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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Paula Faro Procedimentos de Criação do Videoclipe no Cinema. Mestrado em Comunicação e Semiótica SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Paula Faro

Procedimentos de Criação do Videoclipe no Cinema.

Mestrado em Comunicação e Semiótica

SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Paula Faro

Procedimentos de Criação do Videoclipe no Cinema

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob orientação do Professor Doutor Arlindo Machado.

SÃO PAULO 2008

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BANCA EXAMINADORA

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RESUMO

A linguagem do vídeo vem exercendo enorme influência na linguagem

cinematográfica; e a relação entre cinema e vídeo tem sido discutida amplamente por

diversos autores. A partir dessas discussões tais como as que Arlindo Machado propõe

em Pré-cinemas e Pós-cinemas (1997) e A Televisão Levada a Sério (2001), as de

Philippe Dubois, em Cinema, Vídeo, Godard (2004), e também as de Raymond Bellour,

em Entre-Imagens (1997), a pesquisa verifica como a linguagem videográfica

aproximou a linguagem do cinema à do vídeo clipe e vice-versa.

Neste contexto, a pesquisa pretende analisar o filme Brilho Eterno de uma

Mente sem Lembranças, e identificar nele os elementos de confluência entre as duas

linguagens mencionadas, contribuindo assim para o melhor entendimento dessa

tendência contemporânea. O procedimento metodológico a ser utilizado é o da análise

da estrutura narrativa imagética com estipulações de elementos de comparabilidade

entre as duas.

Com base na reflexão feita por Cecília A. Salles em Redes de Criação:

Construção da Obra de Arte (2006), pretende-se desenvolver uma análise não-linear

das relações entre videoclipe e cinema em seus aspectos dinâmicos a partir de seus

procedimentos de criação. A não-linearidade é um aspecto importante tanto do

videoclipe como do filme contemporâneo; é, na verdade, uma das principais

características para identificar a transformação na narrativa dessas formas culturais. A

leitura não-linear e as relações estabelecidas entre ambas as linguagens permitem uma

aproximação dos procedimentos de criação desses meios e um melhor entendimento

sobre a forma como eles se relacionam a partir de suas características expressivas.

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PALAVRAS-CHAVE: comunicação visual, vídeo, videoclipe, cinema,

hibridismo.

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Abstract:

The language of video has been influencing the language of film; also, the

relationship between cinema and video has been discussed by different authors. Based

on these discussions, such as Arlindo Machado´s “Pré-cinemas e Pós-cinemas” (1997)

and “A Televisão Levada a Sério” (2001), and Philippe Dubois’s, in “Cinema, Video,

Godard” (2004), as well as Raymond Bellour´s, in “L´Entre-Images” (1997), the

article verifies how the language of video brought together the language of film and the

language of music videos, and vice versa. In this context we want to analyze the

encounter and the relationships between video, music videos and cinema. And identify

the elements that bring these languages together contributing to the best understanding

of contemporary tendencies.

Key-words: visual communication, cinema, hybridism

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AGRADECIMENTOS

Arlindo Machado e Cecilia Almeida Salles.

J.S. Faro, pela atenção e apoio durante o processo de concepção deste trabalho.

Márcia e Patrícia, pela paciência e apoio.

Minha família.

Meus amigos.

CNPq, pela bolsa concedida.

Todas as pessoas que estiveram direta ou indiretamente envolvidas no processo

de concepção deste trabalho.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO I 15

Cinema, Vídeo e Vídeo Clipe: relações e narrativas híbridas

CAPÍTULO II 38

Bachelorette: procedimentos de criação no videoclipe

CAPÍTULO III 49

Procedimentos de criação do videoclipe no cinema

CONCLUSÕES 78

BIBLIOGRAFIA 84

APÊNDICES 89

1. Sinopse 90

2. Ficha técnica do filme 91

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INTRODUÇÃO

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INTRODUÇÃO

O presente estudo busca compreender a relação dos procedimentos criativos,

características expressivas e construções poéticas entre videoclipe e cinema. Para isto

desenvolveremos uma análise destes elementos no videoclipe e no cinema. As obras

analisadas serão o videoclipe Bachelorette e o filme Brilho Eterno de uma Mente sem

Lembranças realizados pelo diretor Michel Gondry.

Como a linguagem cinematográfica se transforma com a influência da linguagem de

videoclipes? Como se dá isso em seus aspectos de linguagem e formas expressivas? De que

forma isto possibilita a identificação de uma narrativa característica do cinema

contemporâneo?

A transformação da estética cinematográfica se dá porque alguns diretores

contemporâneos vieram do ambiente do videoclipe. São diretores com formação no cinema e

que também trabalham com o videoclipe. Incorporam elementos do videoclipe para depois

inseri-los em seus filmes. Esses diretores trazem estas novas possibilidades de construções

poéticas (Arlindo Machado, Reinvenção do Vídeo Clipe, 2001, p.183) para o cinema

possibilitando assim esta transformação encontrada em alguns filmes.

O videoclipe já é amplamente aceito e divulgado como tal, com características

expressivas que misturam elementos tanto do vídeo quanto do cinema. Desde o surgimento do

DVD os músicos e os próprios diretores de videoclipes começaram a divulgar seu trabalho

neste formato, além de existirem festivais hoje que incluem o videoclipe em suas mostras,

como é o caso do Resfest e a mostra Comunismo da Forma1. E a televisão deixou de ser o

principal meio aonde ele é transmitido com o surgimento de sites como o youtube.

O âmbito do videoclipe permite esta experimentação devido ao capital investido para a

produção desses filmes e também à maior liberdade que existe neste meio. O videoclipe serve

muitas vezes para promover artistas da indústria musical e seu produto é exibido na televisão,

agora cada vez mais pela internet ou vendido em DVD, não dependendo tanto de sua

bilheteria para sustentar-se. Aqui também existe um diálogo entre os diversos meios, pois

1 A mostra Comunismo da Forma: Som, Imagem, Tempo. A estratégia do Vídeo Musical que ocorreu em São Paulo em 2007 é um exemplo de como o videoclipe vem se estabelecendo no ambiente audiovisual. Esta mostra, assim como o blog e o livro vinculados a ela, é um projeto que pretende olhar e pesquisar o videoclipe dentro do ambiente da arte e como uma manifestação cultural contemporânea. Esta mostra foi realizada pela Galeria Vermelho em São Paulo de 20.07 a 04.08.2007, com curadoria de Fernando Oliva e Marcelo Rezende. Além da mostra os curadores lançaram um livro com o mesmo nome e um blog: http://comunismodaforma.zip.net.

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muitas vezes o suporte utilizado é a película, mas o meio em que é divulgado é a televisão, o

DVD ou a internet.

Enquanto linguagem, a reflexão de Raymond Bellour sobre estas passagens que

acontecem através do vídeo torna-se um ponto interessante para especular sobre este diálogo

entre o videoclipe e o cinema porque ele não acontece apenas em seus aspectos técnicos,

como o de produção e de distribuição.

Arlindo Machado analisa o videoclipe como uma forma de onde derivam várias

tendências que possibilitam sua redefinição, revelando diversas características estilísticas

próprias deste meio que validam seu lugar no plano do audiovisual como um novo campo de

expressão. A partir desta reflexão, analisamos o videoclipe tomando-o como uma forma

audiovisual com características de linguagem próprias e sua relação com o cinema. E, como

estas novas concepções expressivas operantes dentro do videoclipe possibilitam uma

transformação na linguagem cinematográfica. No capítulo dois, na análise do videoclipe

Bachelorette, veremos estas relações em seus procedimentos de criação e características

expressivas.

Assim como Arlindo Machado propõe a relação entre a videoarte, o cinema, e o

videoclipe, inserimos o vídeo como suporte, formato e linguagem dentro desta análise,

considerando seu papel fundamental para desenvolver uma análise da relação do videoclipe

com o cinema. Para isto, tomamos como ponto de partida também a reflexão já feita por

Arlindo Machado no livro Pré-cinema e Pós-cinemas, principalmente na última parte, Pós-

cinemas: Ensaios sobre a Contemporaneidade, onde é feita uma ampla análise da relação

que as imagens do vídeo, do cinema, e também das novas mídias eletrônicas exercem entre si

transformando-se umas as outras. No capítulo um deste estudo trazemos uma reflexão sobre

as relações entre a linguagem do vídeo, do cinema e do videoclipe.

Com o desenvolvimento e a popularização do videoclipe e também sua disseminação,

o cinema se viu em um processo de transformação de sua linguagem, a partir da incorporação

de elementos daquele em sua narrativa e estética. Tomando o conceito de entre-imagem de

Raymond Bellour, é possível analisar o videoclipe também a partir desta perspectiva, pois no

decorrer destas análises encontraremos no videoclipe um lugar onde passam as imagens da

videoarte, da televisão, do cinema e de outros meios.

No livro Cinema, Vídeo, Godard, Philippe Dubois, faz uma análise pormenorizada da

linguagem do vídeo, identificando neste último características expressivas próprias e

propondo, a partir daí, uma estética da imagem do vídeo. Com esta identificação das

expressões de linguagem do vídeo, Dubois faz uma relação desta linguagem com a do cinema,

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analisando também, a partir das características de linguagem de cada uma, suas interferências,

transformações e incorporações. No livro, o autor toma as experiências que aconteceram

entre estes dois meios de comunicação no final da década de setenta e no transcorrer da

década de oitenta, principalmente as obras do diretor Jean-Luc Godard.

Durante o percurso traçado por Philippe Dubois também vemos a relação que ele

estabelece entre o vídeo e as antigas experiências no campo do cinema, feitas principalmente

nas vanguardas russa e francesa, assim como no cinema novo da Nouvelle Vague e outros

casos. O autor propõe inclusive a idéia de que a linguagem do vídeo já existia antes mesmo

de seu formato técnico ser desenvolvido. Para realizar a análise das relações entre as

linguagens do vídeo, videoclipe e cinema, as idéias identificadas neste autor em relação ao

vídeo, a estética do vídeo e suas próprias características expressivas seriam o ponto de partida

para encontrar no videoclipe a interferência do vídeo e o papel que este exerceu nas novidades

trazidas por este meio. Assim, é possível identificar no cinema esta mesma relação. A

reflexão que Philippe Dubois faz sobre as formas expressivas do vídeo e do cinema, e como

estas intercambiam suas características constantemente, serve como base para melhor

entender as confluências entre o videoclipe e o cinema. Em razão disso, permitem uma

análise pormenorizada das características de linguagem do videoclipe inseridas no cinema

contemporâneo e que operam dentro deste uma transformação.

Em seu livro Entre-Imagens, Raymond Bellour toma o vídeo como o meio por onde

passam todas as transformações que vieram a operar nas diversas concepções de imagem.

Para ele, o vídeo é tanto a videoarte como a televisão. A partir desta análise, o autor investiga

a inevitável transformação que o cinema veio a sofrer com o surgimento do vídeo, tanto em

seu aspecto interno quanto externo. Bellour propõe assim que a relação do cinema

estabelecida com o vídeo faz com que o primeiro apresente-se de uma maneira nova, nunca

deixando de se transformar. Para isso, o autor atualiza os conceitos de vídeo e de videoarte

trazendo a idéia de que estes meios ganharam força justamente por serem lugares de

passagens onde o vídeo seria um atravessador de imagens, que possibilita a constante

configuração de novas formas expressivas dentro dele. Para Bellour o conceito de entre-

imagens seria este lugar, o espaço de todas estas passagens das imagens que se atualizam em

um novo tempo.

As relações estabelecidas por Raymond Bellour entre o vídeo e o cinema, a análise da

videoarte e como se dão estas influências entre um e outro meio mostram uma perspectiva

para se entender o videoclipe como sendo também um ponto de encontro entre o vídeo, o

cinema e a televisão. O conceito de entre-imagens possibilita uma reflexão sobre o videoclipe

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deste ponto de vista, já que o videoclipe pode apresentar características da linguagem do

vídeo e da linguagem do cinema. Esta abordagem de Raymond Bellour apresenta também a

possibilidade de entender o papel que o vídeo tem como um elemento fundamental para estas

transformações que vêm sendo operadas nas imagens, tanto do videoclipe quanto do cinema.

Em seu livro Redes da Criação: Construção da Obra de Arte, Cecilia Salles apresenta

um estudo sobre as possibilidades de análise do processo de criação de diferentes obras de

arte. A análise dos procedimentos de construção permite uma leitura do processo em sua

mobilidade e dinamicidade onde as relações estabelecidas são fundamentais para o percurso

criador do artista. Este livro já não pretende mais analisar o trabalho final ou obra entregue ao

público, mas justamente este percurso do movimento do artista que pode traduzir-se em ação

transformadora, movimento tradutório, processo de conhecimento, construção de verdades

artísticas e percurso de experimentação. Nesta reflexão o livro propõe ferramentas teóricas

para análise de fenômenos em sua mobilidade. A autora traz o processo de criação como uma

rede de conexões onde o critico de processo pode, a partir destas ferramentas teóricas

propostas no livro, realizar leituras não lineares e construir um pensamento das relações a

partir da análise destes fenômenos moveis. Para isto o conceito de rede é fundamental

revelando como se dá o processo de criação artística nos diferentes meios.

A proposta de Cecilia para uma leitura não linear da obra assim como a rede que relaciona

e conecta diversos procedimentos de criação permitem ver a ação transformadora gerada por

estas conexões e relações assim como sua característica de não linearidade. Esta abordagem

da autora possibilita trabalhar os aspectos da análise dos procedimentos de criação no

videoclipe Brachelorette e no filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças em seu

caráter de movimento e de relações e conexões estabelecidas entre eles que são fundamentais

para identificar a transformação narrativa que ocorre a partir destas relações. Assim como o

aspecto não linear característico da narrativa destas obras. No capítulo três desenvolveremos

a análise do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, estabelecendo as relações

das características expressivas do filme com as do videoclipe.

No panorama atual este estudo se insere nas investigações desenvolvidas pelos autores

acima mencionados. Através do estudo da relação entre vídeo, videoclipe e cinema,

procuramos verificar como a incorporação de características expressivas do videoclipe opera

uma transformação na linguagem cinematográfica, fazendo com que estes diversos meios

estejam em diálogo constante e intrinsecamente ligados. Estas relações entre os diversos

meios vêm sendo estudadas desde o surgimento do vídeo e são fundamentais para entender o

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que já vem acontecendo no campo da comunicação quando todas as linguagens se relacionam

entre si transformando as formas expressivas contemporâneas.

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CAPÍTULO I

Cinema, Vídeo e Videoclipe: relações e narrativas híbridas.

Frame do videoclipe Junior et Sa Voix D´Or, Michel Gondry.

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CAPÍTULO I

Com o surgimento da televisão e depois do vídeo, o cinema começou a ser

questionado por esses outros meios de comunicação, assim como também passou a se

questionar. A televisão e o vídeo introduziram novos elementos no cinema, mas também

tomaram deste diversas características. A existência do diálogo constante entre esses meios,

que têm a imagem e o som como elementos fundadores, faz com que nenhum deles se

apresente de forma pura, porque existe um movimento constante de intercâmbio que os

modifica cada vez mais nos dias de hoje. A linguagem do vídeo vem exercendo uma enorme

influência na linguagem cinematográfica. E hoje chegamos a um momento onde existe uma

transformação generalizada na forma de concepção, transmissão e recepção do audiovisual.

Ou seja, está havendo uma mudança no modo como todos, desde o artista até o espectador, se

relacionam com este meio.

“Hoje, a percepção da hibridação entre os meios é dominante, assim como

sua dupla potencialização. É essa linha de continuidade que nos interessa. O vídeo

aparecendo como potencializador do cinema e vice-versa. Podemos destacar cineastas

que, mesmo fazendo cinema, já trabalhavam com princípios (a não linearidade, a

colagem, o ‘direto’, a deriva) que se tornariam característicos da vídeoarte e da

linguagem do vídeo. O cinema de Jean Luc Godard ou os procedimentos do cinema

direto (para ficarmos nos anos 60) já traziam algumas destas questões, caras ao novo

meio e que iriam influenciar fortemente o moderno cinema brasileiro. Uma linha de

continuidade entre cinema e vídeo bem mais longa pode ser traçada, principalmente se

pensarmos em processos e procedimentos em vez de suportes.” (Bentes, 2007, p. 112).

Neste contexto, o vídeo ocupa um lugar fundamental já que é um meio pelo qual

passam todas estas mudanças. O vídeo como suporte, dispositivo, formato ou linguagem com

características expressivas próprias, já se estabeleceu no âmbito audiovisual. Ele tem sido

amplamente discutido desde suas diversas formas de utilização e já foi questionado e

criticado. Desde que as características expressivas do vídeo começaram a ser incorporadas na

linguagem audiovisual e também nos seus modos de recepção e transmissão, o vídeo tem

estado cada vez mais presente no âmbito audiovisual em todos os seus aspectos.

“Tanto nas circunstâncias relacionadas à televisão quanto nas circunstâncias

relacionadas ao cinema, há em todas essas práticas a presença do vídeo em seu caráter

de multiplicidade, descentralidade e mutabilidade por conta da desestruturação dos

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17cânones clássicos dessas sintaxes e de suas narrativas. Nessas práticas há também a

inscrição de uma linguagem desconcertante, essencialmente híbrida repercutida

substancialmente por meio da invenção de novos matizes e saberes para os códigos da

arte.” (Mello, 2004, p. 68)

A complexidade apresentada pela linguagem do vídeo nas diferentes formas em que é

utilizado proporciona um panorama amplo para perceber como ele vem sendo incorporado no

ambiente audiovisual. Configura-se uma rede complexa de interações entre os diversos meios

e o vídeo, desde suas relações com diversas linguagens audiovisuais até os vários campos das

artes. Christine Mello, em sua tese de doutorado Extremidades do Vídeo, trabalha com estas

questões mostrando as relações complexas estabelecidas através do vídeo. Neste estudo, a

autora trabalha o vídeo não em sua totalidade, mas justamente a partir das relações que ele

estabelece transformando outras linguagens e sendo por elas transformado, ampliando assim

as possibilidades de expressões no audiovisual. Esta característica apresentada pelo vídeo de

incorporar elementos de outros meios e ser por eles incorporado, assim como as interferências

e conexões que ele permite, constitui um elemento fundamental para pensar o vídeo e suas

relações com outros meios. É o caso de sua relação com o cinema e o videoclipe.

“O vídeo vive uma proliferação de expressões e impurezas de formas. Por se

tratar de um meio heterogêneo, ele tem capacidade de transformar e influenciar as

mais variadas manifestações da arte. As contaminações do vídeo dizem respeito às

suas infiltrações semióticas nos diferentes campos da estética contemporânea. Neste

sentido, é possível afirmar que o vídeo redefine as práticas de arte nas últimas

décadas.” (Mello, 2004, p. 137)

O vídeo também veio apresentando-se como uma linguagem com características

expressivas próprias. A partir de uma análise mais atenta, estas características permitem sua

identificação em algumas obras, sejam elas da videoarte, da televisão, ou do cinema.

O cinema, a partir de seu surgimento e no decorrer do século XX, veio se

estabelecendo como a arte audiovisual por excelência. Com linguagem e características bem

definidas, por muito tempo dominou o audiovisual a partir de sua narrativa clássica e linear.

O cinema dominante se apresenta como uma organização seqüencial de planos que em seu

encadeamento encarregam-se de contar uma história com começo, meio e fim. Além deste

cinema dominante, vinculado principalmente ao modo de produção industrial, sempre houve

um tipo de cinema diferente. Fora do ambiente do cinema clássico, as cinematografias de

vanguarda eram ocupadas por realizadores como Georges Méliès ou movimentos estéticos

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como o expressionismo alemão, a vanguarda francesa e a soviética. Estas eram abordagens

da linguagem cinematográfica que se diferenciavam da linguagem clássica. Estes

movimentos divergiam do que estava se estabelecendo no sistema industrial com seu aparato

tecnológico. Assim como se diferenciavam também e principalmente por apresentarem outra

forma de tratar a linguagem cinematográfica e suas possibilidades expressivas. Eram

experiências que justamente propunham uma forma diversa de usar os elementos que

compunham o cinema, que estava institucionalizando-se e sistematizando-se, tanto em seu

aspecto de produção quanto na sua forma narrativa.

“Isso que hoje nós chamamos, por exemplo, de a ‘linguagem’ do cinema – um tipo de

construção narrativa baseado na linearização do significante icônico, na hierarquização dos

recortes de câmera e no papel modelador das regras de continuidade – é o resultado de opções

estéticas e de pressões econômicas que se deram na primeira década do século, quando a

geração de Griffith surgiu no cenário.” (Machado, 1997, p. 191).

Durante o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, houve grandes mudanças

exercidas sobre ela em momentos diferentes. No inicio da história do cinema, Griffith e

outros cineastas estabeleceram os códigos clássicos do discurso cinematográfico. Códigos

estes que prevaleceriam no transcorrer da consolidação desta indústria. Posteriormente, com

as vanguardas estéticas mencionadas acima, durante e principalmente depois da Segunda

Guerra Mundial, as diversas cinematografias no mundo começaram a romper com o discurso

clássico. Estas novas abordagens feitas a partir das vanguardas se apresentavam como outras

formas de narrativa, e viriam a estabelecer a linguagem do cinema moderno.

Essas transformações estão relacionadas com diversos aspectos da sociedade: as

mudanças socioeconômicas, culturais e, principalmente, a importância que outros meios de

comunicação, como a TV, o vídeo e, hoje, a internet passaram a ter, exercendo alterações na

percepção audiovisual dos indivíduos.

Até os anos sessenta já haviam sido iniciadas diversas rupturas nas cinematografias

européias (neo-realismo italiano, nouvelle vague francesa, novo cinema alemão). E,

posteriormente também na norte-americana (Orson Welles, Cassavetes e, mais tarde, nos anos

setenta e oitenta, Morrisey, Spielberg, Lucas e Coppola).

“Apesar de carecermos de recuo, enfim, podemos considerar o período dos anos 80

como uma terceira grande fase histórica: a do pós-video, isto é, aquela em que os efeitos

(estéticos) do vídeo estão de tal modo integrados ao filme que acabam constituindo

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19implicitamente a sua base orgânica. Neste sentido, o cinema contemporâneo teria se

transformado, globalmente, em um ‘efeito vídeo’, ou, pelo menos, teria passado por ele, queira

ou não, assuma isso ou não, o que explicaria o que certos críticos chamaram, acertadamente, de

maneirismo do cinema contemporâneo.” (Dubois, 2004, p.182)

Com o seu surgimento, o vídeo passou a exercer um papel fundamental nas

transformações da narrativa cinematográfica. Na medida em que foi disseminando-se, tanto

técnica quanto esteticamente, o vídeo foi se incorporando e sendo incorporado por outros

meios. A partir dos anos sessenta, com a videoarte, culminando nos anos oitenta, o vídeo foi

sendo explorado tanto em seu aspecto técnico quanto em seu aspecto estético. Nos anos

oitenta o vídeo e o cinema iniciaram um diálogo intenso. O cinema é considerado, através de

mais de cem anos de história, como a grande referência da imagem audiovisual, em seus

aspectos técnicos e estéticos. A incorporação na linguagem cinematográfica a partir de

características de linguagem do vídeo influenciou a narrativa e a lógica do discurso clássico

do cinema transformando-o.

Quando o vídeo nasceu, já havia incorporado formas de expressão do cinema. A

vídeoarte tomou do cinema características que não estão diretamente relacionadas ao grande

discurso estético formalizado pela narrativa clássica vinculada aos formatos industriais. A

videoarte incorporou características do cinema vinculadas a outras formas de cinema, como o

cinema experimental e as vanguardas estéticas do inicio do século XX. Assim como as que

surgiram no final dos anos cinqüenta e inicio dos anos sessenta, com a nouvelle vague e as

novas cinematografias que estavam nascendo pelo mundo. Eram nestas formas narrativas

diversas que a videoarte foi buscar elementos que se incorporaram a ela e transformaram-se

em uma nova forma de se fazer audiovisual. Assim como o diálogo intenso estabelecido entre

a vídeoarte e as artes plásticas, meio no qual aquela se instalou.

“O cinema experimental ou de vanguarda (nenhuma dessas palavras é boa) e a video-

arte (que não é melhor) têm em comum essa vontade de escapar por todos os meios possíveis

de três coisas: a onipotência da analogia fotográfica, o realismo da representação; o regime de

crença da narrativa.” (Bellour, 1997, p.176)

O modo industrial cinematográfico e seu discurso clássico estabeleceram-se desde o

seu surgimento como espetáculo de massas. A introdução de outras formas expressivas do

audiovisual como a televisão e o vídeo, vieram trazer novas perspectivas para o cinema, pois

quando o vídeo irrompeu o cinema já estava em um processo de esgotamento. Os cineastas

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então buscavam novas maneiras de tratá-lo, questionando a relação entre estes meios e sua

influência no cinema. Em alguns casos eram inclusive cineastas que já haviam nascido com a

televisão e o vídeo, diferentemente daqueles que tinham como referencia a literatura, a pintura

clássica e o teatro. Um diretor como David Cronenberg, que já havia trabalhado em televisão,

fez filmes como Scanners – Sua Mente Pode Destruir (1981) e Videodrome – A Síndrome

do Vídeo (1983), que tanto na sua forma como no seu próprio enredo já dialogavam com o

mundo da imagem eletrônica trazida pelo vídeo. Outro exemplo é Peter Greenaway, que veio

do ambiente das artes plásticas, principalmente da pintura, e que tem em sua filmografia um

amplo trabalho de busca por outras formas narrativas que dialogam diretamente com

características da vídeoarte. Cineastas como Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni,

provenientes da tradição cinematográfica, viram no vídeo e na televisão possibilidades de

incorporações e reinvenções a partir da imagem eletrônica. O diretor Michelangelo Antonioni

fez O Mistério de Oberwald em 1981 para o cinema, explorando as possibilidades estéticas

do vídeo, pois usou neste filme o suporte do vídeo para sua realização. Jean-Luc Godard fez

diversos trabalhos para a televisão e em vídeo a partir da sua produtora de vídeo independente

Sonimage, obras estas que inclusive têm como referência o próprio cinema, como é o caso da

série Histoire(s) du Cinéma. Nos anos oitenta, quando o cinema passou a utilizar o vídeo,

aconteceram estas incorporações e os diretores começaram a experimentar com este outro

formato audiovisual, principalmente em seus aspectos estéticos.

Frame do filme O Mistério de Oberwald, Michelangelo Antonioni.

Frame do filme Videodrome, David Cronenberg.

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Frame do vídeo Histoire (s) du Cinema, Jean Luc Godard.

Inicialmente, o vídeo foi introduzido no ambiente das artes plásticas e aí se

desenvolveu como videoarte, onde foi explorado em seus aspectos de linguagem e formas

expressivas, e também como dispositivo em vídeo-instalações. Com as incorporações feitas a

partir da videoarte pelo cinema, novas possibilidades de transformações no discurso estético

cinematográfico foram realizadas. Os primeiros experimentos no cinema com incorporações

feitas a partir do vídeo eram modos de fazer cinema que, de certa forma, viam no vídeo uma

possibilidade para a exploração de novas características expressivas. Estas incorporações

mudariam a lógica narrativa e a linguagem cinematográfica.

O que se caracteriza como cinema ou vídeo? Não são estas reflexões nas quais nos

embasamos para estas pesquisas. O que nos interessa não é o formato ou o suporte pelo qual

estas obras são veiculadas, mas sim suas estéticas, discursos, linguagens, procedimentos de

criação, características poéticas e formas expressivas. É neste lugar que se deu o encontro

entre cinema e vídeo.

Assim como a vídeoarte foi buscar nas vanguardas estéticas e no cinema moderno

referências, o cinema pós-video viu na videoarte características que ele passou a incorporar.

Isto também se dá em seus aspectos de suporte e tecnologia.

É interessante refletir sobre o lugar que o vídeo ocupa hoje no ambiente audiovisual e

como, de certa forma, tudo passa por ele, desde o uso doméstico até a internet, passando ainda

pela televisão e o cinema.

Uma parte dos filmes passou a usar o enquadramento que prevê o formato da

televisão, e já não usam mais apenas o enquadramento para o 35 mm. Isto porque se sabe que

o filme depois de ser exibido na sala de cinema (e hoje o tempo que um filme fica em

exibição é cada vez menor) será vendido em DVD ou será exibido na televisão. E poderíamos

até dizer que hoje as pessoas vêem filmes muito mais na televisão, através da televisão a cabo

ou do DVD, do que no cinema. A película, depois de sair da filmagem, é passada para o

formato digital e montada em vídeo para depois, apenas quando o filme já estiver finalizado,

ser novamente passado para película para sua projeção. E, muitas salas de cinema hoje já

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incluem em seu aparato de projeção a projeção em vídeo digital. O vídeo vem se tornando o

principal meio através do qual a imagem audiovisual é transmitida e recebida assim também

como manipulada.

Elementos como o enquadramento e a montagem, a textura da imagem, assim como o

ambiente no qual o espectador verá estas obras, são características expressivas importantes no

audiovisual. Estes exemplos, que são de ordem técnica, são aspectos que influenciam os

procedimentos de criação e incidem sobre a estética da linguagem audiovisual.

“As máquinas de bens simbólicos possuem a capacidade de já produzir, em seu

próprio interior, uma linguagem específica a elas. Todos nós sabemos, por exemplo, a

diferença de se escolher um tipo ou outro de câmera fotográfica, para poder tirar fotografias de

uma determinada maneira desejada. Cada câmera, cada jogo de lentes, cada filme possui

estruturas simbólicas. Isso representa estruturas de linguagem que, independentemente do que

se intenciona criar, já permitem que estejamos em diálogo com uma dada realidade, ou seja, já

contêm seus ditames de linguagem a partir da construção de próprio dispositivo. Passamos a

perceber que não podemos conceber essas máquinas como um mero suporte na arte. Elas são

linguagens mediadoras entre nós e uma percepção do mundo.” (Mello, 2004, p. 39)

O vídeo ocupa um lugar de passagens, lugar por onde todas as imagens passam, sejam

elas do cinema, da televisão, da fotografia, da pintura ou do videoclipe (Bellour, 1997). É

neste lugar também aonde o vídeo veio se incorporando.

“O discurso videográfico é impuro por natureza, ele reprocessa formas de expressão

colocadas em circulação por outros meios, atribuindo-lhes novos valores, e a sua

‘especificidade’, se houver, está sobretudo na solução peculiar que ele dá ao problema da

síntese de todas essas contribuições.” (Machado, 1997, p. 190)

Para os autores Richard Grusin e Jay David Bolter, em seu livro Remediation, nenhum

meio supera o outro, mas incorpora os procedimentos do anterior. A mídia contemporânea,

assim como qualquer outra mídia desde a Renascença - passando pela pintura em perspectiva,

fotografia, cinema e televisão, - têm a tendência de incorporar e transformar umas as outras.

O vídeo, seja ele incorporado pelo cinema, pelas artes plásticas através da vídeoarte e vídeo

instalações, na televisão ou na web, possibilita tanto técnica como esteticamente este processo

que os autores conceituam como remediation2.

2 O conceito remediation é definido por Bolter e Grusin como “a lógica formal pela qual um novo meio reconfigura formas de medias anteriores”.

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O vídeo remodela o cinema e as artes plásticas. Assim também como a internet ou o

próprio cinema incorporam suas características expressivas remodelando-se.

As novas cinematografias ou a ruptura do cinema clássico com o moderno já estavam

muito próximas de elementos que podem estar relacionados ao vídeo. Estas incorporações e

transformações já estavam sendo feitas, mas o vínculo com o cinema ainda prevalecia. As

produções ainda se realizavam com película e as câmeras cinematográficas eram usadas para

estes filmes. Elementos como a textura da imagem, a perspectiva, o uso do plano e a

montagem ainda eram cinematográficos, mesmo que a relação com a organização da lógica

narrativa já tivesse mudando.

Uma das principais características na ruptura entre o cinema clássico e o moderno é a

sua relação como o tempo. A narrativa do cinema moderno passou a se dar muito mais em

função do tempo do que do espaço. O que implica inevitavelmente que as características

cinematográficas ainda estejam inseridas neste filmes, além de seguirem os modelos de

exibição clássicos. Elementos como o plano-seqüência, o branco e preto, a textura e

espessura da imagem, perspectiva, profundidade de campo, montagem, travellings e nitidez

da imagem são todas características que ainda estavam sendo amplamente usadas pelos

cineastas que iniciaram o cinema moderno. Diretores como Alain Resnais, no filme O Ano

Passado Em Marienbad, ou Orson Welles em A Marca da Maldade, faziam uso destes

elementos característicos do cinema mesmo que estivessem realizando uma profunda

mudança na relação da lógica narrativa do filme com o tempo.

Frame do filme O Ano Passado em Marienbad, Alain Resnais.

Frame do filme A Marca da Maldade, Orson Welles.

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Para Delleuze, a ruptura entre o cinema clássico e o moderno se dá em função da

relação da organização lógica da narrativa com o tempo. Nas novas cinematografias também

já havia muitas experiências em relação à montagem ou até mesmo antes, com cineastas como

Dziga Vertov e Sergei Eisenstein, onde a noção de montagem era fundamental para a

concepção de seus filmes. Diretores como Jean-Luc Godard e Alain Resnais também

consideravam a montagem um dos principais procedimentos da linguagem cinematográfica.

Esta relação tempo/espaço é um fator constituinte da narrativa clássica. E a linguagem

cinematográfica estabelecida a partir de Griffith era uma linguagem voltada para a noção

espacial do plano, e também da história e da ação dos personagens. Uma cena ou um plano

geralmente definia-se em função do espaço.

“À escala ‘homogenista’ dos planos, opticamente hierarquizante e filosoficamente

humanista do cinema, a videoincrustração opõe assim um principio de composição plástica em

que as relações espaciais são ao mesmo tempo fragmentadas e achatadas, tratadas sob modos

discursivos, mais abstratos ou simbólicos do que perceptivos, escapando a toda determinação

óptica que seria concebida a partir de um ponto de vista único estruturador da totalidade do

espaço da imagem.” (Dubois, 2004, p. 85)

Quando um personagem mudava de ambiente mudava-se a cena. Ou a mudança de

plano ocorria para afastar-nos ou aproximar-nos do objeto que estávamos vendo, em relação

ao espaço. Com o tempo, a técnica e a tecnologia no cinema foram possibilitando o

desprendimento deste espaço com câmeras mais leves, películas mais sensíveis e objetivas

mais aprimoradas. Assim, o caráter espacial foi perdendo seu foco e a ruptura do cinema

moderno com o clássico deu-se a partir da relação que os novos realizadores tinham com o

tempo da imagem e sua lógica temporal, muito mais do que sua lógica espacial. E além de

começarem a questionar e pensar a linguagem e a estética cinematográfica desde outro ponto

de vista que não aquele do discurso da transparência com um determinado fim. Neste caso,

quando se fala de tempo no cinema a montagem é um fator determinante.

A montagem ou, no caso do vídeo como nomeia Philippe Dubois, a mixagem de

imagens, é uma das principais mudanças na relação vídeo e cinema. A partir das construções

poéticas e procedimentos de criação, como a montagem e a planificação no cinema, e a

mixagem de imagens e a imagem no vídeo; é que se dão as incorporações entre cinema e

vídeo. O vídeo não como dispositivo, sinal, ou um simples meio por onde se transmitem

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imagens, mas o vídeo como uma estética, como um modo de fazer audiovisual em sua relação

a partir deste aspecto.

A diferença nesta relação entre cinema e vídeo acontece na forma como esses

construíram seus discursos a partir de incorporações feitas desde suas construções poéticas e

procedimentos de criação, apesar de todas as diferenças técnicas e tecnológicas implicadas

aqui.

O cinema estabeleceu-se como uma linguagem a partir de uma narrativa clássica linear

voltada para a ficção. O vídeo, predominantemente, quando utilizado como linguagem, não

procedeu desta forma. Mas sim muito mais a partir de seus aspectos plásticos, que remetem a

uma procura por outra construção poética, para criar outros sentidos, a partir de uma lógica

que não necessariamente se dá como uma narrativa e ficção. O vídeo foi amplamente

utilizado no âmbito das artes plásticas, e só depois foi incorporado ao cinema a partir dos anos

oitenta. Esta interferência se deu na obra de uma série de diretores como David Cronenberg,

Michelangelo Antonioni, Jean Luc Godard, Win Wenders, Peter Greenaway, Francis Ford

Coppola e depois, nos anos noventa, Lars Von Trier, David Lynch e Larry Clark, para citar

alguns. Estes realizadores viam no vídeo uma possibilidade de fazer cinema de uma forma

divergente do que a estabelecida pelo contexto hollywoodiano. O vídeo começou a ser

incorporado pelo cinema através de criadores que experimentavam esta nova linguagem a

partir de sua possibilidade de desestruturar e romper a narrativa clássica estabelecida pela

indústria cinematográfica.

“(...) é possível observar também o modo como o cinema é afetado ao ser

desconstruído pelos criadores que utilizam o vídeo digital, gerando, portanto, um novo

cinema.” (Mello, 2004, p. 68)

O vídeo cresceu muito mais a partir de explorações plásticas e também em seu caráter

documental. Ele não se estabeleceu como uma linguagem institucionalizada como aconteceu

ao cinema e sim a partir deste lugar de passagens entre imagens. E é porque o vídeo não se

estabeleceu como tal, que possibilita as transformações estéticas ou as interferências e re-

apropriações. Assim, o vídeo possibilita uma liberdade nos seus modos de criação, como

também permite que o cinema seja revisto por ele. Como é o caso do vídeo Love Stories,

realizado por Lucas Bambozzi em 1992. Neste vídeo, o artista, a partir de um fotograma do

filme Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais, constrói seu trabalho sobre relações

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amorosas recriando o significado original da imagem do filme3. Também o caso de Jean Luc

Godard com a série Histoire (s) du Cinema, uma reflexão sobre a história do cinema feita

através do vídeo. O vídeo ocupa um lugar de passagens, entre-imagens, processo e estado,

regido a partir de uma lógica temporal, por onde todas as imagens transitam.

“A imagem completa, o quadro videográfico, já não existe no espaço, mas na

duração de uma varredura completa da tela, portanto, no tempo. A imagem eletrônica

já não é, como eram todas as imagens anteriores, ocupação da topografia de um

quadro, mas síntese temporal de um conjunto de formas em mutação. (Machado,

1993, p. 52)

Dentro de suas características, diferentemente do cinema, o vídeo não utiliza

elementos tais como a perspectiva e a profundidade de campo. No vídeo constrói-se uma

lógica temporal que não é necessariamente narrativa. Ao contrário do cinema que trabalha

com planos, o vídeo cria imagens com um tipo de enquadramento articulado por outros

princípios que não os da perspectiva e da relação espacial.

O plano, o enquadramento e a montagem são fundamentais para a construção da

narrativa no cinema. Estes são os meios pelos quais um realizador ou diretor constrói a

estética e organiza seu filme dando sentido e significado para este. Estes elementos são

modificados quando utilizados pelo vídeo para outro fim, buscando sentidos e significados

distintos. Plano, enquadramento e montagem no cinema e no vídeo têm abordagens distintas

e são utilizados de formas diferentes.

“À noção de plano, espaço unitário e homogêneo, o vídeo prefere a de

imagem, espaço multiplicável e heterogêneo.” (Dubois, 2004, p.84)

Outros elementos que são característicos da composição estética da imagem

audiovisual e que diferem na relação entre cinema e vídeo são a plasticidade e a textura da

imagem, a organização dos planos ou das imagens no caso do vídeo, o efeito narrativo e o

tempo. Philipe Dubois nomeia alguns dos procedimentos de criação que voltaram ao cinema

depois que o vídeo foi incorporado a ele: câmera lenta, imagem congelada, revalorização da

sobre-impressão, gosto pela imagem dividida, multiplicada, incrustada, deformações ópticas

3 Christine Mello fez um amplo estudo sobre este trabalho em sua dissertação de mestrado “Conexões Processuais no Vídeo: estudo sobre a gênese do ‘Love Stories’ de Lucas Bambozzi”, 1999, PUC/SP.

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ou cromáticas, referência visual às outras artes, como a música e a pintura e a própria história

do cinema.

Estas transformações que foram se desenvolvendo nos anos oitenta, quando diversos

cineastas fizeram seus experimentos com o vídeo e também com a televisão, acarretaram uma

mudança profunda no contexto audiovisual. A partir dos anos noventa a relação entre cinema

e vídeo já havia saído do seu ponto inicial e, à medida que novos realizadores apareciam,

outros meios eram inseridos neste contexto, como foi o caso do videoclipe.

O videoclipe possibilita que estas incorporações e conexões entre os diversos meios

sejam feitas. Ele apresenta características de linguagem que provêm da videoarte, do cinema

assim também como de outros campos da arte. Arlindo Machado fala das características da

imagem eletrônica enquanto sistema de expressão.

“As anamorfoses e dissoluções de figuras, os imbricamentos de imagens umas nas outras, as

inserções de textos escritos sobre as imagens, os efeitos de edição ou de collage, os jogos das metáforas

e das metonímias, a síntese direta da imagem no computador não são meros artifícios de valor

decorativo; eles constituem, antes, os elementos de articulação do vídeo enquanto um sistema de

expressão.” (Machado, 2007, p.30)

Na obra de Michel Gondry, diretor de Bachelorette e Brilho Eterno de Uma Mente

sem Lembranças, podemos ver alguns exemplos em seus videoclipes. O diretor reconfigura

expressões do cinema, da vídeoarte, das artes plásticas, do teatro e do vídeogame e incorpora

em sua obra elementos de linguagem destes meios resignificando seus procedimentos de

criação. Um exemplo da referência ao cinema nos procedimentos de criação é o uso da

animação quadro a quadro, como por exemplo, a animação com desenhos ou bonecos de

plastilina. Efeitos que nos fazem lembrar tanto o cinema de animação de Norman McLaren

como os efeitos do cinema de Georges Meliés. Inserção de elementos da vídeoarte ou do

próprio vídeo como o uso do efeito caleidoscópio, solarização, chroma key, inscrustração,

sobreposição de imagens, e alterações na velocidade da imagem. No videoclipe Let Forever

Be, por exemplo, o diretor utiliza o próprio suporte vídeo para uma parte e película para a

outra, diferente da maioria dos clipes filmados inteiramente com película. Isto traz para a

imagem uma textura diferente daquela característica da película cinematográfica. Inclusive

neste trabalho o diretor faz todo um jogo de construção da imagem a partir da estética do

vídeo utilizando diversas construções poéticas características deste meio.

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Frames do videoclipe Let Forever Be, Michel Gondry.

Frame do videoclipe Joyeux Noël, Michel Gondry.

Frame do videoclipe Ma Maison, Michel Gondry.

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Frame do videoclipe Junior et Sa Voix D´or, Michel Gondry.

Frame do videoclipe La Ville, Michel Gondry.

Muito relacionada à videoarte e também ao cinema experimental, a linguagem do

videoclipe foi sendo desenvolvida tanto por cineastas que já haviam feito cinema e depois

foram fazer videoclipe, como também por diretores que nunca haviam feito cinema ou vídeo.

Estes diretores foram fazer videoclipe e acrescentaram a ele experimentações que

incorporavam tanto elementos do cinema como da videoarte.

O videoclipe, a partir destas incorporações tanto do cinema como do vídeo, tornou-se

um lugar para estes realizadores que em alguns casos fazem apenas videoclipes. Assim como

o vídeo e o cinema, o videoclipe tem características expressivas que foram tornando-se

próprias a partir de transformações e incorporações tanto de elementos do cinema como do

vídeo.

Um elemento importante para pensarmos o videoclipe é ver de onde seus principais

artistas vieram e também o fato de eles não trabalharem apenas com um meio, mas

transitarem por diversos como a fotografia, a publicidade, o cinema, a televisão, a música e as

artes plásticas. Como, por exemplo, o diretor Chris Cunningham, que iniciou sua carreira

com as artes plásticas e com a videoarte. É também o caso de Anton Corbijn, que se originou

como fotografo e fez seu primeiro longa metragem Control, filme que trata da história de Ian

Curtis o vocalista do grupo Joy Division, lançado em 2007. O diretor Jonathan Glazer

também passou do videoclipe ao cinema e fez filmes como Sexy Beast (2000) e Birth (2004).

Mark Romanek estreou no cinema com o filme Retratos De Uma Obsessão (2002) após ter

feito diversos videoclipes. O diretor Stéphane Sednaoui também teve sua carreira iniciada

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com a fotografia. É também o caso de Spike Jonze que fez uma carreira profícua no

videoclipe para depois fazer cinema com filmes como Quero Ser John Malcovich (1999) e

Adaptação (2002). Todos os nomes citados acima são exemplos de realizadores que vêm se

afirmando no videoclipe pela qualidade de seus vídeos, trabalhos estes considerados obras

importantes neste meio por seus aspectos de linguagem e formas expressivas. Estes diretores

e seus trabalhos também são considerados importantes por sua inventividade no formato do

videoclipe. Na sua maioria, eles não vieram do cinema, mas sim de outros meios, como a

fotografia, a videoarte, as artes plásticas, a música e posteriormente foram fazer videoclipes.

A interação entre as estruturas de linguagens destes diferentes meios foi incorporada ao

videoclipe gerando novos significados.

O videoclipe deixou de ser apenas um vídeo promocional para a indústria fonográfica.

No começo de sua história eram mostrados apenas os cantores e as bandas fazendo suas

performances na frente da câmera aparecendo durante o vídeo inteiro. O videoclipe passou a

ser considerado uma obra audiovisual com características bastante expressivas. No texto a

Reinvenção do Vídeo Clipe (2001, p. 173), Arlindo Machado propõe uma reflexão sobre o

videoclipe como um novo espaço audiovisual de onde surgem novas propostas de construções

de linguagem e expressões poéticas. Estas novas experimentações estariam ligadas tanto ao

cinema de vanguarda dos anos 20 como ao cinema experimental dos anos 50 e 60 e a

videoarte dos anos 60 e 70. Arlindo Machado analisa, a partir desta proposta, o videoclipe

como uma forma de onde derivam várias tendências que possibilitam sua redefinição,

revelando diversas características estilísticas próprias deste meio que validam seu lugar dentro

do plano do audiovisual como um novo campo de expressão.

Aqueles diretores trouxeram experimentações para o videoclipe a partir de diversos

elementos. Incorporando características expressivas para a construção de uma linguagem que

não mais fazia do videoclipe uma seqüência de imagens ilustrativas da música.

É o caso, por exemplo, do clipe A Song for the Lovers dirigido por Jonathan Glazer.

Neste trabalho, vemos pouquíssimos cortes, quase um plano seqüência, uma única cena com

um único cenário, onde existem longos momentos de silêncio além de um diálogo que

interrompe a música durante o vídeo. O personagem liga e desliga a música quando quer.

Um jogo de cena entre a música e o silêncio, onde o personagem escuta a música no rádio

enquanto se arruma e come.

O processo de realização do videoclipe tornou-se mais sofisticado tanto na produção

como no uso dos procedimentos de criação que antes não eram utilizados por este meio. Os

efeitos especiais realizados na pós-produção, e efeitos de edição característicos do vídeo como

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o reverse, a alteração na velocidade da imagem, a sobreposição de imagem, o chromakey,

assim como a criação de histórias e personagens que fogem à necessidade figurativa de

caráter narrativo do cinema. O videoclipe se apresenta com características muito mais

plásticas e rítmicas assim como a tendência a uma organização não linear dos planos para

criar seu universo.

“O clipe, com sua ausência de hierarquia entre o velho e novo, o tecnológico e o

artesanal, coloca em movimento todo o repertório da ‘biblioteca’4 que, ao encontrar a memória,

a nostalgia e os estados emocionais dos espectadores, ganha um novo corpo, um novo

significado e um novo contexto a partir de seus três elementos formadores: o som, a imagem e

o tempo, criando na cultura de massa e para a cultura de massa.” (Oliva e Rezende, 2007, p.11)

Outro elemento importante é a busca por um tratamento da textura da imagem através

de recursos fotográficos como o uso de um tipo de iluminação que busca ressaltar a

plasticidade da imagem. O uso de processos inversos aos que são geralmente utilizados pelas

formas tradicionais e profissionais da indústria também fazem parte de seus procedimentos de

criação, como trabalhar com películas de 8mm e 16mm e depois fazer diversos tipos de

processamentos nos laboratórios para criar inúmeras formas de rasuras e marcas na imagem.

Características como imagem muito granulada, o branco e preto, cores muito fortes e

contrastantes, fotografia estourada, são alguns procedimentos utilizados no videoclipe como

na obra de Anton Corbjin e Stephane Sednaoui. Estão presente construções poéticas como:

distorções, desintegração das formas, instabilidade dos enunciados, anamorfose e dissolução

de figuras, inserção de texto escrito, collage e abstração como recurso formal (Arlindo

Machado, 2007). E, com a crescente possibilidade tecnológica muitos videoclipes se

caracterizam por seus efeitos especiais realizados em pós-produção. O videoclipe também

trabalha com um modo de representação diferente daquele proveniente da fotografia, do

cinema ou da pintura clássica, figurativa, realista ou documental. Procedimentos estes muito

característicos da videoarte e do cinema experimental.

A relação com o cinema no universo do videoclipe se dá não somente a partir de seus

aspectos de linguagem, características expressivas e aparato técnico, mas também faz

referência ao imaginário cinematográfico. Alguns casos são os vídeos de Spike Jonze It´s Oh

So Quiet onde vemos uma referência aos musicais dos anos quarenta, e também o vídeo

4 Para Fernando Oliva e Marcelo Rezende o conceito “biblioteca” é utilizado para definir o uso que o videoclipe faz de diversos elementos da cultura atualizando-os e gerando novos significados. E assim trazendo à tona a memória do espectador.

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Sabotage que nos faz lembrar um filme policial dos anos setenta. Outro exemplo é o

videoclipe dirigido por Jonathan Glazer Karmacoma referência ao filme O Iluminado de

Stanley Kubrick.

Frame do videoclipe Karmacoma, Jonathan Glazer.

Frame do videoclipe It´s Oh So Quiet, Spike Jonze.

Um realizador que marca bastante seus vídeos com o uso de efeitos especiais para

criar todo um universo e personagens bastante particulares para cada um de seus trabalhos é

Chris Cunningham. Assim como Michel Gondry se caracteriza por criar um universo lúdico

passando pelo diálogo intenso com as artes plásticas, os jogos, o vídeogame e o cinema para

criar seus trabalhos.

Frame do videoclipe Bolide, Michel Gondry.

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Frame do videoclipe Fell in Love With a Girl, Michel Gondry.

Frame do videoclipe All is Full of Love, Chris Cunningham.

Frame do videoclipe Around the World, Michel Gondry.

E é interessante ver também que estes diretores realizaram seus trabalhos em

videoclipe com músicos que também dentro do ambiente da música são considerados muito

inventivos como é o caso de Björk, Aphex Twin, Portishead, Radiohead, Red Hot Chilli

Peppers, Joy Division, Massive Attack, Nine Inch Nails, Fatboy Slim, Beatsie Boys,

Chemical Brothers, The White Stripes e outros.

A relação entre os diretores e as bandas ou cantores se transforma em uma parceria

autoral. Estes diretores criam universos e estéticas tão particulares que acabam se

identificando com a própria estética da música para qual o videoclipe é feito. Como é o caso,

por exemplo, da parceria entre Michel Gondry e Björk. Ou no caso também da parceria entre

Chris Cunningham e Aphex Twin.

Alguns destes diretores não efetuaram a migração para o cinema, como é o caso de

Chris Cunningham e que ficaram no ambiente do videoclipe. E, outros foram fazer filmes

como Spike Jonze e Michel Gondry. No ambiente que estamos tratando, estes realizadores já

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não obedecem à concepção clássica cinematográfica e tampouco obedecem à lógica do vídeo.

Eles apresentam outra proposta estética e narrativa, como é o caso de Michel Gondry, que

insere tanto em seus videoclipes como em seus filmes elementos que dialogam com o cinema

e com o vídeo, além de outras artes.

O filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças de Michel Gondry foi

lançado em 2004 e é o segundo longa-metragem deste diretor. O primeiro foi Natureza

Humana, de 2001. Em 2006 ele lançou La Science des Rêves, ainda inédito no Brasil, e em

2008 será lançado o filme Be Kind Rewind.

Antes de fazer seu primeiro longa-metragem, Michel Gondry já tinha desenvolvido um

amplo trabalho no formato do videoclipe (principalmente os vídeos que fez com a cantora

islandesa Björk) e já era conhecido por ter sido uns dos diretores que reinventaram este meio

por seu trabalho particularmente original. Fez também diversos curtas-metragens e spots

publicitários, além de outros trabalhos. Michel Gondry nasceu em Versailles, na França, e

optou por estudar artes em uma escola de Paris. Começou sua carreira fazendo os vídeos de

sua própria banda Oui-Oui e quando um desses vídeos exibidos na MTV foi visto por Björk

esta o chamou para dirigir seu primeiro videoclipe da carreira solo, Human Behaviour. Foi o

sucesso alcançado com esses trabalhos que o possibilitou dirigir seu primeiro filme, Natureza

Humana (2001). Desde então, Michel Gondry tem continuado sua carreira no videoclipe e

no cinema, e com o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças ganhou destaque e

reconhecimento também na indústria cinematográfica (este filme concorreu para prêmios em

três categorias no Globo de Ouro, ganhou o Oscar por melhor roteiro original e também um

prêmio da British Academy of Film and Television Arts). Neste filme de Michel Gondry

vemos justamente uma maneira de tratar tanto a linguagem cinematográfica quanto os

diversos elementos que nela estão inseridos, procurando uma abordagem estética com

características diretamente relacionadas a seus experimentos na área do videoclipe. A

estrutura lógica da narrativa, a relação com o tempo da imagem e a forma de construção da

linguagem a partir de suas características expressivas foram elementos incorporados ao

cinema a partir do videoclipe. A busca pela plasticidade da imagem, o uso da música, a

textura, a construção poética mais do que figurativa, a sobreposição de camadas com o uso de

diversos elementos como voz, palavra, sons, imagens fotográficas, objetos de cena, voz off,

desenhos e cenários fazem parte dos procedimentos usados por Gondry tanto no videoclipe

como no cinema. Estes elementos interagem resignificando-se no filme servindo aos seus

propósitos narrativos e estéticos. É na forma como este diretor particularmente usa os

elementos do videoclipe no filme, explorando outra lógica narrativa dentro do cinema, que

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nos permite fazer uma análise dos procedimentos de criação identificando as incorporações e

relações feitas a partir do videoclipe no cinema.

Frame do videoclipe Possibly Maybe, Stéphane Sednaoui.

. Frame do videoclipe La Tour de Pise, Michel Gondry.

.

Frame do videoclipe The Perfect Drug, Mark Romanek.

Frame do videoclipe The Perfect Drug, Mark Romanek.

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Frame do videoclipe Human Behaviour, Michel Gondry.

Frame do filme Natureza Humana, Michel Gondry.

Frame do filme La Science des Rêves, Michel Gondry.

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Cartaz do filme Be Kind Rewind, Michel Gondry.

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CAPÍTULO II

Bachelorette: procedimentos de criação no videoclipe

Bachelorette, Michel Gondry.

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CAPÍTULO II

Para Michel Gondry, o videoclipe não é apenas uma ilustração da música, mas sim um

meio para criar um outro universo a partir da música. No videoclipe Bachelorette, o sexto

videoclipe dirigido por ele para a cantora Björk, um universo se constrói. E, se prestarmos

atenção na letra da música composta por ela, são dois universos paralelos onde as imagens

que aparecem na letra da música interagem criando idéias para a construção das imagens do

videoclipe.

Em Bachelorette vemos uma história sendo narrada, uma história à moda dos filmes

de ficção. Esta história não se desenvolve com começo, meio e fim e nem caminha em uma

única direção. Aqui temos uma personagem, Bachelorette, e uma trama, e podemos

acompanhá-las desde um ponto de vista não linear, como uma rede que se abre em ciclos.

Este videoclipe apresenta uma forma de construção narrativa que se desenvolve em rede.

Tomando como ponto de partida a proposta teórica desenvolvida pela autora Cecilia

A. Salles em seu livro Rede da Criação: Construção da Obra de Arte, podemos, a partir de

alguns conceitos, desenvolver uma análise deste videoclipe. Esta análise tenta dar conta de

um procedimento de criação dentro da linguagem audiovisual que já não mais poderíamos

entender se fizéssemos uma leitura linear da obra. Uma análise das relações dos

procedimentos de criação em seus aspectos dinâmicos, estabelecendo assim uma leitura não

linear da obra. A não linearidade e a construção em rede são aspectos importantes para

identificar a transformação na narrativa deste videoclipe. A proposta de analise do vídeo

elaborada por Christine Mello, em seu doutorado Extremidades do Vídeo, traz estas questões

em sua abordagem.

“(...) a investigação Extremidades do Vídeo traz à luz processos dinâmicos

não-lineares de leitura sobre o contexto abordado, já que o vídeo sempre resistiu a

análise de seus fenômenos como uma categoria homogênea, regular previsível e pura.”

(Mello, 2004, p. 32).

A análise e leitura não linear assim como as relações estabelecidas entre as linguagens

do cinema e do videoclipe em seus aspectos dinâmicos permitem uma aproximação dos

procedimentos de criação de ambos os meios e a forma como estes se relacionam a partir de

suas características expressivas.

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40“A não linearidade nos leva ao conceito de rede, embora este abarque muitas outras

questões. Pierre Musso (2004) fala da explosão deste conceito que, como já mencionamos na

apresentação, parece ser um novo paradigma ligado a um pensamento das relações.” (Salles,

2006, p. 23)

Neste videoclipe, Michel Gondry, utiliza diferentes formas de linguagem a partir do

cinema, da fotografia e do vídeo, misturando-as e sobrepondo-as para, a partir daí, criar um

procedimento narrativo que dá sentido à história que está sendo contada e ao videoclipe.

Neste videoclipe o diretor utiliza estes elementos que fazem parte dos procedimentos de

criação da linguagem audiovisual para dar conta de uma proposta estética que está

diretamente relacionada com a música para a qual o videoclipe foi feito.

É nosso interesse analisar como o diretor faz isso, a relação que ele estabelece entre os

diferentes elementos utilizados no videoclipe e a forma como estes estão conjugados

permitindo esta leitura.

Michel Gondry utiliza-se de diferentes recursos de linguagem para estabelecer esta

narrativa em rede. E é na relação destes elementos que acontece a historia que está sendo

narrada. Assim ocorre a transformação. É interessante observar como as relações e

interações entre procedimentos de criação no ambiente do audiovisual tem ressonância com

procedimentos macro da cultura como as apontadas por Morin.

“De um modo geral, poderíamos observar essas inferências sob o ponto de

vista da transformação (ou transformações) que opera (m) na medida em que as

interações como ações recíprocas modificam o comportamento ou a natureza dos

elementos envolvidos (Morin, 2002, apud. Cecilia A. Salles, 2006, p.34)”.

Michel Gondry não utiliza apenas elementos visuais e sonoros, mas também a palavra

para dar este efeito. A principal forma que se utiliza neste videoclipe é a sobreimpressão de

imagens mas também a sobreimpressão da palavra com a imagem, do som com a imagem,

voz off e música. A sobreimpressão utlizada no videoclipe permite estabelecer continuidade e

conexão entre as multiplas camadas e imagens permitindo assim o acompanhamento da

história.

Este recurso da sobreimpressão utilizado amplamente por Gondry neste videoclipe é

uma das características principais, da maneira como o vídeo, através da mixagem de imagens

cria textura e profundidade. Este videoclipe, seguindo a sua narrativa proposta, também

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permite uma lógica de leitura muito mais vertical e multipla, do que aquela horizontalidade da

narrativa cinematográfica.

“A sobreimpressão visa sobrepor duas ou várias imagens, de modo a produzir

um duplo efeito visual. Por um lado, efeito de transparência relativa: cada imagem

sobreposta é como uma superficie translucida através da qual podemos perceber outra

imagem, como em um palimpsetso. Por outro lado, efeito de espessura estratificada,

de sedimentação por camadas sucessivas, como num folheado de imagens. Recobrir

e ver através. Questão de multiplicação da visão.” (Dubois, 2004)

Estas camadas que se sobrepõe neste video, tanto no nível da linguagem (voz, palavra,

sons, música, imagem) como dentro da própria história (cenários que se sobrepõem), e a

própria história que se desenvolve desta maneira, vão acontecendo e interagindo uns com os

outros, transformando-se e dando assim continuidade à narrativa. Aqui se estabelecem

diferentes relações com os tempos das imagens através da sobreposição destas camadas ou

“interfaces matéricas” (Christine Mello, 1999). Uma operação que também acontece no vídeo

de Lucas Bambozzi Love Stories como apontado pela mesma autora ao analisar os

procedimentos de criação deste trabalho.

“Essas interfaces são como superfícies (de separação entre estados diferentes

de qualidade de matéria sonora e imagética) que se unem, em cadeia, a outras

superfícies (de separação entre estados diferentes de qualidade de tempo). Transição

entre elemento matérico e elemento temporal, de uma instância a outra. Trata-se de

um processo múltiplo, de heterogênese, em que a camada final surge como uma

complexa sucessão de fases diferentes: um fragmento, que gera um conjunto, que é

em si o próprio texto novo formado.” (Christine Mello, 1999, p. 112)

Michel Gondry utiliza-se desses recursos transformando-os em uma linguagem própria

para este videoclipe e cria um universo que dá conta da letra da música composta por Björk.

Ao conjugar estes diversos elementos, relacionando-os, através principalmente da

sobreimpressão, Michel Gondry, opera uma transformação na narrativa linear e consegue

estabelecer uma contrução da história que permite a continuidade diegética.

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Bachelorette, Michel Gondry.

O vídeo começa com um plano branco e preto de uma casinha de madeira no meio da

floresta. A íris da câmera abre e logo percebe-se que a textura da imagem é diferente: esta é a

primeira imagem de uma seqüência introdutória à história onde todos os elementos se

desdobrarão depois em diversos níveis narrativos e camadas de imagem.

Todas as imagens desta primeira seqüência são branco e preto e ao fundo, sem música,

escutamos uma voz off que coloca o espectador diretamente dentro do universo da história

protagonizada pela personagem de Björk, Bachelorette: “One day I found a big book buried

deep in the ground. I opened it, but all the pages were blank. Then, to my surprise, it started

writting itself.” Isso é dito dentro da seqüência e a frase segue, mas agora estamos dentro do

livro. “One day, I found a big book buried deep in the ground...” A partir deste momento

inicia-se a música.

Bachelorette, Michel Gondry.

Diversos elementos desta seqüência indiciam o caráter do videoclipe e permitem ao

espectador entrar neste universo rapidamente. Geralmente os clipes feitos para serem

exibidos na televisão não têm muito tempo de duração. Esta característica exige da parte dos

criadores uma economia narrativa que se resolva e permita a identificação da história

rapidamente.

Neste vídeo, Michel Gondry, resolve o problema de contar uma história em pouco

tempo criando níveis narrativos diferentes que contam a mesma coisa, uma dentro da outra.

Estes niveis formam uma rede que liga os acontecimentos da história dentro dela mesma e

também através dos procedimentos de criação. São procedimentos tais como a

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sobreimpressão de imagens, a voz off com a imagem, a palavra sobre a imagem, a música e a

utilização de cenários dentro do quadro.

Ao contrário do que normalmente ocorre nos clipes onde os planos são extremamente

fragmentados, curtos, sem continuidade narrativa, neste vídeo Michel Gondry utiliza-se destes

níveis de construção e desconstrução de elementos de linguagem e níveis narrativos para criar

o efeito inverso. Estes níveis narrativos são cinco: a seqüência branco e preto, o livro, o 1º.

espetáculo, o 2º. espetáculo e o 3º. espetáculo. Todos estes cinco níveis abrem-se uns aos

outros criando uma continuidade na história que permite ao espectador acompanhá-la de uma

forma não linear.

Este niveis narrativos desdobram-se através dos recursos de linguagem utilizados por

Gondry. Recursos como a montagem e a sobreimpressão de imagens na seqüência branco e

preto. Assim também como os cenários que se constróem dentro dos espetáculos

continuamente, dando o efeito de uma montagem dentro do plano. Assim nos remetemos à

letra da música de Björk através de idéias que estão em alguns momentos da canção como:

“I´m a three that grows hearts, one for each that you take...”, “We´re circle no one can

break...” ou “Life is a necklace of fears, your uncried tears on a string, our love will untie

them…” A letra da música constantemente nos remete à forma narrativa em rede deste

videoclipe com idéias como uma árvore que cresce em galhos e raizes, circulos e um colar.

As características das imagens da seqüência branco e preto complementadas pela voz

off se resumem em ações pontuais da personagem e se remetem ao passado e a um

determinado nível de “realidade”: o branco e preto, a textura da imagem, a íris abrindo-se no

inicio. Em um primeiro momento pode-se estar em um filme mudo do inicio da história do

cinema. Mas, à medida em que as imagens sucedem-se também passamos a imagens

congeladas ou fotos filmadas com zoom in, característicos de documentários, daqueles jornais

antigos que passavam no cinema ou telejornais, filmes dos anos sessenta que costumavam

enfatizar as ações dos personagens utilizando-se desse recurso, ou àqueles filmes super 8

feitos em casa pelas pessoas.

Enquanto as imagens acontecem, o livro entra em primeiro plano em diversos

momentos e se escreve dando continuidade à história que está sendo contada pelas imagens.

Em um primeiro momento o lugar da “realidade” acontece com as imagens branco e preto e

em um segundo momento acontece a história que se escreve no livro. A história é a mesma,

mas em níveis narrativos diferentes.

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Bachelorette, Michel Gondry.

Assim como os elementos utilizados pelo diretor, as histórias se sobrepõem. Michel

Gondry sobrepõe diversos formatos, elementos visuais e sonoros que se complementam para

dar conta da economia narrativa e dos diferentes níveis narrativos da história contada.

A sobreimpressão é aqui o principal recurso utilizado por Gondry para o tratamento da

história desde sua linguagem. Quando as sobreimpressões acontecem, as relações se

estabelecem, permitindo que a história avance e seja acompanhada pelo espectador.

O primeiro nível é este da seqüência da introdução com as letras do livro, o livro e a

voz off. Além das imagens branco e preto caracterizadas pelo tipo de película com instantes

congelados e zoom in temos a sobreimpressão de imagens. O livro em primeiro plano com as

letras aparecendo sobre a imagem escreve e conta a história, em outros momentos temos

apenas as letras sobre a imagem, e depois também temos o livro dividindo a imagem onde a

ação acontece. Dentro desta seqüência vemos uma outra seqüência de montagem quando o

personagem sai de seu lugar na floresta e inicia o trajeto até a cidade. Aqui várias imagens

em um mesmo plano aparecem sobrepostas: ruas, trens, Bachelorette andando na rua e, em

alguns momentos, letreiros da cidade que passam sobre a imagem localizando o espectador

espacialmente. Neste primeiro nível da história contada pelas imagens o espectador é

conduzido até o momento em que se passa a um terceiro nível da história.

Este terceiro nivel é a representação desta história “real” em um espetáculo da

Broadway. Neste momento, tudo se torna colorido e as imagens branco e preto e o livro

deixam de ser a referencia para continuar a narrativa. O espectador passa a acompanhar a

história que já havia sido contada nos dois níveis anteriores desde este lugar que agora é

válido: o espetáculo teatral. Aqui também vemos a sobreimpressão de elementos, mas não

mais de vários planos de imagem, uns sobre os outros, mas sim de recursos utilizados dentro

do espetáculo como o próprio cenário.

Na medida em que a história avança os cenários irão se transformando continuamente

desdobrando-se em várias camadas. As próprias árvores que estão ao fundo são colocadas de

forma tal que se pode ver que estão umas atrás das outras. Michel Gondry faz aqui o que antes

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havia feito através de efeitos de edição e montagem mas agora dentro do próprio cenário,

como uma espécie de montagem dentro do plano. Como no momento em que Bachelorette

entra em um trem mostrado de frente e este se abre passando a ser o interior do trem.

Através deste recurso, desenha-se assim, um circulo ou uma espiral que não termina

nunca de crescer, como os galhos de uma árvore, um livro que se escreve, depois se apaga, e

novamente começa a escrever-se, em rede.

Bachelorette, Michel Gondry.

A seqüência branco e preto vai até o momento em que o livro My Story é adaptado

para a Broadway. As árvores tornam-se prédios e as letras com as frases do livro circulam

embaixo dela. Há também letras com frases do livro no chão do cenário por onde

Bachelorette caminha. Neste momento a câmera percorre o cenário e tudo que aparece no

plano irá sobrepondo-se em diversas camadas. Cenas que antes havíamos visto no filminho

branco e preto desenrolam-se uma atrás das outras sobre o cenário. Isto irá acontecendo até o

momento em que novamente Bachelorette está no escritório de um produtor de espetáculos

como antes, mas desta vez dentro do espetáculo, aqui abre-se outro nível do cenário. E assim

a história começa novamente com um cenário dentro do cenário, e eles irão diminuindo cada

vez mais. O trem agora já não é mais um trem cenográfico, e sim apenas um cartão grande

pintado. Michel Gondry cria com estes recursos profundidade e achatamento da imagem, não

através da imagem, mas dentro dela, primeiro um depois o outro.

Bachelorette, Michel Gondry.

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Neste segundo espetáculo começamos a ver novamente as imagens branco e preto que

continuam a história dando seqüência ao que havia sido contado até aqui. Estas imagens se

sobrepõem e intercalam-se com os três níveis da narrativa que se alternam paralelamente. Ao

mesmo tempo em que a história é continuada, voltamos ao início com um terceiro cenário que

se abre. Um recuo da câmera desde o alto na platéia principal mostra ao espectador esses três

níveis. Esta plano permite assim uma compreensão do que está acontecendo no videoclipe,

não na história, mas sim em como ela está sendo contada. A partir deste ponto ao invés de

abrir, tudo começa a se fechar.

Agora nada se inicia e a continuação será o final que irá se fechando à medida em que

os cinco níveis narrativos se intercalam uns com os outros. Aqui começa o achatamento de

todas as imagens. As letras que aparecem no livro mostrado desde o primeiro nível na

seqüência branco e preto começam a desaparecer e as páginas ficam em branco. Todo este

universo entra em colapso e quando Bachelorette desce do último cenário no qual estava, tudo

começa a se transformar em vegetação. As páginas do livro estão em branco e Bachelorette

correndo de um cenário a outro vê tudo se desfazendo e tornando-se uma floresta. Até que as

plantas começam a avançar sobre ela tomando o livro de sua mão. Então o livro cai e vemos

as plantas cobrindo-o.

Da mesma forma em que desde o começo camadas e camadas destes diferentes

espaços e tempos iam se sobrepondo uns aos outros, quando o final acontece, essas camadas

desaparecem como as letras do livro. Isto acontece até o ultimo plano quando vemos

Bachelorette novamente na floresta, sozinha, em uma imagem plana sem níveis de

profundidade atrás da personagem, mas apenas a vegetação.

Diagrama das seqüências de Bachelorette.

2 3 4 51

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1. seqüência branco e preto

2. o livro

3. 1º. Espetáculo

4. 2º. espetáculo

5. 3º. espetáculo.

Através da articulação dos procedimentos criativos escolhidos por Michel Gondry para

a narrativa do vídeo vemos as relações entre eles desenvolvendo-se e interagindo de uma

forma tal que a narrativa da história acontece não linearmente, e sim em uma espécie de rede

que cresce a partir da 1ª. sequência até a última.

Quando o vídeo termina e tudo começa a desaparecer ele não volta ao início mas a um

outro começo. Pois o ultimo plano não é branco e preto e também a personagem está vestida

de outra maneira, já se transformou através da história. É na relação entre as imagens,

música, voz off, cenários, na maioria dos casos através da sobreimpressão que o espectador

acompanha está história que vai se transformando à medida em que avança.

Bachelorette, Michel Gondry.

A proposta de Cecilia Salles para uma leitura não linear da obra, assim como a rede que

constrói a relação e conexão de diversos procedimentos de criação, permitem ver a ação

transformadora gerada por estas conexões e relações assim como sua característica de não

linearidade. Esta abordagem da autora nos possibilita trabalhar os aspectos da análise dos

procedimentos de criação no videoclipe e no cinema em seu caráter de movimento e de

relações e conexões estabelecidas. Estas características são fundamentais para identificar a

transformação narrativa que ocorre a partir destas relações assim como o aspecto não linear

característico da narrativa destas obras.

O videoclipe se apropria de elementos do cinema, além se seu aparato tecnológico e de

produção, transformando suas características de linguagem. Esta operação pode nos remeter

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ao próprio cinema ou à maneira como a indústria do espetáculo funciona. Como acontece no

videoclipe Bachelorette. Esta operação se dá também com o vídeo seja como dispositivo ou

linguagem através de algumas de suas características expressivas, que são muito mais

plásticas do que narrativas. A transformação permite-nos buscar um olhar diferente do

cinematográfico e do vídeográfico.

“A contemporaneidade propicia, além da apropriação de novas linguagens, o

surgimento da obra hibrida, fruto da interação midiática. Refere-se a uma nova relação entre

os elementos, em que esses modificam-se por intermédio de recurso criativos apoiados em

diferentes suportes. Um campo de sucessivas interações” (Mello, 1999, p. 104)

A partir do momento em que entramos no contexto das imagens audiovisuais híbridas,

como é o caso do videoclipe, podemos identificar elementos do cinema, da televisão, do vídeo

e de outros meios. Esta mistura de procedimentos de criação criam novas possibilidade de

interação entre estes diferentes meios. Assim também como estabelecem novos códigos de

leitura e criação da imagem.

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CAPÍTULO III

Procedimentos de criação do videoclipe no cinema.

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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CAPÍTULO III

O que possibilita que Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças seja o

objeto desta análise é a relação que as características de linguagem deste filme estabelecem

com o videoclipe. E também pela forma como o diretor, Michel Gondry, particularmente usa

os elementos do videoclipe no filme para explorar outra forma narrativa dentro deste meio.

Aqui estamos falando de linguagem e narrativa híbrida, pós-vídeo e pós-cinematográfica, que

incorpora, mistura e transforma procedimentos de criação provenientes de outros meios. A

estética pós-cinematográfica apresenta transformações na linguagem que são de ordem

tecnológica, estética e ontológica, através de seu enfrentamento com novos meios como o

vídeo, a TV, e os meios digitais (Arlindo Machado, 2004).

“(...) o cruzamento da linguagem da publicidade com o filme de ficção, o do documentário e a

linguagem de videoclipe não qualifica nem desqualifica a priori nenhum desses meios e linguagens.

Mas, sem dúvida, há conseqüências estéticas, nessa hibridação que não são ‘neutras’ ou ‘irrelevantes’.”

(Bentes, 2007, p.125)

Analisando o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças como um todo é

possível delinear a influência que a narrativa cinematográfica sofreu a partir da incorporação

de elementos do videoclipe. As incorporações dos procedimentos de criação do videoclipe

exercem uma transformação na narrativa do filme. Considerando também que Michel Gondry,

tem um amplo trabalho dentro deste outro meio. As características expressivas do cinema se

misturam às do videoclipe transformando a lógica pela qual a narrativa do filme funciona.

Os procedimentos de criação utilizados por Michel Gondry, tanto no videoclipe como

no cinema, possibilitam uma construção narrativa característica deste diálogo. A linguagem e

a narrativa no filme mostram um tratamento da linguagem cinematográfica, e os diversos

elementos que nela estão inseridos, procurando uma abordagem estética com características

diretamente relacionadas a seus experimentos na área do videoclipe. Através da análise de

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças podemos identificar algumas características

no filme que nos remetem a este processo da mistura de linguagens.

A não linearidade e a construção em rede são aspectos importantes para identificar a

transformação na narrativa do filme. A análise e leitura não linear destas obras e as relações

estabelecidas entre as linguagens do cinema e do videoclipe em seus aspectos dinâmicos

permitem uma aproximação dos procedimentos de criação de ambos os meios, assim como a

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forma em que estes se relacionam a partir de suas características expressivas. As relações

estabelecidas entre as duas linguagens assim como a característica de não linearidade e

construção em rede são as formas pelas quais a transformação acontece. Para Cecilia Salles

estas incorporações, no processo criativo, acontecem como interações que geram novas

possibilidades. Neste caso a “ação geradora” ocorre através destas incorporações que no

cinema desenvolvem-se em novas possibilidades expressivas dentro deste meio.

“É interessante observar a conseqüência dessa interação sob a forma de ramificação de novas

possibilidades – uma ação geradora.” (Cecilia Salles, 2006, p.25)

No filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças o diretor consegue misturar

características do cinema às do videoclipe trazendo à tona uma narrativa que serve a história

que está sendo contada. A história e a forma como ela é contada andam juntas e através da

forma a história adquire significado.

“Não se pode tratar forma e conteúdo como entidades estanques. Se, por um lado, vê-se o

conteúdo determinando ou falando através da forma, isto é, a forma como recipiente de conteúdo, não

se pode negar que a forma é a própria essência do conteúdo. É a visão de forma como poesia feita de

ação e não mero automatismo. Se o conteúdo determina a forma, esta, por sua vez, representa o

conteúdo.” (Salles, 2004, p. 73)

Assim como a narrativa construída tem relação direta com a história que está sendo

contada, esta também nos remete ao processo de construção da obra de arte e ao percurso

criador. A rede de conexões e a construção em rede também têm relevância para entender

como a narrativa deste filme funciona. Um tipo de narrativa que acontece em rede, uma

história que nos fala de lembranças e da desconstrução e reconstrução da memória. Através

da memória do personagem principal que se desfaz e refaz, tanto quanto as imagens.

No filme, as imagens são desconstruídas e reconstruídas interagindo e misturando-se

umas às outras, gerando novas imagens. Este processo de construção no filme interfere

diretamente no tempo e na lógica da narrativa. Em Brilho Eterno de uma mente sem

Lembranças estamos falando da construção de outro tempo narrativo e também de outra

lógica. A interação das imagens vai construindo esta narrativa em rede que se define em seu

próprio processo de expansão. São as relações que vão sendo estabelecidas durante o filme

que constituem a obra (Cecilia Salles, 2006).

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No estudo de Cecilia Salles sobre o processo de construção da obra de arte esta

característica aparece quando ela menciona a função da memória, do tempo e da percepção no

processo criativo do artista. Estas reflexões dão embasamento para a característica de

interatividade e continuidade do processo criativo e o papel da memória neste contexto. A

autora também enfatiza a relação que este procedimento tem com um aspecto macro da

cultura, na memória do indivíduo e na memória coletiva.

“Cada nova impressão impõe modificações ao sistema. Como memória é ação, ou seja,

essencialmente plástica, as lembranças são reconstruções: redes de associações, responsáveis pelas

lembranças, sofrem modificações ao longo da vida. Nós nos modificamos e assim altera-se a percepção

que temos de nosso passado mudando nossas lembranças.” (Salles, 2006, p. 70-71)

Este procedimento de criação, onde uma imagem se mescla a outra formando uma

nova imagem, incide sobre a plasticidade da imagem e sua textura, transformando-as. Este

recurso aparece no filme através da inserção de procedimentos de criação que são recorrentes

no videoclipe como vimos nos capítulos um e dois.

Michel Gondry trabalha muito com a textura e a plasticidade da imagem através da

fotografia, da direção de arte e dos cenários, logrando ressaltar estas qualidades através da

composição de imagem. No filme estão presentes características como a deformação da

imagem e som, imagens fora de foco, fotografia subexposta ou sobrexposta, o uso de cores

fortes, a aparição do flare5, o uso de desenhos substituindo imagens e a composição da

imagem feita pela câmera. Estas características são elementos usados pelo diretor para mudar

ou deformar a imagem. Ele utiliza elementos visuais e sonoros construindo camadas na

imagem em sua própria superfície. O som, a voz off, e a música também criam camadas. As

camadas de imagem e de som também se relacionam gerando novas instâncias narrativas.

5 Os flares são manchas coloridas que aparecem nas fotos quando fotografamos na contraluz. Estas manchas podem assumir a forma circular ou poligonal. Elas acontecem devido à reflexão da luz entre os elementos da objetiva. Tanto na fotografia quanto no cinema o flare é considerado um erro que suja a imagem. O uso de flare aparece aqui para efeitos estéticos do filme, assumindo o erro, para dar uma característica espontânea ao filme.

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Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

A mudança ocorre na textura e na plasticidade da imagem, na sua própria superfície.

Estas características, como a não linearidade, “o caráter de ruídos e de desconfiguração para a

representação visual, distorções nas linhas e nos pontos de sua trama”, são características do

videoclipe incorporadas à linguagem deste filme (Christine Mello, 2004). São características

de linguagem que vêm sendo exploradas no plano audiovisual a partir do vídeo. Como

Christine Mello coloca em seu estudo Extremidades do Vídeo, são estas características de

“desestruturação dos cânones estabelecidos pela indústria através do vídeo” que vêm sendo

incorporada à linguagem audiovisual. No videoclipe estas características são exploradas ao

extremo de vermos alguns clipes onde apenas trabalha-se com imagens abstratas que jogam

com estas deformações. Como no caso do videoclipe do mesmo diretor Fell in Love with a

Girl.

Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

Aqui como no videoclipe não temos profundidade de campo, ou perspectiva; temos

composição de imagem que se dá através de sua superfície. No filme, o recurso para gerar as

camadas não é a sobreposição, como era no caso do videoclipe Bachelorette. As camadas se

formam na própria composição e textura da imagem, o que acontece no nível da linguagem e

também no da história.

As imagens não se fecham em si mesmas, mas se abrem umas às outras até o momento

em que todas as lembranças do personagem principal foram apagadas. Com estes

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procedimentos de criação o diretor logra construir as camadas que permitem a mescla das

imagens dando continuidade à narrativa e criando uma rede de conexões entre as imagens (e

no mundo diegético, relacionando as lembranças do personagem).

Em Cinema, Vídeo, Godard, Phillipe Dubois, fala do procedimento da incrustação

citando a Raymond Bellour em sua análise da plasticidade da imagem quando esta é

modificada em sua própria superfície, textura e “corporeidade” através deste procedimento.

O procedimento da incrustação é um dos elementos usados no filme Brilho Eterno de uma

Mente sem Lembranças para gerar as camadas de imagens. Isto faz com que seja possível as

passagens entre as lembranças e os níveis narrativos.

“Em sua análise de quatro incrustações presentes em Numéro Deux de Godard (‘Les

intermittences du corps’, incluído em L’entre-images, Paris: La Difference, 1990), R.Bellour aborda a

noção de corporeidade da imagem, que muda de natureza ‘em seu corpo mesmo’, e cuja ‘substância

interna’ parece se romper, fazendo surgir uma ‘profundidade inusitada’. Na perspectiva teórica do seu

argumento (vídeo e pintura), esta ‘profundidade’ é obviamente a da ‘superfície’ da própria imagem, de

sua espessura, ou melhor, de sua ‘corporeidade’. ” (Dubois, 2004, p. 214)

Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

Michel Gondry apresenta uma característica experimental tanto nos videoclipes que

fez como também em seus filmes. Uma de suas principais características é a forma como ele

usa a técnica cinematográfica em função da criatividade libertando-se de padrões

estabelecidos. Muitas vezes vemos coisas que parecem ser efeitos de pós-produção e que na

verdade são feitos com cenários, efeitos de câmera, a fotografia ou a edição.

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A técnica mesmo sendo do cinema está em função da estética e com isso consegue

obter imagens que podem nos remeter ao videoclipe, ao super 8, à televisão ou ao cinema do

início do século XX. É o caso do uso da perspectiva forçada6 (na cena em que Joel tem uma

lembrança de sua infância). Também é o caso da forma como ele utiliza a câmera na mão

durante o filme inteiro. A câmera em constante movimento agrega uma característica

espontânea às imagens que pode nos remeter ao cinema documental. O super 8 também

aparece na cena em que o personagem está começando a lembrar de sua infância. São

características expressivas incorporadas de outros meios usadas aqui com o intuito de criar

qualidades estéticas necessárias para cada lembrança ou momento do filme.

Efeito de perspectiva forçada em cena do filme.

Michel Gondry também joga com as possibilidades existentes na própria filmagem.

Como por exemplo, quando as personagens Clementine ou Joel aparecem e desaparecem da

imagem. Este efeito é obtido através de um recurso de filmagem e não feito em pós-

6 A perspectiva forçada é uma técnica fotográfica antiga usada para dar a ilusão de tamanho falso. A distância entre os objetos cria o efeito de estes parecerem maiores ou menores um em relação a outro. Um personagem bem próximo à câmera fica maior que um que está mais distante. Os cenários podem ser construídos em uma escala maior ou menor para ressaltar este efeito.

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produção. O diretor usou a geografia do cenário colocando uma passagem secreta para a atriz

sair, enquanto a câmera segue a imagem de Joel, fazendo-a reaparecer pelo outro lado da

porta.

A câmera na mão se desloca pelo espaço filmando ora um ora outro personagem. Este

estilo de filmagem faz parecer que os atores estão improvisando, dando um efeito de

espontaneidade à cena. Apesar de ser feito em película, nos remete a um efeito comum ao

vídeo e também muito usado pelo videoclipe. É uma cena que usualmente, dentro dos

parâmetros formais do cinema, seria feita com plano e contra plano dos personagens, ou feita

com fundo azul para depois ser manipulada em pós-produção. Isto ocorre também nas cenas

em que Joel aparece e desaparece da imagem. Neste caso, o efeito se dá através da

iluminação. Esta cena tem apenas um foco de luz em Joel. Parece que o estão seguindo com

uma lanterna, a câmera se desloca, seguindo-o e procurando-o, nos momentos em que o foco

de luz muda, ele desaparece e reaparece em outro lugar. Estes procedimentos de criação

permitem que a imagem mude em sua superfície, na própria composição da imagem.

Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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As características expressivas citadas anteriormente também permitem a mudança do

uso da edição. Ou seja, a imagem pode ser “editada” dentro dela mesma, na forma em como

ela é composta. São procedimentos que modificam a própria maneira de filmar instituída pelo

cinema, provocando ruptura em diversas leis que regem a gramática do cinema industrial.

Como por exemplo, na cena em que Joel e Clementine estão terminando seu relacionamento

vemos uma inversão da direção em que as imagens são filmadas. Gondry joga com a inversão

da direção das imagens filmando ora um lado ora outro. Isto gera descontinuidade entre as

imagens. Estas são características expressivas e processos de criação que estão relacionados

ao meio do videoclipe e que o diretor traz daquele para o cinema.

Estes procedimentos criativos geram um tipo de narrativa sintética e econômica ao

mesmo tempo em que é múltipla e não linear. Já não obedece mais ao padrão descritivo,

figurativo e naturalista da linguagem cinematográfica. A economia narrativa, a síntese e a

multiplicidade são características da narrativa colocadas pelo autor Ítalo Calvino em seu livro

Seis Propostas para o Próximo Milênio.

“(...) o segredo está na economia da narrativa em que os acontecimentos,

independentemente de sua duração, se tornam puntiformes, interligados por segmentos retilíneos, num

desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto.” (Calvino, 1990, p.48)

A forma como Michel Gondry usa as características de linguagem do videoclipe no

filme misturando-as às do cinema é de importância para esta análise: o que ele usa e como ele

usa. Através da transformação dos procedimentos de criação, tanto do cinema como do

videoclipe, o diretor cria imagens para o roteiro ao invés de simplesmente ilustrá-lo. Como

afirma Cecilia Salles, é a forma como o artista utiliza os elementos da linguagem e a forma

como eles são colocados juntos que permitem a transformação de elementos que já existiam.

“Observamos as matérias imagética e sonora sendo reinventadas ao longo do processo criativo,

ampliando-se, desse modo, os seus significados. Evidencia-se a potencialidade desses elementos pelo

deslocamento de seus contextos iniciais e pelo resultado encontrado nesses desdobramentos.” (Mello,

1999, p.83)

O roteiro de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças foi escrito por Charlie

Kaufman com quem Michel Gondry já havia trabalhado em seu primeiro longa metragem,

Natureza Humana (2001). O roteirista também já havia trabalhado algumas vezes com Spike

Jonze nos filmes Quero ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002). Este é outro diretor

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de videoclipes que migrou para o cinema apresentando narrativas bastante particulares. Em

seus filmes ele também incorpora elementos do videoclipe ao cinema, como no caso do filme

Quero Ser John Malkovich (1999).

Os roteiros de Charlie Kaufman são caracterizados por contar histórias atípicas como

no caso de Quero Ser John Malkovich (1999) e Natureza Humana (2001). No primeiro, o

filme narra à história de um homem que descobre uma porta que o leva a entrar na cabeça do

ator John Malkovich e assim manipulá-lo como se fosse uma marionete. No segundo uma

mulher se transforma em uma espécie de ser - humano/animal porque crescem pêlos por todo

o seu corpo. Seus roteiros jogam com o humor negro, a paródia, a comédia romântica e o

drama, colocando estes gêneros a serviço de suas histórias. Os roteiros geralmente

apresentam características narrativas como a não linearidade e a fragmentação apresentando-

nos um estilo de contar historias em fragmentos que se cruzam na medida em que a história

acontece.

É importante ressaltar de onde vieram algumas pessoas que trabalharam no filme e que

fazem parte de sua composição estética. São artistas que incorporam suas especialidades às

características expressivas do filme, já que o processo de criação cinematográfico é coletivo e

resultado da interação de diversos elementos. Fazem isto na composição da imagem, na

sonoplastia, na música e na mixagem de imagens, através da fotografia, do som e da edição

trazendo para o filme seu próprio universo criativo. E é interessante observar que elas vieram

de trabalhos com filmes que já não fazem referência à estrutura clássica da linguagem

cinematográfica. Os filmes dos quais vieram dialogam com outros meios como o videoclipe,

o vídeo e a televisão. São artistas que fazem parte do contexto da produção de filmes pós-

cinematográficos.

A história e o argumento original do filme foram criados por Michel Gondry em

pareceria com Pierre Bismuth. Pierre Bismuth é um artista plástico que produz vídeos,

desenhos e esculturas trabalhando com elementos da indústria cultural, colocando em jogo

seus significados tanto para o espectador quanto para as formas narrativas. Um dos seus

trabalhos mais conhecidos é The Jungle Book Project (2002) onde ele coloca os personagens

do famoso filme da Disney Mogli para falarem em outros idiomas, dublando-os.

Outras pessoas que são importantes, contribuindo com elementos fundamentais para a

composição do filme e sua estética são o editor, a diretora de fotografia e o compositor da

trilha sonora original.

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O editor, Valdís Óskarsdóttir, havia trabalhado anteriormente em filmes como Mifune

(1999) e Festa de Família (1998) os quais fazem parte dos primeiros longa metragem

realizados pelo grupo Dogma 957.

Ellen Kuras, a diretora de fotografia havia feito dois filmes com Spike Lee, He Got

Game (1998) e O Verão de Sam (1999). Ambos os filmes experimentam com a fotografia

usando tipos de películas diferentes e diversos processamentos de imagem para criar a estética

destes filmes. A fotografia é marcada, estourada e com bastante contraste. Ela também fez a

direção de fotografia do filme Cafés e Cigarros (2003) de Jim Jarmush, diretor do cinema

independente norte-americano.

O compositor John Brion já havia trabalhado com Paul Thomas Anderson nos filmes

Embriagado de Amor (2002), Magnólia (1999) e Boogie Nights (1997). Paul Thomas

Anderson também passou pelo videoclipe e seus filmes como Boogie Nights (1997) e

Magnólia (1999) também são caracterizados por sua narrativa não–linear e estética pós-

cinematográfica.

A partir da análise das características expressivas de Brilho Eterno de uma Mente

sem Lembranças podemos dizer que o filme acontece entre uma imagem e outra, pois é a

relação entre as imagens que agrega significado dando valor a história.

Neste filme, por se tratar justamente de uma obra que já não trabalha com as

concepções clássicas do cinema, os conceitos de plano e seqüência são difíceis de serem

estabelecidos. Não existem seqüências e planos e sim imagem, composição de imagem,

camadas e níveis narrativos. As imagens são fragmentadas, e as camadas e níveis narrativos

não seguem uns aos outros. Eles são descontínuos e adquirem significado no transcorrer da

história através de conexões que irão se fazendo à medida que o filme acontece. Tanto as

imagens quanto os níveis narrativos e as camadas irão se incrustando e mesclando uns aos

outros para dar forma ao tecido narrativo.

“Os planos de um videoclipe (mas admitamos que o conceito de plano é problemático

no universo do clipe) são unidades mais ou menos independentes, nas quais as idéias

7 DOGMA 95 é um grupo de diretores de cinema fundado em Copenhagen em 1995. Deste grupo fazem parte Lars Von Trier, Thomas Wintenberg, Søren Kragh-Jacobsen, Kristian Levring, Lone Scherfig e outros. Lars Von Trier e Thomas Wintenberg fizeram um manifesto denominado “O voto de castidade” que estipula uma série de regras as quais os filmes feitos sob este juramento devem obedecer. O manifesto estipula algumas coisas como: a filmagem deve ser feita em locação, o som sempre tem que ser direto, a câmera tem que ser feita à mão, o filme tem que ser colorido, não é permitido o uso de filtros e acessórios para as lentes, e gêneros cinematográficos não devem ser aceitos. Além do manifesto estes diretores realizaram filmes como Festa de Família, Os Idiotas, Mifune e o Rei está Vivo.

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60tradicionais de sucessão e linearidade já não são mais determinantes, substituídas que foram

por conceitos mais flutuantes, como os de fragmentos e dispersão” (Machado, 2001, p. 180)

No filme, como no videoclipe Bachelorette, a narrativa acontece em rede, é não linear

e circular, embora o modo como ela seja conduzida é diferente. Nesta forma, o sentido se dá

a partir da relação das imagens, sendo construída a narrativa nesta relação, e a história

acontece no processo de construção da narrativa.

Neste caso, a edição ocupa um lugar importante. O sentido da história e a construção

narrativa não se dão através da montagem que busca continuidade e verossimilhança entre

seqüências e planos. Mas a edição se dá através da mescla de imagens, da mistura, quase um

embaralhamento aleatório destas imagens gerando quebras, rupturas e descontinuidade.

Este tipo de edição pode ser feito tanto na filmagem através da composição da imagem

como na pós-produção. Um dos elementos que permitem isto é o uso de um monitor de vídeo

(o video-assist) usado na filmagem. O diretor e a equipe podem ver o que está sendo feito

enquanto se está fazendo. Hoje em dia os diretores andam pelos sets de filmagem levando um

video-assist na mão. Enquanto ele filma também edita e compõe a imagem.

Na pós-produção as imagens são manipuladas em vídeo e a ilha de edição é não linear.

Estes elementos permitem maior liberdade para manipular e editar a imagem. Como aponta

Phillipe Dubois, em seu trabalho sobre a relação dos procedimentos de criação do vídeo no

cinema, está forma de trabalhar a edição foi incorporada ao cinema a partir da televisão e do

vídeo. O videoclipe é uma extensão da relação entre cinema, televisão e vídeo (como

apontado no capitulo um). Pelas características do videoclipe estes procedimentos criativos

foram sendo cada vez mais explorados e foram ficando cada vez mais sofisticados. No filme

Michel Gondry traz estes elementos ao seu filme incorporando-os à sua estética.

“Em vídeo (e na televisão), a mistura das imagens é sem dúvida nenhuma a operação mais

fundamental. Isto ocorre na ilha de edição e na mixagem. Isto se faz à mão (que comanda o teclado, as

teclas, a alavanca) e no olho (que controla o efeito no monitor). E sobretudo isto se faz ao vivo: a

visualização do efeito é instantânea, e podemos, enquanto ele transcorre, modificar ou prolongar o

acontecimento que estamos vendo.” (Dubois, 2004, p. 201)

No filme, o estilo de filmagem realizada como se fosse vídeo ou cinema direto e os

efeitos de câmera e pós-produção permitem que esta mescla de imagens aconteça dentro da

imagem em sua própria superfície, além da edição como mencionado anteriormente. Por

exemplo, nas cenas em que Joel passa de um cenário a outro. Quando isto acontece, vemos

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uma camada se desconstruindo enquanto outra se constrói. Estes procedimentos de criação

permitem que isto aconteça ao mesmo tempo em que criam um efeito de continuidade

narrativa passível de ser acompanhada.

Frames da cena em que Joel passa de um cenário a outro na mesma imagem.

Mais do que uma representação figurativa ou realista esta forma narrativa nos traz uma

experiência da imagem dando ao espectador impressões das imagens e da história que está

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sendo contada. Isto e outros elementos dão ao filme a característica de um trabalho

inacabado, como se ele estivesse em constante processo de construção. Cada imagem é

inacabada porque nos remete a outra. É também inacabada porque muitas vezes se apresenta

desconstruída ou distorcida. As ações dos personagens, a organização do tempo e do

desenvolvimento dos acontecimentos adquire esta característica, assim como acontece com a

memória do personagem principal.

O filme trabalha com a desconstrução e distorções das imagens e som da mesma forma

que acontece com a memória do personagem principal, através de suas lembranças que se

desfazem e se misturam umas as outras. Estes procedimentos de criação nos remetem

diretamente às principais características expressivas do videoclipe. No videoclipe os

procedimentos de criação tanto do cinema como do vídeo aparecem invertidos criando

característica na imagem como descontinuidade, ruptura, rasuras, deformações,

desconstruções e todo tipo de características que servem a este propósito.

Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

Joel Barish, o personagem principal do filme, descobre que sua namorada apagou-o de

sua memória. Assim ele resolve também apagá-la da sua. A empresa Lacuna8 oferece este

procedimento. Enquanto sua memória esta sendo apagada, Joel se dá conta que não quer mais

continuar apagando Clementine e começa a fugir do procedimento. Na história do filme

8 É interessante pensar no sentido da palavra Lacuna que dá nome à empresa no filme. Lacuna pode significar: “espaço vazio, real ou imaginário; solução de continuidade de um corpo numa série, num encadeamento, num sistema, num conjunto; falha, falta, vazio.” (Dicionário Houaiss)

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vemos desde o momento em que Joel e Clementine se conheceram pela primeira vez até o

momento em que eles terminam o relacionamento e depois voltam a se encontrar.

A descrição acima seria a forma linear de contar a história, mas no filme isto não

acontece assim. O filme acontece na cabeça de seu personagem principal no movimento de

desconstrução de sua memória. Podemos identificar quatro níveis narrativos, níveis da

memória do personagem principal. O primeiro nível é onde está acontecendo o procedimento.

O segundo é antes do procedimento quando Joel e Clementine se conhecem pela primeira vez.

O terceiro é o da memória de Joel. E o quarto é depois do procedimento, quando Joel e

Clementine voltam a se encontrar. As camadas de imagem nos levam de um nível a outro.

Neste filme, a referência espaço-temporal se dilui de tal forma que através do filme é

difícil identificar em qual instância estamos. Alguns elementos permitem que a narrativa não

se torne completamente abstrata, pois ainda assim é possível estabelecer relações e sentido

entre os acontecimentos e as imagens. O que estabelece a relação entre um acontecimento e

outro, a conexão, são os objetos de cena ou os próprios personagens que nos dão referências

para fazer as ligações na história. Isto também acontece através da relação das imagens,

assim como das camadas e níveis narrativos.

Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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Frame do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

A forma como estes objetos aparecem é igual ao procedimento adotado pela empresa

Lacuna. O procedimento para apagar a memória, feito pela empresa Lacuna consiste em

mapear o cérebro da pessoa através de objetos como desenhos, presentes diários, e as

lembranças e memórias que ficam armazenados lá. Através da memória afetiva que a pessoa

tem em relação aos objetos ela vai se lembrando. E no momento em que revê os objetos o

operador vai identificando qual é qual e em que região do cérebro está. Depois que o mapa

está pronto eles vão à casa da pessoa durante a noite e executam o procedimento que consiste

em apagar estas lembranças e memória rastreando-as no mapa previamente formado. Na

historia, no mundo diegético, as lembranças e memórias estão mapeadas e o processo de

apagá-las relaciona umas às outras. No filme através da narrativa e dos procedimentos de

criação o processo de apagar as lembranças desencadeia o processo de relação entre as

imagens. Assim, Michel Gondry, mostrando ao espectador o processo de desconstrução da

memória de Joel também evidencia o processo de construção do filme. Através destes

procedimentos pode criar os efeitos narrativos necessários à história.

O mesmo procedimento é usado no filme para que o espectador possa construí-lo

através da história fazendo as relações. Como por exemplo, quando vemos o colar nas mãos

de Joel e depois revemos o colar na cena em que Patrick o dá a Clementine. Isto se dá na

historia e a forma como os próprios recursos audiovisuais são usados. São recursos como a

voz off, o cenário, a composição da imagem, as texturas e camadas, a música e os sons. Estes

elementos e os procedimentos criativos são os pontos ou nós da rede que irá se formando,

conduzindo o espectador através da memória, das camadas de imagem e dos níveis narrativos.

Uma palavra nos remete a uma lembrança, um som a uma imagem, um objeto a outro, nos

levando de uma imagem a outra, de uma camada a outra e assim de um nível narrativo a

outro.

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Para narrar esta história um dos procedimentos de criação utilizados pelo diretor é o

jogo com os gêneros cinematográficos. Em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças o

diretor incorpora as características expressivas de alguns gêneros, inserido-as de forma tal que

cumprem sua função narrativa mesmo que o filme já não nos remeta a nenhum deles em

particular. Vemos referências à comedia romântica, à paródia, ao suspense e ao filme noir.

Michel Gondry usa estes gêneros para agregar a qualidade dramática necessária a cada

cena. Mas o filme não é um suspense, um filme noir, uma comédia romântica ou uma

paródia. Ele usa as características expressivas destes gêneros para compor as situações. Por

exemplo, na cena em que Joel e Clementine se encontram no trem. A conversa é filmada sem

plano e contra plano e a câmera move-se pelo ambiente focando e desfocando os personagens.

Mas, ao fundo escutamos uma música que agrega um tom de paródia à cena, como se os dois

personagens não estivessem se encontrando de verdade. A cena também adquire um caráter

cômico pela ação e diálogo de Joel e Clementine.

Frame do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

O suspense acontece quando Joel descobre que Clementine apagou-o da memória. A

forma como está ação está realizada e o som agregam uma característica de suspense neste

momento. O vizinho de Joel segura um envelope na sua mão com o nome da empresa Lacuna.

A imagem nos mostra o envelope e seu vizinho fora de foco. Joel olha para o envelope, o

mesmo envelope que seus amigos haviam lhe mostrado antes. O espectador não sabe ainda

identificar o que está acontecendo, mas é como se estivesse construindo uma pista para ser

desvendada no transcorrer da trama.

Assim como na cena em que Joel está chegando a seu apartamento para se preparar

para o procedimento e os dois técnicos o seguem, não vemos seus rostos, e não sabemos quem

é, mas ouvimos a conversa e as vozes dos dois acompanhando Joel na rua. Eles estão dentro

de uma caminhonete e a imagem mostra Joel através da janela do carro. A composição desta

cena nos remete ao suspense, mas também ao film noir, principalmente aos filmes de

detetives ou policial.

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A primeira cena do filme, o ponto de partida, já é o amanhã após o procedimento ter

sido feito. Durante o filme pulamos de um nível de memória a outro: o nível do procedimento,

àquele quando os personagens se conhecem pela primeira vez, a memória e o nível onde eles

voltam a se encontrar. Estas passagens não acontecem seguindo esta ordem, elas estão

misturadas como colocado anteriormente.

As passagens acontecem através da imagem que decompõe e recompõe camadas

formando novas imagens. Apesar de podermos estabelecer diferentes níveis ou instâncias no

tempo do filme, tudo acontece como se estivéssemos no mesmo tempo, as diferentes camadas

estão como se estivessem formando-se na mesma imagem. Tudo se passa na memória de

Joel, passando de uma camada a outra e passando de um nível a outro.

Os recursos utilizados para nos conduzir através da memória de Joel não são o

flashback ou o flashforward. Na linguagem instituída pelo cinema o uso do flashback nos

remete a outro tempo de imagem e a outra imagem. Neste caso as camadas são imagens

diretas das lembranças e da memória do personagem. Apenas no transcorrer do filme

podemos perceber em que nível ou camada estamos. Assim o filme não acontece como

geralmente aconteceria em filmes em que o início é o fim da história, e durante o filme vemos

como se chegou ao início. E, o espectador vai desvendando o que está acontecendo à medida

que o crime ou o caso é solucionado. Este seria um recurso de flashback muito usado em

alguns filmes que entram no gênero film noir, os filmes de detetives ou filmes policiais.

Como no caso de Pacto de Sangue (1944) e O Crepúsculo dos Deuses (1950), ambos de

Billy Wilder.

O tempo da narrativa também obedece a um ritmo de edição, feita através de cortes

secos, e em alguns momentos acompanhado por música. Este ritmo marca ações

entrecortadas resumindo o caráter descritivo das cenas aos detalhes pontuando os momentos

que compõem a ação. Além da edição são os procedimentos criativos utilizados que geram

esta noção do tempo que transforma as imagens. Como o uso de efeitos como o reverse,

velocidades alteradas, a composição e a mescla das camadas de imagem. Neste filme a

narrativa não estabelece um caráter espaço-temporal no mundo diegético. Este procedimento

nos leva à característica de um tempo e um espaço que estão na desconstrução das imagens

assim como da memória do personagem. O tempo e o espaço se misturam. A relação com o

tempo da imagem também é uma característica importante no videoclipe. É uma das

características que os criadores deste meio usam para transformar as imagens de seus vídeos.

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67“Em termos estritamente semióticos, o tempo surge então como um elemento transformador,

capaz de abalar a própria estrutura da matéria, de comprimi-la, dilatá-la, multiplicá-la, torcê-la até o

limite da transfiguração” (Machado, 1997, p.60)

A maioria das imagens são fechadas nos rostos dos personagens ou são imagens de

detalhes que compõem as situações. Isto faz com que a profundidade e a perspectiva não

sejam usadas e a superfície da imagem explorada através de sua textura e composição. Mesmo

quando vemos uma imagem aberta o fundo está fora de foco ou é achatado pela falta de

perspectiva. A narrativa é conduzida não através da imagem, mas para todos os lados jogando

uma imagem à outra através de suas camadas.

Este recurso também gera um maior número de imagens e uma multiplicidade de

imagens que se bifurcam no tempo da narrativa. Novamente estes recursos aparecem no

videoclipe e são inseridos no filme, dando sentido às opções estéticas do diretor. A

profundidade de campo, característica do cinema e muito usada para efeitos narrativos,

desaparece e se ganha na espessura da imagem, e uma profundidade que se dá através de suas

superfícies. Phillipe Dubois fala destas características que são encontradas no videoclipe.

“(...) reduzir a ação a seus momentos ‘fortes ‘, multiplicar os personagens parasitas, explorar a

heterogeneidade dos cenários (tentação ainda maior pelo fato de o cenário ser de trama e o ator, o herói,

ser um homem incrustado), mesclar os diferentes níveis de representação, trabalhar com planos muito

curtos e saturados (...)” (Dubois, 2004, p. 245)

No nível da memória as lembranças vão se fazendo mais curtas, fragmentadas,

aceleradas e misturadas na medida em que elas são apagadas. A memória do personagem

aparece como fragmentos de imagens que se conectam formando uma rede dentro do próprio

pensamento do personagem. As imagens se transformam na medida em que novas conexões

são feitas. A tessitura desta narrativa vai ganhando densidade na medida em que uma

multiplicidade de relações são feitas.

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Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

Outro recurso utilizado pelo diretor é a inversão de estereótipos do cinema industrial.

No filme, os atores aparecem em papéis contrários dos que geralmente o espectador está

habituado a vê-los. É o caso de Jim Carrey, um ator que usualmente faz papeis cômicos,

exacerbadamente extrovertidos e caricatos. Neste filme, o ator faz um personagem

introvertido, melancólico e natural. Também é o caso de Kate Winslet, atriz britânica que faz

filmes de época e adaptações de Jane Austen, interpretando papéis de mulheres “normais” e

comportadas. Em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, a atriz interpreta uma

personagem americana, impulsiva, que tinge o cabelo de cores diferentes. Além desta

inversão, os personagens Joel e Clementine são anti-heróis, fogem a concepção dos

protagonistas usualmente retratados nos filmes. Ambos parecem pessoas comuns, cheias de

problemas, com trabalhos nada interessantes e que não fazem nada de especial. Estas

características são exploradas pelo diretor tanto no nível da interpretação dos atores como

também na própria composição estética dos personagens. A caracterização dos personagens

em alguns momentos nos remetem às caricaturas dos quadrinhos norte-americanos.

Este recurso dos quadrinhos aparece no filme com os desenhos que Joel faz em seu

diário. Ele desenha caricaturas de si mesmo, de situações e de Clementine. Os desenhos nos

fazem lembrar os quadrinhos de Robert Crumb9. Eles aparecem para dar significado e sentido

a algumas situações às vezes substituindo a função de uma imagem. Estes desenhos são um

recurso como alguns outros que apontam à construção narrativa da história. No momento em

9 Robert Crumb é um artista e ilustrador norte-americano, reconhecido como um dos fundadores do movimento underground dos quadrinhos. Seus trabalhos mais conhecidos são Fritz, The Cat e Mr. Natural. As características que compõe seu desenho são traço sujo e as formas grotescas.

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que Joel se lembra destes desenhos, eles se transformam em mais um recurso que gera

camadas, estabelecendo conexões entre níveis narrativos diferentes.

Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

O diretor usa os elementos da linguagem audiovisual no filme estabelecendo uma

narrativa em rede através da relação destes elementos. É na conexão entre um elemento e

outro, entre uma imagem e outra, que se estabelece a forma pela qual o diretor aborda a

história. A narrativa não linear acontece como a construção e a desconstrução da memória do

personagem principal do filme. São fragmentos de imagens que se conectam formando uma

rede dentro do próprio pensamento do personagem, que se transformam na medida em que

novas conexões são feitas.

A não linearidade permite um intenso estabelecimento de nexos (Cecilia Salles, 2006).

Uma imagem neste caso já não tem significado sozinha e o sentido se realiza entre uma

imagem e outra, na sua relação. Os elementos são voz off, música, som, um diário, desenhos,

a fotografia, a edição e o estilo da câmera. Estes procedimentos se configuram em

desconstrução e ruptura.

Estes elementos são colocados de forma tal que permitem uma síntese e economia

narrativa. Às vezes as imagens pouco definem seus objetos. São imagens sujas, fora de foco,

onde a câmera está em constante movimento, nunca parada. Algumas vezes mal podemos ver

o que está lá. São imagens entrecortadas ou com objetos na frente dos personagens, além de

termos muitas imagens fora de foco e a câmera passando de um elemento a outro em

movimento constante, sem cortes. A passagem de uma imagem a outra é direta ou através de

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alguns efeitos feitos com a própria câmera ou cenário. Estas características expressivas

permitem a construção das camadas na superfície da imagem.

Mas a rasura na imagem não se dá apenas pela composição da imagem ou pelo estilo

de câmera. Esta desconstrução da imagem e rasura se dá também através da fotografia, na

própria textura da imagem. Arlindo Machado, no texto A Reinvenção do Videoclipe, fala de

alguns procedimentos criativos relacionados a este meio que buscam incorporar à imagem

“movimentos desagradavelmente quebrados, imagens instáveis, às vezes superexpostas,

outras vezes subexpostas” (Arlindo Machado, 2001, pg.177).

“(...) muitas vezes esses resultados aparentemente desarticulados são obtidos à custa de muito

calculo, sofisticado processamento técnico e, acima de tudo, sensibilidade para perceber um enorme

potencial poético naquilo que a rotina produtiva considera erro, defeito, imperfeição ou amadorismo.”

(Machado, 2001, p. 177-178)

A fotografia não segue um padrão naturalista, mas tende a exagerar para mais ou para

menos. Ela aparece sobrexposta ou subexposta, algumas vezes muito clara ou muito escura,

produz grãos na imagem evidenciando sua textura. Elementos como o flare aparecem

constantemente cortando a imagem ou entrando no meio dela. É também o caso do uso de

cores muito fortes ou tonalidade quase sem cor alguma chegando a se parecer ao branco e

preto.

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Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

Outros procedimentos de criação que são recorrentes no videoclipe e que aparecem no

filme são efeitos como imagem acelerada e a imagem lenta onde podemos ver acontecimentos

na mesma imagem com velocidades diferentes, assim como a repetição da mesma situação ou

imagem.

Além destas características expressivas próprias da composição da imagem e a forma

como ela é manipulada, o som também adquire significado importante para esta narrativa. O

som e a música, assim como a voz off, também têm a mesma característica da imagem de

desconstrução, rasura e deslocamento.

O som configura-se também como uma camada agregada à imagem. O som e a

música são importantes para a composição narrativa do filme acrescentando ao seu

significado dramático. E a forma como eles estão colocados no filme nos remete ao

tratamento dado à relação entre imagem e som dos videoclipes. Como por exemplo, nos

créditos iniciais do filme ou quando vemos Joel ficar pequeno. Lucia Santaella fala o seguinte

da relação entre a música, o som e a imagem no videoclipe:

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72“Onde houver a proeminência das configurações, das durações e dos ritmos, não importa em

que linguagem se manifestar, ai estarão presentes atributos sonoros, ai estará presente a musica, mesmo

quando ela não soar aos ouvidos, pois há ritmos e durações que chegam à escuta, outros que tocam os

olhos.” (Santaella, 2007, p.57-58)

A voz e os sons desaparecem em algumas cenas como se fosse uma vitrola perdendo

energia. E em alguns momentos o som esta dessincronizado com a cena. O som não ocupa

apenas o lugar do som ambiente, mas é feito no sentido de criar elementos para as cenas,

constituindo-se em camadas que conduzem à narrativa.

Durante o transcorrer das ações o que escutamos geralmente não é o som ambiente,

mas ruídos propositalmente colocados para cumprir o papel anteriormente mencionado, como

em alguns momentos das lembranças de Joel quando elas estão sendo apagadas. Nestas

situações escutamos o som da máquina no momento em que ela apaga a memória. Isto

também ocorre quando ouvimos os ecos das vozes dos técnicos que estão fazendo o

procedimento enquanto Joel está deitado na cama. Escutamos suas vozes fora da lembrança e

o próprio personagem Joel os escuta enquanto a cena transcorre. O som também aparece

acelerado ou lento criando todo tipo de deformações e distorções.

Estes elementos do som, a voz off, os diálogos e a música compõem a narrativa do

filme. São elementos que permitem saltos de uma ação a outra criando a continuidade

diegética através deles, assim como através dos objetos e camadas na imagem.

A câmera movendo-se o tempo todo se evidencia. Assim como em Bachelorette os

cenários e a própria maneira como o videoclipe se constrói evidenciam-se para o espectador.

No filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças também podemos ver o mesmo

recurso.

A câmera tem um papel importante nas características expressivas do filme não só

porque ela está constantemente em evidencia, mas também porque ela não estabelece pontos

de vista. Ela desprende-se dos cenários e dos personagens. A narrativa não se constrói

através de estabelecimento de pontos de vista como em uma narrativa linear onde esta cria

continuidade e verossimilhança. As imagens através da edição e dos cortes bruscos provocam

constantemente um deslocamento10 do espectador que não pode estabelecer referências

espaços-temporais. A proximidade entre a imagem do videoclipe, do vídeo e do cinema está

10 Em sua tese de doutorado, Extremidades do Vídeo, Christine Mello fala do estranhamento causado pela inserção do vídeo nas “práticas artísticas da contemporaneidade”. Aqui nos referimos ao deslocamento no mesmo sentido em que ela usa o conceito de estranhamento como “uma forma de provocar alteração na percepção automatizada. (Mello, 2004, p. 33)

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presente no filme a partir destas características. Arlindo Machado aponta a relação entre a

imagem do cinema e a do vídeo que também foi incorporada ao videoclipe.

“O cinema, pelo menos uma certa prática do cinema que se impôs como dominante, parte

sempre da premissa de uma fundamental objetividade do mundo, que a câmera terá o poder de flagrar

graças ao seu mecanismo de registro. O ato inaugural do cinema estaria nesse instante de confrontação

direta da câmera com a realidade que se impõe a ela, cabendo à película cinematográfica funcionar

como comprovação desse momento de verdade. Daí a celebração dos grandes espaços, a que a tela

ampla e a profundidade de campo cinematográfica se prestam à maravilha, bem como o apego a uma

textura de imagem resolutamente fotográfica, sugestiva de um efeito de “transparência”. Já a tela

pequena e sem profundidade da imagem eletrônica fragmenta e emoldura de forma implacável o espaço

visível, torna sensível a textura granulosa do mosaico videográfico e se oferece a todas as interferências

e manipulações.” (Machado, 1997, p. 208-209)

No filme, os cenários mudam constantemente e os personagens são levados de um a

outro. Inclusive muitas vezes ocupando espaços vazios ou vários espaços ao mesmo tempo.

São camadas de imagens construídas através destes deslocamentos do personagem e do

espectador. Uma ação, diálogo ou situação não se constroem através de planos e contra

planos, plano geral, primeiro plano e plano detalhe. As ações e situações se constroem através

de imagens entrecortadas, com elipses e marcadas muitas vezes pelo gestual dos atores ou

objetos, ou elementos de cenografia são importantes no filme tornando-se quase personagens.

É também através destes objetos que podemos seguir a história. O diretor escolhe

colocá-los em evidência e depois volta a mostrá-los criando ligações entre as situações. Da

mesma forma que no vídeo Bachelorette Michel Gondry cria continuidade diegética através

dos cenários, voz off e palavras, aqui ele faz isso através destes objetos e camadas de imagem

que relacionam uma imagem à outra e uma situação a outra.

Através da análise do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças pudemos

identificar as incorporações feitas a partir das características expressivas do videoclipe na

narrativa do filme. Estas incorporações se misturam à linguagem cinematográfica e geram

novas possibilidades expressivas dentro da estética e narrativa do cinema. Michel Gondry usa

o próprio aparato disponível no cinema para fazer estas inversões. Estas construções poéticas

inserem-se na linguagem do filme trazendo a abordagem característica do videoclipe para o

cinema. São procedimentos de criação que criam rupturas e a desconstrução dos padrões

cinematográficos da indústria. Elementos tais como: a narrativa não linear e circular, a

dissolução das características espaço-temporais, a inversão das características dos

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personagens, o jogo com os gêneros cinematográficos, a forma como o som e a música

interagem com as imagens, e a tendência a abstração e ao não figurativismo se misturam aos

procedimentos do cinema. É também através de construções poéticas como a composição de

imagem através de camadas, desconstruindo sua própria superfície e textura, e a construção

em rede que nos remetem a procedimentos de criação que Michel Gondry traz para o filme

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

Estas são características expressivas e modos de tratar a imagem que vem sendo

incorporadas ao ambiente audiovisual desde o vídeo. O videoclipe como meio que ocupa um

lugar entre estas imagens e pela abertura que propicia permitiu que tais experimentações

fossem feitas explorando estas características. Raymond Bellour, falando sobre o cinema em

sua relação com a fotografia e o vídeo, aponta o lugar que este meio ocupa entre na imagem

audiovisual contemporânea.

“Por fim, entre foto e vídeo, existe o cinema, essa arte um pouco antiga, cada vez mais

trabalhada pela foto, que a reconduz como que para aquém de si mesma, já que o vídeo tomou conta

dela, projetando-a num além em que é difícil saber o que ela se tornará. Ela também pode escolher ater-

se ao que em si mesma ainda acredita ser, já que o foi por tanto tempo. Ainda assim, bem se vê que,

como que escavada por dentro, cercada pelas novas forças que a irrigam, ela não para de se

transformar.” (Bellour, 1997, p. 17-18)

Podemos ver que já faz algum tempo falamos da hibridização dos meios e

como isto vem se inserindo na linguagem cinematográfica. Um filme como Brilho

Eterno de uma Mente sem Lembranças evidencia este processo através de seus

procedimentos de criação.

Frame do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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Frames do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Michel Gondry.

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Conclusões

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Michel Gondry.

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CONCLUSÃO

Através das reflexões propostas neste estudo percorremos as relações entre as linguagens

do vídeo, do videoclipe e do cinema, principalmente a relação entre as características

expressivas e construções poéticas existentes entre videoclipe e cinema.

No primeiro capítulo fizemos uma reflexão sobre as relações entre vídeo e cinema, assim

como o lugar do videoclipe entre esses meios. Para entender o videoclipe, sua linguagem e

estética passamos pela influência que o vídeo exerceu como propulsor dessas incorporações

entre as diversas linguagens no audiovisual. As reflexões teóricas nas quais nos baseamos

permitiram que esta trajetória fosse identificada. Constatamos que para entender o videoclipe,

a relação entre a videoarte e o cinema é fundamental. As reflexões de Philippe Dubois,

Arlindo Machado, Raymond Bellour e Christine Mello nos levaram a identificar as

transformações sofridas pelo cinema a partir de sua relação com o vídeo. Com base nessas

reflexões também pudemos identificar o papel que o vídeo exerceu na mistura de linguagens

no audiovisual. E também nos instigaram a pensar o lugar do videoclipe na sua relação entre o

vídeo e o cinema. Como afirma Arlindo Machado:

“(...) O vídeo é um sistema híbrido; ele opera com códigos significantes distintos, parte importados do

cinema, parte importados do teatro, da literatura, do rádio e, mais modernamente, da computação gráfica,

aos quais acrescenta alguns recursos expressivos específicos, alguns modos de formar idéias ou sensações

que lhe são exclusivos, mas não são suficientes, por si sós, para construir a estrutura inteira de uma obra.”

(Machado, 1997, p.190-191)

As relações estabelecidas por Raymond Bellour entre o vídeo e o cinema, a análise da

videoarte e como se dão estas influências entre um e outro meio mostram uma perspectiva

para se entender o videoclipe como sendo também um ponto de encontro entre o vídeo e o

cinema. O conceito de entre-imagens possibilita uma reflexão sobre o videoclipe deste ponto

de vista, já que o videoclipe pode apresentar características da linguagem do vídeo e do

cinema. Esta abordagem de Raymond Bellour apresenta também a possibilidade de entender

o papel que o vídeo tem como um elemento fundamental para estas transformações que vêm

acontecendo nas imagens tanto do videoclipe como do cinema.

O videoclipe incorpora características de linguagem destes meios. Ele se apropria destas

características expressivas resignificando-as para assim criar uma estética particular.

Trouxemos exemplos do videoclipe percorrendo alguns trabalhos de Michel Gondry.

Identificamos em sua obra, principalmente na análise feita no capítulo dois, do videoclipe

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Bachelorette, elementos característicos deste meio. Na análise encontramos a forma como

elementos do cinema, da videoarte, do videogame e das artes plásticas são incorporados ao

videoclipe por este autor. A análise do videoclipe Bachelorette nos possibilitou identificar

como a narrativa e seus procedimentos de criação acontecem neste vídeo. A análise de

Bachelorette foi fundamental para entender a relação entre videoclipe e cinema.

As interações entre as linguagens do vídeo, videoclipe e cinema nos colocam no ambiente

da imagem audiovisual hibrida e pós-cinematográfica. As características apresentadas neste

contexto pedem uma abordagem de análise e leitura das obras que buscam delinear os

processos de construção de seus procedimentos de criação. A observação destas construções

poéticas foi feita a partir das relações estabelecidas entre as obras. A análise dos

procedimentos de construção permitem uma leitura do processo em sua mobilidade e

dinamicidade onde as conexões estabelecidas são fundamentais para o percurso criador do

artista. Para a análise, o estudo de Cecilia Almeida Salles nos trouxe as ferramentas teóricas

para entender estes procedimentos de criação através de suas incorporações. As obras

pediram uma análise e leitura não linear devido as suas características expressivas. E a partir

das relações estabelecidas pudemos identificar as transformações que o videoclipe exerceu

sobre o cinema. Para Cecilia Salles:

“Estou mais interessada, no momento, nos objetos que são, por natureza, processuais: obras que são

formas que se transformam. Nesses casos, a obra é processo. O crítico, com a intenção de compreender

esses objetos, necessita de instrumentos que falem de mobilidade, interações, metamorfoses e permanente

inacabamento, isto é, uma critica de processo.” (Salles, 2006, p. 162)

A análise do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças a partir das conexões

estabelecidas com o videoclipe, nos levou à identificação no filme da transformação de seus

procedimentos de criação e narrativa. A linguagem e a estética cinematográfica se modificam

a partir das incorporações feitas através das características expressivas do videoclipe com o

cinema. O processo de construção do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças

nos mostra como isto acontece. As incorporações de procedimento criativos do videoclipe e

no cinema transforma sua estética e sua narrativa, assim também como o videoclipe incorpora

características do cinema e da videoarte, além de outros meios. Esta reflexão nos leva ao

conceito de remediation trazida pelos autores Jay David Bolter e Richard Grusin. O estudo

feito por estes autores a partir da análise da media contemporânea e como estas se remodelam

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umas as outras constantemente pode ser identificada tanto no caso do videoclipe como no

caso do cinema.

A análise e leitura não linear das obras nos levou a identificação da principal característica

de suas narrativas. Tanto no videoclipe, Bachelorette, como no filme, Brilho Eterno de uma

Mente sem Lembranças, a narrativa deixa de ser linear e descritiva e se torna não linear.

Pudemos identificar o processo de construção da narrativa em rede nestas obras. Como coloca

Cecilia Salles:

“Ao adotarmos o paradigma da rede estamos pensando o ambiente das interações, dos laços, da

interconectividade, dos nexos e das relações, que se opõem claramente àquele apoiado em segmentações e

disjunções.” (Salles, 2006, p. 24)

O processo de construção da narrativa em rede nos leva a olhar as obras e seus

procedimentos de criação e características expressivas como um processo de relações e

transformação. As características de não linearidade e construção em rede são características

inerentes a estas obras. São incorporações que vêm sendo feitas a partir do vídeo.

No filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Michel Gondry, incorpora

estas características expressivas à linguagem e à narrativa do filme. Ele traz procedimentos

de criação do videoclipe misturando-os com os do cinema. Assim ocorre a transformação. A

partir destas análises e reflexões identificamos no cinema uma transformação em sua narrativa

e estética. Já não podemos mais basear-nos na linguagem do cinema clássico quando

tratamos de obras hibridas como é o caso de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

A relação de Michel Gondry com outros meios, como o videoclipe, é fundamental para

entender as transições que o artista faz de procedimentos de criação de um meio para outro.

A forma como o autor faz isto tanto no videoclipe como no cinema embora tenham

lógicas diferentes, se dá através das misturas de procedimentos de criação de um meio e outro.

São interações e incorporações entre as estruturas de linguagens do videoclipe com o cinema

e vice versa que geram novas possibilidades de construção das obras.

Para fazer isto, Michel Gondry utiliza elementos próprios do audiovisual como a

sobreimpressão de imagens, a voz off com a imagem, a palavra sobre a imagem, a música e os

cenários, a construção de camadas de imagens e nÍveis narrativos, a textura, e a incrustração

relacionando estes elementos e estabelecendo nexos entre eles. Assim cria-se um espaço

heterogêneo tanto no videoclipe como no filme.

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Os elementos acima mencionados usados pelo artista nas obras analisadas permitem a

construção narrativa não linear e em rede. A criação de camadas através da superfície da

imagem e a incrustação no filme e, a sobreimpressão no videoclipe gera uma economia

narrativa e a característica de multiplicidade. Estamos falando de uma narrativa que se

bifurca no tempo, é fragmentada e gera diversos níveis por onde ela acontece. Ao mesmo

tempo em que estas características de multiplicidade e fragmentação são inerentes à estética

das obras, as camadas permitem a continuidade diegética. A continuidade, tanto no nível da

narrativa como no da história, permite o estabelecimento de nexos e não deixa que as obras se

tornem completamente abstratas.

O filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças deixa de lado a construção

narrativa e as características expressivas próprias da linguagem cinematográfica, como a

profundidade de campo, a noção de plano, a montagem, e a linearidade narrativa. Através da

análise do filme vemos as características de composição de imagem, mixagem de imagens, o

trabalho com a superfície da imagem, a incrustação, as camadas no plano visual e sonoro e a

construção narrativa não linear e em rede. Estes modos de tratar a imagem e o som geram a

característica de desconstrução e inacabamento. O filme está em constante processo de

construção e desconstrução. Isto acontece através do uso que o diretor faz da plasticidade da

imagem, da textura, da fotografia, da direção de arte e dos cenários. Características como a

deformação da imagem e som, imagens fora de foco, fotografia subexposta ou sobrexposta, o

uso de cores fortes, a aparição do flare, o uso de desenhos substituindo imagens e a

composição da imagem feita pela câmera levam à estética do inacabamento e da

desconstrução. Michel Gondry também incorpora elementos de gêneros clássicos do cinema

resignificando-os no filme em função da estética e qualidade necessário a cada situação. O

aparato tecnológico do cinema e os recursos de filmagem estão em função da estética do filme

e o diretor utiliza-os para lograr os efeitos necessários ao filme. A inversão de estereótipos do

cinema e a construção das características dos personagens também são usadas pelo diretor

com o mesmo propósito.

Através destas características, a edição e o tempo no filme ganham outro valor. O

tempo se bifurca assim como a memória do personagem. A desconstrução e reconstrução das

imagens, de suas superfícies e camadas permitem a continuidade e a relação entre as imagens

formando o processo narrativo do filme. O filme acontece entre uma imagem e outra, entre as

camadas e níveis narrativos, dando significado a historia.

Esta forma de representação é menos realista e figurativa. As construções poéticas,

tanto do videoclipe como do filme, tendem à abstração. No filme, a referência espaço

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temporal se dilui e as marcas passam a ser a própria forma de composição da imagem e a

relação que estas estabelecem com o som. O som, a imagem e o tempo são características

intrinsecamente ligadas ao videoclipe e que passam a ser utilizadas para a composição estética

e narrativa do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

O cinema, a televisão, o vídeo, as histórias em quadrinhos, o vídeo game e a internet

se relacionam e incorporam suas características expressivas. A relação entre videoclipe e

cinema transforma a estética cinematográfica. Cada vez mais com o surgimento de novos

meios e novas tecnologias vemos como o audiovisual vem se transformando tanto em seu

aspecto estético como técnico. Isto gera a mistura de linguagens e a novas possibilidades de

construções poéticas. A transformação leva a modificação no modo de representação das

linguagens inerentes a estes meios.

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BIBLIOGRAFIA

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- FLUSSER, Vilém. A Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. - GAUDREAULT, André e JOST, François. El Relato Cinematográfico. Barcelona: Ediciones Paidós, 1995. - GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma Verdadeira História do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989. - HAUSER, Arnold. Historia Social de la Literatura y el Arte I, II, III. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969. - LUKACS, Georg. Narrar o Describir?. Berlin: Aufbau-Verlag, 1936. - MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997. - MACHADO, Arlindo. O Quarto Iconoclasmo e Outros Ensaios Hereges. Editora Contra Capa, 2001. - MACHADO, Arlindo. A Televisão Levada a Sério. São Paulo, SP: Editora Senac, 2001. - MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 2007. - MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: Três Décadas do Vídeo Brasileiro. São Paulo, SP: Iluminuras, Itaú Cultural, 2007. - MACIEL, Maria Esther (org.). O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway. São Paulo, SP: Unimarco Editora, 2004. - METZ, Christian. A Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1977. - MERTEN, Luis Carlos. Cinema Virou Arte Burra. Estado de S. Paulo, Caderno 2. Terça-Feira, 10 de Julho de 2007. - MOURÃO, Maria Dora. O tempo no Cinema e as Novas Tecnologias. Cienc. Cult., Out/Dec. 2002, vol. 54, p. 36-37. - MOLINA, Camila. Artistas Criam no Território do Videoclipe. Estado de S. Paulo, Caderno 2. Sexta-Feira, 20 de Julho de 2007. - NIETZSCHE, Friedrich. El Nacimiento de la Tragedia. Madrid: Alianza Editorial, 1995. - PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Hereje. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. - REZENDE, Marcelo. Ciência do Sonho: a Imaginação Sem Fim do Diretor Michel Gondry. São Paulo: Alameda Editorial, 2005.

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- REZENDE, Marcelo e OLIVA, Fernando (org): Comunismo da Forma: Som, Imagem e Política da Arte. São Paulo: Alameda Editorial, 2007. - REZENDE, Marcelo. Não Gosto de Ironia Gosto de Humor. Folha de S. Paulo, Ilustrada. Segunda-Feira, 28 de janeiro de 2008. - ROHMER, Eric e PASOLINI, Píer Paolo. Cine de Poesia Contra Cine de Prosa. Barcelona: Editorial Anagrama, 1976. - SADOUL, Georges. Historia del Cine Mundial desde los Orígenes. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969. - SALLES, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado – Processo de Criação Artística. São Paulo, SP: Annablume Editora. 2001. - SALLES, Cecilia Almeida. Redes da Criação: Construção da Obra de Arte. Vinhedo, SP: Editora Horizonte, 2006. - SONTAG, Susan. Contra la Interpretación. Buenos Aires: Alfaguarra, 1996. - TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. - XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Periódicos

- DIRIGIDO. Barcelona: Marzo 2000. - EL AMANTE. Del montaje a la fusión. Buenos Aires: Julho, 2004. - EL AMANTE. La amante del volcán. Buenos Aires: Fevereiro, 2001. - EL AMANTE. Un milagro con cabeza. Buenos Aires: Março, 2000. - EL AMANTE. Mister Jonze. Buenos Aires: Março, 2000. - POSITIF. Paris: Outubro, 2004. - SIGHT AND SOUND. I forgot to remember to forget. Londres: Maio, 2004. - ZETA FILMES. Entrevista Michel Gondry e Charlie Kauffman - 04/05/04. Anthony Kaufman, encontrado no site: http://www.zetafilmes.com.br/interview/gondryekaufman.asp?pag=gondryekaufman Páginas de Internet: - http://www.directorslabel.com - http://comunismodaforma.zip.net.

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- http://www.michelgondry.com - http://www.markromanek.com - http://www.youtube.com - http://www.focusfeatures.com Catálogos:

- Comunismo da Forma: Som + Imagem + Tempo, A Estratégia do Video Musical. 2007. Curadoria: Fernando Oliva e Marcelo Rezende. São Paulo, SP. Galeria Vermelho - Colateral 2: Quando a Arte Olha o Cinema. 2008. Curadoria: Adelina Von Fürsternberg. Colaboração: Anna Daneri e Andrea Lissoni. Projeto de Hangar Bicocca. Organização: Art for the World. São Paulo:SESCSP

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APÊNDICES

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SINOPSE

Joel (Jim Carrey) fica surpreendido ao descobrir que sua namorada, Clementine (Kate

Winslet), apagou de sua memória a turbulenta relação que eles tinham. Desesperado, ele

entra em contato com o médico que fez o procedimento, Dr. Howard Mierzwiak (Tom

Wilkinson), para fazer o mesmo. Mas a medida em que as memórias de Clementine começam

a desaparecer, Joel de repente se da conta o quanto ele ainda a ama.

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FICHA TÉCNICA

Eternal Sunshine of a Spotless Mind

(Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças)

Sinopse:

Joel (Jim Carrey) fica surpreendido ao descobrir que sua namorada, Clementine (Kate

Winslet), apagou de sua memória a turbulenta relação que eles tinham. Desesperado, ele

entra em contato com o médico que fez o procedimento, Dr. Howard Mierzwiak (Tom

Wilkinson), para fazer o mesmo. Mas a medida em que as memórias de Clementine começam

a desaparecer, Joel de repente se da conta o quanto ele ainda a ama.

Direção:

Michel Gondry

História:

Michel Gondry

Charlie Kauffman

Pierre Bismuth

Roteiro:

Charlie Kauffman

Elenco:

Jim Carrey

Kate Winslet

Elijah Wood

Mark Ruffalo

Kirsten Dunst

Tom Wilkinson

Música Original:

Jon Brion

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Direção de Fotografia:

Ellen Kuras

Edição:

Valdís Óskarsdóttir

Direção de Arte:

David Stein

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Michel Gondry.