veiculados em mídias de “software

de prateleira”, a sua licença instrumentaliza-se mediante contrato de adesão conhecido

como shrink-wrap agreement, constando no termo o aviso de que o rompimento da

embalagem implica automaticamente o consentimento com as disposições de uso do

programa.

Com os avanços tecnológicos, o SaaP passou a ser, cada vez mais, licenciado

exclusivamente através da Internet, sendo que, com a consolidação do comércio

eletrônico direto, a vasta maioria dos softwares padronizados tem hoje seu uso

autorizado em ambiente virtual. Nessas hipóteses, os termos do contrato de adesão à

471 Vide item 3.4, Parte 1.

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licença, designado por click-wrap agreement, são gerados e visualizados quando o

usuário opta por fazer a instalação do software no hardware, concordando assim com as

condições estipuladas.

No modelo tradicional de licença do tipo SaaP, adere-se a uma licença

perpétua mediante o pagamento de uma taxa, instalando-se uma cópia no computador

do usuário, onde os dados são processados e armazenados. Por isso, as aplicações

somente podem ser acessadas no dispositivo local, incumbindo ao usuário a

responsabilidade pela segurança do banco de dados e pelos demais recursos informáticos

necessários para o uso e a manutenção do programa.

No que diz respeito à modalidade SaaS, contrata-se o uso de um software

rodado e executado numa infraestrutura de nuvem. Por estar suportado na cloud

computing, com a virtualização dos meios e recursos informáticos, o usuário tem acesso

ao software a qualquer momento e em qualquer lugar, sem a necessidade de uma cópia

do software ser instalada e processada localmente, bastando um dispositivo conectado à

Internet. Aqui, adere-se a uma licença temporária, em formato de “assinatura”, com o

fornecimento de um login e uma senha, mediante o pagamento de uma taxa mensal ou

anual, que, acaso suspenso, torna o conteúdo licenciado indisponível.

Trazidos à lembrança os aspectos mais marcantes dessas variantes

contratuais, iniciaremos nossos estudos sobre a incidência do ISS no licenciamento

eletrônico de uso de software, pressupondo o modo tradicional desse tipo de exploração

econômica, concernente ao Software as a Product, cujo negócio jurídico tem como fim

único e específico a utilização do software em ambientes locais.

Aproveitaremos também para, no próximo tópico, recapitular a materialidade

constitucional do ISS.

2.2.1 A licença de uso de software no formato tradicional (Software as a Product)

e o ISS

No arranjo constitucional do critério material do ISS, consistente em “prestar

serviços de qualquer natureza”, concluímos que são fatos tributáveis por esse imposto

municipal as atividades (i) com conteúdo econômico que representam (ii) um esforço

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humano, físico ou intelectual, desenvolvido (iii) sem subordinação e (iv) sob o regime

de direito privado, conferindo (v) uma utilidade material ou imaterial em favor de

terceiro, desde que tais atividades estejam (vi) definidas em lei complementar, (vii)

excetuadas da competência dos Estados e do Distrito Federal e (viii) representem a

prestação-fim objetivada no contrato celebrado entre tomador e prestador.

Mediante a incursão no plano jurídico-privado, e à luz da orientação

jurisprudencial firmada no paradigmático RE nº 116.121, vimos que referida figura

tributária pressupõe uma obrigação de fazer: o prestador, por meio de um fazer físico ou

intelectual, compromete-se a executar algo antes inexistente, segundo especificações

convencionadas com o tomador do serviço. Em tom preciso, destacou-se que, na relação

contratual firmada entre tomador e prestador, o fazer algo há de ser o objeto precípuo

acordado pelas partes. Eventual dar é simples consequência de um fazer personalizado,

contratado previamente.

Observamos, também, que a Constituição de 1988 exigiu expressamente que

os serviços englobados na competência dos entes municipais sejam definidos em lei

complementar, sendo, porém, vedado ao legislador incluir atividades estranhas ao

conceito constitucional de serviço, sob pena de modificar as faixas para instituir

impostos, subvertendo a estrutura hierárquica do ordenamento jurídico.

Nessa tarefa de contribuir com as feições do critério material do ISS, o

legislador complementar definiu como atividade tributável pelo imposto o

“licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”, incluindo-o

no item 1.05 do rol de serviços constante da Lista Anexa à Lei Complementar nº

116/2003.

Perdoando as atecnias contidas na nomenclatura utilizada pelo legislador,

visto que licença e cessão de software revelam-se institutos jurídicos distintos como

exaustivamente já explicitado, e cientes também que a própria doutrina e jurisprudência

têm empregado as expressões “licença de uso” e “cessão de uso” como equivalentes,

podemos constatar que, nos moldes dessa norma nacional, estariam os Municípios

autorizados a instituir o ISS sobre a outorga, pelo titular da propriedade intelectual, do

direito de utilizar o programa de computador em favor de terceiros.

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A nosso ver, contudo, não caminhou bem o legislador ao qualificar como

serviço a concessão do direito autoral de uso do software, justamente porque trata-se de

negócio jurídico caracterizado como obrigação de dar. Quando o usuário do computador

realiza um download, aceitando os termos de adesão à licença de uso, sem prévia

estipulação de cláusulas entre as partes, o licenciante obriga-se a disponibilizar um

software já existente em favor do licenciado que irá utilizá-lo dentro dos limites

autorizados. Nesses casos, o contratante busca por um programa já pronto, sem ter em

mente a qualificação pessoal e formação técnica do contratado.

Sob idênticos alicerces, preleciona Aires. F. Barreto:

Sendo a cessão de uso de software (cessão de direitos) negócio jurídico que, diante da nossa ordem jurídica” configura obrigação de dar, segue-se, necessariamente, que jamais pode refletir “prestação de serviço” (que só pode alcançar obrigação de fazer). Não há, pois, como subsumir a cessão de direito de uso de software no conceito de serviço tributável, por via do ISS472.

A licença de uso de software assemelha-se à locação de bens móveis, definida

no Código Civil como um contrato em que “uma das partes se obrigada a ceder à outra,

por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de coisa fungível, mediante certa

retribuição”473. Tal como a relação locatícia, o licenciamento de uso de software consiste

na utilização da propriedade alheia, porém de um bem intelectual, tutelável pelos

direitos do autor. E, especificamente quanto à incidência do ISS sobre a locação de bens

móveis, o STF manifestou-se pela sua inconstitucionalidade no RE nº 116.121. Ordenou

que “somente a prestação de serviços, envolvendo na via direta o esforço humano, é fato

gerador” do ISS. Essa orientação, inclusive, encontra-se consolidada pela Súmula

Vinculante nº 31/20100474, a cujos efeitos subordinam-se órgãos judiciais e

administrativos na forma prevista no art. 103-A da CR/88475.

472 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética: 2009, p.

142. 473 Art. 565, CC/2002. 474 Súmula Vinculante nº 31/2010: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de

Qualquer Natureza” - ISS sobre operações de locação de bens móveis. 475 “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de

dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”

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A fim de corroborar a ausência de um facere contratado entre o licenciante e

o licenciado do software, colaciona-se precedente bastante ilustrativo pela

inconstitucionalidade da cobrança do ISS sobre as licenças de uso de programas de

computador:

Como bem ressaltou a douta Procuradoria de Justiça, é inconstitucional a previsão de incidência de ISS sobre a locação de bens móveis, ou sobre qualquer obrigação de dar, que, de acordo com a jurisprudência do STJ, não pode ser considerada como serviço, posto que este se restringe à obrigação de fazer. No contrato em tela, no que se refere, estritamente, ao valor pago pela impetrante quanto ao licenciamento ou cessão de direito de uso de programa de computação, licença de software desenvolvido por empresas estrangeiras, não pode haver incidência do ISSQN, uma vez que não está compreendido dentro do conceito de serviços, na expressão constitucional, tratando-se, apenas, de disponibilização de programa já elaborada pela cedente. [...]476.

Ainda que os programas de computador exprimam um esforço intelectual, no

licenciamento de uso de software esse fazer humano não é o objetivado no contrato. O

licenciante não se obriga, segundo especificações e necessidades do licenciado, a

elaborar um software, que vá resultar num dar. Trata-se, porém, de circunstâncias fático-

jurídicas presentes na celebração de contratos de desenvolvimento477 de programas de

computador.

Aliás, a dicotomia “software padronizado” e “software por encomenda”

cumpre, neste momento, o seu propósito apenas para demonstrar que os contratos de

licenciamento de uso assumem natureza jurídica distinta dos contratos de

desenvolvimento. Enquanto naqueles almeja-se a utilização de um programa de

computador, pronto e acabado, predominando um dar, nestes contrata-se a confecção de

um software para satisfazer exigências e necessidades particulares do contratante,

sobressaindo aqui uma obrigação de fazer e, por conseguinte, uma atividade consentânea

com o conceito constitucional de serviço tributável pelo ISS478.

476 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação nº 0039698-98.2006.8.19.0001. Julgamento: 17

mar. 2008. Órgão Julgador: Décima Primeira Câmara Cível. Relator: Claudio de Mello Tavares. Publicação: DJ, 27 mar. 2008.

477 Sobre os contratos de desenvolvimento de software, vide item 3.3.4.2, Parte 1. 478 Vide REsp nº 814.075 que determina a incidência do ISS sobre a atividade de desenvolvimento de

software. Importa também anotar que a incidência do ISS sobre licenciamento de uso de programas de computador personalizados é matéria submetida à repercussão geral no RE nº 688.223.

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Distintamente das licenças de uso, nos contratos de desenvolvimento, o bem

imaterial advindo é personalizado, decorrente de um esforço humano objetivado no

contrato e não uma simples autorização de uso de um software. O próprio legislador

complementar definiu o desenvolvimento de software como categoria distinta do

licenciamento de uso, prevendo no item 1.04 da listagem anexa à LC nº 116/2003 a

“elaboração de programas de computadores”.

Em suma, a atividade de criação de software sob encomenda é o suporte

fático que se ajusta ao critério material do ISS, enquanto que a licença de uso figura

como relação contratual cujos deveres estipulados não implicam uma prestação de fazer,

trata-se de prestação de dar, consistente em outorgar a terceiros o direito de usar o bem

incorpóreo.

Por fim, não se pode olvidar que, a depender dos interesses envolvidos, da

aplicabilidade/destinação do software licenciado e da complexidade em manuseá-lo,

nada impede que haja a contratação, à parte, de serviços técnicos complementares e/ou

customizações do programa, adaptando-o para atender as necessidades específicas do

licenciado. Essas hipóteses correspondem a serviços que têm importância econômico-

jurídica própria e individualizada, dissociáveis do licenciamento de uso sem

descaracterizá-lo, submetendo-se, portanto, à exigência do ISS.

2.2.2 A licença de uso na modalidade Software as a Service (SaaS) e o ISS

Tal como na modalidade Software as a Product, também no formato

Software as a Service contrata-se a utilização de um programa de computador.

Conforme elucidamos na Parte 1 deste escrito, a diferença consiste no fato

de que o uso do SaaS é disponibilizado numa infraestrutura de nuvem, possibilitando ao

licenciado o acesso ao software de qualquer lugar, a qualquer momento, desde que

manuseie um computador conectado à Internet.

Vimos também que é o próprio titular e desenvolvedor do programa de

computador licenciado quem consome diretamente os recursos e as funcionalidades da

cloud computing (ou seja, fora dos computadores locais e pessoais), fornecidas por

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desenvolvedores de infraestrutura (IaaS) e de plataforma (PaaS), a fim de projetar o

software e licenciar seu uso na modalidade SaaS.

Por ser executado na nuvem, à utilização do software agregam-se soluções

tecnológicas que lhe são subjacentes, tais como manutenção (correções, atualizações,

melhorias etc.), processamento e armazenamento de dados, cuja oferta irá variar em

função do quanto o programa dependa da infraestrutura da cloud. Estes recursos

informáticos figuram como elementos negociais intrínsecos ao escopo contratual do

SaaS, que é a licença de uso do software, porquanto as atividades de updates e entrega

de soluções de TI, providas pelo licenciante através da nuvem, condicionam o acesso

aos aplicativos a qualquer hora, a partir de diferentes dispositivos conectados à Internet.

Diante dessas peculiaridades do software licenciado na nuvem, assinalamos

que, diferentemente da licença de uso do Software as a Product, o qual pressupõe

negócio jurídico único com unitariedade, visando apenas ao fim específico de autorizar

o direito de usufruir o aplicativo em ambiente local, o Software as a Service pressupõe

negócio jurídico único com complexidade479.

Isso porque, na modalidade SaaS, tem-se o encadeamento de diferentes

deveres e correlatos direitos na formação de um contrato uno que tem como específica

finalidade preponderante o licenciamento de uso do programa. Os elementos negociais

reunidos na complexidade contratual do SaaS subordinam-se à especificidade negocial

prevalente, convergindo a um fim comum: a utilização do programa na hora e lugar

convenientes ao licenciado.

Vê-se, portanto, que no complexo ajuste volitivo do tipo SaaS, o escopo

contratual preponderante – pertinente à concessão de uso do programa de computador

– e os demais elementos negociais – relacionados aos recursos informáticos e soluções

tecnológicas, necessárias para viabilizar o uso do programa a partir de qualquer

dispositivo conectado à Internet – conformam-se, respectivamente, às noções de

atividade-fim e atividade-meio.

Como já tivemos a oportunidade de estudar, em operações complexas

entrelaçando-se diversos elementos negociais, é a preponderância de um ou outro,

reveladora da atividade-fim convencionada pelas partes, que servirá como substrato

479 Vide item 3.5, Parte 1.

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fático para a exigência fiscal. E somente quando imperar o fazer incidirá o ISS. Em

outras palavras, a incidência tributária recai sobre a ação-fim, pois a realidade

econômica que interessa ao direito tributário consiste no desígnio final manifestado pelo

contratante quando da contratação da atividade.

A propósito, não é diferente o entendimento dos nossos Tribunais:

[...] não incide o ISS sobre serviços prestados que caracterizam atividades-meio para atingir atividades-fim, no caso a exploração de telecomunicações. [...] A prestação de serviço tributável pelo ISS é, pois, entre outras coisas, aquela em que o esforço do prestador realiza a prestação-fim, que está no centro da relação contratual, [...] São serviços-meio para o alcance dos serviços-fim de telecomunicações os de secretaria, datilografia, habilitação, mudança e religação de aparelhos, despertador, processamento de dados, entre outros. Não-incidência de ISS. [...]480.

[...]. É certo, portanto, que o alvo da tributação do ISS "é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. [...] somente podem ser tomadas, para compreensão do ISS, as atividades entendidas como fim, correspondentes à prestação de um serviço integralmente considerado em cada item. [...]481.

Com o intuito de melhor demonstrar a incompetência dos Municípios para

exigir o ISS sobre a complexidade negocial do licenciamento de uso do SaaS, faz-se

oportuno mencionar manifestações jurisprudenciais a respeito da cobrança do ISS nas

atividades de franquia. Do mesmo modo que sucede nas licenças de uso do SaaS, os

contratos de franquia assumem natureza complexa, formados por diferentes elementos

negociais.

De acordo com o art. 2º da Lei nº 9.955/95, franquia é definida como

[…] um sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício.

480 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 883.254/MG. Relator: Ministro José

Delgado. Julgamento: 18 dez. 2007. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 28 fev. 2008, p. 74.

481 Id. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 888.852/ES. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento: 04 nov. 2008. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe, 01 dez. 2008.

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Devida à complexidade contratual da franquia, o Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo tem entendido que a atividade compreende, em caráter principal,

cessão de marcas e de know-how, que pode envolver serviços, porém coadjuvantes na

relação negocial, afastando-se a atividade do conceito constitucional de serviço:

[...] a franquia é um contrato de natureza hibrida e complexa, fundamentalmente uma cessão de direito de uso de marca ou patente e, portanto, não se caracteriza exatamente como efetiva prestação de serviços, descabendo alterar a definição e o alcance de seu conceito, à luz do artigo 110 do Código Tributário Nacional482.

O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou pela

intributabilidade das atividades de franquia. Decidiu que o fato de os negócios de

franquia estarem previstos “no rol de serviços constantes da lista anexa à Lei

Complementar 116/2003 não possui o condão de transmudar a natureza jurídica

complexa do instituto, composto por um plexo indissociável de obrigações de dar, de

fazer e de não fazer” e, por isso, “revela-se inarredável que a operação de franquia não

constitui prestação de serviço (obrigação de fazer), escapando, portanto, da esfera da

tributação do ISS pelos municípios”483.

Pois bem, (i) se na estrutura negocial complexa do SaaS, a reunião e a

conjugação de diferentes soluções tecnológicas (atividades-meio) visa à utilização do

software de qualquer lugar e a qualquer hora (atividade-fim), dentro das limitações

impostas pela licença de uso; e, (ii) conforme exaustivamente delineado no tópico

precedente, a atividade de licença de uso de software não se subsome ao conceito

constitucional de serviços tributáveis pelo ISS, então forçoso concluir que também o

licenciamento na modalidade Software as a Service não está submetido à tributação do

ISS.

No mais, mesmo que fosse admitido o desdobramento dessa estrutura

negocial para fazer valer as atividades-meio na qualificação jurídica do fato, as soluções

482 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação nº 90213481420068260000. Relator: Silva

Russo; Comarca: São Paulo; Julgamento: 22 out. 2009. Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público. Registro: 18 nov. 2009. Vide também: SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Incidente de Inconstitucionalidade nº 994.06.045400-3. Relator: Silva Russo. Julgamento: 17 mar. 2011. Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público. Registro: 03 maio 2011.

483 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.044.239/MG. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento: 06 nov. 2008. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe, 01 dez. 2008.

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tecnológicas oferecidas no licenciamento de uso de SaaS afastam-se da configuração

constitucional de serviço, uma vez que não traduzem um fazer pela via direta humana

segundo especificações avençadas entre licenciante e licenciado.

Além de a licença instrumentalizar-se via contrato de adesão pela Internet, as

soluções práticas e utilidades conferidas ao licenciado decorrem diretamente do

funcionamento do computador, através da atuação conjunta do hardware e do software.

É o sistema informático como um todo que proporciona as utilidades ao usuário do

computador: o conjunto de comandos do software habilita o hardware a processar

informações e a executar funções com vistas a produzir um resultado

O software, enquanto sequência lógica de comandos de emprego necessário

nos equipamentos eletrônicos, há de ser compreendido como uma criação intelectual

dotada de expressão concreta e originalidade, amparada pela tutela dos direitos autorais,

em conformidade com o tratamento jurídico que lhe é conferido pela legislação

brasileira.

Urge repetir que, em matéria de software para efeito de tributação do ISS,

impõe-se verificar, na formação da vontade das partes, a presença de cláusulas que

atestem o interesse do contratante em ter um programa de computador personalizado ou

customizado, isto é, que demonstram a existência de um prévio ajuste entre as partes de

que o programa de computador comportará traços específicos e distintivos para atender

anseios e necessidades específicas da parte. Enfim, somente haverá serviço quando a

relação jurídica comporte um fazer acertado entre o tomador e o prestador,

circunstâncias apenas presentes nos contratos de desenvolvimento e customização de

software.

2.3 O licenciamento de uso de software como atividade econômica incluída na

competência residual da União

O constituinte de 1988 outorgou à União, no art. 154, inciso I, uma faixa

residual para tributar fatos de substrato econômico que não correspondam àqueles

previstos nos arts. 153, 155 e 156. A competência residual confere à Carta Republicana

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a flexibilidade econômica necessária para se adaptar aos progressos imanentes da rica e

heterogênea tessitura das relações interpessoais firmadas no âmbito do direito privado.

Doutrinadores de peso, como Roque Antonio Carrazza484 e Aires F.

Barreto485, adotam o entendimento, do qual também compartilhamos, no sentido de que

a exploração econômica do software por meio das licenças de uso traduzem signos

presuntivos de riqueza alcançados por essa competência estatuída no art. 154, I, uma

vez que não concerne às materialidades atribuídas aos Estados e os Municípios para

instituir o ICMS-M e o ISS, tampouco àquelas abrigadas pelas zonas estritas e

específicas distribuídas entre os entes políticos.

Aguardemos então a União exercer a sua competência residual e, assim,

exigir carga tributária sobre as licenças eletrônicas de uso de software em harmonia com

a rígida distribuição das competências tributárias.

484 CARRAZZA, Roque Antonio. O conceito de mercadoria para fins de tributação por meio do ICMS:

novas tendências do STF. Revista de Direito Tributário, São Paulo: Malheiros, v. 1, n. 123, p. 23-28, 2015.

485 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética: 2009, p. 144.

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CONCLUSÕES

Seguem abaixo transcritas as conclusões elaboradas neste trabalho, na ordem

em que os temas foram abordados e segundo as premissas firmadas desde o início:

PARTE 1 – ABORDAGEM FUNDAMENTAL PARA O ESTUDO DA

TRIBUTAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ENVOLVENDO SOFTWARE)

1 NOÇÕES SOBRE A INFORMÁTICA: A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA

COMPUTAÇÃO, SEUS ELEMENTOS BÁSICOS (hardware e software) E

SEUS IMPACTOS NA SOCIEDADE)

1. Informática é o domínio científico voltado a investigar a entrada, o processamento,

o armazenamento e o envio automáticos de dados e informações a partir do uso de

computadores.

2. Ao longo da trajetória da humanidade, o indivíduo sempre buscou desenvolver

instrumentos e ferramentas para auxiliá-lo nos seus afazeres diários, figurando o

computador, desde os seus primórdios, como uma dessas ferramentas.

3. Contribuíram para a história da evolução da computação até o século XIX diversos

mecanismos criados pelo homem, dentre os quais destacamos: (i) o ábaco, a régua

de cálculo e a La pascaline, como as primeiras ferramentas a favorecer a presteza

na resolução de problemas matemáticos; (ii) o tear de Jacquart, criado em plena

Revolução Industrial e cujo método de automatização através da leitura de cartões

perfuráveis em um sequência programada projetou-se fortemente na área da

computação; (iii) a Máquina Analítica idealizada por Charles Babbage, contendo

os primeiros traços teóricos de um computador programado, pois já anunciava a

necessidade de uma linguagem para programar a máquina, portadora de uma

sequência de instruções modificáveis que habilitariam o dispositivo a realizar

diferentes funções; e (iv) o processador de dados eletromecânico concebido por

Herman Hollerith, para o recenseamento populacional de 1890 nos Estados

Unidos, capaz de processar informações sem a necessidade de reconstruir o

mecanismo, representando o estágio embrionário da atividade da programação.

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4. Na primeira metade do século XX, a progressão tecnológica foi fortemente

impulsionada pela Primeira e Segunda Guerras Mundiais, período em que foram

concebidas as seguintes tecnologias computacionais: (i) a Máquina de Turing

enquanto modelo teórico e hipotético de máquina universal, capaz de solucionar

todos os problemas passíveis de serem descritos em algoritmos; (ii) as máquinas

eletromecânicas Enigma para criptografar códigos de Guerra e Colossus para

decifrar as mensagens militares alemãs; (iii) a calculadora eletromecânica

programável Mark I, destinada a calcular os trajetos da marinha norte-americana,

contribuindo decisivamente para a concretização da ideia de programa

armazenado; e (iv) a primeira máquina de calcular eletrônica, denominada ENIAC,

simbolizando a fronteira entre a era das grandes calculadoras, baseadas na

engenharia mecânica e eletromecânica, e a era da computação moderna,

principiada a partir da segunda metade do século XX e marcada pelo surgimento

da tecnologia dos transistores, dos circuitos integrados e dos microcomputadores,

bem como pela relevância crescente da programação e de suas linguagens.

5. No período pós-guerra, os estudos não mais miravam apenas a “estrutura física”

da máquina, voltando-se a comunidade científica a investigar a organização interna

do computador, suas funções lógicas, sobressaindo aqui a máquina EDVAC

projetada por Von Neumann, cujo princípio de funcionamento automático de

computadores, apoiado na disposição de memória, unidade de controle interna,

algoritmos gravados (programas) e periféricos de saída e entrada, fundamentou o

estrutura dos computadores que lhe sobrevieram.

6. A invenção dos microprocessadores tornou realidade a ideia do microcomputador,

que foi o primeiro passo para o advento, na década de setenta, dos computadores

pessoais (Personal Computer – PC), conferindo uma nova dimensão à cultura

informática, na medida em que proporcionou o uso do computador na organização

e execução das tarefas cotidianas, profissionais e domésticas, transformando-se o

computador em um verdadeiro bem de consumo.

7. A partir da década de 1980, as companhias passaram a desenvolver sistemas de

programação desvinculados do hardware, dando início ao mercado de software

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que, desde então, tem protagonizado as inovações tecnológicas no campo da

informática.

8. Na história mais recente da computação, prosperou a miniaturização dos

equipamentos eletrônicos com expressivos ganhos de memória, permitindo uma

variabilidade de computadores portáteis de fácil locomoção que, combinados com

a perene conectividade, podem ser acessados a qualquer momento e em qualquer

lugar.

9. Discorrido sobre marcos históricos relevantes da trajetória da computação, foram

definidos os componentes básicos do sistema computacional do seguinte modo: (i)

o hardware envolve o conjunto das partes físicas do computador, englobando,

basicamente, os equipamentos referentes a CPU, periféricos de entrada e/ou de

saída e memórias; e (ii) o software (ou programa) compreende o conjunto dos

elementos lógicos do computador, cujas sequências de instruções e dados

permitem ao hardware executar uma variedade de ações.

10. Os programas são expressos em (i) código-fonte, por meio do emprego da

linguagem de alto nível, mais aproximada à linguagem humana, e (ii) em código-

objeto (ou código binário), mediante o uso da linguagem de baixo nível, mais

complexa, porém legível e executável pelos equipamentos eletrônicos. Para que os

comandos lógicos sejam reconhecidos pelo hardware, possibilitando ao

computador realizar as tarefas solicitadas pelos usuários, as instruções e os dados,

fornecidos em código fonte pela linguagem de alto nível, precisam ser traduzidos,

por compiladores, para a linguagem de baixo nível, cujas instruções sob a forma

de código binário (1 e 0) são executáveis pela máquina.

11. Por analogia, pode-se afirmar que o hardware se refere ao corpo do computador,

enquanto o software é o cérebro da máquina. É a mente-software, por meio de uma

organização lógica pré-definida, que faz com que o corpo-hardware trabalhe.

12. Com arrimo na finalidade funcional da sequência de instruções organizadas no

software, distinguimos as seguintes espécies de programas de computador: (i) o

software básico, correspondente ao sistema operacional, que funciona como um

conjunto de diferentes programas indispensáveis ao funcionamento do

computador, destinado a coordenar e controlar as atividades e os recursos

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informáticos, sejam relativos à execução de dispositivos físicos, sejam relativos a

funções de software, permitindo que outros aplicativos sejam operados; e (ii) o

softwares aplicativos, elaborados com o propósito de o computador solucionar

problemas específicos e realizar tarefas determinadas, de acordo com o interesse

do usuário final, formando uma categoria de extrema diversidade por assumir

funções domésticas, industriais, comerciais, científicas, jurídicas, educacionais, de

entretenimento, artísticas, financeiras, de recursos humanos etc.

13. Paralelamente à evolução da informática, desenvolveu-se a tecnologia dos meios

de comunicação, protagonizando a Internet a grande inovação tecnológica

comunicacional ao interligar, em nível global, a multiplicidade midiática através

do uso dos computadores em redes.

14. Graças à criação e ao aprimoramento da Internet, computadores cada vez mais se

conectam uns aos outros (PC, celulares, TV, câmeras de segurança e demais

dispositivos computacionais) mediante a massiva integração entre informática e

telecomunicações, formando-se redes informativas continuamente mais integradas

e capazes de transmitir todo tipo de dado e informação.

15. A interferência da Informática, associada à rede mundial dos computadores, na

dinâmica da vida social, nas relações entre indivíduos, empresas, Estados e demais

instituições, possibilitou novas formas de se comunicar e definiu padrões de

comportamento, dando origem a uma sociedade pós-industrial baseada num

“mundo digital”, em que imperam transmissão instantânea de informações, perda

de fronteiras, conectividade, desintermediação, organizações ágeis e adaptáveis e

forte globalização.

16. A transformação de paradigmas, de uma economia industrial para uma economia

digital, tem provocado profundas alterações nas relações econômicas, no

empreendedorismo, na forma de conduzir e firmar negócios, com o surgimento de

novos métodos, técnicas, mercados e negócios. No mundo contemporâneo, os

mercados cedem lugar às redes, em que a noção de propriedade e interação entre

vendedores/fornecedores, intermediários e consumidores está sendo substituída

pela noção do acesso: paga-se pelo acesso às mais variadas experiências e

utilidades.

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17. Esse processo de expansão digital irrompeu inúmeras complexidades jurídicas,

acompanhadas pela criação de novas legislações, dentre as quais destacamos: (i) a

Lei Federal nº 9.609/98, dispondo sobre a proteção intelectual do programa de

computador e sua comercialização no país; (ii) o Marco Civil da Internet, que

estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso e o desenvolvimento

adequados da Internet, bem como as diretrizes para a atuação do Estado em relação

à matéria; (iii) o Decreto nº 7.962/13, que regulamentou o Código de Defesa do

Consumidor para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico, adequando-

se às normas internacionais previstas na Lei Modelo sobre Comércio Eletrônico

(Resolução nº 51/162); e (iv) a EC nº 87/2015, que introduziu novo regime de

recolhimento do ICMS nas vendas interestaduais a consumidor final não

contribuinte, tendo em vista o crescimento do comércio eletrônico indireto.

2 A NATUREZA JURÍDICA DO SOFTWARE, A SUA PROTEÇÃO E O

TRATAMENTO CONFERIDO PELA LEI Nº 9.609/1998

18. No art. 1º da Lei nº 9.608/98, o software é definido como um conjunto de

instruções em linguagem natural (código fonte) ou codificada (código objeto), que

não se confunde com o suporte físico que o contempla e de emprego necessário no

uso de computadores, pois habilita o hardware a processar informações, executar

funções e tarefas, com vistas a produzir determinado resultado.

19. Enquanto sequência lógica de comandos codificados para o manuseio de

computadores, qualificam-se como bens incorpóreos equiparados a obra

intelectual, protegida pelos direitos do autor, nos moldes previstos no art. 2º da Lei

nº 9.608/98.

20. Gozam os programas de computador de tutela autoral, pois em cada software

produzido manifesta-se a criatividade pessoal e individual do programador,

decorrente das escolhas e soluções por ele empregadas durante o desenvolvimento

do código. Diante da multiplicidade de arranjos possíveis imanentes à atividade de

programação, o conjunto de decisões tomadas para projetar e elaborar um

programa específico influem diretamente na sua forma, substância e excelência.

Quanto mais complexo o programa, maior será seu grau de individualidade,

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inexistindo programas coincidentes se trabalhados separadamente por diferentes

técnicos em computação.

21. Programas de computador são bens corpóreos, pois abstratos, que carecem de per

si de dimensão tangível, veiculados em suporte físico para serem percebidos

mediatamente pela intuição sensível. O corpo material que lhes dá suporte consiste

num instrumento necessário para a apreensão e a divulgação do programa,

propiciando sua disponibilização a terceiros, sem o condão de afastar a sua

natureza de bem incorpóreo protegido pelo direito autoral.

22. A despeito do forte caráter utilitário e funcional do software, possibilitando a

utilização do equipamento de acordo com as necessidades do usuário, as soluções

práticas buscadas pelo programa dependem também da aplicação dos outros

componentes do sistema informático, tocantes aos dispositivos eletrônicos. A

automatização das atividades humanas, cada vez mais entranhada nos domínios do

conhecimento, não é executada isoladamente pelo software, na medida em que

suas instruções se voltam a capacitar o hardware na obtenção dos resultados

desejados. A execução das tarefas pelo computador, conferindo utilidades aos seus

usuários, depende da atuação conjunta do software e do hardware, elementos

básicos do sistema informático.

23. Em conformidade com o tratamento jurídico conferido ao software pela legislação

brasileira, inclusive pelo direito internacional, o programa de computador,

isoladamente considerado, é um conjunto lógico de instruções para o uso de

computadores, traduzindo uma criação intelectual dotada de expressão concreta e

originalidade, amparada pela tutela dos direitos autorais.

3 O SOFTWARE E A SUA EXPLORAÇÃO ECONÔMICA

24. No universo da contratação virtual, destacam-se duas modalidades: (i) o comércio

eletrônico indireto, relacionado a negócios com bens corpóreos, em que a oferta,

a encomenda e o pagamento ocorrem em ambiente virtual, porém a entrega do bem

é física; e (ii) o comércio eletrônico direto, relacionado a negócios com bens

incorpóreos, nos quais a Internet é o meio pelo qual se perfazem não só a oferta e

a contratação, mas a própria disponibilização do conteúdo digital transacionado.

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Nota-se que, nas transações em ambiente virtual, o vocábulo “comércio” é

empregado com uma conotação bastante ampla, alcançando qualquer forma

negocial operada.

25. O fornecimento virtual do objeto operacionaliza-se basicamente por meio do

download, compreendido como a transferência de dados de um dispositivo remoto

para um dispositivo local, e também por meio da tecnologia streaming, que envia

os dados de forma comprimida pela rede, disponibilizando-os imediatamente no

computador do usuário e excluindo-os logo depois de reproduzidos. Referidas

formas de transmissão de dados, propiciando a contratação de bens intangíveis por

meio eletrônico, permitiu inovar na maneira como a propriedade intelectual do

programa de computador é explorada economicamente.

26. A partir dos dispositivos da Lei de Software (Lei nº 9.609/98) e da Lei de Direito

Autoral (Lei nº 9.610/98), aplicada subsidiariamente aos programas de

computador, foram examinadas as seguintes modalidades contratuais para a

exploração econômica do software: o contrato de desenvolvimento de software, de

customização de software, de cessão de software, de licenças de software e de

prestação de serviços técnicos de suporte e manutenção de software.

27. Nos contratos de desenvolvimento de software, objetiva-se a elaboração de um

sistema sob medida, segundo as especificações do interessado. Tal

desenvolvimento pode se dar, em termos de programação, desde as primícias, ou

ser executado com base em softwares pré-compostos. Salvo estipulação em

contrário, a titularidade dos direitos patrimoniais concernentes ao software por

encomenda pertence com exclusividade ao encomendante.

28. Nos contratos de customização de software, são pactuadas adaptações e ajustes de

um programa pronto, já ofertado pelo desenvolvedor, sendo que os direitos das

modificações por ele procedidas serão de sua titularidade.

29. Nos clássicos contratos de desenvolvimento, temos típica atividade de prestação

de serviços, em que o programa elaborado é de titularidade do tomador, ao passo

que, nos contratos de customização, além de o desenvolvedor prestar serviços de

adaptação do programa, verifica-se também a licença o uso do software

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customizado em favor do contratante, vez que o contratado é quem detém os

direitos da customização

30. No exercício das faculdades patrimoniais do titular para explorar economicamente

o programa de computador, a cessão de software e a licença de software não se

confundem: enquanto, na primeira, tem-se a transferência, sempre em caráter

exclusivo e não temporário, de parcela ou de todos os direitos patrimoniais do autor

em favor do cessionário; na segunda, é conferida uma autorização para que o

licenciado utilize ou explore o bem imaterial sob determinadas condições,

permanecendo com o licenciante a propriedade intelectual de todos os direitos

patrimoniais do software. Somente nos contratos de cessão total aperfeiçoa-se a

transferência plena da propriedade do programa de computador.

31. Os contratos de licença de direitos para comercialização de software consistem

na outorga pelo titular a terceiros de uma parte do direito de exploração econômica,

autorizando o licenciado a conceder licenças de uso do programa para usuários

finais.

32. Nos contratos de licença para desenvolvimento de software, o titular do programa

autoriza o licenciado (i) a proceder alterações no software original, numa espécie

de customização, agregando-lhe funcionalidades e melhoramentos e/ou (ii) a

realizar derivações no software original, criando-se um novo programa de

computador (uma autêntica obra derivada), distinto do originário e, por isso,

sujeito a uma nova forma de aproveitamento econômico.

33. Na licença de uso de software, o detentor dos direitos patrimoniais do bem

imaterial concede a autorização para terceiro utilizar o programa, normalmente

numa cópia em código-objeto, estipulando os termos de utilização, tais como

prazo, número de cópias e restrições a modificações.

34. Em função do disposto no art. 8º da Lei nº 9.609/98, nos contratos de licença de

uso está prevista a prestação de serviços técnicos, que podem compreender:

(i) serviços de suporte sem custo adicional, prestados durante o prazo de validade

técnica da versão contratada, ora relacionados à garantia do software para reparos

de eventuais erros e defeitos gerados na concepção do programa, ora concernentes

à orientação básica sobre o seu uso e funcionamento conforme manuais e

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especificações; bem como (ii) serviços técnicos complementares, passíveis de

remuneração, denominados usualmente de serviços de manutenção, referentes, por

exemplo, a treinamento e consultoria, recuperação de arquivos e de correções

decorrentes do uso indevido do programa, conserto de defeitos do próprio

equipamento e do sistema operacional ou de falhas elétricas e migração e

conversão de dados para outros equipamentos.

35. O aprimoramento da infraestrutura em torno da Internet, a elevada capacidade

computacional e a tecnologia da cloud computing permitiram inovações na

maneira como se licencia o uso dos programas de computador padronizados: a

forma tradicional de licenciamento de uso de software, abrangendo os clássicos

Software as a Product (SaaP), tem perdido espaço para um modelo de negócio de

licenciamento suportado na arquitetura da nuvem, irrompendo os denominados

Software as a Service (SaaS).

36. Relativamente à oferta do tipo SaaP, os programas eram, inicialmente, apenas

licenciados em suportes físicos como CD e DVD, postos à disposição em lojas

físicas e, a partir do desenvolvimento do comércio eletrônico indireto, em

estabelecimentos virtuais. Usualmente denominados tais programas veiculados em

mídia de “software de prateleira”, a sua licença instrumentaliza-se mediante

contrato de adesão conhecido como shrink-wrap agreement, constando no termo

o aviso de que o rompimento da embalagem implica automaticamente o

consentimento com as disposições de uso do programa.

37. Com os avanços tecnológicos, o SaaP passou a ser, cada vez mais, licenciado

exclusivamente através da Internet, sendo que, com a consolidação do comércio

eletrônico direto, a vasta maioria dos softwares padronizados tem hoje seu uso

autorizado em ambiente virtual. Nessas hipóteses, os termos do contrato de adesão

à licença, designado por click-wrap agreement, são gerados e visualizados quando

o usuário opta por fazer a instalação do software no hardware, concordando assim

com as condições estipuladas.

38. No que diz respeito à inovadora modalidade SaaS, contrata-se o uso de um

software rodado e executado numa infraestrutura de nuvem. O próprio titular do

programa de computador licenciado é quem consome os recursos e as

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funcionalidades da cloud computing, fornecidas por desenvolvedores de

infraestrutura (IaaS) e de plataforma (PaaS), a fim de projetar o software e

licenciá-lo ao usuário final na modalidade SaaS. É o desenvolvedor do SaaS quem

contrata as ferramentas informáticas da nuvem, ou seja, fora dos computadores

locais e pessoais, para assim desenvolver e gerenciar o software que irá

disponibilizar no mercado por meio de licenças de uso.

39. No modelo tradicional de licença do tipo SaaP, adere-se a uma licença perpétua

mediante o pagamento de uma taxa, instalando-se uma cópia no computador do

usuário, onde os dados são processados e armazenados. Por isso, as aplicações

somente podem ser acessadas no dispositivo local, incumbindo ao usuário a

responsabilidade pela segurança do banco de dados e pelos demais recursos

informáticos necessários para o uso e a manutenção do programa. No modelo

SaaS, adere-se a uma licença temporária, em formato de “assinatura”, com o

fornecimento de um login e uma senha, mediante o pagamento de uma taxa mensal

ou anual, que acaso suspenso torna o conteúdo licenciado indisponível. Por estar

suportado numa infraestrutura de nuvem, com a virtualização dos meios e recursos

informáticos, o usuário pode ter acesso ao software licenciado a qualquer momento

e em qualquer lugar, bastando um dispositivo conectado à Internet, sem a

necessidade de uma cópia do software ser instalada e processada localmente.

40. O objeto convencionado no SaaS consiste na utilização do software, em que

soluções de tecnologia lhes são subjacentes, tais como manutenção (correções,

atualizações, melhorias significativas), processamento e armazenamento, bem

como outros recursos informáticos, cuja oferta ao licenciado irão variar em função

de quanto o programa licenciado dependa da infraestrutura de nuvem.

41. Tais recursos informáticos figuram como elementos negociais intrínsecos ao

escopo contratual preponderante do SaaS, que é a licença, porquanto as atividades

de updates e entrega de soluções de TI, providas pelo licenciante através da nuvem,

garantem ao usuário o acesso aos aplicativos a qualquer hora a partir de diferentes

dispositivos conectados à Internet. Independentemente do quanto dependa o

software da cloud, o que influi diretamente na extensão das soluções informáticas

agregadas à licença, a utilização dos aplicativos licenciados, nessa relação negocial

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complexa, subsiste como o escopo contratual preponderante, como o fim comum

da estrutura do negócio jurídico contratado.

42. Nas formas contratuais aplicadas no licenciamento de uso de software, o Software

as a Product pressupõe negócio jurídico único com unitariedade e o Software as a

Service pressupõe negócio jurídico único com complexidade, uma vez que: no

primeiro, a unidade do negócio jurídico configura-se na existência de um só fim

específico, consistente na outorga ao licenciado do direito de usufruir o software

em ambiente local; no segundo, tem-se o encadeamento de diferentes deveres e

correspondentes direitos na formação de um contrato uno que tem como específica

finalidade preponderante o licenciamento de uso do programa. Os elementos

negociais reunidos no SaaS subordinam-se à especificidade preponderante,

convergindo a um fim comum: a utilização do programa de forma contínua de

qualquer lugar e a qualquer hora pelo licenciado.

43. A depender dos interesses envolvidos, da aplicabilidade/destinação do software e

da complexidade em manuseá-lo, nada impede que haja uma pluralidade de

negócios coligados no licenciamento de uso, contratando-se, à parte, serviços

técnicos complementares e/ou customizações do programa, adaptando-o para

atender as necessidades específicas do licenciado. Nessas hipóteses de contratos

coligados, os serviços de manutenção e customização têm importância econômico-

jurídica própria e individualizada, são dissociáveis do licenciamento de uso sem

descaracterizá-lo, assumindo, portanto, tais atividades efeitos fiscais diversos.

PARTE 2 - O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A

COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS-MERCADORIA

E O ISS

1 O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA

TRIBUTÁRIA

44. O sistema jurídico é expressão empregada para designar conjuntos proposicionais

nomoempíricos distintos: o sistema do direito positivo, correspondente ao plexo

de normas existentes aqui e agora, destinadas a regular condutas interpessoais, e o

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sistema da Ciência do Direito, definido como a reunião de enunciados científicos

que descrevem e tornam compreensível as normas jurídicas.

45. O sistema do direito positivo é constituído por diferentes subsistemas, cujas

unidades normativas, alinhadas numa estrutura hierarquizada pela fundamentação

ou derivação, vinculam-se de diferentes maneiras, reunindo-se debaixo de seu

fundamento último de validade semântica, que é a Constituição da República.

46. Na organização do Texto Maior em matéria tributária, o legislador constituinte

optou por criar um conjunto extenso e complexo de prescrições, desenhando, em

miúdos e de forma tesa, os contornos essenciais desse subsistema jurídico, erigindo

princípios constitucionais tributários, classificando espécies de tributos,

discriminando competências, dentre outros assuntos lindeiros da persecução

tributária.

47. A forma federativa, combinada no Brasil com a autonomia municipal, alicerça-se

na autonomia recíproca entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, cada

qual, iguais entre si, dotados de capacidade de autoconstituição, organizando-se

juridicamente e dispondo de receitas tributárias e orçamentárias suficientes para

agir nas respectivas áreas administrativa, legislativa e política. Todavia, autonomia

não se confunde com soberania, de tal sorte que, no desempenho de suas

atividades, notadamente na instituição e na arrecadação tributárias, encontram-se

as unidades políticas subordinadas aos critérios de repartição competencial

positivados pelo constituinte, almejando, assim, garantir a coexistência harmônica

das distintas esferas de governo e ordens jurídicas incidentes sobre um mesmo

território e grupo de indivíduos, em prol da segurança dos contribuintes.

48. A segurança jurídica, representativa de uma das grandes diretrizes que formam a

camada axiológica das normas tributárias, exprime a previsibilidade em relação

aos efeitos da aplicação normativa e a confiança na totalidade do ordenamento,

sustentadas na compreensão pelos contribuintes, em nível abstrato e concreto, dos

comandos jurídicos a que estão submetidos e, portanto, no estado de

conhecimento, em alto grau e com antecedência, da conduta regrada. A

possibilidade de o contribuinte prever as consequências jurídicas de seus atos e,

consequentemente, confiar no ordenamento para pautar suas condutas, guarda

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estreita relação com a atividade de aplicação do direito exercida nas três esferas

dos poderes republicanos – Legislativo, Executivo e Judiciário –, pois é mediante

a atuação dos órgãos competentes que se garante um estado de cognoscibilidade

da linguagem do direito positivo.

49. De acordo com a diretriz da legalidade quer na sua dicção genérica (art. 5º, II),

quer na sua redação específica para o direito tributário (no art. 150, I), a inserção

no ordenamento pelas pessoas políticas de direito constitucional interno de normas

tributárias inaugurais, impositivas de deveres aos contribuintes, há de ocorrer

sempre por intermédio de lei. Corolário do princípio da estrita legalidade, a

tipicidade representa, em termos pragmáticos, instrumento mais capaz e eficiente

de assegurar a produção de normas tributárias em conformidade com os preceitos

constitucionais: no plano legislativo, a tipicidade determina que a lei especifique,

de maneira clara e inequívoca, todos os elementos indispensáveis para a edificação

da regra-matriz de incidência; e, no plano dos fatos, exige que a ocorrência da vida

real satisfaça todos os critérios identificadores tipificados na hipótese.

50. Em razão da particularizada e abundante disciplina tributária inserta na

Constituição, a matéria concernente à distribuição de competências tributárias e às

formas de seu exercício não se caracteriza pela plasticidade e elasticidade jurídicas.

É marcada pela rigidez jurídica, não estando o legislador infraconstitucional

autorizado a agir em ampla esfera de liberdade para adaptar o sistema tributário

aos contingentes progressos sociais e econômicos.

51. No que diz respeito à atribuição de competências para instituir impostos, o

constituinte procedeu a uma divisão categórica dos cenários legiferantes entre os

entes políticos: nos artigos 153, 155 e 156, arrolou imposto por imposto,

estipulando quadros fáticos distintos e específicos sobre os quais o Poder

Legislativo da União, Estados, Distrito Federal e Municípios estão autorizados a

instituir exações tributárias.

52. Em virtude das titularidades residual e extraordinária previstas no art. 154, incisos

I e II, à União foram conferidas, além da competência específica para tributar as

situações contempladas no art. 153: (i) a faculdade legislativa concorrente com os

demais entes políticos para criar os impostos extraordinários em face de iminência

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ou no caso de guerra externa, bem como (ii) a permissão residual de instituir, por

meio de lei complementar, gravames não-cumulativos sobre situações

remanescentes, ou seja, impostos que não tenham fato gerador ou base de cálculo

próprios dos já discriminados na Constituição.

53. A competência para tributar os fatos de relevância econômica, que não se

identificam com as materialidades já rigorosamente elencadas no Texto Supremo,

ou seja, para criar impostos novos, enquadra-se na competência da União para criar

impostos residuais. Essa autorização do constituinte de 1988 possibilita que o

legislador tributário se atualize dos progressos econômicos, imanente à rica e

heterogênea tessitura das relações interpessoais firmadas no âmbito do direito

privado. Além disso, reforça a rigidez do quadro competencial, pois demonstra a

amplitude da disciplina da aptidão para instituir impostos é total na medida em que

todo e qualquer fato que revele conteúdo econômico, salvo aqueles albergados

pelas normas de imunidade, poderá ser objeto de tributação.

54. No intuito de assegurar ao mesmo tempo a rigidez jurídica e a flexibilidade

econômica do sistema constitucional tributário, ante o surgimento de novos

negócios e formas de exploração econômica, caberá ao aplicador do direito

verificar se tais fatos adequam-se à expressa e estrita faixa para instituir impostos,

enumerados nos arts. 153, 155 e 156 da Constituição, e, não o sendo, pertencerão

forçosamente ao campo da competência residual da União.

55. Ao enunciar, nos arts. 153, 155 e 156, quadros fáticos específicos aptos a integrar

as hipóteses de incidência dos impostos, o sistema constitucional tributário elege

preferências por núcleos de significação, vinculativos da produção de normas de

inferior hierarquia. Pressupor um conteúdo significativo para os dispositivos

outorgantes de competências impositivas emana da compostura de toda e qualquer

competência, que já nasce limitada, do contrário, tratar-se-ia, em verdade, de poder

para criar tributos.

56. Disto resulta que os processos decisórios relacionados à imposição dessas figuras

tributárias hão de ser precedidos por intenso esforço exegético pelo aplicador do

direito (legislador, administrador e julgador) a partir do texto constitucional, com

o escopo de traçar os conceitos constitucionais, limitadores da atuação das pessoas

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políticas e respectivos órgãos e condicionantes da efetiva previsibilidade na

regulação das relações entre Fisco e contribuinte.

57. Um conceito corresponde à forma de uso do termo em um determinado contexto.

Conhecer o conceito é saber empregar a palavra dentro de uma formação

linguística. Como inexiste uma relação de correspondência ontológica entre o

termo e o objeto por ele mencionado, mas sim uma relação criada artificialmente

pela linguagem, refere-se o termo não ao objeto em si mesmo considerado, mas à

ideia a ele atribuível. Desse modo, todo termo pressupõe um conceito já

reconhecido uniformemente por uma determinada comunidade linguística. Do

contrário, caso ignoto o conceito, o processo comunicacional restaria prejudicado,

justamente em razão da impossibilidade de construir e transmitir mensagens.

58. Não é diferente no campo do direito positivo, o qual se manifesta e se constitui

pela linguagem. Toda palavra utilizada na produção dos textos jurídicos designa

algo e possui um significado, segundo determinados critérios. Pressupor um

conceito jurídico, convencionalmente estabelecido, é condição necessária para a

aplicação das normas jurídicas com um mínimo de certeza e segurança. Se os

termos jurídicos fossem desprovidos de sentidos, os vocábulos empregados pelo

legislador consubstanciariam meros “ruídos”, sem qualquer direção semântica, o

que tornaria a comunicação jurídica inviável.

59. A definição consiste na delimitação explicativa acerca do conceito formulado, com

o fim de solucionar ambiguidades e reduzir vaguidades. É demarcar com palavras

o que se entende pelo conceito, enunciando os critérios necessários e suficientes

para ajustar determinado objeto a uma classe. Ao delimitar em vocábulos a ideia,

indicando seus caracteres fundamentais, identifica-se melhor o uso do termo

dentro do contexto, o qual há de ser respeitado do início ao fim do discurso.

60. Na seara do conhecimento jurídico, as definições são efetuadas pela (i) linguagem

do sistema do direito positivo, condicionando e dirigindo a atividade do intérprete

na construção das normas jurídicas, e pela (ii) linguagem da Ciência do Direito,

transmitindo conhecimento e informações sobre as normas jurídicas. Definidos os

conceitos prescritivos pelo jurista ter-se-á Ciência do Direito; pelo aplicador

competente, direito positivo.

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61. Dentre as formas de delimitar o espectro de aplicabilidade de um conceito, tem-se:

(i) a conotação (intensão), por meio da qual enumeram-se os critérios de uso de

uma palavra, indicando suas características comuns que permitem inserir

determinados objetos sob o manto de um mesmo termo/conceito, e (ii) a denotação

(extensão), enunciando-se os objetos particulares – indivíduos ou membros -

nominados pelo termo.

62. No âmbito do direito positivo, o uso das definições conotativas transparece já no

ato de propositura das leis, com a edição de normas gerais e abstratas para regular

determinadas condutas, as quais, por possuírem maior extensão conceptual,

permitem albergar as oscilações irrepetíveis e inesgotáveis dos eventos verificados

no plano concreto.

63. Dado que a realidade jurídica é linguística, conformada pelos enunciados válidos

introduzidos pelos órgãos competentes, qualquer intérprete – jurista, aplicador ou

profissional do direito – que se propõe a investigar, estudar e interpretar o direito

tem que recorrer ao manuseio dos textos jurídicos, que é apenas o ponto de partida,

a instância material, para o desenvolvimento hermenêutico, pressupondo todo

texto um sistema de referência que lhe seja subjacente, já que não há texto sem

contexto.

64. Na difícil tarefa de atribuir sentido aos textos jurídicos, sobressaem dois axiomas

inerentes à interpretação: (i) a intertextualidade, que corresponde à natureza

dialógica dos textos, pois todo enunciado parte de outro enunciado – daí porque,

para apreender o sentido de um texto, não basta considerá-lo de forma isolada, mas

inserido na integralidade contextual linguística onde se realiza a atividade

hermenêutica; e (ii) a inesgotabilidade, que corresponde ao caráter infinito de que

é provida a trajetória da interpretação, de tal sorte que os textos jurídicos estão

sempre sujeitos ao processo interpretativo, motivado pelas alterações sociais e

temporais que sofrem os seres humanos e transformam os planos semânticos e

pragmáticos em que estão inseridos.

65. A linguagem do direito positivo como texto apresenta duas formas de interação

textual: (i) a intertextualidade interna ou intrajurídica, em que o intercâmbio de

comunicações é intrassistêmico, em que as conversas são estabelecidas entre as

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unidades normativas advindas dos vários ramos do direito posto; e (ii) a

intertextualidade externa ou extrajurídica, em que o sistema do direito positivo

relaciona-se cognoscitivamente com outros sistemas (social, econômico, político,

científico, etc.), firmando conversas extrassistêmicas.

66. Nesse intenso dialogismo linguístico de que participam os enunciados jurídicos,

os conceitos e as definições não circulam livremente, senão pelo imperioso

caminho da recepção pela linguagem do direito positivo: somente interessa ao

direito aquilo que for vertido em linguagem prescritiva, a qual colhe da linguagem

social, contábil, financeira, dentre outras, os conceitos de fatos que reputa

relevantes para compor os enunciados prescritivos e definir hipóteses normativas.

67. O aplicador do direito, na qualidade de intérprete que detém a competência para

dizer o direito, para definir conceitos jurídicos, conferindo concretude ao processo

de positivação das normas jurídicas, assume papel de vital importância, pois é ele

quem imprime o tratamento jurídico atualizado à conjuntura das condutas

reguladas, numa construção contínua de normas jurídicas, positivando novos

enunciados e ampliando a realidade jurídica.

68. Afirmar, contudo, que os sentidos jurídicos são construídos pelo intérprete,

suportando o processo interpretativo os predicados da inesgotabilidade e da

intertextualidade, não implica ausência de limites na atividade hermenêutica da

linguagem do direito positivo. A tomada de decisões pelo aplicador do direito por

uma definição jurídica em detrimento das demais há sempre de considerar os

limites textuais e contextuais impostos pelo ordenamento, articulando as normas

em harmonia com as diretrizes do sistema do direito positivo, sendo-lhe vedado

desprezar a hierarquia sistêmica, a pragmática legislativa e jurisprudencial, bem

como embrenhar-se em planos linguísticos alheios ao direito.

69. As relações pragmáticas, que interferem no processo comunicacional-jurídico, são

fundamentais para a demarcação dos limites da interpretação pelo aplicador. Deve-

se levar em conta as formas de uso dos termos jurídicos dentro do contexto do

direito positivo, reduzindo as variantes semânticas dos vocábulos e palavras

positivadas. É no próprio contexto jurídico, resultante do complexo prescritivo

sedimentado pelos participantes do sistema jurídico – legisladores,

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administradores e julgadores –, que o aplicador do direito deve, acima de tudo,

considerar os conceitos e respectivas definições utilizadas.

70. O art. 110 do CTN, ao proibir que o legislador tributário altere formas e institutos

de direito privado incorporados pelo direito constitucional, reconhece

expressamente o influxo de usos linguísticos jurídicos na construção dos sentidos

dos termos enunciados na outorga das competências impositivas pelo constituinte.

Não se trata de um reconhecimento da prevalência do direito privado sobre o

direito tributário, mas de prevalência do próprio direito constitucional que

imprimiu uma repartição de competências rígida, relacionando formas de atos e

negócios jurídicos emanados da autonomia privada que poderão compor as

hipóteses de incidência dos impostos e, assim, justificar a imposição de obrigações

fiscais. Assim, não dispondo constituinte de forma diversa ao enunciar termos

próprios do direito privado na outorga de competências tributárias, presume-se a

recepção tácita do respectivo conceito preexistente naquele ramo jurídico. Enfim,

não é apenas um reconhecimento da intertextualidade, mas a afirmação de uma

intertextualidade hierarquizada.

71. O abandono completo desse intercâmbio terminológico-conceitual intrassistêmico

incentiva modelos interpretativos com viés econômico ou teleológico, sustentados

na capacidade contributiva e na justiça fiscal, a adoção casuística e extremamente

subjetiva de critérios para definir materialidades tributárias, resultando na

aplicação de analogias no âmbito da fenomenologia da incidência tributária, a

desserviço da rígida discriminação de competências impositivas e dos princípios

constitucionais tributários. Sem dúvida, reinaria a insegurança jurídica se a

presunção fosse para que cada termo, introduzido pelo legislador e válido no

sistema, recebesse um significado próprio tendo em conta apenas o contexto

jurídico específico de que faz parte, olvidando a integralidade contextual do direito

positivo.

72. No art. 146, o legislador constitucional elegeu normas de caráter nacional,

veiculadas por lei complementar, com o objetivo de minuir dubiedades acerca dos

campos possíveis das incidências tributárias. No cumprimento desse relevante

papel institucional de prevenir conflitos de competência tributária entre as pessoas

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políticas, a lei complementar contribui para o processo de elucidação dos conceitos

constitucionais de forma mais uniforme, vinculando as prerrogativas legislativas

ordinárias na criação de impostos federais, estaduais e municipais.

73. Contudo, a fim de superar as insuficiências intelectivas do texto constitucional não

é dado à lei complementar redesenhar o quadro de aptidões da União, dos Estados,

dos Municípios e do Distrito Federal, submetendo-se ao comando do Supremo

Tribunal Federal que age para preservar a rigorosa discriminação de competências

impositivas, afastando qualquer extrapolação na atividade de interpretar e aplicar

a Carta Maior.

74. Na finalização desse capítulo, com ênfase na observância dos conceitos

constitucionais como limites à produção normativa infraconstitucional, traçamos

as seguintes reflexões conclusivas sobre o equilíbrio entre a rigidez na

discriminação das competências impositivas e a evolução interpretativa na

aplicação do direito tributário: (i) ao repartir as aptidões para criar impostos, o

constituinte enuncia termos e expressões, designativos de conceitos sedimentados,

de tempo em tempo, pelos utentes da linguagem jurídica; (ii) representativos de

um conteúdo para referenciar determinada categoria de fatos, os conceitos

constitucionais, dotados de propriedades necessárias e uniformes, são

indispensáveis à própria mecânica subsuntiva do direito e vão ao encontro da

estrutura rígida procedida pelo constituinte na repartição das competências

impositivas, tolhendo a formulação de sentidos altamente variados pelo aplicador

do direito; (iii) a despeito da perene e inesgotável construção significativa dos

textos positivados, especificamente no campo do direito tributário, para o qual

optou-se por uma minudente disciplina jurídica no altiplano supremo do

ordenamento, a atualização interpretativa encontra restrita aplicabilidade; (iv)

vicissitudes dos usos linguísticos gerais decorrentes do progresso econômico-

social e novas concepções significativas no direito privado somente repercutirão

na esfera das competências se em consonância com a dimensão semântica das

porções distributivas para instituir impostos; (v) do contrário, no intento de

redesenhar o perfil jurídico de gravames fiscais, não só a competência residual

perderia sua razão de estar contemplada no art. 154, I, como todo o esquema textual

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discriminativo das competências estaria comprometido, restando inócuas as

disposições postas na Carta de 1988; e, por fim, (v) caso adotado um novo conceito

constitucional, pois assim admitido pelo contexto normativo constitucional, a nova

exegese reivindicaria o respeito ao cânone da legalidade, da tipicidade e da

segurança jurídica, assegurando ao contribuinte prever os efeitos jurídicos das

inovações interpretativas.

2 O CRITÉRIO MATERIAL DAS REGRAS-MATRIZES DE INCIDÊNCIA DO

ICMS-MERCADORIA E DO ISS

75. Definimos norma jurídica (i) em sentido amplo, que compreende tanto os

enunciados prescritivos quanto as proposições jurídicas, como também as

significações com estrutura lógica de um juízo hipotético-condicional; e (ii) em

sentido estrito, consistente nestas últimas significações de sentido deôntico

completo, em cujo antecedente (hipótese) tem-se a proposição de natureza

descritiva, apontando as propriedades do enunciado factual, às quais deve atender

o evento do plano concreto, e, no consequente (tese), localiza-se a proposição de

natureza prescritiva, definindo, conotativamente, os critérios para a identificação

da relação jurídica.

76. Desmembrada a regra-matriz de incidência tributária, que dispõe sobre a

instituição de tributos, encontramos, na sua hipótese normativa, a descrição de um

comportamento humano (critério material), condicionado num determinado

intervalo de tempo (critério temporal) e de espaço (critério espacial), e, na sua

tese, a prescrição de um vínculo jurídico conectando o sujeito ativo e o sujeito

passivo (critério pessoal) em torno da prestação pecuniária (critério quantitativo).

Os critérios presentes na hipótese e na consequência reúnem o quantum de

enunciados prescritivos indispensáveis para a compreensão plena da mensagem

jurídica.

77. A regra-matriz de incidência tributária traduz expediente metódico essencial para

a aproximação do ser cognoscente com o fenômeno jurídico, favorecendo sua

fórmula a compreensão dos elementos atinentes à incidência normativa fiscal.

Dentre as suas funções operacionais: (i) facilita ao intérprete determinar com

precisão o campo de extensão dos conceitos conotativos do fato hipoteticamente

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previsto e da relação a ser instaurada juridicamente, identificando o âmbito de

incidência normativa; e decorrente da primeira, (ii) controla o ciclo de positivação

para apurar eventual constitucionalidade e/ou legalidade da norma. Isso porque,

preenchido o conteúdo da sua estrutura lógica, incumbe ao exegeta investigar,

primeiro, se a linguagem do legislador, produzida para a instituição da própria

norma-padrão de incidência, guarda consonância com as normas superiores, e,

segundo, se a norma individual e concreta produzida está de acordo com a regra-

matriz de incidência que lhe serve de fundamento.

78. Com enfoque na hipótese normativa e abstraindo as condicionantes de tempo e

espaço eleitas para a realização do evento tributário, restringimos nossos estudos

ao critério material que traz a descrição do comportamento humano, compondo-se

de (i) um verbo, que exprime a ação ou o estado da pessoa, (ii) seguido de seu

complemento, adjetivando o proceder humano.

79. Para compor o núcleo factual das respectivas hipóteses tributárias, verificamos que

o constituinte elege acontecimentos econômicos relacionados aos particulares,

desmembrados em (i) “tipos estruturais”, quando a competência é para tributar um

fato sem relação a um instituto do direito privado, e (ii) “tipos funcionais”, quando

na hipótese normativa insere-se formas e atos de direito privado.

80. No ICMS-M, o núcleo factual da hipótese encerra uma obrigação de dar,

representado pelo verbo “realizar” acompanhado de seu complemento “operações

relativas à circulação de mercadorias”. Referido objeto direto revela os dados

essenciais para a compreensão do pressuposto normativo da incidência deste

imposto estadual: (i) operações, (ii) circulação e (iii) mercadorias.

81. No contexto constitucional, o vocábulo central operações há de ser interpretado

como “operações jurídicas”, isto é, como negócios jurídicos de substrato

econômico que criam, conservam, modificam ou extinguem direitos. Isso porque,

quando o constituinte positivou a palavra “operações”, quis conferir um sentido

diverso que assumiria a hipótese de incidência do ICMS-M com o emprego apenas

do termo “circulação”, o que implicaria alcançar qualquer atividade circulatória,

que destine mercadoria da fonte de produção até o consumo final,

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independentemente de uma prática negocial prévia voltada para realizar o evento

econômico.

82. Para fins de tributação do ICMS-M, a circulação constitucionalmente prevista é a

de feição jurídica direcionada a ajuste próprio, que é o negócio translativo de

propriedade sobre a mercadoria, outorgando ao transmitido o poder de domínio

sobre ela.

83. Quanto à noção de “mercadoria” na compreensão do texto constitucional, vimos

que a destinação comercial e a corporabilidade do bem móvel são atributos

essenciais para a qualificação de um bem como mercadoria.

84. A finalidade de mercancia é qualificativo extrínseco do bem “mercadoria”

confirmado não só por acepções etimológicas e lexicais, mas também pelas formas

de uso empregadas no âmbito de direito privado e na esfera jurisprudencial: todos

esses contextos linguísticos convergem para caracterizar mercadoria como bem

produzido ou adquirido para ser posto em processo de circulação comercial, para

ser (re)vendido com intuito de lucro, até chegar ao consumo.

85. A corporabilidade, por sua vez, inferimos da própria interpretação sistemática da

Constituição, que empregou o termo “mercadoria” na acepção estrita do direito

privado, para tão somente designar os bens móveis materiais, de existência física

autônoma, contrapondo-se à significação ampla que incluía, nos termos do Código

Comercial de 1850, vigente à época da promulgação da CR/88, os títulos ou

documentos nos quais se incorporam créditos, direitos e valores em geral.

86. A opção do constituinte pelo conceito de direito privado em seu sentido mais

estreito, para fins de exigência do ICMS-M, restou confirmada a partir das

seguintes assertivas: (i) a Carta Republicana prevê hipóteses de incidências

distintas de impostos conforme a categoria econômica de produção de riquezas,

inexistindo um regime geral ou único de tributação para a atividade empresarial

produtiva e circulatória de bens e serviços, sendo que, em determinadas exações,

exigiu que o fato econômico seja revestido de forma jurídica particular; (ii) essa

coexistência de regimes tributários distintos para onerar específicos signos

presuntivos de riqueza não só se afere das materialidades já expressamente

incluídas nas faixas competenciais dispostas nos arts. 153, 155 e 156, mas da

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previsão de uma competência residual em favor da União para instituir impostos

sobre atividades econômicas não contempladas pelo constituinte; (iii) o art. 153,

inciso V, ao atribuir a competência à União para tributar operações financeiras,

suprimiu do espectro semântico de “mercadoria”, a moeda nacional e estrangeira,

as ações, as debêntures e demais títulos ou papeis que neles se incorporam créditos

representativos de direitos patrimoniais, evidenciando que a materialidade do

ICMS-M não comporta qualquer tipo de operação de circulação, mas aquela

relativa a bens móveis corpóreos; (iv) o próprio STF assinalou que o ouro como

insumo industrial, em estado natural, está sujeito ao ICMS-M, enquanto que o ouro

como ativo financeiro, expressivo de direitos a valores e créditos, negociado em

mercado próprio, está sujeito ao IOF; e, por fim, (v) a ressalva expressa no art.

155, §3º, dispondo o constituinte, em enunciado outro e específico, sobre a

incidência do imposto estadual na circulação de energia só vem a certificar a

compreensão de mercadoria como dotada de corporabilidade.

87. Preenchendo o critério material do ISS com a linguagem do direito positivo, o

comportamento constitucionalmente previsto para compor o miolo do seu

antecedente normativo consiste em “prestar (verbo) serviços de qualquer natureza

(complemento)”.

88. Do conjunto de serviços prestados na realidade social, a linguagem do direito

positivo colhe parte deles para integrar o antecedente da norma-padrão deste

imposto: é serviço tributável pelo ISS a atividade economicamente mensurável,

desenvolvida em favor de outrem, sem subordinação e sob o regime de direito

privado, excetuada do âmbito de competência dos Estados e do Distrito Federal.

89. A fim de circunscrever os fatos abrangidos pela competência dos Municípios para

criar o ISS, o constituinte reportou-se de forma expressa ao termo “serviço”,

tipicamente alusivo ao direito privado. E sem fazer menção distinta do vocábulo

para disciplinar a faixa municipal, aceitou o uso linguístico do termo encontrado

originariamente naquela seara jurídica.

90. Mediante a incursão no plano jurídico-privado, investigando as prescrições do

CC/2002, e também do antigo CC/1916 vigente em 1988, vimos que serviço

pressupõe uma obrigação de fazer: o prestador, por meio de um esforço físico ou

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intelectual, compromete-se a executar algo antes inexistente, segundo

especificações convencionadas com o tomador do serviço. Na relação contratual

firmada entre tomador e prestador, para fins de incidência do ISS, o fazer algo há

de ser o objeto precípuo acordado pelas partes. Eventual dar é simples

consequência de um fazer personalizado, contratado previamente.

91. A tributação pelo ISS está condicionada à realização de um esforço humano

enquanto prestação-fim do acordo celebrado entre as partes, sendo que eventuais

ações-meios – de fazer ou de dar –, necessárias para concluir a ação-fim e, por

isso, indissociáveis do contratado e cujos custos agregam ao preço final, não são

consideradas como atividades autônomas para efeito de aplicação do ISS ou de

outro tributo. Quis-se com isso explicitar que, nas operações complexas,

entrelaçando-se dar e fazer de forma indissociável, é a preponderância de um ou

de outro, reveladora da atividade-fim convencionada pelas partes, que servirá

como substrato fático para a exigência fiscal. Somente nas hipóteses em que

imperar o fazer, incidirá o ISS.

92. Ademais, a Constituição de 1988 exigiu expressamente que os serviços englobados

na competência dos entes municipais sejam definidos em lei complementar, sendo,

porém, vedado ao legislador nacional, incluir atividades estranhas ao conceito

constitucional de serviço, sob pena de modificar as faixas competenciais,

subvertendo a estrutura hierárquica do ordenamento jurídico.

93. Em suma, na configuração constitucional do critério material do ISS, consistente

em “prestar serviços de qualquer natureza”, concluímos que são fatos tributáveis

por esse imposto municipal as atividades (i) com conteúdo econômico que

representam (ii) um esforço humano, físico ou intelectual, desenvolvido (iii) sem

subordinação e (iv) sob o regime de direito privado, conferindo (v) uma utilidade

material ou imaterial em favor de terceiro, desde que tais atividades estejam (vi)

definidas em lei complementar, (vii) excetuadas da competência dos Estados e do

Distrito Federal e (viii) representem a prestação-fim objetivada no contrato

celebrado entre tomador e prestador.

94. Ao fragmentar a tributação das manifestações de riqueza, a distinção entre

obrigações de dar e de fazer e sua preponderância nas relações contratuais

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mostram-se como critérios jurídicos eficientes para definir a persecução do ICMS-

M e do ISS. Por conferirem importância aos conceitos constitucionais, tais critérios

devem prevalecer diante de soluções interpretativas desprovidas de força jurídica

para revelar a natureza peculiar de uma exação fiscal, tais como expedientes

exegéticos baseados na interpretação econômica dos fatos, na aplicação isolada e

estrita da lei complementar e na necessidade de adaptar as normas jurídicas ao

progresso socioeconômico, desprezando-se a dimensão semântica permitida pelas

faixas de competência tributária.

PARTE 3 – A TRIBUTAÇÃO PELO ICMS-M E PELO ISS SOBRE A

LICENÇA DE USO DE SOFTWARE DISPONIBILIZADO

ELETRONICAMENTE

2 A PRAGMÁTICA REVELANDO A COMPLEXIDADE DO TEMA

“TRIBUTAÇÃO DE SOFTWARE”)

95. Para efeito de conclusão sobre o cenário jurisprudencial no âmbito dos Tribunais

Superiores, importa mencionar as decisões proferidas no Recurso Extraordinário

nº 176.626-3 e na ADI 1.945/MC, as quais adotaram critérios e premissas distintas

para definir sobre a incidência do ICMS-M no licenciamento de uso de software

padronizado.

96. O Recurso Extraordinário nº 176.626 cuidou de examinar os negócios jurídicos

envolvendo os denominados softwares de prateleira. Com a relatoria do Ministro

Sepúlveda Pertence, nele foi adotada a classificação proposta por Rui Saavedra

para distinguir os programas de computador em: (i) software de prateleira

(padronizado), produzido em série para ser comercializado no varejo a uma

pluralidade de utilizadores; (ii) software por encomenda, desenvolvido para

atender às necessidades específicas de determinado usuário; e (iii) software

adaptado (customizado), caracterizado como uma forma híbrida dos anteriores,

que se baseia em programa padronizado, porém é modificado para se adequar às

necessidades de um cliente em particular.

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97. Relativamente ao software de prateleira, concluiu o STF no julgamento desse

recurso que: SE (i) o software é bem intelectual, de feição incorpórea, que não se

enquadra no conceito de mercadoria; e (ii) a licença figura como forma contratual

de conceder a terceiros o direito de usufruir da obra intelectual “software”;

ENTÃO (iii) o ICMS-M apenas deve incidir sobre as “manifestações físicas” do

software, já que somente o suporte material que o contém é capaz de ser objeto de

operação de circulação mercantil.

98. Este julgado do STF empenhou-se em eleger premissas consentâneas com o

arquétipo constitucional do ICMS-M, na medida em que solucionou a controvérsia

assente na precisão do conceito de mercadoria e nas características da forma

jurídica empregada para explorar economicamente o software – a licença de uso –

, comparando-a com o tipo estrutural contemplado no critério material deste

imposto.

99. Na ADI nº 1.945 está em exame a constitucionalidade da tributação, pelo ICMS-

M, nas transações eletrônicas com programas de computador padronizados,

realizadas no ambiente da Internet. Na ocasião da apreciação da medida cautelar

formulada, a Corte sinalizou uma possível mutação do conceito constitucional de

mercadoria, para admitir, em juízo preliminar, a incidência do ICMS-M nessas

hipóteses. Registrou a irrelevância de o bem móvel negociado não corresponder a

bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito e que, seja por meio de suporte

físico (DVD, CD etc.) ou mediante download, adquire-se “o que se contém dento

do disquete ou aquilo que é transmitido pela Internet”, concluindo que “a

comercialização ou a circulação passa a ocorrer por via eletrônica”. Para tanto,

fundamentou que o “Tribunal não pode se furtar a abarcar as situações novas,

consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não

são mais totalmente corretas” diante dos novos tempos”.

100. O entendimento na ADI não levou em conta os fundamentos jurídicos

desenvolvidos no julgamento do RE nº 176.626, desconsiderando, portanto, a

natureza jurídica do software enquanto obra intelectual que, licenciada, mostra-se

absolutamente incompatível com qualquer ato de compra e venda mercantil.

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101. Ao investigarmos como as autoridades competentes têm interpretado e aplicado a

linguagem jurídica do ICMS-M e do ISS sobre o licenciamento de uso de software,

pudemos constatar o seguinte cenário:

101.1 esfera estadual: com a edição dos Decretos nºs 61.522/2015 e 61.719/2016, o

Estado de São Paulo pretendeu exigir o ICMS-M nos negócios com softwares

disponibilizados através da Internet; nos termos da Resposta à Consulta

Tributaria nº 5285, de 25/05/2015, entende o Fisco paulista que essas atividades

inserem-se no campo constitucional da incidência do ICMS, uma vez que (a)

“mercadoria” abrange qualquer objeto disponibilizado no mercado,

caracterizando-se operação relativa à circulação de mercadoria aquela inserida

no ciclo mercantil que destina bens, ainda que imateriais, da produção ao

consumo, mediante a agregação do valor econômico, e (b) à luz da capacidade

contributiva e do princípio da isonomia, nenhum privilégio pode ser concedido

a um comerciante que “venda” programa de computador pela internet em

relação ao que os “vende” em lojas, já que ambas as operações têm a mesma

utilidade de mercadoria.

101.2 esfera municipal: sem distinguir transações físicas e eletrônicas com softwares,

o Município de São Paulo tem entendido que, nos licenciamentos de uso, está o

contribuinte obrigado a efetuar o recolhimento do ISS sobre o preço estipulado

e cumprir os correspondentes deveres instrumentais, já que concerne à serviço

previsto no item 1.05 da Lista Anexa à Lei Municipal nº 13.701/2006, que não

se confunde com locação de bens móveis.

102. À vista desse panorama pragmático, constatou-se que, num sistema em que

convivem entes dotados de autonomia legislativa, financeira, administrativa e

política, influenciados por uma textura social em constante evolução, vivemos hoje

o reino da incerteza jurídica em matéria de tributação de software. Em detrimento

do contribuinte, edificam-se pretensões fazendárias, que se valem da interpretação

da lei e da oscilação jurisprudencial, para acomodar seus interesses arrecadatórios

às novas formas de negócios tecnológicos, olvidando-se dos conceitos empregados

pelo constituinte na rígida e minudente distribuição das competências tributárias.

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103. No conceito de mercadoria incorporado pela Constituição de 1988, estão excluídos

os programas de computador. Ainda que softwares sejam explorados

economicamente com intuito de lucro, os negócios que os têm como objeto não se

identificam, nos quadrantes do direito, como típicos atos de mercancia. E, acima

de tudo, falta-lhes a indispensável natureza corpórea.

104. Com base nos arts. 1º e 2º da Lei nº 9.609/08, o software traduz (i) um bem

imaterial consistente num conjunto de instruções, organizado em linguagem

própria (código fonte e código objeto) e destinado a habilitar o hardware para

processar informações, executar determinadas funções e tarefas, com vistas a

atender as necessidades do usuário do computador; e (ii) essa sequência lógica de

comandos, fruto do espírito criativo humano, corresponde à obra intelectual

protegida pelos direitos do autor.

105. Enquanto obra intelectual amparada pelo direito autoral, as formas jurídicas para

explorar economicamente o software encontram-se previstas em legislação

específica concernente à proteção jurídica dos programas de computador (Lei nº

9.609∕98) e aos direitos autorais (Lei nº 9.610∕98), sendo que todas elas são

incompatíveis com típica atividade mercantil. O titular de um programa de

computador não o elabora com a intenção de inseri-lo em circulação comercial

para ser trocado ou vendido.

106. Ainda que superado o critério da corporabilidade, a exploração econômica do

software mediante o licenciamento de seu uso distancia-se de um negócio jurídico

translativo de propriedade, forma jurídica eleita pelo constituinte para que reste

autorizada a cobrança do ICMS-M: tanto nas licenças com suporte físico como via

contratação eletrônica, o detentor dos respectivos direitos patrimoniais concede

apenas uma autorização em favor do licenciado para utilizar o programa sob

determinadas condições, estipulando os termos de utilização, tais como prazo,

número de cópias e restrições a modificações.

107. É equivocado afirmar que programas de computador disponibilizados através da

Internet, indistintamente para vários usuários de forma uniforme, estão sujeitos ao

ICMS-M, tendo em vista o entendimento firmado no RE nº 176.626 a favor da

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tributação do “software de prateleira”. Tal conclusão apressada olvida da

singularidade afeta à realidade tecnológica contextualizada naqueles autos que

levou o Supremo a chancelar a incidência do ICMS-M, qual seja: a existência

efetiva de circulação de um bem corpóreo (o suporte físico que contém o programa

de computador).

108. Em suma, a mera concessão do direito de utilização do software constitui um

obstáculo à assimilação da licença de uso a um negócio jurídico de compra e venda

mercantil, pois, frise-se: (i) o programa de computador é um bem intelectual,

desprovido de corporabilidade, tutelável pelos direitos do autor, não se

subsumindo ao conceito de mercadoria; e (ii) no licenciamento de uso inexiste

negócio translativo da propriedade intelectual do software, porquanto não é

transferido o conjunto de faculdades patrimoniais relativas ao domínio do

programa (uso, gozo e disponibilidade).

109. Relativamente ao ISS, na tarefa de contribuir com as feições do seu critério

material, o legislador complementar definiu como atividade tributável o

“licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”,

incluindo-o no item 1.05 do rol de serviços constante da Lista Anexa à Lei

Complementar nº 116/2003.

110. Não caminhou bem o legislador ao qualificar como serviço a concessão do direito

autoral de uso do software, justamente porque trata-se de negócio jurídico

caracterizado como obrigação de dar. Quando o usuário do computador realiza um

download, aceitando os termos de adesão à licença de uso, sem prévia estipulação

de cláusulas entre as partes, o licenciante obriga-se a disponibilizar um software já

existente em favor do licenciado, que irá utilizá-lo dentro dos limites autorizados.

111. Ainda que os programas de computador exprimam um esforço intelectual, no

licenciamento de uso de software esse fazer humano não é o objetivado no

contrato. O licenciante não se obriga, segundo especificações e necessidades do

licenciado, a elaborar um software, que vá resultar num dar.

112. É nos contratos de desenvolvimento de software que o bem material advindo é

personalizado, decorrente de um esforço humano objetivado no contrato. A

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atividade de criação de um software sob encomenda é o suporte fático que se ajusta

ao conceito constitucional de serviço, inclusive está prevista no item 1.04 do rol

de serviços em categoria distinta da licença de uso.

113. Tal como na modalidade Software as a Product, também no formato Software as

a Service contrata-se a utilização de um programa de computador. A diferença

consiste no fato de que o uso do SaaS é disponibilizado numa infraestrutura de

nuvem, possibilitando ao licenciado o acesso ao software de qualquer lugar, a

qualquer momento, desde que manuseie um computador conectado à Internet.

114. Por ser executado na nuvem, à utilização do SaaS agregam-se soluções

tecnológicas que lhe são subjacentes, tais como manutenção (correções,

atualizações, melhorias etc.), processamento e armazenamento de dados, cuja

oferta irá variar em função do quanto o programa dependa da infraestrutura da

cloud.

115. No complexo ajuste volitivo do tipo SaaS, o escopo contratual preponderante -

pertinente à concessão de uso do programa de computador - e os demais elementos

negociais - relacionados aos recursos informáticos e soluções tecnológicas,

necessárias para viabilizar o uso do programa a partir de qualquer dispositivo

conectado à Internet - conformam-se, respectivamente, às noções de atividade-fim

e atividade-meio.

116. Portanto, (i) se na estrutura negocial complexa do SaaS, a reunião e a conjugação

de diferentes soluções tecnológicas (atividades-meio) visa à utilização do software

de qualquer lugar e a qualquer hora (atividade-fim), dentro das limitações impostas

pela licença de uso; e (ii) a atividade de licença de uso de software não se subsome

ao conceito constitucional de serviços tributáveis pelo ISS, (iii) então forçoso

concluir que também o licenciamento na modalidade Software as a Service não

está submetido à tributação do ISS.

117. E mesmo que fosse admitido o desdobramento dessa estrutura negocial para fazer

valer as atividades-meio na qualificação jurídica do fato, as soluções tecnológicas

oferecidas no licenciamento de uso de SaaS afastam-se da configuração

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constitucional de serviço, uma vez que não traduzem um fazer pela via direta

humana segundo especificações avençadas entre licenciante e licenciado.

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REFERÊNCIAS

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