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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Luciano Alves Rossato O Dever-Poder de Recorribilidade do Poder Público Diante de Pronunciamentos Fundados em Precedentes Direito São Paulo 2016

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Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Alves... · Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Luciano Alves Rossato O Dever-Poder de Recorribilidade

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Luciano Alves Rossato

O Dever-Poder de Recorribilidade do Poder Público Diante de Pronunciamentos

Fundados em Precedentes

Direito

São Paulo

2016

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LUCIANO ALVES ROSSATO

O Dever-Poder de Recorribilidade do Poder Público Diante de Pronunciamentos

Fundados em Precedentes

Doutorado em Direito

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

DOUTOR em Direito Processual Civil, sob a

orientação do Prof. Dr. William Santos Ferreira.

São Paulo

2016

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Banca Examinadora

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RESUMO

A ordem jurídica brasileira está inserida em um contexto de múltiplos sistemas, comunicantes entre si: federativo, de jurisdição una e de civil law, sob o denominador comum do Estado Democrático de Direito. A lei (sentido amplo) é a base desse complexo e pauta a conduta do Estado, da sociedade e dos cidadãos, sendo fruto do labor do Poder Legislativo, a quem foi dada essa atribuição pelo quadro organizatório traçado pela Constituição Federal. De outro lado, buscar o sentido do texto legal é tarefa de todos, sobretudo da Administração Pública, vinculada que é à juridicidade, à finalidade pública e à moralidade, devendo ser respeitado o campo decisório que lhe é restrito. Não obstante seja a interpretação da lei de titularidade múltipla, franqueia-se a última palavra ao Poder Judiciário, guardião da Constituição e de seus valores e princípios, de modo que os precedentes, concebidos como pronunciamentos judiciais obrigatórios, vinculam especialmente a Administração Pública, exigindo-se análise de seu órgão de consultoria jurídica e representação judicial - Advocacia Pública – quanto à extensão da ratio decidendi e identificação de hipóteses que, por coerência, será possível a extensão da solução engendrada na esfera judicial. Dessa maneira, o precedente poderá gerar reflexos no âmbito interno da Administração Pública, como também em relação aos litígios em que esta for parte. Nessa linha, o poder público atuará com inobservância do regime jurídico-administrativo-processual – formado pelos princípios da Administração Pública e da boa-fé processual – se acaso impugnar as decisões judiciais proferidas em conformidade com o precedente, salvo quando, existindo interesse recursal qualificado, possa confrontá-lo e, se o caso, valer-se das técnicas da distinção e da superação, bem como da modulação de efeitos com a finalidade de tutelar a confiança da pessoa jurídica de direito público na estabilidade do entendimento jurisprudencial.

Palavras-chave: federalismo, jurisdição una, civil law, precedentes, Administração

Pública, dever-poder de recorrer, interesse recursal qualificado e tutela da confiança.

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ABSTRACT

Brazilian law system is in a multiple systems context, which are interconnected: federal,

singles and civil law, under the common element of the Democratic State of Law. The

law (broad sense) is the base of this complex and guides the conduct of the State, the

society and the citizens, as a result of the work of Legislative Power, to which this

assignment was given by the organizational framework outlined by the Federal

Constitution. On the other hand, to seek the meaning of the legal text is everyone’s task,

especially of the Public Administration, since it is bound to jurisdicity, public purpose and

morality, and it must respect the decision-making field to which it is restricted.

Notwithstanding the interpretation of law is of multiple entitlements, it grants the final say

to the Judiciary Power, guardian of the Constitution and its values and principles, so that

the precedents, conceived as obligatory judicial pronouncements, bound, especially, the

Public Administration, requiring the analysis of its consultancy and judicial

representation body – Public Attorneys – regarding the extension of the ratio decidendi

and identification of hypothesis that, for consistency, it will allow the extension of the

engendered solution in the judicial scope. Thus, precedent can generate reflexes in the

internal aspect of the Public Administration, as well as regarding the disputes in which it

is party. Therefore, public power will operate disregarding the legal-administrative-

procedural – formed by the Public Administration and procedural bona fides – if it

challenges the judicial decision according to the precedent, except if there is a qualified

interest to appeal, which it may confront and, if that is the case, count on the techniques

of distinction and surpassing, as well as the modulation of effects, with the purpose of

the legitimate expectations of the legal entity under public law in the stability of the

understanding of jurisprudence.

Keywords: federalism, single jurisdiction, civil law, precedents, Public Administration,

power-duty to appeal, qualified interest to appeal and legitimate expectations.

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Sumário

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1. COMPLEXO DE SISTEMAS JURÍDICOS E OS PRECEDENTES ................................................................. 15

1. O Estado Democrático de Direito como denominador comum ...................................................................... 15

2. O Estado Federado Brasileiro e a jurisprudência ............................................................................................ 18 2.1 A origem e caminhada do Estado Federado Brasileiro .................................................................................. 18 2.2 Princípio da simetria e os precedentes .......................................................................................................... 23

3. Personalidade jurídica dos entes públicos, a Administração Pública e o princípio da igualdade ................... 27 3.1 O Estado como um Ser Real ........................................................................................................................... 27 3.2 O Conceito de fazenda pública e suas dimensões ......................................................................................... 30

4. Sistemas de resolução de demandas que envolvam o poder público ............................................................ 31 4.1 Considerações iniciais .................................................................................................................................... 31 4.2 Sistema de jurisdição administrativa ............................................................................................................. 32

4.2.1 Observações gerais sobre o sistema ...................................................................................................... 32 4.2.2 A Jurisdição administrativa portuguesa e a jurisprudência .................................................................... 35

4.3 Sistema de jurisdição una, sistema inglês ou pleito cível lato sensu ............................................................. 41 4.4 Jurisprudência no sistema de Civil Law .......................................................................................................... 43

5. Sistemas de Common Law e de Civil Law ........................................................................................................ 45 5.1 O precedente como ponto central dos estudos das famílias jurídicas .......................................................... 45 5.2 Sistema de Common Law ............................................................................................................................... 45 5.3 Sistema de Civil Law ....................................................................................................................................... 48 5.4 Aproximação entre os sistemas de Common Law e de Civil Law .................................................................. 49 5.5 O Direito brasileiro: sistemas aliados ............................................................................................................ 52 5.6 Sistemas de Common Law e de Civil Law e Direito Administrativo ............................................................... 54

6. Conclusões parciais ......................................................................................................................................... 58

CAPÍTULO 2. O PRECEDENTE NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO ......................................................................... 60

1. Conceitos importantes: a jurisprudência, o exemplo, a súmula e o precedente ............................................ 60 1.1 Jurisprudência ................................................................................................................................................ 60 1.2 Jurisprudência defensiva ............................................................................................................................... 62 1.3 Jurisprudência e jurisprudência vinculante ................................................................................................... 71 1.4 Exemplo / Decisão ......................................................................................................................................... 76 1.5 Súmula ........................................................................................................................................................... 78 1.6 Precedente ..................................................................................................................................................... 80

2. Precedente ...................................................................................................................................................... 81 2.1 Conceito ......................................................................................................................................................... 81

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2.2 A força do precedente ................................................................................................................................... 82 2.3 Ratio Decidendi: relevância prática de sua determinação ............................................................................ 87 2.4 O precedente como fonte jurídica formal ..................................................................................................... 91 2.5 Precedente administrativo ............................................................................................................................ 97 2.6 O efeito vinculante do precedente no modelo de Common Law .................................................................. 99 2.7 Efeito vinculante do precedente: o que diz a doutrina brasileira? .............................................................. 100

3. Valores do Estado de Direito a serem tutelados ........................................................................................... 109 3.1 Previsibilidade jurídica ................................................................................................................................. 109 3.2 Igualdade jurídica......................................................................................................................................... 110 3.3 Imparcialidade ............................................................................................................................................. 111

4. Diferença entre o efeito vinculante e o efeito erga omnes .......................................................................... 112

5. Efeitos dos precedentes no âmbito processual ............................................................................................ 113

6. Dever de estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência pelos Tribunais ...................................... 114

7. A qualidade da decisão judicial ..................................................................................................................... 117

8. Os precedentes no CPC de 2015 ................................................................................................................... 119 8.1 Apontamentos preliminares ........................................................................................................................ 119 8.2 Decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade ........................ 121 8.3 Súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal e Súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ

em matéria infraconstitucional ......................................................................................................................... 122 8.4 Incidente de resolução de demandas repetitivas ........................................................................................ 123 8.5 Recurso extraordinário repetitivo ............................................................................................................... 127 8.6 Recurso especial repetitivo .......................................................................................................................... 127 8.7 Precedentes oriundos do Plenário ou do Órgão Especial ............................................................................ 129

9. Técnicas de manuseio dos precedentes ........................................................................................................ 129

CAPITULO 3. OS PRECEDENTES, A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A LITIGIOSIDADE ............................................... 130

1. A constituição do sistema de precedentes e a Administração Pública ......................................................... 130

2. A sujeição da Administração Pública ao Direito ............................................................................................ 135

3. O precedente como fonte jurídica da Administração Pública e os deveres de estabilidade, integridade e

coerência ................................................................................................................................................................ 144

4. Ambiente decisional e regime administrativo ............................................................................................... 148

5. A discricionariedade administrativa, o ambiente decisional e o precedente ............................................... 153

6. A Administração Pública e a extensão subjetiva da vinculação do efeito vinculante ................................... 157

7. A adoção do sistema de precedentes como medida adequada à boa administração .................................. 158 7.1 Definição da boa administração pública ...................................................................................................... 158 7.2 Princípio da impessoalidade ........................................................................................................................ 161 7.3 Princípio da supremacia do interesse público ............................................................................................. 162 7.4 Segurança jurídica ........................................................................................................................................ 163

7.4.1 Considerações iniciais ........................................................................................................................... 163 7.4.2 Conotações da expressão segurança jurídica ....................................................................................... 164 7.4.3 Beneficiários da segurança jurídica ...................................................................................................... 165

7.5 Diferenças entre a segurança jurídica e a tutela da confiança .................................................................... 167

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8. Eficácia da jurisprudência .............................................................................................................................. 170

9. A missão da Advocacia Pública frente a um novo desafio ............................................................................ 171

10. Conclusões parciais ................................................................................................................................... 175

CAPÍTULO 4. O REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO-PROCESSUAL E O DEVER-PODER DE RECORRIBILIDADE .... 177

1. Considerações Iniciais sobre o regime jurídico-administrativo-processual .................................................. 177

2. A relação entre os precedentes e a conduta da Administração Pública no âmbito processual ................... 179

3. Meios impugnativos das decisões judiciais para prevalecer a autoridade dos precedentes ........................ 183 3.1 Considerações iniciais: os pronunciamentos judiciais impugnáveis por meio dos recursos ....................... 183 3.2 Meios de impugnação das decisões judiciais em busca da defesa da autoridade do precedente .............. 186 3.3 A remessa necessária e o dever do tribunal de adequar a sentença ao precedente .................................. 188 3.4 A formação do precedente em sede de remessa necessária ...................................................................... 192 3.5 Superação e distinção em sede de remessa necessária .............................................................................. 193 3.6 A dispensa da remessa necessária como efeito da edição de orientação normativa dispensadora da

interposição de recursos ................................................................................................................................... 194

4. Limites éticos à interposição de recursos ..................................................................................................... 195 4.1 Considerações iniciais .................................................................................................................................. 195 4.2 O princípio processual da boa-fé objetiva ................................................................................................... 195 4.4 A litigância de má-fé no exercício do recurso .............................................................................................. 198 4.5 Situações específicas ................................................................................................................................... 201

5. Situações jurídicas processuais em espécie: o dever-poder de agir do poder público ................................. 202 5.1 Para começar ............................................................................................................................................... 202 5.2 Direito e obrigação processual .................................................................................................................... 203 5.3 Dever processual ......................................................................................................................................... 206 5.4 Ônus processuais ......................................................................................................................................... 208 5.5 Poderes processuais .................................................................................................................................... 210 5.6 Poder-dever ................................................................................................................................................. 211 5.7 O ato de recorrer como poder processual ................................................................................................... 213 5.8 O recurso das pessoas jurídicas de direito público como dever-dever processual ..................................... 214

6. Juízo valorativo de recorribilidade ................................................................................................................ 216 6.1 Considerações iniciais .................................................................................................................................. 216 6.2 O entendimento do advogado público versus o defendido pela instituição a que vinculado ..................... 219 6.3 As dispensas genérica e casuística do exercício de recorrer ....................................................................... 223

6.3.1 Dispensa genérica ................................................................................................................................. 224 6.3.2 A dispensa casuística de interposição de recurso ................................................................................ 228

7. O dever-poder de recorrer das pessoas jurídicas de direito público ............................................................ 230

8. Os requisitos de admissibilidade dos recursos e o interesse de recorrer qualificado pelo interesse público

233 8.1 Classificação dos requisitos de admissibilidade ........................................................................................... 233 8.2 Legitimidade para recorrer .......................................................................................................................... 234 8.3 Interesse recursal......................................................................................................................................... 249

9. O regime jurídico-administrativo-processual e o interesse em recorrer: interesse recursal qualificado ..... 252

10. Conclusões parciais ................................................................................................................................... 255

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CAPÍTULO 5. O DEVER-PODER DE RECORRER DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO DIANTE DE

PRONUNCIAMENTO EM QUE É (IN)APLICÁVEL O PRECEDENTE ........................................................................... 256

1. Observações preliminares ............................................................................................................................. 256

2. Retomando o interesse recursal qualificado ................................................................................................. 259

3. Dever-poder decorrente de omissão de aplicabilidade do precedente ........................................................ 264 3.1 O Contraditório Dinâmico e a Fundamentação Analítica ............................................................................ 264 3.2 Conhecimento de ofício do precedente ...................................................................................................... 265 3.3 Decisão judicial per incuriam ....................................................................................................................... 267 3.4 A decisão de mérito e os embargos declaratórios com efeito infringente para suprir omissão ................. 267 3.5 Conhecimento omissão existente na sentença quando do julgamento de apelação ................................. 269 3.6 Prequestionamento da matéria ................................................................................................................... 270

4. O dever-poder de recorrer em razão da aplicabilidade incorreta de precedente ........................................ 270 4.1 A confrontação do precedente .................................................................................................................... 270

5. O dever-poder de recorrer para a correta aplicação da técnica da distinção ............................................... 272 5.1 A técnica da distinção na sistemática de precedentes ................................................................................ 272 5.2 O raciocínio por comparações: a distinção entre precedentes ................................................................... 274 5.3 Dever-poder de recorrer na distinção entre casos ...................................................................................... 275 5.4 A distinção entre o caso paradigma e o recurso sobrestado ....................................................................... 276 5.5 A omissão decorrente da falta da distinção ................................................................................................ 277

6. Dever-poder de recorrer para aplicação da técnica da superação ............................................................... 278 6.1 A superação total e parcial do precedente .................................................................................................. 278 6.2 O processo de superação do precedente no CPC 2015 ............................................................................... 280

6.2.1 Superação por procedimento de revisão de tese ................................................................................ 280 6.2.2 Superação reconhecida em julgamento de recurso e remessa necessária. ......................................... 283

6.3 A modificação das súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal ........................................................ 286 6.4 A modificação das súmulas editadas pelo Superior Tribunal de Justiça ...................................................... 286

7. Dever-poder de recorrer para obtenção da modulação dos efeitos ............................................................. 287 7.1 A modulação decorrente da declaração de inconstitucionalidade ............................................................. 287 7.2 Modulação decorrente de mudança jurisprudencial................................................................................... 288 7.3 Diferenciação do quórum na modulação de efeitos ................................................................................... 291 7.4 Modulação dos efeitos em favor da fazenda pública .................................................................................. 291 7.5 Modulação de efeitos no caso concreto ...................................................................................................... 292

8. Dever-poder de recorrer e a tutela provisória fundada em precedentes em face do poder público ........... 295 8.1 Observações iniciais ..................................................................................................................................... 295 8.3 A tutela provisória no CPC de 2015 ............................................................................................................. 297 8.5 Tutela satisfativa requerida de forma antecedente .................................................................................... 298 8.6 A estabilização da tutela antecipada antecedente ...................................................................................... 299 8.7 A tutela da evidência ................................................................................................................................... 301 8.8 O precedente e a tutela de urgência e a tutela da evidência ...................................................................... 302 8.9 Regime jurídico da tutela provisória contra o poder público e os precedentes .......................................... 304 8.10 A tutela da evidência fundada em precedentes e o poder público ........................................................... 305

CONCLUSÃO........................................................................................................................................................ 307

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS ............................................................................................................................. 312

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Dedico...

à minha Linda,

Com quem tenho a alegria de dividir fortes emoções.

E aos nossos filhos Antônio e Theodoro,

Nossa razão de lutar por um futuro melhor.

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AGRADECIMENTOS

Foram muitos os que, direta ou indiretamente, me ajudaram a concluir este trabalho.

Os meus sinceros agradecimentos...

... à minha esposa pela compreensão e paciência;

...aos meus filhos Antônio e Theodoro, pelo seu carinho;

....aos meus pais, Antônio e Nilva, pela oração;

... ao meu orientador, Prof. Dr. William Santos Ferreira,

com quem sempre pude contar;

... aos Drs. João César, Paulo Lépore e

Camilo Zufelato, com quem pude trocar várias ideias sobre o trabalho;

... a Dra. Marisa, minha estimada amiga,

que pacientemente revisou o trabalho;

... aos meus amigos e colegas da

Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,

notadamente Drs. Fabiana, Tiago, Regina e Débora,

com quem eu sempre pude contar.

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12

INTRODUÇÃO

A investigação sobre a litigiosidade envolvendo a Fazenda Pública sempre foi

alvo de meu interesse, nutrido pelo anseio de resolver os vários problemas que

possuem inter-relação com o tema, sobretudo quanto à eventual necessidade de

observância obrigatória da jurisprudência.

E o meu interesse foi consideravelmente majorado em vista dos escritos

doutrinários nacionais atuais1, que defendem a formação de um sistema de

precedentes entre nós, dotado de características próprias, mas sem prejuízo, é claro,

da ressalva àqueles que pensam contrariamente.2

De fato, sendo o Brasil um país integrante da família jurídica de civil law, torna-

se aparentemente contraditório imaginar a possibilidade de se adotar o sistema de

precedentes.

Contudo, como será visto, o mundo jurídico vem se deparando com a

aproximação das famílias jurídicas de common law e de civil law, numa possível

circulação de modelos, experiência essa que também é presenciada em países

tradicionais, como é o caso da Inglaterra, que adotou um Código de Processo Civil (Civil

Procedure Rules).3

1 Entre vários doutrinadores, encabeçam a lista Teresa Arruda Alvim Wambier (A vinculatividade dos precedentes e o ativsmo judicial – paradoxos apenas aparentes. DIDIER, Fredie (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 273), Luiz Guilherme Marinoni (Precedentes obrigatórios. 4. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 288) e Daniel Mitidiero (Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 81). 2 Destacando-se, entre outros, Cássio Scarpinella Bueno, segundo o qual a vinculação do precedente deve, necessariamente, decorrer do texto constitucional. Manual de Direito Processual Civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 595. No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: 2015, p. 1.837. 3 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A revolução processual inglesa. Revista de Processo. Vol. 118/2004. São Paulo: RT, p. 75-88. Não pode deixar de ser destacado na Inglaterra, país de tradição de common law, vem-se constantando a proliferação de princípios processuais, tal como observou Neil Andrews: “I will now end with five observations. First, the author's first list, in 1993, comprised eleven principles, and three "noble aspirations". In 2003 the list had expanded to twenty four principles. The principles had become more numerous than JS Bach's children: he had twenty. However, unlike Bach and his children, Andrews does not father principles, he merely finds them and gives them shelter”. Identifying fundamental principles of civil justice. Revista de Processo. Vol. 178/2009. São Paulo: RT, 2009, p. 121.

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13

No Brasil, com a Constituição Federal de 1988 e a concepção de sua força

normativa,4 a liberdade judicial decorrente do julgamento a partir de princípios

constitucionais e de outros valores fez com que, para uma mesma situação, fossem

possíveis a adoção de diversões soluções, afastando-se este de um necessário

ambiente dotado de previsibilidade. O texto legal, embora esse fosse o seu primeiro

objetivo, quando interpretado, passou a admitir o exercício de argumentação capaz de

se chegar a resultados diferentes, com ofensa ao princípio da igualdade.

Por esse motivo, paulatinamente, o legislador brasileiro foi encampando um

sistema de observância da jurisprudência, chegando-se ao atual estágio, que conta

com o Código de Processo Civil de 2015 como fonte legal última desse processo de

mudança, com a concepção de que lei e atribuição de sentido não são totalmente

dissociados, mas este é complementar àquela.

Diante dessa realidade, é preciso investigar se a Administração Pública, não

obstante o princípio da separação de Poderes, está vinculada à decisão judicial e se o

precedente pode produzir efeitos jurídicos internos e também em relação aos processos

judiciais dos quais aquela faz parte.

Nesse ponto será importante também verificar, com o objetivo de suprir a

lacuna existente na ciência processual, como devem as pessoas jurídicas de direito

público se comportarem diante de uma decisão judicial que possa ser considerada

como um clear case, ou seja, um caso decidido com o amparo em precedente (que se

contrapõe ao hard case)5, bem como se a impugnação dessas decisões decorre de

alguma característica ínsita à condição de pessoas com atuação vinculada à ordem

jurídica e aos princípios constitucionais próprios da Administração Pública.

Para se atingir esses objetivos, no primeiro capítulo da tese será investigado se

os vários sistemas a que a República Federativa do Brasil está inserida não se

apresentam como óbices à implementação da obrigatoriedade da observância do

4 A propósito da força normativa da Constituição, Konrad Hesse já sustentava, no ano de 1959, em significativo texto para o Direito Constitucional moderno, que a “Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia. Essa constatação leva a uma outra indagação, concernente às possibilidades e aos limites de sua realização no contexto amplo de interdependência no qual esta pretensão de eficácia encontra-se inserida”. A força normativa da Constituição. MENDES, Gilmar Ferreira (trad.). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 16. 5 TUCCI, José Rogério Cruz e. Parâmetros de eficácia e critérios de interpretação do precedente judicial. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 128.

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precedente. Assim, propõe-se verificar as particularidades do regime federalista

brasileiro e do princípio da simetria, lançando discussão e procurando respostas para

alguns problemas, como, por exemplo, se é possível a formação de precedente no

âmbito dos Tribunais de Justiça.

Também no primeiro capítulo serão investigados os sistemas de resolução de

demandas envolvendo o poder público, sobretudo para verificar as particularidades

existentes no trato da jurisprudência e dos precedentes, bem como as diferenças

existentes entre as famílias jurídicas de common law e de civil law, tudo sob o

denominador comum do Estado Democrático de Direito.

No segundo capítulo, por sua vez, será investigada a proposta de inserção do

precedente no sistema jurídico brasileiro, promovendo-se distinções necessárias, a

verificação de sua estrutura orgânica e verificando se a doutrina brasileira encampa ou

não a ideia de que o precedente tem efeito vinculante.

Ainda neste capítulo, serão vistos os precedentes elencados no Código de

Processo Civil de 2015.

No próximo capítulo (terceiro), será realizada uma interlocução entre os

precedentes, a Administração Pública e a litigiosidade, investigando se o poder público

está ou não sujeito à sua observância e se tal solução representará uma medida

compatível com a boa administração pública.

No penúltimo capítulo (quarto), será visto o que se denominou de regime

jurídico-administrativo-processual e o dever-poder de recorribilidade, a fim de se

analisar se é possível o exercício de juízo valorativo quando se a pessoa jurídica de

direito público está diante de um pronunciamento que, embora imponha uma obrigação,

pode não ser contrário à finalidade pública.

E, por fim, no quinto capítulo, propõe-se avaliar o dever-poder de recorrer

diante de pronunciamento fundado em precedente (clear case), apresentando-se

situações que justificam a interposição do recurso, como ocorre na omissão na

aplicabilidade incorreta, utilização das técnicas da distinção e da superação, a busca

pela modulação de efeitos no caso concreto em prol da pessoa jurídica de direito

público e o dever-poder de recorrer em face de tutela provisória fundada em padrão

decisório fixado.

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CAPÍTULO 1. COMPLEXO DE SISTEMAS JURÍDICOS E OS

PRECEDENTES

1. O Estado Democrático de Direito como denominador comum

Cada ordem jurídica soberana reflete experiência derivada do complexo de

tradições, sistemas e famílias jurídicas, fruto das transformações ocorridas no passar

dos tempos. E cada uma dessas concepções, ainda, comporta adaptação às

necessidades locais e aos influxos do meio.

Então, para se chegar ao modelo encampado pelo Estado em referência, há

necessidade de se analisar as diferentes opções adotadas, partindo-se sempre de um

ponto em comum para a finalidade desta pesquisa.

Assim, independentemente das variantes possíveis, todas aquelas tradições,

sistemas e famílias jurídicas devem estar ligadas intimamente a uma constituição, que

tem como ponto referencial o Estado e que represente a sua estrutura política

conformadora, regida pelos “princípios materiais do constitucionalismo – vinculação do

Estado ao direito, reconhecimento e garantia de direitos fundamentais, não confusão de

poderes e democracia participativa”.6

Todos aqueles sistemas, então, devem prender-se ao Estado Constitucional

que, para corresponder às aspirações do constitucionalismo moderno, há de ser um

Estado Constitucional Democrático de Direito, que concentra a conexão entre

democracia e Estado de Direito.7

Apesar de toda conformação da ordem jurídica e da limitação estatal aos

ditames da constituição, a democracia de direito não acarretou o sepultamento do

caráter protagonista do Estado. É verdade que tal aparente esvaziamento do poder

estatal por conta da globalização poderia levar à conclusão de sua diminuição, mas,

como afirma Luís Roberto Barroso, “o Estado ainda é a grande instituição do mundo

moderno”.8

6 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 87. 7 CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 87. 8 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 70.

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16

Porém, no constitucionalismo moderno não “subsiste a dualidade cunhada pelo

liberalismo, contrapondo Estado e sociedade. O Estado é formado pela sociedade e

deve perseguir os valores que ela aponta”,9 conforme registra Barroso.

E, em um espaço democrático de direito, pautado pela supremacia da

Constituição, em que a figura do Estado possui grande significado e importância, o

conceito de interesse público é fundamental,10 sendo concebido, modernamente, como

a própria finalidade do Estado de Direito. Qualquer conduta em que este fim não seja o

fator motivacional, desvia-se de finalidade própria dos atos da Administração.

O interesse público não se equipara à soma de interesses individuais daqueles

que compõem a sociedade. Busca-se o bem comum, a satisfação coletiva.11 Trata-se

de conceito jurídico indeterminado (ou termo indeterminado de conceito12), a ser

definido13 no caso concreto.

A propósito, Renato Alessi compreende o interesse público como primário e

secundário.14 Como complementa Barroso,

O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em determinada relação jurídica. (...). Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas”.15

No caso de colisão entre esses interesses públicos, há de prevalecer o

primeiro. Merece registro a advertência apresentada por Carvalho Filho a respeito

9 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit, p. 70. 10 A noção de interesse público foi se transformando no transcorrer do tempo e “alvo de cogitação” de poder e de finalidade pública. CARVALHO FILHO, José dos Santos Carvalho. Interesse público: verdades e sofismas. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coord.). Interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 69. 11 CARVALHO FILHO, José dos Santos Carvalho. Op. Cit, p. 73. 12 Para Eros Grau, deparando-se o operador do Direito com alguma expressão imprecisa, deve ter ciência de que esta imprecisão é de seu termo. Em outros termos, a linguagem é imprecisa, mas não o conceito. Não haveria um conceito jurídico indeterminado, mas “termos indeterminados de conceitos”, que devem ser completados com informações extraídas da realidade. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 146. 13 ESCOLA, Hector Jorge. El interés público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 240 e 249. 14 Sistema instituzionale del Diritto Amministrativo italiano. 3ª. ed. Milão: Giuffrè, 1960, p. 197. 15 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit, p. 70.

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dessa contrariedade. Para o aludido autor, não existiria um interesse apenas do Estado,

pois sempre serão também da coletividade.16

Se houver colisão entre o interesse público e o privado, aquele há de

prevalecer, advindo o princípio da supremacia do interesse público, pressuposto lógico

da convivência em sociedade e, embora possa não ter previsão expressa na

constituição (como ocorreu na Constituição Federal de 1988), encontram-se várias

implicações decorrentes de sua existência (como a função social da propriedade).17

Sem prejuízo das várias críticas à consistência da supremacia do interesse

público,18 o fato é que é que a própria noção de ordem jurídica dele se vale,

notadamente quando se analisam as suas várias repercussões.19 O que justificaria a

submissão do particular ao processo desapropriatório? Nada além da supremacia do

interesse da coletividade, que necessita de determinado bem para uma finalidade

pública e que se sobrepõe ao interesse do proprietário.

Tal qual outros princípios, a supremacia do interesse público acompanhou as

várias transformações do Estado. Inicialmente, no Estado Liberal, tinha feição

utilitarista, de modo que servia para “proteger as liberdades individuais como

16 CARVALHO FILHO, José dos Santos Carvalho. Op. Cit., p. 73. 17 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 96. Di Pietro aponta os quatro tipos de atividade que estão compreendidas no conceito de função administrativa e que a supremacia do interesse público é a base: serviço público, fomento, intervenção e polícia administrativa e, a depender da concepção, também a regulação. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 95. 18 Como síntese do posicionamento contrário à subsistência do princípio da supremacia do interesse público, destaca-se a obra Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público (SARMENTO, Daniel (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. Odete Medauar sintetiza as críticas em quatro razões fundamentais: i) a prioridade dos direitos fundamentais; ii) deve a Administração Pública harmonizar os interesses; iii) o sentido do princípio da proporcionalidade; e, iv) não alusão do princípio pela maioria da doutrina administrativista atual. Direito Administrativo moderno. 19ª. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 162-163. Sobre a crítica relativa ao item iii, Di Pietro a rebate com a demonstração do seguinte ponto de vista: “Em primeiro lugar, a ideia de que o interesse público sempre, em qualquer situação, prevalece sobre o particular jamais teve aplicação (a não ser, talvez, em regimes totalitários). Exagera-se o seu sentido, para depois combatê-lo, muitas vezes de forma inconsequente, irresponsável e sob falsos pretextos”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 94. 19 CARVALHO FILHO, José dos Santos Carvalho. Op. Cit., p. 78.

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instrumento de tutela do bem-estar geral”20. Mais adiante, com o Estado Social, o

interesse público passou a levar em conta valores essenciais à digna existência.

Confunde-se, assim, com o conceito de bem comum.21

O princípio da supremacia do interesse público não acarreta na exclusão de

direitos fundamentais. Muito pelo contrário. As prerrogativas próprias da Administração

somente se justificam para a realização do interesse público. De outro lado, são

previstos meios específicos para coibir os abusos que podem ser praticados.22 E as

decisões jurídicas que tratem da matéria (administrativas e judiciais) devem servir-se de

argumentação que adeque a autoridade e a liberdade, com prevalência ao interesse

público.

Tudo isso foi dito com a finalidade de bem enfatizar que o Estado Constitucional

somente estará alinhado ao constitucionalismo moderno se for democrático e de direito,

vigas mestras da ordem jurídica, independentemente do sistema, tradição ou família

jurídica em que se enquadre e que possa ter relação com a proposta de defesa do

Direito, de segurança jurídica e igualdade, conforme adiante será retomado.

Passa-se, na sequência, em revista aos aspectos dos sistemas federativo, de

solução das demandas envolvendo o Estado e de civil law e common law para se

verificar se o nosso país, sob esse prisma, tem condições de impor o respeito à

jurisprudência e adotar um sistema de precedentes.

2. O Estado Federado Brasileiro e a jurisprudência

2.1 A origem e caminhada do Estado Federado Brasileiro

20 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 93. 21 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit., p. 94. 22 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit., p. 99.

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O Estado Federal23 conta com duas ordens jurídicas distintas: a ordem central,

referente à União, e as ordens parciais autônomas, relativas aos Estados-membros.24

Esta pluralidade União/Estados-membros representa a existência de vários focos de

poder, devidamente delimitados, encontrando-se

un campo de competencia para expedición de decisiones próprias por parte de las unidades constitutivas com relación a la entidade central, para tratar de los assuntos de su particular interés, relativos a las peculiaridades correspondientes al espacio territorial delimitado para alcanzar su esfera de poder, que se denomina autonomia, que compreende, simplemente, la capacidad para actuar circunscrita a determinados fundamentos dispuestos previamente em el Texto Constitucional.25

A Constituição Americana é marco no federalismo26 e deu expressão ao

pluralismo político, social e institucional dos territórios que compõem aquele Estado,

assegurando o equilíbrio entre os princípios do self-rule e também do shared rule, que,

respectivamente, referem-se à autonomia territorial e à diversidade plural interna e uma

unidade institucional nacional.27

2323 Conforme enfatiza Paulo Bonavides, é criação da política moderna, pois na antiguidade há vários exemplos de Estados confederados, mas não de Estado Federal. In.: Teoria do Estado. 6ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 180. 24 Não é possível determinar um conceito que seja único em relação ao federalismo. Por isso, há necessidade de que sejam verificadas várias características comuns entre os modelos estatais apresentados, podendo-se reconhecer uma forma de estruturação territorial como sendo federal. CONTIPELLI, Ernani. Una visión general del federalismo brasileño. Cuadernos Manuel Giménez Abad. N. 07. Madrid: 2014, p. 9. 25 CONTIPELLI, Ernani. Op. Cit., p. 12. 26 “A formação de Estados independentes e nacionais do século passado a hoje, primeiro nos Estados Unidos da América, depois na América Latina, depois na Europa e finalmente nos países do Terceiro Mundo através do processo de descolonização, ocorre ora por decomposição de Estados maiores ora pela recomposição de Estados pequenos. Mas sempre a recomposição tende a reforçar os limites internos e a decomposição a afrouxar os limites externos”. BOBBIO, Norberto. Estado governo sociedade. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 105. 27 O federalismo americano surgiu em um contexto culturalmente homogêneo. Em outros países, porém, o federalismo teve origem em necessidade diversa. No Canadá, por exemplo, o federalismo surgiu para responder a uma profunda variedade de etnias e culturas, composta por franceses católicos e ingleses protestantes. BALDI, Brunetta. Federalismo e Secessionismi. Instituzioni del federalismo. Rivista di studi giuridici e politici. Roma: Maggioli Editore, 1997, p. 964. Disponível em: http://www.regione.emilia-romagna.it/affari_ist/Rivista_4_2014/Baldi.pdf. Acesso em 30.01.2016. No Brasil, a origem do federalismo se baseia em “movimento centrífugo”, com formação derivada do repasse do poder da unidade central para as demais entidades, transformando-se as Províncias do Império em Estados-membros. CONTIPELLI, Ernani. Op. Cit., p. 13. Consulta em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/revista?codigo=19613. Acesso em 30.05.2016.

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No Brasil, o federalismo foi introduzido com a proclamação da República (1889)

e, já na primeira Constituição Republicana, de 1891,28 juízes federais estavam

autorizados a consultar a jurisprudência dos Tribunais locais (o que foi inicialmente

previsto no § 2º do art. 59 e, posteriormente, em razão da Emenda Constitucional n.

03/1926, no § 2º, do art. 60). A propósito, assinala Mancuso que, “desde então, o

produto final dos Tribunais esteve presente na práxis judiciária do país, com ênfase a

partir do último quartel do século passado”.29

Se bem que, ao investigar a fundo, constata-se que a valorização da

jurisprudência esteve presente entre nós mesmo antes da proclamação da República,

sob influência de Portugal, ainda que já decretada a independência. A respeito, também

registrou Mancuso

O Brasil-colônia estava integrado ao Reino Unido de Portugal e Algarves, de sorte que, mesmo proclamada nossa independência política (1822), aqui continuaram a projetar efeitos as Ordenações Filipinas e, juntamente com elas, os Assentos da Casa da Suplicação, conforme o autorizava um Decreto de 20.10.1823; e isso sem embargo de que a sobrevinda Constituição do Império (1824) não fizesse referência expressa às Ordenações, nem aos Assentos da Casa da Suplicação. Estes últimos viriam a ser recepcionados formalmente no direito pátrio pelo Decreto Legislativo 2.684, de 23.10.1875, o qual, sobre dar força de lei, no Brasil, àqueles Assentos da Casa da Suplicação (art. 1º), autorizava o Supremo Tribunal de Justiça a levá-los na devida conta ‘para inteligência das leis civis, comerciais e criminais, quando na execução delas ocorrerem dúvidas manifestadas por julgamentos divergentes havidos no mesmo Tribunal, Relações e Juízos de primeira instância nas causas que cabem na sua alçada.30

Com a Constituição Federal de 1891, a República Federativa dos Estados

Unidos do Brasil encampou o direito constitucional norte-americano e,

consequentemente, adotou a garantia da judicial review, com a “garantia de adequação

dos atos do poder público e dos atos dos poderes particulares ao que está preceituado

no texto constitucional”.31 Já então, por influência da cláusula do due processo of law,

adotou-se o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), quando o Poder

28 Em consonância com o Art. 1º - “A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil”. 29 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p.172. 30 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 223. 31 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 25.

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Judiciário deixou de ser um “poder subalterno a exercer a função principal de mediador

entre os poderes, por meio da judicial review”.32

Este controle judicial foi mantido na Constituição de 1934, importante pela

previsão do mandado de segurança, da ação popular, da ação direta interventiva, da

extensão erga omnes do decreto de inconstitucionalidade pelo Senado Federal,

impondo a análise pelo Pleno do Tribunal para o controle de constitucionalidade.33

Também fez previsão do recurso extraordinário, quando houvesse diversidade de

interpretação definitiva da lei federal entre cortes de apelação de Estados diferentes,

inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um destes Tribunais e a Corte

Suprema, ou outro Tribunal federal (art. 76, 2) III, letra “d”).

A Constituição de 1937, conhecida como “polaca”, extinguiu a Justiça Federal e,

embora tenha reduzido a competência do Supremo Tribunal Federal, manteve a

possibilidade de conhecimento de recurso se houvesse diversidade interpretativa (art.

101, III, “d”).

Por sua vez, a Constituição de 1946 também admitiu o recurso extraordinário

nessas condições (art. 101, III, “d”) e, ainda, ampliou consideravelmente as

competências do Supremo Tribunal Federal. Foi mantida a unidade da organização

judiciária e, ainda, criado o Tribunal Federal de Recursos, que julgaria os recursos

contra decisões dos Tribunais dos Estados em que houvesse interesse da União.34

Como aponta Zaneti Júnior, a característica mais importante desta Constituição,

no entanto, “constituiu-se na regra escrita da ubiquidade ou inafastabilidade da

jurisdição, segundo a qual a lei não poderia afastar da apreciação do Poder Judiciário

lesão a direitos”, com a previsão da “cláusula aberta do controle judicial”.35

As Constituições de 1967 (art. 114, III, “d”) e de 1969 (art. 119, III, “d”) também

fizeram previsão do recurso aludido.

32 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 42. Consoante afirmou Ravi Peixoto, o Brasil é tido como um “modelo miscigenado” desde 1891, em razão da adoção do modelo de controle de constitucionalidade norte-americano e o direito infraconstitucional influenciado pelo civil law. Novo CPC – análise doutrinária sobre o novo direito processual brasileiro. Campo Grande: Contemplar, 2016, p. 308. 33 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 49. 34 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 53. 35 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 53. Completa o aludido autor, ainda, que, então, “chegou-se ao perfil da inafastabilidade do Judiciário como garantia expressa do cidadão e de seus direitos individuais. Consolida-se o controle judicial dos atos dos demais poderes e nem mesmo a lei poderá afastar esse controle”. Op. cit., p. 54.

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22

Com a nova ordem democrática acolhida pela Constituição Federal de 1988 e a

gradativa imposição de efetiva aplicabilidade das normas constitucionais por meio de

movimentos como a constitucionalização dos diversos ramos do Direito, que deixaram

de ser aplicados a partir de suas próprias regras para o serem a partir do núcleo central

(Constituição), criou-se terreno propício para uma explosão de demandas, sobretudo

para a busca da efetivação de direitos fundamentais.

As normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de

todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios

de coação, de cumprimento forçado. Expandiu-se a jurisdição constitucional, com a

ampliação da possibilidade de ajuizamento da ação de controle concentrado de

constitucionalidade, bem como criação de outros instrumentos como a ação declaratória

de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental.36

Nesse cenário, admite-se que o controle de constitucionalidade pelo Supremo

Tribunal Federal seja realizado de três formas: i) em ações de competência originária; ii)

em processos objetivos; e, iii) por meio dos recursos ordinário e extraordinário (este

restrito às hipóteses em que há repercussão geral).

Houve a criação do Superior Tribunal de Justiça,37 que encampou parcela das

atribuições do Supremo Tribunal Federal, bifurcando a competência para o julgamento

dos recursos de estrito direito, competindo a este, primordialmente, o resguardo da

Constituição Federal, enquanto àquele compete o resguardo da lei federal. Aos dois

Tribunais Superiores compete, ainda, unificar a interpretação dos Tribunais sobre o

direito constitucional e federal, afastando as divergências existentes decorrentes do

papel interpretativo dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais.

Atrelado ao princípio federalista, a Constituição Federal de 1988 também previu

a existência dos Tribunais e Juízes dos Estados, sendo a competência daqueles

definida nas respectivas Constituições estaduais, abrangendo o julgamento de

representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou

municipais em face da Constituição Estadual, com vedação de atribuição da legitimação

para um único órgão (art. 125, § 3º).

36 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., p. 263 – 264. 37 Entre os anseios da criação do Superior Tribunal de Justiça, destacam-se o de facilitar o acesso do povo à Justiça e tornar mais rápida a entrega da prestação jurisdicional.

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Dessa maneira, em virtude do modelo federalista, o controle de

constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais frente à

Constituição Estadual é exclusivo do respectivo Tribunal de Justiça, tanto que incabível

a interposição de recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal para discutir a

questão (conforme a Súmula n. 280 do STF: “Por ofensa a direito local não cabe

recurso extraordinário”), salvo se houver demonstração do parâmetro de controle

normativo local que corresponde à norma da Constituição Federal de observância

obrigatória pelos entes da federação.38

Como se vê, no quadro federalista, compete aos Tribunais Superiores o

exercício de Cortes de Precedentes, com a finalidade de “outorgar uma interpretação

retrospectiva e dar unidade ao direito”, enquanto aos Tribunais de Justiça e aos

Tribunais Regionais Federais a função de Cortes de Justiça, pelos quais são

responsáveis pelo “controle retrospectivo sobre as causas decididas em primeira

instância e uniformizar a jurisprudência”39 e, de certa forma, também por dar unidade ao

direito local.

Se admitido, assim, que emanam precedentes dos Tribunais Superiores

(decisões de cunho vinculativo, que servem como paradigmas para os casos futuros), é

correlato que isso também ocorrerá no que tange aos Tribunais de Justiça,

notadamente, quando analisarem a conformidade da decisão à legislação local (à

Constituição Estadual), sempre que não houver correspondência com a Constituição

Federal, sobre o que se retomará no próximo item.

2.2 Princípio da simetria e os precedentes

A Constituição Federal de 1988 manteve o princípio federalista, sob o viés

solidário, pois constitui como alguns dos fins da República Federativa do Brasil os de

38 Nessa hipótese, é pressuposto de cabimento do recurso extraordinário a demonstração da norma de repetição obrigatória inserida na Constituição local violada. A respeito, podem ser citados várias decisões: RCL n. 383, Rel. Min. Moreira Alves, Plenário, DJ de 21.05.93; RCL n. 596 - AgR, Rel. Min. Néri da Silveira, Plenário, DJ de 14.11.96; RE n. 353.350-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª T., DJ de 21.05.04; RE n. 445.903, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 05.02.10; RE n. 482.078, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 17.3.2010; RE n. 573.379, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 26.03.10; RE n. 575.732, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 01.06.11; RE n. 562.018, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 03.10.11, entre outros. 39 MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 87.

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promover o bem-estar de todos, erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as

desigualdades sociais e regionais, reconhecendo-se que os entes federados estão

unidos não por conta de um contrato, mas em razão do status que lhes foi atribuído.40 O

país também inseriu o Município entre as unidades autônomas, encampando

característica peculiar.41

Nesse sentido, em conformidade com o art. 18 da Constituição Federal, a

organização político-administrativa da República Federativa do Brasil abrange a União,

os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, existindo mais de um centro político,

detentores cada um de autonomia política e administrativa.42

Há, portanto, quatro níveis distintos e autônomos de governo, concebidos sob o

ideal de descentralização política, constituídos em pessoas jurídicas autônomas, que se

autogovernam e organizam. São chamadas de pessoas jurídicas políticas.43 Cabe a

cada uma delas, com exclusividade, o desempenho de funções legislativa e

administrativa. Tal como em outros países, no Brasil não há que se falar em

Administração Pública única, mas em várias Administrações Públicas, que são titulares

de relações jurídico-administrativas.44

Cada uma das entidades federativas recebeu determinada parcela de

competência, conforme previamente estabelecido no Texto Constitucional. Adotou-se,

nesse plano, um sistema de listas, que podem ser classificadas em conformidade com o

grau de coparticipação ou de interferência mútua. Pelo critério horizontal, não há

qualquer colaboração entre as entidades autônomas, de modo que não podem interferir

40 FERRAZ JR., Tércio Sampaio Ferraz. Direito Constitucional. São Paulo: Manole, 2007, p. 451. 41 ARAUJO, Luiz Alberto David. JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 293. 42 A Constituição do Estado de São Paulo, por exemplo, atenta ao princípio da igualdade, determina que “nos procedimentos administrativos, qualquer que seja o objeto, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência de publicidade, contraditório, da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados” (art. 4º), previsão que reforçará a ideia de aplicabilidade interna dos precedentes. 43 BORTOLETO, Leandro. Direito Administrativo. 4ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 67. 44 Tal personificação é própria do Direito Administrativo e o faz possível de seguir adiante. Como ressalta Enterría, “todas as relações jurídico-administrativas explicam-se na medida em que a Administração Pública, como pessoa, é um sujeito de Direito que emite declarações de vontade, celebra contratos, é titular de um patrimônio, é responsável, está sujeita a ser processada etc. A personificação da Administração Pública é assim o dado primeiro e sine qua non do Direito Administrativo”. ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Vol. I. São Paulo: RT, 2014, p. 48.

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umas nas outras. Em conformidade com o critério vertical, por sua vez, admite-se a

colaboração recíproca, atribuindo-se à União a função de coordenação.45

Na estrutura da federação brasileira, cada Estado-membro poderá, no exercício

do poder constituinte derivado, editar a sua Constituição Estadual, estabelecendo os

parâmetros de sua auto-organização, respeitando-se os princípios constitucionais.

Entre os pontos que envolvem esta auto-organização, destaque-se a

aplicabilidade do princípio da simetria, que tem por mister equiparar os vários níveis de

governo no que tange à separação e harmonia de Poderes, sem, contudo,

descaracterizar a própria estrutura federativa.46 Por isso, como destacado pelo Ministro

Cezar Peluso,

[n] outras palavras, não é lícito, senão contrário à concepção federativa, jungir os Estados-membros, sob o título vinculante da regra da simetria, a normas ou princípios da Constituição da República cuja inaplicabilidade ou inobservância local não implique contradições teóricas incompatíveis com a coerência sistemática do ordenamento jurídico, com severos inconvenientes políticos ou graves dificuldades práticas de qualquer ordem, nem com outra causa capaz de perturbar o equilíbrio dos poderes ou a unidade nacional. A invocação da regra da simetria não pode, em síntese, ser produto de uma decisão arbitrária ou imotivada do intérprete.47

A aplicabilidade dos princípios do federalismo e da simetria pode ser analisada

sob vários enfoques.48 Entre tantos, ressalte-se a própria formação, aplicabilidade e

confrontação dos padrões decisórios fixados em precedente, se reconhecidos a estes o

efeito vinculante.

Nesse sentido, competindo ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ação

direta de inconstitucionalidade de lei, em controle direto, para a observância da

Constituição Federal, também terão os Tribunais de Justiça tal competência para a

salvaguarda da Constituição Estadual, tanto que é admitida a ação de reclamação

45 CONTIPELLI, Ernani. Op. Cit., p. 12. 46 De acordo com o Ministro Cezar Peluso, Relator da ADI n. 4.298-MC/TO, o chamado princípio ou regra da simetria é “construção pretoriana tendente a garantir, quanto aos aspectos reputados substanciais, homogeneidade na disciplina, normativa da separação, independência e harmonia dos poderes, nos três planos federativos. Seu fundamento mais direto está no art. 25 da Constituição Federal e no art. 11 de seu ADCT, que determinam aos Estados-membros a observância dos princípios da Constituição da República”. 47 ADI n. 4.298-MC/TO. 48 Outro exemplo de aplicabilidade do princípio da simetria, a nosso ver, é a possibilidade de ser alegada a inexigibilidade de obrigação, em impugnação ao cumprimento de sentença, em razão de ofensa a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça, que reconhece a inconstitucionalidade de lei estadual e municipal em face da Constituição Estadual (art. 535, § 5º, do Novo Código de Processo Civil).

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diretamente ao órgão judicial que não teve respeitada a sua decisão sobre o tema, de

natureza vinculante. Da mesma forma, competirão aos Tribunais de Justiça, em última

instância, a uniformização e análise da aplicabilidade da legislação estadual.

Por isso, se a lei atribuir força vinculante às decisões proferidas em ações

repetitivas pelos Tribunais Superiores, com muito mais razão há de se admitir o mesmo

em relação aos julgados dos Tribunais de Justiça, notadamente – e com mais força,

mas não só – daqueles que se refiram à interpretação de leis locais (estaduais e

municipais) em confronto com as Constituições Estaduais.

A propósito, Luiz Guilherme Marinoni enfrentou, em parecer, questão ligada à

possibilidade ou não de formação de precedente no âmbito do Tribunal de Justiça, bem

como se haveria vinculação em relação aos demais Juízes do mesmo Estado. A

consulta foi formada em vista de ação civil pública proposta pelo Ministério Público, na

qual exigia a retirada de Estações de Rádio-Base que estavam em desconformidade

com lei municipal, tendo o Tribunal de Justiça se pronunciado de forma desfavorável ao

pedido. Questionou-se ao parecerista: todo o Poder Judiciário estaria vinculado à

decisão? 49

Na ocasião, Marinoni sustentou que, para além da própria eficácia individual,

era necessário ter atenção ao fato de que a decisão constituiria precedente a respeito

do assunto. Por isso, “a ratio decidendi da decisão”, qual seja, a inaplicabilidade da Lei

Municipal por conta de existência de competência da União sobre o tema, “vinculará

para além do caso a ser decidido”. E, prosseguindo: “O precedente impedirá que o

Tribunal de Justiça decida de forma diversa, ressalvados obviamente os casos de

overruling (...), bem como todos os juízes de direito a ele vinculados”. Por fim, concluiu

ainda: “Impedirá que outras Administrações Municipais do Estado pretendam a

aplicação de legislação semelhante à consulente”.50

Sem ingressar no mérito do parecer, pois proferido antes do Novo Código de

Processo Civil, em que o caráter vinculante dos precedentes ainda não era

sedimentado, o fato é que se admitiu a formação de precedente no âmbito estadual.

49 MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia de precedente firmado em ação coletiva de âmbito estadual. Soluções práticas. Vol. 2. São Paulo: RTOnline, p. 205-2094, outubro 2011, p. 1. 50 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p.1.

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De toda forma, como proposto acima, há de ser respeitado o precedente

produzido no âmbito da Justiça Estadual, fruto da interpretação do último órgão judicial

competente para tanto em razão do princípio federalista e, por isso, não se admite

recurso extraordinário ou especial por ofensa a direito local.

Outro exemplo de aplicabilidade do princípio da simetria é o cabimento da ação

de reclamação no âmbito dos Tribunais de Justiça, antes construção jurisprudencial e

agora previsto expressamente no Novo Código de Processo Civil (art. 988, § 1º do

Novo Código de Processo Civil), tendo como novidade o seu cabimento para garantir a

observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de

demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência (art. 988, IV do

Novo CPC, com a redação da Lei n. 13.256/2016), o que refletirá sobretudo nos atos

administrativos emanados da unidade federativa respectiva e dos municípios.

Há de se fazer referência, ainda, à própria interpretação proveniente das Cortes

de Justiça, que levam em consideração particularidades locais e que não podem ser

descartadas pelos Tribunais Superiores.

Assim, a adoção de um modelo de precedentes encontra nos princípios do

federalismo e da simetria terreno fértil para prosperar, desde que observe os seguintes

balizamentos: i) competirá à União a última palavra sobre a interpretação da

Constituição Federal e da conformidade do sistema normativo com aquela norma-

origem; ii) competirá ao Superior Tribunal de Justiça a interpretação da lei federal; iii)

será de atribuição dos Estados-membros a análise da adequação à Constituição

Estadual respectiva, bem como ao cumprimento das leis estaduais naquilo que for de

competência destas e, ainda, de tentar uniformizar a jurisprudência interna, proferindo-

se decisões com força de precedentes.

3. Personalidade jurídica dos entes públicos, a Administração Pública e o

princípio da igualdade

3.1 O Estado como um Ser Real

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Feita a análise do modelo federalista brasileiro, passa-se ao estudo da

personalidade jurídica do Estado e à contextualização do princípio da igualdade, um

dos fundamentos da adoção do sistema de precedentes.

O Estado é um “ser social cuja existência é real, una e inconfundível com a dos

indivíduos seus criadores”.51 Justifica-se a sua existência “nos atos e pelos atos” de

seus criadores, em atividade contínua e ligada essencialmente ao bem comum,52 que é

definido em conformidade com a atual concepção de mundo e diz respeito à finalidade

da vida social, motivo pelo qual o Direito se altera com o tempo, para refletir a filosofia

do homem contemporâneo e permitir que o Estado cumpra com o seu mister.53

Como definido por Giorgio Del Vecchio

O Estado é uma síntese espiritual, dotada, portanto, de realidade própria, inegável, embora não se identifique com nenhum indivíduo, nem com uma soma de determinados indivíduos, nem como uma certa extensão territorial; é, pois, uma realidade inteligível e não sensível.54

Esta realidade social (Estado) consiste em uma relação que liga os indivíduos

entre si. O centro de referência entre eles é o bem público temporal (bem comum),

ligado a cada indivíduo por meio de deveres e direitos que irradiam, tendo o poder

como energia dinâmica da relação.55

Alfredo Augusto Becker identifica, entre os elementos do Estado, a exigência de

observância do princípio da igualdade.56

De fato, este princípio é responsável pelo equilíbrio das forças em movimento,

dos indivíduos dos quais emanam feixes de deveres e de direitos e, por isso, é

intrínseco à composição do conteúdo do Estado, o que se afigura relevante para a

atribuição vinculante aos padrões decisórios.

A aplicação da igualdade deve ser uma preocupação do próprio Estado e,

consequentemente, das pessoas jurídicas de direito público, de modo que, assegurado

51 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. 9ª. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 214. 52 BECKER, Alfredo Augusto. Op. Cit. p. 174. 53 BECKER, Alfredo Augusto. Op. Cit., p. 176. 54 DEL VECCHIO, Giorgio Del. Teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 38. 55 BECKER, Alfredo Augusto. Op. Cit., p. 196. 56 BECKER, Alfredo Augusto. Op. Cit., p. 205.

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a um indivíduo determinado direito, aos outros que estiverem no mesmo patamar há de

ser resguardado o mesmo direito.57

Sendo, então, uma realidade social, com existência própria distinta da de seus

criadores, o Estado passa a ter consciência de seu papel e vontade própria,

característica dos seres dotados de personalidade. Dessa tal diversidade deriva um

conjunto complexo de matérias, sobre as quais é possível legislar e exercer atribuições

administrativas.

Paralelamente às pessoas políticas, há também as pessoas jurídicas

administrativas, criadas pelas primeiras. Ambas compõem a Administração Pública, em

sentido amplo, em seu sentido subjetivo. Compreendem pessoas jurídicas de direito

público, que englobam as pessoas políticas, bem como as autarquias, as fundações

públicas e os consórcios públicos (art. 41 do Código Civil), estando o presente trabalho

voltado a essas pessoas. As demais são de direito privado (empresas públicas e

sociedade de economia mista) e, por isso, não ostentam a qualidade de poder público

ou de fazenda pública, ao menos em tese.

Como detentoras de personalidade, tais pessoas possuem direitos e

obrigações, podendo ter interesse em provocar a atuação da atividade judicial, ser

demandadas ou, ainda, intervir em razão de interesse jurídico, institucional e

econômico. Desse modo, o leque de demandas em que podem estar envolvidas é vasto

e, destas, há várias repetitivas, alcançando extenso número de administrados.

Admite-se, ainda, a personalidade judiciária aos órgãos máximos do poder

público de cada Poder, como pode ocorrer, por exemplo, em mandado de segurança

impetrado em face de ato praticado pelo Presidente da Câmara de Vereadores,

hipótese em que este órgão legislativo é titular de direito subjetivo e, por isso, pode

defender os seus interesses em juízo.58 Deve ser admitida a titularidade de alguns

órgãos para a propositura de ações coletivas, como legitima o Código de Defesa do

Consumidor (art. 82, III).

57 Por isso, não podem ser admitidos comportamentos processuais explicitamente diferenciados em relação aos litigantes, quer no âmbito administrativo ou processual (judicial e arbitral). O reconhecimento de um direito em relação ao administrado impulsiona este direito em relação aos demais. Da mesma forma, se interposto o recurso em face de ato praticado por um administrado, a mesma situação deve ocorrer para situações iguais, sob pena de vício do ato. 58 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 16.

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A depender do sistema adotado pelo país, as demandas envolvendo o poder

público serão solucionadas por um órgão judicial próprio, diferenciando-as das ações

estabelecidas entre as pessoas jurídicas de direito privado, ou pelo mesmo Poder

Judiciário, como ocorre no Brasil.

3.2 O Conceito de fazenda pública e suas dimensões

É comum utilizar-se a expressão “fazenda pública” na prática forense e nas

próprias leis para referir-se às pessoas jurídicas de direito público quando em juízo. A

esse propósito, Rogério Augusto Boger Feitosa a relaciona ao “conjunto de entidades

administrativas que, dotadas de personalidade de direito público, submetem-se a um

regime jurídico peculiar que lhes garante instrumentos para melhor promover a defesa

do interesse público”.59 Neste conceito, então, incluem-se a União, o Distrito Federal, os

Estados, os Municípios, bem como as fundações públicas e as autarquias.

Ocorre que a diversidade de entidades às quais se atribuiu a condição de

serem dotadas de personalidade de direito público, não obstante a sua finalidade

institucional fosse a de explorar atividade econômica, fez com que se verificasse a

ocorrência de desvirtuamento no sistema. Diante disso, os Tribunais passaram a

diferenciar as pessoas que compõem a Administração Indireta, não simplesmente pela

sua forma de constituição legal, mas pela atividade exercida, podendo, por

consequência, haver a exclusão do regime de direito público para o caso concreto.

Nesse sentido, as pessoas jurídicas administrativas passaram a ser vistas sob

dois aspectos distintos, denominados de dimensões do conceito de fazenda pública.

Pela primeira concepção, dita formal, deve ser dada atenção à forma de

constituição da pessoa jurídica administrativa. Assim, se constituída sob a forma de

uma autarquia, ainda que explore atividade econômica, manterá a sua natureza de

pessoa jurídica de direito público e a qualidade de fazenda pública para todos os fins,

notadamente administrativos e processuais.

59 FEITOSA, Rogério Augusto Boger. A fazenda pública no ordenamento jurídico brasileiro. In: ROSSATO, Luciano Alves (org.). Temas atuais da Advocacia Pública. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 21.

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De outro lado, porém, em consonância com a segunda concepção, que leva em

conta a dimensão material do conceito de fazenda pública, somente será mantida a

qualidade de fazenda pública à pessoa jurídica administrativa que tiver por finalidade a

prática de uma das atividades administrativas em sentido lato.60

Por isso, é possível que uma entidade autárquica, embora constituída sob o

regime de direito público, não goze das prerrogativas próprias da condição de fazenda

pública, por explorar atividade econômica, inapropriada para a sua condição, conforme

já ressaltou José dos Santos Carvalho Filho.61

O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de analisar a questão,

excluindo a imunidade tributária em uma vez62 e, em outra, para afirmar que o regime

de precatório é extensível à sociedade de economia mista prestadora de serviço público

de atuação própria do Estado e de natureza não concorrencial.63 O Superior Tribunal de

Justiça, por sua vez, não reconheceu a prerrogativa processual da prescrição

diferenciada.64

De toda forma, às pessoas jurídicas de direito público atribui-se integral regime

jurídico administrativo e sujeição à finalidade pública e satisfação dos vários interesses

públicos, com alta intensidade de carga de vinculação à lei e, como adiante se verá,

também aos precedentes.

4. Sistemas de resolução de demandas que envolvam o poder público

4.1 Considerações iniciais

60 Celso Antônio Bandeira de Mello entende que as atividades administrativas podem ser reunidas em seis diferentes grupos: 1) prestação de serviços públicos; 2) intervenção do Estado no domínio econômico e social; 3) o cumprimento das normas que estabelecem limitações administrativas à liberdade e à propriedade; 4) a imposição das sanções previstas para as infrações administrativas; 5) o sacrifício de direitos; 6) a gestão dos bens públicos. In.: Curso de Direito Administrativo. 26ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 661-663. 61 In: Manual de Direito Administrativo. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 522. 62 STF, Pleno. RE n. 253472, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Joaquim Barbosa, j. 25.08.2010, DJe 31.01.2011. 63 STF, RE n. 599.628/DF, Rel. p/ Acórdão Min. Joaquim Barbosa, DJe de 14.10.11, com repercussão geral reconhecida. E, também, mais recente: RE 852302 AgR/AL, rel. Min. Dias Toffoli, j. 15.12.2015. 64 STJ, 3ª T. REsp 218.074/RS, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 07.04.2003, DJ 25.08.2003, p. 296.

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Na atualidade, existem dois sistemas de resolução de demandas que envolvem

o poder público por órgão judicial: o de jurisdição administrativa (jurisdição dual ou

sistema francês), derivado da evolução do contencioso-administrativo, presente

principalmente em vários países europeus e no Uruguai, e o de jurisdição una (sistema

judiciário ou inglês), ao qual aderiu o Brasil.65

Na sequência, serão analisados os principais aspectos destes sistemas, com a

finalidade de ser possível enfatizar elementos referentes à interlocução entre eles, a

jurisprudência e os precedentes.

4.2 Sistema de jurisdição administrativa

4.2.1 Observações gerais sobre o sistema

O estudo do sistema de justiça administrativa remonta à experiência francesa e

se reporta à Revolução ali ocorrida em 1789, responsável pela introdução de dois

princípios fundamentais: o da legalidade, rompendo-se com o modelo anterior segundo

o qual o poder estava na mão do monarca, e o princípio da liberdade, inter-relacionados

no art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.6667

A partir de então, surge o conceito de ato arbitrário, ou seja, aquele contrário à

lei, sendo que, pelo pensamento então vigente, a reação a tal ato era feita por meio de

fórmulas insustentáveis, motivo pelo qual o exame passaria pelas mãos do juiz.

Ocorre que esse modelo – fruto de uma visão reacionária – irá se deparar com

outra questão de igual substância, que é a relativa ao princípio da separação dos

poderes, baseada na Lei n. 16, de 24 de agosto de 1790, que dispunha de um

dispositivo de seguinte teor: “(...) Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação,

65 Diógenes Gasparini, por sua vez, além dos sistemas de jurisdição una e de jurisdição dual, também indica a existência de um terceiro, que atualmente não vigora, denominado de sistema de administração-juiz, por meio do qual, “as funções de julgar e administrar, (...), encontravam-se integradas no mesmo órgão ou atividade. Nesse sistema, quem executava também julgava”. In.: Direito Administrativo. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 984. 66 “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica o outro; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites senão aqueles que garantem aos demais membros da sociedade goze desses mesmos direitos. Somente a lei pode fixar tais limites”. 67 ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. Revisor Técnico: Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: RT, 2014, p. 566.

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perturbar, da forma que for, as operações do pessoal administrativo, nem citar diante

deles os administradores em razão de suas funções”.68

Como é possível notar, houve a inserção de obstáculo considerável à busca de

tutela em face de atos provenientes da Administração. Para sanar o problema e

propiciar a observância dos princípios da legalidade e da liberdade, foi previsto o

contencioso-administrativo francês, como forma de proteção diante da Administração.69

A respeito, bem delineou Hermes Zaneti Júnior:

Por força da Revolução Francesa, com a queda do antigo regime, no qual o soberano representava a última palavra e a justiça divina, erigiu-se na Europa continental o sistema duplo de jurisdição. De um lado, o contencioso cível tratava das questões entre particulares e da violação dos direitos subjetivos do cidadão; de outro, o contencioso administrativo, no qual as questões referentes às relações indivíduo/Estado eram solvidas frente ao conceito equivalente, por exemplo, na Itália, os interesses legítimos.70

Ao mesmo tempo em que se verifica o início do Direito Administrativo, também

se concebeu o primeiro sistema contencioso-administrativo geral, com base no princípio

juger l’Administration c’est encore administrer (julgar a Administração continua sendo

administrar).71

Portanto, nesta visão, somente a própria Administração poderia julgá-la, e ela

não se submeteria aos pronunciamentos do Poder Judiciário.

Em 1782, houve a delegação aos órgãos consultivos – Conselhos de Estado e

Conselhos da Prefeitura – da possibilidade de decidir os recursos (de anulação ou de

excesso de poder), por meio dos quais, propriamente, não se interferia na

Administração, mas apenas se realizava o exame abstrato de legalidade.

No ano de 1853, os Conselhos da Prefeitura foram substituídos pelos Tribunais

Administrativos, substituídos, por sua vez, pelos Tribunais Regionais de Apelação. 72

O contencioso-administrativo francês, nesse passo, “foi uma criação jurídica

inteiramente nova, sem paralelo nas bases históricas que sustentam todo o direito

ocidental”73, a qual se apresenta “como um controle realizado por órgãos

68 ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Op. Cit., p. 567. 69 ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Op. Cit., p. 567. 70 ZANETI JR., Hermes. Op. Cit., p. 30. 71 ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Op. Cit., p. 568. 72 ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Op. Cit., p. p. 568. 73 ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. Cit. p. p. 5.

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especializados da própria Administração, e não por juízes a ela alheios e

independentes”.74

A propósito do sistema do contencioso administrativo, também registra Eduardo

García de Enterría que o modelo francês fundado no excès de pouvoir transformou-se,

deixando-se de ser um mero recurso objetivo. Presenciou-se, dessa feita, a partir do

final do século XX e início do atual, o movimento em busca do direito à tutela judicial

efetiva, que representou uma alteração de paradigma, pela qual

O recurso contencioso administrativo deixou de ser concebido como um instrumento em defesa da legalidade, benevolentemente concedido aos cidadãos e que produzia, na hipótese mais favorável, um pronunciamento abstrato de nulidade, que não lhe propiciará qualquer benefício próprio e tampouco lhe auxiliará em uma ação judicial posterior visando a obter, no plano dos fatos, o benefício almejado. Este instrumento processual, contudo, passa a ser, agora, um verdadeiro direito subjetivo.75

Como é possível extrair da lição ensinada pelo doutrinador espanhol, após dois

séculos de um modelo sistematizado, os países europeus passaram a dotar a justiça

administrativa de efetividade, reconhecendo-se a possibilidade de serem adotadas

medidas cautelares sofisticadas. Portanto, o contencioso administrativo passou a

ocupar a mesma posição do processo civil entre partes privadas, transformando-se na

justiça administrativa (ativa e assecuratória de direitos fundamentos).

Nesse passo, por exemplo, o direito alemão a previu, consoante é possível

verificar no art. 19.4 da Grundgestz, ou Lei Fundamental de Bonn,76 sendo que, até

então, o sistema funcionava insatisfatoriamente. Aliás, como registrado

doutrinariamente,

Na Alemanha, o papel dos Tribunais acentuou-se relativamente cedo em virtude da influência doutrinária, designadamente a partir de O. BÄHR, que promoveu a ideia de que o Estado de Direito e a efectividade do Direito e da lei em matéria administrativa exigiam a fiscalização judicial da atividade da Administração. O problema foi o de saber se essa fiscalização deveria ser confiada aos Tribunais comuns (como propunha BÄHR) ou a Tribunais especializados (como defendeu GNEIST), tendo predominado desde cedo, com poucas excepções (Hamburgo), os Tribunais administrativos.77

74 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. As transformações da justiça administrativa: da sindicabilidade restrita à plenitude jurisdicional. Op. Cit., p. 5. 75 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. As transformações da justiça administrativa: da sindicabilidade restrita à plenitude jurisdicional. Op. Cit., p. 95-96. 76 Art. 19.4: Toda pessoa cujos direitos tenham sido vulnerados pelos poderes públicos tem o direito de obter a tutela efetiva dos juízes e Tribunais”. 77 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit., p. 17, nota de rodapé 9.

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O dispositivo mencionado é de grande importância e representa toda a

mudança de paradigma já afirmada anteriormente, tendo como pano de fundo a

concepção de direito subjetivo. Por isso, se a Administração contrariar a legalidade,

provocando prejuízo para um ou mais indivíduos, os prejudicados possuem direito

subjetivo à efetividade da remoção do obstáculo que impede a fruição de direito.

Dessa maneira, o modelo organizatório inicial denominado administrativista,

fruto do neoliberalismo, foi substituído pelo modelo judicialista, “em que a decisão das

questões jurídicas administrativas cabe a Tribunais integrados numa ordem judicial”.78

Enquanto no primeiro modelo, “julgar a Administração é ainda administrar”, no segundo

“julgar a Administração é verdadeiramente julgar”.

Essa alteração não ocorreu por acaso, mas, em verdade, foi fruto da revisão

dos processos e procedimentos à luz do devido processo legal, ou do direito ao

processo equitativo79, que prega a “conformação justa e adequada do direito à tutela

jurisdicional”,80 atualmente consagrada, por exemplo, na Constituição da República

Portuguesa (art. 20º/4)81 e posteriormente transportada, com “definição abrangente, no

Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n. 15/2002 de 15/2,

alterada pela Lei n. 4-A/2003, de 19/2)”82, em seu art. 2º/1,83 regra essa que já havia

sido incorporada ao próprio Código de Processo Civil Português.

4.2.2 A Jurisdição administrativa portuguesa e a jurisprudência

78 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit., p. 15. 79 Muito embora, como lembra Canotilho, “as doutrinas caracterizadoras do direito a um processo equitativo (CRP, art. 20º/4) têm quase sempre como ponto de partida a experiência constitucional americana do due process of law. Nem sempre, porém, se tornam explícitas as premissas e a memória deste due process”. Nesse sentido, sugere o autor uma releitura do próprio princípio para a verificação do que pode ser aproveitado em vista do “quadro jurídico-constitucional” do país. CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 493. 80 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 495. 81 “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”. 82 CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 495. 83 “O princípio da tutela jurisdicional efectiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão”.

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Como se nota, na toada da mudança, a República Portuguesa também

abandonou o paradigma de contencioso-administrativo para adotar o modelo de justiça

administrativa,84 definido por José Carlos Vieira de Andrade como o

conjunto institucional ordenado normativamente à resolução de questões de direito administrativo, nascidas de relações jurídico-administrativas, atribuídas por lei à ordem judicial administrativa, para serem julgadas segundo um processo administrativo específico.85

Para tanto, aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e

Fiscais,86 no ano de 2002 que, desde então, vem sendo objeto de alterações, sendo a

mais recente ocorrida no ano de 2015, por conta do Decreto-Lei n. 214-G/2015,87 que

foi responsável pela tentativa de aperfeiçoamento do modelo de justiça administrativa

português, “em função da experiência de uma década do novo processo administrativo,

bem como da evolução da legislação do processo civil”,88 em decorrência da alteração

do Código de Processo Civil Português, ocorrida no ano de 2013.

Considerando-se a oportunidade que se apresenta, fazem-se algumas

observações sobre a observância da jurisprudência e o Código de Processo dos

Tribunais Administrativos e Fiscais, merecendo destaque:

a) a previsão, no Artigo 93º, do “julgamento em formação alargada e consulta

prejudicial para o Supremo Tribunal Administrativo”, para a solução por colegiado maior

de questão de direito nova que suscite dificuldades consideráveis e que possa ser

suscitada em outros conflitos, quando então será proferida decisão vinculativa

exclusivamente para o processo e não para casos futuros. Trata-se de iniciativa de

84 José Carlos Vieira de Andrade julga indiferente a utilização da expressão contencioso-administrativa ou justiça administrativa, notadamente pela tradição da primeira expressão, que caracteriza o caráter especializado do órgão julgador. Op. Cit., p. 9. 85 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit., p. 9. 86 Canotilho registra que as próprias revisões constitucionais de 1989 e de 1997 “densificaram melhor o direito de acesso à justiça administrativa para tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados”. (...). Neste sentido se fala hoje do princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa: a qualquer ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e a qualquer ilegalidade da administração deve corresponder uma forma de garantia jurisdicional adequada”. CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 505. 87 O aludido Decreto-Lei alterou não só o CPTA, como também diversos diplomas que tratam da matéria processual administrativas e temas conexos, quais sejam, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o Código dos Contratos Públicos (CCP), o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), a Lei de Participação Procedimental e de Ação Popular (LPPAP), o Regime Jurídico da Tutela Administrativa (RJTA), a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) e, por fim, a Lei de Acesso à Informação sobre Ambiente (LAIA). 88 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit., p. 5.

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uniformização de jurisprudência pela via preventiva, ou pelo “reenvio prejudicial para o

STA (Pleno da Seção);89

b) previsão de recurso (classificado como extraordinário) para a uniformidade

da jurisprudência para impugnar as sentenças que não observarem a jurisprudência

uniformizada pelo Supremo Tribunal Administrativo.90 A decisão proferida no recurso

não afetará decisões que lhe sejam anteriores ou posteriores.

O fim de tal recurso é, segundo entendimento doutrinário, o de “uniformizar a

jurisprudência administrativa, impedindo o tratamento desigual de casos

substancialmente iguais”.91 Não se admite, também, o recurso quando houver

diversidade de situações de fato.92 Da mesma forma, como decidido pelo STA daquele

país, é pressuposto dos recursos que os arestos em confronto, a um só tempo, tenham

resolvido a mesma questão jurídica e que tal solução seja “fundamental”.93 Por

fundamental, em outra oportunidade, decidiu-se que

Só é fundamental a «quaestio juris» de cuja resolução dependa a pronúncia final do aresto, podendo então asseverar-se que a decisão dele assentou ou fundou-se no modo como tal questão se resolvera. Decerto que a questão não tem de constituir um antecedente imediato da pronúncia propriamente decisória, sendo até normal que ela seja um seu fundamento remoto. Mas, ainda assim, há de a questão apresentar-se como um fundamento da pronúncia última, por dela dependerem os raciocínios ulteriores do acórdão e, «in fine», a solução jurídica nele acolhida.94

c) previsão, no Artigo 161º,95 da extensão dos efeitos de sentença transitada

em julgado que tenha anulado ou declarado nulo um ato administrativo desfavorável, ou

89 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit., p. 380. 90 Artigo 140º/1: “1 — Os recursos das decisões proferidas pelos Tribunais administrativos são ordinários ou extraordinários, sendo ordinários a apelação e a revista e extraordinários o recurso para uniformização de jurisprudência e a revisão”. 91 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit., p. 381. 92 Conforme decidido no Acórdão Pleno do STA de 03.06.2015, Processo n. 698/15. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4409605ba43ffedb80257fa3003b3ccc?OpenDocument&Highlight=0,uniformiza%C3%A7%C3%A3o,e,jurisprud%C3%AAncia. Acesso em 31.05.2016. 93 Conforme decidido no Acórdão Pleno do STA de 15.10.2015, Processo n. 496/14. Consulta em: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ef665b6157e0000f80257ee6002fd21d?OpenDocument&Highlight=0,precedente. Acesso em 31.05.2016. 94 Pleno do STA, proferido em 5.9.2008, Processo n. 792/06. 95 “1 — Os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado ou declarado nulo um ato administrativo desfavorável, ou reconhecido a titularidade de uma situação jurídica favorável a uma ou várias pessoas, podem ser estendidos a outras pessoas que, quer tenham recorrido ou não à via contenciosa, tenham sido objeto de ato administrativo com idêntico conteúdo ou se encontrem colocadas na mesma situação jurídica, desde que, quanto a estas, não exista sentença transitada em julgado. 2 — O disposto no número anterior vale apenas para situações em que existam vários casos perfeitamente

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reconhecido a titularidade de uma situação jurídica favorável a uma ou várias pessoas,

que podem ser estendidos a outras pessoas que tenham sido objeto de ato

administrativo com idêntico conteúdo e que se encontrem na mesma situação jurídica,

desde que atendidos determinados requisitos, em situação que não se refere à

necessidade de observância de precedente, mas de extensão dos efeitos da coisa

julgada para outras pessoas que não foram parte no processo.

E, por fim,

d) admissibilidade de que, sendo simples a questão de direito, uma vez já

apreciada por Tribunal, de modo uniforme e reiterado, a “fundamentação da decisão

pode ser sumária, podendo consistir na simples remissão para decisão precedente, de

que se junte cópia” (Art. 94º/5). Note-se que, no Novo CPC brasileiro, ainda que

fundada em precedente (aqui normativo), a decisão deverá ser devidamente

fundamentada (fundamentação analítica), indicando-se o motivo de sua aplicação.

Também aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.

13/2002), por fim alterado também pelo Decreto-Lei n. 244-G/2015. Em consonância

com tal Estatuto, atualmente, tem relevância em relação à jurisprudência:

a) a previsão contida no Art. 2º, segundo a qual “os Tribunais da jurisdição

administrativa e fiscal são independentes e apenas estão sujeitos à lei e ao Direito”,

sendo acrescentada a expressão “Direito”, posto que antes a vinculação era apenas à

lei;

b) foram previstos como órgãos da jurisdição administrativa e fiscal: o Supremo

Tribunal Administrativo, como órgão superior da hierarquia dos Tribunais de tal

jurisdição; os Tribunais Centrais Administrativos e os Tribunais Administrativos de

Círculo e os Tribunais Tributários. Tais Tribunais poderão determinar que o número de

juízes para o julgamento seja aumentado para assegurar a uniformidade da

jurisprudência.

idênticos, nomeadamente no domínio do emprego público e em matéria de concursos, e só quando se preencham cumulativamente os seguintes pressupostos: a) Terem sido proferidas por Tribunais superiores, no mesmo sentido, cinco sentenças transitadas em julgado ou, existindo situações de processos em massa, nesse sentido terem sido decididos em três casos, por sentença transitada em julgado, os processos selecionados segundo o disposto no artigo 48.º; b) Não ter sido proferido número superior de sentenças, também transitadas em julgado, em sentido contrário ao das sentenças referidas na alínea anterior, nem serem as referidas sentenças contrárias a doutrina assente pelo Supremo Tribunal Administrativo em recurso para uniformização de jurisprudência”.

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De todas essas observações constantes deste subitem, duas notas são dignas

de registro, embora até contraditórias em certo ponto. A primeira é que os Tribunais da

jurisdição administrativa e fiscal estão sujeitos não somente à aplicação da lei, mas

também ao Direito, englobando princípios e, neste ponto, poderia até haver eventual

abertura para os precedentes. A segunda, porém, é que em todas as oportunidades, os

dois atos normativos excluíram a possibilidade de vinculação do que foi decidido nos

pronunciamentos, prevendo, unicamente, a uniformização de jurisprudência para casos

substancialmente iguais.

Em relação a esse tema, há ainda mais uma observação.

Em Portugal, adotou-se a prática de expedir assentos normativos, o que era

originado do longínquo Alvará de 10 de dezembro de 1518 que, posteriormente, foi

ampliado nas Ordenações Manuelinas e mantido pelas Ordenações Filipinas.

Desde então, havia a interpretação da lei com eficácia vinculante, que era

anotada no chamado “livrinho”, mais tarde conhecido como “assentos”, e que tinha

valor normativo equiparado ao das leis interpretadas, com eficácia vinculante para

casos futuros.

Castanheira Neves reconheceu a originalidade e dificuldade de compreensão

do instituto. Nesse sentido, apontou que

É original na possibilidade que confere 1) a um órgão judicial (a um Tribunal) de prescrever 2) critérios jurídicos universalmente vinculantes, mediante o enunciado de 3) normas (no sentido estrito de normas gerais, ou de <<preceitos gerais e abstractos>>), que, como tais, 4) abstraem (na sua intenção) e se destacam (na sua formulação) dos casos ou decisões jurisdicionais que tenham estado na sua origem, com o propósito de 5) estatuírem para o futuro, de se imporem em ordem a uma aplicação futura. Originalidade que consiste, portanto, em serem chamados alguns dos nossos Tribunais, mediante aquele instituto, à proclamação de critérios jurídicos que tanto formalmente, como intencionalmente e ainda temporalmente (ou na sua dimensão de tempo) se nos oferecem com as características de prescrições legislativas.96

Tal prática durou até 1993, quando o Tribunal Constitucional reconheceu a

inconstitucionalidade da norma contida no art. 2º do Código Civil Português, que

96 NEVES, A. Castanheira. O instituto dos <<Assentos>> e a função jurídica dos Supremos Tribunais. Reimpressão. Coimbra: Coimbra, 2014, p. 1 - 5.

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atribuía a possibilidade de os Tribunais fixarem, por meio de assentos, doutrina com

força obrigatória geral.97

Por tais razões, os “assentos não são considerados fonte de direito como se

infere do disposto no art. 115, n. 5, da Constituição portuguesa, cuja regra representa

um corolário do princípio da separação de poderes estabelecido no art. 114”.98

Não obstante, ainda se reconhece a eficácia ad futurum de decisões proferidas

pelo Tribunal Constitucional que apreciarem e declararem, com força obrigatória e

geral, “a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que se tenha

sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos” (Art. 281º/3), o

que, porém, não deixa de ser objeto de controvérsias na doutrina lusitana.99

Em remate, pode-se dizer que a jurisdição administrativa portuguesa, sujeita

que está ao Tribunal Constitucional e filiada à família de civil law:

i) admite, unicamente, eficácia vinculante às decisões do Tribunal

Constitucional que apreciarem a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer

norma, desde que se tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos

concretos;

ii) não adotou o sistema de precedentes reconhecidos como vinculantes (à

exceção do indicado em primeiro lugar), mas admite a uniformização da jurisprudência

consolidada. A expressão precedente, nesse passo, é utilizada somente com aparente

força persuasiva no STA;

iii) admite que a decisão seja fundada na lei e no Direito, de modo que, com a

finalidade de observância do princípio da igualdade, é prudente que aplique a mesma

norma jurídica às situações substancialmente iguais, embora não haja dever expresso

nesse sentido.

97 TUCCI, José Rogério Cruz e. AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do Processo Civil lusitano. São Paulo: Coedição Coimbra e RT, 2009, p. 167. 98 TUCCI, José Rogério Cruz e. AZEVEDO, Lições de história do Processo Civil lusitano. São Paulo: Coedição Coimbra e RT, 2009, p. 167. 99 PIGNATARI, Alessandra Aparecida Calvoso Gomes. Dissertação de Mestrado: Efeitos Processuais no Controle Judicial de Constitucionalidade. São Paulo. FADUSP. 2009, p. 241.

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4.3 Sistema de jurisdição una, sistema inglês ou pleito cível lato sensu100

Diferentemente de França, Portugal e Alemanha, outros países adotaram o

modelo de jurisdição una, tal como ocorreu com a Inglaterra e o País de Gales. Nestes

países, a jurisdição de Direito Administrativo é exercida pela Administrative Court, que

também exerce a jurisdição de supervisão sobre Tribunais inferiores. Na Inglaterra, em

relação à matéria administrativa, foram criados órgãos especiais para a solução de

litígios, denominados de Boards ou Comissions, ou, ainda, Tribunals. Há, ainda, um

Concil on Tribunals, “que desde 1958 fiscaliza o funcionamento desses organismos,

que chegam a mais de 2.000. Esses Tribunais às vezes estão ligados à Administração,

mas também podem ser independentes, como é o caso dos que cuidam das questões

trabalhistas e do inquilinato”.101

No Estado brasileiro já se ensaiou adotar-se o contencioso administrativo, por

meio do qual a solução de conflitos entre particulares e a Administração Pública não

ocorre no âmbito do Poder Judiciário, mas de outro órgão referido no sistema jurídico.

A propósito, depois de uma viagem à Europa para conhecer os dois sistemas

jurídicos sobre o tema, visconde de Uruguai deixou a sua impressão a respeito:

Não falta quem sustente que os atos da Administração devam ser controlados pelo Poder Judicial. Tal tese, porém, ocorre em equívoco. Se ela se viabilizasse, teríamos quatro consequências nefastas. Primeiro, teríamos um embaraçamento do princípio da tripartição dos Poderes. Segundo, teríamos a submissão da Administração ao Poder Judiciário. Terceiro, teríamos um comprometimento da Administração Pública, submetida ao controle do Poder Judiciário. Em quarto lugar, haveria uma confusão de responsabilidades com o Judiciários se substituindo à Administração.102

Sobre o tema, Miguel Seabra Fagundes enfatiza que, com o propósito de

instituir o contencioso administrativo no Estado brasileiro, houve a criação do Conselho

da Fazenda, inserido na organização administrativa. Em 1831, tal Conselho foi extinto,

sendo instituído o Tribunal do Tesouro, que não contava com função contenciosa

100 Esta última expressão foi utilizada por Hermes Zaneti Júnior, ao enfatizar que “no Brasil, de outra forma, não se fracionou a jurisdição. Desde a República, ao estilo dos Estados Unidos da América do Norte, contamos com um único contencioso: o pleito cível lato sensu ou sistema uno de jurisdição. Op. Cit., p. 30. 101 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 357.. 102 AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. Apud URUGUAI, Visconde de. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1862, p. 120 (consultei na RDA 268).

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administrativa, apenas com jurisdição voluntária. Já à época, a função contenciosa

administrativa passou para a Justiça Comum. Em 1850, reorganizou-se o Tribunal do

Tesouro Nacional, com mais atribuições, sendo que parte delas é de jurisdição

contenciosa, como, por exemplo, a de julgar os recursos interpostos contra decisões

proferidas por repartições fiscais.103

Em continuidade, em 1859 foi ampliada a atribuição do Tribunal do Tesouro

Nacional, conferindo-se força de decisão judicial àquelas provenientes dos chefes das

repartições da Fazenda e do Ministro da Fazenda. Como se vê, a jurisdição desse

órgão era restrita à matéria fiscal.104

Com a proclamação da República, ocorrida no ano de 1889, a resolução das

demandas contencioso-administrativas, das lides em que a Administração fosse parte,

passou a ser de titularidade exclusiva dos Tribunais comuns, chegando-se a colocar em

xeque a própria atuação dos Tribunais de Contas.105

A Constituição Federal de 1934, por sua vez, “lançou o Brasil no caminho da

criação dos Tribunais administrativos”, se assim fossem designados os “Tribunais

exclusivamente incumbidos de conhecer de todos ou parte dos litígios

administrativos”.106 A Constituição de 1937, por sua vez, retornou ao sistema judiciário

puro, mantido na Carta Política de 1946, Constituição de 1967 e na Emenda n. 1, de

1969, não obstante esta ter previsto, em seu art. 111, a possibilidade de criação de

Tribunais administrativos para a solução de conflitos trabalhistas entre servidores com a

União e autarquias.

Em continuidade, a Emenda n. 7/77, previu a possibilidade de criação de

Tribunais, não jurisdicionais, para o julgamento de questões fiscais e previdenciárias, o

que apenas serviu para enfatizar a adoção do sistema judiciário. Porém, a própria

Emenda n. 7/77 também trouxe a exigência do prévio exaurimento das vias

administrativas, como condição da ação. Por fim, a mesma emenda também previu a

103 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2010, p. 165. 104 FAGUNDES, Miguel Seabra. Op. Cit., p. 165. 105 VITAL, Fézàs. Garantias jurisdicionais da legalidade na Administração Pública: França, Inglaterra e Estados Unidos, Bélgica, Alemanha, Itália, Suíça, Espanha e Brasil. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1938, p. 166. 106 VITAL, Fézàs. Op. Cit., p. 166.

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criação de Tribunal administrativo para a solução de conflitos internos da Administração

Federal.107

A atual Carta Política, por sua vez, mantendo a tradicional separação de

Poderes, encampou o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV),

atribuindo-se ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, extensível ao controle dos

atos provenientes da Administração Pública. Estão interligados três princípios que

fundamentam o controle dos atos praticados pela Administração Pública: i) princípio da

separação de Poderes; ii) princípio da inafastabilidade da jurisdição; e, iii) princípio da

jurisdição una, de modo que os precedentes e a jurisprudência é emanada de um

mesmo Poder Judiciário, não obstante exista a possibilidade de especialização pelas

regras de competência.

4.4 Jurisprudência no sistema de civil law

Como já foi examinado, as ações que envolvam o poder público, no Brasil, são

de competência do próprio Poder Judiciário, com possível distinção unicamente em

relação à competência interna.

Em decorrência dessa constatação, tem-se que a jurisprudência e mesmo os

precedentes, como adiante se verá com mais vagar, no Brasil têm origem na mesma

estrutura judiciária. Não há dualidade a respeito. Por esse motivo, o poder público

poderá sofrer impacto de jurisprudência e de precedentes relacionados a matérias que

lhe digam respeito, ou que sejam mais amplos, a envolverem toda a sociedade.

Por exemplo, decidiu o Supremo Tribunal Federal, na ADPF n. 132/RJ e na ADI

n. 4.277/DF, pela constitucionalidade do reconhecimento civil da união estável entre

pessoas do mesmo sexo. Trata-se de pronunciamento do qual é possível extrair um

precedente específico, que, em suma, reconhece que a constituição de família pode

ocorrer também por duas pessoas que tenham sexos opostos.

Como se vê, o pronunciamento foi proferido em ações objetivas, com eficácia

erga omnes e efeito vinculativo. Atingem os integrantes da sociedade em geral, bem

107 DE PAULA, Edylcéa Nogueira. Revista Inf. Leg. Senado, ano 16, n. 62, abril de 1979.

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como o próprio poder público, que não pode mais negar, no âmbito previdenciário,

validade à união entre pessoas do mesmo sexo. O precedente é único, cuja

aplicabilidade será descoberta nas mais variadas situações.

Por isso, arrisca-se dizer que a jurisprudência brasileira também é una, em

correspondência à jurisdição una, competindo ao intérprete realizar a superação ou

distinção casuisticamente. O mesmo se diga, com mais razão, em relação ao

precedente.

Um exemplo de tentativa de demonstração desta superação ocorreu no

julgamento do RE n. 669.069/MG, Rel. Min. Teori Zavascki. Nesta ação, a União, no

polo ativo, defendia a imprescritibilidade da reparação por ilícito civil, em decorrência do

que está previsto no art. 37, § 5º da Constituição Federal, tese essa que não foi

acolhida.108

Em outra oportunidade, porém, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que o

poder público não deve indenizar o ocupante de terra por benfeitorias, até porque este

não exerce qualquer posse, mas mera detenção. No caso foi demonstrada a

particularidade do regime em relação ao poder público.109

Com essas observações, nota-se que o trabalho de interpretação do

precedente muito exigirá da Administração Pública e de sua Advocacia Pública, sendo

oportuno, neste momento, apresentar os principais aspectos das famílias de civil law e

common law, dando-se os primeiros passos no estudo do precedente propriamente.

108 Segue um trecho do Acórdão proferido pelo Ministro Teori Zavascki, que bem equaciona a questão e decide pela prescritibilidade. “3. Em suma, não há dúvidas de que o fragmento final do § 5º do art. 37 da Constituição veicula, sob a forma da imprescritibilidade, uma ordem de bloqueio destinada a conter eventuais iniciativas legislativas displicentes com o patrimônio público. Esse sentido deve ser preservado. Todavia, não é adequado embutir na norma de imprescritibilidade um alcance ilimitado, ou limitado apenas pelo (a) conteúdo material da pretensão a ser exercida – o ressarcimento – ou (b) pela causa remota que deu origem ao desfalque no erário – um ato ilícito em sentido amplo. O que se mostra mais consentâneo com o sistema de direito, inclusive o constitucional, que consagra a prescritibilidade como princípio, é atribuir um sentido estrito aos ilícitos de que trata o § 5º do art. 37 da Constituição Federal, afirmando como tese de repercussão geral a de que a imprescritibilidade a que se refere o mencionado dispositivo diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais”. 109 Conforme noticiado no Informativo n. 551, do STJ: “Quando irregularmente ocupado o bem público, não há que se falar em direito de retenção pelas benfeitorias realizadas, tampouco em direito a indenização pelas acessões, ainda que as benfeitorias tenham sido realizadas de boa-fé. Isso porque nesta hipótese não há posse, mas mera detenção, de natureza precária. Dessa forma, configurada a ocupação indevida do bem público, resta afastado o direito de retenção por benfeitorias e o pleito indenizatório à luz da alegada boa-fé”. (...). AgRg no REsp 1.470.182-RN, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 04.11.2014.

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5. Sistemas de Common Law e de Civil Law

5.1 O precedente como ponto central dos estudos das famílias jurídicas

Para qualquer análise da teoria dos precedentes, é mister que se tome em

consideração aspectos teóricos dos sistemas de common law e de civil law, que têm

como ponto central o estudo dos precedentes, notadamente de sua autoridade.110

Sob o ponto de sua autoridade, mister destacar que, em cada uma das famílias

jurídicas indicadas, o precedente tem importância diferenciada,111 ao menos em sua

essência. No sistema de common law, o instituto tem papel central, “considerando-se

que o direito costumeiro é declarado, reconhecido ou criado a partir da ratio decidendi

dos casos julgados”.112 A propósito, sintetiza Aluísio Gonçalves de Castro Mendes que

“o método indutivo do common law contrapõe-se, assim, ao dedutivo do nosso sistema,

que sempre procurou priorizar a interpretação a partir do arcabouço constitucional e

legal”.113

5.2 Sistema de Common Law

110 Esta seria a “diferença marcante entre os dois sistemas”, embora existam outras, como o “próprio conteúdo jurídicos dos institutos jurídicos de cada tradição jurídica”, que apresentam “sensíveis diferenças entre cada um dos sistemas”. , Georges. CARNIO, Henrique Garbellini. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 250. 111 Ou, conforme registrou Bruno Garcia Redondo: “Precedentes podem ser levados em consideração por qualquer dos sistemas (common law ou civil law). A diferença fundamental reside no grau de eficácia de que o precedente desfruta: enquanto no sistema clássico do common law os precedentes são, em regra, vinculantes, no sistema puro do civil law eles são, de modo geral, inobservados ou meramente persuasivos”. In: Aspectos essenciais da teoria geral do precedente judicial: identificação, interpretação, aplicação, afastamento e superação. Revista de Processo. Vol. 217/2013, p. 401 – 418, mar / 2013 DTR\2013\1838, p. 2. 112 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Precedentes e jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no Direito Brasileiro contemporâneo. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 14. 113 jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no Direito Brasileiro contemporâneo. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 14.

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Em sua essência, o sistema de common law é baseado em precedentes, em

que a forma de individualização dos direitos é do tipo indutivo, pois se parte de casos

individuais, dos quais se extrai uma regra geral, que será aplicada a casos futuros.114

O precedente, nesse sentido, é fonte do Direito, tendo força vinculante contra

todos, fundando-se na doutrina do stare decisis, que foi uma divisora de águas em

relação ao tema. Esta doutrina pode ser considerada como a designação dada para

marcar o desenvolvimento obtido no século XIX, quer seja na Inglaterra ou nos Estados

Unidos.115

Atribuindo-se a força vinculante ao precedente, o sistema jurídico atende aos

interesses privado e público, na medida em que soluciona o caso concreto, bem como

fixa a regra que será aplicada aos casos futuros.116 A partir disso, a doutrina do

precedente vinculante adquiriu a condição de ciência, conferindo certeza, uniformidade

e segurança aos jurisdicionados.117

Como se vê, a metodologia de estudos no sistema de common law é

diferenciada, pois parte da análise dos precedentes, extraindo-se do pronunciamento a

razão de decidir que será aplicada para os casos futuros, salvo se existirem

particularidades fáticas que justifiquem a distinção.

A partir de tal forma de análise, a sociedade poderá buscar um norte, valendo-

se dos valores estabelecidos nos precedentes judiciais, motivo pelo qual é fundamental

que ocorra a delimitação das razões de decidir e das circunstâncias essenciais sem as

quais a fundamentação poderia ser diferente.

Por meio dessa atividade, extrai-se a ratio decidendi (tese jurídica – ou rule) da

obiter dicta (elementos que sejam acidentais), tendo aquela eficácia vinculante

horizontal e vertical, pois vincula o próprio órgão judicial e aqueles que estiverem em

posição inferior.118

114 ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 76. 115 ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbellini. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 307. 116 ROSITO, Francisco. Op. Cit., p. 84. 117 ROSITO, Francisco. Op. Cit., p. 85. 118 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Precedentes e jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no Direito Brasileiro Contemporâneo. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, 2014, p. 19.

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Conforme destaca a doutrina, na Inglaterra, sendo decidido um caso pela

primeira vez, toma-se a decisão sem que haja a menção de que se trata de rule,

competindo ao órgão jurisdicional do caso futuro, entendendo ser o caso de aplicá-lo,

passar a interpretá-lo para identificar a regra.119

Dessa maneira, a ratio não é definida de imediato, mas na decisão

subsequente.120

Em que pese a busca pela igualdade e estabilidade, no sistema de common law

é admitida a evolução do direito vigente, permitindo-se o estabelecimento de novo

precedente, motivo pelo qual devem ser postas em evidência duas importantes técnicas

na contraposição do precedente: a overruling e a distinguishing.

Trata-se a overruling de técnica a ser utilizada para que se reconheça a

existência de motivos para o estabelecimento de novo precedente, abandonando-se o

anterior. Promove-se, com esse mecanismo, o afastamento do precedente e a

declaração de sua superação. 121

Por meio do overruling, portanto, ocorre uma ruptura da regra jurídica até então

vigente, para a criação de outra, o que exigirá fundamentação considerável, para que

se justifiquem os motivos da alteração. Poderá ser expressa (express overruling), se o

Tribunal expressamente indica a alteração, ou tácita (implied overruling), extraída do

confronto dos precedentes.122

É necessário, ainda, diferenciar as expressões overruling de overriding, pois

nesta ocorre a limitação do âmbito de incidência do precedente, em razão do advento

de uma regra geral. Trata-se, como se vê, de superação parcial do precedente.

Diferentemente, por meio da distinguishing a regra sobreviverá, pois, haverá

menção ao precedente, mas, em razão de particularidade, há de se reformular a regra.

Delimitado o sistema de common law, sob o ponto de vista dos precedentes,

passa-se à análise de nosso sistema.

119 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da lei e de precedentes: civil law e common law. Revista dos Tribunais, Vol. 893/2010, março/2010. São Paulo: RT, p. 33-45. 120 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da lei e de precedentes: civil law e common law. Op. Cit., p. 35. 121 MADEIRA, Daniela Pereira. O novo enfoque dado à jurisprudência e a sociedade moderna. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 322. 122 MADEIRA, Daniela Pereira. O novo enfoque dado à jurisprudência e a sociedade moderna. Op. Cit., p. 322.

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5.3 Sistema de Civil Law

No sistema de Civil Law, a fonte principal do direito é a lei e não a sua

interpretação. Em sua essência, como afirma Teresa Wambier, este sistema tem como

princípio básico o da legalidade ou Normgebundenheits Prinzip, esperando-se, como

sua característica, a rigidez. Porém, como o sentido da lei pode ser interpretado de

maneiras diversas pelos juízes, é possível que ocorra grave desequilíbrio, gerando a

inobservância de princípios.123

Repita-se. Neste sistema, em sua essência, o precedente não é fonte do direito.

Quando muito, o conjunto reiterado de decisões em um determinado sentido encampa

uma tese e tem efeito meramente persuasivo em relação aos casos que serão julgados

no futuro.

Não sem motivo, já se afirmou que a própria jurisprudência se apresenta com

força normativa reduzida em relação à lei, “uma vez que as regras advindas dela seriam

mais frágeis, porque suscetíveis de serem abandonadas ou modificadas a qualquer

momento”.124

Porém, o efeito transcendente dos precedentes vem sendo observado como

forma de garantir a certeza, a previsibilidade e a igualdade dos jurisdicionados.125 Tal

discussão é deveras influenciada pela própria aproximação entre os sistemas de

common law e de civil law, fato esse derivado principalmente do intercâmbio de

informações entre os países, a influência da constitucionalização do direito e a

valorização da jurisprudência entre os países de civil law.

A propósito, a doutrina brasileira já apontava a existência de muito em comum

nos processos interpretativos do sistema de common law com as modificações que já

123 WAMBIER, Teresa Celina Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Op. Cit., p. 3. 124 ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbellini. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, p. 302. 125 WAMBIER, Teresa Celina Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Op. Cit., p. 17.

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vinham ocorrendo,126 constatando-se a adoção de técnicas que valorizavam a

jurisprudência,127 baseado em alterações constitucionais e infraconstitucionais.

5.4 Aproximação entre os sistemas de Common Law e de Civil Law

No direito inglês, a ação dos Tribunais “está sendo contrabalançada pelo

desenvolvimento de leis escritas”,128 abandonando o “direito exclusivamente

consuetudinário” e passando a elaborar “normas legislativas de caráter geral”.129

Em sentido contrário, como vem ocorrendo no Brasil, vem-se valorizando cada

vez mais a jurisprudência, chegando-se ao implemento de um sistema de precedentes,

com características próprias, como adiante será visto com mais vagar.

Percebe-se, dessa maneira, a convergência paulatina dos dois sistemas, o que

já foi verificado há certo tempo.

Sobre o tema, Lucas Buril de Macêdo destacou o papel do

neoconstitucionalismo e da constitucionalização do processo em tal convergência, em

lição que se registra pela sua objetividade:

Fator de aproximação teórico que possui extrema relevância é o fenômeno jurídico que se convencionou nomear neoconstitucionalismo. A eficácia dos direitos fundamentais, vetor interpretativo e núcleo axiológico da ordem jurídica, e a concretização dos princípios possibilitam maior criatividade por parte do juiz. Além disso, os princípios constitucionais são aplicáveis em todas as searas jurídicas, o que enseja certa publicização das situações jurídicas.130

126 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da lei e de precedentes: civil law e common law. Op. Cit., p. 01. 127 A respeito, destaca Aluísio Gonçalves de Castro Mendes: “É interessante notar, contudo, que a aproximação supramencionada é, por vezes, relativa, pois, embora se procure estudar e conhecer melhor a realidade alheia, inclusive com a eventual introdução de mecanismos inspirados no direito estrangeiro, as diferenças estruturais, culturais e sistêmicas podem continuar sendo gritantes, ou, talvez, possam ficar ainda mais perceptíveis, o que não deixa de ser, ou pode ser, um segundo passo para uma reanálise dos institutos e, por conseguinte, modificações mais profundas”. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Precedentes e jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no Direito Brasileiro Contemporâneo. MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 14. 128 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 316. 129 MADEIRA, Daniela Pereira. O novo enfoque dado à jurisprudência e a sociedade moderna. Op. Cit., p. 75-88. 130 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 75.

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Essa aproximação também foi constatada pelos estudiosos do Direito

Administrativo, conforme apontado por Floriano Marques de Azevedo Neto:

Com base nas raízes históricas e no desenvolvimento de ambas as famílias do direito ocidental, aponta a existência de gradual aproximação de ambos os sistemas, com adoções recíprocas de instrumentos de controle e exercício da autoridade, de promoção de liberdades e de organização da atividade jurisdicional.131

E, ainda tratando sobre o assunto, sob o foco da influência dos sistemas de civil

law e de common law, conclui o autor ser possível constatar a existência de

“sincretismo enriquecedor” entre eles, “movimento tido como tendência nos

ordenamentos jurídicos contemporâneos”,132 o que, aliás, pode-se acrescentar,

percebe-se também no Brasil, país integrante da família de Civil Law.

Mancuso registra que o fenômeno guarda correspondência com a aproximação

derivada da “globalização da economia, pela transmigração dos povos, pela

multinacionalização do Direito” e destaca, em relação a este último aspecto, os

exemplos das regras de processo civil internacional e do Anteprojeto de Código Modelo

de Processos Coletivos para Ibero-América.133

Com tal posição não há concordância plena. Aliás, já se defendeu que a

sistemática de utilização dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro não se

“consubstancia na importação e aplicação da doutrina do stare decisis oriunda da

tradição jurídica da common law”. Diferentemente, seria reflexo da aplicação das regras

de racionalidade fundantes da teoria da argumentação jurídica de Alexy, de que se

utiliza para fundamentar as decisões no sistema de civil law.134

A propósito, Denise Maria Rodríguez Moraes ressalta que a proposta contida no

Novo Código de Processo Civil (embora, em seu trabalho, indique versão anterior à

consagrada legislativamente) em nada inovaria, pois se trataria de simples proposta de

131 AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law. In: FALCÃO, Joaquim. GUERRA, Sérgio (eds.). Revista de Direito Administrativo – RDA. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2015, número 268, p. 55. 132 AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. Op. Cit., p. 56. 133 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 176. 134 MORAES, Denise Maria Rodríguez. A vinculação dos precedentes judiciais como reafirmação de que todos são iguais perante a lei. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 388.

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aplicação efetiva do discurso jurídico, com a observância dos postulados da isonomia e

da divisão hierárquica da jurisdição pela magistratura.135

Ainda em conformidade com a autora, a decisão jurídica, para Alexy, constitui-

se de um processo argumentativo obtido pela fixação de parâmetros que devem ser

obrigatoriamente observados, quais sejam, as leis e os precedentes judiciais,136 e que

busquem a garantia do postulado da igualdade. Por fim, indica que a técnica de

julgamento desenvolvida em países de common law seria mais complexa,

diferentemente da então proposta no Brasil. 137

De fato, a teoria dos precedentes, agora fortalecida, tem como ideal a busca

pela observância da igualdade e da segurança jurídica, com o que não se pode

discordar. Porém, com o devido respeito, o sistema implantado no Brasil também é

dotado de complexidade, diante das várias especificidades e, o que aqui se propõe, da

própria necessidade de observância pelo poder público, como adiante se esmiuçará.

Diante do quadro desenhado, levando-se em conta o acelerado ritmo de

alteração dos sistemas processuais, ocorreu o que pode ser denominado de circulação

de modelos, a partir de interferências horizontais, “entre sistemas distintos, ou melhor

dizendo, da imitação de um sistema ou modelo por outros, ainda que derivados de

experiências históricas e linhas evolutivas muito heterogêneas”.138

Além disso, não se pode negar que a defesa do Estado Democrático de Direito,

que prega a estabilidade e a previsibilidade, conduz ao fato de que a lei não é a única a

regular a “pauta de condutas dos jurisdicionados”, mas, diferentemente, na forma como

a lei é compreendida pelos Tribunais, como foi destacado por Teresa Arruda Alvim

Wambier.139

Mancuso, por sua vez, também reporta a relativização da tradicional divisão das

famílias jurídicas, apontando tendência de países de civil law à valorização progressiva

da jurisprudência, de um lado, enquanto do outro, nos países de common law, ocorre a

135 MORAES, Denise Maria Rodríguez. A vinculação dos precedentes judiciais como reafirmação de que todos são iguais perante a lei. Op. Cit., p. 389. 136 MORAES, Denise Maria Rodríguez. A vinculação dos precedentes judiciais como reafirmação de que todos são iguais perante a lei. Op. Cit., p. 398. 137 MORAES, Denise Maria Rodríguez. Op. Cit., p. 400. 138 MADEIRA, Daniela Pereira. Op. Cit., p. 309. 139 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e Adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Op. Cit., p. 144.

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tendência de valorização do direito escrito, como ocorreu na Inglaterra, com a

aprovação da Rules of Civil Procedure, no país de Gales, com a sanção da Arbitration

Act,140 e nos Estados Unidos, com o Commercial Code.141

5.5 O Direito brasileiro: sistemas aliados

Conforme já foi ressaltado, o Brasil pertence à família jurídica de civil law.

Contudo, admite-se que tal sistemática interaja com o precedente, formando-se aliança

entre os sistemas, fruto de amadurecimento decorrente da valorização da jurisprudência

e da observância de princípios, sobretudo da igualdade, da segurança jurídica e da

legalidade (ordem jurídica). Tudo sob o denominador comum do Estado Democrático de

Direito.

País federalista, de jurisdição una e de civil law

Estado Democrático de Direito

No âmbito constitucional, o modelo começou a se instalar com a atribuição de

efeito vinculante às decisões definitivas de mérito nas ações diretas de

inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, proferidas no

âmbito do Supremo Tribunal Federal, além da própria permissão para a aprovação de

súmulas vinculantes pelo mesmo Tribunal.

Além da previsão constitucional, há de se registrar também as modificações no

Código de Processo Civil de 1973, que destacaram o papel da jurisprudência, sem,

contudo, atribuir força vinculante aos julgados. A propósito, sobre a necessidade de

observância da jurisprudência, Teresa Wambier sustentou no ano de 2009 que

140 Barbosa Moreira registrou o diagnóstico apresentado por Lord Woolf of Barnes de “insatisfação pública generalizada com o atraso, a despesa, complexidade e incerteza dos casos que prosseguem através dos Tribunais civis”, o que seria uma das causas do movimento de prestígio ao direito escrito no sistema de common law. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Uma novidade: o Código de Processo Civil Inglês. Temas de direito processual, 7ª. Série. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 180 e rodapé 4. 141 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 172.

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Ao que parece, o legislador brasileiro já se apercebeu desta necessidade. Não é saudável que convivamos eternamente com Tribunais decidindo concomitantemente, de forma diferente, a mesma questão. Assim como não é conveniente que nossos Tribunais sejam Tribunais de "grandes viradas".

Muitos dispositivos, como, por exemplo, os arts. 557, 544, §§ 3.o e 4.o, 518, § 1.o, 285-A, 543-B e 543-C do CPC (LGL\1973\5) são sintomas de que a nossa lei processual está caminhando no sentido de proporcionar condições para que haja uniformidade da jurisprudência num grau socialmente desejável. O mesmo se pode dizer relativamente à repercussão geral e à súmula vinculante.142

Os incidentes de uniformização de interpretação de lei, previstos nas Leis dos

Juizados Especiais Federais (Lei n. 12.259/2001) e dos Juizados Especiais da Fazenda

Pública (Lei n. 12.153/2009) também destacam o papel uniformizador da

jurisprudência.143

O Novo Código de Processo Civil, por sua vez, além de destacar que os

Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente

(art. 926), também determinou que os juízes e Tribunais observassem determinados

pronunciamentos (art. 927). A partir de tal previsão, questiona-se se tais decisões se

142 WAMBIER, Teresa Celina Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Op. Cit., p. p. 1152. 143 Desse modo, ao ser julgado o recurso inominado pela Turma Recursal Federal, será cabível a interposição de recurso extraordinário (art. 102, III CF), ou, então, de incidente de uniformização de interpretação de lei para turma uniformizadora da própria Região, quando houver contrariedade com a decisão de outra turma da mesma Região, ou, então, o incidente dirigido à Turma Nacional de Uniformização (TNU), na hipótese de ofensa à decisão de Turma de outra Região, da TNU ou do Superior Tribunal de Justiça. E, ainda, proferida decisão pela TNU, sendo ela contrária a entendimento do Superior Tribunal de Justiça, caberá a interposição de outro incidente diretamente a este Tribunal Superior, geralmente recebido como Petição (Pet.). A propósito, o Conselho da Justiça Federal alterou, recentemente, os regulamentos sobre a Turma Nacional de Uniformização e as Turmas Recursais, editando as Resoluções n. CJF-RES-2015/345, de 2.6.2015 e CJF-RES-2015/347, de 2.6.2015. Da leitura dos dispositivos contidos na Lei n. 10.259/2001 e das Resoluções indicadas tem-se que somente será admitido o incidente se houver contrariedade a entendimento anteriormente fixado. Assim, também no âmbito dos Juizados Especiais Federais, não há recurso previsto para impugnação de decisão quando, não existindo parecer anterior, a decisão judicial contraria lei federal. E o mesmo ocorrerá no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública. Os arts. 18 e 19, da Lei n. 12.153/2009, preveem, no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, a possibilidade da interposição do incidente de uniformização de jurisprudência. Ao contrário do que ocorre no âmbito dos Juizados Especiais Federais, em sede estadual é possível a interposição do incidente para julgamento da Turma de Uniformização Regional e do Superior Tribunal de Justiça. Não há, por ora, a Turma Nacional de Uniformização. O pedido de uniformização de interpretação será julgado em reunião conjunta das Turmas em conflito, quando verificada divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais do mesmo Estado sobre questões de direito material. Se houver divergência entre Turmas de diferentes Estados, ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com súmula do Superior Tribunal de Justiça, será cabível a interposição do pedido de uniformização de jurisprudência, que será decidido por este Tribunal. O mesmo ocorrerá quando a orientação acolhida pelas Turmas de Uniformização contrariar súmula do STJ.

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configurariam, por força de lei, em precedentes obrigatórios, a vincular os juízes e

Tribunais no julgamento dos casos posteriores.

Os artigos 926 e 927 do Novo CPC tratam, sem dúvida, de notável inovação

introduzida no Direito brasileiro para aqueles que estendem o efeito vinculante também

à ratio decidendi extraída de outros pronunciamentos que não só os mencionados na

Constituição Federal.144

Observe-se o desafio existente no momento presente, notadamente para os

operadores do Direito e para a própria Administração Pública, pois, a implementação do

sistema de precedente exigirá uma nova leitura do próprio princípio da legalidade, bem

como refletirá em atos administrativos e processuais, por conta do efeito vinculante que

se propõe ter.

Particularmente para a Administração Pública, surge uma questão importante:

teria o Novo CPC encampado o princípio da universalização das decisões, de modo

que a decisão proferida no presente valerá para todos os casos futuros e, dessa

maneira, o precedente teria força normativa equivalente à da lei? Em caso positivo, em

atenção ao princípio da legalidade, deverá o agente público considerar tal precedente

nas suas decisões, estando vinculado a ele? Constituiria ato imoral e de má-fé

processual litigar contra tese já adotada em precedente vinculante, ou recorrer contra

decisão judicial com este padrão decisório? São todas questões que aos poucos serão

respondidas.

5.6 Sistemas de Common Law e de Civil Law e Direito Administrativo

Como já foi apontado neste trabalho, em reiteradas vezes será necessário

fomentar a discussão a partir de um sincretismo entre os sistemas de common law e de

civil law.

Nesta altura da pesquisa, compete verificar, em primeiro lugar, se é possível

falar-se em Direito Administrativo – com as suas características – no sistema de

common law. Já se admitiu, outrora, a impossibilidade de tal coexistência, pois isso

144 No próximo capítulo, serão vistas as posições favoráveis e contrárias a este entendimento.

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seria “incompatível com o eixo estruturante da igualdade subjacente à rule of law”,145

afirmação essa que, posteriormente, foi objeto de retratação.146 No âmbito brasileiro, a

coexistência já é defendida, notadamente diante da experiência americana.147

O sincronismo entre os sistemas é verificado, principalmente, no que foi

denominado de “Direito Administrativo Supranacional” ou “Direito Administrativo de

Corte Global”, notadamente em relação à comunidade europeia, para, em certos

momentos, aplicar-se cada um deles isoladamente, enquanto em outros, apropriar-se

de soluções encontradas em cada modelo.148

O Direito Administrativo brasileiro, na atualidade, repercute a ideia de tal

sincretismo, tal como constatado por Maria Paula Dallari Bucci.149 Com efeito, a

unicidade da jurisdição e o modelo de ampla revisão dos atos administrativos, adotado

pelo ordenamento jurídico brasileiro, são manifestações do sistema de common law,

assim como também o são a aplicação do princípio do devido processo legal

substancial, da aplicabilidade do princípio da razoabilidade e do próprio direito

regulatório.150 Da mesma maneira, obviamente, podem ser apontados exemplos

nascidos no sistema de civil law, como a ideia de serviços públicos, a teoria do ato

administrativo e outras manifestações.151 Consequentemente, a ideia de aplicação dos

precedentes e mesmo de sua eficácia normativa, importada do sistema de common law,

não pode ser refutada por impropriedade sistêmica. Em verdade, parece muito bem

espelhar os próprios anseios do Direito Administrativo moderno.

145 AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law. In: FALCÃO, Joaquim. GUERRA, Sérgio (eds.). Revista de Direito Administrativo – RDA. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2015, número 268; DICEY, Albert Venn et all. Introduction to the study of the law of the Constitucion. Indianapolis: Liberty Fund, 1982, p. 214. Reimpressão da 8ª. ed., 1915. 146 AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law. Op. Cit., p. 338. 147 “Ainda que se reconheça que o direito administrativo de cada país, sem dúvida, tenha características próprias, quando tomamos por base o vetor da especialidade das regras para disciplinar o exercício da autoridade, somos obrigados a admitir a existência do direito administrativo no âmbito da common law. AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law. Op. Cit., p. 68-69. 148 AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. Op. Cit., p. 72. 149 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 67 e ss. 150 Revista de Direito Administrativo – RDA. São Paulo: Editora FGV, janeiro/abril 2015, p. 75. 151 Revista de Direito Administrativo – RDA. São Paulo: Editora FGV, janeiro/abril 2015, p. 76.

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Para tanto, inicialmente, haverá necessidade de exercício de humildade pela

própria Administração, tal como também deverá ocorrer pelos próprios Tribunais.

Com efeito, para um juiz ou Tribunal aceitar e aplicar o precedente, deve

exercer essa humildade, ora pela deferência perante os órgãos julgadores anteriores,

ora na própria deferência à manifestação do colegiado.152 Ou, conforme já afirmado, “é

preciso que, como ocorre em países de common law, se deixe de considerar que a

mera divergência é razão suficiente para que um Tribunal se afaste do precedente

antes estabelecido”.153

E o sistema judiciário brasileiro, em relação ao tema, ainda tem muito a

caminhar, notadamente em relação ao quesito segurança jurídica.154 Há vários

exemplos sobre a desimportância de julgadores em relação aos precedentes, até

mesmo provenientes do próprio Tribunal (e, mais grave, do Supremo Tribunal Federal),

como é possível constatar na comparação entre as Ações Penais n. 470 e 565,

julgadas em intervalo inferior a um ano.155

Ora, se é constatada a falta de modéstia, de humildade e até de respeito aos

seus pares membros de um Tribunal Superior, integrante do mesmo Poder, o que dirá

entre membros de Poderes diferentes?

Há de se considerar, ainda, a humildade e respeito do Poder Judiciário em

relação às decisões tomadas pelo próprio poder público no exercício da ordem

administrativa, entendida como a “normal execução dos serviços públicos, o regular

andamento das obras públicas e o devido exercício das funções da Administração pelas

152 BERMANN, José Guilherme. (Juris)prudência e sistemas jurídicos: um breve estudo sobre a modéstia judicial na common law e no sistema romano-germânico. In: Revista de Direito Administrativo – RDA – n. 269. São Paulo: Editora FGV, maio/agosto 2015, p. 176. 153 BERMANN, José Guilherme. (Juris)prudência e sistemas jurídicos: um breve estudo sobre a modéstia judicial na common law e no sistema romano-germânico. Op. Cit., p. 188. 154 Considerando a realidade portuguesa, Canotilho já pontuou que, “sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais, mas sempre se coloca a questão de saber se e como a protecção da confiança pode estar condicionada pela uniformidade, ou, pelo menos, estabilidade, na orientação dos tribunais. É uma dimensão irredutível da função jurisdicional a obrigação de os juízes decidirem, nos termos da lei, segundo a sua convicção e responsabilidade. A bondade da decisão pode ser discutida pelos Ttibunais superiores que, inclusivamente, a poderão << revogar >> ou << anular >>, mas o juiz é, nos feitos submetidos a julgamento, autonomamente responsável”. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria das Constituições. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 265 155 Na primeira ação, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, ocorrendo o trânsito em julgado da condenação de parlamentar, a perda do mandato seria automática, de modo que a Casa Legislativa deveria apenas proferir manifestação declaratória. Na segunda, porém, exigiu pronunciamento com deliberação legislativa.

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autoridades constituídas”.156 Aliás, é digno de nota que, de nada adianta prever a

Constituição Federal as competências reservadas, se o poder público não puder

exercê-las adequadamente157, reservando-se a interferência judicial para a correção de

desvios de finalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

Por isso, o sucesso da empreitada de assegurar a observância dos precedentes

judiciais, pela Administração Pública, parte, em primeiro lugar, de o próprio Judiciário

vestir-se do manto de humildade e de modéstia, focando na segurança jurídica e no

princípio da igualdade, ao invés de buscar, cada julgador, fazer prevalecer o seu

entendimento pessoal sobre determinada questão. E, na mesma toada, seguindo-se o

exemplo, os agentes públicos também deverão seguir este caminho, guiados por

aqueles e também por outros princípios, o que surtirá efeitos no âmbito administrativo e

processual.

Para o exercício de humildade, o Poder Judiciário e o próprio poder público

devem ter consciência mútua de que ambos são responsáveis pela formação do Direito

vigente, cada qual no seu âmbito de atuação em conformidade com o modelo

constitucional, respeitado o princípio do federalismo, do Estado Democrático de Direito,

da jurisdição una e, conforme se propõe, do potencial de aplicação do princípio da

igualdade e da segurança jurídica na atuação no sistema de civil law admitida pelo

próprio ordenamento jurídico.

E isso pois o Poder Judiciário, ao decidir os conflitos, e o próprio poder público,

ao tomar decisões de cunho administrativo, estarão dando prosseguimento a um

processo de pensamento,158 fornecendo uma solução em conformidade com a

interpretação da moldura legislativa, concretizando o ordenamento jurídico e fixando

elementos ainda não delimitados na norma geral.159

156 Agravo Regimental na Suspensão de Segurança n. 4.178, do Rio de janeiro, rel. Ministro Cezar Peluso, decisão plenária de 20.10.2011. E, também: Pedido de Suspensão n. 0203907.48.2013.8.26.0000, em decisão proferida pelo então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador Ivan Sartori (02.12.2013). 157 Nesse sentido, aliás, ao Estado-membro aplica-se, no caso, a teoria dos poderes implícitos – originada no voto do juiz MARSHALL, proferido no leading case 'McCulloch versus Maryland', de 1819 –, quando o governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Pareceres do Consultor-Geral da República. Volume 68, p. 99/100. 158 OLIVEIRA, Paulo Mendes de Oliveira. Coisa julgada e precedente. São Paulo: RT, 2015, p. 161. 159 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. Cit., 260 a 263.

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É certo que a construção doutrinária formulada por Kelsen e os demais autores

que prosseguiram esse intento, foram feitas com olhar voltado aos Tribunais,

enfatizando a interpretação jurídica que gera a norma individual por meio da atividade

do juiz. Contudo, como o poder público está diretamente vinculado ao Direito, conforme

adiante se demonstrará, a decisão administrativa, nos exatos limites da atribuição e,

ainda, sujeita ao controle judicial, também deve importar na descoberta e declaração do

direito, formando norma jurídica individual.160

Aplica-se, assim, por extensão ao poder público, o que foi afirmado por Kelsen

em relação à decisão judicial:

Somente a falta de compreensão da função normativa da decisão judicial, o preconceito de que o direito apenas consta de normas gerais, a ignorância da norma jurídica individual, obscureceu o fato de que a decisão judicial é tão só a continuação do processo de criação jurídica e conduziu ao erro de ver nela apenas a função declarativa.161

Por isso, não só o poder público deverá respeitar a norma jurídica individual

fixada pelos Tribunais e, em atenção ao princípio da igualdade e da segurança jurídica,

aplicá-la por extensão aos demais administrados, como também o Poder Judiciário

deverá respeitar o âmbito de atuação e as decisões tomadas pela Administração

Pública, interferindo-se tão somente para o respeito do próprio ordenamento jurídico

como um todo.

6. Conclusão parcial

Diante dos aspectos trazidos no texto contido neste capítulo, é possível

concluir, que o princípio federativo não impõe empecilhos para a adoção de um sistema

de precedentes, mas, pelo contrário, dá-lhe conformidade particular, pois, na medida

em que se prevê matérias que serão de competência legislativa federal, estadual e

municipal, de forma exclusiva em algumas situações, e de forma concorrente para

outras, respeitando-se o papel da União de editar leis gerais, atendendo-se ao princípio

da simetria, permite-se que os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais

160 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. Cit., p. 264. 161 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. Cit., p. 265.

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sirvam ora como Cortes de Justiça, ora como Cortes de Direito, na medida em que se

constituem o último degrau no controle dos atos em relação à Constituição Estadual,

unificando o entendimento quanto ao Direito estadual e Direito municipal, além de

uniformizador interno.

Neste contexto federativo, registrou-se o papel do princípio da igualdade, base

do próprio sistema de precedentes.

Da mesma forma, percebeu-se que a jurisdição una, por meio da qual as

demandas em que envolvido o poder público serão solucionadas pelos mesmos órgãos

do Poder Judiciário, ressalvadas regras próprias de competência, também imporá

conformidade particular, diante da possibilidade de se formar um precedente uno, que

valha tanto para particulares, quanto para a Administração Pública, e que não seja

restrito ao controle de constitucionalidade, ressalvada, é claro, a necessidade de

distinção e mesmo de superação.

Além de tudo isso, e diga-se de passagem, o mais importante, constatou-se que

o fato do Brasil ser um país integrante da família jurídica de civil law, por si só, não se

apresenta como óbice à implementação de um sistema defensor do respeito à

jurisprudência e da autoridade do precedente, pois, na sua concepção, aquele sistema

visava à própria estabilidade e segurança jurídica, ao prever a observância fiel da lei.162

Todos esses elementos possuem, como denominador comum, e de cujo

pressuposto partirá toda a explanação nos demais capítulos: que se está fazendo

referência a um Estado Democrático de Direito.

162 A propósito, Rodrigo Ramina de Lucca destaca que o sistema de civil law “parte do pressuposto de que as mesmas decisões serão proferidas para as mesmas situações fáticas, jamais tendo comportado uma jurisprudência instável e volátil. Imaginar que cada juiz pode decidir o caso concreto como bem entende é uma deturpação lógica da razão de ser do civil law”. Limites à mudança jurisprudencial. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Precedentes e jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no Direito Brasileiro contemporâneo. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 1099.

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CAPÍTULO 2. O PRECEDENTE NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

1. Conceitos importantes: a jurisprudência, o exemplo, a súmula e o

precedente

1.1 Jurisprudência

Considerando-se a imprecisão terminológica existente sobre as expressões

jurisprudência, exemplo, súmula e precedente, procura-se, neste primeiro momento,

indicar os principais pontos conceituais que diferem um instituto do outro.

Há vários significados para a expressão jurisprudência,163 que pode designar,

conforme registrado por Lenio Luiz Streck, em sentido estrito, a Ciência do Direito e, em

sentido lato, o “conjunto de sentenças dos Tribunais” e, ainda, pode indicar somente as

sentenças uniformes.164

De ora em diante, será utilizada a expressão jurisprudência para se referir a

este último significado, qual seja, existência de conjunto de decisões uniformes, ou

proferidas em sentido dominante. Pode se referir a dezenas, centenas e até milhares de

decisões. Trata-se de ideia plural, ao contrário da ideia singular ligada ao precedente,

ou, como realçado por Michele Taruffo

A diferença não é apenas do tipo semântico. O fato é que nos sistemas que se fundam tradicionalmente e tipicamente sobre o precedente, em regra a decisão que se assume como precedente é uma só; ademais, poucas decisões sucessivas vêm citadas em apoio do precedente. Deste modo, é fácil identificar qual decisão de verdade ‘faz precedente’. Ao contrário, nos sistemas – como o nosso – nos quais se alude à jurisprudência, se faz referência normalmente a muitas decisões: às vezes, são dúzias ou até mesmo centenas, ainda que nem

163 “Jurisprudência possui, ao menos, três significações: a uma, noção dada pelo próprio Ulpiano e comum entre os romanos, designa toda a ciência do direito, assim os juris prudentes seriam os homem que sabiam o direito aplicável aos casos concretos, nesse sentido ainda se utiliza o termo para designar várias escolas de direito ao redor do mundo; a duas, a partir da etimologia, pode-se afirmar tratar-se do conjunto de pareceres dos jurisconsultos sobre problemas jurídicos que lhe foram submetidos; finalmente, em um sentido mais estrito e mais usual, indica o corpo de decisões dos juízes e Tribunais sobre questões jurídicas que lhes foram apresentadas mediante casos concretos”. MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 108. 164 STRECK, Lênio Luiz. Súmulas no direito brasileiro: eficácia, poder e função. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 83.

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todas venham expressamente citadas. Isso implica várias consequências, dentre as quais a dificuldade – frequentemente de difícil superação – de estabelecer qual seja a decisão que verdadeiramente é relevante (se houver uma) ou então de decidir quantas decisões são necessárias para que se possa dizer que existe uma jurisprudência relativa a uma determinada interpretação de uma norma.165

Como visto, Michele Taruffo propõe que existem diferenças de caráter

quantitativo e qualitativo entre jurisprudência e precedente.

Sob o primeiro enfoque, a jurisprudência é um conceito plural, enquanto o

precedente, por sua vez, é singular.

Em relação ao aspecto qualitativo, destaca Taruffo que o precedente é

responsável pela fixação de uma regra que será aplicável em caso futuro, desde que

haja identidade entre os fatos, fato que será analisado pelo magistrado na análise do

caso sucessivo, o que justamente falta à jurisprudência, que não realiza a “análise

comparativa dos fatos”.166

A jurisprudência, conquanto também seja fonte do Direito, como adiante se

verá, possui força meramente persuasiva e, portanto, não vinculante.

Há uma significativa diferença entre jurisprudência e precedente no que se

refere à sua identificação e aplicabilidade prática.

Em relação à jurisprudência, o operador do Direito se reportará a trechos que

contêm a síntese da motivação. Diferentemente, o entendimento do precedente

demandará a compreensão do próprio caso anterior, extraindo do pronunciamento

judicial os fatos relevantes e a tese jurídica adotada. É possível, a partir da análise da

existência de coerência entre os fatos relevantes do caso-precedente e do caso-

concreto que se chegue à aplicabilidade ou não do precedente.

O Código de Processo Civil de 1973, a partir de suas Reformas, incentivou a

observância da jurisprudência, principalmente:

i) ao permitir ao relator, monocraticamente, negar provimento ao recurso que

confrontasse súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do Supremo

Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior (art. 557);

165 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Op. Cit., p. 5. 166 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Op. Cit., p. 5.

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ii) ao prever a presunção absoluta de repercussão geral quando o recurso

impugnasse decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF (art. 543-

A, § 3º);

iii) ao prever a extensão da decisão proferida a outros casos, que poderiam ser

liminarmente julgados (art. 543-B, §§ 3º e 4º) e sobretudo na abrangência do

julgamento de recurso especial repetitivo (art. 543-C e §§); e

iv) ao prever o incidente de uniformização de jurisprudência.

Também outras leis deram importância para o respeito à jurisprudência. Frise-

se, nesse sentido, o sistema recursal dos Juizados Especiais Federais e dos Juizados

Especiais da Fazenda Pública, cujas leis respectivas (Lei n. 10.259/2001 e

12.153/2009) previram a possibilidade da interposição do incidente de uniformização de

interpretação de lei, a ser utilizado se houver divergência entre turmas de regiões

diferentes, bem como se houver flagrante divergência para com súmula do Superior

Tribunal de Justiça.

1.2 Jurisprudência defensiva

Uma Corte Suprema, que tem por missão definir o sentido adequado extraído

da lei, deve-se ocupar da correção dos pronunciamentos judiciais que aplicam a lei de

forma errônea. Devem se preocupar, então, com a unidade do Direito.

Esta unidade do Direito decorrerá do debate interno da Corte sobre a questão

jurídica, compartilhando a maioria do Tribunal acerca do fundamento para a sua

resolução.

E, ao compartilhar sobre este fundamento, objeto de debate e participação

social, a Corte forma a ratio decidendi e, consequentemente, o precedente, que levará

em consideração também o quadro fático existente. Não é possível dissociar estes fatos

relevantes e a regra jurídica decorrente do debate interno da Corte. Estes dois

componentes do precedente estão vinculados, de modo que, para que a regra seja

aplicada em outra situação, há de existir coerência fática.

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Como é possível notar, deve o Tribunal ter consciência de que a regra jurídica

estabelecida será aplicada a situações “racionalmente iguais”,167 ou ser

“universalizável”,168 de modo a proporcionar a segurança jurídica e a igualdade.

Por esse motivo, não poderiam as Cortes, por razões muitas vezes nem ao

menos indicadas nas leis, negar conhecimento aos recursos. Trata-se de uma

constatação aparentemente incoerente, pois, ao mesmo tempo em que se prega a

observância do precedente, nega-se que a própria Corte possa estabelecer regras não

inseridas na lei para que os recursos sejam conhecidos. Essa aparente incoerência

existe unicamente pelo descumprimento do próprio papel garantidor de unidade do

Direito atribuído às Cortes.

A esse conjunto reiterado de decisões, que têm em comum o fato de negar a

admissibilidade de recursos com fundamento na inobservância de formalidades que

não encontram conformidade na lei processual, atribuiu-se o nome de jurisprudência

defensiva,169 cuja força foi reduzida pelas Normas Fundamentais do Novo Código de

Processo Civil.

Como é de conhecimento, a regularidade formal é um dos requisitos de

admissibilidade dos recursos, devendo ser compreendido como o ato de recorrer no

contexto de necessidade organizatória do processo, que segue uma sequência

167 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 291. 168 Conforme estudo realizado por Maira Portes, “do ponto de vista da teoria do discurso jurídico, observar o precedente judicial tem por fundamento o princípio da universalidade, regra do discurso prático geral”. Nesse sentido, já havia ela apontado que “não basta, no entanto, que determinada regra seja boa. É necessário que ela seja também devida. O princípio da universalidade, como critério lógico de valoração, deve ser conjugado com o princípio da prescritividade, pelo qual se deve considerar não só a correção das proposições, mas também as consequências de sua aplicação, de maneira a contemplar o maior conjunto possível de interesses. Implica dizer que a pessoa que julga deve estar disposta a sofrer as consequências da regra aplicada, e, paralelamente, aplicar essa mesma regra a todos os outros casos posteriores, de maneira que aceitar uma norma significa que esta regra está moralmente justificada”. In: A racionalidade do precedente judicial: uma exigência do Estado Constitucional. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 902. 169 De acordo com Pedro Miranda de Oliveira, o que se denominou de jurisprudência defensiva, em verdade, deveria ser referido como “jurisprudência ofensiva”, pois, “ofende o princípio da legalidade; ofende o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional; ofende o princípio do contraditório; ofende o princípio da boa-fé; ofende o princípio da cooperação. Enfim, ofende o bom senso, a segurança jurídica e o princípio da razoabilidade. É ofensiva ao exercício da cidadania, pois coloca em xeque a relação cliente/advogado. E dessa forma, ofende a cidadania”. OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. In: Revista de Processo, vol. 250. Ano 40. p. 268. São Paulo: RT, dez. 2015.

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lógica.170 O recurso, como forma de provocação do duplo grau de jurisdição, deve

observar requisitos de forma para que o ato em si não esteja comprometido,

possibilitando a devolução da matéria ao órgão jurisdicional ad quem e garantindo-se o

exercício do contraditório efetivo pela parte contrária.171

A cultura da formalidade excessiva, que coloca a forma à frente da justiça, vai

de encontro ao formalismo constitucional, que privilegia o acesso à Justiça, a

observância do devido processo legal e a satisfação dos direitos fundamentais e

garantias processuais.172

Nesse sentido, conforme muito bem destacado por Pedro Miranda de Oliveira,

após manifestar-se no sentido de que, em verdade, tal cultura de formalidade excessiva

tem lógica inversa às aspirações de acesso à Justiça, pois

a primazia do checklist sobre a matéria de fundo, ou seja, a prevalência da forma em detrimento do mérito. Há quem a fundamente apenas pelo número elevado de recursos existentes nos Tribunais. Todavia, nada justifica a primazia do formalismo, consubstanciada na técnica utilizada pelos Tribunais para dificultar o acesso do jurisdicionado, por meio da criação de óbices para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.173

170 Em conformidade com essa necessidade organizatória, cada uma das fases do processo terá um procedimento apropriado, que pode decorrer da lei (sequência legal), ou, mesmo, ser fixado pelo seu presidente (sequência discricionária). OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 109. 171 Gustavo Marinho de Carvalho, ao pontuar sobre o sistema de common law, que “se desenvolve no interior dos tribunais”, destaca a formalidade que era exigida nos Tribunais Reais de Westminster (Tribunal de Apelação, Tribunal de Pleitos Comuns e Tribunal do Banco do Rei), que praticamente inviabilizava o acesso a tais tribunais. Até por conta disso, conclui que a atenção dos ingleses era voltada às questões processuais em detrimento das questões substanciais. Segundo afirma, “remedies procede rigts (as garantias precedentes os direitos), é a expressão que resume o grande interesse dos ingleses pelo processo e pela formalidade”. In.: Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2015, p. 49. A sistemática inglesa da época, portanto, pode ser comparada com a existente nos tribunais brasileiros, que privilegiavam, por meio da jurisprudência defensiva, a inviabilidade de conhecimento de recursos. 172 Pedro Miranda de Oliveira destaca a crise da Justiça decorrente da falta de um perfeito funcionamento da estrutura do Estado, “consubstanciada no descompasso existente entre a atividade judicial que a sociedade deseja e a efetivamente oferecida”. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit., p. 268. 173 OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit., p. 269.

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Não sem motivo, o Novo Código de Processo Civil combateu veementemente a

jurisprudência defensiva, encampando-se um formalismo adequado ao modelo

constitucional do processo.174 Para tanto, conforme destacado doutrinariamente:

Exemplos nefastos como o da “jurisprudência defensiva” no campo recursal, rigor quase “ritual” na análise de requisitos procedimentais, foram amplamente combatidos no Novo CPC, uma vez que tal modo de interpretar o sistema processual promove o impedimento da fruição plena de direitos (muitas vezes, fundamentais) e esvaziam o papel garantístico que o processo deve desempenhar na atualidade. O uso de tais expedientes com o único objetivo de diminuir a carga de processos pode até possuir uma justificativa instrumental, mas não se conforma aos ditames de um modelo constitucional de processo próprio ao Estado Democrático de Direito. Para a diminuição do número de ações (ou de seu peso sobre o bom funcionamento do Judiciário) o Novo CPC quer se valer de procedimentos democráticos e expostos ao contraditório, como o uso de precedentes ou o incidente de resolução de demandas repetitivas.175

Dessa forma, a jurisprudência defensiva não mais se sustenta, notadamente em

razão das Normas Fundamentais encampadas pelo Novo CPC, principalmente a

primazia do julgamento do mérito176 (arts. 4º, 488, 1.013, § 3º, 1.032 e 1.033), do

contraditório efetivo (arts. 9º e 10) e do máximo aproveitamento dos atos processuais

(art. 283), impondo-se ao órgão judicial que determine a correção quando possível

(arts. 932, parágrafo único, 938, §§ 1º e 2º, 1.017, § 3º), tudo em consonância com os

preceitos éticos processuais. Extrai-se de tais normas a defesa do “formalismo

constitucional democrático”, que viabilizará “o uso do procedimento como garantia de

consolidação de princípios processuais constitucionais”.177

Portanto, ao conhecer de recurso interposto e que diga respeito a interesse das

pessoas jurídicas de direito público (e, portanto, de toda a coletividade), a decisão

174 “Uma grande inovação do Novo Código de Processo Civil é a de conceber um novo formalismo que se adeque às diretrizes do processo democrático, de modo a evitar que as formas processuais sejam estruturadas e interpretadas em dissonância com os ditames conteudísticos do modelo constitucional do processo”. THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 18. 175 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 18-19. 176 “No âmbito do sistema recursal o princípio da primazia do julgamento do mérito recursal tem aplicação ainda mais contundente. Está arraigado no espírito do NCPC e tem como fundamento teórico o tripé formado pelos seguintes dispositivos legais: (a) art. 4º, que positivou expressamente o princípio da primazia da decisão de mérito; (b) art. 932, parágrafo único, que obriga o relator a intimar o recorrente para sanar eventual vício antes de o recurso ser inadmitido; (c) art. 1.029, § 3º, que permite aos Tribunais Superiores desconsiderar vício formal não grave de recurso tempestivo ou determinar sua correção”. THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Op. Cit., p. 23. 177 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 23. D

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judicial servirá como paradigma vinculativo para a Administração Pública, sem prejuízo

da necessidade de análise caso a caso da pertinência da interpretação dos agentes

responsáveis, para verificar se há alguma particularidade que autorize que se aplique

as técnicas da superação do precedente ou da distinção.

O desafio que se antevê diante desses apontamentos, notadamente da

necessidade de observância da formalidade exigida para que o ato processual cumpra

com a sua finalidade, regida pelo modelo do formalismo constitucional democrático, é o

de estabelecer balizas adequadas para se fixar quais os vícios formais podem ser

apontados como insanáveis e quais podem permitir a regularização pelo recorrente, a

partir de determinação.

Pois bem. Em conformidade com o que dispõe o art. 932, III, o relator não

conhecerá de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado

especificamente os fundamentos da decisão recorrida. Em continuação, o parágrafo

único determina que, antes de considerar o recurso inadmissível, deverá o relator

conceder prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou

complementada a documentação exigível.

Sobre o parágrafo único do art. 932, já se escreveu doutrinariamente

O parágrafo único contém regra que permeia todo o NCPC, no sentido de que deve haver o amplo aproveitamento da atividade processual, com ampla sanabilidade de vícios. Segundo essa regra, ao considerar a hipótese de inadmitir o recurso (inciso III), deve o relator conceder ao recorrente prazo de cinco dias para que complemente documentação faltante ou promova a sanação do vício.178

Como se vê da lição apresentada, entendeu-se pela ampla sanabilidade dos

vícios, em quaisquer das situações previstas no inciso III do art. 932, o que merece

muita reflexão. A propósito, Nery e Nery entendem que o recorrente tem o “direito

subjetivo de ser intimado pelo relator para sanar a irregularidade, se sanável for”,

ressalva essa válida, porém, estendem a sanabilidade até à falta de impugnação

especificada.179

178 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 1.328. 179 “Existindo irregularidade no processo, capaz de ocasionar juízo negativo de admissibilidade do recurso, o recorrente tem o direito subjetivo de ser intimado pelo relator para sanar a irregularidade, se sanável for. Trata-se de providência salutar, em homenagem ao princípio da instrumentalidade das

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Tal dispositivo encampa uma obrigação e uma proibição, pois o relator tem a

obrigatoriedade de intimar o recorrente para corrigir a falha, bem como está proibido de

não admitir o recurso quando for possível a correção do vício.180

E a intimação não pode ser genérica, pois, como consequência do contraditório

substancial, tem-se o dever de informação por parte dos Tribunais, de modo que o vício

deverá ser indicado de forma expressa, propiciando a sua correção pelo recorrente.

Para uma análise mais detalhada do problema, parte-se do seguinte exemplo: o

autor, ao interpor o seu recurso diante da improcedência do pedido, manifestada em

sentença, deixa de fazer acompanhar as suas razões recursais, apresentando

unicamente a petição de interposição do recurso. Nesse caso, se está diante de um

recurso que não pode ser admitido, pois não fixado o objeto recursal e nem

apresentadas as razões do inconformismo.

Ora, ao interpor recurso desprovido de suas razões, permitir a regularização

posterior vai na contramão da preclusão consumativa, pois, uma vez praticado o ato

processual, não se pode permitir posterior complementação do próprio objeto recursal.

Este foi delimitado no ato de interposição do recurso, ou, pelo menos, deveria tê-lo sido.

Por esse motivo, data venia, não é qualquer vício que admite a sanabilidade

posterior. São sanáveis aqueles que não são graves, pois não comprometem a

essência do ato processual, que é a de fixar o objeto recursal e apresentar os

argumentos que podem importar na modificação do pronunciamento jurisdicional.

Podem ser acrescentados dois argumentos favoráveis a tal entendimento.

Pelo primeiro, o inciso III do art. 932 do NCPC refere-se a duas situações

distintas, quais sejam: recurso inadmissível (compreendendo-se os incisos I e III) e

recurso prejudicado.181

formas e à instrumentalidade do próprio processo. É uma oportunidade válida e justa para, por exemplo, a inclusão de uma peça que deveria fazer parte do instrumento que compõe o agravo do CPC 1015, inadvertidamente esquecida (o que, aliás, é expressamente permitido pelo CPC 1017 § 3º). O dispositivo comentado alcança, inclusive, a hipótese em que o recorrente não impugna especificamente os fundamentos da decisão recorrida (CPC 932 III in fine), porque não faz distinção sobre a causa ou o motivo da irregularidade que pode ser sanada”. NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 1853. 180 OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit., p. 271. 181 O recurso prejudicado é aquele em que não mais persiste interesse recursal em seu julgamento, como, por exemplo, agravo de instrumento em face de pronunciamento jurisdicional alterado pelo próprio juiz, em razão do exercício do juízo de retratação.

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O CPC de 1973 indicava, no caput do art. 557, que o relator poderia negar

seguimento a recurso “manifestamente inadmissível”. Note-se que, pela nova fórmula,

houve supressão da expressão “manifestamente”.

Deve ser analisado o que seria o recurso manifestamente inadmissível, sendo

já defendidas, como exemplos, as situações em que o recurso foi deficientemente

instruído,182 interposto fora do prazo legal ou em que era incabível e, também, recurso

extraordinário quando o Supremo Tribunal Federal já entendeu não existir repercussão

geral.183

Note-se que os exemplos trazidos pela doutrina perpassam vários graus da

“manifesta inadmissibilidade”, passando pela intempestividade, falta de cabimento e

instrução deficitária. Não podem todos ser tratados como pertencentes a um mesmo

grau.

Essa mesma conclusão pode ser transportada para o Novo CPC, com a

ressalva da necessidade de observância da formalidade constitucional democrática.

Assim, haveria vários graus de inadmissibilidade dos recursos, sendo que alguns deles

comportam correção, enquanto outros não. A ausência de impugnação específica dos

fundamentos da decisão recorrida pode ser incluída como de inadmissibilidade do

recurso, pois não observado o princípio da dialeticidade recursal184 e, salvo melhor

juízo, não poderia ser sanada.

A intempestividade, conforme já se sustentou, é vício que não pode ser sanado;

a falta de instrumento de procuração, de outro lado, pode ser facilmente corrigida; a

182 Sobre a questão da formação do agravo de instrumento, vista sob a égide do CPC de 1973 e da jurisprudência defensiva, já se anotou que: “Talvez a formação do instrumento do agravo seja uma das atividades mais tormentosas no exercício da advocacia, pois prevalece no âmbito dos Tribunais o entendimento de que é dever do agravante instruir (e conferir) a petição de agravo com as peças obrigatórias e essenciais ao deslinde da controvérsia. Segundo a jurisprudência, a falta ou incompletude de qualquer dessas peças acarreta o não conhecimento do recurso”. OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit., p. 278. 183 NEGRÃO, Theotonio. GOUVÊA, José Roberto F. BONDIOLI, Luis Guilherme A. Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor. 43ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 746. 184 “Na verdade, o que se pretende com esse dispositivo é desestimular as partes a redigir recursos que não sejam umbilicalmente ligados à decisão impugnada. Não é incomum que a apelação seja uma repetição da inicial ou da contestação: isto é indesejável. O recurso tem que impugnar especificamente os fundamentos da decisão recorrida, embora possa, é claro, repisar alguns argumentos de fato ou de direito constantes das peças iniciais. Ademais, recursos que não atacam especificamente os fundamentos da decisão impugnada geram uma quase impossibilidade de exercício pleno à defesa, porque dificultam sobremaneira a resposta: de duas uma, ou a parte responde ao recurso, ou sustenta que deve prevalecer a decisão impugnada”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Op. Cit., p. 1.327.

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ausência de razões recursais não pode ser sanada. Como se vê, são apenas exemplos

que demonstram que não se pode tratar a inadmissibilidade dentro de um mesmo

padrão.

Trazendo os vícios de forma para o contexto da inadmissibilidade dos recursos,

tem-se que são graves aqueles que comprometem a essência do ato processual, a sua

própria finalidade, e proporcionar que sejam regularizados poderá importar em situação

de inobservância do próprio princípio de paridade de armas.185

Com efeito, ao permitir que o recorrente apresente posteriormente as razões de

seu inconformismo em razão de não tê-lo feito anteriormente importará em lhe atribuir

situação vantajosa em relação à parte contrária. Além disso, será contrário à própria

boa-fé processual, na medida em que permite a repetição de ato processual

anteriormente praticado.

Deve ser atentado, ainda, ao fato de que a sanabilidade diz respeito

simplesmente ao aperfeiçoamento do ato processual, para que ele possa ser

aproveitado ao máximo, e não a repetição de ato mal praticado.

Por isso, será permitida a regularização posterior de recurso de agravo de

instrumento, quando, embora apresentadas as razões recursais, omitiu-se de se juntar

cópia da procuração. O ato em si está apto à sua finalidade, mas deve ser

aperfeiçoado.

E o segundo argumento é o de que o § 3º do art. 1.029 dispõe que o Supremo

Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça poderão desconsiderar vício formal de

recurso tempestivo ou determinar a sua correção, desde que não o repute grave.

Como se nota, o dispositivo faz a diferenciação entre vícios formais graves e

vícios formais não graves. Em relação a estes, poderão os Tribunais Superiores

determinar a sua correção, ou até mesmo desconsiderá-los. De outro lado, isso não

poderá ser feito em relação aos vícios graves.

Mais uma vez se valendo da lição de Nery e Nery, tem-se que:

185 Diverge, a respeito, Pedro Miranda de Oliveira. Para o aludido processualista, “parece-nos que a regra está adstrita aos requisitos extrínsecos de admissibilidade, quais sejam, tempestividade, preparo e, sobretudo, regularidade formal. Em relação à gravidade, trata-se de conceito vago, cujo preenchimento dependerá da posição mais ou menos formalista dos Tribunais Superiores”. OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit., p. 280.

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O CPC, mais uma vez, apresenta norma que pretende ser mais flexível com erros formais dos recursos, de modo a não privar o acesso do cidadão à justiça (tal qual se viu no CPC 932 par. ún. e no CPC 1017 § 3º). Neste caso, o Código vai um pouco mais além e admite mesmo a desconsideração do defeito, se o Tribunal julgar que tal defeito não acarreta qualquer empecilho ao julgamento. Vale lembrar, todavia, as observações feitas em nossos comentários ao CPC 1017 § 3º: a norma privilegia os recursos que tenham defeitos de pequeníssima monta. A falta dos requisitos essenciais do RE e do REsp, tais como os constantes dos incisos deste CPC 1029, não pode admitir o “perdão” do Tribunal. Admitir-se o contrário abriria portas largas a todo o tipo de abuso que acabaria por travar a máquina judiciária, colocando por terra todos os esforços deste Código em favor da celeridade processual e da duração razoável do processo.186

Nessa passagem de sua doutrina, a dupla de processualistas já indica que não

é qualquer vício que pode ser sanado, mas unicamente aqueles de pequena monta,

lição essa que deve ser aplicada a todo sistema recursal e não unicamente aos

recursos extraordinário e especial.

Portanto, em arremate, tem-se que a regularidade formal deve ser vista de

outra forma, de outro viés, sob a luz da formalidade constitucional democrática, do

máximo aproveitamento dos atos processuais e da preferência pelo julgamento do

mérito, de modo a permitir que os vícios não graves, “de pequena monta”, possam ser

desconsiderados ou sanados oportunamente. A regularização dos vícios graves

importará no aperfeiçoamento do ato processual e não na reiteração de sua prática.

Vários são os exemplos de vícios recursais não graves, e que comportam

regularização: falta de juntada de instrumento de procuração; falta de comprovação do

recolhimento do preparo recursal, conforme adiante se verá; falta de assinatura do

recurso; vício decorrente da transmissão eletrônica do recurso; falta de visibilidade de

data para comprovação da tempestividade; entre outros.

De outro lado, podem ser apontados como exemplos de vícios formais graves:

falta de apresentação das razões recursais; não indicação dos motivos da impugnação

da decisão judicial; não indicação da existência de repercussão geral; não indicação do

prequestionamento; entre outros.

Deve ser ressalvado o entendimento de Pedro Miranda de Oliveira, para quem

a repercussão geral pode ser indicada como preliminar ou capítulo final do recurso, não

186 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit., p. 2.159

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importando a forma como foi feita,187 entendimento esse também defendido pelo Fórum

Permanente de Processualistas Civis (conforme se vê do Enunciado n. 224, segundo o

qual “a existência de repercussão geral terá de ser demonstrada de forma

fundamentada, sendo dispensável sua alegação em preliminar ou em tópico

específico”). O mesmo autor defende, ainda, que a falta de juntada do acórdão

paradigma deve ser considerado vício formal não grave, a permitir futura

regularização.188

Como é possível verificar, o NCPC adotou proposta no sentido de enterrar a

velha jurisprudência defensiva, que consiste na negação de um direito, o que, contudo,

não retira a responsabilidade da parte recorrente de bem elaborar o seu recurso,

apresentado, em suas razões, eventual jurisprudência existente sobre o tema, ou

mesmo de precedentes, a fim de que possa exigir a manifestação do órgão ad quem a

respeito. A ideia é a de que a admissibilidade dos recursos ocorra unicamente em vista

dos requisitos legais existentes, sendo qualquer inovação extralegal nesse sentido uma

afronta ao princípio de acesso à justiça.

1.3 Jurisprudência e jurisprudência vinculante

Rodolfo de Camargo Mancuso, ao analisar o papel da jurisprudência e a sua

relação com as regras contidas no Código de Processo Civil de 1973, vislumbrou que

na razão de sua projeção e de efeitos (“endo e panprocessuais”), a jurisprudência pode

ser vista pela forma alegórica de uma pirâmide, ou “de forma piramidal”,189 podendo ser

compreendida, da base para o topo, da seguinte maneira:190

i) Na base estariam acórdãos isolados, que seriam marcos regulatórios

sobre determinados temas (o autor cita o REsp 737.000/MG, rel. Min.

187 OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit., p. 281. São Paulo: RT, dez. 2015. 188 OLIVEIRA, Pedro Miranda de. Apontamentos sobre o novíssimo sistema recursal. Op. Cit. p. 282. 189 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 128. 190 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 135.

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Paulo de Tarso Sanseverino, em que se reconheceu a desconsideração

da personalidade jurídica);

ii) Acórdãos em decisões-quadro, como aqueles tirados de recursos

extraordinário e especiais repetitivos, bem como decisões plenárias do

STF, acórdãos em Questões de Ordem ou em Assunção de

Competência;

iii) Acórdãos reiterados em proferidos em uma linha de tempo considerável e

que digam respeito a uma questão específica;

iv) Sendo aplicada de maneira constante, tem-se a formação da

jurisprudência dominante, com efeitos processuais, cabendo a distinção

entre esta (com predomínio da orientação apesar de existir outra em

sentido contrário) da jurisprudência pacífica, que não tem oposição

nenhuma;

v) As súmulas vinculantes do STF, que impõem o seu cumprimento; e,

vi) Considerando a redação do art. 521 do PL da Câmara 8.046/2010, inseriu

o autor mais um patamar, que comporia o topo da pirâmide, que seriam

os acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência,

incidente de resolução de demanda repetitiva e em julgamento de

recursos extraordinário e especial repetitivos.191

As observações de Mancuso possuem grande importância, até mesmo se

forem levadas em considerações as concepções adotadas neste trabalho, de que o

precedente pode inaugurar a jurisprudência, como pode colocar fim a ela ou ratificá-la

definitivamente, notadamente em relação à segurança jurídica e tutela da confiança.

Ora, se há uma jurisprudência pacífica, o sistema judiciário admitiu que há uma

solução adequada para a questão, de modo que, havendo formação de precedente em

sentido contrário (ou mesmo de mudança jurisprudencial), deve a parte prejudicada ter

tutelada a sua confiança na estabilidade do entendimento, procurando-se modular os

seus efeitos, atribuindo-lhe, de preferência, efeitos prospectivos.

191 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, Op. Cit., p. 143.

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Diferentemente, tratando-se de jurisprudência dominante, a parte já tinha

conhecimento da instabilidade do entendimento judicial, de modo que deve ser

analisado o grau de instabilidade e de desavença no entendimento.

A propósito, a instabilidade da jurisprudência conduz a um perigoso círculo

vicioso. Nesse sentido, ressaltou William Santos Ferreira que a jurisprudência, como

fonte do direito, serve

como meio informativo, pois, quando as decisões sobre um mesmo tema são divergentes, na maioria das vezes não realizará seu papel preponderante, servindo muito mais para ampliar a insegurança e estimular a discussão.192

Note-se que o autor constatou a existência de uma inter-relação entre esses

três elementos, concluindo que a insegurança conduz à discussão, que por sua vez

leva à divergência e que caminha para a insegurança.193 Tal como um conjunto de

blocos que formariam um forte, a insegurança gerada pela instabilidade da

jurisprudência coloca tudo abaixo.194

Daniel Mitidiero entende que, em relação à jurisprudência, não se aplica o

prisma de unidade do direito, diferentemente do que ocorre em relação ao

precedente.195

E tal conclusão decorre do fato de ser possível distinguir jurisprudência e

jurisprudência vinculante. Traço comum a elas é o de que podem ser formuladas pelas

Cortes de Justiça – Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.196

A jurisprudência, tal como visto acima, se forma a partir de um conjunto de

julgamentos de casos em um determinado sentido. De outro lado, a jurisprudência

vinculante se forma em razão da forma como o julgamento é realizado. Ou seja, se feito

“mediante incidente de assunção de competência, incidente de resolução de demandas

repetitivas ou incidente de controle de constitucionalidade”.197 Em suma, para Mitidiero,

192 Súmula vinculante – solução concentrada. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, William Santos. Reforma do Judiciário. São Paulo: RT, 2004, p. 803. 193 Súmula vinculante – solução concentrada. Op. Cit., p. 803. 194 Aliás, foi exatamente em nome dessa certeza que os assentos portugueses se instituíram. NEVES, Castanheira A. Op. Cit., p. 39. 195 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 109. 196 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit, p. 109. 197 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 109.

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tem-se a jurisprudência vinculante a partir de três pontos importantes: a) depende de

uma forma específica; b) independe de reiteração de julgamentos; c) é obrigatória.198

Dessa maneira, o precedente seria oriundo exclusivamente das Cortes de

Interpretação – Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça –, ao passo

que a jurisprudência vinculante formar-se-ia a partir da ação dos Tribunais de Justiça e

dos Tribunais Regionais Federais.199

No entanto, adota-se aqui posição diferenciada.

Como foi visto, de fato, no quadro federalista, compete aos Tribunais

Superiores o exercício de Cortes de Precedentes, com a finalidade de “outorgar uma

interpretação retrospectiva e dar unidade ao direito”, enquanto aos Tribunais de Justiça

e aos Tribunais Regionais Federais compete a função de Cortes de Justiça, realizando

o “controle retrospectivo sobre as causas decididas em primeira instância e uniformizar

a jurisprudência”200 e, de certa forma, também dar unidade ao direito local.

Se admitido, assim, que emanam precedentes dos Tribunais Superiores

(decisões de cunho vinculativo, que servem como paradigmas para os casos futuros), é

correlato que isso também ocorrerá no que tange aos Tribunais de Justiça, em atenção

ao princípio da simetria, notadamente quando analisarem a conformidade da decisão à

legislação local (à Constituição Estadual), sempre que não houver correspondência

com a Constituição Federal, ou seja, se importarem na aplicação do direito local.

Dessa maneira, por exemplo, quando o Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 268.858-0, reconhecendo que o

Decreto Estadual n. 29.913/1989 guarda compatibilidade com a Constituição do Estado

de São Paulo e que a Agência Reguladora de Transportes do Estado de São Paulo

detém poder de polícia para coibir e regularizar o transporte irregular de passageiros

intermunicipal, tem-se a formação de importante precedente a ser observado por todos

os juízes vinculados àquele Tribunal, aliás, como reconhecido no julgamento da

Apelação Cível n. 0969572-38.2012.8.26.0506.201

198 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. Op. Cit., p. 110. 199 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. Op. Cit., p. 110. 200 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. Op. Cit., p. 87. 201 Relator(a): Eduardo Gouvêa; Comarca: Ribeirão Preto; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 30/05/2016; Data de registro: 31/05/2016.

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É de se admitir, ainda, que as Cortes de Justiça também devem ter a

preocupação com a unidade do Direito, transportando para o âmbito interno os

precedentes fixados pelos Tribunais Superiores, bem como procurando unificar

eventual divergência interna quanto ao seu sentido.

Para tanto, poderão analisar, por exemplo, o incidente de resolução de

demandas repetitivas, “vocacionado a resolver ações que envolvam direitos individuais

homogêneos, bem como questões de direito de natureza processual, que sejam

também idênticas”,202 pressupondo a existência de processo pendente no Tribunal.203

Em conformidade com o art. 976 do CPC, será cabível o incidente quando,

simultaneamente, houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia

sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à

segurança jurídica.

Ao julgar o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos

individuais ou coletivos que versarem sobre a questão de direito e que tramitarem na

área de jurisdição do respectivo Estado ou região, bem como aos casos futuros,

admitida a distinção e a superação da tese.

Ora, não é possível que o Tribunal analise o incidente sem fixar os principais

contornos fáticos que lhe dão sustentação. A tese somente se sustenta em

determinados fatos, tidos como relevantes para o julgamento da questão, devendo o

juiz levá-los em consideração quando da análise de casos futuros, para verificar a

existência de coerência fática.

Por isso, tendo-se em vista a finalidade do instituto, qual seja, a de garantir a

unidade do Direito, atribuindo-se força vinculante à ratio decidendi, cuja aplicabilidade

dependerá da interpretação do julgador nos casos futuros e verificação da

compatibilidade dos casos, admite-se que o incidente de resolução de demandas

repetitivas, julgado por um Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, também

forma um precedente.

202 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Op. Cit., p. 1397. Vide também o Enunciado n. 327 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Os precedentes vinculantes podem ter por objeto questão de direito material ou processual”. 203 Enunciado n. 344 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A instauração do incidente pressupõe a existência de processo pendente no respectivo tribunal”.

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Por isso, diferentemente do modelo proposto por Mitidiero, será admitida a

formação de precedentes no âmbito das Cortes de Justiça.

1.4 Exemplo / Decisão

Não sendo a decisão dotada da eficácia vinculante, não se tem propriamente

um precedente, que atua de “forma persuasiva ou obrigatória em virtude da autoridade

que está em sua base, a qual, na verdade, é indispensável à sua configuração”.204

Assim, um pronunciamento pode se consubstanciar em exemplo, que, embora

não seja vinculante, pode ser persuasivo. Nesse sentido, “todo precedente é, portanto,

uma decisão judicial, mas nem toda decisão pode ser qualificada como sendo um

precedente”.205

Seguindo-se essa linha de raciocínio, Zaneti Júnior explica que precedente e

decisão judicial não se confundem e, para tanto, aponta como razões diferenciadoras o

fato de que somente se constituirá em precedente a decisão que aplicar lei objeto de

controvérsia e, ainda, que não cite uma decisão anterior, produzindo efeitos normativos

para casos futuros.206

Além desse, podem ser citados outros pronunciamentos que podem ser

apresentados como exemplos, que podem até constituir fonte de citação, mas não tem

força vinculante em relação à aplicação aos casos futuros.

A título de exemplo, tem-se o pronunciamento proferido no processo n.

0000241-40.2012.8.26.0426, em trâmite perante a Vara Judicial da Comarca de

Patrocínio Paulista,SP, e que foi objeto de análise e divulgação pela comunidade

jurídica, em que o magistrado proferiu decisão interlocutória encampando o

204 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 105. 205 REDONDO, Bruno Garcia. Precedente Judicial no Direito Processual Civil Brasileiro. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 172. 206 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. Cit., p. 309.

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saneamento compartilhado, por conta da complexidade da matéria em debate, pelo

objeto do conflito e do valor da reconvenção.207

Ressalte-se, também, o conjunto de decisões proferidas pelo Juiz Sérgio

Fernando Moro, competente para o processamento e julgamento das ações em trâmite

perante a 13ª. Vara Federal de Curitiba, relativas ao conhecido caso de corrupção

envolvendo a Petrobrás (Operação “Lavajato”), com o reconhecimento da necessidade

de prisão cautelar dos investigados em decorrência do risco à ordem pública, como

ocorreu, por exemplo, no Pedido de Busca e Apreensão Criminal n. 5022192-

77.2016.4.04.7000/PR,208 as quais, polêmicas à parte, servem como exemplos ao

menos reflexivo para os juízes na análise de casos futuros.

Os argumentos mencionados pelos juízes no julgamento das decisões exemplo

constituem-se em uma das fontes de argumentação quando da análise da cadeia de

recursos que podem seguir sequencialmente, constituindo-se a sua própria base,

auxiliando-se na possível formação de precedente.

Desse modo, diante de uma sentença bem fundamentada, em que as

ponderações fáticas e jurídicas foram feitas adequadamente, o Tribunal pode mantê-la,

reforçando-se os argumentos utilizados, mas, por força do princípio da fundamentação

analítica, afastando cada um dos contra-argumentos apresentados pelo recorrente.

Mantem-se a base, somando-se outros pontos. Posteriormente, ao julgar o recurso

especial repetitivo, sendo aquele caso um dos afetados, tem-se que o Superior Tribunal

de Justiça pode encampar a argumentação contida nos julgamentos, delimitando a ratio

decidendi diante de uma conjuntura fática.

Como se vê, a sentença, antes exemplo, teve seus argumentos encampados no

precedente e o conjunto fático nela mencionado pode auxiliar no julgamento dos casos

futuros, tendo, por isso, importância considerável.

207 Magistrado Fernando da Fonseca Gajardoni. Cidade/Vara: PATROCÍNIO PAULISTA / Cível. 1ª Vara. VARA ÚNICA. Data de Disponibilização: 12/09/2013. Ressalte-se que o magistrado, em sua decisão, valorizou o papel da doutrina, ao mencionar o trabalho de Paulo Hoffman, que publicou a obra Saneamento compartilhado (São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 94). 208 http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2016/05/3-DESPADEC1.pdf. Acesso em: 20.05.2016.

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1.5 Súmula

A introdução da própria concepção de súmula no Brasil já foi um pontapé inicial

no sentido de aproximação de nosso sistema ao do common law.209

As súmulas têm papel importante na evolução da jurisprudência brasileira,

tendo, como ponto de partida, o ano de 1963, com a criação da súmula de

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, prevista em emenda regimental e

encampada no Código de Processo Civil de 1973 (art. 476 e seguintes).210 Consistem

na condensação das teses de direito que se sagraram vitoriosas na jurisprudência de

um dado Tribunal, aprovadas por meio de procedimento específico.

Foram introduzidas no Brasil com a finalidade de facilitar o trabalho do Tribunal,

sem preocupação com a coerência da ordem jurídica ou mesmo de buscar a segurança

jurídica.211

Importante verificar, no entanto, que as súmulas geralmente são editadas após

a formação de um precedente. Estão ligadas diretamente a ele.

Portanto, enquanto a súmula se apresenta como uma condensação da tese

jurídica, sem demonstração dos elementos fáticos e desenvolvimento da argumentação

que conduzisse a uma determinada concepção, tem-se que ela não se constitui

propriamente em um precedente. Este consistirá, na verdade, no pronunciamento

jurisdicional emitido no caso concreto, cuja regra jurídica pode ser aplicada aos casos

futuros, desde que haja coerência fática entre eles.

Por isso, conforme indica Marinoni, as súmulas não se constituem em

precedentes, mas em “mero guia de interpretação”, desprovidas de qualquer

compromisso com a unidade do direito.212

Mitidiero trata do tema com uma leve diferença. Para o autor, “precedentes e

súmulas estão em níveis distintos”, e isso, porque estas se constituem em “enunciados

que visam a retratar precedentes, alocando-se em um nível acima do nível do

209 Súmula vinculante – solução concentrada. Op. Cit., p. 804. 210 MADEIRA, Daniela Pereira. O novo enfoque dado à jurisprudência e a sociedade moderna. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014., p. 327. 211 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 309. 212 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 310.

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precedente”.213 Por isso, continua o autor, o legislador deveria ter se referido

diferentemente no inciso respectivo do art. 927, pois os precedentes podem estar ou

não enunciados em súmulas, vinculantes ou não.214

Em conformidade com o previsto no art. 103-A, § 1º, da CF/1988, será possível

ao Supremo Tribunal Federal editar súmulas vinculantes com o objetivo de proporcionar

a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja

controvérsia entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública que

possa ocasionar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos

sobre questão idêntica.

Há duas preocupações com as súmulas vinculantes que, de tão legítimas,

podem ser estendidas a todo o sistema de precedentes que se propõe existir

atualmente: “a eternização das posições sumuladas, mas também a eternização da

divergência!”.

De fato, conforme ensina William Santos Ferreira, a divergência ao mesmo

tempo que é fonte que eleva novos debates, também é “necrosante da função precípua

do Poder Judiciário que é a solução do conflito de interesses e não o estímulo à sua

ocorrência, provocado pela insegurança jurídica”.215

Como se nota, trata-se de uma preocupação legítima, que o autor já

apresentava no ano de 2004, mas que hoje se apresenta como extremamente atual, na

medida em que a proposta do precedente vinculante também deve cuidar da segurança

jurídica, da estabilidade, mas não pode se descuidar da necessária continuidade

evolutiva do Direito.

Não há propriamente uma diferenciação, em sua substância, entre as súmulas

vinculantes e as demais súmulas. A real diferença entre elas consiste na

admissibilidade, na súmula vinculante, da reclamação216 contra os atos da

Administração Pública e das decisões judiciais (art. 103-A, § 3º, da CF/88), bem como

213 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Op. Cit., p. 109. 214 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p.109. 215 Súmula vinculante – solução concentrada. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, William Santos. Reforma do Judiciário. São Paulo: RT, 2004, p. 806. 216 O fato de ser cabível ou não a reclamação no caso concreto não é fator para atribuir a autoridade de precedente a determinada decisão judicial, conforme lembra Ravi Peixoto. SANTANA, Alexandre Ávalo. NETO, José de Andrade (coord.). Novo CPC – análise doutrinária sobre o novo direito processual brasileiro. Campo Grande: Contemplar, 2016, p. 313.

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80

nos legitimados para o requerimento de revogação ou modificação da súmula,

conforme será visto no último capítulo.

1.6 Precedente

O precedente consiste em uma decisão que tem o potencial de servir como

paradigma de orientação quando do julgamento de casos futuros, vinculando o seu

julgador.217 Diante da importância para o presente estudo, será analisado com mais

profundidade no próximo item.

É importante registrar, tal como o fez Mitidiero, a necessidade de se repensar

os conceitos de jurisprudência, lei, súmulas e precedentes e de trabalhar de forma

crítica o conceito destes últimos, como decorrência da dupla indeterminação do direito.

E conclui:

Essa é a efetiva razão pela qual a interpretação judicial do direito deve importar como direito vigente e cujas razões devem ser tomadas como normas dotadas de vinculatividade para toda a sociedade civil e para todas as instâncias do

Estado Constitucional.218

Como antes foi explicado, a expressão precedente será compreendida em um

sentido mais amplo, a compreender os casos indicados no art. 927 do Código de

Processo Civil, além de outros que possam servir para estabelecer padrões decisórios e

que lá não estejam constantes.

Assim, as Súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de

Justiça se constituem na condensação da ratio decidendi, o que não afasta a

217 Com o advento do Novo Código de Processo Civil, em nosso sentir, não se pode mais aceitar classificar os precedentes em persuasivos e vinculantes. Os primeiros seriam “aqueles que não precisam ser seguidos pelo julgador seguinte. Nesse caso, não há obrigação de decidir da forma como fora decidido anteriormente, ou seja, o julgamento pode dissentir de uma decisão anterior sem constituir erro”. De outro lado, os precedentes vinculantes correspondem àqueles em que se gera “o dever de observância da norma neles contida para os julgadores subsequentes”. MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 101-102. E isso porque, tal diferenciação, destoa do próprio sentido da adoção do sistema de precedentes, que passaram a vincular os juízes e os Tribunais e, como aqui se defende, até a própria Administração Pública. Ao admitir-se o precedente persuasivo, nega-se toda a mudança paradigmática, reforçando-se o modelo anterior de total desrespeito à jurisprudência. Isso não quer dizer, contudo, também em nosso sentir, que o magistrado, no caso concreto, a partir da devida fundamentação jurídica, não possa demonstrar que é o caso de superação do precedente. 218 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Op. Cit., p. 77.

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necessidade de análise dos casos que lhe deram origem. Assim, para efeitos práticos,

serão consideradas precedentes, não obstante exista a necessidade de aprofundar-se

em questões fáticas.

2. Precedente

2.1 Conceito

O precedente consiste em uma decisão, seja ela administrativa (conforme

adiante se verá) ou judicial, que tem o potencial de servir como paradigma de

orientação quando do julgamento de casos futuros, vinculando o seu julgador. 219

Em sentido lato, é uma decisão, “cujo elemento normativo pode servir como

diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”.220 Em sentido estrito,

correspondente à própria ratio decidendi, ou seja, tese jurídica encampada e vinculante.

Daniel Mitidiero indica que o conceito de precedente221 é um conceito

qualitativo, material e funcional.

É qualitativo porque somente as “razões jurídicas, necessárias e suficientes

podem ser qualificadas como precedentes” (donde se exclui as obiter dicta).222 Também

é um conceito material, pois “depende de caso devidamente delineado, particularizado

219 O próprio significado do precedente no direito inglês foi alterado no transcorrer de todo o seu processo histórico. Daniel Mitidiero sintetiza toda a mudança em três expressões: “ilustração, persuasão e vinculação”. Inicialmente, eram utilizados como uma simples ilustração do caso, sem que houvesse qualquer vinculação. Mais tarde, os precedentes passaram a incorporar uma finalidade de influência nas decisões judiciais. Tem-se a sua função persuasiva, concebida como a clássica teoria do precedente no direito inglês. E o caso London Tramways Co. v. London County Council (1898) foi importante para marcar a mudança para a fase vinculante. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 27. 220 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 10ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 441. 221 “Precedentes são razões necessárias e suficientes para solução de uma questão devidamente precisada do ponto de vista fático-jurídico obtidas por forças de generalizações empreendidas a partir do julgamento de casos pela unanimidade ou pela maioria de um colegiado integrante de uma Corte Suprema”. MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 104. 222 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 105.

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e analisado em seus aspectos fático-jurídicos”.223 E, por fim, é um conceito funcional,

pois é dependente da “função do órgão jurisdicional do qual promanam”.224

Portanto, por este último prisma, somente podem formar precedentes as

decisões judiciais emanadas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de

Justiça, como Cortes de Interpretação225, que podem garantir a unidade do Direito, a

partir da unificação da interpretação da Constituição Federal e da lei federal.226

Diferencia-se, tal como foi feito acima, o precedente da jurisprudência vinculante.

É possível que a decisão, que se constitua em precedente, seja uma das

primeiras (ou até mesmo a primeira) a enfrentar o tema, sem que o próprio Tribunal já

tenha debatido a questão,227 ou então seja o pronunciamento que encerre a discussão

que já se arraste há anos, adotando-se até posicionamento diverso daquele que antes

prevalecia.

Em outros termos, o precedente pode ser “a primeira decisão que elabora a

tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina”.228

Nesse sentido, é oportuno registrar que um único precedente tem força suficiente para

alterar jurisprudência consolidada, o que foi denominado por Michele Taruffo como

defeasibly binding.229

2.2 A força do precedente

223 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. Op. Cit., p. 106. 224 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. Op. Cit., p. 106. 225 Rodolfo de Camargo Mancuso destaca que, principalmente os Tribunais Superiores, desempenham “tríplice missão em face da norma legal”, quais sejam, a nomofilácica, zelando pela inteireza positiva, a dikelógica e a paradigmática (“a fixação de teses em decisões-quadro, por modo a parametrizar a solução isonômica dos casos ali subsumidos, em curso nos demais órgãos judiciais). Op. Cit., p. 128. 226 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 106. 227 A propósito, na ADI 5464, o Ministro Dias Toffoli concedeu liminar para suspender cláusula de Convênio ICMS 93/2015, do Confaz, que trata da incidência de ICMS em operações de comércio eletrônico. 228 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedente obrigatórios. São Paulo: RT, 2013, p. 213-214. 229 TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Revista Trimestrale de Diritto e Procedura Civile, Milano: Dott. A. Giuffrè, 2007. O contrário, porém, não é verdadeiro. Uma jurisprudência não pode ser composta por um único precedente. Ela pode ser iniciada ou até encerrada por um precedente, mas a sua composição ocorrerá graças a várias decisões, dentro de um sentido plural. Diferentemente, entende Misabel Abreu Machado Derzi que a jurisprudência também se comporia por um único precedente. In.: Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 259.

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Destaca Michele Taruffo que a principal característica do precedente é a sua

força, pela qual é capaz de direcionar a forma de decisão para casos futuros, que é

expressa em sua direção, que pode ser vertical e horizontal.230

Direção do Precedente

Órgãos judiciários mesmo nível

Órgãos judiciários nível inferior

A força do precedente se expressa em direção vertical no sentido de que os

juízes que o aplicarão se encontram em grau inferior na hierarquia judicial.

Particularmente, pode ser compreendida como hipótese a aplicação, pelos juízes de

primeiro grau, do precedente formado em recurso especial repetitivo, ou, ainda, de ação

direta de inconstitucionalidade.

Tal fato, ao contrário do que se poderia imaginar, não importa em menosprezar

a atividade judicial do “juiz de piso” em comparação ao “juiz de Tribunal”, mas deriva da

constatação de que as suas funções são distintas.231

Com efeito, ao juiz de piso compete a solução do conflito específico, estando a

sua atuação circunscrita a ele, conjugando-se a análise, valoração e compreensão dos

fatos, por meio das provas produzidas, com o direito aplicável, enquanto que as Cortes

possuem a missão de desenvolver o direito, em um contexto de assunção da função

pública de definição de seu sentido,232 o que justifica a intensidade da discussão para

que a decisão seja legítima. Aliás, segundo Luiz Guilherme Marinoni,

A abertura à participação e ao debate, que não tem como não influir sobre o procedimento recursal, tem repercussão sobre o comportamento dos julgadores, que se veem obrigados a responder às expectativas geradas pela maior participação e densificação do debate. O Ministro não é mais um expectador, que pode decidir friamente sem reagir às alegações dos seus pares e dos advogados, mas alguém que, num ambiente de permanente

230 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Trad. Arruda Alvim, Teresa Arruda Alvim Wambier e André Luís Monteiro. Revista de Processo, vol. 199, p. 9. São Paulo: RT, set. 2011. 231 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. Cit., p. 315. 232 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 26.

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questionamento e discussão, expõe e testa seus argumentos e colabora para a elaboração da decisão do colegiado.233

Isso também não significa que os juízes de primeiro grau e os Tribunais não

tenham importância significativa na própria formação do precedente. Muito pelo

contrário. Representam os primeiros, como regra, a propiciar o debate da questão e a

própria interpretação do direito. Além disso, lidam com causas de todas as espécies

para a solução de conflitos individuais e coletivos e, diante da importância da causa,

também podem admitir a intervenção do amicus curiae para auxiliá-los.234

Mas, não se pode negar que:

É certo que a decisão que define o sentido do direito e se traduz em precedente tem qualidade diversa da decisão que se limita a regular um caso concreto. A primeira importa enquanto direito e, assim, tem valor para a sociedade e condiciona a resolução dos casos futuros, enquanto que a segunda decisão interessa apenas aos litigantes.235

De outro lado, a força do precedente se releva na direção horizontal por ser de

observância também pelos órgãos judiciários de mesmo nível. Neste ponto, destaca-se

o autoprecedente,236 de origem da mesma corte que vem a decidir os casos seguintes.

Na experiência brasileira, o precedente formado no Superior Tribunal de Justiça,

quando do julgamento de recurso especial repetitivo, vincula os integrantes do próprio

Tribunal.

O respeito aos autoprecedentes é de importância vital para a sobrevivência do

sistema que se consolidou com o Novo Código de Processo Civil, bem como para a sua

233 In: Julgamento nas Cortes Supremas. Precedente e decisão do recurso do Novo CPC. São Paulo: RT, 2015, p. 28. 234 A propósito, o Novo Código de Processo Civil fez previsão expressa da possibilidade de intervenção do amicus curiae, “considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia” (art. 138), sem especificar a natureza da demanda, se individual ou coletiva. 235 MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas. Precedente e decisão do recurso do Novo CPC. São Paulo: RT, 2015, p. 30. 236 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Trad. Arruda Alvim, Teresa Arruda Alvim Wambier e André Luís Monteiro. Revista de Processo, vol. 199, p. 3. São Paulo: RT, set. 2011, p. 9. Teresa Arruda Alvim Wambier, ao tratar da forma para compatibilizar a liberdade para decidir com a necessidade de respeito a precedentes, conclui: “(e) Portanto, uma vez decidida a questão pelas Cortes Superiores (com liberdade) devem os demais órgãos do Judiciário – e, é evidente TAMBÉM AS PRÓPRIAS CORTES SUPERIORES! – respeitar a opção feita naqueles precedentes (sem liberdade)”. In: A Vinculatividade dos Precedentes e o Ativismo Judicial – paradoxo apenas aparente. In: DIDIER JR, Fredie (Coord. Geral). Salvador: Juspodivm, p. 272

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efetiva observância e respeito pela sociedade e, sobretudo, pelas próprias pessoas

jurídicas de direito público.237

Com efeito, as mudanças de orientação dos Tribunais impactam negativamente

de forma considerável na própria Administração Pública, principalmente pelo fato de

que, muitas vezes, a orientação anterior era considerada em contextos orçamentários e

organizacionais.238

Além disso, a oscilação de entendimento pelas Cortes impede a própria

diminuição da litigiosidade, pois, enquanto cambiante, estimulados estarão os

administrados a questionar os atos emanados do poder público, ajuizando as ações e

interpondo os recursos que entenderem pertinentes, notadamente pela impossibilidade

de utilização de instrumentos previstos no Novo Código de Processo Civil e que

possam reduzir a litigância fundada em entendimento destoante do adotado pelo

precedente.

237 No Mandado de Segurança n. 26.603/DF, assim se manifestou o STF: “Os precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal desempenham múltiplas e relevantes funções no sistema jurídico, pois lhes cabe conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais nas matérias por eles abrangidas, atribuir estabilidade às relações jurídicas constituídas sob a sua égide e em decorrência deles, gerar certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados de acordo com esses mesmos precedentes a preservar, assim, em respeito à ética do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações do Estado”. Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 04.10.2007. 238 Sem entrar no mérito da decisão, mas apenas como forma de indicar um exemplo em que uma alteração de entendimento pode impactar significativamente em aspectos organizacionais e orçamentários, apresenta-se a hipótese aventada por Juliano Taveira Bernardes, relativa ao julgamento do RE 388.359/PE, no qual o Pleno do STF alterou radicalmente a sua posição, no sentido de “concluir pela proibição constitucional da exigência legal de depósito pecuniário como requisito de admissibilidade de recursos administrativos (ver Súmula Vinculante 21 e ADPF 156/DF)”. BERNARDES, Juliano Taveira. FERREIRA. “Viradas” de jurisprudência do STF e suas repercussões em casos similares. In. Marcelo Novelino (org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade. 3ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 177-226. A orientação antes existente já guiava a Administração Pública há tempo e vários órgãos administrativos, sobretudo ambientais, exigiam o depósito prévio da multa como condição para conhecimento de recursos administrativos interpostos. Contudo, a partir do novo entendimento, as rotinas tiveram de ser alteradas e o valor a ser recolhido com as multas aplicadas foi consideravelmente diminuído, impactando no orçamento público. Destaca-se, assim, o papel dos Tribunais Superiores brasileiros, que devem dar o exemplo e aplicarem os seus próprios precedentes, aliás, como foi destacado pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 228.432-RS, julgado pela Corte Especial do STJ: “O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se isso ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o Superior Tribunal de Justiça e sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la”.

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No mesmo raciocínio, como, por exemplo, a sanção pela litigância de má-fé

(art. 80, incisos I e VII), a improcedência liminar (art. 332) e o julgamento monocrático

de recurso (art. 932), facilitados pelo acesso à Justiça proporcionado pela gratuidade

processual vigente em primeiro grau nos Juizados Especiais Federais e da Fazenda

Pública, bem como pela falta de controle nos procedimentos comum e especial do

NCPC.

Da mesma maneira, a oscilação do entendimento impede a Administração

Pública de fechar questão sobre determinado tema, pois, enquanto houver chance de

sucesso e de acolhimento da tese, exsurge, como adiante se verá, o dever-poder de

buscar junto ao Poder Judiciário a tutela do direito e, se o caso, recorrer-se às últimas

instâncias.239

Portanto, a falta de observância do autoprecedente é fator que conduzirá a um

enfraquecimento do sistema, bem como à continuidade da interposição de recursos

com a finalidade de se buscar a sorte e conseguir amparo à pretensão. Ou, nas

palavras de Taruffo, “uma corte que, sobre o mesmo assunto, trocasse a cada dia a sua

opinião teria pouca autoridade e violaria qualquer princípio de igualdade dos cidadãos

perante a lei”.240

Não obstante, não há impedimento para que uma Corte mude sua orientação

por variados fatores. Trata-se essa de liberdade intrínseca ao julgador, que deve ser

sensível aos aspectos históricos, sociais, econômicos, humanos e jurídicos de seu

tempo.

Assim, condensando-se as forças vertical e horizontal do precedente, tem-se

que deste se extrai uma regra “universalizável”241, podendo ser aplicado “como um

critério para a decisão no próximo caso concreto em função da identidade ou – como

ocorre normalmente – da analogia entre os fatos do primeiro caso e os do segundo

caso”,242 tanto pelos juízes de graus inferiores, como pelo próprio Tribunal.

239 Como ocorreu com a Orientação Normativa n. 01/2015, firmada pelo Procurador Geral do Estado de São Paulo, que dispensou a interposição de recursos contra decisões que garantiam isenção de IPVA a deficiente físico e/ou mental, não condutor, desde que a condição estivesse devidamente comprovada nos autos, entendimento esse que somente pôde ser fixado após a uniformização do entendimento no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 240 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Op. Cit., p. 10. 241 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Op. Cit., p. 4. 242 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Op. Cit., p. 3..

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O Novo Código de Processo Civil adotou o primeiro significado, atribuindo a

autoridade de precedente aos pronunciamentos indicados no art. 927 (embora se

admita que neste há rol exemplificativo), os quais devem ser observados pelos juízes e

Tribunais no julgamento de casos futuros.243

2.3 Ratio Decidendi: relevância prática de sua determinação

Como foi esclarecido acima, o elemento vinculante do precedente não é o

pronunciamento judicial, ou a sua fundamentação, e nem mesmo o dispositivo. Essa

consideração é de suma importância para o entendimento da dinâmica do precedente,

bem como para que se saiba como manuseá-lo.

Reitera-se que a ratio decidendi não se confunde com a fundamentação e o

dispositivo. Ela pode ser encontrada em todos os elementos da decisão – relatório,

fundamentação e dispositivo. É a ratio decidendi que vinculará os juízes e os Tribunais

no julgamento de casos futuros (assim como a própria sociedade e Administração

Pública, conforme se defende), estabelecendo-se a coisa julgada para as partes da

relação processual em que estabelecido o precedente, pois, neste processo, também

houve a solução casuística.

Então, a vinculação futura (a universalidade) é estabelecida pela ratio decidendi

extraída do precedente e não da coisa julgada.

Outro dado é importante: a ratio decidendi pode até ter sido delimitada

expressamente no pronunciamento-precedente, mas a sua aplicação a casos futuros

exigirá o exercício de interpretação pelos juízes dos casos concretos que, em sua

argumentação, demonstrarão que compreenderam o precedente.

Não se pode dizer que há consenso no common law sobre a técnica para se

encontrar a ratio decidendi. A existência de construções doutrinárias baseadas nos

243 Em conformidade com Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Jr., “o Novo Código de Processo Civil tem força para deslocar o centro da questão da jurisprudência dominante, para o precedente; da ementa, para a ratio decidendi, proporcionando, assim, maior seriedade na argumentação e aplicação dos precedentes e, consequentemente, melhores condições para que o direito pátrio seja realizado com maior grau de uniformidade, previsibilidade, estabilidade, isonomia e celeridade”. SANTANA, Alexandre Ávalo. ANDRADE NETO, José de (coord.). Novo CPC: análise doutrinária sobre o novo direito processual brasileiro. Vol. III. Campo Grande: Contemplar, 2016, p. 346.

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famosos testes de Wambaugh e Arthur L. Goodhart já demonstram suficientemente a

dissonância com relação ao tema.

Conforme analisa Marinoni, “para Wambaugh, ratio decidendi é uma parte geral

em cuja ausência seria decidido de outra forma”. E completa:

O jurista descreve o modo como o teste deve ser feito. Antes de tudo há de ser cuidadosamente formulada a suposta proposição de direito. Após deve inserir-se na proposição uma palavra que inverta o seu significado. Então, é necessário perguntar se, caso o tribunal houvesse admitido a nova proposição e a tivesse formado em conta no seu raciocínio, a decisão teria sido a mesma. Sendo a resposta afirmativa, o caso não é um precedente para a proposição; em hipótese negativa, o caso tem autoridade para a proposição original. Wambaugh resume o seu teste dizendo que a proposição ou doutrina do caso, a razão da decisão, a ratio decidendi, deve ser uma regra geral sem a qual o caso deveria ter sido decidido de outra maneira.244

De outro lado, o teste de Goodhart tem a característica (e virtude) de enfatizar

os fatos, propondo que a ratio decidendi seja delimitada a partir da análise dos fatos

tidos como “fundamentais ou materiais pelo juiz”, distintos dos imateriais, ou não

explicitados.245

Feitos esses apontamentos sobre a existência desses dois testes, por conta de

sua relevância para o tema, registre-se que a busca pela ratio decidendi deve levar em

consideração dois pontos principais, quais sejam: a identificação dos fatos relevantes,

sem os quais outra seria a solução do caso, bem como as razões jurídicas que

fundamentam a decisão,246 considerando-se, portanto, as propostas de Wambaugh e

Goodhart, de forma eclética.247

A título ilustrativo, considerando-se a relevância do tema, propõe-se a

demonstrar a ratio decidendi em um caso específico.

No Mandado de Injunção n. 712-8/PA248, de relatoria do Ministro Eros Grau, o

Supremo Tribunal Federal enfrentou delicada questão relativa à mora legislativa no

sentido de regulamentar o direito de greve do servidor público. Na oportunidade, após

amplo debate entre os Ministros, decidiu-se regulamentar aquele direito, até que lei a

244 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit. p. 162. 245 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 163. 246 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 163. 247 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 10ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 450. 248 MI 712, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 25.10.2007, DJe 30.10.2008.

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respeito fosse aprovada. Várias foram as teses jurídicas fixadas, intimamente ligadas

aos aspectos fáticos decorrentes do tempo da mora legislativa, entre outros.

Da leitura do acórdão mencionado e dos votos dos Ministros, podem ser

extraídas várias regras jurídicas, competindo ao intérprete verificar a sua aplicabilidade

no caso concreto. Nesse sentido, fator importante constante dos argumentos do

acórdão é o de que o “direito de greve não pode importar em prejuízo à necessidade de

continuidade do serviço inadiável, pois, todo serviço público é, por natureza, essencial”.

Trata-se, esta, sem dúvida nenhuma, de uma ratio decidendi, embora outras existam no

riquíssimo caso.

Passado um tempo, a questão chegou novamente ao STF, sob a forma de

reclamação, sendo distribuída novamente ao Ministro Eros Grau (Reclamação n.

6.568/SP), que tratava da greve de policiais civis no Estado de São Paulo. À época, o

Ministro ressaltou:

No voto que proferi no julgamento do MI n. 712, de que fui relator, afirmei que “serviços ou atividades essenciais” e “necessidades inadiáveis da coletividade” não se superpõem a “serviços públicos”; e vice-versa. Trata-se aí de atividades próprias do setor privado, de um lado --- ainda que essenciais, voltadas ao atendimento de necessidades inadiáveis da coletividade --- e de atividades próprias do Estado, de outro.

E mais adiante:

O exame do objeto desta reclamação permitirá a esta Corte esclarecer e demarcar adequadamente o sentido mais correto e a amplitude da decisão proferida no julgamento do MI n. 712. O direito de greve está, sim, integrado ao patrimônio jurídico dos servidores púbicos. Dada a índole das atividades que exercem, não é, todavia, absoluto.

Note-se que a construção do Direito teve continuidade em decorrência da

própria tutela do precedente. Primeiramente, o STF reconheceu o direito à greve e,

posteriormente, limitou essa possibilidade, dele excluindo os servidores que estão

vinculados à prática de serviços inadiáveis, como é o da polícia civil.

Nesse sentido, ao analisar o MI e a Reclamação verifica-se a menção, no texto

do acórdão, ao serviço de saúde, de onde se questiona: trata-se também de ratio

decidendi ou de obiter dictum? Essa pergunta não se extrai da ementa e carece de

estudo do caso.

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A obiter dictum é o argumento exposto apenas de passagem, não essencial ao

precedente e, por isso, não é vinculante,249 muito embora não possa ser desprezado de

qualquer maneira, pois “pode sinalizar uma futura orientação do Tribunal”.250 São

conceitos, de uma certa forma, precários, porque o que hoje pode ser ratio decidendi,

amanhã pode ser obiter dictum, e vice-versa.251

No caso em questão, a proibição do exercício de greve para os serviços

inadiáveis relativos ao serviço público de saúde é também uma ratio decidendi, pois fez

parte da argumentação jurídica exposta e foi elemento relevante na tomada da decisão.

Na verdade, o julgador entendeu que, ao esclarecer quais são os serviços inadiáveis,

construiria o Direito de forma adequada, apta a evitar maiores contradições.

Portanto, a vinculação ocorre para com a ratio decidendi (ou binding

precedente, para os ingleses, e holding, para os americanos), que corresponde à

“proposition of law (=proposição de direito), explícita ou implícita, considerada

necessária para a decisão. É o core da decisão”.252

Mas não só ratio decidendi, como também as circunstâncias de fato relevantes.

Tratam-se de elementos indissociáveis. No exemplo oferecido, tem-se que é vedado o

exercício do direito de greve, no âmbito do serviço público, para os serviços inadiáveis,

como é o da área da saúde. De outro lado, porém, isso ocorreria para com os

servidores que prestam trabalho de contínuos no escritório jurídico de uma autarquia

destinada ao atendimento da saúde?

Há, então, uma distinção a ser feita, que apenas se nota em razão dos

aspectos fáticos dos casos precedente e concreto. Daí a importância da análise fática.

Nessa ordem de ideias, o precedente consiste no “resultado da densificação de

normas estabelecidas a partir da compreensão de um caso e suas circunstâncias

249 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. Op. Cit., p. 352. 250 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 445. 251 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit. p. 446. 252 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 42.

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fáticas e jurídicas”,253 sendo a sua identificação e distinção para com a obiter dicta

extremamente importante, principalmente para o funcionamento do stare decisis.254

O Código de Processo Civil de 2015, por sua vez, indica que a ratio decidendi é

verificável a partir dos “fundamentos determinantes”, que devem ser compreendidos

“como os fatos relevantes e a solução de direito estabelecidos pelo caso-

precedente”.255

2.4 O precedente como fonte jurídica formal

Na atualidade, constata-se a existência de polêmica doutrinária sobre o valor

jurídico da jurisprudência e do precedente.256 Enfim, seriam eles fontes do direito?

A resposta a essa questão vem, principalmente, da maneira de como se

enxerga o próprio fundamento do precedente. Se partir de uma visão em que a

premissa teórica não consagra a observância dos precedentes como critério de

validade do Direito, então não será propriamente uma fonte jurídica. Em suma, seria o

precedente um “fenômeno marginal no âmbito da argumentação jurídica, uma mera

fonte de inspiração para decisões futuras pela força persuasiva dos fundamentos

jurídicos da decisão precedente”.257

No entanto, como assinala Bustamante, configura-se ingenuidade imaginar-se

que o precedente não seja seguido pelos juristas em países de civil law. O que ocorre,

na sua visão, é uma forma diferenciada de utilização dos precedentes na argumentação

jurídica.258 Com efeito, diferentemente do sistema do common law, não se realiza uma

253 253 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit. p. 304. 254 MACÊDO, Lucas Buril de. Contributo para a definição de ratio decidendi na teoria brasileira dos precedentes judiciais. In: DIDIER JR, Fredie (coord. geral) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 216. 255 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit.p. 351. 256 TELLA, Maria José Falcón Y. Lições de Teoria Geral do Direito. Tradução da 4ª. ed. Espanhola. São Paulo: RT, 2011, p. 119. 257 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no novo CPC. In: DIDIER JR, Fredie (coord. geral) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 282-283. 258 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no novo CPC. Op. Cit. p. 288.

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análise das especificidades casuísticas, com tendência à abstrativização.259 Então, ao

invés de olhar-se para o caso-precedente, opta-se pela regra geral.

Bem por isso, embora o sistema jurídico brasileiro valha-se dos precedentes há

tempos, equiparando-os a regras gerais, inexiste uma teoria sobre eles, que permita

entender como, de fato, deve-se dar a argumentação jurídica.

Dessa maneira, considerando-se todos os recentes momentos do direito

processual civil, a virada cultural baseada na constitucionalização do direito e na força

normativa da Constituição, bem como o Novo CPC, é necessário que se passe a

entender esse sistema, de forma diferente da que até hoje imperou.

Não adianta tampar o sol com a peneira. O sistema é influenciado por decisões

paradigmas, que são levadas em consideração para todos os fins. Basta analisar os

acórdãos do Tribunais Superiores.

De fato, mesmo antes do Novo Código de Processo Civil, em decorrência das

alterações constitucionais e da legislação, já se havia importado a técnica do

precedente vinculante, tal como constatado por Bustamante. Porém, isso foi feito sem a

adoção de uma técnica própria.260

Por isso, a adoção de um efetivo sistema e a consideração de que o precedente

é, de fato, uma fonte jurídica, somente auxiliará na organização do quadro normativo e

exigirá que, nos casos concretos, haja efetiva análise dos motivos que justificaram a

fixação de uma regra jurídica.261 Impõe-se uma cultura argumentativa de precedentes

baseada na teoria da argumentação jurídica, com vínculo à lei, aos precedentes e à

dogmática.262

Feitas essas observações preliminares, passa-se ao exame das fontes

jurídicas.

O ordenamento jurídico conta com fontes, designadas como fontes jurídicas,

objeto de análise da Teoria Geral do Direito, definidas por Bobbio como “aqueles fatos e

259 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no novo CPC Op. Cit., p. 288. 260 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no novo CPC. Op. Cit., p. 295. 261 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no novo CPC. Op. Cit. 293. 262 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Trad. Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 326.

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aqueles atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas

jurídicas”.263 Correspondem à origem primária do direito, equiparada à sua fonte real ou

material. Também se emprega a expressão para externar a forma de expressão,

utilizando-se de modelos de manifestação, como fontes formais.264

As fontes formais, de acordo com Maria Helena Diniz, são classificadas em

estatais e não estatais. As primeiras subdividem-se em legislativas e jurisprudenciais,

enquanto as não estatais abrangem o direito consuetudinário, a doutrina e as

convenções em geral. As fontes formais, ensina a civilista, não são normas, mas formas

de tradução da norma em palavras, ou “os processos ou meios pelos quais as normas

jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, ou seja, com vigência e

eficácia”.265

Ainda de acordo com Diniz, “a fonte formal é o processo ou a atividade

jurisdicional do Estado no exercício da função de aplicar o direito, que se expressa na

jurisprudência”, sendo esta considerada um costume judiciário que se forma pela

prática dos Tribunais.266

Nesse sentido, defende que a jurisprudência é norma geral, tal como a lei, “mas

dela se distingue pela sua maior flexibilidade e maleabilidade e é obrigatória e válida

não pelo seu caráter geral, mas por sua normatividade”.267 A jurisprudência se imporia,

não para tolher o direito de acesso à Justiça, mas para propiciar o ideal de igualdade e

para a incidência do princípio da celeridade e economia processual.268

Marinoni, por sua vez, destaca que, no momento em que o juiz deixa de ser a

“boca da lei”, tal como engendrado por Montesquieu, e passa a ser “a boca do direito”,

torna-se evidente que do Poder Judiciário também emana produção normativa.269

Nesse ponto, é importante a lição de Teresa Arruda Alvim Wambier que, a um

só tempo, questiona e responde o seguinte: “Então, o juiz cria o Direito? Sim, a

263 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo: Edipro, 2016, p. 55. 264 Maria Helena Diniz prefere a expressão “fonte jurídica” ao invés de fonte do direito, uma vez que esta seria empregada “metaforicamente, pois em sentido próprio fonte é a nascente de onde brota uma corrente de água. Justamente, por ser uma expressão figurativa tem mais de um sentido”. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 301. 265 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. Op. Cit.. 304. 266 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. Op. Cit.p. 316. 267 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. Op. Cit., p. 318. 268 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. Op. Cit. p. 322. 269 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 171.

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resposta é positiva. Mas o juiz não pode criar o direito do nada, da sua própria cabeça,

seguindo convicções e crenças pessoais”. E mais a frente conclui: “o Direito é um tripé:

lei + doutrina + jurisprudência”.270

George Abbud ensina que a “jurisprudência é costumeiramente considerada

fonte do direito ao lado do costume, do estatuto e da erudição”, e destaca a

peculiaridade de que sempre esteve ligada a outras fontes.271

Tércio Ferraz aponta que, no sistema romanístico, a jurisprudência é fonte

“interpretativa da lei”, embora não seja fonte jurídica. Também reconhece que o

precedente, no sistema de common law, é fonte jurídica”.272

Para Aurora Tomazini de Carvalho, a jurisprudência não é responsável pela

criação do Direito, mas “apenas influi na decisão do magistrado na produção da norma

individual e concreta (enunciação). Pode ser entendida, assim, como fonte psicológica

do direito, mas não jurídica”.273

Segundo defende, o Direito é composto por normas que integram um sistema e

que se inter-relacionam em uma estrutura, “mantendo relações de coordenação

(horizontais) e subordinação (verticais) entre si, determinadas por um unificador comum

que atribui característica de sistema ao conjunto”.274 Assim, as normas jurídicas

mantêm relação de subordinação, estando dispostas de forma hierarquizada,

convergindo para um ponto comum: a Constituição, que é “o fundamento último de

validade de todas as normas e todas dela derivam”.275

O ordenamento jurídico pressupõe, continua a autora, assim, a existência de

um conjunto de normas jurídicas e esse conjunto se organiza em um sistema.276

E, filiando-se à doutrina de Paulo de Barros Carvalho, segundo a qual fontes

jurídicas são “os fatos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo

sistema para produzirem normas numa organização escalonada, bem como, a própria

270 A vinculatividade dos precedentes e o ativismo judicial – paradoxo apenas aparente. In: DIDIER JR, Fredie (coord. geral) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 265. 271 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 499. 272 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 7ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 211. 273 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito. O Constructivismo lógico-semântico. 3ª. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 676. 274 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit. p. 637. 275 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Op. Cit.p. 639. 276 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 654.

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atividade desenvolvida por essas entidades, tendo em vista a criação de normas”277,

enfatiza que a jurisprudência não seria uma fonte do Direito. Para ela, “a jurisprudência

é resultado da atividade jurisdicional, ou seja, de um processo enunciativo realizado

pelo Poder Judiciário”.278 E após essa assertiva, conclui: “Não é fonte do direito, ela é o

direito (i.e. o direito dos tribunais – normas individuais e concretas)”.279

Diante dos apontamentos, pode ser admitida a busca por uma posição

conciliadora, partindo-se da concepção de que o pronunciamento, como regra,

resolverá o caso concreto e sinalizará como deverão ser solucionados os casos futuros,

assumindo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça a condição de

Cortes de Direito (Cortes de Interpretação).

A propósito, ao tratar da jurisprudência, em obra lançada anteriormente ao

advento do Código de Processo Civil de 2015, mas com referência ao PL da Câmara

Federal n. 8.046/2010, Mancuso reconhece que a lei é a fonte dos direitos e obrigações

no Brasil, muito embora não se possa negar “que ela guarda íntima conexão com a

jurisprudência, pela curial razão de que esta se forma a partir da interpretação dada à

lei pelos Tribunais”.280

De acordo com a concepção de Mancuso, lei e jurisprudência (o que aqui

podemos aplicar ao precedente) se complementam, assumindo esta duas frentes: i) a

de potencializar a eficácia prática da lei e a de ii) completar o “arco monogenético”, pois,

se é verdade que todas as pessoas físicas e jurídicas do país, e o próprio Estado, estão sob o império da lei, não é menos verdade que cabe ao Judiciário a última palavra sobre o conteúdo (extensão-compreensão) da lei, bem como autorizar a expansão panprocessual de certos julgamentos, como se dá na extensão, aos Res e REsps repetitivos sobrestados na origem, da decisão-quadro fixada pelo STF ou STJ no processo afetado, pela ordem, com repercussão geral ou como representativo da controvérsia (CPC, arts. 543-B e C).281

Assim, proferido julgamento em recurso especial repetitivo, o Superior Tribunal

de Justiça soluciona o caso correspondente, assim como sinaliza como os demais

277 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 20ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 45. 278 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit. p. 676. 279 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 676. 280 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 128. 281 Mancuso, Rodolfo de Camargo. Op.Cit., p. 130.

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casos, que digam respeito àquela matéria, devem ser decididos, assumindo o seu papel

de Corte de Direito.

Mas, além disso, há uma presunção de que se está diante de um precedente,

uma vez que o pronunciamento está indicado entre os casos constantes do art. 927 do

NCPC e, nesse sentido, será fonte jurídica formal para os casos futuros.282

Essa concepção, aliás, parece ser a mais adequada em vista do que está

previsto no próprio Código de Processo Civil de 2015, ao impor o dever de observância,

direcionado aos juízes e Tribunais, dos pronunciamentos indicados no art. 927, bem

como de que a decisão, sentença ou acórdão, que deixar de aplicá-los, deverá fazê-lo

fundamentadamente (art. 489, § 1o).

Após defender que os precedentes se constituem em fonte jurídica primária do

direito, Zaneti Júnior explicita os momentos em que essa característica é assumida no

direito processual brasileiro, assim nomeados: a) as súmulas vinculantes do STF; b) as

decisões nas ações de controle de constitucionalidade concentrado; c) a objetivação do

recurso extraordinário e a eficácia expansiva; d) decisões do STF em casos com

repercussão geral, por meio de uma Turma; e) julgamentos dos recursos repetitivos

pelo STJ; f) jurisprudência dominante por meio de decisões com força persuasiva

considerável; g) julgamento monocrático por juízes de primeiro grau nos processos

repetitivos.283

Além desses momentos, pode-se acrescentar os incidentes de uniformização

de interpretação de lei nos Juizados Especiais Federais (Lei n. 10.259/2001) e nos

Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei n. 12.153/2009) e, naturalmente, na linha

evolutiva, o próprio Novo Código de Processo Civil.

Não se pode negar que existem casos de precedentes que não se constituem

propriamente em um pronunciamento processual proferido no processo. Em verdade,

constituem-se na condensação da jurisprudência existente e que serão editados após

282 Zaneti Júnior ressalta que vários fatores como a constitucionalização e a principialização dos direitos, a previsão das súmulas vinculantes, filtros recursais e outros indica uma tendência não só brasileira, no sentido de que “o precedente é fonte formal no direito contemporâneo brasileiro e tendencialmente existem razões para adotar os precedentes como fontes do direito mesmo em ordenamentos jurídicos de civil law”. 282 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 176. 283 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 178.

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formado um precedente, como ocorre com as súmulas emanadas dos Tribunais

Superiores.

Nestes casos, porém, a súmula não importa em decidir um caso concreto, já

que a solução foi dada pelo julgamento do recurso propriamente dito. No entanto, da

mesma forma que os demais precedentes, deve ser levada em consideração pelos

juízes e Tribunais no julgamento de casos futuros, assim como pela própria

Administração Pública, adstrita que está à ordem jurídica como um todo, notadamente

porque são editadas após discussão ocorrida quando do julgamento de precedentes,

exigindo-se que os Tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas que motivaram a

sua criação (art. 926 § 2º do CPC).

2.5 Precedente administrativo

A formação do precedente não se circunscreve ao âmbito judicial. Aliás,

“interpretar não é monopólio dos juízes. Advogados, administradores, legisladores e

cidadãos em geral estão sempre – por dever de ofício ou simples desempenho de

papéis corriqueiros da vida social – interpretando a lei”284, ou, na linha de Petter

Häberle, a interpretação da Constituição (e, certamente, de todas as fontes normativas)

é realizada não só pelo juiz, como também por órgãos estatais e a sociedade em

geral.285

O administrador público, com mais razão, atrelado que é à legalidade (e, como

se verá, à juridicidade), deve fazê-lo constantemente. No mesmo sentido, já se apontou

que, no pós-positivismo, o

intérprete-aplicador, qualquer que seja, e não apenas o magistrado, é também um conformador da norma aplicada, pois lhe cabe retirar do texto inicial, que é a lei, o comando a ser efetivado, que é o direito, mas não ficar apenas na exegese, pois que também deve integrá-lo com seus próprios subsídios para aperfeiçoá-lo adequadamente à hipótese sob

284 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 142. 285 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Ed, 1997, p. 33.

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decisão e, necessariamente, enunciar os valores e as razões porque o faz, na interpretação e na integração.286

Nesse passo, a Administração Pública constantemente, valendo-se das

palavras do retro citado autor, também retira do texto inicial o comando a ser efetivado,

que é o Direito, integrando-o com seus subsídios, notadamente com o complexo

resultado do argumento de observância dos direitos fundamentais aliado à supremacia

do interesse público, formando-se a decisão jurídica (decisão administrativa ou ato

administrativo) que, por previsão legal, será aplicável não só para o julgamento futuro a

ocorrer nesse âmbito, como também para a consolidação de todos os casos que

guardarem coerência substancial, independentemente de qualquer litigiosidade interna.

Forma-se, assim, o precedente administrativo, conceituado por Gustavo

Marinho de Carvalho como:

A norma jurídica extraída por indução de um ato administrativo individual e concreto, do tipo decisório, ampliativo ou restritivo da esfera jurídica dos administrados, e que vincula o comportamento da Administração Pública para todos os casos posteriores e substancialmente similares. Em outras palavras: casos substancialmente similares deverão ter a mesma solução jurídica por parte da Administração Pública.287

Ainda segundo o autor, os precedentes administrativos estabelecem um dever

ser, obtido a partir de caso concreto, por indução. E, na sua visão, são normas jurídicas,

localizadas “acima dos atos administrativos individuais e concretos (...), e abaixo da

Constituição, leis e regulamentos”.288

O precedente administrativo, nesse passo, será formado a partir de decisão

emanada dos órgãos diretivos máximos do Poder, notadamente com a finalidade de

fixar entendimento para diminuir o índice de conflitos internos e externos, como ocorre,

por exemplo, com as súmulas editadas pelo Governador do Estado de São Paulo,

encaminhadas pelo Procurador Geral do Estado (art. 3º, § 4º da Lei Complementar nº

1.270/2015 – Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo), que

vinculam toda a Administração Direta e Indireta (§ 6º) (e, por isso, podem ser

consideradas precedentes administrativos).

286 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 24. 287 In: Precedentes administrativos no Direito Brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2015, p.121. 288 Op. Cit.p.122.

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Por voltar esta pesquisa ao exame do precedente judicial, não se tecerá

maiores considerações acerca daquele proveniente da esfera administrativa.

2.6 O efeito vinculante do precedente no modelo de Common Law

Como visto no capítulo anterior, no sistema de common law a pauta de conduta

dos cidadãos é regida principalmente pelos precedentes, expressão que, segundo Neil

Andrews, designa o “conjunto de decisões judiciais vinculantes”.289 Parte-se da

atribuição de duas funções à decisão judicial: uma para solucionar o caso concreto e

outra para estabelecer um precedente, que, na doutrina do stare decisis, será

vinculante para a decisão de um caso futuro.290

Ainda em conformidade com a doutrina do stare decisis, não há necessidade de

prévia previsão constitucional ou legal para que se assegure o respeito aos

precedentes. E isto se justifica pela necessidade de assegurar-se a igualdade,

previsibilidade, economia e respeito,291 o que será analisado, em particular à

experiência brasileira, mais adiante.

E nessa linha de entendimento, tem-se que, no modelo de common law, “uma

decisão da Corte que é precedente é ‘lei’ e vinculante em relação às Cortes

289 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Trad. Do autor [orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier]. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 97. 290 FARNSWORTH, Allan. Introdução ao sistema jurídico dos Estados Unidos. Trad. Antonio Carlos Diniz de Andrade. Rio de Janeiro: Companhia Ed. Forense, s/d, p.61-62. 291 De acordo com aludido autor: “A justificação comumente dada a essa doutrina pode ser resumida em quatro palavras: igualdade, previsibilidade, economia e respeito. O primeiro argumento é que a aplicação da mesma regra em casos análogos sucessivos resulta em igualdade de tratamento para todos que se apresentem à Justiça. O segundo é que uma sucessão consistente de precedentes contribui para tornar possível a solução de futuros litígios. O terceiro é que o uso de um critério estabelecido para solução de novos casos poupa tempo e energia. O quarto é que a adesão a decisões anteriores mostra o devido respeito à sabedoria e experiência das gerações passadas de juízes. Por várias razões, a doutrina do precedente nunca desfrutou nos Estados Unidos da autoridade absoluta que se diz ter atingido na Inglaterra. O grande volume de decisões, com conflitos de precedentes em diferentes jurisdições, reduziu a autoridade das decisões individuais. A rapidez do desenvolvimento enfraqueceu a aplicabilidade de precedentes e casos posteriores surgidos depois de as condições sociais e econômicas se terem alterado com a passagem dos anos. Não obstante, a doutrina do precedente, ainda que aplicada com menor rigor do que na Inglaterra, está firmemente estabelecida nos Estados Unidos". FARNSWORTH, Allan. Introdução ao sistema jurídico dos Estados Unidos. Trad. Antonio Carlos Diniz de Andrade. Rio de Janeiro: Companhia Ed. Forense, s/d, p.61-62.

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subordinadas à Corte de última instância em questão até que tal precedente seja

alterado”.292

2.7 Efeito vinculante do precedente: o que diz a doutrina brasileira?

A doutrina recente brasileira – e os trabalhos acadêmicos – têm se debruçado

sobre os “precedentes”, surgindo vários escritos a respeito, bem como estudos

inseridos em trabalhos mais amplos.

Na grande maioria do que até hoje foi publicado, quer seja por meio de livros

jurídicos ou também trabalhos acadêmicos, a questão do efeito vinculante do

precedente é objeto de controvérsias. Não há unanimidade a respeito de sua recepção

pelo ordenamento jurídico.

A respeito do assunto, existem pelo menos três correntes doutrinárias

diferentes, que podem ser assim sintetizadas:

Posição Síntese

Restritiva A vinculação do precedente necessita de previsão expressa na

Constituição Federal, a partir exclusivamente do trabalho do

constituinte originário. Integram o corpo doutrinário, entre

outros, Elival da Silva Ramos e Olavo Augusto Vianna Alves

Ferreira,

Restritiva mitigada A vinculação do precedente depende de previsão

constitucional, admitindo-se disposição a respeito por meio de

Emenda Constitucional. Tese essa defendida, entre outros, por

Cássio Scarpinella Bueno, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de

Andrade Nery, Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano

Nunes Júnior.

Ampliativa A vinculação do precedente encontra embasamento nos

292 COLE, Chartels. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados Unidos. O sistema de precedentes vinculante do common law. RT 752/12. São Paulo: RT, jun. 1998.

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valores e princípios constitucionais, bem como nas previsões

contidas no Novo Código de Processo Civil. Compõem essa

bancada, entre outros, os doutrinadores: Teresa Arruda Alvim

Wambier, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero, Fredie

Didier Júnior e Zaneti Júnior.

A questão, de fato, é tormentosa, e até pelo pouco tempo de vigência do Novo

Código de Processo Civil, seria de se estranhar que houvesse consenso a respeito.

Aliás, a divergência é salutar e auxilia até mesmo no reforço argumentativo de cada

corrente doutrinária.

Em comum entre as concepções, verifica-se que todas extraem da Constituição

a justificativa da adoção ou não do sistema de precedentes. Umas o exigem de forma

expressa, outra se contenta com os valores e princípios constitucionais, enfatizando-se

a força normativa da Constituição.

A Constituição é, portanto, para todas as concepções, o ponto de partida do

sistema de precedentes, o que está em conformidade com a constitucionalização do

Direito decorrente do neoconstitucionalismo. Ocorre que, na visão ampliativa, a força

normativa da Constituição projeta com mais intensidade determinados valores e

princípios, o que, aliado a uma estrutura prevista pela legislação infraconstitucional,

pode autorizar que se reconheça a autoridade do precedente judicial como obrigatório,

vinculante.

A adoção de uma concepção ou de outra é importante e dela advirão várias

consequências, competindo, então, aos operadores do Direito dar a sua colaboração no

sentido de sinalizar os seus posicionamentos, sobretudo no âmbito institucional.

As Advocacias Públicas, nesse sentido, assumem papel primordial nesse

contexto, competindo-lhes oferecer substrato jurídico que permita à respectiva

Administração Pública a adoção de posicionamento seguro, alinhado com os preceitos

constitucionais, com a legalidade e a supremacia do interesse público, pontuando tudo

isso com as consequências práticas para o poder público nos âmbitos administrativo e

processual.

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a) Posição restritiva

Como dito acima, esta corrente doutrinária defende que o efeito vinculante do

precedente somente pode ser derivado de previsão expressa na Constituição Federal.

A propósito, Elival da Silva Ramos ensina que

Com efeito, os Juízes e Tribunais, no exercício da jurisdição, não estão, em princípio, vinculados senão aos atos do Legislador, tanto quanto os agentes e órgãos do Poder Executivo, ressalvados, quanto a estes últimos, os atos administrativos normativos emanados do chefe do Poder Executivo e fundados no poder hierárquico. Para que de determinada decisão judicial, ainda que proveniente do Supremo Tribunal Federal, decorra a vinculação funcional de respeito ao ali decidido, há que se socorrer de disposição constitucional expressa, que, na hipótese vertente inexiste.293

Também Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior encampam

posicionamento de que o efeito vinculante para as ações direta de inconstitucionalidade

e para a arguição de descumprimento de preceito fundamental não poderia estar

previsto em lei.294

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira também entende pela

inconstitucionalidade de tais previsões, indicando que a sua previsão não poderia existir

nem mesmo em emenda constitucional. Nesse sentido,

Sem embargo de respeitáveis opiniões em sentido contrário, há irremissível inconstitucionalidade da previsão do efeito vinculante por violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, das normas que preveem a possibilidade de controle difusos de constitucionalidade, do juiz natural e do princípio da separação de poderes. Tais fundamentos são aplicáveis à previsão do efeito vinculante via Emenda Constitucional e lei.295

b) Posição restritiva mitigada

De acordo com a posição restritiva mitigada, o efeito vinculante somente poderá

existir se houver previsão expressa na Constituição Federal, registrando-se que se trata

de matéria estranha ao legislador infraconstitucional. Admite-se a previsão inserida por

meio de Emenda Constitucional.

Sobre o tema, Camilo Zufelato defende a “inconstitucionalidade formal das

normas relativas a precedentes vinculantes instituídas pelo CPC de 2015, dentre elas, o

293 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e legislação regulamentadora. Org. André Ramos Tavares e Walter Claudius Rothenburg. São Paulo: Atlas, 2001, p. 120-121. 294 In: Curso de Direito Constitucional. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 48. 295 FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Controle de Constitucionalidade e seus efeitos. 3ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 235.

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§ 3º do art. 947”, justamente pelo motivo de que “somente a CF pode prever vinculação

aos atos do Poder Judiciário”, o que somente ocorreria com a súmula vinculante e com

as ações de controle concentrado de constitucionalidade.296

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, por sua vez, reconhecem a

inconstitucionalidade do art. 927 do NCPC, uma vez que só a Constituição poderia

atribuir o efeito de norma geral. Como síntese de sua lição, registraram que:

Vinculação a preceitos abstratos, gerais, vale dizer, com características de lei, só mediante autorização da Carta Política, que até agora não existe. STF e STJ, segundo a CF 102 e 105, são tribunais que decidem casos concretos, que resolvem lides objetivas (e.g. ADIn) e subjetivas (e.g. RE, REsp). Não legislam para todos, com elaboração de preceitos abstratos: salvo quanto à súmula vinculante (STF, CF 103-A), não são tribunais de teses. Fazer valer e dar eficácia ao CPC 927 III a V é deixar de observar o due process of law, o texto e

o espírito da Constituição.297

Nesse passo, defendem os doutrinadores que, como as hipóteses contidas nos

incisos III e V do art. 927 são inconstitucionais, juízes e Tribunais podem negar-lhes

aplicabilidade.298

Cássio Scarpinella Bueno, ao tratar do tema, também foi enfático:

Sim, porque sou daqueles que entendem que decisão jurisdicional com caráter vinculante no sistema brasileiro depende de prévia autorização constitucional – tal qual a feita pela EC n. 45/2004 – e, portanto, está fora da esfera de disponibilidade do legislador infraconstitucional.299

A propósito, ensina o autor que previsibilidade, isonomia e segurança jurídica

são valores que podem ser tutelados independentemente da adoção do sistema de

precedentes vinculantes, motivo pelo qual não crê que o sistema brasileiro tenha se

aproximado do common law.300

Não obstante, Cássio Scarpinella Bueno não desconsidera a força persuasiva

dos pronunciamentos indicados nos incisos III a V do art. 927 do Novo Código de

Processo Civil, bem como a “necessidade de ser estabelecida verdadeira política

pública para implementar maior racionalização nas decisões e na observância das

296 ZUFELATO, Camilo. O incidente de assunção de competência. Artigo em coletânea de obra no prelo. BUENO, Cássio Scarpinella (org.). 297 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit., p. 1.836 – 1.837. 298 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit., p. 1.836 – 1.837. 299 Manual de Direito Processual Civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 595. 300 Manual de Direito Processual Civil. Op. Cit., p. 595.

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decisões dos Tribunais brasileiros”301 e ressalta que a expressão precedente foi

utilizada no CPC de 2015 “como sinônimo de decisão proferida (por Tribunal) que o

CPC de 2015 quer que seja vinculante”.302

c) Posição ampliativa

A corrente doutrinária ampliativa, por sua vez, defende que o efeito vinculante

do precedente decorre da força normativa da Constituição Federal e está em

conformidade com a sistemática constante do art. 926 e seguintes do Novo Código de

Processo Civil.

A Constituição Federal, em seu art. 102, § 2o, com a redação determinada pela

EC 3/93, atribuiu efeito vinculante à decisão de mérito proferida na ação declaratória de

constitucionalidade, o que, posteriormente, por força da EC 45/2004, foi estendido às

ações diretas de inconstitucionalidade, bem como à súmula vinculante, determinando-

se a sua observância obrigatória aos demais órgãos do Poder Judiciário e à

Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

No âmbito infraconstitucional, as Leis n. 9.868/1999 e 9.882/1999 fizeram

previsão expressa ao efeito vinculante das decisões proferidas nos casos já

mencionados, bem como à arguição de descumprimento de preceito fundamental.

E o Novo Código de Processo Civil, em seu art. 927, ao determinar que os

juízes e Tribunais observarão os pronunciamentos lá referidos, conforme aqui se

defende, também contribuiu para a atribuição do efeito vinculante aos precedentes.

Vários são os defensores desta linha doutrinária.

Destaque-se, em primeiro lugar, a opinião de Teresa Arruda Alvim Wambier

que, enfatizando a função do Estado de assegurar tranquilidade aos cidadãos,

registrou:

Acreditando nisso, incluíram no Novo Código de Processo Civil (CPC) algumas hipóteses em que precedentes, proferidos em determinadas condições especialíssimas, têm força obrigatória, devendo ser respeitados em outros processos em que se discutem questões idênticas. Não é a obrigatoriedade

301 Manual de Direito Processual Civil. Op. Cit., p. 596. 302 Manual de Direito Processual Civil. Op. Cit., p. 598.

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inglesa: é a obrigatoriedade brasileira, ou seja, se houver desrespeito, cabe

reclamação.303

Sobre a tese da inconstitucionalidade, a autora foi enfática:

Inconstitucional, sim, é o esvaziamento da garantia de isonomia, o desaparecimento da previsibilidade e da confiança do Jurisdicionado nos Poderes Constituídos. Esses são valores talvez mais relevantes do que a absoluta independência entre os poderes, que, como se sabe, têm versões

diferentes, em vários países.304

Aponta a autora, ainda, em outra passagem, dois pontos que deixam clara a

sua opção doutrinária: “(...) a liberdade que os sistemas de civil law proporcionam

destina-se ao JUDICIÁRIO, e não a cada juiz, individualmente considerado. O

legislativo faz a lei; o judiciário a interpreta e aplica” e, também, “portanto, uma vez

decidida a questão pelas Cortes Superiores (com liberdade) devem os demais órgãos

do judiciário – e, é evidente TAMBÉM AS PRÓPRIAS CORTES SUPERIORES! –

respeitar a opção naqueles precedentes (...)”. 305

Luiz Guilherme Marinoni também tem opinião no sentido de que o ordenamento

jurídico brasileiro encampou um sistema de precedentes vinculantes, alertando que o

stare decisis não se confunde com o common law, “tendo surgido no curso do seu

desenvolvimento para, sobretudo, dar segurança às relações jurídicas”306, o que seria

um indicativo da possibilidade da sua adoção pelo direito brasileiro.

E, em síntese, registrou:

Espera-se, contudo, que o novo Código de Processo Civil – marcado pela ideia de respeito aos precedentes – possa iluminar e pavimentar o caminho em busca da racionalização do nosso sistema de distribuição de justiça, garantindo-se, consequentemente, a igualdade e a segurança jurídica, indispensável para

o homem poder se desenvolver e para a economia ter condições de frutificar.307

303 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/teresa-arruda-alvim-wambier/por-que-respeitar-os-precedentes-2ot2n72y384owyprqn3gynso1. Acesso em 11.07.2016. Fez-se menção propositada a uma entrevista concedida pela autora a um jornal, para demonstrar que, na atualidade, apresenta-se a doutrinadora como porta-voz do direito processual, notadamente em relação aos precedentes no sistema jurídico brasileiro. 304 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/teresa-arruda-alvim-wambier/por-que-respeitar-os-precedentes-2ot2n72y384owyprqn3gynso1. Acesso em 11.07.2016. 305 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A vinculatividade dos precedentes e o ativismo judicial –paradoxo apenas aparente. In: DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 274. 306 Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 79. 307 Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 81.

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Rodolfo de Camargo Mancuso também reconhece, no âmbito brasileiro, a

existência do sistema de precedentes, um tanto particular, pois, no common law, “o

binding precedente é na verdade identificado pelo juiz do caso subsequente, após

laboriosa pesquisa sobre as decisões judiciais concernentes à espécie (...)” e

“identificação da ratio decidendi”308.

Diferentemente, conforme é possível verificar, no Brasil os precedentes estão,

em tese, elencados na lei (art. 927 do NCPC), dos quais se extrairá a ratio decidendi.309

Daniel Mitidiero, alinhado a essa corrente doutrinária, enfatiza que:

O novo Código de Processo Civil introduziu o conceito de precedentes no direito brasileiro. Os precedentes não são equivalentes às decisões judiciais. Eles são razões generalizáveis que podem ser identificadas a partir das decisões judiciais. O precedente é formado a partir da decisão judicial e colabora de forma contextual para a determinação do direito e para a sua

previsibilidade.310

E também que:

Os precedentes emanam exclusivamente das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios – isto é, vinculantes. (....) Embora o Novo Código tenha introduzido legislativamente o conceito de precedente entre nós, a autoridade do precedente obviamente dele não decorre. Na verdade, a autoridade do precedente decorre do fato desse encarnar o significado que é adscrito ao direito pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. Vale dizer: a autoridade do precedente é a própria autoridade do direito interpretado

e a autoridade de quem o interpreta.311

308 Sistema Brasileiro de precedentes. São Paulo: RT, 2015, p. 607-608. 309 Não obstante, como enfatizam Dierle Nunes e André Frederico Horta, “jamais o precedente será anunciado de forma completa e única. É a partir das distinções, das ampliações e das reduções que os precedentes são dinamicamente refinados pelo judiciário (sempre a partir das contribuições de todos os sujeitos processuais), à luz de novas situações e contextos, a fim de se delimitar a abrangência da norma extraída do precedente”. Aplicação de precedentes e distinguishjing no CPC/2015: uma breve introdução. DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de. (org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 296 310 Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 96. 311 Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 97-98. No Novo Código de Civil e Comercial da Argentina, sancionado em 2014, com vigência a partir de 2015, não há norma que indique a jurisprudência como fonte do direito, de modo que há entendimento doutrinário no sentido de que o sistema jurídico daquele país não encampou o sistema de precedentes. A propósito: “La voluntad em esse sentido fue clara y expresa. El anteproyecto original contenía em el artículo 1º, a la jurisprudencia como fuente y pauta para la resolución de los casos, sin embargo, la Comisión Bicameral elimino dicho referencia, manteniendo el critério de no citar a la jurisprudencia como fuente, posiblemente enrolada em la idea de que Argentina es um país es legalista y no jurisprudencialista”. SEDLACEK, Frederico D. Miscelâneas Argentinas del precedente judicial, y su relación con el nuevo CPC de Brasil. DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 375.

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Em contrapartida à tese de que a segurança jurídica, a liberdade e a igualdade

são também valores defendidos pelo sistema de civil law e que, por isso, não justificam

por si sós a ideia de vinculação do precedente entre nós, ressalta Mitidiero que esta

concepção se encontra fortemente influenciada pela ideologia da separação de

Poderes, tal como engendrado pelo espírito revolucionário francês, e também pelo

“cognitivismo interpretativo”.312

Thomas da Rosa de Bustamente assegura que, mesmo antes do NCPC, a

legislação brasileira já contemplava a técnica do precedente vinculante ou obrigatório. E

sentencia:

O Novo Código de Processo Civil Brasileiro vem, portanto, como um sopro de esperança, na medida em que contém um importante conjunto de regras que consagram na legislação brasileira as principais exigências tanto da racionalidade do modelo de precedentes existentes nos sistemas de common law como, na mesma medida, das teorias mais importantes sobre a argumentação jurídica e sobre a fundamentação das decisões judiciais.313

Hermes Zanetti Júnior, reconhecendo a força vinculante do precedente,

apresentou uma proposta de classificação que leva em consideração os diversos graus

de vinculação, identificando os precedentes como normativos vinculantes, normativos

formalmente vinculantes e normativos formalmente vinculantes fortes.314 Sem dúvida,

como reconhecido pelo próprio autor, a classificação por ele formulada é mais sintética

do que as demais existentes, mas “permite identificar quando e como os precedentes

judiciais vinculam em um determinado ordenamento”.315

312 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 80. Ao tratar da Teoria da Interpretação, o citado autor destaca o seu percurso teórico, que parte da teoria cognitiva (cognitivismo interpretativo) para se chegar às teorias céticas da interpretação. Para tanto, indica que a teoria da interpretação partiu de uma “posição sectorial para uma posição central – a ponto mesmo de marcar a compreensão do direito a partir daí como uma atividade e como um resultado interpretativo e argumentativo. Em outras palavras, a teoria da interpretação adquire um caráter pervasivo que perpassa e envolve toda a teoria do direito”. O cognitivismo intepretativo partia da univocidade, sendo o direito determinado previamente à própria interpretação. Destacou a importância da constatação de Kelsen, no sentido de que a interpretação é um problema para a segurança jurídica, devendo a ciência jurídica valer-se de instrumentos capazes de “reduzir ao mínimo a inevitável pluralidade de significações normativas a fim de que se obtenha com isso um maior grau de segurança jurídica possível”. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 59. 313 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no Novo CPC. In: DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 296. 314 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 323. 315 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 324.

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Em primeiro lugar, reconhece o autor a existência de precedentes normativos

vinculantes, cuja “vinculatividade é compreendida a partir da exigência de

argumentação racional no processo de interpretação/aplicação do direito,

independentemente de lei formal”.316 A vinculatividade tem cunho normativo, sem

previsão legal.

Há também os precedentes normativos formalmente vinculantes, ou de direito,

pelos quais a vinculatividade tem cunho normativo317 e, como reforço, há previsão

legal.318 Em outras palavras, a atribuição da vinculatividade pela lei não ocorre de forma

vazia, mas encontra amparo substancial e valorativo.

E, segundo defende o autor indicado, há também os precedentes normativos

formalmente vinculantes fortes, que guardam distinção em relação aos referidos

anteriormente por um fator: enquanto para os formalmente vinculantes não há previsão

de quórum qualificado para a superação do precedente, para os normativos

formalmente vinculantes fortes há essa exigência.

Assume-se, tal como o fez o próprio autor, a praticidade e objetividade da

classificação apresentada, reconhecendo-se que o Novo Código de Processo Civil

encampou um modelo de precedentes vinculantes por determinação legal,319 que parte

dos seguintes pilares: i) há base valorativa e principiológica no reconhecimento do

efeito vinculante dos precedentes; e, ii) não obstante, tal efeito foi reconhecido pelo

legislador expressamente, ao prever, no art. 927, que os juízes e Tribunais observarão

determinados pronunciamentos no julgamento de casos futuros.

316 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 325. 317 Conforme registra o autor: “O debate em torno das classificações e graus de vinculação permite-nos perceber que a força normativa dos precedentes prescinde da vinculação formal e pode ser reconhecida mesmo quando não ocorra a expressa menção na legislação de um determinado ordenamento jurídico. Contudo, defendemos aqui a utilidade da previsão constitucional e legal como formalização da força normativa dos precedentes. O reconhecimento formal pela lei da força normativa dos precedentes é um passo decisivo no processo civilizatório jurídico, auxiliando nos processos culturais que poderiam levar muito tempo e apresentar, no seu desenvolvimento, menos garantias para os direitos fundamentais”. ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 326-327. 318 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 325. 319 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 343.

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Fredie Didier defende que “um dos pilares do novo Código é a estruturação

dogmática de um sistema de precedentes judiciais obrigatórios”, enfatizando a vocação

de nosso tempo para a jurisdição.320

E, para finalizar esta pequena coletânea (que também poderia contar com a

lição de vários outros autores) de demonstração do panorama doutrinário brasileiro a

respeito do tema, merece ser também inserido o anseio de Thomas da Rosa de

Bustamante:321

Talvez o CPC represente, portanto, um novo paradigma em formação. Um paradigma que tenta consolidar os aspectos processuais do Estado Democrático de Direito e da construção comparticipativa da legitimidade da

jurisprudência e do direito judicial.322

Neste trabalho, parte-se da premissa que o Estado brasileiro encampou o

sistema de precedentes, com algumas particularidades intrínsecas ao sistema jurídico

respectivo, conforme se passa a demonstrar.

3. Valores do Estado de Direito a serem tutelados

Há três valores fundamentais que possuem significado especial no modo de

como os juízes devem definir e modificar o direito. São eles: “a previsibilidade jurídica, a

igualdade perante o direito e a imparcialidade”.323

3.1 Previsibilidade jurídica

320 DIDIER JR, Fredie. Sistema Brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres Institucionais dos Tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. In: DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 296. 321 E, conforme assinalam Eduardo Cambi e Mateus Vargas Fogaça, “pela teoria do precedente judicial, trazida pelo NCPC, pretende-se a concretização de uma nova ordem processual, mais efetiva, em que são ressaltados os valores da funcionalidade, eficiência e celeridade. Sistema dos precedentes judiciais obrigatórios no Novo Código de Processo Civil. DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de (coord.) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 345. 322 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio no Novo CPC. In: DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. MACÊDO, Lucas Buril de (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 297. 323 PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes. Universabilidade das decisões do STJ. São Paulo: RT, 2014, p. 55.

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A interpretação do Direito a partir dos princípios e o extenso rol de fontes

jurídicas existentes, provenientes de diferentes órgãos, em teia complexa, formam

ambiente propenso à variedade de entendimentos e, consequentemente, de decisões

judiciais sobre um mesmo tema, prejudicando a estabilidade e a previsibilidade dos

cidadãos. A falta de previsibilidade gera a insegurança, dificultando as relações sociais.

Aliás,

a tutela do valor da previsibilidade jurídica encontra justificação até mesmo para além do direito, ou seja, na moral. Uma justificação moral reside na necessidade humana da prática de certeza nas relações interpessoais e de determinação nas disputas à luz de normas de condutas preestabelecidas, apesar de nunca totalmente determinadas.324

Em conformidade com Humberto Ávila, a segurança jurídica é um princípio que

se pauta na existência de um Estado de confiabilidade e de calculabilidade do Direito,

enfatizando-se o aspecto instrumental, já que serve para a garantia de direitos

fundamentais da liberdade, igualdade e dignidade.325 A segurança jurídica e estes

princípios estão interligados.

Nesse contexto, salta aos olhos que a diversidade de decisões sobre um

mesmo tema não observa os valores da previsibilidade e da segurança jurídica, já que

nunca se saberá o teor da decisão, não existindo um ambiente confortável para a

celebração de negócios de qualquer natureza.

3.2 Igualdade jurídica

Há de ser observada a “igualdade diante da norma jurídica e não igualdade

diante da lei”.326

Com efeito, até a Segunda Guerra Mundial, imperava o entendimento de

equivalência legalidade-igualdade, pois, as regras constantes dos códigos, previstas de

forma abstrata e geral, já seriam suficientes para garantir o intento de igualdade.

324 PEREIRA, Paula Pessoa. Op. Cit. p. 56-57. 325 Teoria da segurança jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 138-139. 326 PEREIRA, Paula Pessoa. Op. Cit. p. 58.

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Porém, a partir da constitucionalização do Direito (com a inserção, na formação

das decisões, de princípios e valores jurídicos), bem como a utilização de cláusulas

abertas e de conceitos jurídicos indeterminados, passou a ser possível verificar-se estar

diante de uma incompletude do ordenamento jurídico (antes restrito às leis), exigindo-se

a atuação do juiz para buscar completá-lo a partir de um raciocínio que antes não era

utilizado.

Nesse passo, a atuação da jurisdição não se restringe a ser a “boca da lei”, mas

passa a ser fonte criadora do direito, comportando a existência de diversas

interpretações, devendo o sistema garantir a igualdade de todos perante a interpretação

judicial da lei.327 A igualdade passa ser atingida pela atuação do julgador, competindo-

lhe a criação de norma jurídica adequada. Texto e norma não são mais conceitos

sinônimos.

Por esse motivo, a igualdade jurídica, enquanto valor do Estado Democrático de

Direito, somente será assegurada se houver equiparação na criação das normas

jurídicas. Ora, o Poder Judiciário (e mesmo a Administração Pública), que possui o

papel de fiscalizar a sua observância, não pode admitir a existência de decisões

judiciais que fixem normas jurídicas variáveis, não obstante se esteja perante uma

mesma situação jurídica.

3.3 Imparcialidade

A imparcialidade é outro valor que deve ser resguardado, como elemento

indissociável da jurisdição. Paula Pessoa Pereira, ao analisá-la, conclui pela existência

de uma causa que se apresenta como capaz de prejudicar a imparcialidade, que é a

“utilização arbitrária das razões dadas para a justificação das decisões, que resolvem o

caso concreto, e que é negligenciada pela doutrina e jurisprudência como tal”.328 E

completa:

Talvez a doutrina do direito processual não tenha dado a devida atenção ao elemento da justificação da decisão como problema relacionado à garantia da imparcialidade do decisor, porque a prática jurisdicional estava atrelada ao

327 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 114. 328 PEREIRA, Paula Pessoa. Op. Cit., p. 69.

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modelo de raciocínio estritamente dedutivo, que apenas declarava as palavras da lei, não as interpretava, tampouco tinha o poder de criar norma jurídica.329

Nesse sentido, segundo defende a autora, a violação da igualdade perante as

decisões judiciais acarreta também em violar a imparcialidade do juiz, pois este não

pode decidir diferentemente duas situações jurídicas semelhantes. Exige-se, então, a

existência de uma razão que justifique ser a decisão universalizável, permitindo-se o

controle das alterações das decisões. E, dessa maneira:

A imparcialidade incide aqui como verdadeira norma de julgamento ao impor o dever (e favorecer o controle) de evitar o uso arbitrário das razões na aplicação do direito, indo além da mera vedação das hipóteses de suspeição e impedimento. O juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua decisão deve ser fundamentada numa argumentação racional, segundo os critérios normativos vigentes no sistema e as concepções gerais de justiça consolidadas na coletividade.330

Como visto, a partir de tais valores, justifica-se a vinculação do precedente aos

juízes e Tribunais quando do julgamento de casos futuros, pois não se pode permitir

que cada magistrado exerça uma “jurisdição particular”, ao invés da jurisdição una,

uniformizadora, que garanta a previsibilidade e a segurança jurídica, observando-se a

imparcialidade do julgador.

4. Diferença entre o efeito vinculante e o efeito erga omnes

Em sua natureza, o precedente possui o efeito vinculante, pois restringe a

liberdade dos julgadores na análise e decisão de casos futuros, como consequência da

aplicação dos princípios da igualdade e da segurança jurídica.

Não se pode confundir o efeito vinculante com o erga omnes.

De fato, o efeito vinculante atribui autoridade ao precedente e determina a

observância da tese jurídica adotada (ratio decidendi) quando do julgamento de casos

futuros. Decide-se o caso presente, mas com olhos nos casos que serão julgados

posteriormente.

329 PEREIRA, Paula Pessoa. Op. Cit., p. 74. 330 PEREIRA, Paula Pessoa. Op. Cit., p. 76-77.

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Diferentemente, o efeito erga omnes é processual, pois, em outros processos,

não mais se admite discussão sobre a questão jurídica antes definida.

O efeito vinculante, nesse passo, conforme ressaltado por Olavo Augusto

Vianna Alves Ferreira, tem mais abrangência do que o efeito erga omnes. Em suas

palavras:

Aquele cria uma relação de subordinação, obrigando seus destinatários a aplicarem a mesma tese (que foi adotada na decisão do Pretório Excelso) aos casos que versam sobre aquela matéria decidida, sem qualquer questionamento posterior à constatação de que a decisão vinculante é aplicável ao caso. O efeito erga omnes gera efeitos tipicamente processuais, impedindo nova rediscussão sobre ato cuja incompatibilidade com o Texto Fundamental já foi objeto de exame definitivo pelo Pretório Excelso. O mesmo não ocorre na declaração de constitucionalidade, quando há possibilidade de nova ação impugnando o mesmo ato, na hipótese de alteração das circunstâncias fáticas

(mutação constitucional), o que viabiliza a propositura de nova ação. 331

5. Efeitos dos precedentes no âmbito processual

Em conformidade com as disposições de um determinado sistema jurídico, será

atribuída determinada eficácia a um precedente. Dessa maneira, entende-se pela

possibilidade de que os precedentes possam produzir determinados efeitos.

Nesse passo, a doutrina vislumbra a existência de seis efeitos distintos, quais

sejam: i) vinculante; ii) persuasivo; iii) obstativo da revisão de decisões; iv) autorizante;

v) rescindente; vi) de revisão da sentença.332 Aqui, interessa trabalhar com a proposta

de efeitos vinculante e persuasivo.

De acordo com Fredie Didier Jr, Rafael Alexandria de Oliveira e Paula Sarno

Braga, serão vinculantes ou de eficácia obrigatória os precedentes indicados no art. 927

do NCPC e, em razão dessa eficácia, deverão ser conhecidos de ofício.333

Também defendem os autores que há certas ocasiões em que o precedente

não tem eficácia vinculante, apenas força persuasiva, como ocorre, por exemplo, com

os embargos de divergência.334

331 In: Controle de Constitucionalidade e seus efeitos. 3ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 200. 332 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 454. 333 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 455.

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Com o devido respeito e alinhado aos conceitos já apresentados, não há como

vislumbrar a existência de precedente que não seja vinculante. Nessa linha, se não

obrigatório, tem-se no máximo um exemplo. Não precedente.

Aliás, em relação ao indicado exemplo dos embargos de divergência, Daniel

Mitidiero discorda do fato de que estes não se constituem em precedente, pois também

têm o papel de garantir a unidade do direito.335

Para todos os efeitos, neste trabalho, considera-se que o precedente possui

apenas efeito vinculante, senão deve ser enquadrado em outro instituto.

6. Dever de estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência pelos

Tribunais

O art. 926 do NCPC, além de inaugurar o Livro III, da Parte Especial, determina

que os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e

coerente.

Conforme já mencionado, embora não concordante com a ideia de formação de

um sistema de precedentes, Cássio Scarpinella Bueno defende que, aludido dispositivo,

em conjunto com o art. 927, tem como finalidade substituir o incidente de uniformização

de jurisprudência, previsto no Código revogado.336 E, ainda, que o art. 926 pretende

deixar em evidência a função que o Novo CPC atribuiu à jurisprudência dos Tribunais,

que devem uniformizá-la e mantê-la estável, íntegra e coerente, expressões que,

segundo entende, apresentam-se como “técnicas de realização da segurança jurídica,

inclusive na perspectiva da previsibilidade e da isonomia”.337

334 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 10ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 456. 335 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 109. 336 BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 595. Em passagem posterior, o autor rendeu suas homenagens à Teresa Arruda Alvim Wambier, que foi relatora do Anteprojeto de novo Código de Processo Civil. Sem dúvida alguma, todos os operadores do direito devem render suas homenagens à família Alvim, pela qualidade de seus textos e conhecimentos transmitidos ao longo do tempo. 337 BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 600.

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Lenio Streck e Georges Abboud, em sentido semelhante, entendem que os

artigos 926 e 927 do Novo Código de Processo Civil se referem a um “sistema de

vinculação jurisprudencial”, e não propriamente de precedentes, pois, não é possível a

aplicação de forma “dedutiva-subsuntiva-mecânica” do texto jurídico, qualquer que seja

ele.338

Encampando-se ou não a ideia de precedente com eficácia vinculante, o fato é

que os deveres enunciados no art. 926 do Novo Código de Processo Civil constituem-

se em importante menção, representando uma virada no entendimento até aqui

dominante em busca da observância da segurança jurídica.

Interessante a análise que Juraci Mourão Lopes Filho faz a respeito desse

dispositivo. Para a autora, o art. 926 encampa um paradigma sistêmico novo, formando-

se um sistema em rede, por meio do qual “as relações entre os precedentes são de

reforço e desafio, gerando estabilidade pelo reforço e fragilidade pelo desafio”.339 Em

outras palavras, o sistema de precedentes possui o grande benefício de possibilitar lidar

com muitos casos, resolvendo-se com mais facilidade os problemas em escala.

O dever de uniformizar decorre da necessidade de sanar as divergências

internas do Tribunal. Como desdobramento, tem-se a necessidade de edição de

súmulas que, por sua vez, devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que

motivaram sua criação, conforme prevê o § 2º do art. 926.340

A estabilidade da jurisprudência será atingida se as mudanças de

posicionamento, ou a alteração jurisprudencial, for devidamente justificada, com a

modulação dos efeitos em respeito à segurança jurídica, quando for o caso.341 Para

tanto, deverá ser utilizada argumentação apropriada, que observe o contraditório

dinâmico. Em suma:

Devem procurar não alterar a sua jurisprudência, salvo quando se estiver frente a duas hipóteses: (a) quando o entendimento modificado for reconhecidamente errado; (b) quando alterações ocorridas no plano da

338 O NCPC e os Precedentes – Afinal, do que estamos falando? DIDIER JR, Fredie (coord. geral) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 176. 339 LOPES FILHO, Juraci Mourão. O novo código de processo civil e a sistematização em rede dos precedentes judiciais. In: DIDIER JR, Fredie (coord. geral) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 172. 340 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 474. 341 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 474.

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sociedade – culturais, portanto – exigirem que se dê à lei interpretação diferente daquela que se vinha dando até então.342

Aplicam-se conjuntamente os princípios da inexistência de novas razões e da

proteção da confiança legítima. O primeiro “significa, de forma bastante singela, que a

jurisprudência não pode ser alterada se não houver novas razões que justifiquem a

mudança; isto é, razões que tenham surgido após a formação do precedente”.343

Havendo razões que legitimem a alteração jurisprudencial, há de ser analisada se tal

fato se justifica em razão da insegurança que pode ser gerada.344

A estabilidade exige que a decisão judicial precedente esteja em conformidade

com a unidade da Constituição, bem como dos demais textos normativos. Também é

referida como coerência em sentido amplo.345

Os deveres de manter íntegra e coerente a jurisprudência têm por finalidade

atingir a consistência jurisprudencial.346

O dever de coerência tem duas dimensões: a formal e a material, a partir do

que não deve ser contraditória e, ao mesmo tempo, deve haver “conexão positiva de

sentido”.347 No âmbito externo, deve-se observar a linha evolutiva da jurisprudência,

como corolário do princípio da igualdade jurídica. Pressupõe-se, ainda, a observância

da autorreferência, de modo que os precedentes não podem ser ignorados, mas

aplicados ou objeto de distinção ou ainda de superação. No âmbito interno, haverá

coerência a partir da fundamentação do precedente.348

Por sua vez, o dever de integridade guarda correlação com a necessidade de

garantir-se a unidade do direito. Para tanto, o Tribunal deve adotar algumas posturas,

tais como: a) decidir em conformidade com o Direito; b) tomar por base a eficácia

normativa da Constituição; c) fundar-se no sistema de normas, observando-se a

unidade do ordenamento; d) observar o necessário relacionamento entre direito

342 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. MELLO, Rogério Licastro Torres de. Op. Cit., p. 1.315. 343 LUCCA, Rodrigo Ramina de. Limites à mudança jurisprudencial. Op. Cit., p. 1121. 344 LUCCA, Rodrigo Ramina de. Limites à mudança jurisprudencial. Op. Cit., p. 1121. 345 ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit., p. 365. 346 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 478. 347 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Op. Cit., p. 479. 348 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 480 – 481.

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material e processual; e) enfrentar os argumentos apresentados quando da formação

do precedente.349

7. A qualidade da decisão judicial

Para que o efeito vinculante seja admitido, há de haver primado pela qualidade

da decisão judicial, o que, contrariamente ao que se pode pressupor, não exige apenas

o esforço dos Tribunais, mas sobretudo das partes.

O Novo Código de Processo Civil encampou Normas Fundamentais, como

projeção da Constituição Federal ao direito processual civil. Nesse sentido, determinou

a observância de princípios e regras, enfatizando-se, neste momento, por coerência ao

tema, os princípios do contraditório efetivo e da fundamentação analítica.

Ora, por meio do princípio do contraditório efetivo, substancial ou dinâmico, não

pode o juiz decidir sem que antes tenha dado oportunidade à parte para se manifestar

previamente (arts. 9º e 10), ressalvadas as exceções legais. O processo se constitui em

um espaço democrático de resolução do conflito, de modo que se deve dar voz às

partes para se manifestarem, assim como também, em certos casos, à própria

sociedade, por meio do amicus curiae, dentro da linha defendida por Peter Häberle, de

que será intérprete da Constituição aquele que a vive,350 o que pode ser perfeitamente

estendido às demais fontes normativas.351

E ao dar voz às partes e até a terceiros, exige-se que o julgador faça jus aos

anseios e fundamente de forma adequada a sua decisão, enfrentando as questões que

lhe foram trazidas, notadamente diante da característica da universalidade de

determinados pronunciamentos, cujas bases se estenderão além do caso posto, para

também situações futuras calculadas e não calculadas. E para que se possa examinar

349 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 484-486. 350 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Ed., 1997, p. 33. 351 A propósito: “Embora construída com o escopo de interpretar a Constituição, a teoria de Peter Häberle deve ser aplicada, na medida do possível, também para a interpretação da legislação infraconstitucional”. KREBS, Hélio Ricardo Diniz. Sistema de precedentes e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 188.

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tais pronunciamentos judiciais no futuro e deles se extrair os elementos orgânicos do

precedente, a ratio decidendi e a os fatos relevantes, devem os Tribunais bem cumprir a

missão institucional no sentido de fundamentar de forma adequada as suas decisões,

observando-se fielmente o que dispõe o § 1º do art. 489 do CPC 2015.

Enfim, decide-se sobre uma situação passada, com olhar no retrovisor para

solucionar o caso posto, mas com direção ao futuro. Diante da sistemática do Direito

Processual Civil concebido com o Novo Código, não se pode admitir que determinadas

decisões judiciais têm a sua finalidade restrita à solução do caso que lhe foi posto. De

forma genérica, pode-se dizer, a tomada da decisão jurídica deve guardar um elemento

ético de coerência futura, o que deve ser tomado em conta pela Administração Pública,

pela exigência de agir de forma impessoal (princípio da impessoalidade), bem como

pelo Poder Judiciário.

Há ainda um problema de ordem prática.

O precedente será identificado a partir do estudo do caso, da fundamentação

fundante do pronunciamento emitido pelo Tribunal. Não se admite mais a mera inserção

de ementa ou de alguma parte do acórdão, mas exige-se análise das razões em seu

conjunto. Trata-se de técnica diferenciada, que poderá contar com o auxílio do próprio

acórdão, que indica as situações em que aplicada a regra jurídica,352 excluindo-se

outras,353 ou então ser exclusiva do intérprete diante dos casos que lhe foram

apresentados.

Não obstante a técnica adequada seja a análise do precedente diante do caso

que for apresentado, não se pode desconsiderar que seja possível extrair, desde já,

apontamentos óbvios, a serem aplicados como normativa para casos futuros,

interpretados a partir de princípios.

352 Hélio Ricardo Diniz Krebs indica uma hipótese em que o Superior Tribunal de Justiça assim o fez, ao julgar a legalidade da tarifa de abertura de crédito (TAC), da tarifa de emissão de carnê (TEC), da tarifa de cadastro (TC) e do financiamento do imposto sobre operações financeiras (IOF), quando “a Corte Superior acabou fixando parâmetros com base nos quais se deverão analisar a legalidade de qualquer tarifa bancária, e não só aquelas objeto daqueles recursos (TAC, TEC e TC)”. In: Sistemas de precedentes e Direitos Fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 193. 353 O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 669.069, Relator Ministro Teori Zavascki, por maioria, decidiu pela prescritibilidade das ações de ressarcimento por danos causados ao erário, tese essa, no entanto, que não alcança atos decorrentes de crime e de improbidade administrativa, que não foram objeto do recurso.

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Por exemplo, da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconhece a

prescritibilidade da pretensão indenizatória em ação de regresso contra servidores,

admite-se a fixação de regra pela própria Administração Pública direcionada aos seus

agentes, no sentido de, a um só tempo, não efetuarem a cobrança de tais valores se já

decorrido prazo quinquenal e, no mesmo sentido, de providenciarem a denunciação da

lide dos agentes públicos quando do ajuizamento das ações indenizatórias em face das

pessoas jurídicas de direito público, pois, diante de possível demora no julgamento

destas, tem-se a impossibilidade de voltar-se a Administração aos causadores do

evento que respondem em decorrência de sua culpa.

Trata-se de interpretação antecipada, informada pelos princípios da supremacia

do interesse público, da indisponibilidade do interesse público e da moralidade pública.

Para tanto, a Administração Pública, diante do precedente judicial, examinaria se

eventuais consequências não previstas (ou não calculadas) poderiam ser atingidas pela

regra jurídica estabelecida.

Nessa linha de ideias, formado o precedente, como previsto pela lei, tem a sua

fundamentação papel importantíssimo na projeção futura e universal da ratio decidendi,

permitindo-se a fixação de normas de conduta internas pelos jurisdicionados e pela

Administração Pública, sendo importante o conhecimento da técnica jurídica de manejo

dos precedentes, de modo a operacionalizá-los adequadamente.

8. Os precedentes no CPC de 2015

8.1 Apontamentos preliminares

Da leitura dos incisos do caput do art. 927 do Novo Código de Processo Civil,354

constata-se que o legislador indicou vários pronunciamentos, que devem ser

354 Art. 927. Os juízes e os Tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal

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observados pelos juízes e Tribunais, sem que entre eles houvesse homogeneidade. Há

menção a processos objetivos de controle de constitucionalidade, processos subjetivos,

súmulas e orientação de plenário ou de órgão especial, sendo omissa a questão da

vinculação à ratio decidendi.355

Lendo atentamente cada uma das hipóteses e procurando sistematizá-las,

Marinoni identificou dois grupos distintos de precedentes: aqueles firmados em controle

de constitucionalidade (inciso I do art. 927); e aqueles firmados em julgamentos de

recursos extraordinário e especial repetitivos.

E, complementando o raciocínio, entendeu que as súmulas, bem como as

decisões proferidas nos incidentes de resolução de demandas repetitivas e de

assunção de competência não integram o gênero precedentes.356

Nesse passo, conclui Marinoni que o art. 927, na verdade, traz apenas alguns

precedentes, “além de súmulas e controversas decisões tomadas em incidentes de

natureza erga omnes, que deverão ser observados pelos juízes e tribunais”.357

Mitidiero também tece considerações a respeito do art. 927 do NCPC,

enfatizando que ele é meramente exemplificativo, pois existiriam outros

pronunciamentos que, embora possam ser precedentes, não se encontram previstos no

aludido dispositivo. Ao mesmo tempo, fez previsão de casos que não podem ser

enquadrar como precedentes.358

Nesse passo, ressalta três aspectos importantes: a) no inciso I, do art. 927,

tem-se que não são propriamente as decisões do STF que se constituem em

precedentes, mas as “razões determinantes da fundamentação da decisão em controle

abstrato de constitucionalidade”359; b) o art. 927 não indicou hipóteses em que é

possível a formação de precedente, como o recurso extraordinário e o recurso especial

não repetitivos, bem como os embargos de divergência, que não podem ficar de fora

desse quadro, na sua concepção, na medida em que também garantem a unidade do

direito; c) e, tal como Marinoni já alertara, “precedentes e súmulas estão em níveis

Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. 355 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 284-285. 356 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 288. 357 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 288. 358 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação Op. Cit., p. 108. 359 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. Op. Cit., p. 107.

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distintos”. Nesse sentido, em seu sentir, súmulas apresentam-se como “extratos” dos

precedentes. O que vincula não é a súmula, mas o precedente que lhe deu origem.360

Fredie Didier, Rafael Alexandria de Oliveira e Paula Sarno Braga também

destacam que o rol do artigo 927 não é taxativo, mas, diferentemente dos demais

autores até aqui analisados, não descartam nenhuma das hipóteses lá mencionadas.361

A propósito, relatam que, embora não conste do rol do art. 927 do NCPC,

também devem ser consideradas precedentes as súmulas de cada um dos Tribunais,

por força do que está contido no art. 926 do NCPC, no sentido de que é dever dos

Tribunais uniformizar sua jurisprudência, editando súmulas.362 Como reforço

argumentativo, tem-se o contido nos artigos 332, IV – admissibilidade da improcedência

liminar de pedido contrário a súmula do Tribunal de Justiça sobre direito local – e 955,

parágrafo único, ambos do NCPC, sendo este último o dispositivo que autoriza o

julgamento monocrático de conflito de competência fundado em súmula do próprio

Tribunal.

Como já enfatizado, alinhados aos princípios federalista e da simetria, adota-se

neste trabalho a concepção pela qual dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais

Federais podem ser emanados precedentes, e não simplesmente jurisprudência

vinculante.

Na sequência, serão examinadas cada uma das hipóteses mencionadas no art.

927 do NCPC, lá inserindo o entendimento que aqui será adotado.

8.2 Decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de

constitucionalidade

Em conformidade com o art. 102, I, da CF, compete ao STF processar e julgar

originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou

estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal,

360 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 109. 361 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 461. 362 Nesse sentido, o Enunciado n. 169 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Os órgãos do Poder Judiciário devem obrigatoriamente seguir os seus próprios precedentes”.

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atribuindo-se às decisões definitivas de mérito eficácia contra todos e efeito vinculante,

relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e

indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, §2º CF).

Considerando-se o efeito vinculante, tem-se que a ratio decidendi da decisão

proferida pelo Supremo Tribunal Federal tem eficácia obrigatória e, por isso, deve ser

observada pelos juízes e Tribunais.363

Aliás, sobre essa vinculação à ratio decidendi, Marinoni lembra da decisão

proferida na Reclamação n. 1.987, oportunidade em que se assentou que “o ato

impugnado não apenas contrastou com a decisão definitiva proferida na ADIn 1.662,

como, essencialmente, está em confronto com os seus motivos determinantes”, estando

claro para o autor que a decisão reclamada havia negado a ratio decidendi da aludida

ação direta de inconstitucionalidade.364

Diante dessa constatação, conclui o autor que a ratio decidendi da ADIn de uma

lei municipal X deverá ser aplicada à lei Y, de outro município, se houver coerência

entre os dois atos impugnados, motivo pelo qual o juiz deve deixar de aplicar a lei Y em

razão de sua inconstitucionalidade.365

8.3 Súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal e Súmulas do STF em matéria

constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional

Os incisos II e IV do art. 927 do NCPC estabelecem que os juízes e Tribunais

devem observar as súmulas vinculantes, bem como as súmulas do STF em matéria

constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional.

363 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 285. Nesse sentido também: DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 464. E, ainda, o enunciado n. 168 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, in verbis: “Os fundamentos determinantes do julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF caracterizam a ratio decidendi do precedente e possuem efeito vinculante para todos os órgãos jurisdicionais”. (Grupo: Precedentes; redação revista no IV FPPC-BH). 364 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 285. 365 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 285. Fredie Didier, Rafael Alexandria de Oliveira e Paula Sarno Braga ilustram a sua explicação com o mesmo exemplo, indicando que “não se pode confundir o efeito vinculante do precedente com o efeito vinculante que, em determinadas hipóteses, decorre da coisa julgada”.

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As súmulas foram introduzidas no Brasil com a finalidade de facilitar o trabalho

do Tribunal, sem preocupação com a coerência da ordem jurídica ou mesmo de buscar

a segurança jurídica.366

Não há propriamente uma diferenciação, em sua substância, entre as súmulas

vinculantes e as demais súmulas. A real diferença entre elas consiste na

admissibilidade, na súmula vinculante, da reclamação contra os atos da Administração

Pública e das decisões judiciais (art. 103-A, § 3º, da CF/88).

Importante verificar, no entanto, que as súmulas, geralmente, foram editadas

após a formação de um precedente. Estão ligadas diretamente a ele. Ou, como

afirmado doutrinariamente, “observar tais enunciados é observar a ratio decidendi dos

precedentes que os originaram”.367

Portanto, enquanto a súmula se apresenta como uma condensação da tese

jurídica, sem demonstração dos elementos fáticos e desenvolvimento da argumentação

que conduzisse a uma determinada concepção, tem-se que ela não se constitui

propriamente em um precedente. Este consistirá, na verdade, no pronunciamento

jurisdicional emitido no caso concreto, cuja regra jurídica pode ser aplicada aos casos

futuros, desde que haja coerência fática entre eles.

Por isso, no sentir de Marinoni, as súmulas não se constituem em precedentes,

mas em “mero guia de interpretação”, desprovidas de qualquer compromisso com a

unidade do direito.368 De outro lado, Fredie Didier, Rafael Alexandria de Oliveira e Paula

Sarno Braga, embora também afirmem que a vinculação existe para com o precedente,

destacam que se fala em “observância do enunciado apenas por uma opção pela

brevidade e pela facilitação do discurso”.369

8.4 Incidente de resolução de demandas repetitivas

366 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 309. 367 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 464. 368 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 310. 369 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit.. 464.

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Sem correspondente no CPC de 1973, o incidente de resolução de demandas

repetitivas foi criado justamente para contingenciar essa litigiosidade, constituindo-se

em uma das “grandes apostas do novo diploma processual”.370

Trata-se, como destacado por Marcos de Araújo Cavalcanti, de um “processo

de competência originária dos tribunais com natureza jurídica de incidente processual

coletivo”, pois tutela interesses individuais homogêneos.371 Tem por objetivo regular

“casos que já surgiram ou podem surgir em face de determinado litígio”.372 Não tem

natureza recursal, como a própria designação indica.

O instituto possui três pilares fundamentais: i) isonomia, pelo qual se exige

tratamento igualitário para a solução de litígios isomórficos; ii) a segurança jurídica, pois

se busca a uniformidade das decisões judiciais e, iii) prestação razoável em termos de

tempo em que prestada. 373

Para Nelson Nery Júnior e Georges Abboud, a decisão proferida no incidente

mencionado não se refere ao stare decisis do sistema do common law, pois “constitui

regra decisória de uma pluralidade de casos concretos”. Nesse sentido, emitem a

seguinte crítica: “Vale dizer, o stare decisis à brasileira é encarado muito mais como um

instrumento para gestão de processos nos Tribunais Superiores do que um mecanismo

apto a privilegiar a casuística, a igualdade e a coerência do ordenamento”.374

Em outra oportunidade, Georges Abboud e Marcos de Araújo Cavalcanti

destacaram que

O objetivo desse incidente processual é conferir um julgamento coletivo e abstrato sobre as questões unicamente de direito abordadas nas demandas repetitivas, viabilizando a aplicação vinculada da tese jurídica aos respectivos casos concretos. Com isso, procura-se, de uma só vez, atender aos princípios da segurança jurídica, da isonomia e da economia processual.375

370 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do Novo Código de Processo Civil. Op. Cit., p. 283. 371 Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 504. 372 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 321. 373 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do Novo Código de Processo Civil. Op. Cit., p. 285. 374 NERY JÚNIOR, Nelson. ABBOUD, Georges. Stare decisis vs direito jurisprudencial. In. Novas tendências do Processo Civil: estudos sobre o Projeto do novo Código de Processo Civil. FREIRE, Alexandre. [et. Al] (coords.). Salvador: Juspodivm, 2013, p. 507. 375 Inconstitucionalidade do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista de Processo. Vol. 240. São Paulo: RT, 2015, p. 222.

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No sentir de Marinoni, o incidente de resolução de demandas repetitivas é

voltado, unicamente para os “casos idênticos”. Não haveria preocupação de se garantir

a unidade do direito. Não estaria presente a regra da universalidade. Por esse motivo, a

solução do incidente de resolução de demanda repetitiva não constituiria um

precedente, segundo sustenta.

Diferentemente, Fredie Didier, Rafael Alexandria de Oliveira e Paula Sarno

Braga não fazem essa diferenciação, entendendo que é possível formar-se precedente

no âmbito do Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, inserido no âmbito do

que denominam de microssistema de formação concentrada de precedentes

obrigatórios, como uma característica brasileira, de modo que “nem todo precedente

pressupõe um procedimento específico de produção”.376

A respeito da fundamentação da decisão proferida no incidente e da formação

do precedente, por seu turno, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer

afirmaram que

A decisão proferida no incidente de resolução de demandas repetitivas formará precedente, para aplicação da tese aos processos pendentes e futuros, de modo que deverá ser exaustivamente fundamentada, atingindo um padrão decisório que tenha esgotado os argumentos capazes de influenciar na sua formação.377

Fredie Didier, Rafael Alexandria de Oliveira e Paula Sarno Braga fazem, ainda,

importante diferenciação

Exige-se que o processo de formação do precedente se dê nesses termos, pois na sua interpretação e na sua aplicação a casos futuros e similares bastará que o órgão julgador verifique se é ou não caso de distinção ou superação (art. 489, § 1º, V e VI, 927, § 1º, CPC); se for, o precedente não será aplicado; se não for, o precedente será aplicado e a fundamentação originária do julgamento do incidente se incorporará automaticamente à própria decisão que o invoca, sem a necessidade de repeti-la ou reelaborá-la, razão pela qual não é exigível a observância ao art. 489, § 1º, IV, CPC. Essa é uma das facetas da inércia argumentativa própria de um sistema de precedentes, conforme examinado.

Somente assim o sistema ganha o mínimo de racionalidade.378

Embora Cássio Scarpinella Bueno não reconheça a autoridade vinculante dos

precedentes brasileiros, conforme já salientado, por entender que isso careceria de

376 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 466. 377 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do Novo Código de Processo Civil. Op. Cit., p. 285. 378 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 466

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prévia previsão na Constituição Federal, salienta que o incidente de resolução de

demandas repetitivas é

vocacionado a desempenhar, na tutela daqueles princípios, da isonomia e da segurança jurídica, papel próximo (e complementar) ao dos recursos extraordinários e especiais repetitivos (art. 928, II). Não é por acaso, também, o destaque que a ele dá o inciso III do art. 927, que dispensa a menção aos diversos casos em que, naquele contexto, o incidente é referido ao longo de todo o CPC de 2015.

Conforme já salientado, o conteúdo do acórdão abrangerá a análise de todos os

fundamentos suscitados relativos à tese discutida, favoráveis ou contrários (art. 984 §

2º CPC), sendo possível, posteriormente, a revisão da tese jurídica firmada no incidente

(art. 986 CPC).

Do julgamento do mérito do incidente, será cabível a interposição de recurso

extraordinário ou especial conforme o caso (art. 987 CPC), inexistindo previsão legal

sobre os legitimados para tanto.

Por esse motivo, já se entendeu pela legitimação ampla para tanto, por todos

aqueles que forem afetados pelo efeito vinculante do pronunciamento, sob o

fundamento da regra contida no art. 996 do CPC, bem como em decorrência do

contraditório participativo.379

Por tudo o que foi até aqui sobre o incidente de resolução de demandas

repetitivas, considerando-se o dever do Tribunal de julgá-los para uniformizar a

aplicação de tese jurídica, tem-se que o incidente pode ser considerado como um

precedente, mas dotado de uma particularidade específica: por meio dele, fixa-se uma

“tese jurídica generalizável e abstrata, com força vinculante”.380

Este fator não gera a impossibilidade de se estar diante de um precedente, tal

como já mencionado nas ações de controle de constitucionalidade, pois, haverá a

vinculação aos seus motivos determinantes, em especial ao poder público, se o

incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido

ou autorizado (art. 985 § 2º).

379 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do Novo Código de Processo Civil. Op. Cit., p. 296. 380 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do Novo Código de Processo Civil. Op. Cit., p. 296.

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8.5 Recurso extraordinário repetitivo

O Código de Processo Civil, ao prever que os recursos extraordinários

repetitivos devem ser observados por juízes e Tribunais, sinalizou querer impedir “que

os demais órgãos do Poder Judiciário neguem os motivos determinantes da decisão”.381

Trata-se de vinculação à ratio decidendi, sem, porém, a coisa julgada erga omnes.

Marinoni aponta um importante ponto no efeito vinculante nos controles

concentrado e difuso de constitucionalidade emanados do Supremo Tribunal Federal.

Para o aludido autor, esse ponto consiste no entendimento de que o que vincula é a

ratio decidendi, até porque, referindo-se à interpretação da Constituição, a eficácia dos

fundamentos deve ir além do caso concreto, privilegiando-se a força normativa da

Constituição.382

A Emenda Constitucional n. 45/2004, entre outras importantes alterações,

inseriu o requisito da repercussão geral para a admissibilidade do recurso

extraordinário, de modo a preservar a função da Corte Suprema como garantidora da

unidade do direito. No mesmo sentido, o CPC 2015 indicou que o STF não conhecerá,

em decisão irrecorrível, de recurso extraordinário quando a questão constitucional nele

versada não tiver repercussão geral (art. 1.035, caput).

Como corolário da repercussão geral, exige-se que a questão reflita conteúdo

relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapasse os

interesses subjetivos das partes do processo (art. 1.035, § 1º do NCPC).

Diante desses dados, reconhece-se relevância e transcendência aos julgados

proferidos pelo STF em controle difuso, motivo pelo qual emite a Corte precedentes

constitucionais de eficácia vinculante.383

8.6 Recurso especial repetitivo

381 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 297. 382 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 299. 383 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 307.

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Compete ao Superior Tribunal de Justiça a missão de decidir questões

destoantes sobre uma questão federal, constituindo-se as suas decisões em

paradigmas, inseridos no contexto federativo, que devem ser observadas pelos juízes e

Tribunais. Constituem-se em precedentes.

Ora, sendo possível extrair de um texto mais de uma norma jurídica, permite-se

aos juízes decidirem de maneira diversa as questões jurídicas que lhes são levadas,

ainda que como denominador comum exista a mesma lei.

Nesse sentido, emerge a função do Superior Tribunal de Justiça, enquanto

Corte Suprema: “definir o sentido atribuível à lei federal mediante ‘razões apropriadas’,

racionalmente aceitáveis aos olhos dos jurisdicionados”. Trata-se, nas palavras de

Marinoni, de uma Corte de interpretação.384

Não obstante não possa ser refutado o acesso a esta Corte por meio de

obstáculos ilegítimos (jurisprudência defensiva), é óbvio que há necessidade de

existirem filtros para que os recursos sejam analisados por esta Corte, até porque o seu

papel não é de revisão, mas de interpretação jurídica, buscando-se definir-se o sentido

da lei, o que valerá para o caso concreto e também para os casos futuros.

Por isso, a eficácia vinculante do precedente do Superior Tribunal de Justiça, tal

como entende Marinoni, decorre da lógica.385

Ocorre, porém, que os recursos no STJ são julgados por turmas, que emitem os

seus pronunciamentos. Estes pronunciamentos não podem vincular as demais turmas,

por não surgir de órgão jurisdicional superior. Nesse sentido, é possível que haja

confronto entre os pronunciamentos proferidos. Tal conclusão decorre da eficácia

horizontal do precedente.

Porém, estão as Turmas sujeitas à observância das decisões das Seções ou da

Corte Especial, salvo se verificar a necessidade de superação do precedente, deixando

para aqueles a última palavra.386

O recurso repetitivo é “mecanismo voltado ‘a criação de um precedente

especialmente preocupado com casos pendentes, ao passo que os precedentes, em si,

miram os casos futuros, objetivando dar tutela à previsibilidade no direito”.387

384 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 315. 385 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 316. 386 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Op. Cit., p. 317.

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8.7 Precedentes oriundos do Plenário ou do Órgão Especial

Admitindo-se a formação de precedentes no âmbito do Supremo Tribunal

Federal, do Superior Tribunal de Justiça e, também, dos Tribunais Regionais Federais e

Tribunais de Justiça (o que é negado por Daniel Mitidiero em relação a estes dois

últimos, empregando-se, então, a menção de que emitem jurisprudência vinculante),

tem-se que os pronunciamentos oriundos do plenário ou do órgão especial desses

Tribunais também têm efeito vinculante,388 como pode ocorrer, por exemplo, com a

ação direta de inconstitucionalidade julgada pelo colegiado maior de Tribunal de

Justiça.

9. Técnicas de manuseio dos precedentes

Considerando-se que a análise das técnicas próprias ao manejo dos

precedentes está intimamente ligada a questões teóricas e práticas, procurando-se

evitar a repetição, a distinção e a superação serão tratadas com mais profundidade no

Capítulo 5.

387 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 332. 388 DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Op. Cit., p. 467.

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CAPITULO 3. OS PRECEDENTES, A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A

LITIGIOSIDADE

1. A constituição do sistema de precedentes e a Administração Pública

Todos os movimentos ocorridos a partir da Constituição Federal até o advento

do Novo Código de Processo Civil representaram importantes passos em busca de um

novo paradigma, que se alicerça na unidade do direito e irradia luzes por todos os

ramos da ciência jurídica, sobretudo ao Direito Processual Civil e ao Direito Processual

Público.

Todo esse conjunto normativo confere particularidades próprias a esse novo

modelo, que, como já visto, pode ser compreendido como um sistema.

De fato, o intuito de respeito à jurisprudência não foi encampado no grau

necessário nem mesmo pelos próprios julgadores que, volte e meia, decidem casos

concretos e semelhantes valendo-se de medidas diferentes, acreditando exercer a sua

autonomia e a Justiça, porém, proporcionando a diferenciação entre iguais do ponto de

vista da relação jurídica que é apresentada ao Poder Judiciário.

Foi necessário que o legislador, por isso, atribuísse a autoridade do precedente

a determinados pronunciamentos, conforme se admitiu no Capítulo 2.

Da mesma forma, outros arquitetos de decisões jurídicas emanadas de outros

Poderes também deixaram de proporcionar decisões justas pela inobservância concreta

da igualdade material, na medida em que não conferiram tratamento igualitário às

massas (coletividade de indivíduos) pelo simples fato de que os seus componentes não

se valeram da jurisdição pública.

E assim, a Administração Pública de um modo geral (não só a Administração

inserida no Executivo, como também no Judiciário e no Legislativo, como podem provar

as várias ações propostas por servidores do Poder Judiciário com a finalidade de que

lhes seja reconhecido direito já assegurado pelos Tribunais, mas negado no âmbito

administrativo do próprio órgão diretivo), vinculada aos princípios constitucionais, deixou

também de respeitar, concretamente, a jurisprudência.

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Passou a Administração Pública a conceber três grupos diferentes de

administrados: o primeiro, daqueles que se valeram do processo (instrumento do

próprio Estado) e buscaram a satisfação de um direito (como ocorre, a título de

exemplo, com a parcela da população que, ante a negativa da Administrativa, socorre-

se do Poder Judiciário para determinar-lhe a entrega de medicamento, não obstante

todos os julgados existentes a respeito); o segundo, daqueles que não buscam tal

satisfação, permitindo ao poder público arriscar que uma parte dessas pessoas se

conforme e outra parte não exerça a pretensão a tempo, ocorrendo a prescrição; e o

terceiro, dos demandados pelo poder público, que, muitas vezes, são acionados com

fundamento em tese desconforme com a orientação judicial prevalecente.

Essa situação de desigualdade gerada, de imediato, pode até representar

economia de recursos financeiros à Administração Pública, pois posterga o

cumprimento da obrigação, mas, em contrapartida, a ela adiciona custos de grande

monta para o futuro e encampa prática não amparada pela ética.389

Nesse cenário, estão compreendidas relações jurídicas tributárias, ambientais,

funcionais, trabalhistas, econômicas, regulatórias etc., nas quais ainda se trava uma

luta constante entre a concepção do justo sob os pontos de vista judicial e

administrativo, aumentando-se a tensão entre os Poderes, a insatisfação dos

jurisdicionados e administrados e a insegurança jurídica, colocando-se a Administração

Pública numa posição adversarial e entre os principais agentes litigantes nos Tribunais.

De fato, conforme estudo O Uso da Justiça e o Litígio no Brasil, realizado pela

Associação dos Magistrados Brasileiros, abrangendo dados estatísticos dos Tribunais

389 Toma-se, aqui, mais uma vez, o exemplo das ações para entrega de medicamentos pelo poder público. Para cada uma delas, há o custo para o exercício da pretensão (Defensoria Pública e nomeação de advogados), do exercício da defesa e acompanhamento judicial (Advocacia Geral da União, Procuradorias dos Estados e Procuradorias Municipais), do Poder Judiciário (impulso oficial do processo, prática de atos processuais etc.) e da própria Administração Pública executora, que adquire o medicamento a um custo muito superior e com vários percalços, sujeita a multa pelo inadimplemento etc. Nota-se o ambiente complexo e custoso para dar voz ao administrado quando a própria Administração Pública já conta com milhares e milhares de decisões judiciais que determinaram a entrega do medicamento. Não se quer dizer, com isso, que a questão é simples. Pelo contrário. Ao assumir integralmente a demanda medicamentosa, pelo extenso número de habitantes, assumirá conta considerável. Porém, terá condições de prestar atendimento adequado e gerenciado aos cidadãos. Ao mesmo tempo, gozará de prestígio suficiente para corrigir a rota de omissão e fazer com que se perceba a existência do intuito de prestar a devida assistência farmacêutica aos seus cidadãos, de acordo com a estrita necessidade. E o número de relações jurídicas envolvendo a Administração Pública dá a dimensão do número de casos em que deveria haver a aplicação da jurisprudência e dos precedentes.

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de Justiça dos anos de 2010 a 2013, constata-se a alta concentração de litigiosidade

em um pequeno grupo de agentes, sugerindo-se, na ocasião, que os agentes públicos

e privados “revisassem os seus procedimentos”.390 Esta concentração é representada

pelo seguinte quadro:

O mesmo estudo apontou que a Administração Pública está incluída entre os

agentes litigantes que concentram o maior número de ações. A propósito, em onze

Unidades Federativas, o poder público municipal, estadual e federal tem a maior fatia

do número de ações promovidas por este grupo. Também no polo passivo e em

segundo grau, a Administração tem participação considerável, geralmente apontada em

segundo lugar nas estatísticas, atrás das instituições financeiras.

Particularmente em relação ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

também foi constatado o alto grau de concentração de processos, sendo que onze

demandantes são responsáveis pela propositura de mais da metade de processos entre

os cem maiores litigantes. O poder público Municipal aparece em primeiro lugar,

enquanto o Estadual em terceiro.

390 http://www.amb.com.br/novo/?amb-na-midia=pesquisa-da-amb-o-uso-da-justica-e-o-litigio-no-brasil-e-destaque-na-midia. Acesso em 01.05.2016.

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No polo passivo, por sua vez, oito partes concentram mais de 50% dos

processos, ocupando o INSS a segunda posição, enquanto o poder público Estadual a

terceira posições, conforme quadro abaixo:391

No âmbito do segundo grau deste Tribunal, o fenômeno de concentração

alcança índice maior. Ou, conforme relatado na pesquisa: “apenas seis demandantes

do polo ativo figuraram em mais de 50% dos processos distribuídos no Tribunal durante

os anos de 2010 a 2013, e sete no polo passivo (...)”, ocupando a Fazenda do Estado

de São Paulo o primeiro lugar, como recorrente, e segundo lugar, como recorrida.392

Como se vê, sem qualquer dúvida, a Administração Pública ocupa papel central

no contexto da judicialização, o que deriva de vários fatores, como a quantidade de

matérias tratadas e o próprio papel concentrador do Estado, a adoção de

391 http://www.amb.com.br/novo/?amb-na-midia=pesquisa-da-amb-o-uso-da-justica-e-o-litigio-no-brasil-e-destaque-na-midia. Acesso em 01.05.2016. 392 http://www.amb.com.br/novo/?amb-na-midia=pesquisa-da-amb-o-uso-da-justica-e-o-litigio-no-brasil-e-destaque-na-midia. Acesso em 01.05.2016.

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procedimentos administrativos muitas vezes inadequados,393 a tentativa de recuperação

de valores não pagos relativos à dívida ativa e, certamente, a não observância da

jurisprudência (e, agora, dos precedentes).

A observância dos precedentes, nesse contexto, será um fator que

proporcionará a redução da litigiosidade, sobretudo por projetar, para o futuro, a norma

de conduta a ser seguida pelos cidadãos e pela própria Administração Pública, nos

exatos limites e com observância da atual conformação do princípio da separação de

Poderes e no sentido de que compete ao Poder Judiciário o papel criador do Direito,

partindo-se da análise do texto legal, resolvendo o caso concreto e criando norma

jurídica aplicável para casos futuros.

Ocorre que a redução da litigiosidade, embora seja um fator positivo e

importante, por si só, não justifica a adoção de conduta pela Administração Pública de

respeito à jurisprudência. Na verdade, isso se consolida como prática ideal à boa

administração pública, na medida em que assegura a igualdade (impessoalidade), a

moralidade e a segurança jurídica.

Não se quer, com essa afirmação, reduzir o papel da Administração Pública (e

de sua Advocacia Pública, consequentemente) à mera executora de ordens judiciais,

pois a própria interpretação da jurisprudência e observância de precedente há de ser

realizada caso a caso e guiada pela supremacia do interesse público.

393 Com o advento do Novo Código de Processo Civil, necessitará estar a Administração Pública alerta ao quanto está disposto no art. 15, como um meio de que não haja aumento considerável da litigiosidade. Com efeito, dispõe o dispositivo narrado, na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições do Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. De acordo com entendimento doutrinário, a “aplicação subsidiária ocorre também em situações nas quais não há omissão. Trata-se, como sugere a expressão “subsidiária”, de uma possibilidade de enriquecimento, de leitura de um dispositivo sob um outro viés, de extrair-se da norma processual eleitoral, trabalhista ou administrativa um sentido diferente, iluminado pelos princípios fundamentais do processo civil”. De outro lado, a “aplicação supletiva é a que supõe omissão. Aliás, o legislador, deixando de lado a preocupação com a própria expressão, precisão da linguagem, serve-se de duas expressões. Não deve ter suposto que significam a mesma coisa, se não, não teria usado as duas. Mas como empregou também a mais rica, mais abrangente, deve o intérprete entender que é disso que se trata”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 75. Ora, é conhecido que, em grande parte dos procedimentos administrativos o administrador peca ao não fundamentar adequadamente a sua decisão, deixando de expor adequadamente a sua argumentação jurídica, com inobservância do princípio da fundamentação analítica encampado pelo NCPC, como projeção do princípio constitucional, o que é aplicável aos procedimentos administrativos.

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Dessa maneira, a argumentação jurídica encampada nas decisões jurídicas da

Administração Pública deverá levar em conta vários elementos, sobretudo se há

jurisprudência sobre o tema, bem como a vinculação ao precedente.

2. A sujeição da Administração Pública ao Direito

Propõe-se dar início a este item a partir de um problema de ordem prática,

resultante da interpretação da lei pela Administração Pública e posterior fixação de tese

contrária pelo Supremo Tribunal Federal.

Em consonância com o art. 37, § 5º da Constituição Federal, defendia o poder

público a não prescrição da pretensão regressiva de reparação civil por atos ilícitos

praticados por seus agentes.394

O Supremo Tribunal Federal, porém, em Sessão Plenária, no julgamento do

Recurso Extraordinário n. 669.069/MG, por maioria, reconheceu a prescritibilidade de

tal pretensão e, apreciando o tema nº 666 da repercussão geral, fixou a seguinte tese:

“é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito

civil”, vencido o Ministro Edson Fachin.

Com tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal enterrou antigo e

consagrado entendimento da Administração Pública, que defendia a imprescritibilidade

de tal pretensão, sem prejuízo da ressalva feita pelo Tribunal Superior no sentido de

que não se analisaria a questão para os casos de improbidade administrativa ou de

prática de crime.

Diante desse panorama, surge a seguinte questão: por conta do advento do

Novo Código de Processo Civil, que determina aos juízes e Tribunais observarem, entre

outros pronunciamentos, “a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais

estiverem vinculados” (art. 927 V), estaria também, além dos órgãos judiciais, vinculada

a Administração Pública à observância interna da tese jurídica vencedora?

394 Tese essa que, embora com assumido desconforto, defendeu Celso Antônio Bandeira de Mello até a 26ª. edição de seu Curso, justificando-se pelas palavras contidas na parte final do § 5º: “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. A partir de então, o doutrinador passou a defender posicionamento diverso, concluindo que “a ressalva para as ações de ressarcimento significa que terão prazos autônomos em relação aos que a lei estabelecer para as responsabilidades administrativa e penal”. In: Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.065.

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Essa questão não é nova, pois já existente por conta das súmulas vinculantes e

das ações de controle de constitucionalidade. Porém, neste momento, com o advento

do Novo Código de Processo Civil, ela ressurge com toda força e em maior amplitude.

Ou seja, o nosso país, integrante da família jurídica de civil law, por vários fatores, teria

encampado o stare decisis, com particularidades próprias.

Em relação ao poder público a questão toma mais corpo, sobretudo diante do

princípio da legalidade administrativa, que impõe à Administração Pública realizar

exclusivamente aquilo que tem amparo na ordem jurídica, bem como do princípio da

separação de Poderes.

No sistema jurídico de common law, o respeito aos precedentes não é imposto

por lei, senão acolhido pelo costume judiciário como um fato histórico, integrante da

própria cultura judiciária. O pronunciamento não nasce com tal autoridade, mas a

adquire a partir da fundamentação e do respeito às decisões anteriores sobre o tema.

Diferentemente, em nosso país, a formação do precedente seguiu estratégia

jurídica diversa e justificável pela tradição da inobservância da jurisprudência, de modo

que o Constituinte derivado reformador e o legislador infraconstitucional não tiveram

outra opção senão exigir a coerência do sistema judicial e prever, entre todos, quais

pronunciamentos seriam de observância obrigatória aos juízes e tribunais.395

Portanto, diferentemente do sistema de common law, foi preciso que o

precedente brasileiro tivesse a sua autoridade reconhecida de forma expressa pelo

legislador, por meio de previsão constitucional e também infraconstitucional, e guiado

por aspirações de efetividade da tutela jurisdicional, observância da igualdade,

segurança jurídica, entre outras. E ao reconhecer a autoridade do precedente, a ordem

jurídica atribui-lhes efeito vinculante.

Assim, no Brasil, o precedente não se forma pelo respeito às decisões judiciais

anteriores, mas pela autoridade conferida pelo legislador, conforme se vê do art. 927 do

NCPC.396

395 “O que o legislador fez foi positivar aquilo que, em outros países, especialmente nos pertencentes à família de common law, acontece com os juízes e tribunais, independentemente de uma lei os obrigando a tanto, que é respeitar as decisões passadas, sobretudo as de Cortes Superiores”. KREBS, Hélio Ricardo Diniz. Sistemas de precedentes e Direitos Fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 180. 396 O tema também mereceu reflexão em outros países de civil law, como a Espanha, cuja Lei de Processamento Civil, após alteração ocorrida em 1984, equiparou a jurisprudência à norma jurídica geral,

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Passa-se, então, ao exame da legalidade administrativa, na busca de resposta

para se saber se o precedente (ou a ratio decidendi) é vinculante para a Administração

Pública.

J. Cretella Júnior destacou que a legalidade se constitui em um princípio maior,

constituindo-se em “limitação do poder administrativo, sendo um elemento do

liberalismo no regime administrativo”.397 Seria ele, então, uma das consequências do

Estado de Direito.

Nesse ponto, Celso Antônio Bandeira de Mello aponta um aspecto diferenciador

entre os princípios da supremacia do interesse público, examinado no Capítulo 1, e o

da legalidade, pois, ao passo que aquele é essencial em qualquer Estado, este é

“específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a

identidade própria”. E, por isso, é o princípio base do Direito Administrativo.398 Em

resumo, importa na

[c]ompleta submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa o cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro.399

E, mais à frente, acrescenta:

Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contém abstratamente nas leis.400

na ordem do fundamento do recurso de “cassação”, porém, não sem críticas: “Mas os caluniadores desta teoria indicam que nada significa que a infração da jurisprudência permita fundamental o recurso de cassação: a jurisprudência não é autônoma; é aplicação da lei e à lei remete. Sua infração é índice da infração dessa lei. A fonte real do Direito não é a jurisprudência, mas sim a “lei jurisprudencialmente interpretada”. TELLA, Maria José Falcón Y. Lições de Teoria Geral do Direito. Tradução da 4ª. ed. Espanhola. São Paulo: RT, 2011, p. 120. 397 In: Curso de Direito Administrativo. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 16. 398 In: Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 100. 399 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 101. 400 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 105.

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Na sua origem, o princípio da legalidade estava vinculado à separação de

Poderes, traduzindo-se na supremacia do Poder Legislativo ao Executivo e nos atos

legislativos aos administrativos.401

Por conta disso, haveria “um sentido de garantia, certeza jurídica e limitação do

poder contido nessa concepção da legalidade administrativa”.402 A lei seria a

“autoridade máxima” para expressar o direito, devendo, por isso, “ser a primeira fonte a

ser pesquisada”.403

Em outros termos, “a lei não era válida pelo seu conteúdo, mas sim porque teria

seguido o procedimento formal completo e adequado anterior à sua elaboração”. E, por

esse motivo, legitimidade e legalidade se identificavam.404

No Brasil, o princípio da legalidade, além de assentar-se na própria estrutura do

Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo, está radicado

especificamente nos arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV, da Constituição Federal.

Pois bem. Da retrospectiva histórica do Direito Administrativo verifica-se que

houve evolução do legalismo primitivo, “sem matizes”, no qual havia confusão entre “o

texto da lei com a juridicidade normativa”, para um legalismo que admita o próprio

Direito Administrativo como uma “totalidade aberta”. Nessa toada, a legalidade deve

conviver com outros princípios e direitos fundamentais.405

No mesmo sentido, também se refere Odete Medauar à ideia de evolução do

princípio da legalidade, destacando de maneira objetiva e clara:

Alguns fatores dessa evolução podem ser apontados, de modo sucinto. A própria sacralização da legalidade produziu um desvirtuamento denominado legalismo ou legalidade formal, pelo qual as leis passaram a ser vistas como justas por serem leis, independentemente do conteúdo. Outro desvirtuamento: formalismo excessivo dos decretos, circulares e portarias, com exigências de minúcias irrelevantes. Por outro lado, com as transformações do Estado, o Executivo passou a predominar sobre o Legislativo a lei votada pelo Legislativo deixou de expressar a vontade geral para ser vontade de maiorias parlamentares, em geral controladas pelo Executivo. Este passou a ter ampla

401 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. Op. Cit., p. 149. 402 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. Op. Cit., p. 149. 403 VIEIRA, Andréia Costa. Civil law e common law: os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Fabris, 2007, p. 219. 404 CARNEIRO JÚNIOR, Amilcar Araújo. Parâmetros do common law para a elaboração de um novo sistema: necessidade de uma atitude de vanguarda. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. Wambier, Teresa Arruda Alvim. (coord.). Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 45. 405 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 70.

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função normativa, como autor de projetos de lei, como legislador por delegação, como legislador direto (por exemplo, ao editar medidas provisórias), como emissor de decretos, portarias e circulares que afetam direitos. Além do mais, expandiram-se e aprimoraram-se os mecanismos de controle de constitucionalidade das leis.406

Por esse motivo, defende Juarez Freitas que a legalidade devidamente

temperada “requer a observância cumulativa de princípios em sintonia com a teleologia

constitucional, para além do textualismo normativo escrito”. E arremata: “a cogência de

outros princípios e a pluralidade das fontes normativas são realidades inelimináveis do

Direito contemporâneo”.407

Propõe o autor, então, que a legalidade seja temperada para a incidência de

outros princípios e que, na hipótese de demora no cumprimento do poder de legislar,

competirá ao Poder Judiciário preencher a lacuna enquanto não surgir lei

regulamentadora, aplicando-se por extensão aquilo que é previsto para as relações

privadas.408

O Mandado de Injunção n. 712-8/PA é leading case perfeito para demonstrar

esta situação, pois, diante da mora legislativa existente, que perdurava há anos, o

Supremo Tribunal Federal, ciente da situação excepcional, assumiu a condição de

legislador e definiu a possibilidade de exercício do direito de greve pelos servidores

públicos.

Na oportunidade, decidiu-se que tal direito não é absoluto. De fato, todo serviço

público é essencial, de modo que a fórmula contida na Lei n. 7.783/1989, de garantir

funcionamento do serviço essencial, não tem aplicação ao setor público. Em razão

disso, definiu-se pela restrição ao exercício desse direito em relação à serviço dito

inadiável.

Interessante que, não obstante tenha ocorrido o julgamento do aludido

mandado de injunção, o próprio Ministro Eros Grau também relatou a Reclamação n.

6.568/SP e, na oportunidade, registrou:

O exame do objeto desta reclamação permitirá a esta Corte esclarecer e demarcar adequadamente o sentido mais correto e a amplitude da decisão proferida no julgamento do MI n. 712. O direito de greve está, sim, integrado ao

406 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. Op. Cit., p. 149. 407 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. Op. Cit., p. 72. 408 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. Op. Cit., p. 80.

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patrimônio jurídico dos servidores púbicos. Dada a índole das atividades que exercem, não é, todavia, absoluto.

Note-se que o Ministro se valeu da posterior Reclamação para esclarecer a

decisão reclamada, em situação que se expande para toda a Administração Pública,

pois vinculante.409

Em suma, expandiu-se a noção do princípio da legalidade, entendida não

apenas como o cumprimento da lei, simplesmente por ter tal natureza, mas também de

“preceitos fundamentais que norteiam todo o ordenamento”,410 compreendendo-se, por

isso, não só a lei formal, como também preceitos de um Estado Democrático de Direito

e os fundamentos e princípios de base constitucional.411 Ou, como assentado por

Teresa Arruda Alvim Wambier:

Portanto, o princípio da legalidade, que chegou a significar o apego quase que exclusivo à letra da lei, hoje significa, num dos seus sentidos, que o juiz deve decidir de acordo com o sistema jurídico. E se sabe que doutrina, jurisprudência, princípios jurídicos podem, sim, fazer com que a norma, que tem de ser seguida, em muito se afaste da literalidade do dispositivo legal correspondente.412

Enfim, a Administração Pública está vinculada ao ordenamento jurídico como

um todo,413 composto de várias fontes normativas formais, quer sejam principais, como

as Convenções Internacionais, a Constituição Federal e as Constituições Estaduais,

quer sejam os diversos atos infraconstitucionais de ordem federal, estadual e municipal,

409 A respeito deste exemplo, no entanto, outra concepção também é externada por Teresa Wambier, no sentido de que se estaria diante de um caso complexo, ou um hard case, que é um “fenômeno que é fruto da pretensão tentacular do direito de tudo disciplinar, inclusive o que seria “antidireito” (!), o que levaria o juiz a criar a solução normativa adequada ao caso409, mas em harmonia com o sistema”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 30. 410 MEDAUAR, Odete. Op. Cit., p. 149. 411 Ao tratar dos institutos pós-modernos introduzidos no Brasil a partir da Constituição (legitimidade, finalidade, eficiência e resultado), Diogo de Figueiredo Neto confirma que ainda existe uma certa resistência à interpretação “caracteristicamente positivista, exageradamente formalista e estritamente atrelada ao conceito de legalidade por subsunção, estranhamente refratária aos acelerados progressos do Direito Público contemporâneo”. In: Quatro Paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência, resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 25. 412 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 28. 413 “Em suma, o direito, se quer cumprir sua função, não pode ser unitário. Ele deve conter instrumentos argumentativos que tornem confortável ao juiz, quando necessária uma outra atitude, afastar-se da letra da lei ou apegar-se a ela. O direito é, assim, resultado da convivência necessária de progressistas e conservadores, jusnaturalistas e formalistas, alternativos e kelsenianos”. COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 109.

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decretos e demais atos.414 Na verdade, “toda interpretação jurídica e aplicação do

direito deve passar por uma espécie de filtragem constitucional para que seja válida”.415

Ou, como demonstrado por Egon Bockmann Moreira, houve a evolução

ampliativa do princípio da legalidade, passando-se desta para a juridicidade,

notadamente a partir da expressão contida no art. 2º, parágrafo único, da Lei n.

9.784/1999, de onde se extrai o dever de atuação “conforme a lei e o Direito”. Para

tanto, afirma o autor:

Pode-se tomar este marco como o instante em que se reconheceu legislativamente o novo tônus que o princípio da legalidade haveria de assumir frente ao Direito Administrativo brasileiro. A partir desse momento, a Administração Pública deve obediência não só ao texto normativo, mas sim à norma construída a partir do texto.416

Desse modo, o modelo simplista do princípio da legalidade não mais se

sustenta, havendo a necessidade de compreensão de todo o ordenamento jurídico,

enquanto sistema, que vive e não é estático. A lei vazia não mais sobrevive

simplesmente pelo poder, exigindo-se substância e normatividade sistêmica.417 O direito

deve ser visto como um sistema normativo que parte da existência de “norma hipotética

fundamental que garanta a possibilidade de conhecer o direito, pois é ela o princípio

ideal que reduz as normas jurídicas a uma unidade absoluta, conferindo-lhes

validade”.418

Portanto, a imposição administrativa não pode derivar exclusivamente da

previsão legal, mas deve estar adequada ao sistema normativo como um todo. A

414 A diversidade de fontes revela a dificuldade do agente público para a identificação do “bloco de legalidade”. Estas dificuldades foram resumidas em três itens: a) “inflação normativa”, diante das várias fontes a serem consultadas para se estabelecer a decisão jurídica adequada; b) multiplicidade das fontes; e, iii) “imperfeições naturais do ordenamento jurídico”. MARRARA, Thiago. As fontes do Direito Administrativo e o princípio da legalidade. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coord.). Supremacia do interesse público. São Paulo: Atlas, 2010, p. 257-258. 415 CARNEIRO JÚNIOR, Amilcar Araújo. Parâmetros do common law para a elaboração de um novo sistema: necessidade de uma atitude de vanguarda. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (coord.). Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 45. 416 MARRARA, Thiago (org.). Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 59. 417 Até por isso, Diogo de Figueiredo Moreira Neto sustenta que legalidade seria insuficiente para este novo Estado, pois “que, sem legitimidade, não existiriam senão Cartas meramente declarativas e formais, que se imporiam não mais que pela força, sem qualquer diferença entre lei e o direito”. In: Quatro paradigmas do Direito Administrativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência e resultado. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 30. 418 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 302.

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presunção de legalidade dos atos administrativos deve pressupor essa adequação do

ato ao sistema normativo, ao ordenamento jurídico, à ordem jurídica vigente,419

interpretável conforme as atribuições ínsitas às autoridades administrativas e

competências constitucionais previstas aos Tribunais, de modo que não é estanque.

Esta conformação é realizada rotineiramente nos âmbitos administrativo (por

meio de pareceres e decisões normativas) e jurisprudencial (por meio das decisões

judiciais). Não mais se admite simplesmente a aplicação da lei de forma isolada, sem

que se encontre amparo substancial na Constituição Federal e nos princípios por ela

amparados.

Frise-se a iniciativa da Administração Pública nesse sentido, por meio dos

órgãos diretivos máximos do Poder, com o mister de fixar entendimento para diminuir o

índice de conflitos internos e externos, como ocorre, por exemplo, com as súmulas

editadas pelo Governador do Estado de São Paulo, encaminhadas pelo Procurador

Geral do Estado (art. 3º, § 4º da Lei Complementar n. 1.270/2015 – Lei Orgânica da

Procuradoria Geral do Estado de São Paulo), que vinculam toda a Administração Direta

e Indireta (§ 6º) (e, por isso, podem ser consideradas precedentes administrativos).420

No âmbito judicial, esta adequação se manifesta fortemente. Com efeito, o

número de súmulas vinculantes editadas no Supremo Tribunal Federal, por si só, já

demonstra a necessidade de ajuste dos atos administrativos aos ditames

constitucionais,421 sobretudo diante do número de verbetes que dizem respeito ao

poder público.

419 Não por outro motivo, o Novo Código de Processo Civil abandonou a fórmula “fiscal da lei”, para prever a atuação do Ministério Público como “fiscal da ordem jurídica” (art. 179), bem como a violação “manifesta de lei” por violar “manifestamente norma jurídica” (art. 966, V). 420 Aliás, como lembrado por Campilongo, “interpretar não é monopólio dos juízes. Advogados, administradores, legisladores e cidadãos em geral estão sempre – por dever de ofício ou simples desempenho de papéis corriqueiros da vida social – interpretando a lei”. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 142. No mesmo sentido, já se apontou que, no pós-positivismo, o “intérprete-aplicador, qualquer que seja, e não apenas o magistrado, é também um conformador da norma aplicada, pois lhe cabe retirar do texto inicial, que é a lei, o comando a ser efetivado, que é o direito, mas não ficar apenas na exegese, pois que também deve integrá-lo com seus próprios subsídios para aperfeiçoá-lo adequadamente à hipótese sob decisão e, necessariamente, enunciar os valores e as razões porque o faz, na interpretação e na integração”. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 24. 421 Das 55 súmulas vinculantes editadas, tem-se que as de números 9, 24, 26, 35, 36 e 45 tratam de matéria penal; as de número 7, 22, 25, 29 e 54 tratam de questões privadas; as demais súmulas tratam de matéria pertinente às pessoas jurídicas de direito público (com exceção da súmula n.30, ainda

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E, frente a tal constatação, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição,

prevalecerá a própria interpretação proveniente do Tribunal, consolidada em

pronunciamento que se assume vinculante (norma), pois, por meio deste ato

interpretativo, tem-se a continuidade do processo criador do direito.422

Até por isso, foi reconhecido, com propriedade, que

há inúmeros fatores pelos quais as decisões dos Tribunais, em conjunto ou separadamente, sumuladas ou não, exercem um papel de crescente relevância para a formação do bloco de legalidade que rege a ação do Estado.423

Considerando o extenso rol de matérias pertinentes à atuação da Administração

Pública como um todo (tributária-fiscal, ambiental, financeira, econômica, sanitária,

penitenciária, funcional, políticas públicas etc.), somado ao próprio papel do Estado

brasileiro e da expansão de movimentos de concretização dos direitos fundamentais e

da interpretação do Direito a partir da Constituição Federal (neoconstitucionalismo),

tem-se a possibilidade de que variadas demandas sejam levadas ao Poder Judiciário,

buscando-se o ajuste das decisões e omissões do poder público ao ordenamento

jurídico como um todo, com o fim de dirimir diversos tipos de litigiosidade (individual,

repetitiva ou coletiva, como adiante será visto), florescendo terreno ideal para a fixação

de padrões decisórios frutos de interpretação adequada do direito e aptos a possibilitar

a observância da igualdade material e da segurança jurídica, como um modelo a ser

praticado também para a esfera privada.

Não foi sem motivo, naturalmente, que o primeiro incidente de resolução de

demandas repetitivas admitido no Brasil, instaurado no Distrito Federal,424 diz respeito à

matéria ligada à execução fiscal, de típico interesse da fazenda pública.425

pendente de publicação. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/Enunciados_Sumula_Vinculante_STF_Resumido.pdf. Acesso em 06.06.2016. 422 “Com isto, podemos identificar a normatividade dos precedentes (caracterizada pelo dever-ser, seu caráter deontológico, portanto, normativo), a sua vinculatividade (demarcada pela sua obrigatoriedade. A lei não contém palavras inúteis e, quando para além dos deveres de estabilidade, coerência e integridade, o dispositivo fala em juízes e tribunais observarão, trata-se de uma vinculação de caráter jurídico) e o seu caráter formal (os precedentes são reconhecidos formalmente como fonte pela legislação processual que determina sua aplicação normativa e vinculante no direito material ou processual). ZANETI JR, Hermes. Op. Cit., p. 409. 423 MARRARA, Thiago. As fontes do direito administrativo e o princípio da legalidade. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coords.). Supremacia do interesse público. São Paulo: Atlas, 2010, p. 252. 424 IDR n. 2016.00.2.013471-4, Relator Desembargador José Divino de Oliveira.

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Por isso, aliado ao fato de que o precedente tem força normativa, deve ser

examinado se a interpretação proveniente do Tribunal, consolidada no precedente, é

fonte normativa e, nesse passo, apta a dar substância a ato proveniente do poder

público no sentido de que este tenha nexo com a legalidade (leia-se: ordem jurídica).

Em outros termos, de se verificar se a interpretação do Tribunal possui caráter

deôntico, obrigatório, vinculante, à própria Administração Pública, de modo que, se não

observado, haveria ato contrário à ordem jurídica e, por isso, apto a ser corrigido.426

Como se depreende do que foi até aqui escrito, retoma-se a questão de se

saber se o precedente é fonte do direito e se tem força normativa.

3. O precedente como fonte jurídica da Administração Pública e os deveres

de estabilidade, integridade e coerência

Como dito no capítulo anterior, assumindo-se uma posição conciliadora e que

se tem como prática, a jurisprudência se constitui o direito para o caso concreto e fonte

jurídica para os futuros. Ocorre que, em relação ao precedente, a tese jurídica vincula a

interpretação dos casos se sobrevierem. E assim também o precedente pode acarretar

na decisão de um caso concreto e será aplicável a outros casos, motivo pelo qual

também é fonte do direito.

Sobre o tema, Georges Abboud defende:

Nessa perspectiva é que, atualmente, a lei e a jurisprudência não devem mais ser confrontadas como fontes jurídicas colocadas em grau diferente de hierarquia, uma vez que, atualmente elas devem ser consideradas fontes

425 http://www.conjur.com.br/2016-jun-08/tj-df-admite-primeiro-incidente-resolucao-demandas-repetitivas, Acesso em 09.06.2016. 426 Conforme já se apontou, em estudo voltado ao Direito Administrativo: “O crescimento da importância dos precedentes como fonte do direito no Brasil é fenômeno hoje indiscutível. Reformas legislativas e constitucionais ampliaram a presença de ações coletivas (tanto em processos subjetivos como objetivos), cujas decisões produzem efeitos para além das partes envolvidas na discussão, criaram mecanismos processuais que facilitam o respeito aos precedentes decididos por instâncias superiores e atribuíram efeito vinculante a determinadas decisões. Nunca estivemos tão próximos de reconhecer os princípios do stare decisis e do binding effect como parte integrante de nosso sistema jurídico”. BERMANN, José Guilherme. (Juris)prudência e sistemas jurídicos: um breve estudo sobre a modéstia judicial na common law e no sistema romano-germânico. In: Revista de Direito Administrativo – RDA – n. 269. São Paulo: Editora FGV, maio/agosto 2015, p. 286.

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complementares, sendo insensata a análise de um estanque em relação à outra.427

É certo que a Administração Pública está sujeita ao princípio da juridicidade, o

que impõe a observância do ordenamento jurídico e a sua interpretação compreendida

nos precedentes.

Afinal, o precedente judicial não é a fonte jurídica exclusiva, mas uma das

fontes jurídicas a ser levada em consideração pelo poder público, empregando-se as

técnicas de aplicação, superação e de distinção adequadas, até porque os deveres de

estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência (leia-se, dos precedentes),

previstos no art. 926 do NCPC428 e dirigidos, por lei, aos Tribunais, estendem-se à

Administração Pública, apta a tomar decisões jurídicas adequadas e sujeita à

observância de princípios constitucionais, entre eles, o da igualdade, relacionado que é

à própria existência do Estado Democrático de Direito, quer em relação aos

precedentes administrativos, quer no que se refere aos precedentes judiciais.

Vale à pena, neste momento, retomar o próprio conceito de precedente.

Como visto acima, precedente não se confunde com jurisprudência e nem

mesmo com decisão. E àquelas observações, acrescenta-se, por oportuna, a

observação de Zaneti Júnior, no sentido de que, ainda que proveniente a decisão de

Tribunal Superior, é possível que a decisão não adquira a autoridade de precedente, o

que poderá ocorrer por duas razões: a) a decisão simplesmente aplicar a lei por inexistir

qualquer controvérsia interpretativa; b) a decisão citar outro pronunciamento anterior,

sem registrar qualquer especificação nova. E, posteriormente, conclui:

Serão precedentes apenas aqueles casos que constituírem acréscimos (ou glosas) aos textos legais relevantes para solução de questões jurídicas. Neste último caso, quando o precedente aplicar a lei sem acrescentar conteúdo relevante, a vinculação decorrerá diretamente da lei. Nem toda a decisão, portanto, será um precedente.429

427 ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbellini. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 2ª. ed. São Paulo: RT, p. 302. 428 “Trata-se de dispositivo que nada mais faz do que enunciar, em forma de regra norteadora da conduta dos magistrados, o princípio da isonomia, prestigiado pela Constituição Federal Brasileira e pelos Estados de Direito Democráticos, em geral”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 1.315. 429 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 310.

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Portanto, a Administração Pública não perdeu a sua vinculação à lei, que é uma

das fontes primárias jurídicas. A observância do texto legal ainda é uma das bandeiras

da própria Advocacia Pública, notadamente no sentido de fazer respeitar o princípio

federalista (e da simetria, consequentemente).

Porém, à medida que o texto legislado passa pela labuta da interpretação

jurídica, permitindo-se ao julgador criar o Direito a ser aplicado a outros casos que

guardarem coerência (fática e jurídica) com o caso-precedente, tem-se a norma-

precedente como sendo obrigatória, vinculante à própria Administração Pública, que

deverá aplicá-la internamente até por conta dos princípios da igualdade e da

impessoalidade.

Deve ser registrado que o “modelo de precedentes não é uma forma de liberar

o juiz da lei, mas um método de vincular a discricionariedade jurídica do juiz na

interpretação da lei”,430 bem como que, “somente ao decretar a inconstitucionalidade da

lei o juiz poderá afastar a sua vinculatividade para aplicar um precedente”.431

E é por esta razão que o estudo do caso deve ocorrer por profissional

qualificado para tanto, que domine as técnicas correlatas ao tema dos precedentes e

que seja capaz de identificar se o pronunciamento é simplesmente uma decisão judicial

que aplique a lei ao caso concreto, sem qualquer interpretação capaz de impor

acréscimo ao Direito, de modo a apenas declarar o texto aplicável ao caso, ou se,

diferentemente, importa neste acréscimo, consoante fundamentação jurídica que possa

ser aplicada a casos futuros.

Aliás, por exemplo, no Direito Tributário, ambiente decisional rígido (conforme

adiante se verá), é possível que o Superior Tribunal de Justiça, simplesmente,

reconheça que a obrigação tributária não está constituída na forma estabelecida no

texto legal e, portanto, não é devido o tributo.

Ainda que julgada sob o rito dos recursos repetitivos e, por isso, elencada entre

as hipóteses mencionadas no art. 927 do NCPC, não há a formação de um precedente

vinculante à Administração Pública, devendo haver avaliação da Advocacia Pública,

430 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 364. 431 ZANETI Jr., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 364.

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talvez em razão de jurisprudência sobre o assunto, se continuará ou não a litigar sobre

determinado assunto.

Em conclusão parcial, se a decisão jurídica emanada do Tribunal simplesmente

repetir o que consta da lei, realizando apenas trabalho de subsunção, sem qualquer

interpretação, não há que se falar em formação de precedente. Pelo contrário, se a

decisão do Tribunal ingressar em labuta interpretativa, tirando-se do texto legal o seu

real significado e fixando a norma aplicável, poderá ter a autoridade de precedente,

desde que prevista no art. 927 do NCPC.

Em adição às razões indicadas no parágrafo anterior, pode-se apontar que a

vinculação da Administração aos deveres de estabilidade, integridade e coerência dos

precedentes, decorre, também, da viabilidade de manejo da ação de reclamação para

garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo

Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, bem como para

garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução

de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência (art. 988, III e IV)

(a Lei n. 13.256/2016 excluiu a possibilidade de reclamação em face de qualquer

julgamento de casos repetitivos, por motivo de política judiciária), compreendendo-se a

aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela

correspondam (§ 4º).432

A estabilidade impede que ocorram modificações bruscas ou desmotivadas do

entendimento fixado. Por isso, deve a Administração Pública, após formado o

precedente, aplicar a lei pertinente, bem como a regra jurídica fixada pelo Tribunal

competente.

Essa aplicabilidade deve se dar por toda a Administração, não se permitindo

que alguns órgãos o façam, enquanto outros neguem validade à regra, sob pena de

ofensa ao princípio da impessoalidade. Além disso, devem as decisões administrativas

432 Em conformidade com o STF, em decisão proferida ainda sob a égide do CPC de 1973, não era cabível a reclamação sob a alegação de descumprimento de precedente sem efeito vinculante (Rcl 20738 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª T., j. 15.03.2016. A regra continuará válida, porém, não mais restrita às ações de controle de constitucionalidade e à ofensa à súmula vinculante, o que, como já defendido, guarda compatibilidade com a regra da simetria. Mais adiante, ao ser analisada a reclamação, será visto que houve ampliação na admissibilidade da reclamação ao admiti-la nos casos de aplicação indevida de tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.

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observar a coerência da regra, aplicando-a aos casos semelhantes em conformidade

com a isonomia.

Deve ser entendido que a exigência de coerência das decisões judiciais merece

ser estendida também à Administração Pública, sobretudo em decorrência de sua

vinculação à igualdade e à impessoalidade. Não se pode negar a normatividade de um

precedente simplesmente por ter havido interpretação diversa do administrador,

exigindo-se que o interessado, obrigatoriamente, dirija-se ao Estado-Juiz para que lhe

seja ampliada a regra jurídica antes reconhecida como legítima.

4. Ambiente decisional e regime administrativo

Como já se teve oportunidade de destacar, as pessoas jurídicas de direito

público estabelecem inúmeras relações jurídicas, criando-se vínculos jurídicos diretos

com os seus agentes públicos, com terceiros a quem se delegou a realização de

determinadas atividades, com os administrados (valendo-se de seu poder de império,

na efetivação de políticas públicas) etc. Enfim, há um vasto campo de vínculos

regulados sob diversos ramos do direito, como o ambiental, tributário, econômico,

funcional etc.

Em virtude disso, as decisões jurídicas sobre esses temas devem levar em

consideração o ambiente decisional adequado, assim entendido, segundo Teresa

Wambier, “a área do direito material ou substancial, com seus princípios e regras, em

que o conflito deve ser resolvido”.433

Como dito, o ambiente decisional deve pautar a decisão jurídica, qualquer que

seja ela, como, por exemplo, uma decisão administrativa proferida em processo

administrativo disciplinar,434 ou mesmo em um pronunciamento judicial. E, a depender

da rigidez do ambiente decisional, tem-se como bem-vinda ou não a criatividade

judicial.

A propósito, ensina Teresa Wambier:

433 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Precedentes e evolução do Direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 53. 434 Que observará os princípios da legalidade, da tipicidade, da culpabilidade, o da ampla defesa e do contraditório, entre outros.

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A decisão do juiz deve, como regra, respeitar as características do ramo do direito material que disciplina o caso posto sob sua apreciação. Se se tratar, por exemplo, de um caso a ser resolvido por normas de direito tributário, princípios de direito tributário hão de ser respeitados: o da estrita legalidade tributária, o da anterioridade, o da capacidade contributiva e tantos outros. Portanto, nestes ambientes decisionais rígidos o sistema de precedentes vinculantes produz bons resultados. Inovações neste ramo do direito não devem fazer-se pela via da “criatividade” judicial. A evolução do direito deve ter lugar por obra da lei. A possibilidade de que a alteração da jurisprudência tenha efeitos “moduláveis”

suaviza o rigor desta regra de divisão de funções.435

Dessa maneira, identifica a doutrinadora a existência de ambientes decisionais

que ora são rígidos, como ocorre com o Direito Tributário, e ora são frouxos, como

exemplo o Direito de Família, em que a mudança jurisprudencial é correlata à alteração

da dinâmica social.436

Nessa linha de ideias, tem-se que as pessoas jurídicas de direito público, em

razão da complexidade de matérias que lhe são pertinentes, estão sob diferentes

ambientes decisionais, de modo que o conceito de estabilidade poderia cambiar a

depender da relação jurídica.

Porém, há um ponto em comum a todos eles: o ambiente decisional próprio do

Direito Administrativo, em que o regime jurídico-administrativo é basilar, notadamente

em relação à profundidade dos princípios que regem a Administração Pública. Não há

relação jurídica de que faça parte qualquer pessoa jurídica de direito público que, de

alguma forma, não seja regida pelo Direito Administrativo e pelo regime jurídico que lhe

é correlato.437

Segundo ensina a doutrina, o Direito Administrativo conta com princípios que

guardam “relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime: o

regime jurídico-administrativo”438, o qual, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,

435 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 17-18. 436 Conforme destacado por Teresa Wambier, “é, em grande parte, por obra da construção dos juízes que o direito de família se modifica, se adapta. Não que neste ambienta não exista a necessidade de uniformização, mas esta se dá por meio da verificação da identidade essencial (e não da identidade absoluta, como ocorre no direito tributário”. In: Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 18. 437 Ao ingressar na análise do tema, Rodrigo Ramina de Lucca registra que o Direito Tributário, o Direito Administrativo e o Direito Processual compõem ambiente decisional rígido, motivo pelo qual “a jurisprudência deve privilegiar a segurança jurídica em detrimento de juízos de valor acerca da correção ou incorreção de precedentes e entendimentos jurisprudenciais já firmados”. In: Limites à mudança jurisprudencial. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. Wambier, Teresa Arruda Alvim. coord. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 1119. 438 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 52.

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tem como princípios mais importantes a supremacia do interesse público sobre o

privado e a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos,439 e, como

consequência deste último, a submissão da Administração também a outros

princípios.440

Este ramo da ciência jurídica é informador também dos atos processuais

praticados por essas pessoas durante a relação processual, especialmente no que

tange à análise da recorribilidade da impugnação de pronunciamentos judiciais,

competindo ao agente dotado de capacidade postulatória – advogado público –

delimitar o ambiente decisional e até que ponto o magistrado poderia inovar, ou se

estaria adstrito à legalidade estrita e se esta foi observada.

Pois bem. Já se admitiu que o sistema de precedentes guarda coerência com o

Direito Administrativo, quer sob o manto da família de common law, quer sob a de civil

law. Também já foram traçadas diretrizes para demonstrar que os vários sistemas em

que inserido o nosso país – federalista, de jurisdição una e de civil law – não se

constituem em óbice para que aqui fosse implementado o sistema de precedente. Pelo

contrário, existem aspectos favoráveis em cada um deles.

Há, nesse passo, vários princípios que dão suporte ao regime jurídico-

administrativo a que se sujeitam as pessoas jurídicas de direito público, os quais foram

sempre interpretados em um sistema jurídico de civil law, com o império da lei, sendo

necessário examiná-los em sua essência e amplitude, para se verificar se é possível

implementar o sistema de precedente judicial e, em caso positivo, os impactos de sua

adoção para a ordem interna.

Estes princípios auxiliam na própria compreensão do Direito Administrativo,

sobretudo por não ser codificado e de formação recente,441 sendo alguns deles

previstos expressamente no Texto Constitucional (legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade e eficiência), enquanto outros são implícitos e outros, ainda,

têm origem na jurisprudência.442

439 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 52. 440 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 75. 441 MEDAUAR, Odete. Op. Cit., p. 148. 442 MEDAUAR, Odete. Op. Cit., p. 148.

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A rigor, o Direito Administrativo pode ser inserido em um ambiente decisional

rígido, em que a evolução do Direito deve ocorrer por obra da lei, o que reflete

diretamente na litigância em que as pessoas jurídicas de direito público estão

envolvidas.

Assim, por exemplo, nas ações repetitivas propostas por servidores públicos

estatutários em face das pessoas jurídicas de direito público não compete ao

magistrado inovar, utilizar-se de criatividade.

Há de observar, nestes casos, que a certeza pode ser obtida, não sendo a

flexibilidade um fator característico.

Nestas situações, não se admite, como regra, a alteração da jurisprudência e,

se isso ocorrer, devem ser utilizados instrumentos moduladores, buscando-se que os

seus efeitos se projetem unicamente para o futuro (efeitos prospectivos), não

alcançando situações amparadas pelo Direito vigente à época em que consolidado.

A alteração jurisprudencial, nestes casos, não se apresenta como evolução do

Direito, mas como simples mudança de opinião dos juízes, que desconsideram toda a

construção jurídica anterior. A propósito, destaca Teresa Wambier que

significa, em sentido algum, evolução do direito e inviabiliza de modo definitivo a uniformização, já que impossibilita a estabilização. Esta alteração de compreensão do direito decorrente de fatores pessoais é extremamente criticável e nociva, ainda mais porque normalmente ocorre em tribunais superiores, cuja função (e razão de ser) é justamente a de orientar os demais

órgãos do Poder Judiciário.443

Nestes ambientes decisionais rígidos, a virada jurisprudencial, consistente

unicamente na alteração da opinião dos magistrados, fere de morte o princípio da

igualdade e a proteção da confiança. Como ensina Humberto Ávila, o Poder Judiciário

somente poderá alterar a sua orientação consubstanciada em precedentes “desde que

o faça de maneira fundamentada e com respeito às posições anteriormente

consolidadas sob a orientação então pronunciada”.444 Não estão os Tribunais

engessados, proibidos de alterar a sua posição, mas, se o fizerem, devem refletir sobre

os seus efeitos.445

443 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Precedentes e evolução do Direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 56. 444 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 478. 445 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 479.

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E, em relação aos efeitos da alteração jurisprudencial, ou de superação de

precedente, surge a questão ligada à possibilidade ou não da modulação de efeitos,

tema que, por si só, já é complexo, e que se torna mais profundo no que se refere à

modulação dos efeitos em favor de entes públicos, adiante analisado.

A discussão sobre tais pontos vem sendo realizada, principalmente, no âmbito

tributário, conforme se vê de estudos apresentados, entre outros, por Humberto Ávila446

e Ravi Peixoto,447 sendo defendido, pelos primeiros, a impossibilidade de modulação

dos efeitos em favor de ente público, o que é questionado por este último.

Há, também, entre as ações em que figure como parte uma pessoa jurídica de

direito público, aquelas denominadas de interesse público,448 sempre dotadas de

complexidade e que, como regra, discutem matéria correlata a conceitos jurídicos

indeterminados (como a dignidade da pessoa humana), classificados como cláusulas

gerais ou conceitos vagos.

Nestas ações, seria admitido certo grau de liberdade do juiz, pois a alteração da

jurisprudência em tais casos seria producente à medida em que elementos externos

seriam levados em consideração.449 Tem-se o que se denominou na doutrina de

ambiente decisional frouxo, em que se presencia evolução jurídica (e não simples

mudança de posição do julgador).450

Em vista da alteração do direito advinda de posicionamento jurisprudencial

consolidado, a impugnação deste ponto da decisão judicial que o leve em consideração

será de pouca valia, pois o decisum levou em conta a alteração da dinâmica social.

446 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., 2014. 447 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, agosto/2015. 448 Atualmente, não se lida unicamente com processos bipolares, ou seja, autor versus réu. Diferentemente, lida-se com “processos multifacetados”, que abrangem questões fundiárias, de consumo, saúde, meio ambiente, entre outras, com múltiplos atores sociais. NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, vol. 199/2011. São Paulo: RTOnline, p. 6. 449 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Precedentes e evolução do Direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 53. 450 Como ressaltado por Teresa Wambier, “é relevante que se frise, desde já, que a alteração da jurisprudência em casos assim nos ambientes decisionais frouxos, é extremamente benéfica. Deve ser, não simples alteração do direito, mas evolução do direito. É o direito se transmudando, para atender, de forma mais veemente, o princípio da dignidade humana”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Precedentes e evolução do Direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 56.

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De outro lado, porém, mais uma vez, apresenta-se como pertinente a discussão

sobre efeitos retroativos de tal decisão, de modo que surge o interesse de recorrer pela

pessoa jurídica de direito público, se determinada a extensão da implementação do

direito para período anterior à formação do precedente, em decorrência da aplicação do

princípio da segurança jurídica, ainda que não tenha ocorrido a modulação dos efeitos,

conforme adiante será analisado com mais vagar.

Ainda com relação ao ambiente decisional e o regime jurídico-administrativo,

deve ser considerado que há certos atos emanados da Administração Pública,

“praticados no exercício de competência discricionária”,451 em que o grau de

sindicabilidade pelo Poder Judiciário tem menor extensão, pois a lei apresentaria mais

de uma opção ao administrador.

Para estes casos, o magistrado não pode pretender substituir a manifestação

emanada do agente público competente, salvo se adentrar na análise da

proporcionalidade e razoabilidade da decisão administrativa, sob pena de infringir a

sistemática de distribuição de atribuições e o próprio princípio da separação de

Poderes.

Em suma, deve respeitar a ordem administrativa, devendo ser delimitado o

âmbito de sindicabilidade, de inovação judicial e de possível vinculação do precedente,

conforme se verá no próximo item.

5. A discricionariedade administrativa, o ambiente decisional e o

precedente

Entende-se pelos atos praticados no exercício de competência discricionária

aqueles em que a Administração Pública possui “certa margem de liberdade de

avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por

ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles”.452 É certo que não

há propriamente um ato inteiramente discricionário, pois vinculado, ao menos, em

relação ao seu fim e competência.

451 Celso Antônio Bandeira de Mello registra a incorreção da alusão a atos discricionários. In: Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 430. 452 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 430.

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A propósito do tema, Celso Antônio Bandeira de Mello registra que, em seu

entendimento, há certa discricionariedade quanto ao fim do ato administrativo, na exata

medida em que a “apreciação do que é interesse público depende, em certa medida, de

uma apreciação subjetiva, isto é, de uma investigação insuscetível de se reduzir a uma

objetividade absoluta”.453

E ainda completa:

Preferimos dizer que o fim é sempre vinculante (como, aliás, todos os elementos da norma), de tal modo que só pode ser perseguido o interesse público; porém, a qualificação do interesse público comporta certa margem, delimitada, é certo, de juízo discricionário.454

O exame da discricionariedade não pode desprezar a análise da norma jurídica

responsável pela previsão da liberdade ao administrador e o exame do caso

concreto,455 com vistas à eficiência diante da necessidade de escolha melhor

providência.456

O tratamento da discricionariedade modificou-se no decorrer dos anos,

notadamente pelo interesse no “processo formativo da decisão”.457 Nesse sentido,

[a] discricionariedade vista como liberdade-vínculo e a atenção dada aos mecanismos decisionais correspondem à ideia de que o processo eleitoral ou a nomeação para um cargo de confiança na cúpula do Executivo não configuram passaporte para o absoluto, que dota os administradores de poderes incondicionados. Isso porque a democracia não se exaure na eleição, na existência de vários partidos políticos e no funcionamento do Legislativo e do Judiciário; deve transpor o limiar da Administração e aí vigorar.458

Digna de nota, a respeito, foi a decisão liminar proferida pelo Ministro Gilmar

Mendes na Medida Cautelar em Mandado de Segurança n. 34.070-DF, impetrado

diante de que, conforme alegado na inicial, ex-presidente da República teria sido

nomeado para o “cargo de Ministro de Estado para deslocar o foro para o STF e

salvaguardar-se contra eventual ação penal sem a autorização parlamentar prevista no

art. 51, I, da CF”. Na oportunidade, manifestou-se o Ministro, em via liminar:

453 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 431. 454 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 431. 455 Quando da análise do caso concreto, deve a autoridade “atender ao interesse público referente à competência que lhe foi conferida, e, por isso, a escolha que realiza é finalística”. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 19ª. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 137. 456 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 434-435. 457 MEDAUAR, Odete. Op. Cit., p. 139. 458 MEDAUAR, Odete. Op. Cit., p. 140.

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O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados de honestidade, de probidade e da boa-fé no trato da “res publica”

Em outros termos, quando do exame dos atos discricionários, devem ser

examinadas todas as circunstâncias e, de tal exame, é possível verificar a ocorrência

dos denominados “atos ilícitos atípicos”, ou seja, atos que, aparentemente, podem ser

praticados, pois amparados por uma regra, mas as suas circunstâncias proíbem a sua

prática.459

Georges Abboud, a propósito, disserta que “não se pode mais admitir uma área

em que a Administração Pública possa agir livremente em termos discricionários, um

agir que não poderia ser submetido a um teste de legalidade/constitucionalidade”.460 De

fato, não há ato proveniente da Administração que não possa ser revisto. E a decisão

liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes, no MS n. 34.070-DF, deixa isso bem

claro.

De fato, não há ato que não possa ser revisto. Isto é fato. Mas podem existir

elementos do ato que não podem ser modificados por decisão judicial. Em outras

palavras, há um aspecto de discricionariedade que, se admitido pela lei, deve ser

respeitado, preservando-se a ordem administrativa, sobretudo na liberdade de escolha,

na análise da melhor opção para o interesse público, até porque, a supremacia deste

interesse, apesar de todo o esforço de doutrina no sentido de atenuá-lo e até desprezá-

lo, ainda há de prevalecer frente ao interesse privado. O que se modifica, defende-se, é

a análise quanto à razoabilidade da escolha e eventual ofensa a direito fundamental.461

Preservados estes fatores, não há porque interferir na decisão administrativa.

Não se pode admitir, a título de exemplo, que o magistrado interfira na escolha

da decisão quanto ao interesse público em uma desapropriação, desde que respeitada

a moralidade, a razoabilidade e o princípio da justiça da indenização. Observados todos

estes aspectos, estará legitimado o campo discricionário da Administração Pública.

459 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos administrativos. 2ª. ed. Madrid: Trotta, 2006, p. 12. 460 ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 158. 461 Ou, como apontado por Georges Abboud, “importante salientar que a preservação dos direitos fundamentais não deve ocorrer tão somente porque, atualmente, eles gozam de status constitucional, mas sim porque eles constituem conquista histórica da formação política e jurídica dos Estados, cuja observância é obrigatória pelo poder público e pelos demais particulares”. Discricionariedade administrativa e judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 160.

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Georges Abboud, diferentemente, entende que a discricionariedade seria ainda

uma das últimas frontes a serem superadas “para se concretizar o direito e a

Constituição na esfera de ação do poder público”. E, nesse sentido, entende ser um

falso problema “relacionar a implantação de políticas públicas referentes a direitos

fundamentais, com ativismo judicial ou invasão ilegítima do Judiciário no Poder

Executivo”.462

De fato, não se pode negar que a efetivação de direitos fundamentais reduziu

drasticamente a amplitude de tomada de decisão da Administração Pública, pois

vinculada que se encontra à sua efetividade. A defesa do princípio da reserva do

possível, na atualidade, encontra-se totalmente superada, conforme é possível verificar

em vários pronunciamentos dos Tribunais Superiores.463 Não obstante, ainda há um

feixe de discricionariedade que deve ser respeitado, sendo insindicável.

Imagine-se, por exemplo, que a Secretaria de Segurança Pública de um

Estado, após exame de dados objetivos, decida que determinado município contará

com efetivo de trinta policiais militares e aplique o mesmo cociente para as demais

cidades, tudo no contexto de efetivação de política pública de segurança. Não obstante,

pode haver o ajuizamento de ação civil pública com a finalidade de questionar esse

número, por entender que não se encontra adequado para o município X, que tem a

mesma população do município Y.

Para esta situação, como se vê, salvo se desproporcional ou irrazoável o

número de agentes militares para atuarem na cidade, não se pode admitir a

interferência do Poder Judiciário para modificá-lo em detrimento de toda a política

pública de segurança pública. Há, ainda neste ponto, um feixe de discricionariedade

que deve ser respeitado, sobretudo diante da possibilidade de visão global das ações

voltadas a essa necessidade.

Feitas essas considerações, retoma-se a análise da discricionariedade,

ambiente decisional e precedente.

A decisão discricionária deve ser tomada consoante o ambiente decisional

apropriado e que, nos patamares atuais, não considere a decisão do administrador

462 Discricionariedade administrativa e judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 165. 463 A título de exemplo: RMS n. 31.392/ES, Rel. Min, Ribeiro Dantas, 5ª T., j. 05.04.2016, DJe 15.04.2016.

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público como ato absoluto, insindicável, mas, como registrado anteriormente, há um

feixe de discricionariedade, de modo que a decisão jurídica discricionária, que guarde

correlação com a supremacia do interesse público, finalidade pública e observância dos

direitos fundamentais, é intocável.

Nesse sentido, não obstante se esteja diante de conceitos jurídicos

indeterminados e até mesmo um ambiente decisional frouxo, não se permite a inovação

judicial que substitua a vontade da Administração Pública que não esteja viciada. Esta é

a decisão jurídica adequada, legítima, que há de imperar até mesmo sobre a decisão

judicial, exigindo-se a devida e adequada fundamentação para a invalidação.

Assim, não se mostrará adequada a formação de precedente que admita a

substituição da vontade da Administração Pública, mas apenas a análise casuística do

vício. Não se admitiria, por exemplo, formação de precedente no sentido de se permitir

que, em qualquer caso e sob qualquer circunstância, o Poder Judiciário possa anular a

nomeação para um cargo em comissão, mas deve a Administração se submeter ao

pronunciamento que entender ser contrário ao Direito a nomeação que contrariar à

finalidade pública.

Em casos em que há formação de precedente com flagrante ofensa à ordem

administrativa, em que o Poder Judiciário, sem motivo aparente, substitua a vontade do

administrador, deve a representação judicial buscar a sua modificação, existindo

interesse recursal adequado para tanto.

6. A Administração Pública e a extensão subjetiva da vinculação do efeito

vinculante

Admitida a constitucionalidade do efeito vinculante, há de ser examinado se a

Administração Pública está ou não entre os seus destinatários, ou, em outros termos,

se a extensão subjetiva de tal efeito a alcança. Esta análise será realizada neste

contexto, sem prejuízo de outra mais aprofundada, aliada a outros argumentos, que

ocorrerá no próximo capítulo.

Inicialmente, há de ser admitido que a Administração Pública está vinculada às

decisões proferidas nas ações de controle abstrato de constitucionalidade, quer tenham

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tramitado perante o Supremo Tribunal Federal, quer, por força do princípio da simetria,

transitado perante os Tribunais de Justiça para o controle de constitucionalidade em

relação às constituições estaduais.

Para todos esses casos, descumprindo o efeito vinculante, será cabível o

manejo de reclamação para a anulação do ato administrativo. Porém, em relação ao

Chefe do Executivo, válida é a ressalva apresentada doutrinariamente:

A vinculação atinge somente os atos presidenciais de que trata o artigo 84, incisos II, VI, XVI, segunda parte, XXIV e XXV. Da mesma forma, como se cuida de atos normativos primários, não parecem estar sujeitos à vinculação os decretos autônomos baixados pelo Presidente da República para regular a organização e funcionamento da administração federal e a extinção de funções ou cargos públicos (inciso VI do art. 84, com redação da EC 32/2001).464

Da mesma forma, em relação aos demais precedentes, tem-se que a

Administração Pública também se submete ao seu efeito vinculante, sobretudo porque,

como visto anteriormente, admite-se a força normativa do precedente, mesmo no

sistema brasileiro e por coerência derivada dos próprios princípios que regem a

atividade administrativa, como os da segurança jurídica, impessoalidade e moralidade.

7. A adoção do sistema de precedentes como medida adequada à boa

administração

7.1 Definição da boa administração pública

Não é de hoje que se prega a adoção de práticas emanadas da Administração

Pública que compatibilizem o desenvolvimento e a sustentabilidade. De fato, não se

sustentam, no Estado Democrático de Direito, hábitos incompatíveis com a eficiência, a

legitimidade dos atos administrativos e organização voltada ao cumprimento exclusivo

de metas de curto prazo.465 Nesse sentido:

464 BERNARDES, Juliano Taveira. FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional. Tomo I. 5ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 498. 465 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 17.

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Transforma-se no Estado da continuidade planejada de universalização dos serviços essenciais, das políticas inclusivas e afirmativas, do intangível equilíbrio econômico-financeiro dos ajustes e da superação da filosofia antagonizadora, precária e adversarial, no âmbito das relações de administração.466

Para tanto, o processo de tomada de decisão deve ser revelador de sua

legitimidade, abandonando-se o “decisionismo irracional do power state autoritário”,467

para se cumprir a obrigatoriedade da fundamentação adequada, com a demonstração

de que a supremacia do interesse público não é um princípio vazio, existente por si só,

mas possui conteúdo apto à implementação de políticas públicas sociais, de efetividade

dos direitos fundamentais, de observância fiel da finalidade pública e de proporcionar a

convivência coletiva.

Nesse contexto, tem a Administração Pública o dever de assegurar a

observância do direito fundamental à boa administração, compreendido por Juarez

Freitas como sendo o

[d]ireito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à

plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas.468

O próprio autor reconhece que os direitos mencionados na definição não são

excludentes de outros, pois se traçou um “standard mínimo”,469 de modo que pode

compreender outros aspectos.

O direito fundamental à boa administração pública decorre do que está previsto

no art. 37 da Constituição Federal, devendo ser compreendido “no sentido de que a

administração pública deve ser gerida informada e orientada por todos os princípios

constitucionais que a norteiam”.470

É necessário bem entender que o direito fundamental à boa administração

pública não tem o intuito de esvaziar o campo de decisão do agente público. Pelo

contrário. Assegura-se ser fundamental a preservação da discricionariedade em certas

466 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 20. 467 FREITAS, Juarez. Op. Cit., p. 18. 468 FREITAS, Juarez. Op. Cit., p. 21. 469 FREITAS, Juarez. Op. Cit., p. 23. 470 KOSSMANN, Edson Luís. A constitucionalização do princípio da eficiência na Administração Pública. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2015, p. 97.

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ocasiões, abrindo-se mais de uma escolha a ser tomada. Contudo, qualquer dessas

decisões deve voltar-se à finalidade pública.

Diante desse quadro, há de se verificar se a observância da jurisprudência e de

precedentes judiciais, pela Administração Pública, nos âmbitos administrativo e

processual, constitui-se em uma das práticas garantidoras da observância do direito

fundamental à boa administração pública.

Como visto anteriormente, a inobservância da jurisprudência e dos precedentes

ocasiona uma ruptura no modelo de igualdade entre os cidadãos que se encontram sob

a mesma situação.

Há diferenciação entre aqueles que postulam e aqueloutros que não o fazem e

se submetem simplesmente à argumentação jurídica traçada pelo ente público, de

modo a exigir a judicialização, com a tomada de decisão pelo próprio Estado-Juiz.

Em outros termos, o Estado-Administração, que arrecada, planeja o orçamento

e que deve procurar efetivar políticas saudáveis e aptas a propiciar o interesse coletivo,

por iniciativa própria, demanda – acionando o Estado-Juiz –, ou é demandado em

juízo, pois não observou a jurisprudência dominante sobre determinado assunto,

mesmo sabendo que a resposta jurisdicional tenderá a encampar um posicionamento

contrário àquele que antes defendia.

Na prática, várias podem ser as justificativas práticas para tal conduta, como a

própria aposta de que nem todos os administrados terão garantido o seu direito pelo

Poder Judiciário, quer por não procurar a tutela jurídica, quer pelo exercício a

destempo.

Além disso, vislumbra-se a necessidade de ganhar-se tempo para a

observância do direito e a insuficiência orçamentária, deixando para a próxima

Administração a missão de dar fim aos pagamentos consubstanciados em precatórios e

obrigações de pequeno valor, consumindo-se parcela razoável do orçamento público.

Por certo, tal conduta não é amparada pela exigência de boa administração,

notadamente por acarretar na ofensa à impessoalidade e ao dever de boa

administração, sem falar no risco de consumo de gastos futuros em muito superiores

àqueles imediatamente economizados, conforme se passa a demonstrar.

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161

7.2 Princípio da impessoalidade

O princípio da impessoalidade concentra, na visão de Celso Antônio Bandeira

de Mello, a ideia do dever da Administração de tratar todos os administrados sem

quaisquer discriminações.471 Trata-se, sob essa ótica, do princípio da igualdade sob a

visão administrativa.472

Ora, conforme acima demonstrado, diante da judicialização de determinado

tema, com prevalecimento de um entendimento por conta da interpretação judicial da

lei, vislumbra-se a divisão do coletivo em grupos distintos: aqueles que se beneficiam

da decisão judicial e os demais, sujeitos aos rigores da decisão administrativa, até que

tenham a situação corrigida. Ou, como exemplo prático, para alguns empresários ou

empresas aplicam-se os juros e correção monetária da SELIC, enquanto para outros

aqueles previstos em lei estadual, superiores ao padrão fixado, ocasionando

desiquilíbrio na concorrência.473

Consoante destaca José Afonso da Silva, o princípio da igualdade jurisdicional

tem dois prismas:

471 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 114. 472 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, registra que o princípio tem diferentes interpretações. Para a doutrinadora, “exigir a impessoalidade da Administração tanto pode significar que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração”. Em relação aos administrados, tem-se que a Administração não pode prejudicar ou beneficiar quaisquer pessoas, devendo agir em conformidade com a finalidade pública. Em relação à própria Administração, proíbe-se a imputação da prática do ato ao seu agente realizador, pois as práticas governamentais partem dos órgãos e não dos agentes. In: Direito Administrativo. 20ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 62. 473 O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concluiu, por maioria e em julgamento apertado, no ano de 2013, o julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade n. 0170909-61.2012.8.26.0000, promovendo a interpretação conforme a Constituição dos artigos 85 a 96 da Lei Estadual n. 6.374/1989, que instituíram a taxa de juros de mora diária de 0,13% ao dia incidente sobre os débitos de ICMS, limitando-a à Taxa Selic. Foi decidido que compete à União Federal fixar as normas gerais em matéria tributária e financeira, de modo que a legislação estadual não poderia suplantar o previsto pela federal. O julgamento, por certo, impactou consideravelmente na arrecadação de recursos públicos e importou na alteração do entendimento do próprio Tribunal de Justiça sobre o tema. Não obstante, foi adequado ao posicionamento antes adotado pelo Supremo Tribunal Federal, que já havia colocado como teto os juros estabelecidos pela União (Recurso Extraordinário n. 183.907/SP e ADI n. 442).

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(1) como interdição ao juiz de fazer distinção entre duas situações iguais, ao aplicar a lei; (2) como interdição ao legislador de editar leis que possibilitem tratamento desigual a situações iguais ou tratamento igual a situações desiguais por parte da justiça.474

A estes prismas, deve ser acrescentando também um terceiro, qual seja, (3)

como interdição ao Administrador de promover o tratamento desigual a situações iguais,

quando já houver posicionamento fixado em precedente no âmbito dos Tribunais.

A inobservância do entendimento judicial dominante, por isso, pode ser ofensiva

à boa administração sob as luzes da impessoalidade.

7.3 Princípio da supremacia do interesse público

No Capítulo 1, já foram vistos os conceitos de interesse público e de

supremacia do interesse público. Aqui, serão oferecidas algumas particularidades

adicionais.

Se, de um lado, o Estado deve assegurar a realização dos direitos

fundamentais, de outro, também deve observar o princípio da supremacia de interesse

público, fato gerador de tensão que poderá ocasionar a litigância.

Tal como fez Celso Antônio Bandeira de Mello, passa-se ao exame, em

primeiro lugar, do interesse público e, na sequência, à supremacia de tal interesse.

Nesse sentido:

É que, na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais.475

Como deixa bem frisado o autor, cada indivíduo terá o seu interesse e buscará

resguardá-lo. Porém, é claro que há um interesse para o bem do corpo social, que

deverá, ainda que inconscientemente, estar presente no indivíduo.

474 CARNEIRO JÚNIOR, Amilcar Araújo. Parâmetros do common law para a elaboração de um novo sistema: necessidade de uma atitude de vanguarda. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 102. 475 In: Curso de Direito Administrativo. Op. Cit., p.60.

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A supremacia do interesse público, na concepção de Celso Antônio Bandeira

Mello, “é princípio geral de direito inerente a qualquer sociedade” e, por isso, não

necessita de regência constitucional.476

7.4 Segurança jurídica

7.4.1 Considerações iniciais

Conforme alertado por Teresa Arruda Alvim Wambier, o nosso sistema jurídico

“foi concebido justamente com o objetivo racional, expressamente declarado, de gerar

segurança para o jurisdicionado, evitando surpresas e arbitrariedade”. De outro lado,

identifica que na medida em que a lei admite diversas interpretações, o “próprio sentido

e razão de ser do princípio da legalidade ficam comprometidos”.477

Em decorrência disso, deve existir o esforço de unidade do Direito, o que

propiciará, a um só tempo, a observância da segurança jurídica e de seus

subprincípios, entre eles, da legalidade (já analisado), da igualdade e, porque não, da

moralidade.

A propósito, conforme ressaltou William Santos Ferreira,

[u]m dos maiores problemas enfrentados pelos sistemas jurídicos, especialmente nos casos em que há uma grande quantidade de processos com o mesmo tema, é assegurar uma uniformidade de posicionamento, até porque, como já foi dito, a Jurisdição é una e a lei, em razão de regular a vida em sociedade, deve, dentro de padrões razoáveis, ter apenas uma interpretação, conferindo segurança e estabilidade, não sendo desarrazoado a sociedade esperar do Poder Judiciário a mesma resposta para casos idênticos, o que é (rectius: deve ser) consequência direta e imediata do princípio da igualdade (art.

5º, caput, da CF).478

Nesse contexto, surge a segurança jurídica como um tema importante para o

estudo dos precedentes, notadamente em relação às alterações de entendimento e os

476 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo, 2010, p. 96. 477 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Precedentes e evolução do Direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 32. 478 Súmula Vinculante – Solução Concentrada: vantagens, riscos e a necessidade de um contraditório de natureza coletiva (amicus curiae). Op. Cit., p. 799.

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seus efeitos, bem como para se avaliar a possibilidade de modulação dos efeitos em

favor dos entes públicos na superação de precedente.

Neste capítulo, no entanto, serão apresentados apenas apontamentos gerais

sobre a segurança jurídica, sendo a técnica da superação do precedente e a

modulação tratados no próximo.

A segurança jurídica é protegida de várias maneiras pela Constituição Federal e

é deduzida do Estado de Direito,479 tanto na sua dimensão formal (relacionado ao

respeito à separação de Poderes, hierarquia das normas e proteção pelo Judiciário),

quanto na dimensão material, justamente por ser um direito-garantia.480

Não sem motivo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o princípio da

segurança jurídica é “um subprincípio do princípio do Estado de Direito”481, instituindo

princípios para serem seguidos pela Administração Pública, que também irão lhe

repercutir efeitos, como o da moralidade.

Nesse passo, Marinoni sustenta que

A segurança e a igualdade, postuladas na tradição do civil law pela estrita aplicação da lei, estão a exigir, num modelo transformado pelo constitucionalismo, o sistema de precedentes, estabelecido para tutelar a segurança no ambiente do common law, em que a possibilidade de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsiderada e, exatamente por isto, fez surgir o princípio inspirador do stare decisis, de que os casos similares devem ser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).482

7.4.2 Conotações da expressão segurança jurídica

A expressão segurança jurídica possui várias conotações, que guardam entre si

correlação de conceitos, sem que um exclua automaticamente o outro, representando

planos diversos da expressão. Nesse sentido, concebe-se a segurança jurídica como

fato, como valor ou como norma-princípio. 483

479 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 221. 480 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 224. 481 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 224. 482 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 49. 483 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 113-123.

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Como fato, refere-se a “uma determinada realidade concreta passível de

constatação”.484 Parte-se da possibilidade de se prever a decisão jurídica justa para o

caso concreto.

Diferentemente, a segurança jurídica terá conotação de valor, denotando “juízo

axiológico”, de modo que se antecipa a decisão em razão de uma prévia valoração.485

Poderá, ainda, consubstanciar uma norma que, por sua vez, fixará “algo como

permitido, proibido ou obrigatório”, acrescentando que “o emprego da expressão

‘segurança jurídica’ denota, pois, um juízo prescritivo a respeito daquilo que deve ser

buscado de acordo com determinado ordenamento jurídico”.486 Será alcançado a partir

de argumentação jurídica adequada, impondo-se aos três Poderes e determinando-se

“a busca de um estado de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento jurídico

com base na sua cognoscibilidade”.487

Neste último sentido, a segurança jurídica é um princípio jurídico, que

representa um ideal a ser alcançado. Em verdade, Humberto Ávila a retrata como

sendo uma norma-princípio, pois “estabelece um fim do Direito”.488 Não se trata de um

princípio qualquer, mas deles se difere por pressupor a “intermediação de uma

realidade jurídica”, e por isso é um princípio instrumental,489 valendo-se de uma

concepção argumentativa do Direito.

7.4.3 Beneficiários da segurança jurídica

A segurança jurídica poderá beneficiar o indivíduo e também os indivíduos

coletivamente, como pode ocorrer, por exemplo, em uma ação direta de

inconstitucionalidade, em que o Supremo Tribunal Federal reconhece a possibilidade de

modulação dos efeitos com fundamento naquela norma-princípio.

484 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 122. 485 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 123. 486 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 123. 487 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 126. 488 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 129. 489 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 133.

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E nesse ponto, coloca-se questão relevante para este trabalho: o Estado pode

ser beneficiário da segurança jurídica?

Humberto Ávila, a propósito do tema, entende que, se a expressão for utilizada

no sentido de princípio objetivo, “obviamente a cognoscibilidade, a confiabilidade e a

calculabilidade do ordenamento jurídico em geral também são imprescindíveis para o

fundamento do próprio ente estatal”, de modo que admite ser o Estado beneficiário.490

Porém, se a expressão for utilizada em seu significado subjetivo, com aplicação

em favor de um indivíduo, não seria possível inserir o ente público como beneficiário. E

isso ocorre, segundo se sustenta:

De um lado, em geral, a eficácia reflexiva e subjetiva do princípio da segurança jurídica, como proteção da confiança, é desenvolvida sob o influxo dos direitos fundamentais, e não, primordialmente, do princípio do Estado de Direito.491

Esta conclusão tem reflexo importante: a impossibilidade de que o Estado

pugne pela modulação de efeitos de precedente.

Na mesma linha de direção, Misabel de Abreu Machado Derzi, para quem a

segurança jurídica “não tem mão dupla”, “não podendo a irretroatividade, a proteção da

confiança e a boa-fé serem invocados para proteger os cofres públicos contra efeitos

das variações jurisprudenciais”.492

Diferentemente, defende Ravi Peixoto que, a priori, a segurança jurídica

também é voltada a proteger os interesses do poder público, manifestando-se no

seguinte sentido:

Há que se perceber que no Estado Democrático de Direito o Estado e os cidadãos estão sujeitos ao mesmo conjunto de textos normativos e também às decisões do Poder Judiciário. Por mais que o Estado possua o comando sobre o texto normativo, não parece razoável que a ele negue eventual tutela por meio de um direito fundamental. 493

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, admitiu a possibilidade de modulação

dos efeitos em processo no qual o poder público é parte, conforme é possível verificar

490 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 168. 491 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 169. 492 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência em face da proteção da confiança e do interesse público no planejamento da receita e da despesa do Estado. In FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e limites da tributação. São Paulo: Quartir Latin, 2009, p. 746. 493 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, agosto/2015.

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nas ADIs n. 4357 e 4425, embora não o tenha feito de forma expressa e em controle de

constitucionalidade.

7.5 Diferenças entre a segurança jurídica e a tutela da confiança

Em primeiro lugar, conforme ressalta Humberto Ávila, há critérios que

diferenciam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, que podem

ser resumidos no seguinte quadro:494

Quadro: diferenças entre os princípios da segurança jurídica e da proteção da

confiança.

ÂMBITO

DIFERENCIADOR

SEGURANÇA JURÍDICA PROTEÇÃO DA

CONFIANÇA

Normativo Diz respeito ao todo do

ordenamento jurídico.

Relaciona-se com um

aspecto normativo do

ordenamento jurídico.

Pessoal Norma objetiva. Interesse de pessoa

específica.

Concretização Plano abstrato. Nível concreto.

Amplitude subjetiva Proteção de interesses

coletivos.

Proteção de direito

individual.

Protetividade

individual

Pode ser usado contra ou

a favor dos cidadãos [e,

segundo defendemos, do

Estado].

“Utilizado com a finalidade

de proteger os interesses

daqueles que se sentem

prejudicados pelo

exercício passado de

liberdade juridicamente

orientada”.

494 Elementos retirados de: ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 377.

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Em síntese: “o princípio da proteção da confiança representa uma aplicação

reflexiva, subjetiva e concretamente orientada do princípio objetivo da segurança

jurídica, sendo um veículo de proteção ‘de uma confiança’”.495

Atenta-se à atuação concreta, o que demandará a devida argumentação e a

produção das provas necessárias para a comprovação dos fatos, sobretudo para

demonstrar a quebra de uma confiança, bem como a desproporcionalidade entre o

ônus suportado por um indivíduo e o bônus a ser aproveitado em favor do outro.

A confiança, conforme já defendido, poderá ser fundamentada na boa-fé,496

como também na segurança jurídica, funcionando como “norma de caráter

principiológico da tutela da confiança”.497

Aliás, Judith Martins-Costa ressalta a existência de “evidente e intensa ligação

entre boa-fé e confiança”.498 A propósito, segundo aludida autora, não é qualquer

confiança que se tutela. Pelo contrário:

Tutela apenas a confiança investida em virtude de razões que, racionalmente controláveis (ou comprováveis, ou adequadas ao id quod plerumque accidit), foram objeto de <<investimento de confiança>> pelo destinatário do ato ou

comportamento ou omissão aptos a gerar essa confiança qualificada.499

Da mesma forma que ocorre com o princípio da segurança jurídica, há posições

doutrinárias responsáveis no sentido de que a boa-fé atua em uma via de mão única,

defendendo apenas o cidadão e não a Administração Pública.500 A respeito desse

ponto, Judith Martins-Costa registra que, em decorrência da interdependência entre o

dever de agir de boa-fé e princípios administrativos, surge o dever de não agir de forma

495 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Op. Cit., p. 377. 496 Judith Martins Costa lembra que a boa-fé é figura da Teoria Geral do Direito e, por isso, naturalmente, constata-se a inter-relação entre a boa-fé e os princípios da Administração Pública. A boa-fé no Direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 311. 497 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, Ago/2015 (RTOnline). 498 A boa-fé no Direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 233. 499 Op. Cit., p. 233. 500 A esse respeito: “É preciso realçar, por fim, que o princípio da proteção da confiança, representativo da eficácia reflexiva do princípio da segurança jurídica, igualmente serve de proteção do cidadão em face do Estado” (ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 381). No mesmo sentido: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 266. E, ainda: “A boa-fé atua como norma asseguradora da manutenção de situações consolidadas, desde que geradoras de expectativas legítimas para os administrados em geral e aos contribuintes, considerando-se, por vezes, a boa-fé um <<subprincípio da moralidade administrativa>>”. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 311.

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contraditória, competindo “uma responsabilidade ampliada em não atuar

contraditoriamente, evitando despertar no administrado/contribuinte expectativas

enganosas”.501

Por isso, tais autores não mencionam ser a Administração Pública merecedora

da tutela da confiança.

Essa posição, contudo, data venia, não pode ser acolhida.

Não é possível pensar-se, na atualidade, em uma Administração Pública

autoritária, que imponha uma situação de sujeição dos indivíduos a todo custo. Em

verdade, embora ainda subsista a supremacia do interesse público, fato é que tanto

aquela quanto os indivíduos estão sujeitos ao mesmo sistema normativo. A própria

progressiva amplitude da faixa em que se admite a sindicabilidade, ou seja, o controle

judicial dos atos emanados da Administração Pública, demonstra a diminuição do

âmbito de discricionariedade e a quase total vinculação à lei (ao Direito).

Além disso, não pode ser desconsiderado que a Administração Pública é

defensora de interesses públicos (e não de um só interesse público): interesse público

ambiental, para a presente e futuras gerações (art. 225 da CF), da ordem fiscal-

tributária, com a finalidade de arrecadar e cumprir os direitos fundamentais dos

cidadãos; interesse público para o exercício do poder de polícia e assim por diante.

Sendo defensora de interesses públicos, implicitamente, detém direitos

fundamentais e dispõe de energia suficiente para custear todo o aparato.

Em decorrência disso, não se pode negar a segurança jurídica e a tutela da

confiança à Administração Pública, na medida em que prejuízos imprevisíveis, não

calculados, podem prejudicar consideravelmente o equilíbrio econômico-financeiro e,

por consequência, o interesse de toda coletividade.

Nem se diga que os entes públicos teriam mais condições de arcar com os

prejuízos decorrentes de uma situação em que se deve negar a observância da

segurança jurídica ou da tutela da confiança em seu favor. O patrimônio público é

indisponível e políticas de boa governança exigem o máximo aproveitamento dos

recursos existentes para o cumprimento das metas institucionais, de modo que não se

501 Op. Cit., p. 315.

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pode sujeitar a Administração Pública a arcar com esse peso, pela única condição de

sua natureza.

Devem ser levadas em consideração as particularidades do caso em si, até

mesmo apelativas para alguns, mas que podem levar a Administração Pública a uma

situação de absoluta calamidade.502

Por esses motivos, Ravi Peixoto concluiu:

Assim, é necessário superar esse posicionamento aparentemente rígido, no sentido de que apenas uma das partes pode requerer a tutela da confiança. Essa possibilidade irá depender do caso concreto. Mesmo em uma relação privada, é possível imaginar que, no direito do consumidor, seja inviável que a empresa venha a invocar a tutela da confiança, pelo domínio da relação jurídica. E, da mesma forma, é possível admitir que o ente público requeira a tutela da confiança perante o Poder Judiciário, quando está em posição de igualdade em relação à outra parte. A bem da verdade, é possível que ambas

as partes possam requerer a tutela da confiança.503

Em remate, ainda, Ravi Peixoto coloca que

tudo se resolve sob o prisma de suporte fático. Se, em determinado caso, o ente público preenche os requisitos para a aquisição de determinado direito

fundamental, é inegável que ele poderá requerer a sua tutela jurisdicional.504

Não se pode negar ao Estado, pessoa jurídica de direito público, dotada de

deveres e também de direitos para cumpri-los adequadamente, exercer a tutela jurídica

da confiança em juízo, quando for surpreendido por uma aplicação retroativa de um

entendimento jurisprudencial que agora prevalece. A base da confiança é a decisão

judicial, não existindo qualquer relação de comportamento entre atos que poderia

praticar e a legislação efetivamente. Aliás, a lei pode ser proveniente até mesmo de

outro ente.

8. Eficácia da jurisprudência

Como analisado no Capítulo 2, tendo-se em vista as várias alterações

legislativas, decorrentes da “dispersão jurisprudencial excessiva”, do “demandismo

502 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade., p. 381-399. 503 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. p. 381-399. 504 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Op. Cit., p. 381-399.

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exacerbado” e da “sobrecarga da Justiça estatal”, o legislador passou a mirar no

precedente judiciário, buscando-se a otimização da Justiça.505

Dessa maneira, ocorreram várias alterações legislativas e, a partir de então,

constatou-se uma “crescente expansão da eficácia da jurisprudência”.506

Nesse passo, Mancuso destaca ter ocorrido, além da eficácia endo e

panprocessual (detalhadas no Capítulo 2), também a eficácia extraprocessual no

âmbito interno da Administração Pública (além de outras esferas).

De fato, não só a súmula vinculante do STF já tinha eficácia direta no âmbito

interno da Administração, como também a jurisprudência reiterada dos Tribunais

Superiores, autorizando a emissão de súmulas administrativas, de caráter obrigatório,

como ocorreu na AGU e na Procuradoria da Fazenda Nacional.

Movimento semelhante ocorreu na Municipalidade de São Paulo, admitindo-se

que o Conselho Municipal de Tributos, por proposta de seu Presidente, possa emitir

súmula, de caráter vinculante, para todos os órgãos da administração tributária,

derivadas de decisões de mérito proferidas pelo STF e pelo STJ507 e, também, na

Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, que baixou vários atos normativos internos

de dispensa da interposição de recurso.

9. A missão da Advocacia Pública frente a um novo desafio

A Advocacia Pública é a instituição que representa judicial e extrajudicialmente

as pessoas jurídicas de direito público. Congrega, dessa maneira, órgãos de consultoria

jurídica e de representação processual (quer no âmbito judicial, quer no âmbito arbitral).

Tem entre os seus integrantes profissionais concursados, muito embora alguns

municípios ainda mantenham contrato de representação processual com advogados

privados.

505 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema Brasileiro de precedentes. Op. Cit., p. 589. 506 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema Brasileiro de precedentes. Op. Cit., p. 590. 507 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema Brasileiro de precedentes. Op. Cit., p. 591.

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O art. 131 da Constituição Federal prevê, como órgão componente da

Advocacia Pública, a Advocacia Geral da União, instituição que congrega diferentes

órgãos de consultoria e representação da União Federal.

A Constituição, ainda, desejou aparelhar os Estados da Federação com um

corpo jurídico permanente e composto por Procuradores “selecionados por critério

meritório, chamados para a acautelar, promover e defender o interesse público dentro

do Poder Executivo”.508 Assim, inovando em relação à Carta anterior, a Constituição

Federal de 1988 contém, em seu art. 132 (com redação atual determinada pela EC

19/98), previsão acerca dos Procuradores do Estado, silenciando em relação às

Procuradorias de Município, até porque nem todos poderiam instalá-la em razão de

dificuldades orçamentárias.509

Sobre estas previsões contidas na Constituição, vale registrar a interessante

anotação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem a Constituição Federal, ao

prever as funções essenciais da Justiça, em capítulo apartado dos três Poderes, “teve o

inegável mérito de definir com clareza o imprescindível elo jurídico operativo que deve

existir entre a sociedade e o Estado”.510

Segundo ainda construção teórica do referido autor, o texto constitucional

prevê, além da clássica distinção entre Advocacia Privada e Pública (assim como, a

rigor, são públicos ou privados os interesses juridicamente apreciáveis), a instituição de

uma verdadeira Procuratura Pública de Estado – assim entendida “em seu pleno e lato

508SILVA FILHO, Derly Barreto e. Advocacia Pública e políticas públicas tributárias. In: ORDACGY, André da Silva; FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de (coord.). Advocacia de Estado e Defensoria Pública: funções públicas essenciais à Justiça. Curitiba: Letra da Lei, 2009, p. 99. 509O Supremo Tribunal Federal considera constitucional a existência de procuradorias especiais para representação judicial da “Assembleia Legislativa e do Tribunal de Contas nos casos em que necessitem praticar em juízo, em nome próprio, série de atos processuais na defesa de sua autonomia e independência em face dos demais poderes, as quais também podem ser responsáveis pela consultoria e pelo assessoramento jurídico de seus demais órgãos”, como decidido a respeito do Estado de Rondônia (STF, Tribunal Pleno, ADI 94, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 07.12.2011, DJe-238, de 15.12.2011) e do Distrito Federal (STF, Tribunal Pleno, ADI 1557, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 31.03.2004, DJ 18.06.2004). 510MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (coord.). Advocacia de Estados: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 24.

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sentido de cura e de representação de interesses de terceiros”,511 dividida em três

ramos: o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia de Estado.

Tem-se, pois, que cada uma dessas instituições conta com campos de atuação

bem definidos e complementares (daí sua essencialidade à Justiça), abrangendo a

advocacia dos interesses difusos e indisponíveis da sociedade (Ministério Público), dos

interesses dos hipossuficientes (Defensoria Pública) e dos interesses públicos

confiados, pela Constituição Federal, à administração do Estado (Advocacia de

Estado), consubstanciando, portanto, espécies de um mesmo gênero, o que justifica o

“tratamento tópico unitário de todos esses ramos no mesmo Capítulo da Carta

Magna”.512

Inexiste regra constitucional que, implícita ou explicitamente, aponte para a

prevalência de qualquer dos interesses antes indicados. Logo, sob a ótica do Estado

Democrático de Direito, todos têm o mesmo valor, circunstância que aponta, via reflexa,

para a inexistência de hierarquia entre as instituições indicadas.

Nesse contexto, o papel da Advocacia Pública, prevista como essencial ao

funcionamento da Justiça, toma corpo diante da necessidade de observância dos

princípios da supremacia do interesse público e da legalidade (princípios ainda

presentes, embora sob novo enfoque), bem como de respeito ao princípio do

federalismo, de modo a defender o modelo e as atribuições de cada ente, buscando,

principalmente, junto ao Supremo Tribunal Federal a sua observância.513 O Estado

511 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (coord.). Advocacia de Estados: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 25. 512 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (coord.). Advocacia de Estados: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 26. O autor ressalta, outrossim, importante aspecto das Procuradorias Estaduais no tocante à sua identidade, por vezes não bem apreendido pela população: “Nessa linha, é necessário insistir, o que aqui volto a fazer com muito empenho e com muita esperança nas reservas morais deste País, que os Estados não se confundem com seus governos e, muito menos, com seus governantes e, por consequência, os advogados de Estado não podem ser tidos como advogados de governos ou, com maior razão, como advogados de governantes. (...) Assim, enquanto governos e governantes são transitórios e refletem segmentos de maiores, Estados e Advocacia de Estado são projeções institucionais permanentes de toda a sociedade, o que se reflete nas condições de suficiência e na própria natureza das respectivas investiduras constitucionais” (idem, p. 24). 513 Ao STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário, incumbirá, entre outras funções, zelar pela integridade da República Federativa diante da assunção pelos entes de posições antagônicas. Nesse passo, para

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como um todo somente poderá assegurar os direitos fundamentais de seus cidadãos

(objetivo número um do Estado Democrático de Direito) se puder sustentar-se e criar

mecanismos de gestão que possam assegurar segurança jurídica aos gestores públicos

e à boa administração.

No Novo Código de Processo Civil a Advocacia Pública foi igualmente

valorizada. Nesse sentido, prevê o art. 183 competir a tal órgão defender e promover os

interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por

meio da representação judicial, em todos os âmbitos federativos, das pessoas jurídicas

de direito público que integram a administração direta e indireta.

Diante de todas as transformações ocorridas no mundo jurídico, sobretudo em

vista do Novo Código de Processo Civil, a Advocacia Pública deve buscar contínua

preparação para a defesa adequada da ordem jurídica, composta pela Constituição

Federal, princípios e por toda legislação existente, mas também, como aqui se

defenderá com mais profundidade adiante, pelos precedentes, cuja força normativa foi

reconhecida pela Constituição Federal inicialmente às decisões proferidas em controle

de constitucionalidade e às súmulas vinculantes, e agora foi encampada pelo NCPC, ao

prever que os juízes e Tribunais observarão os padrões decisórios contidos nas

decisões indicadas no art. 927.

Para tanto, deverá atuar eficazmente no próprio processo em que se buscará a

formação do precedente, valendo-se das prerrogativas processuais em razão do

interesse público que tutela, adequando a forma de demandar, de defender, de recorrer

e até de, se o caso, rescindir a coisa julgada, enfim, de atuar na relação processual

para fazer prevalecer os interesses antes indicados.

E, uma vez formado o precedente, competirá à Advocacia Pública a devida

sinalização, aos demais órgãos internos da Administração, de como aplicá-lo no dia a

dia, bem como em relação ao juízo de superação e de distinção, que não são restritos

ao Judiciário, mas que também podem ser exercidos por todo aquele que proferir uma

decisão jurídica, englobando-se por óbvio os atos administrativos, tudo sob o controle

da sindicância judicial.

garantir o próprio princípio federalista, competirá ao STF processar e julgar, originariamente, as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.

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Deverá, ainda, atuar adequadamente nas relações processuais formadas, com

a finalidade de fazer prevalecer precedente antes formado, ou de, se o caso, afastar a

aplicabilidade de padrão decisório alegado existente, ou, ainda, de exercer

corretamente a fundamentação em relação à superação ou à distinção no caso

concreto.

Por isso, a advocacia “passa a ter o dever de colaborar com o sistema,

orientando os seus clientes sobre as posições consolidadas nos tribunais e exercendo o

patrocínio de acordo com esta orientação”,514 dever esse que tem mais força em

relação aos advogados públicos, notadamente porque, como se defenderá, em razão

do caráter vinculante do precedente, da sua concepção como integrante do

ordenamento jurídico e da observância dos princípios inerentes à atuação

administrativa, estará a Administração Pública também vinculada a ele na exata medida

em que o juiz fixa a norma aplicável.

Sem perder a sua raiz e identidade republicana, o advogado público, assim

como os juristas em geral, precisa se reciclar e enxergar o Direito a partir da

Constituição, reconhecendo-se a constitucionalização do direito processual público515 e

dos demais ramos do direito correlatos à sua atividade, traçando limites adequados à

supremacia do interesse público e ao princípio da legalidade que, embora não sejam

mais concebidos como originalmente, ainda se constituem nas bandeiras de tal carreira

jurídica.

10. Conclusões parciais

Diante do que foi trabalhado neste capítulo, é possível assumir que:

i) a Administração Pública se encontra vinculada ao precedente, na exata e

limitada medida em que a Corte interpreta a aplicação da lei;

514 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Precedentes e jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no Direito Brasileiro Contemporâneo. In: MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT, 2014, p. 29. 515 Merece registro a obra Direito Processual Público: a Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2000, coordenada por Carlos Ari Sundfeld e Cássio Scarpinella Bueno.

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ii) o não cumprimento dos precedentes redunda em ofensa ao princípio da

igualdade administrativa, à moralidade, acarreta a insegurança jurídica e se constitui

em prática atentatória à boa administração;

iii) que a Advocacia Pública conta com desafio instigante, qual seja, o de

auxiliar a Administração Pública para interpretar os precedentes e fixar os limites de sua

aplicabilidade.

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CAPÍTULO 4. O REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO-PROCESSUAL

E O DEVER-PODER DE RECORRIBILIDADE

1. Considerações Iniciais sobre o regime jurídico-administrativo-

processual

Embora não livre de várias críticas, sobretudo diante dos doutos

posicionamentos contrários, admitiu-se neste trabalho que o nosso país recepcionou,

paulatinamente, o modelo do stare decisis, partindo-se de uma recepção parcial e

atenuada para chegar-se à estrutura adotada pelo Novo Código de Processo Civil.

E diante das várias particularidades existentes, conclui-se pela existência de um

sistema de precedentes próprio (à brasileira), com reflexos de várias ordens,

especialmente extraprocessuais, como ocorre em relação à Administração Pública de

um modo geral.

É certo que, conforme foi pontuado, a Administração Pública está sujeita ao

ordenamento jurídico como um todo, como regra básica do próprio Direito

Administrativo. A legalidade vincula a atuação do agente, que somente poderá realizar

aquilo que está na moldura legal. A sua atenção volta-se ao texto legal, até como forma

de privilegiar o trabalho do legislador, devendo o administrador público definir-lhe o

sentido em cada ação que pratica.

Mas, também foi afirmado que os efeitos do precedente alcançam a

Administração Pública, no exato limite do sentido do texto definido pelo órgão judicial,

medida essa amparada pelos princípios da igualdade, segurança jurídica e moralidade,

bem como que representa técnica garantidora de boa administração.

E tais efeitos atingem positiva ou negativamente várias relações jurídicas

estabelecidas com a Administração Pública, como ocorreu com o Mandado de Injunção

n. 812-8, em que o Supremo Tribunal Federal, a um só tempo, admitiu o exercício do

direito de greve pelos servidores públicos, excluindo-o, contudo, aos serviços

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inadiáveis. A inobservância dos precedentes, no âmbito administrativo, em certas

circunstâncias, admitirá a utilização da ação de reclamação, o que reforça ainda mais o

caráter vinculante do precedente.

Mas os reflexos não se circunscrevem a esse âmbito, alcançando também os

processos em que as pessoas jurídicas de direito público forem parte ou tiverem

interesse em participar.

Os atos praticados por estas pessoas no processo, como atos da

Administração, executados por meio de Advogados Públicos, são regidos pelo regime

jurídico-administrativo – e, consequentemente, com observância dos princípios

administrativos, bem como pelas Normas Fundamentais do Novo Código de Processo

Civil, notadamente o princípio da boa-fé processual, formando-se um grande complexo

de princípios e regras jurídicas a serem seguidas, que se complementam, enfatizando-

se o aspecto ético atinente à conduta adequada de qualquer litigante, sobretudo das

pessoas jurídicas de direito público.

A esse complexo de princípios e regras passa-se a denominar de regime

jurídico-administrativo-processual, consistente, como se verá mais adiante, no modelo

de atuação processual regido notadamente pelos princípios da legalidade, moralidade

administrativa e da boa-fé processual, a ser implementado pela União, Distrito Federal,

Estados, Municípios e suas Autarquias respectivas, independentemente do polo da

ação que ocupem ou se terceiros intervenientes.

Partindo-se desse modelo de atuação, há de ser investigado como deve o

poder público atuar no processo, por imposição do regime jurídico-administrativo-

processual, quando existir precedente sobre o tema, notadamente em relação à

impugnação dos pronunciamentos judiciais fundamentados em padrões decisórios

fixados no âmbito das Cortes.

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2. A relação entre os precedentes e a conduta da Administração Pública no

âmbito processual

Diante da complexidade de relações que envolvem o Estado, quer seja pelo

exercício de suas funções administrativa, legislativa e judiciária, quer seja pela própria

convivência precípua da pessoa jurídica de direito público com os indivíduos, podem

surgir inúmeros conflitos, que estarão sujeitos ao controle jurisdicional,516 que será

exercido “por uma intervenção do Poder Judiciário no processo de realização do direito.

Os fenômenos executórios saem da alçada do Poder Executivo, devolvendo-se ao

órgão jurisdicional”.517 Ou, de acordo com Goodnow, citado por Seabra Fagundes,

executa-se “a vontade do Estado por via judiciária”.518

Nesse contexto, deve ser investigado como o Estado, ocupando a relação

jurídica processual como parte ou como terceiro, deve ser visto. Estaria ele em situação

de superioridade? Ou estaria em pé de igualdade com o indivíduo ocupante do polo

contrário?

A propósito do tema, ensina Seabra Fagundes que, sendo necessária a

execução da vontade do Estado pela via judiciária, a “Administração não é mais órgão

ativo do Estado. A demanda vem situá-la, diante do indivíduo, como parte, em condição

de igualdade com ele”,519 protegendo-se o indivíduo em face da Administração Pública.

Não obstante, deve ser reconhecido que, em razão do interesse público tutelado, o

Estado detém determinadas prerrogativas.

As pessoas jurídicas de direito público, em razão da falta de gerenciamento

adequado de suas ações, da não utilização dos meios alternativos de solução dos

litígios, da própria interpretação da indisponibilidade do interesse público e da

complexidade das relações em que envolvidas, se veem incluídas em número

considerável de ações relativas a grande variedade de matérias.

516 Esse controle judicial é mais enfático em países de regime presidencialista, como o Brasil, pois “praticamente no Poder Judiciário está o único elemento fiscalizador das atividades executivas”. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Op. cit., p. 137. 517 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Op. cit., p. 134 518 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Op. cit., p. 134. 519 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Op. cit., p. 134

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Ao analisar a questão de maneira geral, já se apontou que a ciência processual

deve se preocupar com três tipos de litigiosidade: a individual, a coletiva e a de massa

ou de alta intensidade.520 A lição pode ser transportada para o direito processual público

e para a correta dimensão das demandas que envolvem as pessoas jurídicas de direito

público.

Constitui litigiosidade individual aquela que envolve “alegações de lesões e

ameaças a direito isoladas”.521 Não há inter-relação da ação com outras demandas,

guardando-se certa individualidade. No âmbito processual público, é possível indicar,

como exemplo, a ação proposta pelo indivíduo que pretende ver expedido um alvará,

negado por conta do não preenchimento de requisito objetivo.

Insere-se como litigiosidade coletiva aquela que envolve direitos coletivos,

difusos e individuais homogêneos, propostas, como regra, por entes detentores de

legitimidade extraordinária (art. 5º da Lei n. 7.347/1985).

E, considerando-se os serviços públicos inerentes à função administrativa, bem

como o dever de satisfação de direitos fundamentais, há uma verdadeira avalanche de

ações nesse sentido no dia a dia forense, propostas em face das pessoas jurídicas de

direito público.

Destacam-se, nesse contexto, as ações coletivas, notadamente as ações civis

públicas, cujos legitimados constam do art. 5º, da Lei n. 7.347/1985, em que se busca a

tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Por fim, há a litigiosidade de massa ou de alta intensidade, propostas por

contribuintes, servidores públicos, necessitados de políticas públicas e que são

“embasadas prioritariamente em direitos individuais homogêneos que dão margem à

propositura de ações individuais repetitivas ou seriais”, dotadas de questões comuns.522

Neste contexto de ampla abrangência dos litígios, as pessoas jurídicas de

direito público poderão atuar ora como parte, ora como terceiro interveniente,

oportunidades em que estarão em busca da defesa da legalidade e da supremacia do

520 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Gen – Forense, 2015, p. 283. 521 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Op. cit., 283. 522 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Op. cit., 283.

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interesse público, princípios estes que atuam como vigas mestras na argumentação

jurídica a ser delineada processualmente, mas sem se descuidar do aspecto ético

envolvido, impondo-se a observância do regime jurídico-administrativo-processual.

Em qualquer tipo de ação (individual, coletiva ou serial), é possível que a

pessoa jurídica de direito público se depare com pretensão em que, ao menos parte

dela, encontre amparo em tese jurídica vinculante fixada pelas Cortes.

Quer-se, com isso, apontar que as pretensões podem estar total ou

parcialmente amparadas em precedentes e a conduta da Administração deverá variar

em conformidade com o fato de ser a tese pressuposto da pretensão principal ou de

pedidos acessórios.

Assim, não se poderia admitir, no âmbito do Estado de São Paulo, a postulação

de execução fiscal relativa a obrigação tributária em que se reconhece a não incidência

do ICMS sobre o simples deslocamento de mercadoria de um para outro

estabelecimento do mesmo contribuinte, mesmo na hipótese de serem

estabelecimentos localizados em diferentes Estados da federação, conforme a ratio

decidendi que pode ser extraída do acórdão proferido no Recurso Especial n.

1.125.133/SP, julgado sob o regime dos recursos repetitivos. Para esta hipótese, a

própria tese principal, relativa à obrigação tributária, estaria comprometida.

Em outros casos, a tese principal poderá ser amplamente discutida. Porém,

havendo seu acolhimento, estará a Administração vinculada aos precedentes existentes

sobre os acessórios da obrigação ou questões secundárias. Por exemplo, em ação de

desapropriação indireta, muito embora esteja livre para discutir a inviabilidade de

acolhimento da pretensão de indenização, tem-se a vinculação aos precedentes sobre

o tema, notadamente em relação aos juros e correção monetária.

Por vezes, a solução da questão jurídica não é uniforme nas Cortes de Justiça,

existindo diferentes decisões sobre o mesmo tema. Algumas dessas decisões são

favoráveis ao poder público, enquanto outras seguem em caminho diametralmente

oposto. Não existe precedente sobre o tema, embora haja várias decisões judiciais que

solucionem a questão, mas sem força vinculante.

Diante dessa falta de uniformidade, o poder público seguirá fiel à interpretação

jurídica atribuída pela Advocacia Pública e à orientação dos superiores hierárquicos, até

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mesmo pela própria presunção de legitimidade de seus atos e interpretação de que a

orientação seja apropriada para a defesa da supremacia do interesse público e da

legalidade. Segue-se a lei e a interpretação interna, emanada de órgão da

Administração no exercício de suas atribuições.

Esses exemplos são importantes para demonstrar, principalmente, a

importância da Advocacia Pública para prevenir a litigiosidade e promover isonomia,

segurança jurídica e eficiência, bem como para avaliar a própria conduta do Estado

(sentido amplo) nos processos pendentes de julgamento e, eventualmente, com coisa

julgada já formada.

Com efeito, é de competência da Advocacia Pública promover a consultoria e

assessoramento jurídico do Poder Executivo (art. 131 da Constituição Federal),

incluindo-se orientar a Administração Pública sobre os pronunciamentos previstos no

art. 927 do NCPC, tal qual defendido no Enunciado n. 26 do I Fórum Nacional do poder

público, de seguinte redação: “Cabe à Advocacia Pública orientar formalmente os

órgãos da Administração sobre os pronunciamentos previstos no art. 927, com a

finalidade de prevenir litigiosidade e promover isonomia, segurança jurídica e

eficiência”.

Desta análise poderá derivar orientação no sentido de acolhimento imediato do

precedente, indicando que não mais dará continuidade à discussão judicial sobre o

tema. A partir desse momento, deve ser iniciado procedimento interno à Administração,

no sentido de ser aprovado enunciado normativo apto a conferir maior segurança até

mesmo aos próprios agentes públicos.

Porém, da análise do precedente formado, pode entender a Advocacia Pública

pela necessidade de continuidade da discussão judicial, até que ocorra o esgotamento

das instâncias, como pode ocorrer, por exemplo, com o incidente de resolução de

demandas repetitivas ou na assunção de competência, ou, ainda, diante de súmula

emanada do Superior Tribunal de Justiça, não obstante o tema ainda esteja sendo

analisado sob a ótica da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.

Também da análise do precedente, poderá emanar orientação da Advocacia

Pública no sentido de que, embora seja ele aplicável como regra, na hipótese há

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necessária distinção a ser realizada, ou que é correta a tentativa de sua superação,523

ou, até mesmo, que se busque a modulação dos efeitos.524

Todas essas situações demonstram a complexidade de lidar com os

precedentes, exigindo-se juízo adequado em conformidade com o elemento ético. A

postulação, resistência ao pleito e a impugnação da decisão judicial, por parte do

Estado, fiel ao ordenamento jurídico, à moralidade e à boa-fé processual serão

influenciadas pela prévia existência de regra jurídica vinculante, desde que haja

coerência fática, devendo, por fidelidade ao objeto de pesquisa, partir-se para o

detalhamento em relação à impugnação.

3. Meios impugnativos das decisões judiciais para prevalecer a autoridade

dos precedentes

3.1 Considerações iniciais: os pronunciamentos judiciais impugnáveis por meio dos

recursos

Em relação à decisão judicial, é importante lembrar que o Código de Processo

Civil de 1973 elencava, entre os atos praticados pelos órgãos judiciais, as sentenças,

as decisões interlocutórias, os despachos e acórdãos (arts. 162 e 163). Tais

dispositivos eram objeto de críticas doutrinárias, pelo fato de que os atos do juiz não se

resumiam unicamente aos indicados. Na verdade, o órgão judicial pratica outros tantos,

como a condução da audiência, a colheita de depoimentos, a inspeção judicial, por

exemplo. Assim, os atos indicados se tratavam de pronunciamentos judiciais e não dos

atos do juiz.525

523 Enunciado n. 23 do I Fórum Nacional do poder público: “A existência de pronunciamento elencado no art. 927 não impede que o órgão da Advocacia Pública oriente a continuidade da discussão judicial da tese até o esgotamento das instâncias ou para arguir superação ou distinção”. 524 Enunciado n. 21 do I Fórum Nacional do poder público: “Na decisão que supera precedente, é cabível a modulação de efeitos em favor da Fazenda Pública, inclusive em matéria tributária”. 525 “Em verdade, dentre os atos que o juiz pratica no processo, há muitos outros – alguns de superlativa importância – que não consistem nem em sentenças, nem em decisões interlocutórias, nem em despachos: por exemplo, a inquirição de testemunha (art. 416) ou da parte (art. 344), a inspeção de pessoa ou coisa (art. 440), a tentativa de conciliação das partes (art. 331 e 448, principio), a audiência

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O NCPC corrigiu a imprecisão terminológica, conforme se vê do art. 203, ao

prever que os “os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças526, decisões

interlocutórias527 e despachos.528” (caput), e que acórdão é “o julgamento colegiado

dos cônjuges sobre os motivos da separação consensual (art. 1.122, caput, com a redação dada pelo art. 39 da Lei n. 6.515), a abertura de testamento cerrado (art. 1.125), a arrecadação dos bens da herança jacente (art. 1.145), o exame do interditando (art. 1.181) e assim por diante”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 241. 526 Conforme dispõe o parágrafo primeiro do art. 203, “ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. A definição adotada pelo legislador levou em consideração os reclamos da doutrina, para o fim de unir os critérios de conteúdo e de efeito do ato. Relevante foi a ressalva levada a cabo na parte inicial do parágrafo primeiro do art. 203, no sentido de ser levada em consideração as particularidades dos procedimentos especiais. E isso pois há procedimentos especiais em que haverá sentenças não correspondentes, exatamente, ao conceito do artigo 203, § 1º, do CPC/2015, pois não terão o condão de pôr fim à fase cognitiva do procedimento comum, ou de extinguir a execução. É o caso da ação de exigir contas (artigo 550, §§ 4º e 5º, CPC/2015), cuja sentença que julga a 1ª. fase (apelável) e reconhece a obrigação de prestar as contas, não impede a 2ª fase (julgamento das contas), haja nova cognição, inclusive para eventual declaração de saldo (art. 552 do CPC/2015).” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Teoria Geral do Processo. Comentários ao CPC de 2015. Parte geral. São Paulo: Método, 2015, p. 663). 527 A decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre nas hipóteses de sentença (art. 203, § 2º do NCPC). Comparando-se a definição do Novo CPC com a do CPC de 1973, não se tem impactante mudança, até porque “os pronunciamentos judiciais não sentenciais, mas com carga decisória, continuarão sendo os que, no curso do processo, resolvem as questões apresentadas pelas partes”. (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELORE, Luiz; RQOUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JR, Zulmar Duarte de. Teoria Geral do Processo. Comentários ao CPC de 2015. Parte geral. São Paulo: Método, 2015, p. 664). Admitem-se decisões interlocutórias (portanto, com carga decisória) com ou sem análise de mérito. Pode-se dizer que serão com análise de mérito todas as decisões proferidas e que, muito embora não encerrem uma fase procedimental, tenham como conteúdo uma das hipóteses indicadas no art. 487 do Novo Código de Processo Civil. A interlocutória que prefere julgamento antecipado parcial da lide é uma hipótese de decisão interlocutória de mérito. Desse modo, admitem-se as decisões interlocutórias típicas, em que não há análise de mérito, e decisões interlocutórias atípicas, que dizem respeito ao próprio mérito. Serão interlocutórias típicas aquelas, como foi dito, em que não há análise de mérito. Mesmo essas poderão ter conteúdo de sentença (embora sejam interlocutórias), como ocorre, por exemplo, com a exclusão de um dos litisconsortes. As decisões interlocutórias atípicas, por sua vez, comportam a seguinte divisão: i) decisões interlocutórias que versam sobre o mérito; e, ii) interlocutórias de mérito, com conteúdo de sentença. Para explicar a diferença entre as duas situações, parte-se do exemplo da decisão antecipatória de mérito (tutela provisória de urgência antecipatória). Neste caso, profere-se “decisão sobre o mérito, embora não seja decisão de mérito, no sentido do art. 485 do NCPC. É decisão sobre o mérito e, quando se afirma isto, se leva em conta o objeto sobre o qual recai a cognição do juiz”. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 370). Portanto, a decisão antecipatória de tutela, ou mesmo a decisão que defere a tutela da evidência, são decisões interlocutórias que versam sobre o mérito, mas não propriamente interlocutórias de mérito. Será decisão interlocutória de mérito (com conteúdo de sentença) a que, por exemplo, promover o julgamento antecipado parcial da lide (art. 356 do Novo CPC), ou então julgar improcedente liminarmente um dos pedidos (art. 332 do NCPC). Nestes casos, a decisão resolve o mérito, mas não coloca fim ao procedimento. Nesse sentido, “haverá decisões – que sempre consideramos serem verdadeiras sentenças – que a nova lei chama de interlocutórias, mas que transitam em julgado e podem,

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proferido pelos Tribunais”.529 Como afirmado por Fernando da Fonseca Gajardoni, “ao

empregar a expressão pronunciamento, o dispositivo diminui o alcance da disposição e

passa a tratar mais tecnicamente do tema”.530 Há, ainda, as decisões monocráticas

proferidas pelo relator no âmbito dos recursos, incidentes e processos de competência

originária dos Tribunais.

Como dito, os pronunciamentos judiciais deverão ser devidamente

fundamentados,531 consoante as exigências contidas no § 1º do art. 489 do NCPC,

exigindo-se do julgador, entre outros aspectos, que não se limite a invocar precedente

ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem

demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (inciso V), ou

não demonstre que deixou de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou

precedente invocado pela parte, não mostrando a existência de distinção no caso em

julgamento ou a superação do entendimento (inciso VI).

Em sequência, o parágrafo único, do art. 1.022 do NCPC considera omissa a

decisão que “deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos

repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob

julgamento (inciso I), ou “incorra em qualquer das condutas descritas no § 1o do art.

489” (inciso II).

eventualmente, ser rescindidas”. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 369). 528 Em conformidade com o art. 203, § 3º, do Novo Código de Processo Civil, são despachos todos os demais pronunciamentos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte. Servem para dar andamento ao processo, sem qualquer carga decisória e, por isso, são irrecorríveis. 529 “A nova lei usa o termo ‘pronunciamento’, e não aquele de que se serve o CPC/73, que, ao alistar três espécies de ‘atos’, referiu-se, apenas, aos pronunciamentos, aludindo, então, exclusivamente a uma categoria de atos, que não abrange todos os atos praticados pelo juiz, como, por exemplo, os praticados durante a fase instrutória, nem a tantos outros de igual relevância”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 368. 530 GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Teoria Geral do Processo comentários ao CPC de 2015. Parte geral. São Paulo: Método, 2015, p. 662. 531 Contrariando o dever de fundamentação exigido pelo Novo Código de Processo Civil, a Desembargadora Convocada TRF 3ª. Região decidiu que “o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentas as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida” (EDcl no MS 21.315/DF, Rel. Min. Diva Malerbi (Desembargadora convocada TRF 3ª Região), 1ª Seção, j. 08.06.2016, DJe 15.06.2016), decisão que, na verdade, é totalmente contrária às exigências do novo direito processual civil.

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O disposto nos dispositivos mencionados vem ao encontro da sistemática de

observância de precedentes encampada pelo Novo Código de Processo Civil, ao

prever, no art. 927, que o juiz ou Tribunal deverão observá-los e, para tanto, devem

levá-los em conta na própria fundamentação da decisão judicial, reconhecendo-se,

como já se fez, o seu caráter vinculante.

3.2 Meios de impugnação das decisões judiciais em busca da defesa da autoridade do

precedente

Antes de se ingressar na análise específica do dever-poder de recorrer das

decisões judiciais que tenham ou não aplicado específico precedente, com

pronunciamento desfavorável (ou aparentemente desfavorável) às pessoas jurídicas de

direito público, é necessário tecer considerações gerais sobre a impugnação das

decisões judiciais.

Os recursos, os sucedâneos recursais e a ações impugnativas são

apresentados como meios de impugnação dos pronunciamentos judiciais e todos são

aptos a manejar os precedentes, promovendo a sua aplicação, ou a distinção e a

superação.

Os recursos importarão no prolongamento do processo e somente assim são

considerados aqueles taxativamente previstos na lei processual.532 Têm como objetivo

modificar anterior decisão judicial, reconhecendo-se a existência de error in procedendo

e/ou de error in judicando.

No primeiro caso, reconhece-se a desconformidade de ato processual para com

o previsto na lei processual (vício processual), havendo preferência, ante o princípio da

primazia do julgamento do mérito (art. 4o do NCPC), pela sua possível desconsideração

ou regularização do vício.

532 Seguindo-se o princípio da taxatividade recursal que, segundo Nery e Nery, “quer dizer que os recursos são enumerados pelo CPC e outras leis processuais em numerus clausus, vale dizer, em rol exaustivo. Somente são recursos os meios impugnativos assim denominados e regulados na lei processual. Não são recursos a correição parcial (...), a reclamação (art. 988) e o pedido de reconsideração”. NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei n. 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 1987.

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Em relação ao error in judicando, o órgão julgador do recurso poderá modificar

o resultado da decisão recorrida, por verificar que ela está em desconformidade com a

ordem jurídica como um todo.

O recurso é meio adequado para modificar decisão judicial que não aplique (ou

aplique mal) a ratio decidendi de precedente, ou que não se utilize adequadamente das

técnicas da superação ou da distinção. Estas hipóteses definirão o objeto recursal,

devolvendo-se ao órgão ad quem a matéria (dimensão horizontal do efeito devolutivo).

E a impugnação da decisão judicial – para questionar-se a aplicabilidade ou não

de precedente – poderá pressupor a existência de error in procedendo ou de error in

judicando.

A propósito, imagine-se que o recurso impugne pronunciamento que extinga o

processo de execução fiscal, indeferindo a inicial que não foi instruída com o

demonstrativo de cálculo do débito. Esta decisão não observou a regra jurídica

encampada na Súmula n. 559 do STJ e, por isso, deve ser anulada, retomando-se o

andamento correto da execução fiscal.

Note-se, neste caso, que um precedente conterá argumento suficiente para

anular a decisão judicial, de modo que a inobservância de precedente poderá importar

em julgado com error in procedendo.

Também (e, naturalmente), a inobservância de precedente acarretará o

reconhecimento de error in judicando, solucionando-se o mérito de modo diverso.

Nesse sentido, a título de exemplo, pode-se citar a inobservância da regra

extraída da Súmula 494 do STJ, que trata do benefício fiscal do ressarcimento do

crédito presumido de IPI relativo às exportações.

Mais adiante, o tema recursos tornará a ser debatido.

Diferentemente, os sucedâneos recursais são os meios que, apesar de não

previstos como recursos, fazem as vezes destes. Em outras palavras,

toda vez que a determinado remédio faltarem as notas essenciais do conceito de recurso, ou seja, a previsão legal (princípio da taxatividade), a voluntariedade na interposição e o desdobramento no processo pendente, nada obstante a finalidade comum de reformar ou de invalidar pronunciamento

judicial, formará categoria paralela à dos recursos.533

533 ALVIM, Arruda. ASSIS, Araken. ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 1089.

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Entre os sucedâneos recursais, podem ser destacados a remessa necessária e

o mandado de segurança contra ato judicial não transitado em julgado.

3.3 A remessa necessária e o dever do tribunal de adequar a sentença ao precedente

Como já foi dito, é possível que o pronunciamento jurisdicional proferido não

esteja em conformidade com precedente vinculante, ou, então, mesmo que embora

aparentemente esteja, o interesse público impõe o dever ao poder público de valer-se

dos meios necessários para a sua superação ou a distinção no caso concreto.

Para tanto, a Administração Pública, por meio de seus órgãos judiciais, deverá

valer-se dos instrumentos necessários postos à disposição pelo ordenamento

processual para a reversão ou adequação do julgado.

De toda forma, o pronunciamento proferido em primeira instância,534 que seja

contrário ao poder público, resguardadas as ressalvas previstas no § 3º, do art. 496, do

534 Por não ser o objeto principal da discussão, deixa-se de discorrer diretamente no texto sobre a natureza do pronunciamento que será objeto da remessa necessária. Tal discussão tem como pano de fundo o fato de somente a sentença estar sujeita à remessa, ou também se a decisão interlocutória de mérito se submeterá, com o que, desde já fica registrado, concordamos. A questão do cabimento ou não da remessa necessária em face de decisão interlocutória de mérito tem viés prático, pois, com o recurso de agravo de instrumento, a pessoa jurídica de direito público delimitará o objeto recursal, ao passo que a remessa necessária, como dito acima, tem conteúdo amplo, devolvendo a matéria em sua integralidade ao tribunal. Por esse motivo, poderá a parte contrária ver a decisão interlocutória modificada em seu desfavor, apesar de não impugnada pela Fazenda Pública, sujeitando-a a, posteriormente, interpor os recursos que entender pertinentes. A decisão interlocutória de mérito tem conteúdo de sentença. O pronunciamento jurisdicional só não tem essa natureza porque não encerra uma fase procedimental (critério da finalidade do ato). Por esse motivo, poderá impor o cumprimento de variadas obrigações (pagar, fazer e entregar), tal como seria feito ao final, por efetiva sentença. Sendo assim, o interesse público poderá ser prejudicado pela imposição de obrigação à pessoa jurídica de direito público, devendo o órgão responsável, dentro dos limites éticos, interpor o respectivo recurso de agravo de instrumento. Porém, é possível que, não obstante seja interposto o agravo, possa o Tribunal reconhecer que a decisão possa ser modificada em prol da pessoa jurídica de direito público, em matéria não alegada no recurso. Nesse caso, caberia a modificação, ou estaria o Tribunal adstrito ao objeto recursal delimitado? Além disso, excepcionalmente, é possível também que, por lapso ou problemas administrativos, o recurso de agravo não tenha sido interposto oportunamente, acarretando a exigência de obrigação pela pessoa jurídica de direito público, que possa ir na contramão do interesse público. Considerando tais situações, bem como a finalidade da remessa necessária, tem-se que tal expediente é cabível também nas decisões interlocutórias de mérito. Para tanto, podem ser utilizados os seguintes argumentos favoráveis: a) a menção à sentença, contida no art. 496, refere-se ao conteúdo e não propriamente à finalidade do pronunciamento; b) a decisão interlocutória poderá importar em condenação significativa ao poder público, tal qual uma sentença definitiva; e, c) inviabilidade de rediscussão da matéria, mesmo na sentença de mérito, por conta da preclusão consumativa. O art. 496 do Novo CPC indica que estará sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal, a

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NCPC, deverá ser revisto pelo respectivo Tribunal, em decorrência da remessa

necessária,535 que acarreta na devolução integral da matéria ao Tribunal, em extensão

até mesmo mais ampla do que aquela circunscrita por eventual recurso interposto.536

Como se vê, a remessa necessária foi mantida no Código de Processo Civil de

2015537 e se trata de condição de eficácia538 das sentenças proferidas contra o poder

público, salvo nas hipóteses em que tal reexame é dispensado pela própria lei.

sentença que estiver indicada em um dos seus incisos. O fato de o art. 496 do NCPC mencionar que a “sentença”, por si só, não pode ser impeditiva do cabimento da remessa necessária, pois, como já afirmado, a decisão interlocutória de mérito tem conteúdo de sentença. Só não é sentença por conta da finalidade do ato. Além disso, a decisão interlocutória de mérito, como, por exemplo, aquela que proferir julgamento antecipado parcial da lide (art. 356), por não haver necessidade de produção de provas (art. 355, I), poderá impor condenação de alto valor ao poder público, sobejando os limites indicados no parágrafo terceiro do art. 496. Por fim, a remessa necessária enseja a reanálise da matéria, quer tenha ou não recurso voluntário da pessoa jurídica de direito público. E tal reanálise é exigida na sentença, desde que sejam observados os limites legais. Ora, se isso ocorre na sentença, porque não haveria de ocorrer também na decisão interlocutória, em que será possível a imposição da mesma obrigação? Não há motivos para qualquer exclusão. Conclui-se, então, pelo cabimento da remessa necessária quando proferida decisão interlocutória de mérito. Contudo, mesmo a remessa necessária incidente em caso de sentença não será cabível em todas as condenações impostas ao poder público. Da mesma forma, tais limitações também devem ser aplicadas à remessa incidente em decisão interlocutória de mérito. A remessa necessária, então, é condição de eficácia da decisão (sentido amplo) proferida em primeiro grau contra o poder público, desde que não haja a exclusão expressa da lei. 535 A remessa necessária é um instituto presente há tempos no ordenamento jurídico brasileiro. Inicialmente, era conhecida como apelação necessária ou recurso ex officio, passando por reexame necessário e chegando no Novo CPC como remessa necessária. A sua essência, contudo, sempre foi uma única: a de propiciar que as sentenças proferidas contra a Fazenda Pública, assim entendidas as pessoas jurídicas de direito público, fossem revistas pelos Tribunais, a fim de que o interesse público prevalecesse frente ao interesse particular. 536 E assim o é, pois, a remessa necessária devolve a matéria em toda a sua extensão ao Tribunal, de modo que, havendo condenação, por exemplo, será devolvido o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado (súmula 325, do STJ). 537 O Novo CPC, conforme já adiantado, manteve o instituto, porém, seguindo uma linha de coerência, diminuiu a sua incidência, aumentando consideravelmente os valores das condenações que seriam aptas a ensejar que a sentença obrigatoriamente fosse revista pelo Tribunal mediato, ou seja, aquele a que o juízo está diretamente vinculado. Tal previsão é razoável, pois o panorama hoje existente é totalmente diferente do presente quando de sua instituição, ou mesmo quando do Código de Processo Civil de 1973. À época, a defesa do Estado em juízo não contava com o aparato jurídico hoje existente, notadamente pelo número de advogados públicos à disposição da Administração Pública, profissionais aptos a levarem as matérias ao conhecimento dos Tribunais e fazerem com que o interesse da coletividade prevaleça sobre os interesses particulares, primando pela indisponibilidade do interesse público e, consequentemente, dos recursos públicos. Outro fator favorável à mitigação da remessa necessária consiste no entendimento de que mesmo a prevalência do interesse público sobre o particular deve seguir determinadas balizas, pois princípios basilares do processo, como o da própria preclusão, são caros à processualística e ensejam a observância por todos. Em outras palavras, o desnível da balança deve ser corrigido, mas também deve observar determinados limites. Por isso, a prerrogativa processual da remessa necessária – e, defende-se aqui, ser uma prerrogativa, e não um privilégio –, embora ainda deva permanecer presente, de fato merecia mitigação em relação às hipóteses de incidência. Com efeito, não era proporcional sujeitar o particular à remessa necessária para condenações de baixo valor, como aquelas um pouco acima dos sessenta salários mínimos, como também não é razoável a sociedade

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O precedente, diante da remessa necessária, poderá ser analisado diante de

diferentes óticas.

Com efeito, as súmulas de Tribunais superiores, acórdãos proferidos pelo

Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de

recursos repetitivos, ou, ainda, entendimento firmado em incidente de resolução de

demandas repetitivas ou de assunção de competência, funcionarão como precedentes

aptos a, nos termos do § 4º, do art. 496 do CPC 2015, impedir a remessa necessária.539

Tem-se, então, a função impeditiva, não persistindo a condição de eficácia do

pronunciamento pendente. Tal fato deve constar na sentença ou em ato posterior.540

Nestes casos, não havendo recurso voluntário, forma-se a coisa julgada material.

Tem-se, então, o seguinte raciocínio lógico: se a tese jurídica adotada e os

fatos relevantes indicados no pronunciamento guardarem coerência com a ratio

decidendi e com os elementos fáticos relevantes, não haverá a incidência da remessa

necessária e, inexistindo recurso voluntário, tem-se a formação da coisa julgada

suportar uma condenação de quinhentos mil salários mínimos decorrente de um lapso do agente público de não haver interposto o recurso adequado. Há necessidade de encontrar-se o meio termo. E a mudança decorrente do Novo CPC, ao que parece, encontrou esse meio termo, justamente por haver majorado consideravelmente os valores da condenação que levam à incidência da remessa necessária, bem como por ratificar que o instituto não será aplicado se a sentença se fundar em precedente vinculativo. É verdade que o instituto tende a ser extirpado do sistema processual, principalmente pelo sentimento de inobservância do princípio da igualdade processual, bem como em vista do fortalecimento da Advocacia Pública como um todo. A propósito, as Leis n. 10.259/2001 e 12.153/2009, respectivamente dos Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pública, já excluíram a remessa necessária de forma expressa, de modo que a subida ao órgão jurisdicional ad quem (para julgamento de recurso inominado) somente pode se dar por meio de recurso, em que é guardada a voluntariedade. 538 Assim, “enquanto não for procedida a reanálise da sentença, esta não transita em julgado, não contendo plena eficácia”. DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos Tribunais. 10ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 515. Nesse sentido, a súmula 423, do STF, segundo a qual “não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege”. 539 Além das hipóteses referidas, também impede a remessa necessária o fato de o entendimento adotado na sentença coincidir com precedente administrativo, ou seja, orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa. 540 Posicionamento encampado no Enunciado n. 18, do I Fórum Nacional do poder público, de seguinte teor: “18. (art. 496, §§ 3º e 4º, Lei n. 13.105/15). A dispensa da remessa necessária prevista no art. 496, §§ 3º e 4º, CPC, depende de expressa referência na sentença. (Grupo: O poder público e a Litigância de Massa - precedentes, aspectos econômicos do processo)”. Segundo Nery, “verificando ser caso de remessa obrigatória, o juiz, na sentença, determinará o envio dos autos ao tribunal ad quem, que procederá ao reexame integral da sentença. Caso a sentença seja omissa, o tribunal deverá, ex officio ou a requerimento do interessado, avocar os autos”. NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 1.175.

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material. Se houver a interposição de recurso voluntário, o efeito devolutivo estará

restrito à delimitação contida no recurso interposto pelo poder público.

De outro lado, a remessa necessária também poderá ter por fundamento

decisório, para a reversão do julgado, a regra adotada em precedente, o que mais se

justifica pelo interesse público na observância da igualdade entre os administrados e

segurança jurídica à Administração Pública de um modo geral.

Sobre tal ponto, aliás, apresentam-se duas questões. É possível que a remessa

necessária seja julgada monocraticamente para que haja a reversão do julgado com

fundamento na inobservância de precedente? E, ainda, haveria necessidade de prévia

manifestação da parte a respeito?

Em relação ao primeiro questionamento, deve-se, inicialmente, consultar o que

era decidido pela jurisprudência sob a égide do Código de Processo Civil de 1973.

Nesse sentido, estava pacificado no Superior Tribunal de Justiça que a remessa

necessária se equiparava a recurso para tal fim, de modo a permitir que fosse julgada

por decisão monocrática (Súmula 253), regra essa que, por coerência, deve ser

mantida.

Por isso, deve ser aplicado o disposto no art. 932, III, IV e V, do Novo Código

de Processo Civil, à remessa necessária, podendo o relator, por decisão monocrática,

liminarmente, não conhecer da remessa necessária inadmissível ou prejudicada e

negar provimento se a sentença estiver em conformidade com precedente. Também

poderá dar provimento monocraticamente se o pronunciamento judicial for contrário a

precedente.

Analisa-se, neste momento, se, para dar provimento de forma monocrática,

deve o relator oportunizar à parte contrária ao poder público a oportunidade de se

manifestar previamente.

A propósito, o inciso V, do art. 932, do NCPC, registra que incumbe ao relator

“depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a

decisão recorrida for contrária a (...)”. Como naturalmente se verifica, o dispositivo legal

exige que se oportuniza à parte contrária a prévia manifestação, em obediência ao

princípio do contraditório dinâmico, substancial ou efetivo, encampado entre as Normas

Fundamentais do Novo CPC (art. 9º e 10).

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Por isso, antes de dar provimento ao recurso, a parte contrária terá a

oportunidade de apresentar os seus argumentos ao relator, demonstrando os motivos

pelos quais entende que a decisão não deva ser modificada. A um só tempo, garante-

se a comparticipação da parte e, sobretudo, que seja evitada a decisão surpresa.

Para demonstrar tal necessidade, parte-se do seguinte exemplo: se o autor

ajuizar determinada ação indenizatória em face do poder público, sendo proferida

sentença de procedência do pedido para condenar a pessoa jurídica de direito público

ao ressarcimento de dano material e de dano moral.

A Administração Pública, neste caso, é condenada ao pagamento das

indenizações, porém, recorre unicamente em relação ao dano moral. O Tribunal, por

sua vez, ao analisar o recurso, poderá verificar que os juros moratórios e correção

monetária dos danos materiais, por observância de orientação do STF, extraída de

precedente, foram aplicados incorretamente e, por isso, por força da remessa

necessária, poderá modificá-los. Antes, porém, deve oportunizar à parte a prévia

manifestação, de modo a permiti-la argumentar em prol da inaplicabilidade do

precedente à hipótese.

De tal forma, aliás, sob o fundamento da observância do princípio do

contraditório dinâmico, não se pode dar provimento, sem a prévia oitiva da parte, à

remessa necessária, quer seja de forma monocrática ou colegiada.

3.4 A formação do precedente em sede de remessa necessária

A remessa necessária poderá ser decidida por decisão monocrática de relator,

hipótese em que, havendo o trânsito em julgado, não haverá possibilidade de formação

de precedente.

Não sendo aquela hipótese, a remessa necessária será decidida pelo

colegiado, podendo haver a formação de precedente se o julgamento ocorrer em sede

de incidentes de assunção de competência ou de incidente de resolução de demanda

repetitiva.

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3.5 Superação e distinção em sede de remessa necessária

A esta altura, permite-se questionar se, em sede de remessa necessária, será

possível a aplicação das técnicas da superação e da distinção.

Como já foi alertado, a remessa necessária devolve ao Tribunal o conhecimento

de toda matéria. Possui, por isso, extensão mais ampla do que o recurso, limitado este

à matéria impugnada.

E esta extensão ampliada da remessa necessária acarreta a possibilidade do

Tribunal, dentro de certos limites, dar-lhe provimento, aplicando-se as técnicas da

superação e da distinção.

Mas, para que isso ocorra, deve-se vencer óbice que pode negar ao cabimento

da própria remessa.

Com efeito, conforme dito acima, a regra proibitiva contida no § 4º, do art. 496

do NCPC, faz com que não haja a incidência da remessa necessária e,

consequentemente, não reste pendente condição de eficácia da sentença. E assim

ocorrerá se esta estiver em conformidade com súmula de Tribunal Superior, acórdão

proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos e entendimento

firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de

competência.

Para estes casos, como não haverá a própria subida, tem-se que não será

possível a superação ou a distinção.

Excepciona-se a regra se, embora existente o precedente, houver posterior

alteração da lei a ensejar a sua superação, técnica não aplicada na sentença. Nesta

situação, a própria conformidade da decisão judicial ao precedente não encontra

amparo no ordenamento jurídico e, por isso, há de se admitir a remessa necessária.

Com relação à distinção, também se vislumbra hipótese excepcional,

consistente no fato de que o magistrado, ao aplicar a ratio decidendi, fê-lo por coerência

sistêmica. Para tanto, entendeu que o CASO 1 guarda correlação com o CASO 2 e, por

isso, aplicou o precedente. Porém, o poder público demonstra, oportunamente, ou

interpondo agravo contra a decisão que nega a remessa, ou provocando o Presidente

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194

do Tribunal, que não há correlação entre os casos e, por isso, não seria hipótese de

aplicar o precedente e de negar a própria subida dos autos.

Neste caso, excepcionalmente, tem-se como possível a aplicação da técnica da

distinção em sede de remessa necessária.

De toda forma, se o sentenciante nega a aplicação de precedente em prol do

poder público, não presentes outras hipóteses descondicionantes, a remessa

necessária se impõe.

3.6 A dispensa da remessa necessária como efeito da edição de orientação normativa

dispensadora da interposição de recursos

Como foi analisado, constitui medida saudável e em conformidade com os

princípios que regem a Administração, notadamente da impessoalidade, segurança

jurídica, confiança e boa-fé, a edição, pelos órgãos de direção da Advocacia Pública, de

orientação padrão sobre a interposição ou não de recursos.

E a edição destes atos, que importam na dispensa de interposição de recursos,

tem efeito direto nos processos em que está sendo discutida a questão, qual seja, da

não incidência da remessa necessária.

No âmbito da União, havendo dispensa de interposição de recurso, em

orientação normativa, estaria também dispensada a remessa necessária.541

Ocorre que não havia a mesma previsão para as demais pessoas jurídicas de

direito público, o que acarretava situações em que, não obstante esta não interpusesse

recurso, por entender que o pronunciamento jurisdicional está adequado à ordem

jurídica e administrativa, estaria a sentença sujeita à remessa necessária.

Esta questão foi solucionada pelo Novo Código de Processo Civil, que previu,

em seu art. 496, § 4º, IV, a não incidência da remessa necessária diante da existência

de decisão com entendimento coincidente com o firmado vinculativamente no âmbito da

541 Com efeito, dispõe o art. 12 da Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que “não estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição obrigatório as sentenças proferidas contra a União, suas autarquias e fundações públicas, quando a respeito da controvérsia o Advogado-Geral da União ou outro órgão administrativo competente houver editado súmula ou instrução normativa determinando a não-interposição de recurso voluntário”.

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administração do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou

súmula administrativa.

Diante do contido no dispositivo mencionado, não persiste qualquer dúvida:

havendo orientação normativa dispensadora da interposição de recurso, não incidirá a

remessa necessária.

4. Limites éticos à interposição de recursos

4.1 Considerações iniciais

O processo no Novo Código é visto como o condutor de uma comunidade de

trabalho,542 no qual o magistrado é o seu gestor e conta com a comparticipação de

todos os envolvidos no processo para que se chegue a uma sentença de mérito justa e

efetiva.

A partir dessa visão processual, assegura-se o contraditório efetivo, dinâmico,

substancial, pelo qual as partes participam efetivamente da relação processual e podem

influenciar a solução de mérito, afastando-se a possibilidade de decisões surpresa.

De outro lado, com o ideal de comparticipação, surgem para as partes e

terceiros que participem da relação processual maior responsabilidade, pois lhes é

exigido comportamento cooperativo e que a sua conduta processual observe a boa-fé

objetiva, consoante se extrai dos artigos 5º, 79 e 80 do Novo CPC, aspecto axiológico

também presente no exercício do recurso.

4.2 O princípio processual da boa-fé objetiva

Sendo a segurança jurídica um dos fundamentos da República, tem a boa-fé

processual base na Constituição Federal, também como decorrência da dignidade da

542 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 60.

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pessoa humana (art. 1º, III) e da própria solidariedade social (art. 3º, I). Para outros,

trata-se de corolário do devido processo legal.543

Consiste em:

Exigir do agente a prática do ato jurídico sempre pautado em condutas normativamente corretas e coerentes, identificados com a ideia de lealdade e lisura. Com isso, confere-se segurança às relações jurídicas, permitindo-se aos

respectivos sujeitos confiar nos seus efeitos programados e esperados.544

O CPC de 2015 incluiu a boa-fé processual entre as normas fundamentais do

processo civil (normas estas constituídas de princípios e de regras jurídicas), sob uma

forma de cláusula geral (art. 5º), assim como já havia feito o Código Civil de 2002.

Este princípio processual tem como destinatários todos os sujeitos do processo,

alcançando, portanto, as partes, terceiros interessados e intervenientes, auxiliares da

justiça, juízes e Tribunais, que devem estabelecer um diálogo transparente, eficiente e

probo.545

Não obstante a menção expressa a tal princípio, é certo que boa-fé processual

já era utilizada pelo sistema processual anterior (CPC de 1973), servindo de

fundamento para várias decisões judiciais,546 como é possível se verificar de famoso

julgado que inibiu a nulidade de algibeira.547

Assim, o princípio da boa-fé processual, encampado no Novo CPC, já encontra

terreno fértil. A respeito, Zulmar Duarte faz importante observação a respeito, ao afirmar

que a disposição em si não é novidade (posto que já constava do art. 14, II do CPC de

1973), “mas a alteração topológica, posicionando a boa-fé em artigo específico

adornando as normas fundamentais do processo civil, marcam uma profunda mudança

na sua compreensão”.548 E completa: “A boa-fé assume papel de centralidade na

543 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. DELLORE, Luiz. ROQUE, André Vasconcelos. OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Teoria Geral do Processo. Comentários ao CPC de 2015. Parte geral. São Paulo: Método, 2015, p. 252. 544 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Op. Cit., p. 163. 545 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 163. 546 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 164. 547 AgRg na PET no AREsp 204.145/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 23.06.2015, DJe 29/06/2015. 548 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. DELLORE, Luiz. ROQUE, André Vasconcelos. OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Op. Cit., p. 29.

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compreensão do processo e, por conta disso, nos ônus, poderes, faculdades e deveres

processuais”.549

Logo, e por óbvio, a boa-fé é uma cláusula geral que vai reger, também, o

exercício do recurso, exigindo-se do recorrente comportamento ético e adequado,

proibindo-lhe, por exemplo, interpor recurso com intuito manifestamente protelatório

(art. 80, VII do Novo CPC).

Adotando a cláusula geral da boa-fé objetiva, o Novo Código de Processo Civil

propõe melhorar a relação juiz-litigantes, permitindo o estabelecimento de um

verdadeiro diálogo entre os sujeitos processuais nas mais diferenciadas fases do

processo, quer seja na preparatória do procedimento, de problematização e até mesmo

na fase recursal.

De fato, uma vez impugnada a decisão judicial, o recorrente instaura o

procedimento recursal, que variará consoante o tipo recursal utilizado. Em tal

procedimento recursal, da mesma forma, será estabelecido um diálogo entre os sujeitos

processuais, pois, i) o recorrente fixa o objeto recursal e indica os motivos pelos quais

entende que o pronunciamento jurisdicional deve ser modificado, ii) o recorrido será

intimado para refutar os argumentos apresentados e iii) o órgão jurisdicional ad quem

deverá analisar as teses apresentadas (fundamentação analítica).

Durante esse diálogo e na prática de todos os atos processuais, devem os

litigantes pautar as suas condutas sob a ordem da boa-fé objetiva processual.

Sob essa premissa, que alcança toda a relação processual desde o seu

nascedouro, os litigantes têm a seu favor a presunção de boa-fé. Como alertou Pontes

de Miranda, ao comentar o art. 17 do CPC de 1973, “presume-se a boa-fé de quem vai

litigar, ou está litigando, ou litigou. Tal presunção somente pode ser elidida in casu e

quando haja má-fé”.550

Cada litigante, então, tem o dever de boa-fé (que é presumido) para com cada

ato processual praticado. Há, portanto, um vínculo jurídico com a probidade em cada

ato e “a má-fé a respeito de um ato não se contagia a outro, nem cria, a respeito

549 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. DELLORE, Luiz. ROQUE, André Vasconcelos. OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Op. Cit., p. 29. 550 MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 358.

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dessoutro, presunção de má-fé. O princípio é de o que hão de se tratar, para os efeitos

de se caracterizar o abuso, separados, pluralisticamente, os atos e omissões do

litigante”. 551

As situações objetivas de litigância de má-fé são aquelas indicadas no art. 80

do Novo CPC (e, antes, no art. 17 do CPC de 1973), sobre as quais não há porque

questionar sobre o elemento vontade da conduta. De outro lado, as situações subjetivas

são aquelas em que a conduta não está indicada no art. 80, não obstante possa

caracterizar situação de má-fé processual a partir da constatação da intenção da

violação do dever de probidade.552

Portanto, o art. 80 do NCPC, alinhado ao elemento ético do NCPC, elenca as

hipóteses de caracterização da litigância de má-fé, praticadas por “aquele que se utiliza

de procedimentos escusos com o objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil ou

impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo procrastinando

o feito”,553 hipóteses em que será possível a aplicação de multa, a ser revertida em

benefício da parte contrária.

Conforme lembra Humberto Theodoro Júnior, a boa-fé processual é uma

cláusula geral, competindo ao magistrado “avaliar e determinar seus efeitos

adequando-os às particularidades do caso concreto”.554

Entre as hipóteses elencadas no art. 80, encontra-se a de interpor recurso com

intuito manifestamente protelatório (inciso VII), que não atinge os atos processuais

antes praticados.555

4.4 A litigância de má-fé no exercício do recurso

551 MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 358. 552 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. DELLORE, Luiz. ROQUE, André Vasconcelos. OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Op. Cit., p. 270. 553 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit., p. 414. 554 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 56ª. ed. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015, p. 81. 555 “Se o exercício abusivo do direito se deu ab initio, quer dizer, desde o pedido, então se estabelece a má-fé quanto à ação mesma, à demanda, ao processo, e não só quanto à parte ou ato do feito”. MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 358.

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O art. 17 do CPC de 1973, assim como o fez quase em sua inteira literalidade o

art. 80 do CPC de 2015, tipificam – para uns, em rol taxativo,556 enquanto que para

outros em rol exemplificativo557 – as condutas que, uma vez praticadas, indicam que o

litigante age de má-fé e que estão sujeitas às penas previstas na lei processual. Tais

condutas são dissociadas do resultado do processo.558

O art. 17, VII, do CPC de 1973, já dispunha e o art. 80, VII do CPC de 2015

repetiu que se reputa litigante de má-fé aquele que interpuser recurso com intuito

manifestamente protelatório.

Ao mesmo tempo em que o sistema assegura à parte o direito de impugnar as

decisões judiciais, também exige que tal ato seja feito em conformidade com a boa-fé

processual, principalmente diante da Norma Fundamental contida no art. 5º do NCPC,

bem como de forma geral no art. 80, VII, e específica nos arts. 1.021, § 4º – agravo

interno – e 1.026, § 2º – embargos de declaração.

De acordo com Nery e Nery, o recurso será manifestamente infundado em três

situações: a) se o recorrente, de forma deliberada e procrastinatória, retardar o trânsito

em julgado da decisão; b) se não for razoavelmente fundamentado; c) se afrontar a

texto expresso da lei ou a “princípio sedimentado da doutrina e da jurisprudência”.559

É oportuno verificar se o fato do recurso interposto afrontar precedente se

caracteriza em litigância de má-fé processual.

O art. 77, II do Novo CPC, impõe às partes não formular pretensão ou

apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento, o que gera

uma situação que deve ser analisada com muito cuidado.

Como é óbvio, o texto legal conforma diferentes interpretações, de modo que,

para defender os seus interesses, é possível que a parte possa apresentar argumentos

jurídicos que entende devam ser acolhidos.

Por esse motivo, já se afirmou que o pedido ou a defesa serão manifestamente

protelatórios (o que se aplica, por extensão, aos recursos)

556 Podendo ser citados: NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit., p. 115. 557 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. DELLORE, Luiz. ROQUE, André Vasconcelos. OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Op. Cit., p. 270. 558 ASSIS, Arruda. ASSIS, Araken de. ALVIM, Eduardo Arruda. Op. Cit., p. 115. 559 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade Op. Cit., p. 415.

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[p]ara o fim de qualificar a conduta do agente como infração a um dever processual quando se tratar de uma situação completamente absurda e contrária ao direito, como por exemplo, renovar pedido já transitado em julgado, defender pretensão expressamente contrária à disposição legal, renovar pedido

já julgado etc.560

Retomando a lição de Nery e Nery, acima referida, é possível afirmar que a

interposição de recurso contrário a precedente será manifestamente protelatório: a) se

desconsiderá-lo e pretender, de forma deliberada, apenas retardar o trânsito em julgado

da decisão; b) se o recurso interposto, em que se alegue a necessidade de distinção ou

de superação, não apresentar razoáveis fundamentos; ou c) se o recurso atentar a

precedente ou a jurisprudência dominante.

Ao interpor o recurso, sob pena de preclusão consumativa, deverá o recorrente

apresentar as razões pelas quais entende que a decisão judicial deva ser modificada,

oportunidade em que deverá laborar no sentido de demonstrar a aplicabilidade de

precedente, ou se é o caso de superação ou de distinção.

As razões recursais, nesse sentido, assumem importância na delimitação do

objeto recursal.

A partir do exame dessas razões, terá o Judiciário condições de verificar se a

pretensão recursal afronta de forma flagrante precedente, tendo a impugnação o único

intento de protelar a finalização da fase procedimental.

É possível que existam dificuldades no julgamento da má-fé na hipótese de

suposta ofensa aos precedentes, pois, embora o juízo tenha assim entendido

adequado, na verdade a parte tentou demonstrar que era o caso de aplicar as técnicas

da distinção ou da superação. A ineficiência na demonstração não pode acarretar a

aplicação de pena por litigância de má-fé.

Assim, se requerida a aplicação da técnica da distinção, é possível que o

recorrente não tenha sucesso na demonstração da tese. Porém, se a sua

argumentação for flagrantemente protelatória, em que se pede a distinção quando

sabidamente não é possível de acolhimento, a má-fé está configurada.

560 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários do Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 154.

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201

Um problema que deverá surgir no dia-a-dia será em relação à superação do

precedente.

Ora, por meio da superação busca-se afastar precedente anteriormente

formado. É possível que haja requerimento de revisão da tese diretamente à Corte, ou

também se vislumbra adequado que a parte ou o Ministério Público requeiram a

superação no caso concreto, na própria demanda, ou quando da interposição de

recurso.

Para que a parte não seja sancionada em decorrência da interposição do

recurso manifestamente protelatório, deverá demonstrar razões sérias para a

superação. Não basta indicar a necessidade de revisão da convicção, por entender

injusta a decisão anterior.

Portanto, não demonstradas suficientemente sérias razões para a superação, o

recurso será considerado protelatório.

4.5 Situações específicas

Em conformidade com o disposto no art. 1.021, § 4º do NCPC, se o agravo

interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação

unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a

pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da

causa.

Nota-se que a intenção do dispositivo é sancionar aquele que se utiliza, de

forma inadequada, do agravo interno, destacando-se, neste momento, a manifesta

improcedência, em votação unânime.

A manifesta improcedência pode decorrer de ofensa flagrante à lei, à prova dos

fatos e até mesmo de total desconformidade com precedente.

Como é possível verificar, e também registram Nery e Nery, o relator não

poderá, monocraticamente, reconhecer que o recurso é manifestamente protelatório e

aplicar a sanção. Para tanto, deverá contar com a decisão do colegiado.561

561 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit., p. 2.116.

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Em sentido semelhante, o art. 1.026, § 2º, do mesmo Código, também prevê

que a interposição de embargos de declaração manifestamente protelatórios poderá

acarretar na condenação do embargante a pagar ao embargado multa não excedente a

dois por cento sobre o valor atualizado da causa.

Diferentemente da hipótese anterior, a lei admite a possibilidade de majoração

da multa para o caso de reiteração de embargos de declaração manifestamente

protelatórios (art. 1.026, § 3º), condicionando ao seu pagamento a interposição de

outros recursos, salvo em relação à fazenda pública e do beneficiário de gratuidade de

justiça.

No que é atinente aos precedentes, pode-se buscar, por meios dos embargos

declaratórios, que o juízo os leve em consideração, suprindo omissão existente.

5. Situações jurídicas processuais em espécie: o dever-poder de agir do

poder público

5.1 Para começar

Ao deparar-se com pronunciamento judicial, que encampa determinado

precedente, terá o poder público, por meio de seu Advogado Público, a difícil tarefa de

verificar se há conexão suficiente entre as situações a permitir que a tese jurídica seja

aplicada naquela situação e se o comando judicial observou aos seus limites.

Para tanto, será exercido juízo valorativo, que é restrito da Advocacia Pública,

não podendo ser imposto por outro órgão da Administração, nem mesmo pelo Chefe do

Poder Executivo.

Este juízo valorativo pode levar à conclusão de que a decisão judicial não deve

ser impugnada e que eventual recurso poderá atentar ao regime administrativo-

processual, que rege a atuação processual da Administração Pública, importar na

majoração da condenação honorária e, ainda, acarretar flagrante prejuízo a todo o

sistema de justiça.

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De outro lado, verificando que o pronunciamento jurisdicional não observou a

ordem jurídica, ao deixar de aplicar ou aplicando mal um precedente, deverá valer-se

do meio previsto pelo próprio ordenamento para a correção do vício.

Sobre o tema, Zaneti Júnior registrou que:

O remédio para o descumprimento das decisões das Cortes Supremas é uma questão de técnica processual e do ordenamento judiciário de cada país, ou seja, uma opção de política judiciaria que revela o grau de vinculação desejado para o precedente. O que não pode falar para que um precedente seja considerado formalmente vinculante, (...), é justamente um instrumento técnico de manutenção da estabilidade do precedente, mediante recurso à corte competente para a sua revisão, pois a vinculatividade dependerá deste controle.562

Nesse passo, preliminarmente, há espaço para discutir o vínculo jurídico da

Administração Pública em relação ao ato de interpor o recurso nessas condições. Se se

trata de um ônus, uma faculdade, dever ou poder processual, inseridos como situações

jurídico-processuais, definidas como situações que “interferem de forma direta ou

indireta na esfera jurídica alheia” e que ocorrem “dentro do processo”563, ou

[c]onjunto de situações jurídicas que se sucedem no processo, desde seu nascimento (ajuizamento da demanda) até seu encerramento (extinção do processo), respeitado nesse intervalo um procedimento racionalmente estabelecido por lei.564

5.2 Direito e obrigação processual

Após admitir a existência dos direitos e obrigações processuais, ensina

Humberto Theodoro Júnior que “os principais direitos subjetivos das partes são os de

ação e o de defesa, mas deles decorrem vários outros, como de presenciar todos os

atos do processo, o de recusar juiz suspeito, o de recorrer etc.”565

562 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. Cit., p. 318-319. 563 DINAMARCO, Pedro da Silva. Ônus processuais: Limites à aplicação das consequências previstas para o seu não cumprimento. Tese de Doutorado apresentada para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2007, p. 8. 564 DINAMARCO, Pedro da Silva. Op. Cit., p. 15. 565 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Op. Cit., p. 184.

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Em relação à obrigação processual, ainda segundo o autor mineiro, impõe-se

ao sujeito processual o cumprimento de alguma prestação de cunho econômico,566

como o de pagar as custas iniciais, o preparo recursal, reembolso de honorários e de

despesas etc.

Em conformidade com tais ensinamentos, ao recorrer, a parte exerceria um

direito subjetivo e, ao mesmo tempo, se sujeitaria a uma obrigação processual, na

medida em que deve promover ao recolhimento do preparo recursal.

Esse posicionamento, no entanto, não é acompanhado por Dinamarco, que

entende não haver direitos (direitos subjetivos processuais) e obrigação processuais.

Para o aludido autor, “direito subjetivo é uma situação jurídica de vantagem em

relação a um bem”.567 Pela obrigação, há um acréscimo ao patrimônio do credor. Dessa

maneira, como o direito processual não tem o condão de obter um bem da vida, mas de

criar situações processuais, tem-se a inadequação da terminologia.

A propósito, assevera o autor que:

Só por costume ou comodidade tolera-se o emprego do vocábulo direito, no processo. Fala-se em direito à prova, direito à sentença de mérito etc., como modos simplificados e mais práticos de aludir ao poder de exigir a produção de prova, ou de exigir a sentença etc. O “direito” de ação não é um autêntico direito subjetivo, mas o poder de criar condições para que o Estado possa decidir e, se for o caso, conceder a tutela jurisdicional ao autor.568

Em que pese o posicionamento da autoridade doutrinária, não se pode admitir

que não exista o direito de ação ou mesmo a própria categoria de direitos processuais,

ideia esta consagrada doutrinariamente. A respeito, já dissertou Ada Pellegrini Grinover:

Em nosso entender, portanto, o direito de ação é direito público subjetivo, de que é titular o direito indivíduo e ao qual corresponde a obrigação do Estado (não do juiz, que é mero agente) à prestação jurisdicional. Dizia Cappelletti que toda vez que é violado um direito, surge para toda a coletividade – representada pelo Estado – o interesse à sua restauração. Mas o interesse do Estado não exclui sua obrigação de prestar a função jurisdicional, mesmo porque, como bem ressaltou Andrioli, a função jurisdicional representa exatamente a coincidência desses dois interesses: do indivíduo, à tutela de seu direito violado

566 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 56ª. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 184. 567 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 216. 568 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit., p. 216.

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ou ameaçado; do Estado, à restauração da ordem jurídica violada ou ameaçada.569

Como deixa claro a autora, está consagrado o direito de ação, que está

exatamente na possibilidade de se buscar a tutela jurisdicional para a restauração da

ordem jurídica violada ou ameaçada.

Marinoni enfatiza que a doutrina e os Tribunais brasileiros não têm dúvida de

que o art. 5º, XXXV, da CF/1988, garante o direito de ação e, consequentemente, o

dever de prestar a tutela jurisdicional, ouvindo-se as alegações das partes,

considerando as provas produzidas e praticando os atos executivos necessários para a

efetividade da tutela jurisdicional.570 Não se trata de um simples direito à resolução do

mérito, mas “o direito à efetiva e real viabilidade da obtenção da tutela do direito

material”.571

Eduardo Cambi, por sua vez, defende a existência do direito público subjetivo à

prova, que se constitui em “instrumento processual fundamental ao acesso à ordem

jurídica justa e à legitimidade da tutela jurisdicional”. E complementa: “Por essa razão,

esse direito das partes deve ser observado pelo legislador, na elaboração das regras

jurídicas, e pelo juiz, na interpretação das leis, em conformidade com a Constituição, e

no curso do processo”.572

Dessa maneira, marca-se a existência do direito processual, notadamente em

razão da cláusula contida na Constituição Federal.

O Código de Processo Civil de 1973 já mencionava a figura “direito processual”.

A título de exemplo, podem ser mencionados os arts. 22 (perda do direito de haver do

vencido os honorários advocatícios), 40 (direitos do advogado), 49 (direito do

litisconsorte de promover o processo), 81 (direito de ação pelo Ministério Público), 146

(escusa do perito), 150 (direito do administrador de reaver despesas), 155 (direito de

consultar os autos), 158 (prática de atos processuais), entre outros, extraindo-se que os

569 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Direito de Ação. In: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Doutrinas Essenciais – Processo Civil. Vol. III. São Paulo: RT, 2011, p. 56. 570 MARINONI, Luiz Guilherme. O Direito de Ação. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. O Direito de Ação. In: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Op. Cit., p. 277. 571 MARINONI, Luiz Guilherme. O Direito de Ação. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Direito de Ação. In: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Op. Cit., p. 281. 572 CAMBI, Eduardo. A prova civil. São Paulo: RT, 2006, p. 18.

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atos processuais poderiam importar na constituição, modificação ou extinção de direitos

processuais.

O Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), por sua vez, também

encampou a categoria do “direito processual”, conforme é possível verificar já em seu

art. 4º, sendo asseguradas às partes paridade de tratamento em relação ao exercício

de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à

aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório

(art. 7º), sendo ainda a expressão, em sentido de categoria processual, empregada

várias outras vezes.

Tem-se, dessa maneira, que o Direito Processual Civil encampa a situação

jurídica “direito processual”, o que se refletiu com ênfase no Novo CPC.

5.3 Dever processual

Para Humberto Theodoro Júnior, os deveres processuais constituem-se em

prestação sem expressão econômica, como o de testemunhar, exibir documentos, agir

com probidade processual.573

Dinamarco lembra que os deveres processuais das partes se referem a uma

projeção e consequência de sujeição ao Estado-juiz, existentes em prol do interesse

público decorrente do exercício da jurisdição. Estabelecem-se imperativos de conduta a

serem seguidos no processo, sujeitando-se os seus transgressores às sanções da

inobservância da boa-fé processual.

O Código de Processo Civil de 1973 encampou vários deveres processuais,

como, por exemplo, o de proceder com lealdade e boa-fé (art. 14, II).

O Novo CPC também o fez, prevendo tal situação jurídica, iniciando com a

indicação de que constitui dever dos sujeitos processuais o de cooperarem entre si para

que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º).

Este dever, conforme ensina William Santos Ferreira, ao tratá-lo sob a égide do

CPC de 1973, pode ser extraído da intepretação sistemática de várias fontes

573 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 56. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 185.

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normativas, entre elas a Constituição Federal (art. 3º, I e IV), notadamente pela

exigência de que é objetivo da República Federativa do Brasil a constituição de uma

sociedade justa, solidária, visando promover o bem de todos, sem discriminação, fundando-se o Estado na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), podendo se falar em um empreendimento de cooperação entre os membros da sociedade para aproveitamento recíproco; a cooperação é a síntese de todos estes objetivos no processo.574

Importante a figura deste dever processual, pois, conforme enfatizou o autor,

constitui a síntese de todos os objetivos do processo. Coopera-se para o

aproveitamento mútuo do processo.

Levando-se em consideração os novos rumos do Direito Processual brasileiro,

a partir dos princípios encampados pela Constituição Federal e pelas Normas

Fundamentais do Novo CPC, há necessidade de se rever a definição de dever

processual apresentada por Dinamarco.

Relembrando, Dinamarco entende que os deveres processuais das partes se

referem a uma projeção e consequência de sujeição ao Estado-juiz, existentes em prol

do interesse público decorrente do exercício da jurisdição. Como é possível se verificar,

o renomado autor enfatiza a existência do dever para com a jurisdição, ao passo que,

em verdade, os deveres existem para com o juiz, as partes e os demais participantes da

relação processual.

Com efeito, conforme já asseverado doutrinariamente, o processo deve ser

condutor de uma comunidade de trabalho, “na qual todos os sujeitos processuais

devam atuar em viés interdependente e auxiliar, com responsabilidade, na construção

dos pronunciamentos judiciais e em sua efetivação”,575 estabelecendo-se a cooperação

como corolário do contraditório como garantia de influência.576

Em conformidade com esta teoria normativa da comparticipação (cooperativa

relida), o Novo CPC traz um conjunto de comandos que fomentam o diálogo e o

controle de todas as ações dos sujeitos processuais,577 de modo que o

574 FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: RT, 2013, p. 250. 575 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 60. 576 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 60. 577 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 62

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“estabelecimento de focos e de centralidade, seja nas partes, nos advogados ou nos

juízes, não se adapta ao perfil democrático dos Estados de Direito da alta

modernidade”.578

Por esses motivos, a concepção de dever processual apresentada por

Dinamarco não é compatível com o esperado novo processo civil brasileiro, pois, os

deveres existem em prol da comunidade de trabalho, presidida pelo Estado-Juiz, com a

comparticipação de todos os sujeitos processuais. Não mais se justifica a ênfase no

sentido de que se referem a uma sujeição ao Estado-juiz.

Pelo contrário, o dever processual impõe uma sujeição ética à comunidade de

trabalho chamada processo, que conta com a comparticipação de todos os sujeitos

processuais, gerida pela autoridade judiciária e com a finalidade de se buscar a

efetividade da tutela jurisdicional.

Assim, todos os sujeitos processuais têm contra si impostos determinados

deveres processuais, como o de portar-se de acordo com a boa-fé, de cooperar para

que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, entre outros.

Demonstra-se, assim, que o credor dos deveres processuais não é somente a

autoridade judiciária, mas também todos os sujeitos processuais. Em suma, tem-se que

o dever jurídico processual é aquele que impõe uma sujeição ética à comunidade de

trabalho formada pelos sujeitos processuais.

5.4 Ônus processuais

Há diferentes concepções doutrinárias sobre os ônus processuais.

Os ônus processuais, não impõem à parte o cumprimento de uma prestação,

porém, em contrapartida, esta sofre determinados prejuízos em razão de seu

descumprimento. Ao contrário do que ocorre com os deveres, são exclusivos das

partes.

Sendo assim, não tem a parte o dever de oferecer contestação, mas o ônus,

pois, com o seu silêncio, ocorrerá a incidência dos efeitos da revelia.

578 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Op. Cit., p. 67.

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Da mesma forma, a parte tem o ônus de impugnar a decisão judicial. Se não o

fizer, não estará descumprindo um dever processual, mas estará sujeita à preclusão ou

até mesmo à coisa julgada.

Portanto, o não exercício do ônus processual579 gerará determinadas sanções,

sintetizadas na perda de uma faculdade processual, atingindo reflexamente o direito

substancial da parte omissa.580 Tal inércia acarretará a preclusão temporal que, como

lembra Chiovenda, pode surtir efeitos apenas no processo em que se verifica, como

também pode surtir efeitos para processos futuros.581

Dinamarco, por sua vez, sustenta entendimento diverso sobre a concepção de

ônus processual. De acordo com aludido autor, “o descumprimento de um deles não

causa malefício algum, ou diminuição patrimonial, nem frustra expectativas de outra

pessoa”. E completa: “A parte tem plena liberdade de optar pela conduta ou pela

omissão (...), sabendo no entanto que, omitindo-se, agravará sua situação no processo

(daí, tratar-se de um ônus)”.582

Os ônus processuais são divididos em absolutos e relativos.583

Ônus absoluto é aquele cujo não cumprimento conduzirá, inexoravelmente, a

um resultado não favorável. Assim, se a parte, uma vez intimada para comprovar o

recolhimento do dobro do preparo recursal, por não haver comprovado o seu

pagamento anteriormente, mais uma vez se mantiver inerte ou comprovar o

recolhimento insuficiente, tem-se que o seu recurso será oportunamente considerado

deserto (art. 1.007, §§ 4º e 5º do Novo Código de Processo Civil).

De outro lado, em conformidade com o ônus relativo, o seu não exercício não

acarreta consequência necessariamente desfavorável. E assim ocorre com o ônus da

579 Conforme ensina Liebman: “La constituzione e la comparizione dela parte nel processo sono oggetto di um onere, non di um obbligo, perchè la legge considera primário, nella difesa in giudizio, l’interesse dela parte stessa e perciò ne fa il contenuto di um diritto sancito dalla Costituzione (art. 24), che la parte può liberamente esercitare o non esercitare” LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale Di Diritto Processuale Civile. 3. ed. Vol. II. Milão: Giuffrè Editore. 1974, p. 170. 580 Idem, p. 185. 581 CHIOVENDA, Giusseppe. Princippi di Diritto Processuale Civile. 3.ed. Napoli: N. Jovene, 1923, p. 858. 582 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. Op. Cit., p. 210. 583 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. Op. Cit., p. 211.

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prova, pois, ainda que não observado pela parte, o pronunciamento jurisdicional ainda

lhe poderá ser favorável.584

Como se verificará adiante, as pessoas jurídicas de direito público têm o ônus

de contestar. Porém, como geralmente litigam sobre direitos indisponíveis, não incide o

efeito material da revelia.

5.5 Poderes processuais

A situação jurídica processual configura um poder processual se o ato tiver a

capacidade de “produzir efeitos sobre a esfera jurídica alheia”. A propósito, ensina

Dinamarco:

Bastante ilustrativo é o poder de recorrer: a parte vencida tem a faculdade de optar entre recorrer ou não recorrer, mas se optar por fazê-lo isso criará para o órgão jurisdicional superior o dever de proferir nova decisão. Como todos os poderes, o de recorrer inclui uma faculdade, que no entanto não é pura faculdade.585

Dinamarco, assim, tenta guardar coerência com as suas lições no sentido da

inexistência de um direito processual (direito subjetivo público) e, dessa maneira, ilustra

o problema com o exemplo do poder de recorrer.

Mas o autor não levou em consideração constatação de Fernando da Fonseca

Gajardoni, para quem “não se pode negar que há zonas cinzentas entre ônus, poderes,

faculdades e deveres processuais”,586 de modo que pode ser difícil diferenciá-los, para

caracterização de uma única situação jurídica. É possível que coexistam, para o mesmo

584 “Mesmo nos casos de revelia e incidência dos respectivos efeitos, com presunção (relativa) de veracidade dos fatos alegados pelo autor, caberá ao juiz verificar se há probabilidade efetiva dos fatos terem se dado da forma exposta, se há considerações verossímeis, possíveis ou prováveis ou até que não sejam contrariadas por afirmações do próprio autor ou por provas por ele juntadas. Do contrário, o julgamento não necessariamente será favorável ao autor, como também, caberá ao juiz determinar a realização de provas ex officio (art. 130), pois a “presunção” não lhe direciona a “convicção” necessária para fundamentação e julgamento (art. 131), já que presunção exige probabilidade, que por sua vez impõe convicção desta (probabilidade)”. FERREIRA, William dos Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: RT, 2013, p. 238. 585 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. Op. Cit., p. 211. 586 GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Op. Cit., p. 626.

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ato, mais de uma situação jurídica processual. A mesma peça processual poderá

impugnar a existência de relação jurídica e requerer que o juiz expressamente se

manifeste sobre isso na sentença, com o que a questão prejudicial também será

atingida pela coisa julgada material (art. 503, § 1º do Novo CPC).

Dessa maneira, não há problema para que um ato se caracterize, ao mesmo

tempo, como um direito, ônus e poder processual. A propósito, o réu tem o direito

constitucional de exercer a ampla defesa e o contraditório, apresentando a sua

contestação, com o que estará exercendo o ônus da impugnação especificada.

Assim, não há necessidade de, obrigatoriamente, impor-se a exclusão de uma

situação jurídica processual.

Porém, não se pode negar que determinadas situações jurídicas processuais

poderão ter tônica diferenciada em relação às demais, com o que será permitido

afirmar-se que determinado ato poderá caracterizar-se como um poder processual, ao

invés de simples direito, como ocorrerá com a interposição do recuso, como adiante se

verá.

5.6 Poder-dever

A doutrina geralmente aponta os poderes-deveres do juiz e a expressão dirigir e

tutelar foi utilizada por Dinamarco para sintetizá-los.587 Transportando a lição para os

ideais do Novo Código de Processo Civil, deve o magistrado dirigir a comunidade de

trabalho denominada processo, como responsável por sua adequada gestão, bem

como tutelar aquele que necessitar, garantindo-lhe a solução de mérito justa e efetiva.

Muitos são os poderes-deveres do magistrado no Novo CPC, podendo ser

destacados: i) conduzir o processo para que as partes recebam, em prazo razoável, a

solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa (art. 4º); ii) exigir que todos

pautem a sua atuação em conformidade com a boa-fé processual (art. 5º); iii) exigir a

cooperação entre os sujeitos do processo (art. 6º); iv) assegurar às partes a paridade

de tratamento (art. 7º); v) garantir o contraditório substancial, dinâmico ou efetivo (arts.

587 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. Op. Cit., p. 235.

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7º, 9º e 10); vi) observar a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a

publicidade e a eficiência (art. 8º); vii) fundamentar analiticamente as suas decisões

(arts. 11 e 489, §1º); viii) observar, sempre que possível, a ordem cronológica de

conclusão para proferir sentença ou acórdão (art. 12); ix) prevenir ou reprimir qualquer

ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias (art.

139, III); x) promover, a qualquer tempo, a autocomposição (art. 139, V); xi) dilatar os

prazos processuais e alterar a ordem cronológica dos meios de prova, adequando-os

às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito (art.

139, VI); xii) exercer o poder de polícia (art. 139, VII); xiii) observar o autorregramento

processual estabelecido pelas partes, salvo se não forem observados os requisitos para

tanto (art. 190), entre outros.

O poder processual, como dito alhures, reflete a possibilidade de o ato

processual produzir efeitos em relação à esfera jurídica alheia. Os pronunciamentos

jurisdicionais, nesse sentido, refletirão diretamente nas relações que envolvem os

sujeitos processuais. Além disso, trata-se de dever processual, na medida em que

impõe sujeição ao juiz e às partes.

Dessa maneira, tem o magistrado o dever-poder instrutório para determinar, de

ofício, a produção de prova para o esclarecimento de questão de fato informada nos

autos.588

Sobre o poder-dever do magistrado, destacou-se que o juiz não é titular de

faculdades e ônus processuais, mas de poderes-deveres, que se refletem como

“situações jurídicas integradas, ou seja, a cada poder do juiz corresponde o dever de

exercê-lo”.589

Porém, não é o magistrado o único a deter o poder-dever no processo.

O Ministério Público, nas hipóteses em que funciona como fiscal da ordem

jurídica, também o possui, na medida em que poderá, com a sua manifestação,

acarretar a alteração da situação jurídica alheia, impondo-se o dever funcional de se

manifestar se presentes as hipóteses legais autorizantes.

588 FERREIRA, William dos Santos. Princípios da prova cível. São Paulo: RT, 2013, p. 246. 589 COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. O novo Código de Processo Civil e o fortalecimento dos poderes judiciais. Revista de Processo, vol. 249. Ano 40. P-85. São Paulo: RT, nov. 2015.

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Desse modo, presente interesse de incapaz (art. 178, II do Novo CPC), deverá

o Ministério Público interpor recurso se o pronunciamento jurisdicional lhe for contrário,

salvo se, ao analisar o caso concreto, perceber que inexiste qualquer possibilidade de

sucesso.

Da mesma forma, o curador especial (em regra, praticado pela Defensoria

Pública, em razão de ser sua atribuição institucional) terá o poder-dever de oferecer

resposta à pretensão inicial, mesmo que for por negação geral.

Verifica-se, por esse prisma, que o magistrado não é o único a deter o poder-

dever no processo, existindo outros sujeitos na mesma condição.

5.7 O ato de recorrer como poder processual

Reiterando a lição de Fernando da Fonseca Gajardoni, “não se pode negar que

há zonas cinzentas entre ônus, poderes, faculdades e deveres processuais”.590 Assim,

não se constitui tarefa simples diferenciar as situações jurídicas processuais entre si.

Por vezes, tem-se que está presente mais de uma situação jurídica.

Nesse passo, o ato de recorrer decorre de um direito processual, exercido em

decorrência de ônus processual e que poderá importar na modificação de situação

jurídica alheia.

Trata-se de direito processual, pois extensão do direito de ação.

A propósito, Nelson Nery Júnior, após dissertar sobre as principais ideias que

se formaram em relação à natureza dos recursos, defende que:

Já nos sentimos em condição de adotar aquela que o entende como um prolongamento, dentro do mesmo procedimento, do exercício do direito de ação, compreendido este em seu sentido mais amplo, abrangendo, também, os procedimentos de jurisdição voluntária.591

Araken de Assis, por sua vez, não sem críticas, ressalta a predominância, no

direito brasileiro, tedesco e italiano, no sentido de ser o recurso um prolongamento da

ação originária.592 De acordo com o autor, em verdade, o recurso se constitui em uma

590 GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de Oliveira. Op. Cit., p. 626. 591 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 223. 592 ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 42.

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pretensão autônoma, “porque diferente da primitiva, exercitada em simultaneo

processu”.593

Para José Carlos Barbosa Moreira, em que pese a maior parte da doutrina

conceituar o poder de recorrer como “simples aspecto, elemento, modalidade ou

extensão do próprio direito de ação exercido no processo”594, sob outro prisma, a

interposição do recurso também é um ônus processual, pois se trata de

[a]to que alguém precisa praticar para tornar possível a obtenção de uma vantagem ou para afastar a consumação de uma desvantagem. Está presente aí o traço essencial por que o ônus se estrema do dever, ordenado este à satisfação de interesse alheio, aquele à de interesse próprio.

Ao interpor o recurso, a parte busca a modificação de pronunciamento

jurisdicional, pois contrário ao seu interesse. Consequentemente, busca, também,

produzir efeitos sobre a esfera jurídica alheia.

Tem-se, então, o recurso como direito, ônus e poder processual, devendo ser

ressaltada, porém, a predominância deste, como elemento caracterizador.

Por essa razão, afirma-se que o recurso é um poder processual.

Estabelecida essa premissa, passa-se a verificar se há qualquer particularidade

em relação aos recursos interpostos pelas pessoas jurídicas de direito público.

5.8 O recurso das pessoas jurídicas de direito público como dever-dever processual

Foi estabelecido nas linhas anteriores que o recurso se constitui em poder

processual, situação jurídica processual tendente a modificação a esfera jurídica de

outrem.

Partindo-se dessa premissa, deve ser analisado se haveria qualquer

particularidade para diferenciar o recurso a ser interposto pelas pessoas jurídicas de

direito público.

Como é sabido, as pessoas jurídicas de direito público defendem interesse que

não lhes é próprio, mas interesse público da coletividade. Aqui não há motivo para a

593 ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 49. 594 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 236.

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diferenciação entre interesse público primário e secundário, pois este somente se

justifica quando instrumental ao interesse público.595

E ao defender interesse da coletividade, que não lhe é próprio, deve a pessoa

jurídica de direito público, por meio de seus agentes, observando-se o regime

administrativo-processual, impugnar as decisões judiciais que forem contrárias à ordem

jurídica.

Note-se a diferença em relação ao particular, pois, este poderá cumprir a

decisão judicial proferida, sem qualquer impugnação, renunciar ao direito de interpor o

recurso, desistir do antes apresentado, enfim, possui grande disposição do poder

processual de recorrer.596

De outra banda, porém, a pessoa jurídica de direito público não tem o mesmo

poder de disposição. Tocando a decisão judicial o campo do interesse público, gera-se

o dever de reação imediata no sentido de que haja a sua impugnação.

Tem-se, por isso, que a Administração Pública tem dever-poder de recorrer,

pois, a um só tempo, deverá analisar o pronunciamento judicial e, em vista do regime

jurídico-administrativo-processual, fará juízo acerca da necessidade de impugnar a

decisão. Tal dever é irrenunciável, devendo ser exercido em benefício da

coletividade.597

Além disso, como se está diante da possibilidade de modificação de interesse

de outrem, tem-se também um poder processual.

O exercício desse dever-poder, contudo, não é ilimitado, mas submetido a

limites éticos qualificados, devendo ser analisada a presença do regime administrativo-

processual.

595 MADUREIRA, Cláudio Penedo. A Administração Pública. Litigiosidade. Juridicidade: a importância da Advocacia Pública para o exercício da função administrativa. Tese de Doutorado. PUC/SP. 2013, p. 51, verso. 596 É possível traçar um paralelo com o exemplo oferecido por José Cretella Júnior: “contrariamente do que ocorre no campo do direito privado, em que o proprietário pode, conforme sua vontade, agir ou não agir, no campo do direito público, o funcionário, qualquer que seja o grau que ocupe, na escala, está condicionado, porque assim o exigem os interesses superiores do Estado”. In: Filosofia do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 165. Assim, havendo ofensa à ordem jurídica e administrativa, surge o poder-dever de impugnar a decisão judicial. 597 Como ressalta Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “embora o vocábulo poder dê a impressão de que se trata de faculdade da Administração, na realidade trata-se de poder-dever, já que reconhecido ao poder público para que o exerça em benefício da coletividade; os poderes são, pois, irrenunciáveis”. In: Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 90.

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Nesse sentido, é possível traçar um paralelo entre os poderes do juiz e os

poderes do advogado público, este no contexto da Administração Pública, valendo-se,

para tanto, da lição de Mota de Souza.598

Assim, a Advocacia Pública – integrante da Administração Pública – tem

poderes (a) jurisdicionais; (b) processuais; e, (c) administrativos.

No primeiro caso, deve a Advocacia Pública interpretar o Direito para toda a

Administração Pública, indicando o sentido adequado da norma, conformando-a de

forma coerente ao decidido pelos Tribunais. Para tanto, expedirá pareceres

vinculativos, de observância obrigatória pelos integrantes da Administração Pública.

Tem, ainda, o dever de participar ativamente do processo judicial, interpondo os

recursos pertinentes em observância à ética administrativa-processual, valendo-se de

seu conhecimento e expertise em prol da defesa do interesse público.

Por fim, há ainda poderes administrativos, pois deve a Advocacia Pública

informar a Administração sobre as decisões judiciais proferidas, requisitando, em

caráter complementar, o seu cumprimento.

Dessa maneira, a interposição de recurso consubstancia-se no exercício de

dever-poder da pessoa jurídica de direito público que, interferindo na esfera jurídica de

direito, busca a defesa do interesse público, para que prevaleça a ordem jurídica e, se o

caso, para a devida aplicação do precedente judicial, valendo-se dos meios disponíveis

para tanto, como os recursos.

6. Juízo valorativo de recorribilidade

6.1 Considerações iniciais

A partir da cientificação do pronunciamento judicial até o termo final para a sua

impugnação, competirá à Advocacia Pública, instituição que representa as pessoas

jurídicas de direito público, judicial e extrajudicialmente, valorar, em obediência ao

598 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz – a igualdade das partes e a repressão ao abuso do processo. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1987, p. 88.

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regime jurídico administrativo-processual, se deverá interpor ou não o respectivo

recurso.

O pronunciamento jurisdicional, que será objeto do juízo valorativo, poderá ter

sido proferido em processo em que a pessoa jurídica de direito público seja parte, ou,

então, em que haja seu interesse manifesto, quer seja jurídico, econômico ou

decorrente da intervenção como amicus curiae.

Nesse contexto, é importante verificar se tal juízo é ou não privativo da

Advocacia Pública, ou se, eventualmente, a vontade do administrador público, no

sentido de ser uma decisão impugnada ou não, poderá prevalecer à própria vontade da

Advocacia Pública, considerada institucionalmente.

Parte a análise dos seguintes exemplos:

a) foi ajuizada ação de desapropriação de imóvel, com a finalidade de ser

construída uma penitenciária pública. Nesse sentido, ao final do procedimento, o

magistrado entende que o princípio da justa e prévia indenização será observado desde

que se observe o valor do imóvel atribuído pelo perito judicial, que está muito além

daquele oferecido pelo poder público. Em razão disso, fixa o valor devido na sentença.

Diante dessa questão, poderia o administrador público, por qualquer motivo, determinar

que a Advocacia Pública se abstivesse de interpor recurso de apelação nessa

hipótese?

b) em determinada ação, foi determinada a entrega de medicamento que, muito

embora não esteja indicado nos protocolos da Secretaria da Saúde, está registrado na

Agência Nacional de Vigilância Sanitária e poderá salvar a vida de um paciente, que

não tem condições de adquiri-lo com os seus próprios recursos. Nesse caso, determina

a Secretaria da Saúde a interposição do recurso. Estaria a Advocacia Pública obrigada

a interpô-lo?

As duas situações refletem bem a possibilidade de haver uma tentativa de

ingerência de órgãos da Administração Pública na atuação da Advocacia Pública.

Como dito acima, a Constituição Federal atribui à Advocacia Pública a

advocacia da União e dos Estados. Foi silente em relação aos Municípios, respeitando-

se as particularidades e dificuldades orçamentárias diversas, mas, uma vez instalado o

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218

órgão, compete-lhe exclusivamente a observância dos padrões estabelecidos às

Advocacias Públicas.

E ao assim prever, tem-se que se trata de função exclusiva de tais órgãos não

só a prática do ato processual, de acordo com a sua técnica, como também,

implicitamente, o próprio juízo valorativo em relação à sua real necessidade.

Nesse sentido, deve ser frisado que o Novo Código de Ética da OAB determina

que deverá o advogado público exercer suas funções com independência técnica,

contribuindo para a solução ou redução de litigiosidade (art. 8º, § 1º), bem como atuar

com boa-fé (art. 2º, II).

Dessa maneira, não poderá o administrador impor a sua vontade no sentido de

que a Advocacia Pública deverá se abster ou impugnar determinado pronunciamento

jurisdicional. Em outras palavras, a atuação da Advocacia Pública, considerada

institucionalmente, não estará vinculada ao poder hierárquico, de modo que prevalecerá

o seu juízo valorativo.599

Tanto é assim que, na esfera federal, dispôs o art. 4º da Lei n. 9.469/1997 que,

não havendo súmula da Advocacia Geral da União, o Advogado Geral da União terá

atribuição para dispensar a interposição de recursos judiciais quando a controvérsia

jurídica estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos

Tribunais Superiores.

Em mais um exemplo, no Estado de São Paulo, prevê a nova Lei Orgânica da

Procuradoria Geral do Estado (Lei Complementar Estadual n. 1.270, de 25.08.2015)

que compete a este órgão deixar de interpor recursos ou desistir dos já interpostos nas

ações de interesse da Fazenda Pública Estadual (art. 7º c.c. art. 10, X).

Diante de todo esse contexto, extrai-se também que a Advocacia Pública

exerce a advocacia de Estado e não de Governo, colocando-se os interesses daquele à

frente destes. Esta observação é importante, porque pode ocorrer de o administrador

599 Os poderes da Administração Pública decorrem dos princípios que guiam toda a sua atividade, pois, somente com eles é possível sobrepor o interesse público ao privado. Tais poderes trazem implícitas certas prerrogativas da autoridade, as quais estão limitadas pela lei. Entre eles, podem ser indicados os poderes decorrente da hierarquia, baseados na distribuição de competência e a hierarquia, pressupostos da organização administrativa. Estabelece-se relação de coordenação e subordinação entre os vários órgãos. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 91.

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219

público entender não ser cabível a interposição de recurso e, por isso, impor a

observância de sua vontade ao advogado público.

A ordem proveniente de integrante da Administração Pública – e não interna

corporis, que será avaliada posteriormente – caracteriza-se como abuso de poder, que,

segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “pode ser definido, em sentido amplo, como o

vício do ato administrativo que ocorre quando o agente público exorbita de suas

atribuições (excesso de poder), ou pratica o ato com finalidade diversa da que decorre

implícita ou explicitamente da lei (desvio de poder)”.600

Ocorrerá, então, o excesso de poder, se a autoridade administrativa, por

exemplo, o Secretário da Administração Penitenciária, determinar que se abstenha de

ser interposto recurso, como indicado no primeiro exemplo. Nesse caso, o agente

ultrapassou as suas atribuições. Para o mesmo exemplo, porém, se o agente o fez para

fins escusos, incorrerá em desvio de poder, assim como o próprio advogado público,

que se absteve.

De outro lado, deve ser analisada também a questão de sujeição ou não do

advogado público à vontade do dirigente da Advocacia Pública a que ele se encontra

vinculado, o que será analisado no próximo item.

6.2 O entendimento do advogado público versus o defendido pela instituição a que

vinculado

Como dito anteriormente, deve ser investigado se o entendimento do advogado

público há de prevalecer frente àquele manifestado pela instituição (Advocacia Pública)

a que vinculado. Em outros termos, se houver colisão entre os entendimentos pessoais

do advogado público e da sua instituição, manifestado em orientação normativa, deverá

aquele curvar-se à vontade institucional?

A resposta a essa pergunta parte da análise do conteúdo da independência do

agente público, enquanto integrante da Advocacia, bem como de sua vinculação com a

própria Administração e com seus superiores.

600 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 252.

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Em conformidade com o art. 8º, § 1, do Novo Código de Ética, as suas

disposições se aplicam aos órgãos de Advocacia Pública, sendo que o advogado

público deverá exercer as suas funções com independência técnica, contribuindo para a

solução ou redução de litigiosidade, sempre que possível.

A independência técnica é de fácil exercício, por exemplo, em um parecer

administrativo, no qual o parecerista poderá ressalvar, expressamente, o seu

entendimento sobre a questão que lhe foi submetida, ainda que estiver vinculado ao

entendimento superior. Desse modo, o parecerista interpreta a orientação existente e a

aplica ao caso concreto, mas indica que, no seu sentir, a solução seria outra.

Porém, não é possível que seja assumido tal proceder no processo judicial,

obviamente. Então, ou é praticado o ato processual e a sua essência observará a

opinião do órgão de direção da Advocacia Pública, ou o advogado público se nega a

praticá-lo.

Ocorre que esta última alternativa não é viável.

É verdade que o advogado público tem independência técnica, mas, de outro

lado, diante de seu compromisso de defender o interesse público, tem-se que este deve

prevalecer até mesmo diante de sua própria convicção, desde que não fuja dos limites

da flagrante ilegalidade.

Com efeito, a noção concreta da prevalência do interesse público pode se

consolidar em entendimento externado pelo órgão de direção da Advocacia Pública,

que tem a missão de estabelecer as diretrizes de sua atuação, oferecendo tratamento

uniforme a determinado assunto, proporcionando, a um só tempo, a observância dos

princípios da impessoalidade, segurança jurídica, proteção à confiança e boa-fé.

O princípio da impessoalidade pode ser entendido em dois sentidos: i) em

relação ao administrado; e, ii) e outro em relação à Administração.

Em relação ao administrado, o princípio está “relacionado com a finalidade

pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração

não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas”.601 Deve

tratá-las de forma isonômica.602

601 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 68. 602 Conforme salientado por José Cretella Júnior, “embora o administrado se encontre em posição desnivelada, para menos, quando comparado com a Administração, cercada de uma série de privilégios

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Tal princípio tem o seu sentido resultante da interligação dos “princípios da

igualdade formal e material com os da supremacia e indisponibilidade do interesse

público, finalidade, legalidade em sentido estrito e moralidade”.603 Repugna,

consequentemente, qualquer ato discriminatório que favoreça um indivíduo em relação

aos demais.

É possível que, não obstante a existência de precedentes sobre o tema, ainda

haja a interposição de recursos por alguns advogados públicos, enquanto outros,

autorizados por Lei Orgânica ou mesmo casuisticamente, deixem de interpor ou tenham

autorização específica para deixar de fazê-lo. Diante desse proceder, determinadas

pessoas estarão sujeitas a aguardar pela solução de suas demandas, o que poderá

demorar muitos anos, enquanto outras poderão ter a sua solução imediata.

Em conformidade com o princípio da segurança jurídica,604 se a Administração

Pública adotou determinado posicionamento, não poderá anular o ato posteriormente,

em razão de mudança de orientação. A esse respeito, é possível que haja a expedição

de orientação normativa dispensando a interposição de recurso, mas, em razão da

superação de um precedente, haverá necessidade de revogá-la e determinar a

impugnação dos pronunciamentos que vierem a ser proferidos sobre o tema.

Porém, se ocorrer o contrário, há a segurança jurídica do cidadão no sentido de

que a própria pessoa jurídica de direito público irá rever o seu posicionamento. Assim,

se interposto determinado recurso e, posteriormente, advir orientação normativa em

relação à sua desnecessidade, há o dever de desistir do prosseguimento daquele, em

atenção ao posicionamento agora vigente.

e prerrogativas, que a favorecem de maneira especial nas relações jurídico-administrativas, por outro lado o cidadão está colocado em absoluto pé de igualdade diante de outros cidadãos, quando exige alguma prestação do Estado”. In: Filosofia do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 127. 603 FROTA, Hidemberg Alves da. O princípio tridimensional da proporcionalidade no Direito Administrativo. Rio de Janeiro: GZ, 2009, p. 91. 604 Oportuna foi a diferenciação adotada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro em relação aos princípios da proteção da confiança e da boa-fé. Segundo a professora, “pode-se dizer que o princípio da boa-fé deve estar presente do lado da Administração e do lado do administrado. Ambos devem agir com lealdade, com correção. O princípio da proteção à confiança protege a boa-fé do administrado; por outras palavras, a confiança que se protege é aquela que o particular deposita na Administração Pública. O particular confia em que a conduta da Administração esteja correta, de acordo com a lei e com o direito”. In: Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 89.

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O princípio da segurança jurídica, como lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

não está previsto com essa designação no direito brasileiro, mas decorre implicitamente

do ordenamento jurídico. Tal princípio “leva em conta a boa-fé do cidadão, que acredita

e espera que os atos praticados pelo poder público sejam lícitos e, nessa qualidade,

serão mantidos e respeitados pela própria Administração e por terceiros”.605

Por fim, a orientação genérica de não interposição de recurso também está

fundada no princípio da boa-fé que, por ser instituto da teoria geral do direito,

naturalmente é aplicável ao direito administrativo.

A seu respeito, afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Na Constituição, o princípio não está previsto expressamente, porém pode ser extraído implicitamente de outros princípios, especialmente do princípio da moralidade administrativa e da própria exigência de probidade administrativa que decorre de vários dispositivos constitucionais (...).606

Naturalmente, a conduta do órgão de direção da Advocacia Pública que expede

orientação normativa no sentido de não interpor qualquer recurso, em situações, por

exemplo, em que já há posicionamento consolidado na jurisprudência, está em

consonância com a boa-fé administrativa, com o dever de probidade.

Tem-se, dessa maneira, que a fixação de um padrão decisório fiel ao interesse

público é extremamente salutar e vinculará a atividade do advogado público, não

obstante a independência técnica que lhe é inerente.

De outro lado, é possível que não exista qualquer regulamentação a respeito do

tema, de modo que o juízo valorativo partirá do advogado público, que poderá entender

pela interposição do recurso ou mesmo pela inércia.

Entendendo que deverá interpor o recurso, o advogado público o fará,

independentemente da necessidade de submeter a questão ou de maiores

complexidades no âmbito administrativo. Exercita, então, valoração em conformidade

com a ordem administrativa-processual, praticando ato da Administração,607 sem o

605 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 88. 606 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 88. 607 Conforme doutrina de Marcelo Caetano, nem todos os atos dos órgãos da Administração Pública são atos administrativos, o que se infere da própria concepção orgânica da Administração Pública. Portanto, há uma categoria ampla de atos jurídicos da Administração. In: Manual de Direito Administrativo. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 2007, p. 440.

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poder de império, mas na defesa de interesse público, externado como ato processual

em sentido estrito. Tem-se cumulado, então, o dever-poder de recorrer.

Ocorre que o advogado público poderá entender que o pronunciamento

jurisdicional não deve ser atacado, por isso, ou deixa de interpor o recurso, ou submete

a questão ao seu superior hierárquico.

É comum que as Advocacias Públicas deixem sob o crivo do advogado público

a dispensa de interposição de determinados recursos e em certas circunstâncias,

enquanto, para outros casos, exige-se que a questão seja submetida a órgãos

superiores da instituição a que vinculado.

No primeiro caso, tem-se que competirá exclusivamente ao advogado público

que acompanha o processo promover ao juízo valorativo quanto à necessidade ou não

de interpor o recurso. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao recurso de agravo de

instrumento em casos que não são de acompanhamento especial no estado de São

Paulo, em conformidade com as Rotinas do Contencioso Geral da Procuradoria Geral

do Estado.

O juízo valorativo, nessa situação, é único do advogado público, não obstante

seja possível determinação posterior no sentido da necessidade de interposição do

recurso.

Em outras situações, como dito, a dispensa de interposição do recurso estará

sujeita à submissão da questão ao superior hierárquico, que decidirá a respeito. Ao

submeter a questão à instância superior, tem-se que competirá a esta, em última

análise e em caráter vinculativo, analisar o pedido à luz do regime administrativo-

processual e, com fundamento no interesse público, decidir pela não interposição do

recurso, ou, então, pela impugnação da decisão judicial.

Esta decisão, representativa da análise concreta do interesse público, deve

estar assentada em padrão decisório, observando-se a estabilidade, integridade e

coerência de suas próprias decisões e da jurisprudência.

6.3 As dispensas genérica e casuística do exercício de recorrer

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6.3.1 Dispensa genérica

Considerando razões de interesse público, poderá a autoridade competente,

integrante da Advocacia Pública, elencar as hipóteses nas quais o advogado público

atuante estará dispensado de interpor recurso.

Os motivos que conduzem à emissão de tal orientação, na prática, resumem-se

à observância da orientação traçada de forma consolidada pela jurisprudência, bem

como por eficiência administrativa.

A título de exemplo, podem ser indicadas as Orientações Normativas expedidas

e previamente aprovadas pelo Procurador Geral do Estado de São Paulo, no âmbito do

Contencioso Geral (que exclui as ações tributárias). Nessa seara, até o momento,

encontram-se em vigor trinta e sete Orientações, que podem ser resumidas no seguinte

quadro:

Quadro das Orientações Normativas Vigentes na Área do Contencioso Geral

01 Licenciamento de veículos condicionado ao pagamento de multas com recurso administrativo pendente

03 Licença-prêmio e Sexta-parte – Lei 500/74

05 Imposto de Renda sobre licença-prêmio e férias não gozadas

06 Gratificações – GASS – GSAE – GAP – GTE – GASA – GSAP

07 Sexta-parte sobre os vencimentos integrais - Reeditada em 30/07/2015

08 Licença-prêmio, Férias e terço constitucional de férias não usufruídas no período de atividade pelo servidor inativo

10 Complementação de precatórios – art. 33, do ADCT - Tabela Pratica do TJ/SP e dispensa de citação pelo art. 730 do CPC

11 Complementação de precatórios; art. 33, do ADCT; Prescrição de diferenças da 1ª a 7ª parcelas

12 Medicamentos que façam parte dos Programas da Secretária de Estado da Saúde

13 Gratificação por Atividade de Magistério - GAM

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225

14 Execução – Juros de mora sobre os descontos previdenciários e de assistência medica (IPESP/IAMSPE/CRUZ AZUL)

15 CBPM – Cruz Azul - Contribuição para a assistência médico-hospitalar

16 Fator de Atualização Monetária – FAM

17 IAMSPE - Contribuição para a assistência médico-hospitalar

18 Valor controvertido em requisitório judicial - até 50 UFESP´s

19 Pensão - Policial militar - integralidade (100%) - óbito até 05/07/07

20 Complementação de pensão aos beneficiários de ex-empregados da VASP

21 Sexta-parte para servidores celetistas e base de cálculo

22 DETRAN - Apreensão ou impedimento de renovação da CNH anteriormente à conclusão do processo administrativo

23 DETRAN - Anulação de multas e exclusão de pontuação na CNH em infrações cometidas por veículo "dublê" ou "clonado"

24 Trabalhista - Rompimento do vínculo empregatício em virtude de aposentadoria voluntária. Pagamento de verbas rescisórias

25 Trabalhista - Acórdão que nega provimento a agravo regimental em cautelar para atribuir efeito suspensivo a recurso

26 Trabalhista - Acórdão que nega provimento a cautelar para atribuir efeito suspensivo a recurso ordinário

27 Adicional de Local de Exercício

28 Gratificação por Atividade de Escolta e Vigilância

29 Adicional Operacional de Localidade - AOL

30 Trabalhista - Juros - Responsabilidade subsidiária - Execução

31 Abono de Permanência de Militar

32 Pagamento ou restabelecimento de pagamento de pensão.

33 Impugnação ambiental em ações de usucapião e de retificação de área

34 Quinquênios sobre os vencimentos integrais - Recálculo - Reeditada em 30/07/2015

35 Liberação de veículo aprendido por transporte irregular de passageiros decisões condicionada ao pagamento de multas e despesas

36 Prazo prescricional de cinco anos para ajuizamento de ação indenizatória por particular por responsabilidade civil do Estado

37 Honorários advocatícios devidos pela Fazenda Pública nas execuções individuais de sentença proferida em ações coletivas, ainda que não embargadas

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Analisando-se os temas que fundamentam as Orientações Normativas vigentes

na área do Contencioso Geral da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, vê-se

que compreendem as seguintes áreas: i) servidores e empregados públicos: 22; ii)

precatórios e requisições de pequeno valor: 04; ii) outros assuntos (entrega de

medicamentos, ações relacionadas ao DETRAN, prescrição da pretensão indenizatória

e honorários advocatícios): 07. Tais temas representavam, à época da edição das

orientações, grande parte das ações em trâmite.

Aprofundando-se ainda mais na análise, é possível verificar que o motivo de

serem baixadas as aludidas Orientações Normativas consiste na existência de

consolidada jurisprudência sobre os temas, como ocorreu, a título de exemplo, com a

questão da prescrição da pretensão indenizatória a ser exercida contra a fazenda

pública, cujo prazo foi fixado como sendo de cinco anos. Excepcionalmente, tem-se a

expedição da Orientação n. 18, que leva em conta o critério da eficiência, ao determinar

a desnecessidade de interposição de recurso quando o valor controvertido em

requisitório judicial for inferior a 50 Ufesps (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo).

Nota-se, dessa maneira, que o Estado de São Paulo adotou modelo em que a

autoridade competente – Procurador Geral do Estado – aponta hipóteses genéricas em

que está o Procurador do Estado dispensado de interpor recurso, refletindo,

internamente, a jurisprudência existente sobre o tema.

Com o Sistema de Precedentes do Novo Código de Processo Civil e na linha do

que já foi defendido neste trabalho, a interposição de recursos com fundamento

contrário à ratio decidendi e à coerência dos fatos relevantes, importará na prática de

ato contrário à boa administração e também má-fé processual, acarretando a possível

fixação de multa processual, de modo que deve ser evitada a interposição nessas

situações, salvo se houver motivo que o justifique, decorrente da existência de

interesse jurídico de recorrer para a aplicação das técnicas de distinção, superação e

até mesmo para a modulação dos efeitos, conforme se defenderá mais adiante.

Com o acolhimento da sistemática de precedentes, aplicável à Administração

Pública, será correto deparar-se com a situação em que a dispensa genérica de

interposição de recursos não mais se dará por conta da jurisprudência, mas em razão

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da existência de precedente, com análise da ratio decidendi e uma possível delimitação

da extensão fática de sua aplicabilidade, sem prejuízo da análise casuística de sua

aplicação a outros casos.

Perceptível, então, a mudança paradigmática. Enquanto inicialmente os atos de

dispensa genérica se baseavam na jurisprudência, atualmente também terão por

fundamento a existência de precedente sobre tema específico, autorizando-se a não

interposição de recurso.

De outro lado, deixa para a análise casuística as demais situações, em que

será avaliada a necessidade da interposição do recurso levando-se em consideração o

regime administrativo-processual, conforme adiante será visto.

Feitas essas observações, retoma-se o exame do ato que importa na dispensa

de recurso.

Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta que, para o desempenho das

atividades de sua alçada, a Administração Pública dispõe de meios técnico-jurídicos,

que consistem em: i) atos unilaterais, gerais e abstratos, entre os quais os

regulamentos; ii) atos unilaterais e concretos, denominados de atos administrativos; iii)

proporcionar o atendimento das finalidades legais com o desenvolvimento do

procedimento administrativo; iv) atos bilaterais e consensuais, denominados de

contratos administrativos; e, v) licitação, como procedimento prévio à contratação.608

Feitas essas considerações, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello,

portanto, a orientação normativa não é ato administrativo propriamente dito, mas pode

ser enquadrado como ato subalterno em relação ao regulamento (Decretos), pois a

dispensa se faz de forma geral e abstrata e não é emanada do Chefe do Poder

Executivo.609

Segundo a doutrina de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, tais orientações

podem ser enquadradas como instruções, pois são “regras gerais, abstratas e

608 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 337. 609 Aliás, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “tudo quanto se disse a respeito do regulamento e de seus limites aplica-se, ainda com maior razão, a instruções, portarias, resoluções, regimentos ou quaisquer outros atos gerais do Executivo. É que, na pirâmide jurídica, alojam-se em nível inferior ao próprio regulamento. Enquanto este é o ato do Chefe do Poder Executivo, os demais assistem a autoridades de escalão mais baixo e, de conseguinte, investidas de poderes menores”. In: Curso de Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 369.

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impessoais, de caráter prático, baixadas por órgãos da Administração Pública aos

agentes públicos ou encarregados de obras e serviços públicos, prescrevendo-lhes o

modo pelo qual devem pôr em andamento seus cometimentos”.610

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, ensina que “todo ato praticado no

exercício da função administrativa é ato da Administração”, que compreende: i) atos de

direito privado, como a doação; ii) atos materiais, sem manifestação de vontade, como

a demolição de uma casa; iii) atos de conhecimento, opinião, juízo ou valor, como

atestados; iv) atos políticos sujeitos ao regime jurídico-constitucional; v) contratos; vi)

atos normativos da Administração, como decretos, portarias, resoluções, de efeitos

gerais e abstratos; e, por fim, vii) atos administrativos propriamente ditos.611 Dessa

forma, de acordo com a doutrinadora, a orientação normativa de dispensa de recurso

não se trata de ato administrativo em sentido estrito, mas de ato da administração

normativo.

Porém, conforme ressalta a doutrinadora, levando em consideração o critério

subjetivo, orgânico ou formal, os atos da Administração estão incluídos como atos

administrativos, pois se excluem somente os provenientes do legislativo e judiciais.612

Em comum às lições apresentadas, é possível concluir que a orientação

normativa genérica se apresenta como ato normativo geral, enquanto que a dispensa

casuística, realizada pela autoridade competente, possui outra natureza, conforme

adiante se verá.

6.3.2 A dispensa casuística de interposição de recurso

Na linha do que até aqui se defendeu, proferido pronunciamento jurisdicional

em processo do qual a fazenda pública seja parte ou tenha interesse, compete ao

advogado público realizar juízo valorativo quanto à necessidade de impugná-lo.

610 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de Direito Administrativo. Vol. I. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 381-382. 611 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 199-200. 612 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Op. cit., p. 202.

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Nesse passo, sendo a decisão contrária à ordem processual e administrativa,

surge o dever-poder de recorrer, de modo a ser alterada a esfera jurídica de terceiro e

tutelado o interesse público.

Em determinadas situações, porém, haverá ato geral de dispensa de recurso,

competindo ao advogado público promover a respectiva interpretação para verificar se

o pronunciamento se enquadra na situação genérica, ou se existe qualquer

particularidade que justifique a interposição do recurso.

Porém, há hipóteses em que não há a dispensa genérica e nas quais o

advogado público poderá entender que a interposição de recurso vai na contramão do

regime administrativo-processual, podendo o oferecimento de impugnação importar em

prejuízo ao interesse público. Reconhece-se, nesses casos, a principal característica

diferenciadora: haverá manifestação da vontade do advogado público, quer seja

expressa ou tacitamente, no sentido da não interposição do recurso, sem que haja um

padrão decisório anteriormente emitido pela autoridade competente. Trata-se de um

hard case interno.

Passa-se a analisar estas situações.

Em primeiro lugar, tem-se que é possível atribuir ao advogado público, com

exclusividade, o juízo valorativo quanto à necessidade de interposição do recurso. Em

outras palavras, a análise da ofensa à ordem jurídica e administrativa fica a critério

exclusivo do advogado público e, entendendo que o regime administrativo-processual

indica pela desnecessidade da impugnação, deixa transcorrer in albis o prazo

processual, ocorrendo a preclusão temporal, ou então se manifesta expressamente no

processo judicial, no sentido de que concorda com o ato judicial, extinguindo o poder-

dever de recorrer.

Deixar transcorrer in albis o prazo processual, de ofício, pode decorrer de um

ato registrado, no sentido de defender que não se trata de ato em que se deve

impugnar, ou então não derivado de qualquer registro. Nas duas situações,

naturalmente, a conduta do advogado público deve estar em consonância com a lei e a

omissão ilegal poderá acarretar desvio de poder.

A propósito, registra Dinorá Adelaide Musetti Grotti que:

O desvio de poder proveniente da omissão ocorre quando o agente decide abster-se de praticar um ato que deveria emitir para o adequado atendimento

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do interesse público, com escopo de favorecer, perseguir ou, de qualquer forma, visando finalidade alheia à da regra de competência que o habilitava.613

Para outros casos, porém, não basta apenas a vontade do advogado público.

Deve este, de acordo com as normas internas, submeter à apreciação do advogado

público ocupante de cargo competente, a aprovação da dispensa de recorrer.

Neste caso específico, diferentemente do anterior, a dispensa do recurso

advém de ato complexo, pois decorrente de duas vontades, quais sejam, do advogado

público que submete a questão, e do advogado público ocupante de cargo ou de função

de direção.

7. O dever-poder de recorrer das pessoas jurídicas de direito público

Tem a pessoa jurídica de direito público o poder-dever de recorrer, desde que a

decisão judicial a ser impugnada tenha atingido o interesse público (ou interesses

públicos). O exercício de tal situação jurídica deverá ser realizado em conformidade

com a ética administrativa-processual.

O intuito da expressão apresentada é, principalmente, o de diferenciar o poder

de recorrer do particular (pessoa física e pessoa jurídica de direito privado), para o

dever-poder de impugnar a decisão judicial pela pessoa jurídica de direito público.

Estabelece-se, assim, a relação de que as pessoas físicas e as pessoas

jurídicas de direito privado têm o poder de recorrer, de modo que poderá ou não querer

modificar a esfera jurídica de interesse de outrem, pois detêm direito de que podem

dispor, como regra.

De outro lado, a pessoa jurídica de direito público possui poder-dever de

recorrer, pois, havendo ofensa ao interesse público (ou interesses públicos), deverá

interpor o recurso e pretender modificar a esfera jurídica de terceiro.

Há diferença entre as duas situações narradas.

Ao particular é admitido até deixar de recorrer, em razão da disponibilidade do

seu interesse. Forma-se a coisa julgada e ele próprio suportará as consequências de

613 O desvio de poder em atos administrativos. Direito e Administração Pública. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. NOHARA, Irene Patrícia. MARRARA, Thiago (org.). Estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, p. 811.

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231

sua omissão, observando-se que a coisa julgada é inter partes. De outro lado, ao

recorrer, assume o total risco das consequências de tal ato, especialmente em relação

à possibilidade de aplicação de multa por ser o recurso manifestamente protelatório,

eventual interposição (quando cabível) de recurso adesivo e a majoração da verba

honorária em razão do desprovimento da impugnação apresentada.

Contudo, em relação à pessoa jurídica de direito público, há o dever-poder de

recorrer, orientado pela ética administrativa-processual, o que ocorrerá se o recurso,

observando os princípios da moralidade e da boa-fé processual, objetivar impugnar

decisão judicial contrária à ordem jurídica e administrativa, que possa ser defendida em

juízo pelo ente público recorrente, por meio do tipo recursal adequado e eficiente.

Passa-se a detalhar o que foi dito.

O dever-poder de recorrer deverá ser exercido em conformidade com a

moralidade e a boa-fé processual. A moralidade é intrinsicamente ligada a um ato

proveniente da Administração Pública e praticada por agente público (advogado

público), enquanto que a boa-fé processual representa o dever de comportamento ético

de qualquer litigante, notadamente da própria Administração Pública.

O dever-poder de recorrer representa, a um só tempo, um ato material

praticado por agente público, bem como um ato processual. Além disso, a ética exige

que o recurso seja interposto unicamente para a modificação de decisão judicial

contrária à ordem jurídica e administrativa, observando-se, ainda, o princípio da

eficiência.

Como já foi dito neste trabalho, os poderes da República são repartidos em

atribuições e competências, mas o Estado é um só. Não pode a Administração Pública

pretender modificar decisão judicial que esteja em conformidade com os valores

amparados pela ordem jurídica e respeitadora da ordem administrativa.

A decisão contrária à ordem jurídica é aquela contrária ao Direito,

compreendendo-se normas (princípios e regras), às Convenções Internacionais, à

Constituição Federal, à legislação infraconstitucional e também aos precedentes

obrigatórios que, em um Estado de Direito, vinculam a todos, especialmente a

Administração Pública.

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232

Com efeito, como adiante se verá, o precedente formado irradia seus efeitos

para todos os jurisdicionados e vincula a atividade da Administração Pública, exigindo

dos órgãos de consultoria jurídica uma releitura de seus anteriores posicionamentos,

adequando a interpretação administrativa à judicial para os casos que guardem

similitude fática, ou então aplicando as técnicas da distinção ou da superação já nessa

via.

O precedente formado – de acordo com posição que aqui será admitida –

constitui-se em princípio jurídico vinculador da atividade administrativa, de modo que

para a impugnação de decisão judicial deverá o advogado público, agindo consoante a

ética administrativa-processual, indicar que o faz para demonstrar a desconformidade

do pronunciamento com o precedente, ou então para promover a aplicação das

técnicas da distinção ou da superação.

Há de ser registrado, também, que a decisão impugnada poderá ferir a ordem

administrativa em geral, entendida como a normal execução dos serviços públicos, o

regular andamento das obras públicas e o devido exercício das funções da

Administração pelas autoridades constituídas.614

A atividade judicial não poderá substituir o devido exercício das funções da

Administração Pública pelas autoridades constituídas, respeitada a conveniência e

oportunidade administrativa, salvo nas hipóteses em que houver ofensa a direitos

fundamentais.

Porém, mesmo que a decisão seja contrária à ordem jurídica e administrativa, a

pessoa jurídica de direito público deverá ter legitimidade para pretender a sua reversão,

conforme mais adiante será analisado.

Além de existir a pertinência subjetiva, de ser a pessoa jurídica de direito

público parte, terceira prejudicada ou mesmo interveniente que a lei admita, deverá

ainda demonstrar que possui interesse jurídico na modificação do decisum, que, no

caso, será diferenciado em relação aos particulares.

614 Conforme já afirmado no Agravo Regimental na Suspensão de Segurança n. 4.178, do Rio de janeiro, Rel. Min. Cezar Peluso, decisão plenária de 20.10.2011, e lembrado no Pedido de Suspensão n. 0203907.48.2013.8.26.0000, em decisão proferida pelo então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador Ivan Sartori (02.12.2013).

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233

De fato, o interesse recursal estará presente não só em decorrência da

sucumbência, em que se demonstra a necessidade de modificação da decisão,

exigindo-se, também, que o pronunciamento impugnado seja contrário à ética

administrativa-processual, quando então o advogado público deverá sopesar aspectos

de eficiência e interpor, se for o caso, o recurso adequado.

A eficiência é uma exigência de todo ato decorrente da Administração. E o

recurso, como ato praticado por agente público em relação processual, também deverá

observá-la, de modo que deve ser possível extrair da impugnação da decisão, se acaso

acolhido o seu mérito, um resultado que justifique a movimentação de toda a máquina

judiciária e o custo financeiro.

Não se pode exigir que a Administração Pública federal interponha recursos

com parcos proveitos econômicos, pois acarretará mais prejuízo ao Estado

(considerado único) do que benefícios. Também não se pode exigir a interposição de

recurso que se sabe desprovido de fundamento, com finalidade procrastinatória, pois,

se o governante pretende não pagar a conta em sua Administração, ela será satisfeita

em gestão futura, com juros e correção monetária.

Em remate, a simples sucumbência não é o bastante para justificar o interesse

recursal da pessoa jurídica de direito público. Além disso, deve ser inerente a utilidade

do recurso para a defesa de interesse público considerado em seu todo. Diz-se, então,

que há a exigência de interesse recursal qualificado, que será objeto de análise mais

detalhada.

8. Os requisitos de admissibilidade dos recursos e o interesse de recorrer

qualificado pelo interesse público

8.1 Classificação dos requisitos de admissibilidade

Os requisitos, pressupostos ou condições de admissibilidade são aqueles

necessários para que seja analisado o mérito do recurso. Constituem-se em matéria de

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ordem pública, que pode ser conhecida de ofício. Trata-se do objeto do juízo de

admissibilidade ou de prelibação.615

Conforme destacado por Flávio Cheim Jorge, a doutrina encampa duas

correntes básicas sobre a classificação de tais requisitos:616 a defendida por Seabra

Fagundes, que faz a divisão entre requisitos subjetivos e objetivos, e outra, defendida

por Barbosa Moreira, para quem os requisitos são intrínsecos e extrínsecos.617 Adotou-

se aqui, assim como o fez Nelson Nery,618 o critério utilizado por José Carlos Barbosa

Moreira.

Sem prejuízo da existência de vários requisitos apontados pela doutrina,

considerando-se o corte metodológico deste trabalho, serão enfrentados apenas os

requisitos da legitimidade e do interesse para recorrer, sobretudo diante das

particularidades da atuação do poder público em Juízo e como preparação para análise

do chamado interesse recursal qualificado, próprio das pessoas jurídicas de direito

público.

8.2 Legitimidade para recorrer

Para a admissibilidade do recurso, deverá o recorrente ter legitimidade para a

sua interposição, prevista de forma genérica. Nesse sentido, o art. 996 do NCPC dispõe

que têm legitimidade a parte, o terceiro prejudicado e o Ministério Público, como parte

ou como fiscal da ordem jurídica.

Constitui parte aquele que participa do processo619 como autor ou como réu.

Também são equiparados a partes no processo o denunciado, na denunciação à

lide620, o chamado, no chamamento ao processo621 e o assistente litisconsorcial.622

615 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 266. 616 “É de se perceber que tanto uma como outra classificação atendem igualmente ao objetivo por elas delineados, que é, justamente, esquematizar um quadro completo e coerente de todos os requisitos de admissibilidade dos recursos. Não existe, propriamente, distinção de conteúdo entre ambas as classificações. Não é possível dizer que uma supera a outra em termos de qualidade. Ambas, como referido, atingem o objetivo pretendido”. JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 111. 617 JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 110-111. 618 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 266. 619 O Novo CPC fez previsão de regras procedimentais em relação ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 em diante), deixando ao direito material a indicação das hipóteses em

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As pessoas jurídicas de direito público, figurando como partes no processo,

terão legitimidade para recorrer. Cumpre, aqui, destacar a atuação daquelas pessoas

nas ações populares e nas ações de improbidade administrativa.

Com efeito, está previsto no art. 6º, § 3º, da Lei da Ação Popular, bem como no

art. 17, § 3º da Lei da Improbidade Administrativa, que a pessoa jurídica de direito

público, naquelas ações, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao

lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo

representante legal ou dirigente.

A atuação da pessoa jurídica de direito público, nestas ações, é justificada pela

defesa do interesse público, que, não obstante o papel do Ministério Público no

processo, como parte ou como fiscal da ordem jurídica, não retira a possibilidade de

sua defesa por outros órgãos, mesmo que afetados com os efeitos negativos do ato

questionado.623

Essa atuação, no sentir de Cássio Scarpinella Bueno, atribui à pessoa jurídica

de direito público a condição de “parte sui generis”, indicando que:

Isto porque ela pode, para a tutela de um mesmo bem material, exercer pretensão ou resistir à pretensão exercida, “optando” por uma ou por outra iniciativa, sem as amarras da preclusão de do princípio da “estabilidade das partes” consagrado no Código de Processo Civil. Tal posição de “parte sui generis” fica ainda mais transparente no caso da ação regida pela Lei n.

que isso será possível. Uma vez instaurado o incidente processual e sendo citado, o terceiro (ou a pessoa jurídica, na desconsideração inversa) passará a integrar a relação jurídica como parte processual, pois o seu patrimônio poderá responder pela obrigação, motivo pelo qual poderá, se o caso, recorrer na condição de parte processual. 620 A denunciação da lide foi prevista nos arts. 125 a 129 do Novo CPC e importa na instauração de nova relação processual, a ser estabelecida entre o denunciante (autor ou o réu) e o denunciado. Esta nova ação tem por finalidade exercer pretensão de regresso do denunciante. 621 O chamamento ao processo constitui-se em hipótese de intervenção de terceiros em que há ampliação do polo passivo da demanda, na qual se busca a responsabilização do afiançado na ação em que o fiador for réu, dos demais fiadores na ação proposta contra um ou alguns deles, dos demais devedores solidários quando o credor exigir de um ou de alguns o pagamento da dívida comum (art. 130). Nesse sentido, o chamando integrará o processo como litisconsorte e, como tal, será considerado parte, podendo recorrer nessa condição. 622 O Novo CPC corrigiu a impressão topográfica existente no CPC de 1973 e previu a assistência como modalidade de intervenção de terceiros espontânea, prevendo-as nos arts. 119 a 124. Na assistência simples, o assistente deverá demonstrar que possui interesse jurídico na intervenção, não bastando mero interesse econômico. Embora tal assistente, havendo óbice por parte do assistido, não possa recorrer na condição de parte, poderá fazê-lo como terceiro prejudicado, se demonstrar interesse jurídico. De outro lado, na assistência litisconsorcial, o assistente deverá demonstrar que o pronunciamento jurisdicional de mérito poderá influenciar na relação jurídica existente entre ele e o adversário de seu assistido. 623 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 264.

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8.429/92. Lá, a própria pessoa jurídica de direito público tem, desde logo, legitimidade para ajuizar a ação, por força do caput do art. 17.624

Como é possível verificar, em prol do interesse público primário, pode a pessoa

jurídica de direito público escolher o polo da ação e, se for o caso, migrar de um para o

outro (ativo para o passivo e vice-versa), conforme aceito pelos doutrinadores

atualmente, e isto comprova que a sua participação no processo se faz como parte da

relação processual.625

Em conformidade com o art. 996 do Novo Código de Processo Civil, caput e

parágrafo único, o recurso também poderá ser interposto por terceiro prejudicado,

cumprindo-lhe demonstrar a possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica

submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa

discutir em juízo como substituto processual.

Como é possível notar, o NCPC se valeu da expressão “terceiro prejudicado”,

tal como o fez o art. 499 do CPC de 1973, porém, aperfeiçoou a extensão de seu

interesse, conforme será visto adiante.626

Não obstante a fórmula empregada no caput dos dois dispositivos, é certo que

não só o terceiro prejudicado terá legitimidade para recorrer. Como explica Fredie Didier

Júnior, ao comentar o CPC 1973, “não é da essência do conceito do instituto a

existência do prejuízo jurídico; ou melhor, a existência de qualquer tipo de prejuízo. Há

casos, ao contrário, de dispositivos legais que expressamente dispensam este liame

(...)”.627

624 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 266. 625 “Em suma, parece-nos que a ‘troca’ de um dos polos da relação processual pelo outro ao longo do procedimento – norma de exceção ao princípio da estabilização da demanda, que deriva dos arts. 264 e 294 do Código de Processo Civil [atual art. 329 do NCPC] – deve ser entendida como forma de a pessoa jurídica de direito público tutelar, adequadamente, o interesse público (primário) que, em última análise, deve mover toda a sua atuação: no plano material e também no plano do direito processual”. BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 260. 626 José Carlos Barbosa Moreira lembra que a distinção de terceiro, para fins de recurso, “é menos relevante no sistema do Código de 1973 que no direito anterior: o diploma de 1939, no art. 815, §§ 1º e 2º, concedia ao terceiro, em certas hipóteses, prazo maior que o da parte para a interposição de recurso; a lei nova nenhuma diferença estabelece ao propósito”. In: Comentários ao Código de Processo Civil. 13ª. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 204. A lição apresentada, que comparava os Códigos de Processo de 1939 e 1973, estende-se também ao CPC de 2015, pois não se estabeleceu prazo maior para o terceiro. 627DIDIER JÚNIOR, Fredie. Recurso de terceiro. Juízo de admissibilidade. Série Recursos no Processo Civil. Vol. 10. São Paulo: RT, 2002, p. 29-30.

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E prossegue:

O que importa para identificá-lo, é a circunstância de ser recurso – modalidade típica de impugnação à decisão judicial – proposto por um terceiro – estranho ao feito até aquele momento. O fato de ser permitido recurso de terceiro sem prejuízo jurídico não o desqualifica como tal.628

De fato, como bem alertado pelo autor, não só o terceiro prejudicado poderá

recorrer, mas também o terceiro que tenha outro interesse.

Nesse sentido, é possível identificar, no ordenamento jurídico, três ordens

diferentes de interesses de terceiro,629 que justificam a sua legitimidade para recorrer,

quais sejam: i) jurídico; ii) econômico; iii) de prestar auxílio ao órgão judicial.630

O terceiro prejudicado poderá recorrer, segundo a alusão feita pelos códigos de

1973 e 2015, assim considerado pela nova lei como aquele que não figurou como parte

principal ou secundária no processo. Ele possui interesse jurídico na intervenção,

competindo-lhe demonstrar a “possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica

submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa

discutir em juízo como substituto processual” (art. 996, parágrafo único, NCPC).

O conceito de terceiro, ensina Barbosa Moreira, “determina-se pela exclusão

em confronto com o de parte: é terceiro quem não seja parte, quer nunca o tenha sido,

quer haja deixado de sê-lo em momento anterior àquele em que se profira a

decisão”.631

Assim, o litisconsorte necessário, que não tenha sido citado para o processo, é

considerado terceiro, salvo se já ingressou na condição de assistente litisconsorcial.

Aquele que havia sido excluído do processo, anteriormente ao pronunciamento

recorrido, também é considerado terceiro.

628 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Recurso de terceiro. Juízo de admissibilidade. Série Recursos no Processo Civil. Vol. 10. São Paulo: RT, 2002, p. 29-30. 629 Sendo modalidade interventiva, não são admitidas no Sistema dos Juizados Especiais (Juizados Especiais Cíveis, da Fazenda Pública e Federais, pois o art. 10 da Lei n. 9.099/1995 veda peremptoriamente qualquer modalidade de intervenção nessa seara, muito embora art. 1.062 do NCPC tenha abrandado a regra, ao admitir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica). 630 Mas, antes de explicar a existência dessas ordens diferentes de interesses de terceiro, é necessário registrar que, em comum, o recurso de terceiro se configura como hipótese de intervenção de terceiro, diferenciando-se do instituto italiano da oposição, bem como do instituto francês da tierce opposition, que têm natureza de ação impugnativa da coisa julgada. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Recurso de terceiro. Juízo de admissibilidade. Série Recursos no Processo Civil. Vol. 10. São Paulo: RT, 2002, p. 48-49. 631 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. p. 294.

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A partir do próprio texto da lei, é possível assinalar que existem duas ordens

diferentes de interesse jurídico recursal de terceiro, decorrentes de: i) direito de que o

recorrente se afirme titular; ou, ii) direito de que possa discutir como substituto

processual. Nas duas hipóteses, a lei prevê a legitimidade recursal.

No primeiro, o interesse poderá surgir tendo em vista a possibilidade de que a

decisão possa atingir direito de que o recorrente se afirme titular, de modo que poderia

ter figurado como assistente simples ou litisconsorcial no processo, mas não só neste

caso.

Sobre o tema, já se afirmou que:

O terceiro recorrente é aquele que poderia ter sido assistente – simples ou litisconsorcial – mas não só.

Há terceiros que podem sofrer reflexos de decisões proferidas em processos alheios, e que não poderiam ter sido assistentes. Pense-se, por exemplo, na situação daquela que moveu ação de investigação de paternidade contra o pai falecido, e pede reserva de quinhão no inventário. Julgada procedente a ação, é terceira prejudicada para recorrer da partilha em que seu quinhão não foi reservado. Também é terceiro prejudicado para recorrer, o litisconsorte necessário que não foi citado no processo. Ele tem legitimidade e interesse para apresentar recurso, na condição de terceiro e impugnar a decisão que o atinge diretamente.632

Assim, conforme registrado, como regra, o terceiro prejudicado poderia atuar

como assistente, embora se admitam exceções.

A autoridade coatora, assim indicada em mandado de segurança, tem

legitimidade para recorrer na condição de terceiro prejudicado (art. 14, § 2º, da Lei n.

12.016/2009).

A autoridade é a pessoa que ordena a prática ou a abstenção impugnáveis e

que ocupa determinado cargo ou função, quer em pessoa jurídica de direito público,

quer em pessoa jurídica de direito privado. Não se confunde com o mero executor do

ato.

Ao atribuir legitimidade à autoridade coatora, a lei não teve a intenção de que

esta o fizesse para a defesa dos interesses da pessoa que ele presenta em juízo, que

ocupa o polo passivo da ação, mas para defender interesse seu.

632 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 1.427.

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De fato, não é correto afirmar que o polo passivo é ocupado pela autoridade

apontada como coatora, até porque esta não arcará com quaisquer ônus ou efeitos

decorrentes da sentença judicial. Todos os ônus serão suportados pela pessoa jurídica

de direito público que deverá figurar no polo passivo da ação. Nesse sentido, é válida a

lição de Sergio Ferraz, para quem: “Em suma, na nossa visão, sujeito passivo, no

mandado de segurança, é a pessoa jurídica que vai suportar os efeitos defluentes da

ação”.633 Comungavam dessa opinião, já antes do advento da Lei n. 12.016/09, Cássio

Scarpinella Bueno634 e Leonardo José Carneiro da Cunha.635

Nesse sentido, a autoridade coatora, ao interpor recurso, não o fará em nome

da pessoa jurídica de direito público, representada judicialmente pela Advocacia

Pública, mas o fará na defesa de seu próprio interesse, “para prevenir sua

responsabilidade pessoal por eventual dano decorrente do ato coator, mas não para a

defesa deste ato em grau recursal”.636

A propósito do tema, há posicionamento segundo o qual se defende a

possibilidade de incidência das astreintes no patrimônio pessoal do agente público, em

razão da ineficiência da pessoa jurídica de direito público no cumprimento de obrigação

de fazer ou de entregar. Aponta-se a “ausência de uma vontade humana específica a

ser influenciada psicologicamente pela imposição da referida medida, pelo que acabaria

projetando-se por longo período sem acarretar qualquer resultado prático, esquecida

que ficaria na fila dos precatórios”.637

Se, eventualmente adotado esse posicionamento no mandado de segurança,

conforme aceita Eduardo Talamini, aplicando-se multa à autoridade impetrada, tem esta

legitimidade para a interposição de recurso, na condição de terceiro prejudicado.638

633 FERRAZ, Sérgio. Mandado de segurança. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 88. 634 BUENO, Cassio Scarpinella. Mandado de segurança. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. 635 “Sem embargo da controvérsia instalada doutrinariamente, parece mais correto entender que a legitimidade passiva para o mandado de segurança é da pessoa jurídica a cujos quadros pertence a autoridade de quem emanou ato impugnado” (A Fazenda Pública em juízo. 5ª. ed. São Paulo: Dialética, 2007, p. 373). 636 Conforme reconhecido pela Corte Especial do STJ, no EREsp 180.613/SE, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 17.11.2004, DJ 17.12.2004, p. 388). 637 NUNES, Amanda Lessa. Astreintes nas execuções contra a Fazenda Pública. Possibilidade de incidência no patrimônio pessoal do agente público. Revista de processo, vol. 245, ano 40. São Paulo: RT, jul. 2015, p. 138. 638 Conforme asseverado pelo autor, “não deve ficar descartado que, em casos graves, a multa venha a ser cominada diretamente contar a pessoa da autoridade coatora (assim como, em processos de outra

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Feitos esses esclarecimentos, passa-se à análise da legitimação do terceiro

para atuar como substituto processual de outrem.

O substituto processual, nas palavras de Dinamarco, é aquele que “recebe da

lei ou do sistema legitimidade para atuar em juízo no interesse alheio, como parte

principal, não figurando na relação jurídico-material controvertida”.639

Como se vê, o substituto processual poderia atuar como parte principal, na

defesa de interesse alheio. Como não o fez, então poderá interpor recurso na condição

de terceiro juridicamente interessado. Ocorrerá, por exemplo, em ação civil pública

proposta pelo Ministério Público em face do poluidor, em que determinada associação

de defesa do meio ambiente interpõe recurso contra a sentença de improcedência,

atuando, assim, como substituta processual da coletividade.

Outro exemplo, relevante, sobre o recurso de terceiro que pode atuar como

substituto processual é o do cidadão, que, embora não tenha atuado como litisconsorte

na ação popular (art. 6º, § 5º, da Lei da Ação Popular), interponha recurso contra

pronunciamento proferido no processo. Neste caso, atuará, mais uma vez, como

substituto processual da coletividade.

As pessoas jurídicas de direito público, nas causas cuja decisão possa ter

reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica poderão intervir para esclarecer

questões de fato e de direito, independentemente da existência de interesse jurídico,

conforme autorizado pelo parágrafo único, do art. 5º, da Lei n. 9.469/1897. Trata-se de

espécie de intervenção anômala, cuja sistemática geral foi analisada no Capítulo 1

deste trabalho, remanescendo a necessidade de se analisar, aqui, a legitimidade para

recorrer.

Antes, porém, deve ser lembrado que Cássio Scarpinella Bueno, após

reconhecer que o instituto ora tratado é figura específica de intervenção,640 atribui à

natureza, contra o agente público incumbido do cumprimento da decisão). Em vista das peculiaridades (e deficiências) da estrutura interna administrativa, muitas vezes apenas a multa contra a própria autoridade atinge concretamente a meta de pressionar ao cumprimento”. In.: Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: e sua extensão aos deveres de entrega de coisa (CPC, arts. 461 e 461-A, CD, art. 84). 2ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 499-500. 639 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 317. 640 A esse respeito, ensina o autor: “Que se trata, pois, de figura anômala, diferenciada, própria, sui generis, específica de intervenção de terceiro (sempre entendido como aquele que não é parte), não há dúvida nenhuma. Bastava, para a unanimidade dessa conclusão, prescrever a desnecessidade de

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pessoa jurídica de direito público a condição de amicus curiae, em razão de dispensar a

demonstração de interesse jurídico.641 De outro lado, outros autores negam tal

qualidade, tal como o fizeram Fredie Didier Júnior642, embora reconheça a necessidade

de interesse jurídico. Como já foi sustentado no Capítulo 1, defende-se que não se trata

de hipótese de amicus curiae, mas de intervenção fundada no interesse econômico da

coletividade, uma das faces do interesse público.

E, conforme já se defendeu, reforça a ideia de que não se trata de intervenção

de amicus curiae, pois este, no Novo Código de Processo Civil, somente poderá

recorrer em hipóteses excepcionais, restritas à interposição de embargos declaratórios

e no incidente de resolução de demandas repetitivas, vedação essa que não se aplica à

intervenção anômala.

Por isso, poderá a pessoa jurídica de direito público interpor qualquer recurso

previsto em lei na defesa de interesse econômico, podendo avançar até os Tribunais

Superiores, desde que presentes os demais requisitos de admissibilidade.

Passa-se ao exame do terceiro com interesse em auxiliar o órgão judicial,

indicado como sendo o amicus curiae, sendo pontuados, na sequência, apontamentos

objetivos sobre a previsão de tal intervenção no ordenamento jurídico brasileiro.

No art. 31 da Lei n. 6.385/1976, com a redação conferida pela Lei n.

6.616/1978, foi identificada uma hipótese de intervenção de amicus curiae,

determinando-se a intimação da Comissão de Valores Mobiliários – autarquia federal –

em ações que digam respeito ao mercado de capitais, permitindo-lhe a intervenção.

A Lei n. 9.868/1999, por sua vez, dispõe sobre o processo e julgamento da

ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade

demonstração de “interesse jurídico”, como móvel dessa modalidade interventiva espontânea. Fosse, aliás, hipótese de assistência, exigindo-se, da União Federal ou de outras pessoas jurídicas de direito público nos moldes do art. 50 do Código de Processo Civil e não haveria qualquer razão para a criação de instituto como aquele regido pelo diploma legislativo em tela. Seria suficiente a aplicação, à hipótese, do instituto da assistência, tal qual regulado pelo Código de Processo Civil”. BUENO, Cássio Scarp inella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 218. 641 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 218. 642 Conforme ensina: “trata-se de modalidade interventiva sui generis, cujos únicos legitimados são as pessoas jurídicas de direito público, que estariam, a princípio, dispensadas da demonstração do interesse jurídico, bastando o econômico”. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Recurso de terceiro. Juízo de admissibilidade. Série Recursos no Processo Civil. Vol. 10. São Paulo: RT, 2002, p. 114.

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perante o Supremo Tribunal Federal, prevendo a participação do amicus. Ao mesmo

tempo, alterou o art. 482 do CPC de 1973, no sentido de permitir a sua intervenção no

incidente de inconstitucionalidade de lei.

O § 7º, do art. 14, da Lei n. 10.259/2001, também admitiu a intervenção do

amicus no incidente de uniformização de interpretação de lei federal.

Mais tarde, com a inserção, entre outros, dos arts. 543-A e 543-C, foi admitida a

intervenção do amicus para se manifestar sobre a existência da repercussão geral e

para manifestação em recursos especiais que tramitassem sob o regime dos recursos

repetitivos.

A Lei n. 12.153/2009, ao tratar dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, tem

várias imperfeições, sendo uma delas a não previsão do amicus para atuar no incidente

de uniformização de interpretação de lei.

Com efeito, o § 4º do art. 19, que foi vetado, teria a seguinte redação:

“Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se

manifestar no prazo de 30 (trinta) dias”. Foram mencionadas como razões de veto: “Ao

permitir a intervenção de qualquer pessoa, ainda que não seja parte do processo, o

dispositivo cria espécie sui generis de intervenção de terceiros, incompatível com os

princípios essenciais aos Juizados Especiais, como a celeridade e a simplicidade.”

Ora, trata-se de mais uma de tantas incoerências do Sistema dos Juizados

Especiais, pois, se tal intervenção é possível nos Juizados Especiais Federais, por que

não o seria nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, notadamente no incidente de

uniformização de interpretação de lei, em que será possível a formação de precedente?

Injustificável.

A Lei n. 12.592/2011, por sua vez, impõe que, nos processos que envolvem

infrações contra a ordem econômica, o CADE deve intervir na qualidade de “assistente”,

sendo “correta a interpretação deste dispositivo (art. 118), que despreza sua literalidade

e considera que se tem, aqui, uma hipótese de intervenção de amicus curiae”.643

O Novo CPC, por sua vez, também fez previsão da intervenção do amicus

curiae como modalidade de intervenção de terceiros (art. 138). Assim, considerando a

643 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 259.

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relevância da matéria objeto do incidente, a especificidade do tema objeto da demanda

ou a repercussão social da controvérsia, admite-se a intervenção de qualquer pessoa

natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada.

Nery e Nery ressaltam que o

amicus curiae não está equiparado à parte ou ao terceiro tradicionalmente considerado. Isto porque não tem interesse jurídico na causa, o que caracteriza a intervenção de terceiros clássica. A situação do amicus curiae é de interventor anódino (ad adiunvandum), sem interesse jurídico. Daí a razão pela qual não se pode alterar a competência, mesmo em casos nos quais, a princípio, haveria competência constitucionalmente estipulada. 644

Nesse sentido, prevê o Novo CPC a intervenção do amicus curiae nos

incidentes de declaração de inconstitucionalidade (art. 950, § 3º) e de resolução de

demandas repetitivas (art. 982), bem como em repercussão geral em recurso

extraordinário (art. 1.035, § 5º) e nos recursos extraordinário e especial repetitivos (art.

1.038, II).645 646

O amicus curiae não é parte no processo, pois não tem qualquer interesse no

resultado da ação. Tem unicamente interesse em auxiliar o órgão judicial. Terá

legitimidade recursal limitada, pois somente poderá recorrer para opor embargos

declaratórios e para impugnar o pronunciamento que julgar o incidente de resolução de

demandas repetitivas (art. 138, § 3º do Novo CPC). Configura-se importantíssima a

participação da pessoa jurídica de direito público como amicus curiae, notadamente em

ações que versem sobre direitos que, uma vez reconhecidos, poderão refletir para toda

a Administração Pública.

A União e as Unidades Federativas vêm pugnando pelo seu ingresso, na

condição de amicus curiae, principalmente em recursos que tramitam perante os

644 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 576. 645 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 577. 646 “A intervenção do amicus no recurso repetitivo não se funda no ideal que deu origem à figura do direito inglês. O terceiro não intervém apenas para auxiliar a Corte ou para, de forma neutra, esclarecer os fatos para que a Corte não decida de forma equivocada. A intervenção, embora não ocorra em razão do litigante, mas de terceiros não representados, objetiva que a questão de direito seja resolvida em favor de uma das partes. De modo que a intervenção é, por assim dizer, parcial. Esclareça-se, aliás, que mesmo no common law, especialmente nos Estados Unidos, há bastante tempo o amicus curiae deixou de ser um “disinterested bystander” para se tornar um sujeito que ativamente participa do processo em nome de terceiros interessados no êxito de uma das partes”. MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto Corte de Precedentes. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 230.

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Tribunais Superiores, diante da possibilidade de formação de jurisprudência contrária

aos seus interesses, como ocorreu, por exemplo, no Recurso Especial n. 1.251.993,

julgado sob o regime do art. 543-C do CPC de 1973, que tratou da questão relativa à

prescrição trienal ou quinquenal da pretensão indenizatória a ser exercida contra a

fazenda pública, prevalecendo a regra de que a prescrição da pretensão indenizatória

em face da fazenda pública será sempre quinquenal, não se aplicando o prazo previsto

no art. 206, § 3º, V do Código Civil, segundo a qual o prazo seria trienal.

Como se vê, o precedente formado alcança todas as pessoas jurídicas de

direito público, impondo-se a dispensa de recursos pela coletividade em prol do

ressarcimento de prejuízos, com observância do prazo quinquenal de prescrição da

pretensão.

A ação tramitava entre o autor e o Município de Londrina, tendo prevalecido a

regra de que a prescrição em face das pessoas jurídicas de direito público é

quinquenal. Quando o processo se encontrava no Superior Tribunal de Justiça, para

julgamento do recurso especial interposto, a União e o estado do Rio Grande do Sul

pugnaram pelo ingresso como assistentes, pois teriam interesse jurídico.

Ao analisar o pleito, o Ministro Relator Mauro Campbell Marques entendeu que

não haveria que se falar em interesse jurídico que permitissem que a União e o estado

do Rio Grande do Sul figurassem como assistentes simples do Município de Londrina,

pois, eventual interesse destes na tese debatida não significa existir interesse jurídico.

De outro lado, reconheceu-se que

é manifesto que o tema debatido no presente recurso especial representativo da controvérsia – prazo prescricional em ação indenizatória ajuizada contra a Fazenda Pública – possui relevância e justifica a manifestação dos entes públicos das esferas federal, estadual e municipal. Tal consideração autoriza o ingresso dos ora requerentes no processo como amicus curiae, nos termos do art. 543-C, § 4º, do Código de Processo Civil. Ante o exposto, INDEFIRO os pedidos de assistência simples (fls. 240/250 e 253/254), entretanto, DEFIRO o pedido de ingresso da União e do Estado do Rio Grande do Sul na condição de amicus curiae , nos termos do art. 543-C, § 4º, do Código de Processo Civil.647

Note-se que, nesse caso, em razão da relevância do tema, admitiu-se o

ingresso da União e do estado do Rio Grande do Sul, ambos como amici curiae.

647 Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=25946410&num_registro=201101008870&data=20121207&formato=PDF. Acesso em 14 fev.2016.

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Em outro caso, também relevante para as pessoas jurídicas de direito público,

houve requerimento para ingresso nessa condição. Trata-se do Recurso Especial n.

1.201.993, de Relatoria do Ministro Herman Benjamim.

Na ação respectiva, discute-se o termo inicial de contagem do prazo

prescricional para o redirecionamento da execução fiscal em face do sócio-gerente ou

administrador. Seria ele a citação da pessoa jurídica ou a data da efetiva ciência da

dissolução irregular da sociedade?

O fisco se manifestou no sentido de que o termo inicial é o da efetiva ciência da

dissolução irregular da sociedade, ante a aplicação do princípio da actio nata, pois o

prazo prescricional somente se iniciaria a partir do surgimento da pretensão. E, diante

de tal interesse, justifica-se o requerimento de ingresso das pessoas naquela condição,

decidindo o Ministro Relator:

[D]ada a repercussão da matéria controvertida para as Fazendas Públicas, e com o objetivo de concentrar a representatividade dos interessados, sem prejuízo do bom andamento do feito, defiro o pedido de ingresso, na condição de amicus curiae , formulado pela União, Abrasf, CNM e pelo Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal.648

De fato, a participação das pessoas jurídicas de direito público na condição de

amicus curiae vem aumentando progressivamente e tende a se tornar ainda mais

efetiva em razão do Novo Código de Processo Civil, notadamente diante da

possibilidade da formação de precedentes vinculativos (art. 927 do NCPC).

A propósito, afigura-se importante que as próprias pessoas jurídicas de direito

público, diante de questões mais complexas e que tratem de interesses comuns, criem

um cadastro de informação de ações e recursos relevantes, a fim de que haja a

possibilidade de intervenção, como amicus curiae, do maior número de entes, para a

prevalência do interesse público, propiciando amplo debate sobre o tema.

De toda forma, seria prudente que a União e as Unidades Federativas

requeressem ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça que, ao

ser dada entrada naqueles Tribunais de ações com aquelas características, fosse um

deles cientificado, a fim de que pudesse, em sistema de rodízio estabelecido em

convênio, comunicar aos demais entes públicos.

648 Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=14121974&num_registro=201001275952&data=20110404&tipo=0&formato=PDF.Acesso em 01 fev.2016.

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Se, de um lado, o Novo CPC prevê a intervenção do amicus curiae em quatro

dispositivos, restringe a possibilidade de interposição de recurso a apenas um deles –

incidente de resolução de demandas repetitivas – e admite a apresentação de

embargos declaratórios em todos (art. 138, §§ 1º e 3º).

Ao comentar a questão, à luz do CPC de 1973, Cássio Scarpinella Bueno

sustentou que poderá o amicus curiae recorrer desde que o pronunciamento

jurisdicional atacado afete o seu interesse institucional.649 650 Ao mesmo tempo, o autor

traça paralelo para com a atuação do Ministério Público, questionando se o amicus teria

a mesma legitimidade recursal do custos legis para se buscar “a produção de melhor

decisão do ponto de vista de sua qualidade”.651

E a resposta apresentada pelo autor é no sentido positivo, principalmente por

vislumbrar que, a atuação do amicus curiae, por vezes, assume função processual

próxima à do fiscal da ordem jurídica (custos legis), motivo pelo qual deve ser

reconhecida a ele a legitimidade recursal. No mesmo sentido ocorrerá se, ainda que

não seja tão próxima a atuação à figura do fiscal da ordem jurídica, a sua equiparação

ao terceiro juridicamente interessado pode fundamentar a mesma solução.652

E a lição acima apresentada é extremamente importante, principalmente em

relação à possibilidade de intervenção pelas pessoas jurídicas de direito público que,

em razão do regime jurídico administrativo a que estão submetidas, têm o dever

institucional de buscar a defesa do interesse público.

Assim, a atuação do custos legis e do amicus curiae encampado na figura das

pessoas jurídicas de direito público tem muito em comum, na medida em que fundada

na defesa do interesse público, o que garantiria a legitimidade recursal destas pessoas

649 In: Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 513. 650 Sobre o interesse institucional, já se dissertou que: “o estudo desta figura faz nascer a necessidade de se começar a desenhar com alguma precisão o conceito de interesse institucional, que justifica sua atuação no processo, interesse que deve ser concebido num espírito diferente daquele que se afirma titular do direito sobre o qual se há de decidir, ou mesmo interesse de terceiro, ou seja, daquele que sofrerá os efeitos indiretos ou reflexos da sentença”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro. Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 257. 651 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 512. 652 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 514.

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para a interposição dos recursos que fossem necessários, e não só para a interposição

de embargos declaratórios e em face do incidente de resolução de demandas

repetitivas.

Para dar continuidade à análise da questão, devem ser feitas outras anotações.

Os Tribunais Superiores, ainda sob a ordem jurídica anterior ao CPC 2015, não

admitiam a legitimidade recursal do amicus, nem mesmo para a interposição de

embargos declaratórios.653

No AREsp 625.216/RJ, mencionado na última nota de rodapé, o Relator

Ministro Mauro Campbell Marques deixou registrado que as

entidades que ingressam na relação processual na condição de amicus curiae não possuem interesse imediato naquela determinada lide, sendo admitidas apenas com a finalidade de subsidiar o magistrado com informações úteis ao deslinde das discussões judiciais de interesse coletivo. Portanto, não se revela cognoscível a pretensão do recorrente de sanar as omissões indicadas em seus aclaratórios, diante de sua flagrante ilegitimidade recursal.

No Agravo Regimental interposto no RE 597165, Rel. Ministro Celso de Mello,

refletindo o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, foi registrado

que a legitimidade recursal do amicus é reconhecida apenas na hipótese em que lhe

seja negado o ingresso formal na causa, registrando, ainda, que a sua atuação está

restrita a pluralizar o debate, sendo inviável impugnar a decisão judicial.654

Em razão dos precedentes formados sobre o tema, o disposto no Novo Código

de Processo Civil importará em alteração significativa, pois se atribui a legitimidade

recursal ao amicus curiae para interpor os embargos declaratórios, bem como recorrer

no incidente de resolução de demandas repetitivas (muito embora aqui se defenda

também a interposição de outros recursos, como já visto).

Justificável a possibilidade de interposição de embargos declaratórios, pois este

se trata de recurso com a finalidade de aclarar a decisão proferida, o que deve ser

653 A propósito, destaque-se o decidido, no Supremo Tribunal Federal, na ADI-ED 3105 / DF, Rel. Ministro Cezar Peluso, DJ 23.02.2007, e ADI-ED 2591 / DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 13.04.2007, e, no Superior Tribunal de Justiça, o decidido no EDcl no AgRg no MS 12.459/DF, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias (juiz convocado do TRF 1ª Região), 1ª S., j. 27.02.2008, DJe 24.03.2008, EDcl no REsp 1143677/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Corte Especial, j. 29.06.2010, DJe 02.09.2010 e, entre outros, no AREsp 625.216/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª T., j. 18.08.2015, DAgRg Je 27.08.2015. 654 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7432871. Acesso em 14 fev.2016.

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garantido a todos que participaram do processo, sejam partes, terceiros ou o Ministério

Público.

Admite-se, também, a interposição de recurso no incidente de resolução de

demandas repetitivas, previsto no Novo Código de Processo Civil e que tem a função

de “racionalizar o julgamento de processos que albergam a mesma matéria de direito,

ao mesmo tempo em que atende à necessidade de segurança jurídica e isonomia”.655

Diante dessa função e do efeito potencializador e vinculativo do precedente

formado no âmbito de tal incidente, tem-se que a participação das pessoas jurídicas de

direito público, como amicus curiae, mostra-se essencial, pois propiciará diálogo mais

amplo e permitirá que outros argumentos possam ser levados ao Tribunal,656

principalmente por envolver “questões de repercussão da sociedade, já que se trata de

resolver ações de massa”.657

Também tem legitimidade para recorrer o Ministério Público, como parte ou

como fiscal da ordem jurídica.

Em conformidade com o art. 178 do Novo CPC, o Ministério Público atuará,

como fiscal da ordem jurídica, nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal

e nos processos que envolvam interesse público ou social, interesse de incapaz ou

litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.

Atuando como fiscal da ordem jurídica, o Ministério Público poderá recorrer,

ainda que não haja recurso da parte (súmula n. 99, do Superior Tribunal de Justiça).

Dessa maneira, a legitimação recursal, embora concorrente com a das partes, é

primária, pois não dependente do comportamento delas.

Nas ações de família, o Ministério Público não mais atuará automaticamente na

condição de fiscal da ordem jurídica, mas apenas se houver interesse de incapaz.

655 CARVALHO, Raphaelle Costa. O incidente de resolução de demandas repetitivas: breve análise de sua estrutura e de seu papel na realidade processual brasileira. Revista de Processo, vol. 250. Ano 40. P. 293. São Paulo: RT, dez. 2015. 656 A propósito, “a matéria comum aos processos afetados ao IRDR será analisada pelo Tribunal de segundo grau mediante ampla cognição (art. 983, caput, Novo CPC), com realização de audiências públicas para a obtenção de subsídios argumentativos (art. 983, § 1º, Novo CPC) e para a “elucidação da questão de direito controvertida” (art. 983, § 2º Novo CPC). CARVALHO, Raphaelle Costa. O incidente de resolução de demandas repetitivas: breve análise de sua estrutura e de seu papel na realidade processual brasileira. In: Revista de Processo, vol. 250. Ano 40. P. 293. São Paulo: RT, dez. 2015. 657 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. Artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 260.

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Em conformidade com o parágrafo único do art. 178, a participação da fazenda

pública (pessoa jurídica de direito público) não configura, por si só, hipótese de

intervenção do Ministério Público.

8.3 Interesse recursal

Haverá interesse em recorrer quando presentes os requisitos do binômio

necessidade e utilidade.658

Para que haja a necessidade recursal, deverá o recorrente demonstrar que o

recurso é o único meio de obter “o que pretende contra a decisão impugnada”.659

Em relação à utilidade, o recurso será útil se puder importar em situação de

melhora ao recorrente, em decorrência da sucumbência ou prejuízo imposto pelo

pronunciamento jurisdicional.

A propósito, Nelson Nery Júnior, embasado em doutrina alemã, destaca a

existência da sucumbência formal e material. Ensina o doutrinador que:

Há sucumbência quando o conteúdo da parte dispositiva da decisão judicial diverge do que foi requerido pela parte no processo (sucumbência formal) ou quando, independentemente das pretensões deduzidas pelas partes no processo, a decisão judicial colocar a parte ou o terceiro em situação jurídica pior do que aquela que tinha antes do processo, isto é, quando a decisão produzir efeitos desfavoráveis à parte ou a ao terceiro (sucumbência material), ou, ainda, quando a parte não obteve no processo tudo aquilo que poderia dele ter obtido.660

E conclui que a “sucumbência é aferível com base na soma de vários critérios

distintos. A tão só desconformidade da decisão com os requerimentos formulados pelas

partes não basta, por si só, para caracterizar a sucumbência”.661

Nas duas modalidades de sucumbência, portanto, haverá o interesse em

recorrer.

Ao mesmo tempo, a doutrina também ressalva que é necessário ter cautela ao

se relacionar o interesse recursal à existência de sucumbência ou gravame, dando-se

658 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 300. 659 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, p. 300. 660 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 301. 661 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos recursos. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 301.

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como exemplo a situação do terceiro, que, embora não tenha sucumbido, pode

recorrer.662

Sobre o tema, ressalta Barbosa Moreira que

a ênfase incidirá mais sobre o que é possível ao recorrente esperar que se decida, no novo julgamento, do que sobre o teor daquilo que se decidiu, no julgamento impugnado. Daí preferirmos aludir à utilidade, como outros aludem, como fórmula afim, ao proveito ou ao benefício que a futura decisão seja capaz de proporcionar ao recorrente.663

O exemplo da sentença proferida em ação popular é de valia para a análise do

interesse recursal, tal como o fez Barbosa Moreira,664 contudo, devem ser somados

outros fatores específicos às pessoas jurídicas de direito público.

Na ação popular, a pessoa jurídica de direito público prejudicada será citada

para integrar a relação processual, podendo contestar o pedido, ou atuar ao lado do

autor, desde que se isso se afigure útil ao interesse público (art. 6º, § 3º, da Lei n.

4.717/1965), ou, mesmo, abster-se.

Em tal ação, é possível que a pessoa jurídica de direito público tenha

contestado o pedido, defendendo o ato impugnado. Nesse caso, embora tenha sido

proferida sentença de improcedência, sem o esgotamento das provas, terá aquela

interesse em recorrer, na medida em que esperava pela decisão de improcedência com

esgotamento das provas, o que inviabilizaria a discussão futura.665

Tem-se, assim, que se espera do novo julgamento uma sentença de

improcedência em que haja o esgotamento das provas, motivo pelo qual há o interesse

em recorrer.

Interessante, ainda, que é possível à pessoa jurídica de direito público migrar

de polo da ação durante o seu trâmite processual, desde que se julgue conveniente ao

interesse público.

A propósito, após analisar as várias lições a respeito do tema, Mancuso afirma

que:

662 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos Tribunais. Vol. III. 10ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2012. 663 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 299. 664 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 300. 665 Inviabilizaria porque a análise do esgotamento das provas poderá ser retomado em segunda ação ajuizada.

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Mutatis mutandis, considerando que a ação popular é – ao menos em princípio – movida em face e não propriamente contra a Fazenda Pública, tomada em sentido largo, parece-nos que ao representante processual do ente político deva ser reconhecida análoga autonomia funcional, de sorte que, ao final da instrução, possa eventualmente rever, sendo o caso, a posição inicialmente adotada, até porque o alvitre processual originalmente assumido prendia-se ao estado dos autos em sua fase inicial, postulatória, onde as alegações das partes são recepcionadas in statu assertionis e sujeitas a ulterior demonstração: secundum eventum probationis.666

Com fundamento nesta lição, é possível afirmar que, apesar de a pessoa

jurídica de direito público ter defendido a legalidade de um determinado ato

administrativo, será possível a interposição de recurso em face da sentença que

reconheça a improcedência da ação, com esgotamento das provas, por verificar que o

interesse público justifica a migração de polo, permitida a qualquer tempo. Demonstra-

se, assim, a existência de interesse recursal, pois se esperava decisão diversa.

Nota-se, neste caso, que não houve propriamente sucumbência, pois o juiz

decidiu em conformidade com a pretensão apresentada nos autos. Porém, o interesse

público, a partir de novo exame, justifica o exercício do dever-poder de recorrer,

impondo-se o conhecimento do recurso interposto.

Constata-se que o interesse recursal das pessoas jurídicas de direito público é

diferenciado nas ações coletivas, às quais é aplicada a regra acima por força da

existência do Sistema Único Coletivo, mas não somente àquelas, pois o interesse

público também deve ser tutelado nas ações individuais. Demonstra-se, com isso, a

existência de um interesse recursal qualificado, próprio das pessoas jurídicas de direito

público, e que será analisado adiante.

Não se pode deixar de analisar, por fim, a questão envolvendo o interesse

recursal complexo e condicionado, enfatizado por Carolina Uzeda Libardoni, para quem

“o interesse recursal do vencedor para impugnar as decisões interlocutórias não

recorríveis por agravo de instrumento ou por apelação autônoma é, portanto, complexo

e condicionado”.667

666 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. 5ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 176. 667 LIBARDONI, Carolina Uzeda. Interesse recursal complexo e condicionado quanto às decisões interlocutórias não agraváveis no novo Código de Processo Civil – segundas impressões sobre a apelação autônoma do vencedor. Revista de Processo, vol. 249. Ano 40, p. 239. São Paulo: RT, nov. 2015.

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252

A propósito, exemplifica a autora partindo do exemplo em que o autor tenha

requerido a produção de prova pericial, que foi indeferida, sendo a sentença de

procedência de seu pedido. Em razão disso, o réu apela e o autor, por sua vez, em

preliminar de apelação, pode aduzir à prova pericial indeferida. Nesta situação:

Sendo provida a apelação do vencido, para a improcedência do pedido, o autor tem total interesse em ver a decisão anulada em virtude da não realização da perícia, razão pela qual seu recurso deverá ser analisado pelo tribunal. Há formação do interesse complexo e condicionado, com a sucumbência na primeira decisão, mais o risco de ver a sentença alterada, mais a reforma ou anulação da sentença. Apenas nessas hipóteses o recurso do vencedor apresentado nas contrarrazões poderá ser conhecido, até mesmo para ser evitada a esdrúxula possibilidade de o recurso interposto pelo vencedor levar à anulação da sentença.668

Portanto, haverá necessidade de interesse recursal complexo e condicionado

para o julgamento do recurso interposto como preliminar em apelação, que deverá ser

analisado pelo Tribunal. Aliás, “o tribunal avaliará ambos os recursos, mas apenas

conhecerá e julgará o recurso do vencedor caso pretenda prover o recurso do vencido e

modificar a sentença”.669

9. O regime jurídico-administrativo-processual e o interesse em recorrer:

interesse recursal qualificado

O regime jurídico-administrativo-processual deverá ser observado já no próprio

ajuizamento da ação,670 como também, obviamente, na defesa nas demandas

propostas em face do poder público, ou, ainda, naquelas em que intervém de qualquer

forma, bem como em todas as fases do desenrolar processual, enfatizando-se a

668 LIBARDONI, Carolina Uzeda. Interesse recursal complexo e condicionado quanto às decisões interlocutórias não agraváveis no novo Código de Processo Civil – segundas impressões sobre a apelação autônoma do vencedor. Revista de Processo, vol. 249. Ano 40, p. 240. São Paulo: RT, nov. 2015. 669 LIBARDONI, Carolina Uzeda. Interesse recursal complexo e condicionado quanto às decisões interlocutórias não agraváveis no novo Código de Processo Civil – segundas impressões sobre a apelação autônoma do vencedor. Revista de Processo, vol. 249. Ano 40, p. 240. São Paulo: RT, nov. 2015. 670 A ética administrativa-processual já deve ser observada quando da propositura da ação. Não se trata, simplesmente, de evitar o abuso do direito processual. Sobre a diferença entre abuso do direito processual e má-fé apontou Rui Stoco: “a má-fé no curso do procedimento pode constituir fato isolado que, em alguns casos, não contamina a higidez do processo como um tudo, embora em alguns casos isso possa ocorrer. Contudo, o abuso do direito de demandar significa que a própria ação intentada é temerária, sem origem ou com suporte em fatos inexistentes ou diversos daqueles expostos”. STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: RT, 2002, p. 77.

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impugnação de pronunciamento judicial proferido que se constitui em precedente ou

que extrai a ratio decidendi de um caso-paradigma anterior, nos quais possa se

identificar aparente contrariedade ao interesse do poder público enquanto parte ou

interveniente no processo.

No universo de decisões judiciais que podem ser proferidas nesse sentido, é

possível distinguir dois grandes grupos: no primeiro grupo estão as decisões que têm

autoridade de precedente, indicados no art. 927 do Novo Código de Processo Civil; e,

no segundo, estão os pronunciamentos em que houve ou não a aplicabilidade de

precedente.

Antes de avançar sobre o tema, pede-se vênia para uma observação atinente à

atuação da Advocacia Pública.

De fato, a atuação do poder público, por meio de sua Advocacia Pública,671 nos

processos indicados no primeiro grupo, é de extrema importância, sobretudo para se

buscar não só a solução adequada do caso concreto, como também para evitar-se

decisões judiciais que possam projetar-se para casos futuros, adotando-se regra

jurídica que seja contrária aos princípios que regem a Administração Pública,

notadamente a legalidade e a supremacia do interesse público, que não observem os

princípios federativo e da simetria e/ou que atentem aos princípios da separação de

Poderes e da segurança jurídica, bem como à ordem administrativa, impondo ônus a

ser suportado por toda a coletividade, contrário ao previsto pela ordem jurídica como

um todo.

Para tanto, a atuação da Advocacia Pública deve primar pela excelência,

sobretudo nestes casos-paradigma, a fim de exercer a devida argumentação jurídica,

influenciada pelo interesse público, para a tomada da decisão adequada.

Esta atuação não está restrita aos processos em que a pessoa jurídica de

direito público seja parte, mas também compreende aqueles em que outros entes

públicos também o sejam, de modo a permitir a sua intervenção como amicus curiae.

671 Deve ser enfatizado que a atuação da Advocacia Pública, de forma isolada, não é suficiente para o sucesso da defesa do interesse público. Na verdade, deve-se estabelecer uma meta de atuação coordenada e articulada entre os vários órgãos de Estado, para que seja possível alinhar informações de ordens técnica e jurídica. Por exemplo, em dissídio coletivo de greve, eventual petição inicial antecedente para pedido de tutela cautelar, afigura-se extremamente importante o repasse de dados do órgão técnico para demonstrar o efetivo prejuízo, por exemplo, à saúde, competindo à Advocacia Pública adequar a argumentação jurídica apropriada para a defesa do interesse público.

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E essa intervenção proporcionará, a um só tempo, (i) a legitimação da decisão,

(ii) que se evite a formação de paradigma com tese contrária ao interesse público; e (iii)

a própria união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, sob uma

unidade central – a União – no Estado Democrático de Direito, uma vez que a atuação

conjunta das pessoas políticas, sobretudo, importará na soma de esforços para se levar

mais argumentos em prol da adoção de tese que favorecerá ao interesse público.

Em tais processos, deverão as pessoas jurídicas de direito público, desde que

embasadas no regime administrativo-processual, impugnar a decisão judicial que julgar

contrária à ordem jurídica, ao princípio da separação de Poderes e à ordem

administrativa, buscando, quando necessário, em prol da segurança jurídica, a

modulação dos efeitos da decisão.

Ainda para tais casos, há interesse superveniente (embora não recursal, mas

para exercício do direito de ação ou de petição) à própria formação da coisa julgada

(aplicável para o caso concreto) e dos efeitos supervenientes vinculantes do precedente

formado, pois pode-se identificar a necessidade de rescisão do julgado, por estar

presente hipótese que a permita, ou ainda, diante do novo contexto existente, seja

buscada a revisão da tese jurídica formada, conforme autorizam os art. 927, § 2º, 947, §

3º, 986, do NCPC.

Como dito anteriormente, no segundo grupo de decisões judiciais estão

compreendidas aquelas em que houve ou não a aplicação adequada, ao caso concreto,

da ratio decidendi extraída do caso-precedente.

Para estes casos, as pessoas jurídicas de direito público, por meio de sua

Advocacia Pública, exercerão juízo adequado do interesse em recorrer, sobretudo

diante do regime jurídico administrativo-processual, enfatizando-se os princípios da

impessoalidade e da igualdade material.

Este interesse recursal, que será denominado de interesse recursal qualificado

(que também se aplica ao primeiro grupo de decisões), deverá ser devidamente

demonstrado e estará presente em apenas algumas situações.

No próximo capítulo será analisado casuisticamente o interesse de recorrer

qualificado, diante de pronunciamento judicial que aplique ou deixe de aplicar

precedente.

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10. Conclusões parciais

Deparando-se o poder público com decisão judicial contrária a precedente, terá

o dever-poder de impugná-la, buscando-se a sua correção em prol do interesse público,

salvo se isso não for vantajoso em vista da eficiência administrativa, considerada em

seu todo.

E, sendo proferida decisão em face de pessoa jurídica de direito público,

aparentemente contrária aos seus interesses, deverá o agente público realizar o

respectivo juízo valorativo, ponderando, a partir do regime jurídico-administrativo-

processual, se tem ou não o dever-poder de recorrer na hipótese.

Sendo positiva a resposta, deverá, de forma eficiente, valer-se das técnicas

existentes para buscar a aplicação de precedente, ou da adoção das técnicas da

distinção ou da superação.

Enfim, o exercício do dever-poder de recorrer da pessoa jurídica de direito

público deverá ser objeto de juízo valorativo, de análise da Advocacia Pública,

observando-se a moralidade e a boa-fé processual.

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CAPÍTULO 5. O DEVER-PODER DE RECORRER DAS PESSOAS JURÍDICAS DE

DIREITO PÚBLICO DIANTE DE PRONUNCIAMENTO EM QUE É (IN)APLICÁVEL O

PRECEDENTE

1. Observações preliminares

Nos capítulos anteriores procurou-se demonstrar que a obrigatoriedade dos

precedentes encontra justificativa na percepção de um novo discurso, voltado à

racionalidade, apto a afastar o imperativo de juízos de valor díspares, que dão a uma

mesma situação jurídica diferentes respostas, conforme a concepção do julgador.

Também foi dito que o sistema de precedentes, tão criticado por alguns e

valorizado por outros, evitará que se formem grupos de pessoas que, embora se

encontrem sob uma mesma ordem jurídica e sob uma mesma Administração, recebem

tratamento diferenciado unicamente porque exigiram o seu direito pela via judicial, por

meio de pronunciamento judicial amparado em tese jurídica já consolidada. Trata-se

esta, segundo se entende, de prática que vai contra o direito fundamental de boa

administração.

Não se quer, com isso, engessar a atividade judicial e, muito menos, o próprio

juízo de conveniência e oportunidade do administrador, na linha do princípio da

separação de Poderes. Ambos os juízos devem ser respeitados. Ocorre que não se

justifica sujeitar o administrado ao processo quando já existir tese jurídica firmada em

precedente judicial, ou seja, contrária ao próprio Direito.

E esta postura deve refletir a atuação da pessoa jurídica de direito público na

relação processual, em todas as suas fases, sob pena de ofensa aos princípios da

Administração Pública e também da boa-fé processual, notadamente diante do

pronunciamento judicial e da análise (juízo) quanto à necessidade de sua impugnação

pelo meio adequado.

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Nesse sentido, podem ser vislumbradas três situações distintas, traçando-se

um paralelo com as observações feitas por José Rogério Cruz e Tucci ao tratar do fato

do juiz se deparar com um caso novo ou não.672

Pode-se dizer, então, que o Advogado Público se depara com uma decisão

judicial que se trata de um:

i) hard case, pois a matéria é dotada de ineditismo e, por isso, não

existem parâmetros estabelecidos em outros casos;

ii) pronunciamento amparado em jurisprudência, sem força vinculante

(nos moldes como antes aqui fixados);

iii) clear case, que é um caso amparado por precedente(s), em que se

estabelece a existência de coerência com caso(s) anterior(es) e se

busca subsídio no padrão decisório estabelecido.

Na primeira hipótese, a atuação do Advogado Público consistirá, em síntese,

em defender a legalidade e a supremacia do interesse público, naturalmente pendendo

para os interesses que vão ao encontro da pessoa jurídica de direito público,

resguardada, é claro, a finalidade pública.

Com efeito, a Advocacia Pública tem como missão primordial proporcionar

meios para que a gestão pública possa desenvolver os seus projetos e ações em busca

do interesse público, observando-se os juízos de conveniência e de oportunidade

próprios do agente público.

Não se quer, com isso, informar que o Advogado Público deve aliar-se a

práticas imorais ou contrárias ao Direito. Absolutamente. A ideia é a de que este

profissional apresente as soluções jurídicas necessárias ao administrador público e,

uma vez feita a escolha, defenda-a em juízo, se necessário for, desenvolvendo a

argumentação jurídica que a fundamente.

672 Em conformidade com a autora, “(...) quando um juiz se depara com uma questão pela primeira vez (first impression), sem que tenha existido a respeito prévia discussão pelos tribunais, considera-se um hard case (em contraposição aos clears cases, ou seja, amparados por precedentes). Os juízes terão então de enfrentar o mérito da controvérsia, deixando, nessa situação, de buscar subsídios imediatos nos Law Reports”. Parâmetros de eficácia e critérios de interpretação do precedente judicial. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). São Paulo: Direito jurisprudencial, 2012, p. 128.

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E ao atuar em juízo, o Advogado Público laborará com a finalidade de que não

seja formado um exemplo e, o pior, precedente que seja contrário ao que se julgue em

consonância com o interesse público e a sua tríplice dimensão ou perspectiva,

concepção cunhada por Mancuso para a súmula vinculante do Supremo Tribunal

Federal,673 no âmbito da escala piramidal da jurisprudência, consistente em: i)

concepção vertical, de modo a vincular todos os órgãos judiciais; ii) concepção

horizontal, com extensão à Administração Pública; e, iii) concepção social ao projetar-se

às pessoas físicas e jurídicas do país.

Pode ainda a decisão ser amparada por jurisprudência, consistente no reiterado

de decisões em um determinado sentido. Coerente com a linha aqui adotada, a

jurisprudência pode existir e ser totalmente modificada por um precedente. Ou seja, o

precedente, tal como concebido pela nova ordem processual brasileira, é o paradigma

vinculante. Da mesma maneira, toda uma jurisprudência pode-se formar a partir de um

precedente específico.

Sendo assim, se a decisão judicial, embora não trate de matéria inédita, nova,

mas de matéria já objeto de jurisprudência, como de vários acórdãos proferidos por

Tribunal de Justiça, após juízo crítico da viabilidade de acolhimento da tese, competirá

ao Advogado Público exercer o dever-poder e impugnar a decisão, buscando que seja

atribuído sentido a Tribunal diverso, para que o interesse público, na concepção da

Administração Pública, ligado à finalidade pública, prevaleça.

Ainda é possível, situação que mais interessa a este trabalho, que se trate de

um clear case e a decisão judicial, apesar disso, não esteja amparada em precedente,

valha-se equivocadamente de um precedente ao invés de outro, deixa de fazer a devida

distinção ou, ainda, não reconhece o seu desgaste e necessidade de superação,

surgindo então o interesse recursal qualificado, conforme se verá no próximo item.

673 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 147.

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2. Retomando o interesse recursal qualificado

De fato, tendo o pronunciamento judicial violado o precedente, tem-se que o

meio adequado para a sua impugnação é o recurso, devolvendo-se a matéria ao órgão

jurisdicional ad quem, exercido de forma voluntária pela parte ou terceiro que detenha

legitimidade e interesse recursal (no caso das pessoas jurídicas de direito público, o

interesse recursal qualificado).

Excepcionalmente, admite-se a utilização da reclamação nas hipóteses

aventadas no art. 988 do NCPC e, em especial aos precedentes, nos incisos III e IV,

respectivamente: garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de

decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução

de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.

Sobre a utilização da reclamação, Mitidiero destaca o equívoco do legislador,

pois teria essa ação a finalidade de tutelar a autoridade da decisão do caso concreto,

ou seja, de corrigir o “desrespeito ao dispositivo de determinada decisão”,674 e não de

tutelar o precedente.

E, na sua concepção, como a opção do legislador foi a de tutelar o precedente

por meio dessa ação, também haveria de ser admitida para todos aqueles casos

provenientes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.675

Ocorre que a edição da obra Precedentes. Da persuasão à vinculação, de

autoria de Daniel Mitidiero, foi concluída em janeiro de 2016 e, posteriormente, houve a

alteração do art. 988 do NCPC, sendo-lhe dada nova redação pela Lei n. 13.256/2016.

De acordo com o regramento, não será cabível a reclamação para garantir a

observância de precedente proferido em julgamento recursos extraordinário e especial

repetitivos (conforme alteração da redação do inciso IV e proibição constante do § 5º,

II).

Por esse motivo e diante do constante do art. 988, muito embora seja

incoerente preservar um precedente por meio da reclamação e não prever o mesmo

674 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 114. 675 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 114.

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instrumento em relação ao outro, o fato é que a Lei n. 13.256/2016 foi aprovada

exatamente diante dos reclamos do Poder Judiciário para diminuir o impacto junto aos

Tribunais Superiores.676

Dessa maneira, a análise realista e prática deve ser a de que não poderá ser

usada a reclamação para a tutela do precedente formado em recursos extraordinário e

especial repetitivos e não repetitivos.

De toda forma, ainda que cabível a reclamação, deve a parte interpor o

respectivo recurso para impugnar a decisão judicial, até porque é vedada a utilização

da reclamação como forma de tutela do precedente quando a decisão tiver transitado

em julgado (art. 988, § 5º, I NCPC); não obstante, a negativa de admissibilidade ou o

julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não

prejudicará a reclamação (art. 988, § 6º NCPC).

Portanto, diante de decisão judicial que tenha aplicado (ou não) precedente,

poderá o interessado, a depender do pronunciamento judicial, interpor o respectivo

recurso e, além disso, também ajuizar a ação de reclamação, observando-se o seguinte

quadro:

Pronunciamento Instrumento processuais

Ratio decidendi extraída de decisões do

STF em controle concentrado de

constitucionalidade

Recurso e Reclamação

Súmula vinculante Recurso e Reclamação.

Incidentes de assunção de competência e

de resolução de demandas repetitivas

Recurso e Reclamação.

Acórdãos de recursos extraordinário e

especial repetitivos ou não

Recursos

676 Aliás, fica claro o intuito da mudança legislativa, consoante o discurso do Deputado Paulo Teixeira, no sentido de que admitiria a mudança, mas pediria que houvesse uma contrapartida em favor da sociedade, pois, se não houvesse a aplicabilidade correta do precedente, deveria o “cidadão comum” ter meios de socorrer-se, o que poderia ser feito com a ação rescisória. Dessa maneira, a alteração compreendeu, conjuntamente, a alteração do art. 988, bem como também alteração de dispositivo que tratava desta ação desconstitutiva. http://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=317.1.55.O%20%20%20%20%20&nuQuarto=1&nuOrador=2&nuInsercao=15&dtHorarioQuarto=23:00&sgFaseSessao=OD%20%20%20%20%20%20%20%20&data=20/10/2015&txApelido=PAULO+TEIXEIRA+PT-SP&txFaseSessao=Ordem+do+Dia++++++++++++++++++&txTipoSessao=Deliberativa+Extraordin%E1ria+-+CD++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++&txEtapa=. Acesso em 14.07.2016.

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Súmulas do STF e do STJ Recursos

Orientação do Plenário ou do órgão

especial aos quais estiverem vinculados

Recursos e reclamação.

Retomando-se os recursos, deve ser destacada, ainda, a alteração do papel

dos recursos, que se constituem em “possibilidade jurídico-discursiva das garantias do

contraditório e da ampla defesa”,677 pois se permite a rediscussão da questão,

sobretudo jurídica, tão importante não só para a formação dos precedentes,678 como,

especialmente, para a sua efetiva aplicabilidade, distinção e superação.

Para que ocorra a interposição do recurso, deve o recorrente preencher o

requisito do interesse recursal, demonstrando que o aquele é o único meio para poder

modificar a decisão judicial impugnada, bem como de que o recurso pode importar em

situação de melhora ao recorrente, em razão da sucumbência existente.

Dessa maneira, qualquer legitimado, que figure como autor de uma demanda,

tendo-se em vista a sentença de improcedência do pedido, terá, ao menos em tese,

interesse recursal, na medida em que a apelação será o meio necessário para a

mudança da situação existente, bem como que o seu acolhimento poderá importar em

situação que lhe é favorável.

Aliás, é digno de nota de que a própria concepção de interesse de agir vem se

alterando e, por consequência, a noção de interesse recursal.

A propósito, Antonio do Passo Cabral lembra que, atualmente, prevalece a

noção do Direito alemão no sentido de que o interesse de agir se apresenta como um

“filtro de eficiência através do qual o legislador deseja evitar o dispêndio de atividade

jurisdicional inútil”, com considerável alteração na forma como o processo passou a ser

visto, deslocando-o do olhar da parte para o do juízo, como uma forma de proporcionar

gestão processual mais eficiente. Por isso, em seu sentir, o interesse-utilidade passou a

677 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2015, p. 290. 678 Conforme ressaltado doutrinariamente, os recursos se constituem em importante instrumento para viabilizar a formação de padrões decisórios, valorizando-se a formação de precedentes. THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2015, p. 291.

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ser a pedra de toque da atividade judiciária, encampando-se uma “perspectiva utilitária

do interesse de agir”. 679

Em razão disso, é conveniente que as discussões judiciais estejam reservadas

para específicas controvérsias, posto que a Justiça estatal deve ser utilizada de forma

subsidiária, como último recurso, ou, last resort.680

Sobre o tema, Mancuso ressalta a possibilidade de menção a vários exemplos

de conflitos que não precisariam estar em juízo, como ocorre com as execuções fiscais,

que poderiam demandar trabalho administrativo das Fazendas Públicas, ao invés de

acumularem-se aos milhares nas respectivas Varas.681

Transportando essa noção para o interesse recursal, em sua perspectiva

utilitária, valendo-se das palavras de Antonio do Passo Cabral, pode-se dizer que o

recurso também deve estar condicionado ao cumprimento de uma gestão processual

mais eficiente, reservado unicamente para que os Tribunais possam rever os casos

mais importantes e as decisões judiciais que, de fato, estiverem em desconformidade

com os precedentes.

A questão se torna mais nítida em relação às pessoas jurídicas de direito

público, vinculadas que são à lei e ao sentido do texto – que se configura em norma

jurídica – consolidado no precedente judicial, bem como à necessidade de atenção ao

princípio da eficiência.

Nesse sentido, a interposição de recurso por estas pessoas deve estar

carregada de um juízo crítico quanto à sua utilidade prática, no sentido de proporcionar,

realmente, uma situação de melhora para o interesse público, consubstanciada na

efetiva possibilidade de acolhimento da pretensão recursal.

679 In.: Despolarização do processo. FUX, Luiz (coord.). O novo Processo Civil Brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2011, p. 152-154. 680 Como registrado por Neil Andrews: “Pre-action protocols, introduced in 1999 to promote settlement and avoid formal proceedings, state that litigation should be a last resort. Similarly, Government recognises that ADR permits disputes to be resolved less expensively than civil litigation. Furthermore, the court system directly encourages litigants to pursue mediation in appropriate cases. The English courts have fashioned a system of carrots and sticks, of encouragement and costs sanctions, to promote mediation where it is appropriate”. Complex civil litigation in England. Revista de Processo. Vol. 153/2007. São Paulo: RT Online, p. 2. 681 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes. São Paulo: RT, 2014, p. 126.

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Em virtude dessa concepção utilitária, que é reveladora de que as pessoas

jurídicas de direito público somente poderão impugnar uma decisão judicial que, de

fato, for contrária à lei e ao precedente, sendo o regime jurídico-administrativo-

processual seu fundamento ético, pode-se dizer que o interesse recursal da Fazenda

Pública não se apresenta como de mesmo grau do que existente em relação aos

particulares.

Tem-se, então, um interesse recursal de grau diferenciado, aqui denominado de

interesse recursal qualificado, que concentra os ideais relacionados à observância: a)

da lei e do precedente; b) da supremacia do interesse público; c) da moralidade

administrativa; d) da boa-fé processual; e) da impessoalidade; f) da eficiência; e, g) do

respeito à autonomia do Advogado Público.

Como foi dito no Capítulo 3, as pessoas jurídicas de direito público estão

sujeitas ao ordenamento jurídico como um todo, devendo observar a força normativa da

Constituição Federal e seus princípios, entre eles, o da supremacia do interesse público

(compreendido como um princípio constitucional implícito),682 de modo que, por dever

de probidade e de observância da boa-fé, somente poderão buscar a modificação de

decisão que, de fato, possa ser alterada.

Não pode se descuidar de aspectos de impessoalidade, porque deverá fazê-lo

de maneira geral, para compreender todos os indivíduos que se encontrarem na

mesma situação.

E, agindo dessa maneira, exercerá a sua atividade na linha da eficiência, pois

usará dos recursos próprios e da atividade judiciária de forma adequada, com o que

ganha toda a coletividade.

Aspecto importante neste contexto é o da atuação do Advogado Público que, a

um só tempo, tem autonomia para agir no sentido de defender o interesse público,

devendo-se abster de práticas antiéticas e contrárias à boa-fé processual.

682 Nesse sentido: “A Constituição, ao estabelecer e organizar o governo nos moldes escolhidos pela sociedade representa a lei mais alta emitida pela vontade popular devendo, por isso, ser interpretada de acordo com as opções valorativas básicas que nada mais são do que a expressão do interesse público. Sendo objeto de compromisso popular, o interesse público, ao lado dos princípios fundamentais, é base do sistema jurídico e condição necessária à execução do projeto político consignado na Constituição. Assim, como princípio implícito nos comandos dos princípios fundamentais, o interesse público constitui uma peça essencial para a correta e razoável interpretação constitucional”. CAPITULA, Sueli Solange. Interesse público – princípio constitucional implícito. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Vol. 17/1996. São Paulo: RT, 187.

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Nesse sentido, poderá o Advogado Público usufruir de sua prerrogativa e

independência técnica para a prática processual (art. 8º, § 1º, do Novo Código de Ética

da Advocacia) – no caso, o recurso – embora não possa formular pretensão ou

apresentar defesa quando ciente de que são destituídas de fundamento (art. 77, II

CPC), notadamente quando o ato tem nítido caráter protelatório.

Feitos esses esclarecimentos, passa-se à análise do dever-poder de recorrer e

que tenha relação direta com a observância ou inobservância de precedente, por ter o

decisum:

i) Sido omisso em relação à aplicabilidade do precedente;

ii) Haver aplicado equivocadamente um precedente em detrimento de outro;

iii) Não se utilizado da técnica da distinção ou se utilizado incorretamente;

iv) Não se utilizado ou utilizado da técnica da superação ou se utilizado

incorretamente;

v) Não se manifestado quanto à possível modulação de efeitos no caso

específico; e,

vi) Na impugnação da decisão que impõe tutela provisória contra a Fazenda

Pública.

3. Dever-poder decorrente de omissão de aplicabilidade do precedente

3.1 O Contraditório Dinâmico e a Fundamentação Analítica

O Novo Código de Processo Civil encampou várias Normas Fundamentais,

aplicáveis a todo o Direito Processual Civil, que consistem em princípios processuais e

regras, cabíveis como uma projeção da Constituição Federal no processo e que são

responsáveis por garantir a unidade do Código. Encontram-se espalhados por todo ele,

não estando apenas na parte inicial.

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265

Entre os princípios, destacam-se o do contraditório dinâmico e o da

fundamentação analítica, que passaram a ter intensidade superior àquela prevista no

CPC 1973.

Considera-se que o processo passou a ser visto como uma comunidade de

trabalho, democrática e participativa, em que as partes devem cooperar para com o juiz

no sentido de haver a resolução do mérito.683 Sendo uma comunidade de trabalho,

deve-se garantir às partes a prévia manifestação antes de serem tomadas decisões,

evitando-se a surpresa.

Note-se, a respeito, a previsão contida nos arts. 9º e 10 do NCPC, realçando-

se, com relação a este último, que a prévia manifestação deve ser assegurada ainda

que se trate de matéria de ordem pública.

E ao garantir a prévia manifestação das partes a respeito, tem-se o dever

correlato do magistrado de enfrentar os argumentos trazidos, não sendo considerada

fundamentada qualquer decisão judicial que, entre outras hipóteses, limitar-se a invocar

precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes

nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (art. 489, §

1º, V do CPC 2015).

Procedendo adequadamente, por meio de decisão fundamentada, o magistrado

estará estabelecendo diálogo adequado com a corte em que formado o precedente,

dando-se continuidade ao processo interpretativo e argumentativo.

E o recurso é excelente oportunidade para o exercício dessa argumentação,

quando se apresenta a matéria ao órgão jurisdicional ad quem, que dela poderá

conhecer em toda a sua profundidade.

3.2 Conhecimento de ofício do precedente

683 O contraditório dinâmico é visto como premissa interpretativa do “sistema comparticipativo/cooperativo do Novo CPC”, o que conduz à constatação de um perfil dialógico entre os sujeitos processuais. THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2015, p. 127.

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266

Pelo princípio do iura novit curia, o magistrado deve buscar conhecer o direito,

de modo que ele não precisa ser alegado pela parte.684 A esta compete apenas indicar

os fundamentos jurídicos do pedido. Quando for necessário, o magistrado poderá

determinar que a parte prove o teor e a vigência do direito municipal, estadual,

estrangeiro ou consuetudinário (art. 376 do NCPC).685

Conforme já foi afirmado anteriormente, o precedente não possui natureza de

lei, porém, tem efeito vinculante, força normativa, justamente pelo fato de o juiz dar

continuidade ao trabalho do legislador, fixando a norma aplicável ao caso concreto.

Embora não seja lei, há interesse público no respeito da autoridade do

precedente, como forma de assegurar a igualdade material, a segurança jurídica e a

previsibilidade, o que decorre da força normativa da Constituição Federal.

O art. 927 do CPC 2015 é claro no sentido de que o juiz e os Tribunais

observarão determinados pronunciamentos, aqui admitidos como precedentes, de

modo que o comando é imperativo, pois não se poderia determinar a observância das

decisões e simplesmente desconsiderá-las posteriormente.

Considerando-se, então, a sua indispensabilidade, bem como o interesse

público na sua observância, como forma de garantir a segurança jurídica da

coletividade, tem-se que o precedente (ou melhor, a ratio decidendi) poderá ser

conhecido de ofício pelo juiz, observando-se o contraditório dinâmico.

Não obstante tenha essa natureza, em conformidade com orientação dos

Tribunais Superiores, para que os recursos extraordinário e especial sejam conhecidos,

684 As partes possuem o ônus absoluto de alegar os fatos que devem ser levados em consideração quando da tomada da decisão. Porém, não tem esse ônus em relação às normas legais e à interpretação do direito, “porque o juiz tem o dever de conhecer bem o direito e aplicá-lo corretamente ainda quando as partes não hajam invocado norma alguma ou hajam invocado uma norma de modo impróprio. Na teoria da substanciação acatada pelo sistema processual brasileiro, o juiz está vinculado aos fatos narrados na petição inicial, não podendo decidir com fundamento em outros, mas é sempre livre para aplicar o direito conforme seu entendimento – porque jura novit curia”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário do Processo Civil. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 356. 685 Eduardo Cambi ressalta já ressaltava, ainda quando da vigência do CPC 1973, a necessidade de garantir-se o diálogo entre os sujeitos processuais, de modo que, “todas as vezes em que o juiz der um enquadramento jurídico diverso à causa, daquele invocado pelas partes, e essa nova compreensão puder resultar em prejuízo à tese ou à antítese, apresentadas em juízo, o magistrado deve ouvir, antes de sentenciar, os litigantes, para que possa assegurar-lhes a oportunidade de se manifestarem e, se for o caso, produzirem novas provas, fazendo-se, assim, respeitar a garantia do contraditório”. A prova civil. São Paulo: RT, 2006, p. 275.

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há necessidade de que tenha ocorrido o seu prequestionamento,686 motivo pelo qual é

preciso especial atenção dos advogados no sentido de observar se houve o devido

enfrentamento da matéria relacionada à aplicabilidade do precedente.

3.3 Decisão judicial per incuriam

A omissão do julgador, que não levou em consideração o precedente existente,

ou que o fez sem justificar os motivos para tanto, desafiará a interposição do recurso de

embargos de declaração (art. 1.022, II e parágrafo único, I e II do CPC 2015). 687

A omissão, para Nery e Nery, apta a ensejar a interposição do recurso de

embargos declaratórios decorre de ponto sobre o qual o juízo ou Tribunal deveria haver

se manifestado, ou em decorrência de requerimento da parte, ou por se tratar de

matéria de ordem pública e haveria de ser conhecida de ofício.688

No caso, como se trata de matéria de ordem pública, deveria ser conhecida de

ofício pelo juiz e, por isso, ainda que não tenha sido alegada a existência do

precedente, poderá a parte solicitar a manifestação do juízo a respeito.

Além disso, o NCPC elencou duas hipóteses específicas de omissão que

podem dar ensejo à interposição do recurso de embargos declaratórios, indicadas no

parágrafo único do art. 1.022, que importam no não conhecimento de precedente.

Nestes casos, sendo omissa, será nula a sentença.

3.4 A decisão de mérito e os embargos declaratórios com efeito infringente para suprir

omissão

686 AgRg no AgRg no AREsp 740.668/SE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª. T., j. 23.06.2016, DJe 01.07.2016. 687 Conforme já ressaltado por Teresa Arruda Alvim Wambier, dadas as raízes constitucionais dos embargos declaratórios, que têm finalidade de “garantir o direito que tem o jurisdicionado a ver seus conflitos (lato sensu) apreciados pelo Poder Judiciário por meio de decisões claras, completas e coerentes interna corporis”. Dessa maneira, trata-se de um instrumento em que as partes podem contribuir para que ocorra a plena aplicabilidade da inafastabilidade do controle jurisdicional. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 270. 688 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC, Lei n. 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 2.123.

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Consoante prevê o art. 494 do CPC 2015, publicada a sentença689 o juiz só

poderá alterá-la para corrigir-lhe, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões

materiais ou erros de cálculo, ou, por meio dos embargos declaratórios.

Frente a essa disposição, questiona-se se o conhecimento de precedente

poderá acarretar a alteração da sentença, dando-se efeitos infringentes aos embargos

declaratórios.

Com efeito, a omissão do conhecimento de precedente não pode se enquadrar

nas hipóteses do inciso I do art. 494 CPC 2015, pois não se trata de inexatidão

material690 ou erro de cálculo. Quando muito, poderia o magistrado errar a indicação

numérica do precedente, como, por exemplo, que se trata de RE n. X ao invés de RE n.

Y.

Ao comentar o CPC anterior, Teresa Arruda Alvim Wambier vislumbrou três

hipóteses em que os embargos de declaração podem ter efeitos modificativos, ou

infringentes: a) como efeito secundário de seu cabimento, como pode ocorrer com o

conhecimento da omissão; b) se houver erro material; c) se houver nulidade

absoluta.691

Sendo o precedente uma matéria de ordem pública, com interesse público no

seu conhecimento, poderá o magistrado, conhecendo dos embargos declaratórios, dar-

lhes provimento para suprir a omissão, mantendo a decisão pela própria interpretação

do precedente, como em uma hipótese de distinção pela matéria fática estar

comprovada nos autos.

Poderá ainda, conhecer da omissão e, atribuindo ao recurso efeito infringente,

proclamar novo resultado, diante da argumentação que passou a ser estabelecida em

razão do precedente existente, como decorrência da obrigatoriedade e da vinculação

imposta pelo sistema jurídico.

689 O texto do NCPC é mais técnico e não fez qualquer diferenciação ao fato de ser ou não sentença de mérito. NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei n. 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 1168. 690 O erro material consiste “na incorreção do modo de expressão do conteúdo”, sendo os erros de grafia os mais comuns a respeito. NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC. Lei n. 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 2123. 691 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 275-276.

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3.5 Conhecimento omissão existente na sentença quando do julgamento de apelação

Ainda que opostos os embargos declaratórios, poderá a sentença permanecer

omissa quanto à aplicabilidade do precedente existente, por não ter o magistrado

conhecido do recurso. Nesse caso, tratando-se de sentença, não resta outra saída

senão a interposição do recurso de apelação.

Antes de tecer comentários sobre este recurso, deve ser registrado que o

precedente pode dizer respeito a tema processual ou a tema de direito material,

conforme já foi dito. Dessa maneira, a decisão judicial que não observá-lo poderá

incorrer em error in procedendo ou em error in judicando, com consequências diversas.

O error in procedendo poderá ter ocorrido no transcorrer da relação processual

e, ressalvadas as hipóteses contidas no art. 1.015 do NCPC, não desafiará a

interposição de recurso, devendo, porém, a nulidade decorrente ser alegada quando do

oferecimento da apelação, como questão preliminar, ou em contrarrazões (art. 1.009,

§§ 1º e 2º NCPC).

Assim, incorrendo em error in procedendo o magistrado durante a relação

processual, não sendo hipótese de cabimento de agravo de instrumento em tempo,

deverá a parte alegar a nulidade na própria apelação a ser interposta.

E uma vez reconhecido o error in procedendo, competirá ao Tribunal avaliar

qual será o próximo passo.

Nesse sentido, poderá o relator converter o julgamento em diligência e

determinar que eventual nulidade seja sanada e, posteriormente, prosseguir-se com o

julgamento. De outro lado, se não for possível sanar o vício, o Tribunal reconhecerá a

nulidade e devolverá os autos ao juízo de primeiro grau.

Deve ser lembrado que o Novo CPC encampou o princípio da primazia do

julgamento do mérito, pelo que, se for possível acolher o mérito em favor de quem

alega a nulidade, poderá ser o vício ser desconsiderado pelo Tribunal.

Se incorrer o magistrado em error in judicando por conta da inobservância do

precedente, o conhecimento da apelação poderá acarretar a reversão do julgado ou, se

o caso, a sua manutenção, realizando o Tribunal a distinção necessária.

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3.6 Prequestionamento da matéria

Para que ocorra a admissibilidade dos recursos extraordinário e especial, há

necessidade de que a matéria tenha sido previamente prequestionada, com a

provocação da parte e o conhecimento do órgão jurisdicional a quo.

Aliás, a esse respeito, de se aplaudir a inovação do Novo Código de Processo

Civil, que, em atenção ao princípio da primazia do julgamento do mérito (art. 4º),

considerou como prequestionada a matéria suscitada nos embargos, ainda que tenham

sido inadmitidos ou rejeitados (art. 1.025).

Desse modo, para fins de prequestionamento, sendo omisso o ato judicial

impugnado, deverá a parte valer-se dos embargos declaratórios e, persistindo a

omissão, interpor o recurso adequado, pugnando pela nulidade do ato.

No caso de pessoa jurídica de direito público, considerando-se ainda mais a

indisponibilidade do interesse em litígio, tem-se o dever-poder de se buscar

prequestionar a matéria, principalmente para que as instâncias sejam esgotadas, nos

exatos limites éticos.

4. O dever-poder de recorrer em razão da aplicabilidade incorreta de

precedente

4.1 A confrontação do precedente

Diante da complexidade legislativa existente, notadamente em razão de seus

vários graus (desde a Constituição Federal até os regulamentos administrativos), é por

vezes compreensível que o julgador se utilize equivocadamente de um regramento

legislativo ao invés de outro, equivocando-se a respeito.

E o grau de complexidade tende a aumentar cada vez mais, notadamente em

razão da constante produção de decisões judiciais que, tal como a luz para o Universo,

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consegue ampliar os quadrantes imaginados pelo legislador, ou conformar

adequadamente os princípios e as cláusulas gerais.

Essas decisões judiciais chegam a um patamar de amadurecimento, por meio

dos recursos interpostos pelas partes, responsáveis que são por levar a matéria ao

conhecimento dos Tribunais e proporcionar a formação dos precedentes.

E formado o precedente, considerando-o como de observância obrigatória,

deverão as partes e o magistrado conhecê-lo a fundo, destrinchando o seu significado

para que haja a devida aplicabilidade.

Trata-se de atividade interpretativa, que requer o exame adequado do

pronunciamento judicial, extraindo-lhe os fatos materiais relevantes e também a ratio

decidendi para que seja verificada a coerência entre os casos e, sendo assim, valer-se

da regra jurídica fixada.

Aliás, o dever de coerência da jurisprudência foi tratado no art. 926 do NCPC

que, segundo Lênio Streck, constitui a chave de leitura de um novo paradigma, com o

anseio de superar a padronização desatenta às particularidades dos casos em geral,

aplicável desde os juízos de primeiro grau até as mais altas Cortes de Interpretação.692

A coerência, dessa maneira, apresenta-se como um vetor principiológico, a ser

observado por qualquer decisão judicial, extraído da argumentação jurídica constante

das decisões judiciais.

No entanto, diante de mais esse item no conhecimento jurídico, é possível que

o magistrado se utilize de precedente inadequado ao fundamentar a sua decisão

judicial, quer seja porque foi assim orientado pela parte, quer seja porque compreendeu

mal o seu significado.

Note-se que aqui se refere ao equívoco decorrente da utilização de um

precedente no lugar de outro, sem que o magistrado tenha fundamento a sua decisão

em distinção ou superação necessárias.

692 Conforme reportado pelo doutrinador, em sua coluna no site Consultor Jurídico: “A atenção que foi dispensada pelo atento relator na Câmara, deputado Paulo Teixeira e o apoio inestimável de Fredie Didier e Luiz Henrique Volpe, foram cruciais para o acatamento dessa minha sugestão de que o NCPC passasse a exigir “coerência e integridade” da e na jurisprudência. Isto é: em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Trata-se da necessária superação de um modelo estrito de regras, sem cair no pan-principiologismo que tanto critico. Simples assim... e complexo”. E completa: “A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário”. http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades. Acesso em 14.07.2016.

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4.2 A impugnação da decisão equivocada

Tendo o magistrado aplicado um precedente ao invés de outro e incorrendo em

error in judicando, competirá à parte interpor os embargos declaratórios, em vista da

omissão existente.

5. O dever-poder de recorrer para a correta aplicação da técnica da

distinção

5.1 A técnica da distinção na sistemática de precedentes

Por meio da técnica da distinção, poderá a parte comprovar que o seu caso

detém particularidade que justifica que não lhe seja aplicada a ratio decidendi de

determinado precedente. Encontra-se expressamente prevista na estruturação dos

recursos repetitivos (art. 1.037, §§ 9º e 10), com aplicabilidade, segundo Dierle Nunes e

André Frederico Horta, ao microssistema de litigiosidade repetitiva.693 Além disso,

deverá o magistrado levá-lo em consideração quando da fundamentação da decisão

judicial (art. 489, § 1º, VI CPC 2015).

Como a ratio decidendi está intimamente interligada com os fatos da causa, que

se mostrem relevantes para a solução jurídica, tem-se que a vinculação ao precedente

depende da existência de coerência entre aqueles e os fatos relevantes do caso

concreto.

A distinção não se reduz a um conceito único, pois comporta subtipos, como a

distinguishing-método, como meio de comparação entre o precedente e o caso

concreto, ou a distinguishing-resultado, justamente para demonstrar o resultado da

693 Esse microssistema encampa, entre os seus preceitos, “um novo regramento dos precedentes no Brasil". In: Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. In: DIDIER JR, Fredie (coord. geral) Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 302.

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comparação, quando se chega à conclusão da existência de diferença.694 Também se

utiliza a expressão distinção em sentido amplo para o método e em sentido estrito para

o resultado do processo de argumentação.695

Nesse sentido, conforme lembra Daniela Pereira Madeira, tendo o magistrado

chegado à conclusão de que há distinção entre os casos, escolherá um entre dois

caminhos: a) ou julga o processo livremente, sentindo-se desvinculado do precedente,

diante das particularidades do caso concreto (restrictive distinguishing);696 b) ou,

diferentemente, aplica por extensão ao caso concreto a regra jurídica antes delimitada

(ampliative distinguishing).697

Dierle Nunes e André Frederico Hortam ressaltam a importante função da

técnica da distinção para o amadurecimento do direito jurisprudencial. Em seu sentir, a

partir de sua formação o precedente entre em rota de evolução diante das novas

experiências a que é submetido, dando-se continuidade ao trabalho de interpretação,

que pode acarretar a necessidade de distinção no caso concreto.698 Esta, juntamente

com o modifying e o overruling, constituem as técnicas de divergência no uso dos

precedentes.699

Diferentemente das práticas existentes no CPC de 1973, em que se admitia a

análise superficial de teses jurídicas, sem a verificação das particularidades dos fatos, o

CPC de 2015 objetivou “promover uma readequação da prática judiciária à luz do

modelo democrático de processo”.700

Em razão disso, de maneira diversa do que se poderia pensar, a sistemática de

precedentes exige que o operador jurídico trabalhe com parâmetros que levem à

694 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes. Natureza. Eficácia. Operacionalidade. São Paulo: RT, 2014, p. 47. 695 NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. In: DIDIER JR, Fredie (coord. geral). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 311. 696 Entre outros casos, o Supremo Tribunal Federal aplicou a técnica da distinção no julgamento dos casos que embasaram a Súmula n. 729, ao afirmar que a ADC n. 04 não se aplica às ações de natureza previdenciária. 697 MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo código de processo civil). Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2011, p. 538. 698 In: Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. DIDIER JR, Fredie (coord. geral). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 309. 699 ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 299. 700 NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. In: Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. DIDIER JR, Fredie (coord. geral). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 309.

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274

individualização do Direito, a partir da análise fática e demonstração por meio das

provas, bem como à universalização da regra assumida no precedente.701

5.2 O raciocínio por comparações: a distinção entre precedentes

O manejo dos precedentes dependerá de que sejam feitas constantes

comparações entre dois ou mais casos. Há vezes, por exemplo, em que haverá

necessidade de que esta comparação ocorra com vários precedentes e, com a

interpretação de cada um, chega-se a uma tese construída e coerente com as soluções

anteriores.702 Aliás, de cada precedente será possível extrair mais de uma ratio

decidendi.703

Nesse sentido, deve haver sintonia entre os fatos para se admitir a vinculação

ao precedente. Note-se que não se exige identidade fática, mas uma coerência entre os

fatos capaz de conduzir à adoção da mesma solução.704 Reitere-se o quadro já

apresentado no Capítulo 2 a propósito:

FATO “A”- caso-precedente RATIO DECIDENDI “X”.

Coerência fática Aplica-se a mesma regra

FATO “B” – caso-concreto RATIO DECIDENDI “X”.

701 NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. In: Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. DIDIER JR, Fredie (coord. geral). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 310. 702 No julgamento da Apelação Cível n. 0969572-38.2012.8.26.0506, que tramitou pela 7ª. Câmara de Direito Público do Estado de São Paulo, Relator Des. Eduardo Gouvea, a Agência Reguladora de Serviços Delegados de Transporte do Estado de São Paulo interpôs apelação em face de sentença que havia acolhido pedido para que a autarquia não promovesse a apreensão de veículos que estivessem irregulares, em razão da inconstitucionalidade de um decreto estadual. Na ocasião, alegou-se ofensa a três precedentes, quais sejam, o Recurso Extraordinário n. 201.865-1/SP e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade julgadas pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça nos autos de n. 168.868-0/1-00 e 163.824.0/0, formando-se uma construção de entendimento a partir da interpretação de cada um daqueles pronunciamentos. Por fim, a técnica foi vitoriosa, pelo menos em segundo grau, com acolhimento do recurso e reversão do resultado da sentença, para o de improcedência do pedido, medida essa que favoreceu, em nosso sentir, a segurança pública nas rodovias do Estado de São Paulo. 703 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 270. 704 Francisco Rosito destaca que para a aplicação da técnica de distinguishing há necessidade de que ocorra o confronto entre o caso concreto e o precedente, sendo este aplicável somente se aquele guarder “pertinência substancial com a ratio decidendi do caso sucessivo”. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 301.

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Como é possível verificar, se entre os fatos “A” e “B” houver coerência fática, o

tribunal ou o juiz do caso concreto estará vinculado à ratio decidendi contida no

precedente. Trata-se de hipótese em que se garante a unidade do direito, mas em que

se exige análise fática, o que pode ser um impeditivo à correção pelos Tribunais

Superiores. Dessa análise, em que se exige interpretação, ocorre a comparação entre

fatores semelhantes e distinções em casos precedente e concreto, operação que pode

redundar no reconhecimento de relevante similaridade ou da necessidade da adoção

da técnica da distinguishing.705

Ou

FATO “A”- caso-precedente RATIO DECIDENDI “X”.

Sem coerência fática Regras distintas

FATO “B” – caso-concreto Inaplicável no caso concreto.

Dierle Nunes e André Frederico Horta ressaltam que analogias e contra-

analogias podem surgir a partir da comparação entre os casos. A primeira consiste na

indicação das similitudes entre os casos para que seja permitida a aplicação da mesma

regra jurídica. De outro lado, nas contra-analogias a interpretação faz concluir que

existem consequências distintas. Equipara-se, então, a distinção (distinguishing) à

contra-analogia.706

Para que a distinção seja justificada, ela deve ser convincente, basear-se em

justificativa material e não em fatos irrelevantes.707

5.3 Dever-poder de recorrer na distinção entre casos

Como já se deixou claro, a distinção poderá ser realizada independentemente

do nível hierárquico do juízo julgador do caso concreto. Não há qualquer necessidade

de equiparação hierárquica entre a Corte de Interpretação e o órgão julgador e que

705 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 116. 706 NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. In: Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. DIDIER JR, Fredie (coord. geral). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 310. 707 ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 302.

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aplicará o precedente. Aliás, a distinção poderá ser realizada tanto no âmbito do órgão

judicial que o concebeu quanto pelo subordinado.708

Em razão disso, a sua utilização já deve ocorrer desde as primeiras

manifestações em primeiro grau e perpassa por todo o procedimento: quando da

postulação, resposta, julgamento antecipado parcial da lide ou julgamento antecipado

da lide, recursos etc.

E para que seja utilizada, deve o operador do Direito fazê-lo de maneira

consistente, fundamentada, a partir da interpretação dos casos e de sua comparação,

especificando no libelo os pontos chaves da decisão colegiada em que os fundamentos

jurídicos encampados estão clarificados e, se for necessário, demonstrar-se a cadeia de

precedentes existentes que levam a um determinado resultado. A sistemática de

precedentes não comporta a objetivação de teses, quando não se guarda correlação

com a substância do caso, relevada pelos seus fatos.

Não por outro motivo, sustenta-se doutrinariamente a existência de ônus

argumentativo das partes, que devem desenvolver padrões de analogias e contra-

analogias que sejam pertinentes aos seus interesses,709 ainda que isso importe em

demonstrar ao juízo que existe um precedente aparentemente favorável à parte

contrária.

E o exercício dessa adequada argumentação, no caso da participação da

pessoa jurídica de direito público na relação processual, está a cargo do advogado

público, que deverá fazê-lo de maneira eficiente, apta a tutelar o interesse público.

5.4 A distinção entre o caso paradigma e o recurso sobrestado

O Novo Código de Processo Civil previu um procedimento específico para o

julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos, ante a multiplicidade de

recursos com fundamento em idêntica questão de direito, e que consiste na seleção de

alguns casos paradigmas, que serão escolhidos para fins de afetação pelos Tribunais

708 ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 301. 709 NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. I n: Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015. DIDIER JR, Fredie (coord. geral). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 328.

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Superiores, com a suspensão do trâmite de todos os processos que estiverem

pendentes, quer sejam individuais ou coletivos.

Estes casos escolhidos devem contar com abrangente argumentação e

discussão a respeito da questão a ser decidida, pois o objetivo é se formar um

precedente, que vinculará os juízes e Tribunais nos casos pendentes e futuros.

Uma vez selecionados os recursos, será proferida decisão de afetação, na qual

haverá identificação da questão a ser submetida a julgamento, bem como a

determinação de suspensão dos processos que tramitarem no território nacional.

Sendo a parte intimada da decisão de afetação e da suspensão de seu

processo, para que a ele seja aplicado o paradigma que será formado, competir-lhe-á,

se for o caso, postular que o seu recurso não se sujeita ao sobrestamento, uma vez que

são distintas as situações. Para tanto, requererá o prosseguimento do processo, desde

que demonstre a “distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser

julgada no recurso especial ou extraordinário repetitivos” (art. 1.036, § 4º NCPC).

5.5 A omissão decorrente da falta da distinção

A decisão judicial será omissa se, aplicando precedente, não realizar a

distinção alegada pela parte (art. 489, § 1º VI do NCPC).

Como antes ressaltado, a distinção se revela por conta dos fatos relevantes,

que não permitem estabelecer uma coerência entre os casos. Esse é um dado

importante.

Isso porque é ônus da parte indicar os fatos que sejam relevantes para a

constituição de seu direito, como consequência do princípio da substanciação. Desse

modo, se o fato não for sequer alegado, não poderá o magistrado levá-lo em

consideração quando do juízo de distinção a ser realizado.

Além disso, há de ser observado o ônus probatório, de modo que somente os

fatos comprovados, em conformidade com as cargas probatórias, poderão ser

sopesados para a devida distinção, sob pena de ofensa à imparcialidade do juiz.

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6. Dever-poder de recorrer para aplicação da técnica da superação

6.1 A superação total e parcial do precedente

A contínua evolução do Direito não pode ser obstada pela estabilidade do

precedente. Assim como leis são alteradas em razão de determinados contextos

históricos, sociais e econômicos, os precedentes também estão sujeitos ao desgaste

por diversas razões, autorizando-se a sua superação.

E esses dois processos – legislativo e de formação do precedente – têm em

comum o fato de que podem influenciar no processo de superação da lei ou do padrão

decisório estabelecidos.

Nesse sentido, é possível que determinada lei seja alterada pelo próprio Poder

Legislativo em razão de entendimento fixado em precedente, ou, então, que seja

reconhecida a nulidade de dispositivo declarado inconstitucional.

De forma semelhante, o precedente também poderá ser superado em

decorrência do advento de nova legislação,710 ou mesmo por conta de reconhecimento

na esfera judicial.

A técnica da superação consiste na “rejeição do precedente, sendo um juízo

negativo sobre a sua ratio decidendi”,711 que deixará de ser observada quando do

julgamento dos demais casos pelos juízes e Tribunais (assim como, como se defende,

pela própria Administração Pública).712 Constitui, ao lado da distinção, espécie do

710 Conforme reconhecido no Enunciado n. 322 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, in verbis: “A modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida”. 711 ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 304-305. 712 Embora tenha assentado em 1852 a possibilidade de superação do precedente, quando do julgamento do caso Britht v. Hutton, a técnica somente foi utilizada no ano de 1966, com a edição do Practice Statement of Judicial Precedent) (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 158-159). A técnica é utilizada com mais frequência nos Estados Unidos, sendo registrado o número de 210 revogações expressas entre 1.789 a 2009 pela Suprema Corte daquele país (GERHARDT, Michael J. The power of precedente. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 11). Não obstante, verifica-se que o número é infinitamente inferior àquele relativo às mudanças jurisprudenciais ocorridas no âmbito dos tribunais brasileiros.

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279

gênero judicial departures, quando se implementa o “afastamento de uma regra

jurisprudencial”.713

A superação poderá ser total (overruling), hipótese em que o Poder Judiciário

reconhece, quanto ao precedente, o “desgaste de sua congruência social e da sua

consciência sistêmica” ou a ocorrência de “evidente equívoco na sua solução”.714

E tal reconhecimento poderá ocorrer de forma expressa, quando o Tribunal

declara que abandona o posicionamento até então dominante, ou de forma tácita ou

implícita, quando o atual precedente confronta com o anterior.

A propósito, há entendimento doutrinário no sentido de que o Novo Código de

Processo Civil não admite a superação tácita ou implícita do precedente, em razão da

“exigência de fundamentação adequada e específica para a superação de uma

determinada orientação jurisprudencial”. Segundo ainda se defende, “é preciso dialogar

com o precedente anterior para que se proceda ao overruling”.715

Verifica-se, também, a possibilidade de que a superação seja parcial

(overturning) pela sua transformação (transformation), quando ele é reconfigurado

parcialmente, levando-se em conta “aspectos fático-jurídicos não tidos por relevantes

na decisão anterior” ou por ser reescrito (overriding) se o Tribunal redefini-lo,

considerando aspecto não sopesado anteriormente e, por isso, restringindo a sua

incidência.716

Mais uma vez, há doutrina no sentido da inadmissibilidade do transformation,

pois consistiria em contrariedade ao dever de coerência constante do art. 926 do CPC

2015.717

713 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 388. 714 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. São Paulo: RT, 2016, p. 119. 715 DIDIER JR, Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 494. 716 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. São Paulo: RT, 2016, p. 120. De acordo com Fredie Didier Júnior, Rafael Alexandria de Paula e Paula Sarno Braga, o overriding reduz a eficácia de incidência do precedente. Ao distingui-lo com a distinguishing, apontam que enquanto neste “uma questão de fato impede a incidência da norma”, naquele, há uma “questão de direito (no caso, um novo posicionamento) que restringe o suporte fático”. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 507. 717 DIDIER JR, Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 495.

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280

A superação do precedente acarreta a criação dois novos regramentos: o

primeiro, relativo ao entendimento superado, com o resguardo das situações jurídicas

efetivadas em sua conformidade, e o segundo, em relação ao novo precedente, que

passa a ser de observância obrigatória.

De fato, com a superação do precedente, a nova ratio decidendi passa a ser

vinculante para os juízes e tribunais no julgamento dos casos posteriores, ressalvada a

modulação e atribuição de efeitos prospectivos, conforme se verá adiante.

Por isso, a inobservância por parte dos juízes e tribunais importará em error in

procedendo ou error in judicando, se o fundamento for simplesmente a discordância

com o entendimento consolidado no Tribunal, podendo existir a ressalva quanto à

opinião do julgador,718 não obstante, conforme será visto, seja possível vislumbrar-se

novos argumentos antes não valorados.

6.2 O processo de superação do precedente no CPC 2015

Da análise da complexidade que pode envolver a matéria, bem como dos

dispositivos contidos no Novo Código de Processo Civil a esse respeito, tem-se que a

superação do precedente poderá ocorrer de duas maneiras.

6.2.1 Superação por procedimento de revisão de tese

Admite-se que a alteração do precedente ocorra por incidente específico,

instaurado perante o próprio Tribunal em que formado.719 Trata-se da superação

concentrada (ou overruling concentrado).720

718 Consoante Enunciado n. 172 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A decisão que aplica precedentes, com a ressalva de entendimento do julgador, não é contraditória”. 719 Vide, a propósito, os Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis n. 321: “A modificação do entendimento sedimentado poderá ser realizada nos termos da Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, quando se tratar de enunciado de súmula vinculante; do regimento interno dos tribunais, quando se tratar de enunciado de súmula ou jurisprudência dominante; e, incidentalmente, no julgamento de recurso, na remessa necessária ou causa de competência originária do tribunal” e n. 322: “A modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida”.

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Quanto à legitimidade para instauração deste incidente, admitem-se duas

soluções distintas.

Em relação à súmula vinculante, atribui a Lei n. 11.417/2006 a legitimidade para

o pedido de revisão ou de cancelamento do enunciado ao: i) Presidente da República;

ii) Mesa do Senado Federal; iii) Mesa da Câmara dos Deputados; iv) Procurador-Geral

da República; v) Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; vi) Defensor

Público-Geral da União; vii) partido político com representação no Congresso Nacional;

viii) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional; ix) Mesa de

Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; x) Governador de

Estado ou do Distrito Federal; xi) os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de

Estados ou Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais

Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.

Para o precedente formado em incidente de resolução de demandas repetitivas

e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos, admitindo-se que

integram o mesmo Microssistema de solução de casos repetitivos,721 tem-se que o rol

dos legitimados é bem mais restrito, adstrita a possibilidade da revisão ocorrer de ofício

ou por requerimento dos indicados no inciso III do art. 977 do Novo CPC, ou seja, do

Ministério Público e da Defensoria Pública.

Não se pode negar que o Ministério Público e a Defensoria Pública, ao

requererem a revisão da tese, fazem-no na defesa de interesses metaindividuais, o que

sugere que a legitimação decorra da natural atribuição institucional daquelas

instituições para tanto.

Porém, essa legitimação não pode permanecer restrita unicamente a estas

instituições, pois a defesa de interesses metaindividuais é de legitimidade concorrente e

disjuntiva, conforme reconhecido no art. 5º da Lei n. 7.347/1985 e em todo o

microssistema de demandas coletivas, também atribuída a outros legitimados.

720 DIDIER JR, Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 496. 721 Consoante Enunciado n. 345 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser interpretadas conjuntamente”.

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282

Nesse sentido, a instauração do incidente destinado a rever a tese poderá

ocorrer não só a partir de pedido do Ministério Público ou da Defensoria Pública, como

também dos demais legitimados da ação civil pública, ou seja, União, Estados, Distrito

Federal, Municípios, autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de

economia mista e associações com representatividade adequada.

Em especial às pessoas políticas, não se pode negar essa possibilidade diante

dos vários reflexos possíveis do precedente para os interesses público e social.

Imagine-se, por exemplo, a formação de precedente que diga respeito à ordem

urbanística, com reflexos para todos os municípios brasileiros. Como não admitir que

um município possa requerer a revisão do precedente diante de seu flagrante

interesse?722

A convivência em sociedade pressupõe determinada ordem, cujo

estabelecimento deve ser a preocupação das pessoas políticas, que devem conjugar a

efetivação dos direitos individuais e coletivos. Se constatado que determinado

precedente vai na contramão de direção desse complexo de direitos, deve-se ser

garantida a possibilidade de acionar o respectivo Tribunal para a revisão da tese.

Por oportuno, é de se verificar se é possível que a revisão da tese, nesses

termos, se dê a partir de pedido apresentado individualmente, posto não concordar com

a ratio decidendi formada.

Como visto anteriormente, a revisão de tese, conforme aqui se defende,

somente poderá ser requerida pelos legitimados à propositura da ação civil pública, de

modo que está afastada a possibilidade de revisão pelo indivíduo, na medida em que

não possui representatividade adequada para substituir a coletividade, tal como ocorre

em relação às ações coletivas.

E nem mesmo se o indivíduo possuir interesse direto na modificação da tese

não lhe é possível buscar a sua revisão por meio do incidente processual a ser

instaurado diretamente no Tribunal, podendo, se o caso, buscar a superação em ação

individual.

722 A propósito, ver o Enunciado n. 20 do Fórum Nacional do Poder Público: “A Fazenda Pública tem legitimidade para propor a edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula de jurisprudência dominante relacionado às matérias de seu interesse”.

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283

Nessa hipótese, o objeto da ação não é propriamente proporcionar

genericamente a superação, mas o de que o recorrente não se sujeite a determinado

precedente, cabendo ao Tribunal analisar se é o caso de promover a sua alteração,

como adiante será visto.

Contudo, poderia ser vislumbrada uma exceção a essa regra, qual seja, no

caso de o precedente formado for contrário aos princípios da Administração Pública,

hipótese em que seria possível pensar-se no ataque do comando judicial por meio de

ação popular.

Ocorre que os atos jurisdicionais (que preservam a essência de sua natureza,

afastados aqueles que são judiciais de natureza administrativa) estão afastados da

incidência da ação popular, de âmbito restrito aos atos, contratos, fatos e eventuais

deliberações que tenham conteúdo administrativo, conforme já decidido pelo Supremo

Tribunal Federal.723

Dessa maneira, por se tratar de ato tipicamente jurisdicional, não é possível

buscar-se a superação de precedente judicial por meio de ação popular, senão pelo

incidente de revisão de tese.

Da mesma forma que para a formação do precedente, a legitimidade da

superação será garantida com a efetiva participação da sociedade, motivo pelo qual

poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou

entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese (art. 977 § 2o), que

poderão funcionar como amicus curiae.

A decisão sobre a modificação da tese deverá ser devidamente fundamentada,

considerando-se os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da

isonomia, reservando-se unicamente à superação do precedente, com possibilidade de

modulação dos efeitos.

6.2.2 Superação reconhecida em julgamento de recurso e remessa necessária.

723 AO 672-DF, Rel. Min. Celso de Mello - Informativo/STF n. 180. Contudo, como se extrai do próprio entendimento da Corte Suprema, a ação popular poderá atacar determinado precedente administrativo que, ante o seu caráter vinculante para os agentes, tem força normativa.

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Diferentemente da primeira situação, em que é instaurado incidente com a

única finalidade de revisão da tese, também será possível a superação em decorrência

de julgamento de recurso ou de remessa necessária, hipóteses em que a questão

retorna ao Tribunal para reanálise. Trata-se da superação difusa (ou overruling

difuso).724

Nesta hipótese, a revisão ocorrerá unicamente por pedido do legitimado, quais

sejam, da parte, do terceiro prejudicado ou do Ministério Público, na condição de parte

ou como fiscal da ordem jurídica.

Para tanto, deverá a parte percorrer todo o iter processual, preenchendo os

requisitos de admissibilidade dos recursos, para que tenha o mérito recursal analisado

pelo Tribunal, que poderá, após reconhecer o desgaste do precedente, afastar a

vinculação da ratio decidendi para as situações que com ela poderiam guardar

coerência, observando-se as mesmas regras quanto à competência, pois somente o

Tribunal respectivo poderá afastar o seu próprio precedente, salvo se o Supremo

Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça entenderem que aquele

entendimento não guarda consonância com a Constituição Federal ou com a lei federal.

Dessa maneira, constatando o recorrente que o entendimento adotado na

decisão judicial destoa não do precedente em si, mas do posicionamento que está em

conformidade com o grau de evolução do Direito, é-lhe possibilitada a interposição dos

recursos adequados para a superação, adotando o Tribunal novo padrão decisório apto

a ser aplicado aos demais casos.

Retoma-se a questão ligada ao recurso do terceiro.

Como já visto no Capítulo 4, o terceiro prejudicado detém legitimidade recursal,

devendo demonstrar o respectivo interesse.

Em especial às pessoas jurídicas de direito público, estas poderão demonstrar

que recorrem na condição de terceiro prejudicado (art. 996, parágrafo único do NCPC),

em decorrência de interesse patrimonial (na intervenção anômala) ou em razão de

interesse institucional (no caso do amicus curiae). Nessas hipóteses, terão legitimidade

para a interposição de recurso, buscando-se, se o caso, a superação do precedente.

724 DIDIER JR, Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 496.

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Trata-se de mais um ponto no sentido do erro da limitação da interposição de

recursos pelo amicus curiae, restrita aos embargos declaratórios e à impugnação da

decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138, §§ 1º e

3º do CPC 2015), pois o interesse institucional existente na superação do precedente

justificará, com mais razão, a possibilidade de interposição de recurso em face, por

exemplo, de decisão proferida em sede de recurso especial repetitivo.

Por isso, defende-se, que a limitação existente nos §§ 1º e 3º do art. 138 do

CPC2015 não encontra amparo na razoabilidade, pois retira a possibilidade de ser a

questão reanalisada a pedido de quem tenha interesse institucional, como pode ocorrer

com as pessoas jurídicas de direito público.

Nesse passo, o dever-poder de recorrer existirá nos casos em que houver

interesse na superação do precedente, como uma consequência natural da evolução do

Direito e não por simples inconformismo com a ratio decidendi fixada, oportunidade em

que as pessoas jurídicas de direito público terão legitimidade para recorrer na condição

de parte ou como terceiro prejudicado, com interesse econômico ou ainda interesse

institucional.

Há mais um ponto a detalhar.

É certo, como mais de uma vez dito, que o simples inconformismo com a ratio

decidendi não justifica a interposição de recurso, exigindo-se do recorrente que labore

em argumentação jurídica adequada no sentido de demonstrar que o precedente não

se encontra mais adaptado ao contexto econômico, cultural, social etc. e, por isso,

precisa ser superado.

Ocorre que, quando da formação do precedente, embora se busque a análise

ampla dos argumentos existentes, pinçando-se mais de um caso para análise conjunta,

é possível que algum ponto relevante não tenha sido analisado, porque não alegado em

nenhum daqueles casos.

Aliás, Dierle Nunes já ressalvou que, entre as premissas essenciais para que

aqui se adotasse o sistema de precedentes, estaria a necessidade de “esgotamento

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prévio da temática antes de sua utilização como um padrão decisório (precedente)”,

pois, este “dificilmente se forma a partir de um único julgado”.725

Nessa hipótese, o recorrente deverá exercer habilidade suficiente para, em sua

peça recursal, demonstrar que aquele determinado argumento não foi objeto de análise

anterior e que, se acolhido, será imposta automaticamente a superação do precedente.

A superação também poderá ocorrer por força de remessa necessária, hipótese

em que, sendo proferida sentença contra o poder público, haja necessidade de que seja

reavaliada pelo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Regional Federal.

Muito embora se admita essa possibilidade, fato é que, na prática, dificilmente

ocorrerá a superação pela remessa necessária, uma vez que, entre as hipóteses que

não autorizam a subida do processo, encontra-se o fato de estar a sentença fundada

em precedentes (art. 496, § 4 do CPC).

6.3 A modificação das súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal

Em conformidade com o art. 11, III, do Regimento Interno do Supremo Tribunal

Federal, a Turma remeterá o feito ao julgamento do Plenário se algum Ministro propuser

revisão da jurisprudência compendiada em Súmula, que decidirá por maioria absoluta

(art. 102, § 1º).

6.4 A modificação das súmulas editadas pelo Superior Tribunal de Justiça

O Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça foi sensivelmente alterado

pela Emenda Regimental n. 22, de 2016, de modo que já foi adaptado ao Novo Código

de Processo Civil.

Notadamente em relação à revisão das súmulas, prevê o art. 125 do Regimento

Interno que qualquer dos Ministros poderá propor, em novos feitos, a revisão da

jurisprudência compendiada na súmula, com remessa à Corte Especial ou Seção. A

725 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o redimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas de padronização decisória”. Revista de Processo, vol. 199, set. 2011, p. 38.

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alteração ou cancelamento serão deliberados por maioria absoluta de seus membros,

com a presença mínima de 2/3 de seus componentes (art. 125, § 3º).

Dessa maneira, a revisão ou modificação da súmula não poderá ser pleiteada

em incidente específico, mas será objeto de deliberação pelos próprios Ministros

integrantes do órgão jurisdicional.

7. Dever-poder de recorrer para obtenção da modulação dos efeitos

7.1 A modulação decorrente da declaração de inconstitucionalidade

Verificando o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade de uma lei,

como é usual, aquele Tribunal a declara com efeitos para o passado, ou seja, ex

tunc.726 Porém, conforme reconhecido pelo Ministro Ayres Britto, por vezes, é

necessário modular os efeitos temporais da constitucionalidade, sob pena de maior

ofensa à Constituição Federal.727 Ou, nos termos da lição, em sede doutrinária, do

Ministro Gilmar Mendes

(...) muitas vezes, a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a declaração de sua nulidade, recomendada a adoção de alguma técnica alternativa, com base no próprio princípio constitucional da segurança jurídica. Aqui, o princípio da nulidade deixa de ser aplicado com

base no princípio da segurança jurídica.728

A modulação dos efeitos ocorre ante a declaração de inconstitucionalidade de

lei como forma de mitigar a nulidade consequente e para assegurar a segurança

jurídica ou em virtude de excepcional interesse social.

726 Conforme registrado pelo Ministro Luiz Fux, em voto proferido na Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.357 – DF: “Tal realidade não significa uma ruptura do modelo brasileiro de jurisdição constitucional com a regra tradicional de eficácia ex tunc das decisões declaratórias de inconstitucionalidade. Afinal, como o próprio rótulo sugere, uma decisão declaratória se limita a certificar um estado – de fato ou de direito – preexistente, sendo-lhe natural a produção de efeitos retroativos. Ademais, em matéria de jurisdição constitucional, a eficácia retrospectiva é verdadeiro corolário lógico do princípio da supremacia da Constituição, que não se coaduna com o reconhecimento da validade de uma lei inconstitucional, ainda que por período limitado de tempo”. 727 ED na ADI 2.797, Tribunal Pleno, Rel. Min. Menezes Direito, Rel. para o Acórdão Min. Ayres Britto, DJU 15.6.2012. 728 MENDES, Gilmar Ferreira. A Constitucionalidade do art. 27 da Lei n. 9.868/99. In: Rocha, Fernando Luiz Ximenes; MORAES, Filomeno (coords). Direito Constitucional contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 305-331.

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Para tanto, nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/1999, haverá deliberação por

maioria de dois terços dos membros do STF, quando então será possível “restringir os

efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir do seu trânsito

em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

7.2 Modulação decorrente de mudança jurisprudencial

Aquela não é, poém, a única hipótese em que a modulação é admitida pelo

ordenamento jurídico brasileiro.

Um dos temas que certamente gerará muitas discussões é o que envolve a

modulação de efeitos no caso de superação do precedente, no sentido de que outro

seja acolhido expressa ou implicitamente em seu lugar. Ou, ainda, a própria alteração

da jurisprudência dominante, por meio da fixação de precedente com entendimento

diverso.729 Note-se que, nestes casos, não há nulidade decorrente da

inconstitucionalidade, mas alteração de entendimento então dominante.

Presencia-se, então, uma “virada jurisprudencial”,730 a qual ocorrerá apenas se

um pronunciamento contrariar diretamente decisão judicial anterior sobre a mesma

matéria.731

729 Humberto Ávila ensina que somente haverá mudança jurisprudencial “quando houver duas decisões contraditórias eficazes sobre a mesma matéria, assim entendidas aquelas decisões que envolvem o mesmo fundamento e a mesma situação fática. Assim, se há uma mudança da base normativa para a decisão, a rigor, não se pode falar em mudança jurisprudencial”. E mais adiante adita: “E se houver alteração da situação fática também não se pode falar, a rigor, em mudança de jurisprudência”. In.: Teoria da Segurança Jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 482. Além disso, deve ser levado em consideração que a mudança de jurisprudência deve partir da existência de decisão definitiva a respeito do tema. Por isso, com a sua usual precisão, assentou o Ministro Eros Grau: “Como se falar, destarte, em mudança de jurisprudência que jamais foi fixada? Isso consubstanciaria autêntico non sense. Não se pode alterar o que jamais foi fixado definitivamente por este Tribunal. O argumento de que existiria ‘jurisprudência pacífica’ mesmo quando as decisões não tenham transitado em julgado – e nenhuma delas transitou em julgado – é quase ingênuo. O que detém força de verdade legal é a coisa julgada, cuja autoridade, quando reiterada, faz jurisprudência. Não houve, no caso, mudança de jurisprudência desta Corte, visto que ela – essa jurisprudência – não fora estabelecida”. (p. 535 do acórdão). 730 Que não se confunde com outros fenômenos parecidos. É necessário diferenciá-la em relação à inovação, divergência e da “mudança de paradigma jurisprudencial”. Com efeito, tem-se a inovação “quando uma decisão judicial inova pela introdução de elementos dogmáticos ou critérios antes inexistentes, mas sem que haja contraposição com alguma decisão anterior”. Diferentemente, ocorre a divergência jurisprudencial se “dois órgãos do mesmo Tribunal manifestam entendimentos dissonantes, mas ainda não transitados em julgado ou uniformizados por decisão superior”. E, por fim, não guarda

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289

Como ideal no sistema de precedentes, a ratio decidendi somente poderá ser

superada como decorrência da evolução do Direito, por conta de vários fatores, como

econômicos, sociais etc. Não se justifica a mudança pela simples alteração de opinião

da Corte, em decorrência de nova composição.

O sistema de precedentes se justifica pela busca da segurança jurídica, pela

unidade jurídica, de modo a decidir de maneira igualitária a todos aqueles que se

encontrarem em determinada situação.

Por isso, a superação do precedente (ou mesmo, a imposição de um

precedente com modificação da jurisprudência então dominante) é causa de tensão,

pois, até então, as pessoas físicas e jurídicas, de direito público ou de direito privado,

pautavam as suas condutas em orientação antes predominante e, a partir de certo

momento, passaram a se submeter a um novo entendimento.

Como se vê, aqueles que se conduziram pela deliberação judicial anterior,

fizeram-no de boa-fé, acreditando que se tratava de regra jurídica contínua e não

precária. Porém, não obstante o elemento ético que regeu a sua conduta, vê-se o

jurisdicionado diante de novo regramento, refletindo negativamente em vários aspectos,

como, por exemplo, nos custos de produção de uma empresa, ou nos gastos do

orçamento público.

Assim, em prol da segurança jurídica e da tutela da confiança, após a

superação de precedente, deve a Corte respectiva exercer novo juízo, por meio do qual

passará a verificar a possibilidade ou não de modular os efeitos do novo precedente.

Será ele aplicável de imediato? Alcançará situações anteriores que chegarem aos

tribunais posteriormente? Será necessário atribuir-lhe efeitos prospectivos?

Em outras palavras, a Corte que tem competência para fixar o precedente,

também o terá para modular os seus efeitos, verificando-se a possibilidade de limitá-los

no tempo ou de conferi-los apenas para o futuro.732

correspondência com a mudança de paradigma jurisprudencial, quando um “conjunto de decisões judiciais (...) recebe uma fundamentação baseada em novos critérios dogmáticos, como exemplifica a interpretação do Direito Civil com base na Constituição, e não com base no Código Civil”. ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 487. 731 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 487 732 Direcionando o discurso para o STF, realçam Luís Eduardo Schoueri e Aline Nunes dos Santos que “em homenagem aos princípios da lealdade, boa-fé e confiança legítima, como fundamentos do Estado Democrático de Direito, quando decisões do Supremo Tribunal Federal implicarem alterações relevantes

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290

A propósito, o art. 4º da Lei n. 11.417/2006, autoriza que, por decisão de 2/3

dos Ministros do STF, será possível restringir os efeitos da súmula vinculante ou decidir

que só tenha eficácia a partir de outro momento, em razão de motivos de segurança

jurídica ou de excepcional interesse público.

O art. 927, §§ 3º e 4º, do Novo Código de Processo Civil, por sua vez,

assegurou a possibilidade de modulação dos efeitos da alteração no interesse social e

no da segurança jurídica, quando houver alteração de jurisprudência dominante do

Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores ou daquela oriunda de

julgamento de casos repetitivos, o que exigirá fundamentação adequada e específica,

considerando-se, além da segurança jurídica, também a proteção da confiança e a

isonomia.

A modulação de efeitos em vista da reviravolta jurisprudencial, embora já fosse

tratada doutrinariamente,733 somente foi levada à apreciação ao STF com a Questão de

Ordem apresentada pelo Ministro Ricardo Lewandowski no RE n. 353.657/PR, que, no

entanto, foi rejeitada.734

Enfatizando-se a questão apresentada pelo Ministro Lewandowski, Misabel

Derzi aponta que:

A questão de ordem, levantada pelo Min. Ricardo Lewandowski, alicerçou-se na necessidade de modulação dos efeitos decorrentes de uma reversão da jurisprudência, em razão dos princípios da segurança jurídica, da estabilidade das relações preexistentes, dos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, todos ponderados com base em razoabilidade e

proporcionalidade.735

Devem ser apontados alguns exemplos em que se admitiu a modulação de

efeitos em razão da mudança jurisprudencial.

nas normas postas por outros tribunais (expectativas generalizadas) não pode o Supremo Tribunal Federal desconsiderá-las na avaliação da necessidade de modulação dos efeitos das decisões”. COELHO, Sacha Calmon Navarro (coord.). Segurança Jurídica. Irretroatividade das decisões judiciais prejudiciais aos contribuintes. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2013, p. 123. 733 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 301. 734 Posteriormente, por exemplo, ocorreu a delimitação dos efeitos na Ação Cautelar n. 2.859-7, em Recurso Extraordinário, com liminar concedida pelo Relator Min. Gilmar Mendes, com eficácia ex nunc, plenário em 03.02.2005, consoante lembram Jamir Calili Ribeiro e Paula de Abreu Machado Derzi Botelho. COELHO, Sacha Calmon Navarro (coord.). Segurança Jurídica. Irretroatividade das Decisões Judiciais Prejudiciais aos Contribuintes. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2013, p. 137, nota de rodapé n. 18. 735 Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 306-307.

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291

7.3 Diferenciação do quórum na modulação de efeitos

Como é possível verificar dos apontamentos acima, o ordenamento jurídico

previu quóruns diferentes para a modulação de efeitos. Em resumo, tem-se que:

i) Modulação no caso de declaração de inconstitucionalidade de lei: há a

exigência de deliberação por maioria de 2/3 dos membros;

ii) Modulação no caso de edição de súmula com efeito vinculante, editada

após reiteradas decisões sobre matéria constitucional para colocar fim à

controvérsia atual: decisão de 2/3 dos membros;

iii) Modulação no caso de mudança jurisprudencial, com aprovação de

precedente: não há quórum específico previsto no Novo Código de

Processo Civil.

7.4 Modulação dos efeitos em favor da fazenda pública

Por ser a segurança jurídica uma via de mão dupla, conforme já se admitiu

neste trabalho, a Administração Pública faz jus à tutela da segurança jurídica736, sendo

produtivo relembrar o apontamento realizado por Ravi Peixoto, no sentido de que

Há de se perceber que no Estado Democrático de Direito o Estado e os cidadãos estão sujeitos ao mesmo conjunto de textos normativos e também às decisões do Poder Judiciário. Por mais que o Estado possua o comando sobre o texto normativo, não parece razoável que a ele se negue eventual tutela por

meio de um direito fundamental.737 738

Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a modulação

de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de modo a favorecer o Poder Público.

736 Contrariando respeitáveis entendimentos, como o de Humberto Ávila, segundo o qual “a segurança jurídica, tal como posta na CF/88, não pode ser usada pelo Estado para suportar a restrição dos direitos fundamentais de liberdade” (ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 560). 737 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, Ago/2015 (Revista dos Tribunais Online). 738 No mesmo sentido, registra Heleno Taveira Torres: “(...) a segurança jurídica constitucional pode ser tanto um princípio reclamado pelo Estado quanto pelos indivíduos, a depender das relações intersubjetivas instauradas”. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: RT, 2011, p. 33.

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292

Caso típico do reconhecimento de tal segurança ocorreu na Questão de Ordem na ADI

n. 4357/DF, em que tal técnica foi aplicada, entre outros aspectos, para reconhecer que

a manutenção do regime de pagamento de precatórios criado pela EC n. 62/09 ocorrerá

até o final do exercício financeiro de 2018.739

Também já se defendeu correto o entendimento de que a tutela da confiança é

uma via de mão dupla, amparada pela constatação de que houve sensível alteração da

relação entre os cidadãos e a Administração Pública, principalmente pelo fato de que o

Poder Público se submete ao ordenamento jurídico como um todo.740

Partindo-se dessas importantes premissas, questiona-se se é viável pensar-se

em um modelo de modulação de efeitos que não seja genérico, mas casuístico, definido

caso-a-caso pela parte que se julga prejudicada pela não observância da segurança

jurídica ou da tutela da confiança.

7.5 Modulação de efeitos no caso concreto

Para o enfrentamento do problema proposto, qual seja, da verificação da

possibilidade ou não de modulação de efeitos realizada no caso concreto, por juízo de

grau jurisdicional, crê-se ser produtiva a exposição de um caso hipotético.

Imagine-se que um contribuinte tenha ingressado com ação de repetição de

indébito em face do Poder Público, por acreditar que, embora tenha efetuado o

pagamento de obrigação tributária, nada devia, notadamente pela inconstitucionalidade

da lei tributária. O pedido não foi acolhido, com formação posterior da coisa julgada a

respeito, encampando-se posicionamento então dominante, até mesmo no âmbito do

STF, em controle difuso.

Dez anos mais tarde, o Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de

constitucionalidade, exercido em ADIn, julga a mesma lei inconstitucional. Não

obstante, deixou o STF de modular os efeitos da decisão.

739 Voto do Ministro Luiz Fux, página 16. 740 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, Ago/2015 (RTOnline).

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293

Dessa maneira, com fundamento no art. 525, § 15, do NCPC, o contribuinte

ajuíza ação rescisória com a finalidade de rescindir a primeira decisão, cujo prazo

bienal será contado do trânsito em julgado do pronunciamento proferido pelo STF

(efeito rescindente do precedente).

Diante desse quadro, e considerando-se o tempo transcorrido (dez anos), bem

como que o Novo Código de Processo Civil não tratou de limitá-lo para o ajuizamento

da ação rescisória para a espécie, depara-se o advogado público com a questão de se

saber se: em primeiro lugar, pode pugnar pela modulação de efeitos a ser reconhecida

na ação rescisória, pelo próprio Tribunal de Justiça competente? Ou deverá buscá-la

pela interposição de recursos até se chegar ao Supremo Tribunal Federal? E outro

detalhe: admitida a modulação, seria exigido quórum especial de 2/3? Será possível o

reconhecimento da modulação no caso concreto?

A questão, acredita-se, deve ser resolvida sob o prisma do princípio da

proteção da confiança e, por isso, devem ser levadas em consideração as

particularidades do caso em si, até mesmo apelativas para alguns, mas que podem ser

levar a Administração Pública a uma situação de absoluta calamidade.741

Por esses motivos, Ravi Peixoto concluiu:

Assim, é necessário superar esse posicionamento aparentemente rígido, no sentido de que apenas uma das partes pode requerer a tutela da confiança. Essa possibilidade irá depender do caso concreto. Mesmo em uma relação privada, é possível imaginar que, no direito do consumidor, seja inviável que a empresa venha a invocar a tutela da confiança, pelo domínio da relação jurídica. E, da mesma forma, é possível admitir que o ente público requeira a tutela da confiança perante o Poder Judiciário, quando está em posição de igualdade em relação à outra parte. A bem da verdade, é possível que ambas

as partes possam requerer a tutela da confiança.742

E, também:

741 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, Ago/2015 (RTOnline). 742 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, Ago/2015 (RTOnline).

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[T]udo se resolve sob o prisma de suporte fático. Se, em determinado caso, o ente público preenche os requisitos para a aquisição de determinado direito

fundamental, é inegável que ele poderá requerer a sua tutela jurisdicional”.743

Não se pode negar ao Estado, pessoa jurídica de direito público, dotada de

deveres e também de direitos para cumpri-los adequadamente, exercer a tutela jurídica

da confiança em juízo, quando for surpreendido por uma aplicação retroativa de um

entendimento jurisprudencial que agora prevalece. A base da confiança é a decisão

judicial, não existindo qualquer relação de comportamento entre atos que poderia

praticar e a legislação efetivamente. Aliás, a lei pode ser proveniente até mesmo de

outro ente.

Por esses motivos: i) as pessoas jurídicas de direito público, ao contrário do que

defendem vários doutrinadores, fazem jus à segurança jurídica e à tutela da confiança;

ii) quando da formação de precedentes, que importem na alteração de jurisprudência,

podem pleitear a modulação de efeitos, o que será feito com fundamento na segurança

jurídica; e iii) nos processos individuais, em que se busca a aplicação de novo

precedente ou de nova jurisprudência, poderá o Poder Público buscar a modulação de

efeitos, admitida também com base na tutela da confiança.

Nos processos individuais, há de ser admitida a tutela da confiança, como

decorrente da boa-fé e da moralidade administrativa, a ser exercida pela Administração

Pública, pugnando por eventual modulação dos efeitos, desde que demonstre: i) a

ocorrência da alteração jurisprudencial desfavorável aos interesses da coletividade; ii)

que havia expectativa da Administração no sentido da continuidade do regramento; iii)

que o cumprimento das decisões pode acarretar no mais amplo flagelo imposto à

Administração Pública, motivo pelo qual é possível buscar-se a tutela da confiança nos

processos individuais.

Aliás, quase todas as decisões em que o tema modulação de efeitos foi

decidido no STF, tratavam-se de processos de natureza subjetiva, tendo aquela Corte

aplicado a tese da possibilidade de aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/1999.744

743 PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de Processo, vol. 246/2015, p. 381-399, Ago/2015 (RTOnline). 744 SCHOUERI, Luís Eduardo. SANTOS, Aline Nunes dos. COELHO, Sacha Calmon Navarro (coord.). Segurança Jurídica. Irretroatividade das Decisões Judiciais Prejudiciais aos Contribuintes. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2013, p. 123.

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295

Dessa maneira, tem a Administração, por meio de sua Advocacia Pública, o

dever de valer-se de técnicas apropriadas para buscar, nos processos individuais e no

caso de alteração de jurisprudência que lhe acarrete situação de piora, a modulação de

efeitos, exercendo o seu dever-poder de recorrer e alegando a ofensa à tutela da

confiança, alegando essa matéria em sua defesa na contestação ou no exercício do

dever-poder de recorrer, ou, ainda, tendo-a reconhecido em sede de remessa

necessária.

8. Dever-poder de recorrer e a tutela provisória fundada em precedentes

em face do poder público

8.1 Observações iniciais

O desenvolvimento completo da relação processual, com a plena observância

da garantia constitucional do contraditório, depende do transcurso do tempo, até por

força da maior complexidade dos atos ligados à cognição plena e exauriente.

Com isso, verificou-se, ao longo da evolução do estudo do direito processual,

que a demora excessiva da relação processual compromete diretamente a efetividade

do processo, não se descuidando que a garantia do direito de ação, insculpida no art.

5º, XXXV, da Constituição Federal, visa não só assegurar o acesso formal à Justiça,

mas engloba também as medidas e técnicas processuais que, inseridas no âmbito da

prestação da tutela jurisdicional, tem por finalidade imunizar a parte da demora

excessiva na tramitação do processo.745

Ao mesmo tempo, constatou-se que, em certas hipóteses, é possível deferir

desde já a tutela pretendida, ainda que não exista risco, pela alta probabilidade de

acolhimento da pretensão.

745BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 25.

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296

Tais situações justificam o deferimento de medidas que podem ser revistas

posteriormente, deferidas no processo ainda que não esgotado todo o debate

processual.

Particularmente sobre esta temática, presenciou-se particular inovação com o

Novo Código de Processo Civil, conforme se verificará, nos limites necessários ao

desenvolvimento deste trabalho.

8.2 A tutela antecipada e a tutela cautelar no CPC de 1973

O Novo Código de Processo Civil alterou consideravelmente a sistemática

relacionada ao requerimento e deferimento das tutelas antecipada e cautelar.

Com efeito, o CPC de 1973 encampava a ideia da existência de um processo

cautelar, autônomo e acessório de um processo principal (de conhecimento ou de

execução).

Não obstante, poderiam as partes também requerer o deferimento o

deferimento de tutela cautelar nos próprios processos de conhecimento e de execução,

ou mesmo o juiz deferi-los de ofício, com fundamento no poder geral de cautela do

juiz.746

Em relação à tutela antecipada, havia previsão, de forma genérica, da

possibilidade de seu deferimento no art. 273, com indicação de seus pressupostos,

fundamentos e condição.747 A tutela da evidência era tratada no bojo da própria

regulamentação da tutela antecipada.748

746 Trata-se de um “poder supletivo, ou melhor, integrativo da eficácia global da atividade jurisdicional, com lastro constitucional, decorrente da garantia de acesso à Justiça, que põe a salvo qualquer situação, mesmo não prevista em lei, que demande tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF)”. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. A moderna ótica do poder geral de cautela do juiz. In: ARMELIN, Donaldo. Tutelas de urgência e cautelares. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 534. 747 De acordo com Fernando da Fonseca Gajardoni, em obra escrita enquanto vigente o CPC 1973, os requisitos para a concessão da tutela antecipada eram de três ordens e consistiam em: a) pressupostos concomitantes: existência de prova inequívoca e da verossimilhança da alegação; b) fundamentos não concomitantes: 1) fundado receio de dano grave ou de difícil reparação; 2) abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu; 3) incontrovérsia de um mais pedidos; c) condição: reversibilidade do provimento. In.: Direito processual civil IV. São Paulo: RT, 2006, p. 32-35. 748 A propósito, registrou Eduardo José da Fonseca Costa que: “Nesses casos, conquanto premido por uma cognição superficial, o magistrado defronta-se com uma pretensão de direito material de existência quase certa. Ou seja, apesar de o julgador estar adstrito a um espectro de visão bastante limitado, ainda assim, sua análise não pode ser taxada, simplesmente, de perfunctória, visto que a procedência da

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Em determinadas situações, não sendo possível diferenciar os dois institutos,

admitia-se a aplicação do princípio da fungibilidade, “recebendo o pedido antecipatório

como sendo cautelar, deferindo a proteção correspondente desde que presentes os

requisitos legais”.749 Já à época, reconhecia-se a possibilidade de que essa

fungibilidade era de mão dupla, de modo a ser admitida a conversão do processo

cautelar em ação autônoma para o deferimento da tutela antecipada.750

Como dito acima, esse quadro foi consideravelmente modificado, ocorrendo o

sepultamento do processo cautelar autônomo, pois a medida sempre será requerida no

bojo da própria ação em que já se postulou ou há a expectativa de postulação.

8.3 A tutela provisória no CPC de 2015

O Código de Processo Civil de 2015 denominou de tutela provisória aquela

sumária, revogável, excepcional, que pode ter dois fundamentos: a urgência ou a

evidência.

No primeiro caso, na tutela de urgência, exige-se a existência de argumentos

relevantes (fundamentos relevantes), além do próprio risco de dano ou de dano de

difícil reparação. Há uma soma de fatores para o seu deferimento. Não se tutela a

pretensão flagrantemente ilegal, ainda que haja risco.

De outro lado, na tutela fundada na evidência (e, por isso, tutela da evidência),

tem-se alto grau de probabilidade de acolhimento da pretensão. Trata-se de grau bem

mais elevado se comparado com os fundamentos relevantes, tanto que, para o seu

deferimento, é desnecessária a existência de risco. Em verdade, é uma hipótese de

tutela antecipada, mas sem o risco.

demanda salta-lhe aos olhos simpliciter et de plano. A estreiteza da cognição sumária não é suficiente para ceifar o direito de sua ululante evidência, pois”. O mesmo autor indica, em nota de rodapé, que tutela da evidência pura é aquela que necessita unicamente do fumus boni iuris, ao passo que tutela de urgência pura carecia do apenas do periculum in mora. O direito vivo das liminares. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 71 e nota de rodapé 1. 749 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Direito processual civil IV. São Paulo: RT, 2006, p. 38. Em sentido contrário, Édson Ribas Malachini entendeu que, de acordo com a sistemática do Código, não seria possível tal conversão, uma vez que o pedido haveria de ser feito em petição inicial específica. In: Fungibilidade das tutelas antecipatória e cautelar. ARMELIN, Donaldo (coord.). Tutelas de urgência e cautelares. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 414. 750 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Direito processual civil IV. São Paulo: RT, 2006, p. 38.

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298

8.4 Tutela provisória de urgência de acordo com o tempo em que requerida

A tutela provisória de urgência, que pode importar no deferimento de tutela

antecipada e de tutela cautelar, poderá ser pleiteada de forma antecedente e de forma

incidental.

Note-se uma diferença muito importante. Tanto em uma hipótese, quanto em

outra, não haverá a formação de nova relação processual. A tutela é concedida e

processada no mesmo processo. Não se forma processo ou incidente à parte.

Haverá a tutela provisória antecedente quando a parte não tiver condições de

apresentar a petição inicial completa de imediato. Em tal hipótese, poderá ser requerido

ao juízo que analise a concessão de tal medida e, posteriormente, a mesma parte

completa a inicial, apresentando a petição complementar, e o processo prosseguirá

regularmente.

A tutela de urgência pode ser requerida diante de uma situação de perigo de

dano ou de risco ao resultado útil do processo (perigo na demora) e compreende a

tutela antecipada e a tutela cautelar,751 que poderão ser requeridas de forma

antecedente ou incidental.

8.5 Tutela satisfativa requerida de forma antecedente

Como já foi dito, as medidas requeridas de forma antecedente não serão objeto

de processo próprio, mas importarão na própria provocação do Poder Judiciário, que

aguardará a vinda de futura complementação a ser juntada nos próprios autos.

Dessa maneira, não haverá uma ação para a tutela de urgência e outra para

análise do pedido principal. Tudo será analisado em um único processo, no contexto de

uma única relação processual.

751 Ao tratar da diferenciação entre tutela antecipada e tutela cautelar, Cássio Scarpinella Bueno propõe que a tutela provisória “pode satisfazer ou apenas assegurar o direito material do requerente. Satisfazendo-o, é antecipada; assegurando-o, é cautelar”. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 248.

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Ocorre que, na tutela de urgência satisfativa requerida de forma antecedente, o

Poder Judiciário será provocado por meio de uma petição que, muito embora possua

importantes elementos, ainda poderá ser completada futuramente.

Nesse passo, o autor apresenta a sua petição inicial, que poderá ser limitada ao

requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a

exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao

resultado útil do processo.

A petição inicial será distribuída (observando-se as regras de competência) e o

juízo analisará se estão presentes os requisitos para a concessão da tutela antecipada

requerida. Em caso negativo, o juiz determinará que o autor emende a inicial no prazo

de cinco dias, sob pena de extinção e arquivamento. Em caso positivo, o magistrado

deferirá a medida de urgência e determinará o prosseguimento do processo.

Competirá ao autor, então, apresentar a petição inicial complementar, deixando-

a apta à compreensão de seus argumentos e ao exercício do direito de defesa do réu,

que será citado.

Concomitantemente à citação para comparecimento à audiência de conciliação,

o réu será também intimado dos termos da liminar concedida, abrindo-se o prazo para

que possa interpor o seu recurso de agravo de instrumento.

A medida de urgência possui como ínsita a característica da provisoriedade, de

modo que poderá ser revogada a qualquer tempo, desde que verificado que não se

encontram mais presentes os elementos que a fundamentaram.

8.6 A estabilização da tutela antecipada antecedente

A formação da coisa julgada exige a cognição exauriente, mais aprofundada.

Mas, a efetividade do direito, por vezes, não carece da formação da coisa

julgada. É possível que essa efetividade surja com o deferimento da medida pretendida,

de forma imediata, sem que seja necessário aguardar-se por todo o desenrolar do

processo judicial.

Tem-se, então, um novo paradigma, a que a doutrina italiana denominou de

jurisdição desprovida de acertamento das situações subjetivas, com a utilização de

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várias técnicas, entre elas, o provimento decisório sem acertamento, que é, sem dúvida,

a forma mais radical de rompimento com o modelo tradicional.752

De acordo com essa técnica, também denominada de decisoriedade simples, o

juiz profere uma decisão com utilidade prática ao demandante, que satisfaz a sua

necessidade, mas não declara a existência do direito e, por isso, não fica acobertada

pela coisa julgada material, mas, por outro lado, torna-se estável.753

Trata-se de modelo muito próximo ao que foi adotado pelo NCPC, pelo qual,

uma vez concedida a tutela antecipada antecedente, se a parte contrária não recorrer, a

tutela será estabilizada e o processo extinto, sem análise de mérito e formação da coisa

julgada material. De outro lado, a tutela antecipada continuará produzindo efeitos, pois

estará estabilizada e somente com outra ação que será possível revogá-la.754

Portanto, a estabilização da medida não atinge o mérito propriamente dito, tanto

que não é formada a coisa julgada. Não obstante, a medida somente poderá ser

revogada, reformada ou invalidada por meio de ação própria, que tramitará perante o

mesmo juízo, que estará prevento para tanto.

752 Consoante Roberta Tiscini o provimento decisório sem acertamento ou a decisorietà mera se configura na decisão em que se confere uma utilidade prática sem, contudo, declarar-se a existência do direito. Nesse caso, embora o provimento seja decisório, não há formação da coisa julgada, produzindo-se efeitos precários e que podem ser estabilizados. TISCINI, Roberta. I provvedimenti decisori senza accertamento. Torino: G. Giappichelli, 2009, p. 32 e ss. Entre os modelos existentes dos provimentos decisórios sem acertamento, destacam-se as denominadas ordonnan ces de référé, cujo cabimento foi ampliado com o Code de Procédure civile de 1975, sendo adicionada a référé provision, que não depende de urgência. Nesse sentido, “trata-se de uma tutela baseada na evidência do direito que fundamenta a demanda, pela sua manifesta incontestabilidade”. BODART, Bruno Vinícius da Rós. Tutela de evidência. São Paulo: RT, 2014, p. 122-123. 753 Conforme ensina Bruno Vinícius da Rós Bodart, “nos provimentos decisórios sem acertamento, a nota característica é a vontade do autor de renunciar à segurança jurídica ofertada pela coisa julgada, obtendo em contrapartida a prolação de uma decisão que tutele seus interesses de forma mais célere”. Tutela de evidência. São Paulo: RT, 2014, p. 120. 754 Cássio Scarpinella Bueno defende que independentemente da forma de como houve a manifestação do réu contra a decisão que antecipou a tutela, será afastada a estabilização da tutela e, assim, haverá o prosseguimento do processo para o julgamento do mérito. Defende, também, a inconstitucionalidade do incidente de suspensão, motivo pelo qual deixa de abordar a questão de que o seu manejo poderia ou não afastar a estabilização. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 262. Fernando da Fonseca Gajardoni entendeu que a questão merecia melhor reflexão, deixando apenas a indagação: “por não terem propriamente o condão de reformarem a decisão concessiva da antecipação de tutela, mas só de suspendê-las, impediriam a estabilização?”. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. DELLORE, Luiz. ROQUE, Andre Vasconcelos. OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo. São Paulo: Gen-Método, 2015, p. 900.

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301

Enfim, a estabilização atinge unicamente a medida satisfativa, significando que

estará incólume enquanto não for revogada, reformada ou invalidada pela ação

adequada.

De se questionar se a estabilização da tutela, indicada no art. 304 do NCPC,

também ocorrerá se for concedida em face do Poder Público e este, por sua vez, não

tiver interposto o respectivo recurso, podendo ser apontados dois fatores impeditivos de

tal ocorrência.

O primeiro, de que a situação de precariedade é fator que não pode ser

admitido no trato da Administração Pública, devendo a questão ser solucionada em

definitivo, ao invés de permanecer pendente, sob pena de prejuízo às finanças públicas

e à organização da gestão pública.

E o segundo, pois, o interesse público é indisponível e tais interesses não

admitem permanecer estabilizados, sem qualquer solução definitiva.

Em razão disso, a estabilização da tutela antecipada antecedente não condiz

com a necessidade de resolução das questões pertinentes ao interesse público, sendo

necessária a solução de mérito, motivo pelo qual não se pode admitir que ocorra a

estabilização em processo no qual o poder público seja parte (autor ou réu).

8.7 A tutela da evidência755

No CPC de 1973 a tutela da evidência não era tratada de maneira coesa,756

mas esparsa, em alguns dispositivos.

O CPC de 2015, por sua vez, consolidou no art. 311 as hipóteses de cabimento

desta medida provisória, sem prejuízo de outras, admitindo-a independentemente da

demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, desde que

evidenciada a probabilidade do direito,757 ou seja, quando:

755 Ou “tutela provisória fundamentada em evidência”. BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 262. 756 RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. Tutela provisória. São Paulo: RT, 2016, p. 187. 757 BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 268.

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302

(i) ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito

protelatório da parte;758

(ii) as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente

e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula

vinculante;759

(iii) se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental

adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem

de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa;

(iv) a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos

constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de

gerar dúvida razoável.

8.8 O precedente e a tutela de urgência e a tutela da evidência

Como demonstrado acima, para o deferimento da tutela de urgência, deverá a

parte demonstrar a existência de fundamentos relevantes e de risco de dano grave e de

difícil reparação, tendo o CPC de 2015 equiparado os requisitos para a sua

concessão.760

Ocupa-se, neste momento, do primeiro requisito e a sua ligação com os

precedentes.

758 Cássio Scarpinella Bueno indica hipótese em que o abuso do direito de defesa pode ser indicativo da existência de maior juridicidade do direito da parte autora. Nesse sentido “a orientação administrativa em sentido contrário àquele defendido pela administração pública em juízo, é indicativo da probabilidade do direito do administrado”. Porém, o mesmo autor ressalta que: “No entanto, é irrecusável, mesmo nestes casos, que o magistrado examine o caso para constatar suas peculiaridades. E se os fatos questionados em juízo não reclamarem a incidência daquela súmula administrativa? Em casos como estes, não há espaço para incidir o inciso I do art. 311”. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 268. 759 A ideia central da tutela da evidência é a de que o juiz profira decisão provisória, com a finalidade de “equacionar o tempo do processo de acordo com a maior probabilidade apresentada pela posição jurídica do autor”. MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016, p. 111. 760 Cássio Scarpinella Bueno fala em requisitos igualados, pois a concessão da tutela cautelar ou da antecipada exige a mesma probabilidade do direito da mesma intensidade do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 254.

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303

Os fundamentos relevantes correspondem à fumaça do bom direito, ou ao

mínimo de intensidade do direito capaz de justificar a concessão de tutela antecipada

ou cautelar.

Para tanto, a demonstração de que a questão já foi objeto de análise pelo

Poder Judiciário, que interpretou o texto em um sentido específico que lhe é favorável,

será de grande valia para a comprovação da existência de relevantes fundamentos.

Basta, para tanto, valer-se o requerente da medida de um exemplo,

devidamente fundamentado que, por sua natureza, não ostenta a autoridade de

precedente. A depender do discurso traçado, tem-se que os argumentos nele contidos

poderão ser utilizados como fundamentos relevantes para os demais casos iguais.

Imagine-se, nesse sentido, uma decisão proferida por Turma Recursal dos

Juizados Especiais da Fazenda Pública, no julgamento de recurso inominado. Esta

decisão, fundamentada de forma coerente, à altura da questão jurídica apresentada,

pode servir como um exemplo, tal como compreendido no Capítulo 2, retro, apto a

revelar a existência de relevantes fundamentos a justificar, somados ao periculum in

mora, a concessão da tutela da urgência.

De outro lado, se a pretensão tiver amparo em tese firmada em julgamento de

casos repetitivos ou em súmula vinculante, será possível o deferimento da tutela da

evidência, independentemente da demonstração de risco. Propõe o CPC 2015, nesse

passo, que o direito jurisprudencial seja utilizado como base decisória.761

Diferentemente do contido no texto legal, não se pode conceber que a tutela da

evidência possa ser deferida unicamente nas hipóteses em que a tese do requerente

tiver fundamento nos precedentes indicados.

Diferentemente, a alta probabilidade de acolhimento da pretensão pode

decorrer de análise da juridicidade da pretensão amparada em outros precedentes,

como é o caso, por exemplo, de ação direta de inconstitucionalidade, ou, até mesmo,

de súmula editada pelo Superior Tribunal de Justiça relativa a direito infraconstitucional,

761 Também aplicável de outras formas, conforme se vê em THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2015, p. 315.

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304

aplicando-se o microssistema de litigiosidade repetitiva referido genericamente pela

doutrina,762 por meio do qual se aproveitam as regras existentes.

8.9 Regime jurídico da tutela provisória contra o poder público e os precedentes

Mesmo com tal mudança estrutural dos provimentos jurisdicionais urgentes, o

fato é que ainda persiste o regime especial da tutela provisória contra o Poder Público,

mantido pelo art. 1.059 do NCPC, pelo qual se aplicam à tutela provisória o disposto

nos art. 1o. a 4o. da Lei n. 8.437/1992, bem como no art. 7°, § 2°, da Lei no

12.016/2009.

Ou seja, o dispositivo do NCPC encampou as vedações à concessão de tutela

provisória que impliquem: a) na reclassificação ou equiparação de servidores; b) no

aumento ou extensão de vantagens; c) na compensação de créditos tributários; d) na

entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior; e) a vedação à concessão in

limine de medida que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação, bem

como que imponha compensação de créditos previdenciários.

E, ainda, permanece em vigor a possibilidade de valer-se o Poder Público do

incidente de suspensão de eficácia (art. 4º da Lei n. 8.437/1992), mais adiante

trabalhado.

O regime especial também é integrado pelo entendimento consolidado em

jurisprudência, a partir de decisões que analisaram a conformidade das restrições com

a Constituição Federal, existindo a respeito, especialmente, o precedente ADC n. 04 e

posteriores entendimentos consolidados na Súmula 729 do mesmo Tribunal – que

reconhece a inaplicabilidade às ações de natureza previdenciária, bem como em várias

reclamações constitucionais – que reconhecem a inaplicabilidade do entendimento para

os fins de nomeação e posse em cargo público, em razão de ser o aspecto financeiro

secundário.763

762 THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2015, p. 287. 763 Notadamente a partir do que foi decidido na Reclamação n. 5.013, que tem a seguinte ementa: “Agravo regimental. Reclamação. Concurso. Graduação de sargentos. ADC nº 4/DF/MC. 1. A decisão reclamada apenas afastou o motivo da recusa do autor para prosseguimento nas demais fases do

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305

Portanto, o regime especial de tais medidas contra o Poder Público é formado a

partir da combinação do contido nas disposições legais e da interpretação judicial e se

resume, genericamente, na vedação de sua concessão em determinadas situações,

bem como na possibilidade de utilização de incidente processual próprio para a

suspensão da eficácia de determinadas decisões (sentido amplo).

Registre-se a flagrante oposição apresentada por Cássio Scarpinella Bueno à

continuidade desse regime jurídico e da inconstitucionalidade do art. 1.059 do CPC, em

razão de ofensa à garantia de acesso à justiça.764

Além disso, admite também o citado autor que, apesar do tempo transcorrido

desde a ADC n. 4, é possível o reconhecimento da inconstitucionalidade das limitações,

pois o Código de Processo Civil limitou a concessão da tutela provisória antecipada e

cautelar, distinção essa que não foi feita à época.765

8.10 A tutela da evidência fundada em precedentes e o poder público

Inicia-se este item com uma indagação: as vedações à concessão de tutela

provisória se aplicam à tutela da evidência ou são restritas à tutela de urgência?

No caso da tutela da evidência fundada no inciso II, a tese do requerente

encontra amparo em precedente, cuja observância é obrigatória pelo juiz ou Tribunal, e

também pela própria Administração Pública, conforme se defendeu, na exata medida

em que se realiza a interpretação jurídica, ou em que exercido o papel criador do

Direito, em extensão ao legislador, atribuindo-se sentido ao texto.

Desse modo, estando vinculada ao precedente, a Administração Pública não

poderá, em conformidade com o regime jurídico-administrativo-processual, opor

resistência infundada ao requerimento apresentado. De outro lado, considerando-se os

efeitos da decisão para o funcionamento da Administração, há de ser admitida a prévia

Concurso de Admissão ao Estágio de Adaptação à Graduação de Sargentos, garantindo ao candidato, para o caso de aprovação nas demais fases, as mesmas promoções conferidas aos demais candidatos, em observância ao princípio da isonomia. A questão é manifestamente diversa da decidida nesta Corte na ADC nº 4/DF-MC, que vedou a concessão de aumento ou vantagem pecuniária a servidor público mediante a antecipação de tutela. 2. Agravo regimental desprovido”. Rcl 5013 AgR, Rel. Min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, j. 10.03.2008, DJe-070. 764 Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 273. 765 Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 274.

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oitiva da pessoa jurídica de direito público, a fim de que possa argumentar no sentido

da distinção dos casos, na superação do precedente ou, ainda, na modulação

casuística, ou, também, de que os fatos não estão suficientemente comprovados ou

não ocorreram da forma como indicados.

Como se vê, a proposta apresentada é intermediária e se encontra entre os

entendimentos diametralmente opostos firmados pelo Fórum Permanente de

Processualistas Civis (Enunciado n. 31 – “as vedações à concessão de tutela provisória

contra a Fazenda Pública limitam-se à tutela de urgência”)766 e Fórum Nacional do

Poder Público (Enunciado n. 13 – “aplica-se a sistemática da tutela da evidência ao

processo de mandado de segurança, observadas as limitações do art. 1.059 do CPC”).

Ou seja, admite-se o seu deferimento, ainda que contra o poder público, desde

que assegurada a prévia oportunidade de manifestação, tal como previsto no parágrafo

único do art. 562 do NCPC e art. 2º da Lei n. 8.437/1992, que exigem o contraditório

prévio nas ações possessórias, ações civis públicas e mandados de segurança coletivo

propostos em face do poder público.

Portanto, admite-se a concessão da tutela da evidência como consequência

lógica do regime jurídico-administrativo-processual, desde que, contudo, dê-se prévia

oportunidade para que a pessoa jurídica de direito público, por meio de seu Advogado

Público, possa argumentar no sentido da necessidade de distinção entre os casos, da

superação do precedente ou, ainda, da modulação casuística.

E, somente assim, estará presente o interesse recursal qualificado, na hipótese

de deferimento de tutela provisória com fundamento da evidência em razão da tese do

requerente estar baseada em entendimento firmado em precedente.

766 “Dadas as especificidades das remissões legislativas por ele feitas, não há como querer alcançar as hipóteses em que a tutela provisória é concedida com fundamento na evidência. Os casos vedados ou limitados pela Lei n. 8.437/1992 e pela Lei n. 12.016/2009 pressupõem urgência”. BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 274.

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307

CONCLUSÃO

Feitas todas essas considerações, passa-se à conclusão deste trabalho.

1. Os princípios do federalismo e da simetria não são óbices à implantação de

um sistema de observância obrigatória dos precedentes. Pelo contrário, dão-lhe

conformidade particular, sendo possível delimitar as Cortes de Direito (Tribunais

Superiores) e as Cortes de Justiça (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais

Federais), embora estas, conforme proposto, também funcionam como Cortes de

Interpretação.

2. A estrutura administrativa brasileira conta com pessoas políticas – União,

Estados e Municípios, bem como com pessoas administrativas de direito público e de

direito privado. As pessoas políticas e as administrativas de direito público, quando em

juízo, são normalmente denominadas de Fazenda Pública, muito embora tenha sido

demonstrado que há certas exceções a essa regra, quando uma pessoa administrativa,

embora constituída de uma forma, desenvolve atividade que não seja correlata.

3. Para os conflitos envolvendo a Administração Pública são previstos dois

sistemas: o de jurisdição administrativa, que experimentou nos últimos anos

considerável avanço em busca da eficiência e da plena efetividade da tutela

jurisdicional, bem como o da jurisdição una, ao qual aderiu o Brasil desde os primórdios

de sua existência. Como decorrência desta sistemática, tem-se que, no mesmo passo

em que a jurisdição é una, o precedente também será uno, embora devam ser

respeitadas as particularidades decorrentes do sistema federalista.

4. Foi visto que o precedente se apresenta como um pronunciamento judicial de

observância obrigatória pelo juiz ou tribunal no julgamento de casos futuros. Para tanto,

atribui-se a ele força vinculante, servindo como fonte formal do direito.

5. Precedente e jurisprudência não se tratam de expressões sinônimas. O

precedente se consolida em um conceito singular, em uma decisão paradigma, da qual

se extrai a ratio decidendi e os fatos relevantes e aptos a estabelecer a necessária

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coerência com os casos futuros. Para o julgamento destes, estabelece-se uma

necessária relação de continuidade evolutiva do Direito. De outro lado, a jurisprudência

pressupõe tratar-se de um conceito plural, pois se refere a várias decisões proferidas

em um determinado sentido. O precedente pode ser o fator constitutivo da

jurisprudência, assim como pode determinar o seu fim, quando se encampa

posicionamento diverso daquele antes vigente.

6. A expressão precedente pode ser utilizada como sinônimo de

pronunciamento judicial (embora nem toda decisão judicial seja precedente), extraindo-

se a ratio decidendi e os fatos relevantes sem os quais a decisão teria outro sentido.

Esta dupla de elementos forma um contexto que vinculará o julgamento de casos

futuros, enquanto a tese não for superada. Também se utiliza a expressão para se

referir unicamente à ratio decidendi. É de importância, também, a identificação do

elemento obiter dictum, pois não é vinculante.

7. De acordo com a doutrina, o rol do art. 927 do Código de Processo Civil não

é taxativo, existindo precedentes que lá não estão indicados, assim como lá estão

previstas hipóteses que não teriam essa natureza. No trabalho, até para se adotar um

viés prático, optou-se por adotar o entendimento de que todas as hipóteses contidas no

dispositivo se tratam de precedentes, até mesmo em relação às súmulas, que se

apresentam como a condenação de uma tese, devendo o intérprete, no caso concreto,

avaliar os elementos fáticos contidos nos julgados paradigmas e que deram base para

a edição da súmula.

8. A Administração Pública está sujeita ao ordenamento jurídico como um todo,

bem como à interpretação proveniente de Poder a quem foi franqueada a última palavra

na atribuição de sentido ao Direito e na efetividade dos direitos e garantias

fundamentais. Não obstante, para que se possa respeitar esse quadro, é necessário

que o Poder Judiciário se submeta a um exercício de humildade e observe os seus

próprios precedentes, pois a instabilidade acarretará na percepção da possibilidade de

reversão dos julgados e na continuidade da litigiosidade, quer seja pelos administrados

ou mesmo provocada pela própria Administração Pública.

9. No entanto, a vinculação da Administração Pública é, em primeiro lugar, com

a lei, de tal maneira que se a decisão judicial simplesmente repetir os ditames legais, é

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a esta que existe a vinculatividade. O poder público estará vinculado à decisão judicial

na exata medida da interpretação do Direito, no sentido obtido a partir do labor judicial,

respeitando-se o âmbito de atribuição próprio dos agentes públicos e a faixa de

insindicabilidade que, gradativamente, restringe-se consideravelmente.

10. O Direito Administrativo forma um ambiente decisional rígido, não adepto a

mudanças repentinas, contrariamente ao que ocorre com outros ramos da ciência

jurídica. Dessa maneira, as viradas jurisprudenciais corriqueiras não se sustentam e a

mudança de entendimento somente deve ocorrer por conta da evolução natural do

Direito e não em razão de simples mudança de opinião do julgador ou da composição

da Corte.

11. A adoção de um sistema respeitante da autoridade do precedente se

constitui em uma medida adequada à boa administração, em vista de se buscar

observar a igualdade, a previsibilidade, a segurança jurídica e a tutela da confiança

depositada pelo cidadão, e também pelo Estado, na estabilidade do entendimento

fixado pelo Judiciário.

12. Dessa maneira, contrariamente do que sustenta ampla doutrina,

notadamente a que se ocupa em especial com o Direito Tributário, o Estado também é

um sujeito que merece a extensão dos efeitos da segurança jurídica, bem como a tutela

da confiança legítima.

13. A Advocacia Pública se insere em um novo contexto e está defronte ao

desafio de buscar entender e interagir com as novidades presentes, cabendo-lhe

interpretar a lei e o próprio precedente, a fim de delimitar o seu campo de aplicação aos

casos em que isso for possível de ser vislumbrado previamente.

14. Consiste o regime jurídico-administrativo-processual no modelo de atuação

processual regido notadamente pelos princípios da legalidade, da moralidade

administrativa e da boa-fé processual, a ser implementado pela União, Distrito Federal,

Estados, Municípios e suas Autarquias respectivas, buscando-se a eficiência para a

observância do interesse público.

15. As decisões judiciais poderão ser impugnadas por meio dos recursos,

sucedâneos recursais e ações impugnativas. Pelos primeiros, prolonga-se a relação

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processual e se exerce o direito ao duplo grau de jurisdição, sendo a via adequada para

corrigir o ato que não observou adequadamente o precedente.

16. A recorribilidade da pessoa jurídica de direito público consiste no exercício

de um dever-poder, na medida em que, se o pronunciamento for contrário à lei e ao

precedente, deverá ser interposto o recurso, buscando-se a modificação do decisum.

Do outro lado da mesma moeda, verificando o agente público responsável – Advogado

Público – que a decisão vai encontro da lei e do sentido atribuído e constante de

precedente, deverá abster-se de recorrer, conformando-se com a decisão judicial, ainda

que outra seja a orientação advinda da Administração Pública.

17. A não interposição de recurso poderá ser autorizada normativamente, com

o que se garante segurança jurídica ao agente, valendo-se o Chefe da Advocacia

Pública de Orientações Normativas nesse sentido. Também é possível a atribuição de

dispensa casuística por superior hierárquico, ou ainda que o caso seja analisado

unicamente pelo próprio profissional que o acompanha.

18. Que o sentido do interesse recursal vem se alterando com o passar do

tempo, encampando-se a ideia de interesse com utilidade prática, de modo que o

requisito somente esteja presente se a decisão puder resultar em situação de melhora,

o que não ocorrerá se a impugnação simplesmente voltar-se contra decisão que se vale

de precedente, sem qualquer argumentação no sentido da superação ou da distinção.

Trata-se, como se vê, de recurso inócuo, o que vai contra o dever de eficiência e o

direito à boa administração.

19.Por isso tem-se que a pessoa jurídica de direito público deve ostentar um

interesse recursal em grau mais acentuado, denominado no trabalho de interesse

recursal qualificado, conectado diretamente ao dever-poder de recorrer e este ao

regime jurídico-administrativo-processual.

20.Esse complexo mencionado – regime jurídico-administrativo-processual,

dever-poder de recorrer e interesse recursal qualificado – exigem a interposição do

recurso em determinadas situações ligadas ao precedente, tais como: i) omissão de sua

aplicabilidade; ii) utilização de forma incorreta do precedente; iii) utilização das técnicas

da distinção e da superação; iv) necessidade de modulação dos efeitos no caso

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concreto; v) e o dever-poder para impugnar decisão que acolha pedido de tutela

provisória fundada em precedente contra o poder público.

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