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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Camila Young da Silva O Psicólogo no terceiro setor: os sentidos do trabalho no enfrentamento à desigualdade social MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2011

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

PUC-SP

Camila Young da Silva

O Psiclogo no terceiro setor: os sentidos do trabalho no enfrentamento desigualdade

social

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SO PAULO

2011

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

PUC-SP

Camila Young da Silva

O psiclogo no terceiro setor: os sentidos do trabalho no enfrentamento desigualdade

social

Dissertao apresentada Banca Examinadora da

Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como

exigncia parcial para obteno do ttulo de

MESTRE em Psicologia Social, sob a orientao da

Profa. Dra. Bader Burihan Sawaia.

SO PAULO

2011

Banca Examinadora

_______________________________________________

_______________________________________________

_______________________________________________

Agradecimentos

Inicio este relato agradecendo as pessoas mais importantes da minha vida, minha

famlia. Meus Pais, por me apoiar, no s emocionalmente com afetos e palavras de incentivo,

mas por participarem ativamente desta realizao, me acompanhando nas viagens a So Paulo

para facilitar processos, me convidando para almoar para que eu no desviasse o foco da

pesquisa, enfim, por fazerem tudo para me ajudar.

Aos meus irmos, Elaine e Felipe e cunhado Alan, por me incentivar nesta escolha e

compartilharem comigo os momentos de prazer, que alternavam com momentos de escrita.

Momentos muito atribulados, que s queria estar com eles.

E, em especial, meu marido Rodrigo, que tambm teve uma participao ativa neste

trabalho, fazendo revises, sugestes e me acompanhando nas viagens a So Paulo. Mas

agradeo voc meu amor, principalmente, por ser meu companheiro fiel, por me acalmar nos

momentos de angstia, por me tirar do caos e indicar caminhos, por ter muita pacincia, por

ficar quietinho ao meu lado sem emitir rudos para no me atrapalhar, mas me dando o

conforto da sua presena.

Sem vocs isto no seria possvel, amo vocs!

Estou muito agradecida a Carol e a Carla, minhas amigas queridas de So Paulo, que

abriram a porta de sua casa no s para me hospedar, mas para me acolher. Agradeo a vocs

pelas nossas conversas, que foram desde bate-papos descontrados e deliciosos at discusses

profundas referentes pesquisa. Agradeo a vocs pelo meu aniversrio de 30 anos que fomos

comemorar em um restaurante japons, que delcia que foi aquela noite.

Bianca, amiga querida de So Paulo, que estava sempre disposio quando

precisava.

Aos meus amigos muito queridos de So Jos dos Campos, Denise, Aninha, Renata,

Camila (Zizi), Ivanice e Carol sempre acolhedores, compreensivos com a minha ausncia e

falta de disponibilidade e atentos a minha proposta me enviando textos referentes ao assunto

de pesquisa.

Ao Marcelo, pessoa que admiro muito e tive o prazer de conhecer atravs do meu

marido. Presenteou-me com sua amizade e disponibilidade para fazer a reviso de portugus

de grande parte deste trabalho, fato que me deixou tranquila e segura em funo da sua

competncia.

Ana Corina, minha terapeuta, que estimulou o sonho do mestrado e ajudou a

concretiz-lo me apresentando uma amiga que se prontificou a discutir o projeto de pesquisa

enviado para o processo seletivo da PUC-SP. Agradeo tambm, a esta amiga, conhecida

como Mabel.

Ceclia Pesactore, professora da graduao com quem entrei em contato quando

decidi ingressar no mestrado e pude contar com todo o seu apoio.

todos do NEXIN, ncleo de pesquisa do qual fao parte e pretendo manter minha

atuao, em especial aos amigos que me proporcionaram encontros de muita potencializao:

Cecle, Poliana, Patrcia, Daniel, Luiz, Fabiana. Agradeo muito a Soraya, que nas nossas

viagens a So Paulo me proporcionou trocas extremamente relevantes para o amadurecimento

profissional, alm de momentos de risos e descontrao.

Agradeo especialmente minha orientadora Dr. Bader Sawaia, que conheci

inicialmente pelos livros e sempre admirei por suas idias, e depois tive o prazer de estar ao

seu lado durante dois anos aprendendo teorias e compartilhando afetos, como acolhimento,

gentileza e compreenso.

todos os professores da PUC-SP que contriburam de forma mpar com a minha

formao, em especial, ao professor Doutor Odair Furtado que contribuiu imensamente com

esta pesquisa participando da Banca de Qualificao e aceitou o convite para a Banca de

Defesa.

Ao professor Doutor Adalberto Botarelli que tambm contribuiu com reflexes acerca

deste trabalho por meio da Banca de Qualificao e que gentilmente aceitou o convite para

Defesa.

E por ltimo, agradeo as pessoas que viabilizaram a concretizao desta idia, as

instituies e profissionais que aceitaram participar deste estudo.

Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo analisar os sentidos implicados na atuao e relao

profissional do psiclogo inserido no terceiro setor com a instituio, a equipe e a populao

atendida, com a finalidade de investigar aspectos que fortalecem e dificultam suas aes no

enfrentamento das desigualdades sociais. Trata-se de um estudo qualitativo, embasado nos

pressupostos terico-metodolgicos da Psicologia Social Crtica desenvolvidos por Vigotski e

ampliados pelos estudos desenvolvidos pelo Ncleo de Estudos em Excluso / Incluso

Social, em dilogo com a filosofia de Espinosa, especialmente suas reflexes sobre a

afetividade como tico-poltica. Como procedimento, optou-se pela a entrevista semidirigida

com o diretor, a assistente social e o psiclogo em duas instituies diferentes em relao

profissionalizao do trabalho. Uma, possui o trabalho estruturado com profissionais

contratados e, a outra, no tem trabalho estruturado e a maioria dos profissionais possui

vnculo voluntrio. A partir dos relatos produzidos pelos sujeitos, foi possvel desenhar

ncleos de significados e analisar, dentro deles, os afetos e as motivaes constituintes da

atuao e das relaes profissionais. A anlise teve como pano de fundo as determinaes

poltico-administrativas do terceiro setor no capitalismo e os limites da atuao do psiclogo

na poltica pblica. Os resultados apontam que as aes de enfrentamento desigualdade

social no campo do terceiro setor resultam em esvaziamento poltico, no qual prevalecem

prticas adaptativas que chegam prontas para a populao. Os afetos aparecem em prticas de

solidariedade e no como meio de ao poltica. Percebe-se que as aes dos psiclogos esto

distantes da interdisciplinaridade, da potencializao profissional e do fortalecimento da

populao. Dessa forma, consideram-se necessrias aes que abarquem o contexto social-

subjetivo e busquem novas formas de potencializar e inovar a prtica profissional. Conclui-se

com este estudo que as aes referentes s polticas pblicas no campo do terceiro setor se

apresentam limitadas aos entraves burocrticos e demais interesses polticos, pessoais e,

consequentemente, afastam-se do seu propsito de proporcionar um campo poltico

transformador.

Palavras-chave: Psicologia e Assistncia Social. Terceiro Setor. Psicologia Scio Histrica.

Afetividade. Subjetividade. Atuao do Psiclogo. Desigualdade Social.

Abstract

The objective of this study is to promote analyses regarding meanings relating to the

professional activities of psychologists working within their institutional environment, with

respect to teamwork and the population being cared for. The activities are performed in the

third sector, and it aims to investigate aspects which try to understand actions when

confronting social inequalities. It is a qualitative study, based on perspective assumptions of

Social Critical Psychology developed by Vigotski and followers. Followers include studies

developed by the Nucleus of Studies of the Dialetics within a framework using elements of

Espinosas philosophical ideas (particularly his reflections concerning the effectiveness of

political-ethics). A semi-driven interview with the director, the social assistant and the

psychologist was undertaken in two different institutions. The aim was to understand the level

of work professionalism. One institution was organized by having its work structured with

properly employed professionals while the other institution worked mainly with volunteers.

From the reports produced, it was possible to construct meaning levels (belief systems), and,

within this framework, consider motivations and emotional responses relating to the

professionals working in the above quoted institutions. The analysis considered the political

and managerial background of the third sector and the limits, possibilities and limitations of

the psychologist considering the established public policies which regulates activities in a

capitalist society. The results suggested that by confronting social inequalities, within the

third sector, a situation of political weakness is observed, where ready-made practices prevails

for dealing with day-to-day practices. Affection is perceived as solidarity practices and not as

a result of policy action (or political determination). It is possible to perceive that

psychologists actions are not performed as inter-disciplinary actions (weakening professional

effectiveness). In this way, actions are considered necessary to include the social (subjective)

context, and to find new ways to increase (with useful innovations) professional practices. It

can be concluded with this study, that actions of the third sector (performed within known

public policies), are being limited because of bureaucratic problems which arises as a result of

political and personal interests (not supposed to be present, but which unfortunately exist).

Key-words: Psychology and Social Assistance. Third Sector. Socio-Historic Psychology.

Affection. Subjectiveness. Psychologists work. Social Inequality.

Sumrio

Introduo (p. 09)

Captulo I: O Terceiro Setor (p.18)

1.1 - Da origem do termo a emergncia do terceiro setor no Brasil (p.18)

1.2 - Contexto social e poltico de fortalecimento do Terceiro Setor (p.25)

1.3 - Promessas e desafios deste Novo setor (p.36)

Captulo II: Fundamentao Terico-Metodolgica (p.42)

2.1 - Dos conceitos e categorias que embasaro a anlise (p.42)

2.2 Dos procedimentos metodolgicos (p.57)

Captulo III: Os Sentidos do Campo de Atuao (p.63)

3.1 - As instituies e profissionais participantes da pesquisa (p.63)

3.1.1 - A Cefel (p.63)

3.1.2 - A Girassol (p.69)

3.2 Os eixos de anlise e os ncleos (p.74)

3.2.1 - O campo poltico administrativo do terceiro setor (p.74)

3.2.2 - Potncia ou padecimento? (p.82)

3.2.3 - Voc tem Fome de Qu? O Encontro com a Necessidade da

Populao (p.98)

Captulo IV: Consideraes Finais (p.103)

Referncia Bibliogrfica (p.109)

Anexos (p. 114)

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Introduo

Este trabalho objetiva complementar um conjunto de pesquisas desenvolvidas pelo

Ncleo de Estudos da Dialtica da Excluso-Incluso (NEXIN), que logo abaixo

discutiremos, a fim de investigar como a psicologia tem contribudo no enfrentamento das

questes sociais, se esse locus de ao permite desenvolver aes potencializadoras do

enfrentamento da desigualdade, ou adaptadoras ao status quo (polticas compensatrias) e

quais categorias tericas e prticas os profissionais priorizam. Ou seja, investigar quais as

aes possveis dentro desta nova configurao de poltica pblica, o terceiro setor.

Tambm objetivo da pesquisa refletir sobre a forma como os profissionais que atuam

no enfrentamento desigualdade social lidam com a afetividade e o sofrimento, para

aprofundar as reflexes do NEXIN sobre o carter tico-poltico dessas dimenses

psicolgicas.

Para aquecer esta discusso vamos trilhar, inicialmente, por dois caminhos que se

cruzam: o percurso da profisso e a atuao do psiclogo.

Considerando o percurso histrico da profisso de psicologia, Bock (2009) nos chama

a ateno para pensarmos esta retrospectiva da atuao do psiclogo, levando em conta a

construo de uma psicologia marcada pelo compromisso com as elites, focada na

manuteno do controle, higienizao e categorizao. Foi com essa tradio que a psicologia

foi reconhecida como cincia no Brasil em 1962. Dessa maneira, a profisso se institui de

forma conservadora sem compromisso com projetos de transformao social.

Desde os primeiros estudos da profisso se observa a configurao de trs reas

consagradas: Clnica, Escolar e Organizacional. H 15 anos foi possvel observar a

permanncia dessa tendncia, numa pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Psicologia

de So Paulo, em 1995. Os dados mostraram que, dos 75% psiclogos que atuavam na

profisso, 54% estavam na rea clnica e, apenas, 5,48% na rea social. (BOCK, 2009)

Yamamoto (2009) descreve que a profisso comea a se redesenhar no perodo do

regime autocrtico burgus. O autor atribui tais mudanas aos seguintes vetores: a falncia do

modelo de profissional autnomo como consequncia da crise econmica do pas, a abertura

da atuao no campo do bem estar social em funo da transio democrtica e os embates

tericos ideolgicos rumo a uma redefinio da psicologia. Sendo assim, o autor destaca:

Intervir como profisso no terreno do bem-estar-social, portanto, remete a Psicologia

para ao nas sequelas da questo social, transformadas em polticas estatais e

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tratadas de forma fragmentria e parcializada, com prioridades definidas ao sabor

das conjunturas histricas particulares. Isto conferir tanto a relevncia quanto os

limites possveis da interveno do psiclogo. (YAMAMOTO, 2009, p.44)

Para Lane (1996), o contexto scio-poltico marcado pela represso e violncia

oriundas do golpe militar de 1964, exigiu o redirecionamento da psicologia a servio dos

excludos, colaborando para conscientizao e organizao da populao com intuito de

desenvolver aes transformadoras da sociedade. A partir disso, a psicologia social tradicional

passa a ser criticada, no sentido de que ela no abarcava as questes sociais dos pases que se

desenvolviam e se voltava mais as camadas privilegiadas, sendo importante construir uma

psicologia com uma nova proposta terico-metodolgica que contemplasse o compromisso

social com a classe trabalhadora e a transformao social.

Com isso, inicia o movimento de sada dos consultrios, visando atuao junto

populao em favelas, comunidades, movimentos sociais, sindicatos, periferias entre outras.

Dentre as prticas propostas destacavam-se assembleias, levantamento de prioridades,

reunies e trabalhos em grupos de conscientizao.

Segundo Sawaia (1996), no final da dcada de 70 aparece como sub-rea da psicologia

social a psicologia comunitria, que se apresenta como conhecimento cientfico a servio do

povo para superar a relao de dominao. O psiclogo passa a desenvolver uma prxis

militante para favorecer a tomada de conscincia em relao explorao e alienao, alm

de incentivar a organizao de movimentos de resistncia e reivindicao.

Recentemente, o profissional de psicologia passou a integrar as polticas de assistncia

social. Esta abertura institucional do trabalho do psiclogo fruto de um processo histrico,

pautado na luta para a constituio de uma poltica de direitos. O movimento pela conquista

de direitos advm de aes coletivas iniciadas pela classe operria como forma de se oporem

ao capitalismo e buscarem melhores condies de trabalho. Com isso, consequentemente

inicia-se a luta por reformas polticas, levando em considerao os direitos sociais e humanos.

(GONALVES, 2010)

Com a Constituio Federal de 1988, ocorre uma mudana no campo da Assistncia

Social no Brasil. esta, passa a constituir junto com a sade e a previdncia, a base da

seguridade social inspirada na noo do Estado do bem-estar-social. Aps anos de luta, em

1993 aprovada a Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), que regulamenta e afirma a

assistncia social como direito a ser assegurado por meio de poltica pblica universal, no-

contributiva e de gesto participativa. (RODRIGUES DA CRUZ; GUARESCHI, 2009)

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Ainda de acordo com estas autoras, esse processo culmina com a aprovao, em 2005,

do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS), que estabelece diretrizes e formas de gesto

da poltica de assistncia. A partir disso, so previstos os CRAS (Centro de Referncia da

Assistncia Social) e os CREAS (Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social)

que prev o profissional de psicologia em sua equipe.

Com essas mudanas na atuao do psiclogo, o papel profissional tambm vem

incorporando transformaes e cada vez mais tem aumentado o debate sobre essa nova rea

de trabalho: a psicologia nas polticas pblicas e no terceiro setor.

Lane (1996) entende que os profissionais que atuam com as questes sociais deveriam

resgatar a subjetividade do sujeito, compreendendo seu mundo, emoes e afetos, visando

desenvolver grupos que se tornem conscientes, exercendo autocontrole sobre a prpria vida

atravs de atividades cooperativas e organizadas. Ou seja, buscar uma prxis cujo objetivo a

conscincia crtica e a ao transformadora.

Botarelli (2008) acrescenta que o profissional de psicologia deve intervir nos

processos de sofrimento instalados na comunidade e se conectar as necessidades dos sujeitos

atravs de diferentes metodologias de interveno. Espera-se que o profissional crie espaos

de transformao, mobilizando redes de apoio, grupos comunitrios e participao social.

A ltima edio, da revista Psicologia: Cincia e Profisso, de julho de 2010, foi

dedicada a polticas de assistncia social. Dentre as discusses que traz, Porto (2010) pontua

que o profissional de psicologia pode contribuir enormemente com o desenvolvimento da

equipe multidisciplinar de trabalho e a compreenso dos fenmenos scio-psicolgicos

implicados na promoo social. Caberia tambm ao psiclogo fortalecer o desenvolvimento

pessoal, familiar e comunitrio.

A fim de contribuir com estudos e pesquisas sobre a psicologia nas polticas pblicas,

o CFP (Conselho Federal de Psicologia) criou o CREPOP (Centro de Referncia Tcnica em

Psicologia e Polticas Pblicas), cujo objetivo identificar prticas relevantes na rea da

psicologia, sistematiz-las, document-las e divulg-las para toda sociedade. O CREPOP tem

fomentado reformulaes e orientaes na prtica profissional do psiclogo inserido em

contextos diversos: sade, educao e assistncia. Em agosto de 2007, publicou material com

enfoque em polticas pblicas sobre Referncias Tcnicas para atuao do Psiclogo no

CRAS (Centro de Referncia em Assistncia Social) e SUAS (Sistema nico de Assistncia

Social) visando nortear o trabalho.

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Em resumo, segundo o CFP, seria tarefa do psiclogo que atua com as questes sociais

compreender o indivduo em relao com o contexto social que est inserido, potencializar

esse sujeito para desenvolvimento de sua capacidade de transformao do meio social em que

vivem, favorecer sua autonomia, promover e fortalecer seus vnculos scio afetivos e auxili-

lo a construir prticas interdisciplinares mais colaborativas, ricas e flexveis, no plano

individual e coletivo.

No entanto, toda essa reorganizao da atuao no uma tarefa fcil, pelo contrrio.

Implicam constantes reflexes, intervenes experimentais pautadas em tentativa e erro,

conhecimentos especficos da demanda e uma base terico-metodolgica que no separe

subjetividade e objetividade, homem e sociedade, individual e coletivo. E, principalmente,

no promova a ciso razo e emoo, que eliminou da ao do psiclogo voltada

participao social, o trabalho com a afetividade.

Para Bock (2009), existem atualmente abordagens da psicologia que concebem o

sujeito como capazes e responsveis por promover o prprio desenvolvimento, no abordando

o mundo e as determinaes sociais. Estas concepes so reducionistas e naturalizam a

condio de pobreza e seus sofrimentos. Considera necessria uma mudana na concepo

ontolgica, que no isolem o mundo psquico no interior do indivduo como algo natural. Mas

que pense nas relaes sociais e formas de produo de vida como responsveis pela

produo do mundo psicolgico.

Gonalves (2010) considera que na atuao em polticas pblicas deve se considerar a

demanda social a partir de uma perspectiva histrica, desnaturalizando os fenmenos sociais.

Entende que a excluso e a precarizao da vida no so naturais, mas produzidas socialmente

e, dessa forma, podem ser alteradas. Nesse sentido, no se trata, apenas, de garantir a

sobrevivncia e a reproduo da fora de trabalho, mas de criar espaos sociais para o

desenvolvimento de todos os indivduos.

Yamamoto (2009) considera importante que todos que esto envolvidos com a

produo de conhecimento, sem desconsiderar as caractersticas do mercado de trabalho e as

condies impostas por ele, discutam alternativas para a ateno demanda das classes

subalternas, partindo de outras modalidades de leitura do real e dos fenmenos psicolgicos.

Diante desse cenrio que est se construindo, h cinco anos este pesquisador foi

implantar um trabalho na rea de psicologia numa ONG, localizada na regio norte do

municpio de So Jos dos Campos (bairro dos Freitas), regio caracterizada como zona rural,

com ocupaes irregulares, populao mdia de trs mil habitantes e com 70% destes

recebendo at trs salrios mnimos.

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No decorrer do trabalho desenvolvido na ONG, constatamos uma complexidade de

demandas como: agressividade presente na maioria das crianas, dependncia em relao aos

auxlios oferecidos pelo Governo, relaes interpessoais reduzidas, famlias

predominantemente matriarcais com pouca ou nenhuma participao masculina, a presena

masculina marcada pelo alcoolismo, dificuldade escolar, violncia domstica, presena de

discurso de insatisfao com a vida pessoal e social. Enfim, um viver conformista pautado

pela falta de potncia para ao e autonomia.

A partir desta experincia angustiante, iniciei uma srie de questionamentos: por onde

comear o trabalho? Como eleger prioridades? De que forma a psicologia pode contribuir

com estas questes? Como organizar e planejar minha prtica em contexto social peculiar?

Qual referencial terico-metodolgico apropriado para sustentar a prtica comprometida?

Diante dessas inquietaes, despertou-se a curiosidade em conhecer o que outros

profissionais inseridos nestes contextos sociais faziam e sentiam. Foi ento que aproveitei a

oportunidade de encontros com outras ONGs1 para construir dilogos com colegas de

profisso que estavam atuando na rea. Por meio desse dilogo, foi possvel perceber dvidas

em relao atuao da psicologia no terceiro setor e em relao ao espao que a psicologia

ocupa em contexto de equipe, alm de sentimentos de solido e angstia dos profissionais.

A partir desses afetos e idias que se configurou esta pesquisa, na tentativa de

compreender a atuao do psiclogo inserido no terceiro setor, tendo como pano de fundo o

debate sociolgico poltico do setor.

Em funo de ser um novo campo de atuao, como j mencionamos, vm crescendo

consideravelmente as pesquisas sobre este assunto. Dessa maneira, destacaremos alguns

trabalhos que suscitam reflexes prximas do tema em questo.

No ano de 2008, Paiva, em sua tese de doutorado com o ttulo Os novos Quixotes da

psicologia e a prtica social no mbito do terceiro setor, considera que h uma clara

necessidade de reflexo sobre atuao profissional, alm de formao contnua a fim de

estruturar respostas efetivas as demandas sociais. Relata que, em sua pesquisa, muitos dos

profissionais entrevistados disseram ser o primeiro momento de reflexo de sua prtica

profissional. Parece-nos que h uma prtica irrefletida, que o cotidiano do trabalho

mscara a concretude do real, que os psiclogos se afastam dela. (PAIVA, 2008, p. 153)

No ano seguinte, Nery (2009) em seu doutoramento intitulado O trabalho de

assistentes sociais e psiclogos na poltica de assistncia social Saberes e direitos em

1Encontro Ita-Unicef realizado em Campinas em 2007 que reuniu diversas ONGs do estado de So Paulo,

resultando em 281 projetos inscritos.

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questo, discorre sobre as transformaes nas polticas pblicas que esto em curso poca e

destaca que essas mudanas so lentas e exige esforos coletivos. Ressalta ainda que o campo

da assistncia social, devido ao seu percurso histrico, resulta em formas conservadoras e

doutrinrias no enfrentamento das questes sociais e que estas precisam ser transformadas em

espaos mais democrticos.

A autora constata em sua pesquisa existir uma obscuridade no que se refere rea do

psiclogo e assistente social, e considera importante uma reflexo do que prprio de cada

rea e do que campo compartilhado. A anlise do trabalho de psiclogos e assistentes

sociais revelou um campo de relaes e dilogo de saberes em embrionrio estgio de

construo, sugerindo algumas reflexes. (NERY, 2009, p. 251)

Continuando nesta perspectiva, o Ncleo de Estudos da Dialtica da

Excluso/Incluso da PUC-SP, coordenado pela professora Bader Sawaia, do qual fazemos

parte desde fevereiro de 2009, tem produzido pesquisas sobre a dimenso afetiva e subjetiva

dos usurios de polticas pblicas e dos psiclogos que as desenvolvem, com objetivo de

orientar prticas que superem a dicotomia entre subjetividade e objetividade, individualidade

e coletivo e promovam a potencializao da ao e participao social atravs da

compreenso da subjetividade e dos afetos.

Consideramos que os psiclogos podem trabalhar com a singularidade e a

subjetividade sem com isso ocorrer no psicologismo ou em prticas voluntaristas. Dentre as

ltimas produes envolvendo poltica pblica e afetividade, destacam-se em ordem

cronolgica crescente:

O trabalho de Pizzolante de 2007 intitulado A psicoterapia como

compromisso social, poltico e tico em sua dimenso afetiva. Nessa pesquisa,

a autora reflete sobre uma proposta de psicoterapia voltada para o sofrimento

tico e poltico, cujo objetivo potencializar aes e gerar mudanas na

populao de baixa renda.

Em 2008, a tese de Brando intitulada Afetividade e participao na

metrpole: uma reflexo sobre dirigentes de ONGs da cidade de Fortaleza.

Nela, defende que as ONGs precisam construir espaos de produo de

subjetividade, tendo como base a solidariedade afetiva. Considera relevante a

formao de referencial terico menos rgido que vise construo de espaos

de formao humana. Elabora uma fundamentao terica com base em

Espinosa, Vigotski e Adorno para orientao da construo de espaos de

formao humana.

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No mesmo ano, Botarelli (2008) defende sua tese com o titulo Os psiclogos

nas polticas de proteo social: uma anlise dos sentidos e da prxis. Em sua

pesquisa, acrescenta que a psicologia dentro das polticas pblicas um

desafio, pois em alguns espaos os servios de psicologia so ofertados apenas

para uma parcela especfica da populao, atingida por processos de

vulnerabilidade. Alm disso, chama a ateno para uma prxis tico-poltica

potencializadora, que acolha a subjetividade dos sujeitos.

Em 2009, Castro desenvolve sua pesquisa com o ttulo Uma anlise dos

sentidos da no-participao para os moradores em uma favela de So Paulo

nos servios prestados por organizaes do terceiro setor, cujo objetivo foi

ampliar a compreenso da relao dos moradores da favela com as

organizaes do terceiro setor, tecendo reflexes crticas a partir da no-

participao.

E, por ltimo, em 2010, Arajo defende sua dissertao Mas a gente no

sabe que roupa deve usar: um estudo sobre a prtica do psiclogo no Centro

de Referncia de Assistncia Social. Neste estudo, foi analisou a prtica do

psiclogo no CRAS e sua implicao com a subjetividade como forma de ao

poltica.

A maioria dos estudos expostos acima se refere ao campo da poltica da assistncia

social como novo espao de atuao do psiclogo e destaca importantes reflexes sobre o

tema, como: a falta de respostas efetivas ao enfrentamento da desigualdade social, a

necessidade de perspectivas tericas que inovem a forma de compreender e agir frente s

questes sociais e a busca de espaos de fortalecimento como possibilidade de mudana, tanto

entre os profissionais por meio da integrao de saberes, como da populao atendida por

meio de conscincia poltica e social.

Assim, o presente estudo busca ampliar as reflexes e conhecimento sobre o tema,

embasado nos pressupostos epistemolgicos da psicologia scio-histrica em dilogo com a

teoria dos afetos de Espinosa como possibilidade de compreenso e interveno no

enfrentamento da desigualdade social.

Para tanto, tem como objetivo geral analisar os sentidos implicados na atuao e

relao profissional com a instituio, equipe e demanda do psiclogo inserido no terceiro

setor no municpio de So Jos dos Campos. E como objetivos especficos: (a) conhecer o

Estatuto das instituies e como a poltica institucional interfere na atuao do psiclogo; (b)

conhecer as aes desenvolvidas por esses profissionais e se eles consideram a dialtica

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social-subjetivo; (c) entender como esse profissional integra a equipe da instituio; (d)

compreender como as aes do psiclogo tem contribudo com as necessidades da populao.

Para abordar esse problema, o trabalho conta com duas teorias de base: a teoria dos

afetos de Espinosa e a psicologia scio-histrica de Vigotski, com destaque as categorias de

sentido e significado. Este caminho vem sendo foco de estudo do NEXIN, com o objetivo de

promover o dilogo entre as produes desses dois autores a fim de ampliar a compreenso

humana e dos fenmenos sociais, principalmente o que diz respeito servido humana e tica

das relaes.

A psicologia scio-histrica embasa o trabalho a luz das determinaes sociais como

forma de compreenso da subjetividade do sujeito. Nesse sentido, (...) prope formas de

intervenes que contribuam para desvendar o processo social que engendra a subjetividade

assim constituda e para que se resgate a dialtica do processo subjetivo-objetivo, superando

as contradies. (GONALVES, 2009, p. 291)

Os afetos so tema de estudo desde a antiguidade e, durante esse percurso at a ps-

modernidade, tem-se constitudo diferentes olhares sobre como tecer a teoria dos afetos,

Espinosa considerado o precursor em abordar os afetos de forma otimista e natural, e

Vigotski, influenciado pela teoria espinosana, acrescenta a dialtica, a historicidade, o aspecto

tico e poltico e a teoria do sentido e significado na compreenso dos mesmos.

Partimos do pressuposto de que no h separao mente e corpo, indivduo e

sociedade. Pensamos o homem com capacidade de afetar e ser afetado, e essas afeces

experimentadas pelo corpo e alma atuam na formao de sentidos, constituindo o subtexto da

prtica do psiclogo. Alm disso, acreditamos que o profissional de psicologia tem uma

contribuio especfica para dar, sendo de sua competncia a anlise e a interveno na

relao entre o subjetivo e o social.

Contudo, este trabalho busca ampliar a reflexo sobre as aes dos psiclogos nas

polticas pblicas e como estes afetam e so afetados a partir dos encontros com a equipe,

instituio e demanda. Esta anlise ter como pano de fundo um significado maior, que diz

respeito dimenso scio-poltica do terceiro setor como locus de potncia de ao ou de

mera reproduo e assistencialismo.

Para alcanar os objetivos propostos o estudo contou com a participao de duas

instituies do municpio de So Jos dos Campos, a primeira com um trabalho estruturado,

planejado, com equipe multidisciplinar para sua execuo e parceria da Prefeitura Municipal.

A segunda, com o trabalho ocorrendo de forma menos estruturada, apoio de voluntariado e

doaes. Em cada uma das instituies elegemos trs profissionais para participar da

17

pesquisa, o diretor, como representante da instituio, o assistente social, como representante

do trabalho em equipe e o psiclogo. A proposta foi investigar diferentes sentidos sobre a

atuao do psiclogo, forma de compreender as necessidades da populao e o trabalho em

equipe e observar as relaes profissionais e institucionais como possiblidade de potencializar

ou padecer aes.

Para tanto, a presente dissertao ser apresentada em quatro captulos:

No primeiro captulo abordaremos o terceiro setor discutindo sua configurao

histrica e poltica, desde seu nascimento at a atualidade. Tambm ser enfocada sua

dimenso jurdica e suas diversas configuraes, visando atualizar as principais

regulamentaes da rea.

O Captulo II traz o referencial terico e metodolgico que embasa este estudo.

Discute os principais conceitos da psicologia scio-histrica de Vigotski, enfatizando a teoria

dos sentidos e significados e aborda os principais conceitos da teoria da afetividade de

Espinosa. As idias so articuladas em acordo com as prticas do NEXIN, que concebe a

criatividade e afetividade como forma de emancipao humana. A segunda parte desta seo

revelar os procedimentos adotados para alcanar os objetivos da proposta.

No Captulo III ser apresentada a anlise de dados, iniciando pela apresentao dos

sujeitos e seguida por trs eixos de reflexo: (1) O campo poltico administrativo do terceiro

setor; (2) Potncia ou padecimento? (3) Voc tem fome de qu? O encontro com a

necessidade da populao. A partir destes questionamentos, buscou-se articular os sentidos

encontrados nas entrevistas com os conceitos tericos, tecendo reflexes na tentativa de

responder os questionamentos propostos.

O quarto e ltimo captulo traz as consideraes finais com objetivo de alcanar

contribuies no campo da atuao do psiclogo no terceiro setor.

18

Captulo I: O Terceiro Setor

1.1 Da origem do termo a emergncia do terceiro setor no Brasil

A partir da dcada de 50, nos Estados Unidos, as instituies que praticavam

filantropia passam a ser reconhecidas no setor econmico. Tal fato se deve ao interesse de

estimular o setor sem fins lucrativos em funo da ameaa poltica direcionada s fundaes.

O congresso americano acusava estas organizaes de concentrar o poder e ameaar o

governo democrtico do pas. Neste perodo, o setor se caracterizava por ser voluntrio,

manter aes de caridade, ser financiado por doaes e ser sem fins lucrativos. (CALEGARE,

2009)

Nos anos 70, de acordo com o mesmo autor, o termo terceiro setor comeou a ganhar

corpo, quando as instituies foram reconhecidas como parte da vida poltica, econmico e

social da Amrica.

De acordo com Paiva (2008) a literatura atribui o nascimento do termo terceiro setor

nos EUA, na dcada de setenta, a partir do trabalho realizado pela Comisso Filer2 que

mapeou as instituies no lucrativas no pas e, neste momento, compreendeu essas

configuraes como pertencentes a um terceiro setor.

Oliveira (1999 apud CALEGARE, 2009) precisa que o termo foi cunhado por John D.

Rockfeller em 1978, ao apresentar um trabalho onde apresenta o sistema formado por trs

setores.

No Brasil, a expresso terceiro setor foi introduzida no III Encontro Ibero Americano

organizado pelo GIFE em 1996, no Rio de Janeiro (MONTAO, 2002).

A filantropia j era praticada no Brasil, contudo, o nascimento do conceito terceiro

setor, que inicia nos anos 70 e se intensifica nos anos 90, se refere ao novo formato da

filantropia que associam aes privadas e governamentais.

Para Gohn (2000), o termo tem sido muito utilizado na literatura em funo de apontar

para caminhos alternativos. No entanto, considera esta nova concepo um Frankstein:

grande, heterogneo, desajeitado e construdo de pedaos bastante confusos. Como exemplo,

podemos citar a heterogeneidade das organizaes que compe esta esfera e assumem

diferentes posturas e finalidades.

2 A Comisso Filler era composta por pesquisadores norte-americanos, que iniciou o trabalho de anlise em 1973

financiado pela Fundao Rockefeller (Perz Dias & Novo, 2003 apud Paiva, 2008).

19

A autora considera esse fenmeno complexo e contraditrio, pois abarca entidades

progressistas que objetivam a emancipao dos setores populares e a construo de uma

sociedade mais justa e entidades conservadoras que possuem programas assistenciais,

compensatrios pautados pela lgica do mercado.

J o termo ONG surgiu no ps-guerra, apoiado pela ONU, para designar organismos

representativos que defendiam interesses independentes dos ideais estipulados pelos pases.

(CALEGARE, 2009). Esta era a nomenclatura utilizada para identificar a organizao de

grupos sociais que reivindicavam liberdade e justia social, apesar do termo no existir

judicialmente.

Fernandes (2005) descreve que o surgimento das ONGs foi intensificado no

hemisfrio sul na dcada de 60 e 70 atravs do programa de desenvolvimento internacional

dos pases de Terceiro Mundo. Nesse perodo, os laos estabelecidos com as ONGs

internacionais eram slidos, sendo elas responsveis pelo financiamento e manuteno dos

trabalhos desenvolvidos pelas organizaes na Amrica Latina, que tinham matrizes crists,

humanistas ou social-democratas.

No Brasil, muitas organizaes surgiram com carter politizado e militante, atuaram

por meios dos movimentos sociais durante os anos setenta e oitenta a fim de combater a

ditadura militar.

Este cenrio estimulou a organizao da sociedade civil por meio de diversos atores e

inmeras prticas coletivas, a reivindicar bens, servios e direitos scio-polticos. Estas lutas

pela redemocratizao levaram ao movimento das Diretas J e a Constituio de 1988.

(GOHN, 2004)

importante observar que foram as lutas sociais que transformaram a questo social

em uma questo poltica e pblica, transitando do domnio privado das relaes

entre capital e trabalho para a esfera pblica, exigindo a interveno do Estado no

reconhecimento de novos sujeitos sociais como portadores de direitos e deveres, e

na viabilizao do acesso a bens e servios pblicos pelas polticas sociais.

(RAICHELIS, 2006, p. 15)

Referendada nesta concepo, as ONGs propunham uma forma de ao poltica que se

opunha ao autoritarismo e tinham fortes ligaes com as agncias internacionais. Isso

originava uma identificao com o no-lucrativo, no-governamental e alternativo. Tambm

eram portadoras de uma nova cultura poltica diante da incapacidade do sistema poltico em

dar respostas para as questes sociais (THOMPSON, 2005).

20

O discurso dessas novas instituies era marcado por um tom poltico e reivindicativo.

No entanto, foi este mesmo espao que foi sendo ocupado pelo que se convencionou chamar

de terceiro setor o que, mais tarde, levou ao esvaziamento poltico de muitos movimentos

sociais.

Gohn (2000; 2004) apresenta uma distino na constituio das ONGs no Brasil entre

as de cunho militante, oriundas da cultura participativa dos anos 70 e 80, e as ONGs

propositivas, que atuam utilizando uma lgica racional e mercadolgica.

As ONGs militantes estiveram por detrs dos movimentos sociais que contriburam

para queda da ditadura militar e democratizao do Pas, criando um novo campo tico-

poltico. Caracterizavam-se por priorizar os espaos na sociedade civil e manter pouca ou

nenhuma relao com rgos pblicos. J as ONGs mercadolgicas atuam por meio de uma

poltica compensatria, voltadas para prestao de servios, elaborao de projetos e

planejamentos estratgicos.

Paiva (2008) destaca trs geraes de ONGs na Amrica Latina: as missionrias e

militantes, as promotoras de democracia dos anos 80 e as profissionais dos anos 90. Estas

apresentam aglutinao heterognea e confusa.

Com a crise do Estado e a chegada do neoliberalismo, o que se configura a reduo

de gastos e desresponsabilizao do Estado delineado pelo seguinte propsito menos Estado

e mais Mercado. Com isso, se inicia uma reforma Estatal que resulta nos processos de

privatizaes, terceirizaes e publicizaes3. (TREZZA, 2007)

Perante essa reorganizao, acrescenta a mesma autora, o Governo passou a buscar

novos caminhos em busca de eficincia, efetividade e garantia de direitos, fazer o Estado ser

mais eficiente a um menor custo. Nessa direo, as consolidaes das relaes pblicas no-

Estatais se apresentam como uma sada.

Dessa maneira, a partir da dcada de noventa, o terceiro setor adquire destaque, porm

com uma nova roupagem, deixando a postura reivindicatria e investindo em outras

atividades. Nesse momento, o Estado passa a ser visto como aliado (BRANDO, 2008).

Gohn (2000) aponta que a partir da dcada de 90 o terceiro setor passa a desempenhar

o papel de intermediao entre o Estado e a sociedade, assumindo a implementao e

execuo de poltica publica transferida para as chamadas parcerias pblicas no-estatais.

Ao mudar o contexto econmico-politico, comeam mudar tambm as instituies e

vises sobre elas. Os dois blocos de instituies presentes na poca passam a se desvanecer e,

3 Processo de transformar uma organizao estatal em uma organizao de direito privado-pblica no estatal.

21

a partir disso, ganha peso uma percepo funcional em lugar de uma poltico-ideolgica

(Thompson, 2005).

A maioria das organizaes foi criada neste perodo, sem cunho militante, defendendo

a polticas de parcerias, inclusive com Estado e o alargamento dos espaos pblicos de carter

no-estatal. O Banco Mundial foi o maior responsvel pela intensificao das ONGs, pois

privilegiava as aes em parceria com setor. Em 1994, cerca de metade dos projetos

financiados pelo banco envolvia parcerias com ONGs.

Posteriormente, houve alterao na economia e os emprstimos eram feitos

diretamente ao governo brasileiro, que repassavam os recursos para instituies. O esquema

de repasse de recursos passou a ser organizado da seguinte forma: os emprstimos eram feitos

diretos ao governo brasileiro que repassavam os recursos para as instituies. A partir desta

proposta, os recursos no custeavam 100% dos gastos das instituies. Ocorriam por aes

direcionadas mediante apresentao de projeto, que deveriam ter tempo determinado e gerar

resultado mensurvel para obter a renovao dos recursos.

Com esse novo plano de trabalho, o Estado abandona o papel de executor ou prestador

direto de servios e passa a regular e prover estes. Para isso, foram criados instrumentos

jurdicos que regulamentam e certificam as instituies para que o Estado possa transferir

recursos e servios pblicos.

Alm disso, desenvolve-se um novo espao pblico no-estatal, onde iro situar os

conselhos e fruns formados pela sociedade civil e representantes do Governo com a proposta

de discutir as questes de cunho social.

Diante dessas mudanas os movimentos sociais comeam a minguar, os diversos

atores e discurso comeam a se homogeneizar os espaos pblicos se esvaziar. Nas palavras

de Gohn (2004, p.26), o militante foi se transformando no ativista organizador das

clientelas e usurias dos servios sociais.

Com a reconfigurao do setor se iniciam debates e fruns de discusso a fim de

conceituar o setor e regulament-lo no Brasil.

Por se tratar de um contexto que vem sendo construdo e permeado por contradies

sua definio no tem sido uma tarefa fcil. Thompson (2005, p.41) define o terceiro setor

como um conjunto de instituies sem fins lucrativos que, a partir do mbito privado,

perseguem propsito de interesse pblico. Porm, o autor considera esta uma definio

simplista diante do amplo fenmeno que compe o setor.

No diferentemente da definio, os posicionamentos em relao ao terceiro setor so

divergentes ocasionando um debate que destacam duas posturas paralelas. Por um lado o

22

aspecto positivo dessa nova configurao com expectativa de transformao e fortalecimento

social e, por outro, uma viso que desresponsabiliza o Estado e distancia a populao dessa

relao com o mesmo.

Para Primeira Dama do Governo de Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, uma

das idealizadoras da proposta do terceiro setor, trata-se de um espao de experimentao de

novos modos de pensar e agir sobre a realidade social rompendo com a dicotomia entre o

pblico e privado. Nem a lgica do mercado, nem a lgica governamental: a idia

potencializar aes, governo e sociedade pensarem juntos, sem confuses de papis ou

abdicao da autonomia e responsabilidade inerente a cada parceiro.

Alguns autores vem o terceiro setor negativamente como explorao da fora de

trabalho ou parte de estratgias neoliberais para desobrigar o Estado em relao s questes

sociais. Carlos Montao (2002, p. 22) defende a seguinte tese:

Assim, numa perspectiva crtica e de totalidade, o que chamado de terceiro setor

refere-se na verdade a um fenmeno real inserido na e produto da reestruturao do

capital, pautado nos (ou funcional aos) princpios neoliberais: um povo padro (nova

modalidade, fundamento e responsabilidades) para a funo social de respostas s

sequelas da questo social, seguindo os valores da solidariedade voluntria e local,

da autoajuda e da ajuda mtua.

Perante essa postura, o autor pontua que a responsabilidade transferida para os

prprios sujeitos portadores da necessidade e sua execuo passa a ser uma opo do

voluntariado local deixando de ser um direito. Por isso, ocorre a desregulao da relao

capital-trabalho, o esvaziamento dos preceitos democrticos e a precarizao do trabalho e do

sistema de proteo social.

Para Paiva (2008) com essas mudanas o Estado deixa de ser um instrumento das

correes das desigualdades sociais e passa a ser um fomentador dessa iniciativa mantendo o

discurso de que a questo social est sendo cuidada.

Gohn (2000) tece reflexes considerando os dois lados. Considera que a implantao

de um novo modelo de desenvolvimento levando a transferncia e operacionalizao do

servio para o setor privado sem fins lucrativos ocasiona mudanas no terceiro setor, que

passa a atuar segundo critrios do mercado capitalista, buscando eficcia no servio e

marketing institucional. O planejamento estratgico base da formulao de projetos, e as

aes se fundamentam na lgica empresarial custo/beneficio. Essa nova forma de atuao no

demanda um vnculo permanente dos indivduos. Os servios ocorrem independentemente

23

dos laos, diferentemente das ONGs militantes que possuem uma poltica ideolgica que os

vinculam.

Nesse formato, os usurios passam a ser clientes/consumidores do servio, havendo

uma reduo do poder de negociao, podendo inclusive levar perda de direitos j

conquistados. Isto porque fica sob a responsabilidade da ONG efetivar o servio e ser

interlocutora com a sociedade.

Gohn (2000) considera que as maiorias das organizaes no lutam contra as formas

geradoras de excluso, atuando apenas sobre seus resultados. Ou seja: organizam aes para

incluir de forma diferenciada o excludo pelo modelo econmico.

O campo de atuao do terceiro setor expandiu-se e ele passou a ser organizado

menos como lugar de acesso aos direitos de uma cidadania emancipatria e mais

como lugar de exerccio de uma cidadania outorgada, de cima para baixo, que

promove a incluso de indivduos a uma rede de servios, na maioria das vezes de

forma assistencial. Os novos cidados se transformaram em clientes de polticas

pblicas administradas pelas entidades do terceiro setor. (GOHN, 2000, p. 69)

Nesse formato, as ONGs adquirem carter emergencial, integrando o cliente em

programas compensatrios ao criar uma rede de paliativos. Essas aes, quando executadas

por organizaes conservadoras, podem alterar o sentido de carter das aes coletivas,

deslocando a responsabilidade para o indivduo num estilo assistencialista e compensatrio.

Ainda nessa discusso, a autora pontua que sem se fixar apenas na leitura do

maquiavelismo estatal neoliberal, a redefinio da estrutura do Estado um fato importante e

necessrio, considerando a forma clssica de dominao esgotada.

Alm disso, a interveno da sociedade civil nas polticas pblicas gerou novos atores

com capacidade de intervir no Estado criando uma nova forma de representao. Tal

acontecimento sugere caminhos alternativos que sirvam de base para uma realidade mais

justa, atravs de formas de desenvolvimento sustentvel e apropriao de espaos nas esferas

governamentais e de gesto pblica.

No entanto, em funo de uma cultura poltica baseada em uma lgica que no possui

elementos de ordem crtica e presso-reivindicativa, ocorre o posicionamento na esfera

pblica via associacionismo e colaboracionismo, reforando as polticas assistenciais

compensatrias. Dessa perspectiva, faz-se necessrio uma postura ativa das ONGs em relao

24

aos governos, tanto em relao s parcerias como no fomento de uma postura reivindicatria

de direitos. Para tanto, o conhecimento se torna fundamental para transformar a realidade.

Gohn (2000) considera que o grande avano dessa parceria a possibilidade de

penetrar nas microesferas da sociedade. Para isto, as polticas pblicas necessitam de

mediadores para serem efetivas. Dessa maneira, o terceiro setor adquire papel-chave no

conjunto das relaes entre o Estado e sociedade, pois atravs dessas instituies que ser

possvel captar as necessidades locais e a lgica da ao coletiva, diferentemente da lgica de

uma agncia estatal do mesmo servio.

Outra vantagem, da parceria Estado e ONGs, que as organizaes, diferente do

Estado, conseguem ser mais geis, criativas, sabem trabalhar com a diversidade, atuam em

redes e produzem novos saberes. Dessa forma, no podemos considerar apenas o lado

negativo de reduo de custos e estratgia de dominao das mesmas.

Na viso de Thompson (2005), poltica e economia so campos fundamentais para o

terceiro setor. O primeiro tem que atuar na conquista e garantia de direitos dos excludos,

enfrentando o Estado e empresas. Para isso, ser necessrio que a populao aprenda a

exercitar seus direitos e estabelecer relaes com o poder pblico. J na economia, as regras

do mercado sero sem dvida o que orientar suas aes: a relao custo-eficincia-

efetividade, ateno aos clientes, formao de recursos humanos e at mesmo a competio

com outras instituies. No que deva se inclinar para um desses campos; os dois tem razo

de ser. Porm, a lgica e a metodologia de ao deve se apresentar de forma diferente.

Concordamos que se trata de um fenmeno scio-poltico, embasado em estratgias de

interesse do Estado que geram a no-participao da sociedade ou a participao de forma

destorcida. Corroboramos com Gohn que o modelo estatal estava esgotado e precisava ser

revisto oferecendo espao para novos modelos de gesto. Mas vinte anos depois, podemos

afirmar que este novo formato de parceria, apesar de apresentar algumas vantagens,

apresenta-se com excesso de burocratizao e controle, escassez de apoio financeiro, alta

competitividade, um conjunto de iniciativas frustradas e colocando os cidados como

telespectadores, em vez de atores sociais.

A essa altura, podemos sugerir a necessidade de reorganizao do setor, com a

configurao da regulamentao jurdica adequada e a busca por novas estratgias e modelos.

Porm, independente da postura adotada em relao ao terceiro setor, no podemos

negar que este vem assumindo enorme responsabilidade em relao s questes sociais, sendo

necessria uma reflexo em relao ao papel que desempenha na sociedade.

25

Assim, essa imensa rede de organizaes privadas localizadas margem do aparelho

formal do Estado, sem fins lucrativos, mobilizadora de trabalho voluntrio, passou a ter

influncia nas mudanas do final do sculo, pois passaram a atuar na economia informal,

gerenciando milhares de empregos voluntrios e comeando a se fazer presente na economia

formal atravs dos sistemas de cooperativas.

Em 2004 foi finalizado um estudo realizado em 2002 pelo IBGE em parceria com a

ABONG4 e o GIFE

5 intitulado: As Fundaes Privadas e Associaes Sem Fins Lucrativos no

Brasil. A pesquisa quantificou aumento de 163% do setor no pas resultando em 276 mil

organizaes. Destas, 62% foram criadas na dcada de 90. (MERENGE, 2009)

Pela primeira vez, em 2007, o setor entrou com um destaque especfico na composio

do PIB, representando 1,4% do produto interno bruto brasileiro, movimentando R$ 24

bilhes.

Em 2008, o IBGE divulgou dados sobre uma pesquisa realizada em parceria com

IPEA6, GIFE e ABONG no ano de 2005 sobre o terceiro setor. Neste estudo se

desenvolveram dados comparativos com as duas pesquisas j realizada no Brasil sobre o

setor, em 1996 e em 2002. Os nmeros mostram que em 2005 as organizaes totalizaram

338 mil, o que significa um crescimento de 22,4% do ano de 2002 para o ano de 2005. Destas,

mais da metade localizam-se na regio sudeste e 44.5% atuam na rea da assistncia social. O

nmero de trabalhadores assalariados foi de 1,7 milho e a mdia salarial mensal de R$

1.094,00. Tal fato tem colocado o setor como estratgico para gerao de empregos. (As

Fundaes Privadas e Associaes Sem Fins Lucrativos no Brasil, 2005).

Em sntese, acreditamos que diante da crescente atuao do setor, conforme indicam

os nmeros, do alcance que o setor vem assumindo na construo de polticas pblicas

voltadas para uma sociedade mais justa e por se tratar de um campo de trabalho da psicologia,

um importante foco de investigao.

1.2 - Contexto social e poltico de fortalecimento do Terceiro Setor

Aps a crise de 1929 nos Estados Unidos, inicia-se nos Estados Unidos uma nova

configurao econmica poltica, que ir ganhar maiores contornos no perodo ps-guerra, o

4 Associao Brasileira de Organizaes no Governamentais, criada em 1991, com objetivo de congregar

organizaes que lutam contra a discriminao e desigualdade na busca de um mundo sustentvel e democrtico. 5 Grupo de Instituies, Fundaes e Empresas, fundado em 1995, com objetivo de fortalecer aes voltadas para

o interesse pblico. 6 Instituto de Pesquisa Econmico Aplicada.

26

Estado de Bem-estar Social ou Welfare state keynesiano. A partir de ento, o Estado fica

responsvel em regular a economia e a vida social, promover polticas pblicas e assegurar

um patamar mnimo de igualdade social e bem-estar (COELHO, 2009)

No Brasil, esta nova forma de atuao teve incio no Governo de Getlio Vargas7. No

entanto, concomitantemente, o pas estava em fase de industrializao e desenvolvimento.

Este perodo ficou conhecido como Estado Desenvolvimentista.

Nos anos 80, inicia-se a crise do Estado do Bem-estar Social. Dessa forma, era

necessria uma reforma que diminusse os custos sociais e combatesse a ineficincia pblica,

ou seja, rever o tamanho do Estado. (SANTOS, L. 2006)

De acordo com Santos (2006) o Estado do Bem-estar Social nunca existiu no Brasil

dessa maneira, e afirma ainda que a crise no pas surgiu nos anos 90 e foi em relao gesto

e qualidade dos servios.

Sobre este assunto, Raichelis (2006) compreende que no Brasil houve uma tentativa

tardia de montagem de um Estado do Bem-Estar Social, num processo que foi atropelado

pelos ajustes neoliberais.

A crise econmica do Estado iniciou nos anos 70, mas s na dcada de 80 se torna

evidente. Nesta dcada diversos pases apresentaram: descontrole fiscal, reduo do

crescimento econmico, aumento do desemprego e elevado ndice de inflao. O Governo

brasileiro concebia a crise da seguinte forma:

Aps vrias tentativas de explicao, tornou-se claro afinal que a causa da

desacelerao econmica nos pases desenvolvidos e dos graves desequilbrios na

Amrica Latina e Leste Europeu era a crise do Estado, que no soubera processar de

forma adequada a sobrecarga de demandas a ele dirigidas. A desordem econmica

expressava agora a dificuldade do Estado em continuar a administrar as crescentes

expectativas em relao a poltica do bem-estar social aplicada com relativo sucesso

ps-guerra. (PDRAE, 1995)

Segundo Coelho (2009), o nmero excessivo de regras, controle estatal e restrio

trabalhista criadas no Estado de Bem-estar Social inibiam o investimento privado,

comprometendo a economia. O aparelho do Estado e suas empresas eram considerados

ineficientes gerando um custo alto e pouca qualidade. Neste contexto, as privatizaes se

7 Neste perodo foi fundado o primeiro Instituto de Aposentadoria e Penso em 1933, a criao do Departamento

Administrativo de Servios Pblicos em 1938, a Consolidao das Leis do Trabalho CLT em 1943, entre outras.

27

apresentam como sada para maior eficincia e lucro, evitando onerar o Estado. Tudo isso

apoiado em uma economia aberta e competitiva.

Em funo do modelo vigente, marcado pela forte interveno do Estado, estar

esgotado, no incio dos anos 80 se configura o neoliberalismo, protagonizado pelos governos

de Margaret Thatcher, no Reino Unido (1979-1990), e Ronald Regan, nos Estados Unidos

(1981-1989). A agenda neoliberal foi colocada em prtica, inicialmente, nestes dois pases

para, em seguida, se estender para o resto do mundo. Tinha como proposta central a

desregulamentao, privatizao e abertura do mercado.

Para orientar a implementao do neoliberalismo nos pases perifricos, em novembro

de 1989 realizou-se uma reunio que ficou conhecida como o Consenso de Washington.

Participaram do encontro organismos de financiamento internacional, funcionrios do

governo americano e economistas latino-americanos, com o objetivo de formular propostas de

reforma econmica na Amrica Latina. Tempos depois, em 1993, houve uma reunio com o

Ministro da Administrao e Reforma do Estado (MARE8), Bresser Pereira, em Washington.

A proposta do encontro foi obter apoio poltico para implantao com sucesso da reforma

econmica no Brasil. (MONTAO, 2002)

As medidas neoliberais alcanaram o Brasil na dcada de 90, iniciadas no governo

Collor, sustentadas por Itamar Franco e intensificadas no governo de Fernando Henrique

Cardoso.

No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, sob o comando do Ministro

Bresser Pereira, foi implantado o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE),

que mantinha o modelo burocrtico weberiano e a criao das organizaes sociais. (Junior,

2009).

A reforma tinha como pilar central a idia de que a crise brasileira se dava em funo

das estratgias estatizantes e da administrao pblica burocrtica. Como resposta para este

esgotamento, o Estado prope a administrao pblica gerencial caracterizada por eficincia,

qualidade e descentralizao. (CALEGARE, 2009).

De acordo com o PDRAE (1995), no Brasil a crise se tornou clara a partir metade da

dcada de 80 e suas manifestaes mais evidentes se referem crise fiscal, rigidez do

aparelho do Estado e superao das formas de interveno econmica e social. Segundo

Fernando Henrique Cardoso (1995), o PDRAE foi uma resposta consistente crise, j que o

8 Novo Ministrio criado no Governo de Fernando Henrique Cardoso.

28

Estado do Bem-estar Social e o Neoliberalismo no deram conta de reorganizar o Estado de

forma satisfatria.

Dentre as propostas da PDRAE destacam-se: ajustamento fiscal, respostas econmicas

que garantam a competio e a concorrncia internacional, reforma na previdncia social e a

ampliao na capacidade de implementar respostas s polticas pblicas. Os objetivos gerais

da proposta se referem a aumentar a governana9 do Estado, limitar a ao do Estado s

funes que lhes so prprias, delegando os servios no-exclusivos10

para as organizaes

pblicas no-estatais e transferir as aes de carter local da Unio para estados e municpios.

Contudo, ocorre uma assincronia no Brasil. Ao mesmo tempo em que o Pas

concretiza a Constituio de 1988, apontando para o desenvolvimento social democrtico,

vivencia o contexto de implantao do neoliberalismo que se direciona na contra-mo das

conquistas sociais advindas da Constituio, ocasionando um esvaziamento poltico social.

Para Montao (2002, p. 42):

Est claro que a reforma no se orienta, como sugere seu mentor, para o

desenvolvimento da democracia e cidadania e para o melhor atendimento

populao, mas, na verdade, surge do dever de casa que foi determinado no

encontro que derivou no chamado Consenso de Washington e nas subseqentes

misses do FMI.

Sob o pretexto de maior participao e controle social na gesto dos servios sociais,

foram criadas as publicizaes, que, na verdade, uma denominao ideolgica, dada a

transferncia da responsabilidade do Estado s organizaes privadas sem fins lucrativos,

ditas do Terceiro Setor. E, portanto, se orienta de forma no-universal e no-constitutiva de

direito das polticas pblicas. (MONTAO, 2002)

O autor observa que a verdadeira motivao da contra-reforma11

, no que diz respeito

s publicizaes, foi diminuio do custo das atividades sociais. Considera ainda que:

9 Capacidade administrativa de governar com eficincia e efetividade, voltando as aes para o atendimento dos

cidados. (PRAE, objetivos, 1995)

Em abril de 1990 o Governo criou o Programa Nacional de Desestatizao, em 04 anos forma desestatizadas 33

empresas. Com isso, foi necessrio a criao das agncias reguladoras, cuja funo seria regular e fiscalizar as

diversas empresas privatizadas. 10

Transferir para o setor pblico no estatal estes servios, atravs de um programa de publicizao,

transformando as atuais fundaes pblicas em organizaes sociais, ou seja, em entidades de direito privado,

sem fins lucrativos, que tenham autorizao especfica do poder legislativo para celebrar contrato de gesto com

poder executivo e assim ter direito a dotao oramentria. (PDRAE, Objetivos, 1995, p. 46) 11

O autor concebe o termo contra-reforma para explicitar a proposta que se direciona para interesse do capital e

desmonta a atividade social estatal.

29

Nesse sentido, o objetivo de retirar o Estado (e o capital) da responsabilidade do de

interveno na questo social e de transferi-los para esfera do terceiro setor no

ocorre por motivos de eficincia (como se as ONGs fossem naturalmente mais

eficiente que o Estado) nem apenas por razes financeiras: reduzir o custo

necessrio para sustentar esta funo estatal. O motivo fundamentalmente poltico-

ideolgico: retirar e esvaziar a dimenso de direito universal do cidado quanto a

poltica sociais de qualidade, criar uma cultura de autoculpa pelas mazelas que

afetam a populao, e de auto-ajuda e ajuda mtua para seu enfrentamento (...).

(MONTAO, 2002, p. 23)

Paiva (2008) sustenta que a poltica neoliberal refora a estrutura histrica da

sociedade brasileira, isto , a servio do capitalismo e das classes dominantes, o que favorece

o abismo entre as classes sociais, excluso, desemprego, desorganizao poltica e difuso da

alienao.

Montao (1998) discute o projeto neoliberal como uma nova estratgica hegemnica

atravs das seguintes aes: (1) forte ofensiva contra o trabalho e (2) concentrao. A

primeira, diz respeito relao automao e desemprego que tem como resultantes a

explorao da fora de trabalho, reduo salarial, precarizao das condies de emprego,

reduo do poder sindical e, consequentemente, ofensiva contra as conquistas histricas

alcanadas. A segunda prope a centralizao do capital, ou seja, as megafuses e,

consequentemente, o aumento da desigualdade social e diminuio do controle social.

Com todos estes ideais polticos na dcada de 90, esta nova forma de organizao

chamada Terceiro Setor ressurge como protagonista e assume o papel de quem veio para

equacionar estes impasses. A partir disso, trs conceitos se tornariam chave: descentralizao,

organizao social e parceria. A fim de incentivar a regulamentao destas organizaes

criam-se leis para o setor, leis de incentivo fiscal, um conjunto de preceitos ticos para as

empresas, denominado responsabilidade social empresarial e o voluntariado (resgate da

solidariedade e cidadania).

No inicio do Governo de Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso criou e presidiu o

Programa Comunidade Solidria, cujo objetivo era criar um espao de interlocuo entre

governo e sociedade civil, a fim de buscar formas de potencializar recursos e energias

existentes no Terceiro Setor. Participavam do Conselho da Comunidade Solidria12

, rgo de

12

O Conselho da Comunidade Solidria criou programas como Universidade Solidria (mobiliza recursos e

competncias em Universidades brasileiras) e Centro de Voluntariado (espao de interlocuo entre voluntrios e

instituies).

30

coordenao do programa, ministros de Estado e 21 representantes da sociedade civil com

atuao reconhecida em organizaes. (CARDOSO, 1995)

De acordo com Trezza (2007), nos anos de 1997 e 1998, atravs desse programa,

foram organizadas rodadas de interlocues polticas dedicadas a discutir temas relacionados

ao terceiro setor, dentre eles, o marco legal do terceiro setor e a construo de uma agenda

mnima com prioridades, medidas e instrumentos de ao social. Participaram dos encontros:

o poder pblico, representantes do empresariado, entidades sociais e especialistas em terceiro

setor. At ento, a legislao aplicvel para o terceiro setor era basicamente o Cdigo Civil de

1916, que dispunha de uma legislao no-adequada a esse novo campo de atuao; apenas

regulava o ttulo de utilidade pblica e imunidade fiscal.

Desse processo, foi aprovada a Lei n 9.637/98, que dispe da qualificao de pessoa

jurdica de direito privado como Organizaes Sociais (OS). Com esta qualificao, as

instituies puderam absorver atividades voltadas para ensino, pesquisa cientifica,

desenvolvimento tecnolgico, meio ambiente, cultura e sade, papis que at ento eram

desempenhados exclusivamente pelo poder pblico. A obteno da qualificao no um

direito ou opo das entidades, uma vez que elas s sero qualificadas como OS se forem

aprovadas pelo critrio de convenincia e oportunidade do Poder Pblico (Cartilha OAB,

2007, p.18). A partir disso firmado o contrato de Gesto13

.

Outra proposta advinda desta interlocuo foi a Lei 9.790/ 99, que dispe de pessoa

jurdica de direitos privados sem fins lucrativos, como Organizaes da Sociedade Civil de

Interesse Pblico (OSCIP)14

, institui e disciplina o Termo de Parceria15

e oferece outras

providncias.

De acordo com Paiva (2008), a lei das OSCIPs pretendeu trazer um novo perfil

desejado para as ONGs pautado pela eficincia e qualidade dos servios. No entanto, poucas

ONGs aderiram terminologia influenciada pela ABONG16

, que critica e desestimula as

13

Entende-se por contrato de Gesto o instrumento firmado entre o Poder Pblico e a entidade qualificada como

organizao social, com vistas a formao de parceria entre as partes para o fomento e realizao de atividades

relativas as reas relacionadas no art. 1. (Lei n 9.637, art. 5) 14

A qualificao de OSCIP requerida via Ministrio Pblico atravs de documentao e normas regidas pela

lei. As principais vantagens: acesso a recursos pblicos e privados pelo uso de incentivos fiscais, possibilidade

de remunerar dirigentes, possibilidade de receber doaes da Receita Federal. 15

Instrumento passvel de ser firmado entre o Poder Pblico e as entidades qualificadas como OSCIP destinado a

formao de vinculo de cooperao entre as partes para o fomento e execuo de atividades de interesse pblico.

(Lei 9.970 de maro de 1999, Capitulo II) 16

A ABONG defende o marco legal do terceiro setor repudiando qualquer retrocesso aos direitos adquiridos na

Constituio de 1988 e a limitao de liberdade das instituies. Entende que a legislao deve impedir os

governantes de terceirizar as polticas pblicas, considerar as diferenas entre as entidades, fortalecer a

democracia e sociedade civil, entre outras. (ABONG, Nossas Aes, 2010)

31

instituies a assumirem formas discriminativas e que geram esvaziamento das funes do

Estado.

Juridicamente, de acordo com a Lei n 10.406/02 do Cdigo Civil, o terceiro setor

dispe de duas formas jurdicas: as associaes e as fundaes. Segundo Szazi (2006, p.27)

as associaes podem ser definidas como uma pessoa jurdica criada a partir da unio de

idias e esforos de pessoas em torno de um propsito que no tenha finalidade lucrativa.

Entretanto, as instituies podem ser de cunho social, quando suas aes so destinadas a

benefcios pblicos, ou de cunho associativo, quando seu propsito defender o interesse de

seus associados como, por exemplo, clubes recreativos.

Para criar uma associao, deve ser realizada uma assemblia, eleger uma diretoria,

elaborar um estatuto social, eleger os dirigentes. Feito isso, deve-se fazer o registro de pessoa

jurdica em cartrio e, em seguida, providenciar a inscrio no CNPJ e na prefeitura nos

rgos compatveis a natureza da entidade (Secretaria de Sade, Educao ou Promoo

Social).

As Fundaes so definidas conforme a Curadoria de Belo Horizonte, So Paulo e

Braslia como, um patrimnio destinado a servir, sem intuito de lucro, a uma causa de

interesse pblico determinada, que adquire personificao jurdica por iniciativa de seu

instituidor (SZAZI, 2006, p.37).

Dessa forma, as fundaes podem ser criadas pelo Estado, como pessoa jurdica de

direito pblico e por indivduos ou empresas assumindo natureza de direito privado. Para

constituir uma Fundao, o seu fundador deve se manifestar mediante escritura pblica ou

testamento declarando bens e patrimnios suficientes para o objetivo proposto e delinear os

fins que a fundao se destina. A solicitao ocorre via Ministrio Pblico17

. Sendo aprovada,

faz-se o registro da escritura no Cartrio de Registros de Pessoa Jurdica, inscrio no CNPJ e

na prefeitura ou nos rgos de controle de acordo com a finalidade da Fundao.

Segundo a Cartilha da OAB (2007), alm dos registros obrigatrios, referentes

natureza jurdica, as organizaes podem buscar Ttulos, Certificados e Qualificaes a fim de

alcanar benefcios jurdicos, credibilidade, acesso a recursos pblicos e incentivos fiscais. Os

principais so: Utilidade Pblica Federal18

; Registro no Conselho Nacional de Assistncia

17

Em funo do grande nmero de Fundaes foi criada em algumas comarcas a promotoria de justia

especializada no papel do curador de fundaes a fim de aprovar os registros, acompanhar as entidades e

garantir as aes direcionadas para os fins estabelecidos. 18

Outorgada pelo Ministrio da Justia mediante avaliao de documentos. As vantagens adquiridas com o titulo

referem-se a possibilidade de oferecer deduo fiscal do imposto de renda, acesso a subveno federal e acesso a

doaes da Receita Federal.

32

Social19

, Certificado de Entidade Beneficente de Assistncia Social20

, Qualificao como

OSCIP e Qualificao como OS. As duas ltimas j discutidas anteriormente.

No segundo Governo de Fernando Henrique Cardoso, com o discurso de garantir um

ajuste das contas pblicas, no primeiro semestre do ano 2000 foi aprovada a Lei de

Responsabilidade Fiscal LRF (Lei Complementar n 101), que criou limites e

responsabilidade penal para responsveis pelos gastos pblicos. A proposta visou evitar o

excesso de gastos pblicos e, principalmente, o endividamento de prefeituras e governos

atravs de grandes construes, por exemplo. Alm disso, buscou promover transparncia nos

gastos pblicos.

Esta legislao incidir na estruturao de Polticas Pblicas, pois a partir disso os

oramentos pblicos e a contratao de profissionais21

devero se enquadrar nos ajustes da

LRF. Diante disso, as privatizaes e a tri-setorialidade (Estado, Mercado, Organizaes no-

governamentais) oferecem uma sada para no ultrapassar os gastos permitidos.

Neste contexto, entram em cena dois fenmenos: o Voluntariado e a Responsabilidade

Fiscal Empresarial.

De acordo com Souza, R. (2008), a ONU criou o Programa dos Voluntrios das

Naes Unidas em 1970, mas s em 1998 que ele foi regulamentado no Brasil objetivando

funcionar como um programa voltado para o desenvolvimento. A ONU tambm instituiu, em

1985, o dia 5 de dezembro como Dia Internacional do Voluntariado para o Desenvolvimento

Econmico e Social. Neste ano foi organizada campanha com o slogan Faa Parte, cujo

objetivo era incentivar o trabalho voluntrio atravs dos diversos meios de comunicao. O

ano de 2001 foi intitulado como o Ano Internacional do Voluntariado, a fim de estimular a

ao entre pessoas, empresas e instituies. O Conselho da Comunidade Solidria tambm

trabalhou para estimular aes voluntrias no Brasil fundando o Centro de Voluntariado em

1997.

Em 18 de fevereiro de 1998 foi aprovada a Lei n 9.608, que dispunha sobre o servio

voluntrio.

19

Registro de instituies que provam atividades na rea da Assistncia Social, assistncia educacional e de

sade e desenvolvimento cultural. A vantagem a possibilidade de acesso a recursos pblicos por meio de

convnios com CNAS. 20

S pode ser solicitado aps trs anos de registro no CNAS. A principal vantagem a iseno do recolhimento

da cota patronal da contribuio previdenciria. 21

Os gastos com funcionalismos nos Municpios e Estados no podem ultrapassar 60% das receitas corrente

liquida.

33

Considera-se servio voluntario, para fins desta lei, a atividade no remunerada,

prestada por pessoa fsica a entidade pblica de qualquer natureza ou instituio

privada de fins no lucrativos, que tenha objetivos cvicos, culturais educacionais,

cientficos, recreativos ou de assistncia social, inclusive mutualidade. (Lei n 9.608,

Art 1)

Para Souza (2008), o voluntariado passa a ser disseminando no Brasil nos anos 90,

com o discurso de uma forma de protagonismo juvenil considerando o trabalho voluntrio

como uma formao e capacitao para o mercado de trabalho, alm da prtica de cidadania.

Esta forma de ao nega a questo de direito, pois a populao carente vista como

pessoa que precisam de ajuda. A pobreza no aparece como fatos sociais que precisam de

ao poltica, mas de forma naturalizada.

A relao estabelecida pelo trabalho voluntrio uma relao privada, entre dois

tipos de individuo em condio de desigualdade: o doador e o receptor de bens e

servios. O voluntariado no cria uma esfera pblica, visto que a construo de um

espao pblico supe que os sujeitos possam se encontrar em condio de igualdade

e assim possam tornar visveis, pertinentes, legtimas e ouvidas as suas demandas.

(SOUZA, 2008, p.91)

A autora alerta para o discurso homogeneizador do Faa Parte, isto , o discurso

ilusrio de pertencimento a uma grande rede em prol da solidariedade e transformao social.

Ainda nesse sentido, Souza (2008) pontua: a participao cidad vem ocupando o lugar da

participao poltica.

O outro fenmeno que ganhou destaque no final do sculo XX, num mundo

globalizado, competitivo e com a reduo do Estado foi a Responsabilidade Social

Empresarial (RSE). De acordo com Ashley (2005), a dcada de 90 veio repleta de

questionamentos em relao s questes sociais e ambientais, e a responsabilidade social

passa a ser apresentada como estratgia de sobrevivncia das empresas em longo prazo. Alm

disso, a descentralizao, oriunda dos ajustes neoliberais, e a nova forma de formular Polticas

Pblicas, envolvendo diversos setores no processo, contriburam para o fortalecimento da

idia.

Com isso, Responsabilidade Social passa a ser um diferencial para as Empresas, que

passam a se perceber como atores sociais responsveis em diminuir a desigualdade social do

Pas e, a partir disso, as empresas tendem a se preocupar com tica nos negcios, valores

morais, cidadania e preservao ambiental.

34

Ao mesmo tempo, a partir dos anos 90 foram aumentando as produes acadmicas

sobre o assunto e comearam a surgir organizaes promotoras do conceito como, o Grupo de

Instituto, Fundaes e Empresas (GIFE), fundado em 1995, e o Instituto Ethos22

, fundado em

1998, ambos divulgando o campo da responsabilidade social como referencial de sucesso nos

empreendimentos e reconhecimento das empresas contemporneas.

Com o objetivo de fomentar a mudana no universo empresarial e verificar se as

empresas esto de fato praticando a responsabilidade social, em 1997 foi lanada a norma de

certificao com nfase social, a SA 8000. Trata-se de uma norma internacional que oferecem

diretrizes e indicadores sobre o caminho da RSE permitindo a auditoria social das empresas.

Contudo, importante salientar que a RSE ainda continua a passos curtos, atuando, em

muitos casos, sob a lgica da benevolncia e assistencialismo, resumindo suas aes a doao

de dinheiro e programas de voluntariado, ou seja, dissociada de uma mudana cultural efetiva.

(ASHLEY, 2005).

No Governo Lula, em 13 de setembro de 2007, o Governo Federal enviou ao

Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar n 92/07, com objetivo de regulamentar

a nvel federal a criao de fundaes institudas pelo Poder Pblico.

O projeto autoriza a possibilidade de ser instituda fundao sem fins lucrativos com

personalidade jurdica de direito privado ou pblico, para o exerccio de atividades que no

exijam o uso de poder pblico do Estado, como: sade, assistncia social, cultura, tecnologia,

meio ambiente, comunicao social e turismo. (BRASIL, Fundao Estatal, 2007).

No que se referem s Fundaes, as configuraes poltico-administrativas ainda esto

confusas. Szazi (2006), que compilou em sua obra toda a regulamentao do terceiro setor,

no discorreu sobre a Fundao Pblica provavelmente em funo dos pormenores que as

constitui.

A Constituio prev dois modelos de organizao pblica brasileira: as fundaes de

direito pblico (instituda pelo Estado) e as fundaes de direito privado (instituda por seu

idealizador: pessoa fsica ou jurdica). A primeira, que est totalmente ligada ao Estado,

regida pelo regime jurdico de direito pblico, onde esto os servidores pblicos, cujo

regime de trabalho de natureza pblica. J na segunda os empregos so regime CLT e,

apesar de fiscalizada pelo Ministrio Pblico, possuem maior autonomia de gesto.

De acordo com o Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto (2007), a figura

jurdico-institucional das Fundaes foi objeto de intenso debate no Supremo Tribunal

22

Inicialmente contava com 11 empresas filiadas e atualmente j possui cerca de 1.300 associados.

35

Federal em 2006. De acordo com o Procurador Geral da Repblica, pode-se visualizar no

Brasil trs tipos de Fundaes: as privadas, as pblicas de direito privado e as pblicas

propriamente ditas. O primeiro tipo seria a nica que prescinde de lei para sua criao.

A Legislao vigente no inciso XIX do art. 37 da Constituio dispe que somente

por lei especfica poder ser criada autarquia e autorizada a instituio de empresa pblica,

sociedade de economia mista e de fundaes, cabendo a lei complementar, neste ltimo caso,

definir as reas de atuao. Com isso, a criao de uma fundao est ligada lei

autorizativa23

e a necessidade de lei complementar dispondo do seu campo de atuao.

A proposta da Fundao Estatal de direito privado como entidade integrante da

administrao pblica indireta pretende redefinir seu campo de atuao, alm de conferir

autonomia administrativa, financeira, oramentria e patrimonial. Ou seja, um novo modelo

jurdico-institucional que inove o padro de gesto.

(...) as fundaes estatais regidas pelo direito privado podem ser um modelo de

entidade governamental com maior autonomia e grande utilidade para a prestao de

servio pblico no exclusivo do Estado, ou seja, servios pblicos da rea social,

em especial, os servios de sade24

. (SANTOS, L. 2006, p. 10).

Nesses moldes, as Fundaes Estatais, resumidamente, gozam de autonomia

administrativa atravs de um contrato de gesto25

. Possuem um conselho curador e uma

diretoria administrativa. Seu regime de compras de bens e servios segue as regras de

licitao pblica. No entanto, pode-se instituir outros modelos de disputa pblica conforme

sua lei de criao. O regime de trabalho CLT com princpios de administrao pblica

(concursos pblicos, demisso mediante processo administrativo e avaliao de desempenho).

Trata-se de uma estabilidade relativa que protege o trabalhador do mau gestor, mas sem

deixar de proteger o usurio do mal trabalhador, e isso fundamental para a legitimidade do

servio e do servidor pblico (PINTO, H. et al. Secretaria de Sade da Bahia26

, p.04)

Para Santos, L. (2006) a proposta requer uma reforma de gesto, sem que se tenha o

olhar voltado apenas para o Terceiro Setor, desqualificando a administrao pblica como

23

Cabe a lei autorizativa definir os aspectos bsicos sobre sua direo, administrao e contrato de gesto

firmado com o Poder Pblico. 24

A especialista em direito sanitrio Lenir Santos juntamente com outros pesquisadores, tem realizado estudos

sobre a fundao governamental regida pelo direito privado nas dimenses jurdicas, da gesto e de recursos

humanos, objetivando a transformao de hospitais. Em 2005 o modelo foi experimentado em um grupo

hospitalar de Porto Alegre e, desde 2006, o modelo tem sido experimentado em hospitais do Rio de Janeiro. 25

Tem como meta a contratao de servios e metas de desempenho das entidades. (BRASIL, Projeto Fundao

Estatal, 2007). 26

Documento disponvel em www.saude.ba.gov.br (sem ano).

http://.saude.ba.gov.br/

36

ineficiente e incapaz. Considera a Fundao Estatal como um modelo que possibilita

modernizar o Estado acabando com a viso dos anos 90 de que isso somente seria possvel

fora do Estado, como se o Estado pudesse ser substitudo pelo setor privado ao invs de

complementado, em algumas aes e servios, quando e se necessrio (SANTOS, L., 2006,

p. 14).

Resumimos da seguinte forma, o Governo est buscando a regulamentao federal de

uma via do meio, as Fundaes Estatais de direito privado. No entanto, atravs de leis

autorizativas municipais, j encontramos este formato nas administraes municipais, o que,

inclusive, objeto de estudo desta pesquisa.

1.3 Promessas e desafios deste novo setor

O Terceiro Setor emerge nos anos 90, imerso em um sistema que engloba diferentes

setores: o empresariado abarcado atravs da RSE e investimentos em projetos sociais, a

sociedade civil atravs do controle, participao nos espaos pblicos e trabalho voluntrio e

as organizaes no-governamentais atravs da execuo das polticas pblicas em parceria

com um Estado minguante.

Dessa maneira, essa forma poltica administrativa surge como a grande promessa de

transformao social e com um discurso de que as questes sociais devem ser compartilhadas

entre diferentes esferas a fim de alcanar solues. No entanto, o que temos presenciado vinte

anos depois uma confuso de identidade e um emaranhado de desencontros.

Observa-se, de acordo com Souza (2008), uma sociedade composta por diferentes atores,

no qual o Estado apenas um deles. Tal fato desmonta os direitos adquiridos com a

Constituio de 1998 e escamoteia conflitos e jogos de interesse. Ou seja, vrias lideranas

adentram o Poder Pblico havendo um desmonte das polticas sociais em substituio pelas

polticas neoliberais e polticas em parceria com o terceiro setor.

Santos, Boaventura (1998, p. 7), h doze anos, considerou que o que est em crise no

Estado o seu papel na promoo de intermediao no mercantis entre cidados que o

Estado tem desempenhado nomeadamente atravs da poltica fiscal e das polticas sociais.

Acredita que foi um perodo marcado por problematizaes de como produzir estes bens

pblicos neste novo modelo de regulao. O terceiro setor ressurge com esta promessa, de

gerir esta tenso e assumir o compromisso com a dimenso social do Estado atravs d