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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Wagner Cipriano Araujo A via média. Política e religião em Rousseau. MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Wagner Cipriano Araujo

A via média. Política e religião em Rousseau.

MESTRADO EM FILOSOFIA

São Paulo 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Wagner Cipriano Araujo

A via média. Política e religião em Rousseau.

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Doutora Maria Constança Peres Pissarra.______.

São Paulo

2010

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Banca Examinadora __________________________________ __________________________________ __________________________________ ________________________________

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Dedicação:

Aos meus alunos e minha família.

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Agradecimento

Como primeiro agradecimento gostaria de expressar em palavras o meu sentimento

de gratidão à professora Maria Constança, minha orientadora, a paixão acadêmica

por Rousseau e por todo o século XVIII marcaram a minha vida e minha pesquisa

profundamente. Além disso a paciência pelas minhas “sumidas” e o sempre disposto

auxilio na solução de problemas de ordem burocrática resultaram nesse momento.

Sem o seu companheirismo esse trabalho não seria possível.

À professora Sônia e à Professora Maria das Graças que em minha não muito calma

banca de qualificação, ajudaram a minha viciada visão a perceber o que estava

incoerente no texto.

À Siméia da secretaria da pós graduação da PUC –SP pela paciência em nos avisar

tudo que teríamos que cumprir.

À Diocese de Santo André da Igreja Católica que subsidiou meus estudos filosóficos

na graduação enquanto ainda era seminarista e a quem devo muito de tudo o que

sou, meus sinceros e emocionados agradecimentos a todos que fizeram parte dessa

história, sobre na figura do Pe. José Herculano e do falecido bispo diocesano Dom

Décio Pereira.

À direção da escola Estadual Amaral Wagner que sempre me apoiou e mesmo com

minhas ausências todos demonstraram-se amigos durante esse processo.

Ao meu amigo Professor Wanderlei da Silva (que é intelectualmente o que eu

gostaria de ser) pela ajuda na leitura, nas correções e na sempre sincera e bem

humorada verdade sobre o conteúdo do texto.

À Rita de Cássia, companheira e amor da minha vida pela compreensão e paciência

nas ausências por conta dos estudos e da redação dessa pesquisa.

E por fim ao professor Ênio que despertou em mim a paixão pela filosofia.

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Resumo

Este estudo busca apresentar a posição na obra de Rousseau com relação às

implicações políticas da religião nas ações políticas dos povos. Essa apresentação

será feita a partir do exame dos textos do autor em que podemos localizar uma

discussão especifica sobre o tema. Para chegar ao objetivo, o trabalho trata primeiro

da relação política e religiosa nos povos antigos; depois passamos à crítica feita por

Rousseau ao cristianismo enquanto forma política dissolvida nas religiões nacionais

e por fim apresentamos a saída dada pelo autor para resolver as contradições

apresentadas pelas modalidades religiosas citadas. Essa solução foi chamada por

ele de religião civil.

Palavras -chave: Rousseau, Política, religião.

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Abstract .

This study aims at presenting the position in the work of Rousseau regarding the

political implications of religion in the political actions of people. This presentation will

be made by examining the texts of the author in which one can find a specific

discussion on the topic. To reach the goal of this study, the first topic which is dealt

with is the political and religious relationship amongst ancient civilizations; then one

discusses the criticisms made by Rousseau to Christianity as a political form

dissolved in national religions. Finally, one presents the issues proposed by the

author in order to solve the contradictions presented by religious rules cited.

Rousseau called his proposed solution civil religion.

Keywords: Rousseau, Politics, Religion.

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................................... 09

1. Política e religião nos povos antigos: “O Deus polí tico ”.............................................. 14

1.1 A fé política. .................................................................................................................... 15

1.2 Relação entre política e religião nos povos antigos. ........................................................ 19

1.3 A delimitação da ação nos povos antigos: Religião, política e território. .......................... 26

1.3.1 Religião, política e território: o exemplo judeu........................................................... 33

1.4 A experiência romana como religião nacional ................................................................. 38

2. “Os vigários do Deus político” ....................................................................................... 46

2.1 A quebra da unidade entre política e religião: O reino dos céus e o reino da terra .......... 48

2.2 A impossibilidade do cristianismo enquanto religião nacional.......................................... 56

2.2.1 A sustentação do poder político sem a noção de território: Comunhão e excomunhão ...................................................................................................................... 60

2.2.2 Universalismo e o poder soberano............................................................................ 63

2.3 O uso político da religião cristã como um mal para o Estado e para a religião ................ 65

2.3.1 O uso político do cristianismo: Um erro contra a religião........................................... 65

2.3.2 A intolerância. ........................................................................................................... 67

2.3.3 O uso político do cristianismo: Um erro contra a política........................................... 70

3. A via média ...................................................................................................................... 82

3.1. A religião como necessidade e não como instrumento. .................................................. 83

3.2. O primeiro tipo de religião: A religião do homem. ........................................................... 86

3.2.1. O segundo tipo de religião: A religião do cidadão. ................................................... 89

3.2.2. O terceiro tipo de religião: A religião do Padre. ........................................................ 91

3.3. A Religião Civil no Contrato Social: Entre a religião do homem e a do cidadão.............. 93

Considerações finais ........................................................................................................ 103

Bibliografia . ....................................................................................................................... 108

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Introdução

Esta Dissertação trata de um dos temas mais importantes e conflitantes

da filosofia política moderna: a discussão sobre as implicações políticas da

religião na esfera social no pensamento de Jean Jacques Rousseau. O

trabalho desenvolvido procura se apresentar como uma reflexão possível sobre

o conflito entre política e religião, que no século XVIII, envolveu várias posições

filosóficas divergentes. A pergunta que movimenta as hipóteses desse trabalho

é: de que maneira a religião pode estar vinculada ao Estado sem provocar

danos a si mesma e a sociedade?

Em todos os tópicos abordados haverá sempre a preocupação em

demonstrar como as idéias de Rousseau referentes, de um lado, à religião e,

do outro, à política se relacionam. Em particular tentamos por meio desse texto

fazer uma investigação da presença do debate entre religião e política no

pensamento de Rousseau, onde destacadamente o Contrato Social é o texto

central, pois contém os principais argumentos que tratam especificamente dos

conceitos dedicados ao esclarecimento da presença e do valor da religião e de

seus vínculos institucionais estabelecidos em algumas modalidades sociais.

Em seu pensamento Rousseau ora acolheu uma influência das antigas

religiões, ora acolheu um cristianismo do “evangelho”, ora deles separou-se

para, finalmente pensar um modelo de relação político religiosa à margem do

cristianismo e do ateísmo. Em poucas palavras procuramos entender o lugar

que a religião ocupa no pensar político de Rousseau.

Na perspectiva de apontar detalhes que possam ser reveladores das

fontes das idéias religiosas e políticas de Rousseau, pretendemos localizar o

seu pensamento traçando um paralelo com suas idéias filosóficas em geral,

como a soberania do Contrato e da Vontade Geral.

Para tanto, o ponto de partida é a consideração de que o século em que

Rousseau vive sofre uma crise violenta sobre a presença da dúvida e do

ceticismo que vai em seguida marcar toda a modernidade. Nesse movimento

do XVIII a religião sofreu, em seus fundamentos, um lento desgaste seja pela

crítica epistemológica de base cartesiana ou não – como Montaigne – seja pelo

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avanço de uma burguesia cada vez mais ávida pelo poder político e pela

descentralização das decisões nas mãos de um homem e de uma Igreja oficial.

Assim localizamos em alguns filósofos como Diderot e Voltaire, uma

forte presença do temas da religião e da sua relação com a política, tal como

da secularização e do ateísmo e, principalmente, a expectativa política do

advento de uma época em que todos os homens fossem livres e não

reconhecesse outro amo a não ser a própria razão. O diferencial localizado no

pensamento de Rousseau deve-se ao fato de haver criticado com a mesma

força tanto o pensamento intelectualista quanto ao pensamento teológico, ele

ataca tanto a ateus como crentes.

No centro de todas essas polêmicas encontramos em Rousseau e,

sobretudo, no texto sobre A Religião Civil que fecha o Contrato Social os

pontos que mais esclarecem a temática sobre religião e política e sobre a sua

possível relação na sociedade. Procuramos mostrar o que há de singular no

pensamento político/religioso de Jean Jacques, e a sua tentativa de conciliar

dois temas que para muitos já estavam por força das contingências históricas

caminhando para uma separação inevitável.

Política e religião quando pensados sobre uma mesma bandeira são

conceitos bastante controversos em toda a história e levam Rousseau a pensá-

los dentro da evolução das sociedades políticas. Não é a toa que a temática

em sua obra é polêmica e inesgotável. Com este estudo procuramos esclarecer

como as idéias relacionadas a religião e política se desdobram em seu

pensamento e de que forma elas podem conviver unidas, livres de danos

dogmáticos e de paixões pessoais.

A dinâmica do pensamento de Jean Jacque para entender a relação

entre religião e política parte de uma certa genealogia dos efeitos sociais

provocados pelas crenças religiosas nas sociedades políticas em momentos

específicos da história humana. Como já foi dito, estamos diante de um

pensador, vivendo em um século de profundas transformações políticas e

religiosas, mas que não ignora o que foi vivido ao longo das transformações

históricas.

Para Jean Jacques Rousseau o Estado deve ser laico, mas deve

preservar um certo revestimento sacro no meio público, pois assim garante

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com maior facilidade a ordem e ajuda no respeito às leis e as decisões do

contrato.

Para entender melhor essa necessidade de revestimento dos eventos

políticos de uma forma religiosa tomamos no Contrato a figura do Legislador. O

Legislador é a figura daquele que dá as leis a um povo, não faz leis por si

mesmo, mas consegue por sua condição ler a vontade geral e agir em

conformidade a ela. Ele trás no revestimento de sua autoridade uma roupagem

divina.

O Legislador é para os Estados um “homem extraordinário”1 que, é

capaz de expressar a vontade geral do povo na forma de leis, estabelece

efetivamente o corpo político: “Para descobri as melhores regras de sociedade

que convenham as nações, precisar-se-ia de uma inteligência superior”2. Mas

para que essa obra extraordinária se consolide o Legislador necessita recorrer

à religião, ou seja, o Legislador recobre a sua ação e o resultado dela(as leis)

partindo da crença universal dos homens de que existe um ser criador,

salvador e juiz de todos os homens. Logo, o Estado estará protegido por

convenções sagradas, protegidas das ações particulares dos homens.

A religião não se apresenta na história dos homens como um evento

insignificante e que se sua presença não tivesse existido pouco representaria a

convivência dos homens em sociedade. Essa idéia pode ser encontrada na

primeira das Cartas escritas da montanha, Rousseau afirma que a religião “é

útil e até mesmo necessária aos povos”3.

Esse trabalho busca entender, afinal, que a intenção de Rousseau não é

eliminar a presença religiosa do Estado e nem participar da fundação de uma

nova Igreja para prestar culto as Leis e as figuras ilustres4 da sociedade, mas o

que ele busca pensar é um tipo de religião que esteja entre as convicções do

homem, para consigo mesmo e para com o próximo, e que também ajude o

cidadão a ser fiel ao Estado, se que para isso provoque conflito entre uma e

outra das relações. Nossa discussão transcorre sobre a possibilidade de uma

“via média” entre a religião do homem e a do cidadão.

1 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII, p.57 2 Ibidem. p.56. 3 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. 4 Como os positivistas seguidores de Augusto Comte fizeram um século mais tarde.

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***

Esta dissertação está esquematicamente dividida em três capítulos.

No primeiro capítulo, o alvo da investigação será a relação entre política

e religião nos povos antigos. Na ordem do texto, Rousseau segue de uma

primeira afirmação sobre as relações políticas entre os homens e logo em

seguida cita Calígula como marco, parte então para uma justificativa sobre a

importância da religião como unificadora dos povos e para a análise da

experiência política religiosa em cada sociedade separadamente. Não há uma

ordem cronológica estabelecida, ele toma os gregos, transitando para

Babilônicos, indo a cristãos e voltando aos sumérios.

Para essa organização no primeiro capítulo, fizemos a análise do texto

do Contrato Social levando em consideração somente a sua primeira parte,

quando tratamos da “instituição da política divinizada”, ou seja, daquele que

como deus governa divina e humanamente, e como o objetivo não é apresentar

o pensamento ligado às experiências religiosas do autor, nossa leitura toma

como base a seguinte ordem: contextualizar as implicações religiosas na

política e a similaridade dessas implicações em todos os povos antigos;

demonstrar como Rousseau se apega a tese de delimitação territorial para

sustentar a idéia de que as religiões eram nacionais; e por fim, apresentar a

particularidade do império romano como um evento político religioso novo, nas

relações e as implicações da introdução do conceito de império.

No segundo Capítulo, tomamos como hipótese de que para Rousseau o

cristianismo é um evento totalmente novo enquanto pensamento político.

Para sustentar essa idéia a argumentação do texto do Contrato Social,

vai se estender em torno da consolidação do cristianismo como forma política e

de sua atuação para a modificação das relações sociais. Para um melhor

esclarecimento nos foi necessário recorrer a mais um texto de Rousseau que

são as Cartas Escritas da Montanha.

Para a organização do segundo capítulo, tomamos a seguinte ordem:

contextualizar as implicações religiosas do cristianismo enquanto religião

oficial; demonstrar como Rousseau se apega a tese de que o cristianismo não

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pode se configurar como uma religião nacional, demonstrar também que o

cristianismo rompe a unidade do Estado; e por fim, demonstrar que todo

movimento em direção a uma “estatização” do cristianismo terminará sempre

com a corrupção da política e da própria religião.

No terceiro capítulo será feita uma análise da última parte do texto sobre

a Religião Civil. O que também estará presente nessa última parte da

dissertação será a tentativa de demonstrar a hipótese de Rousseau de como

podemos pensar uma religião não do Estado, como nas antigas religiões,

também não separada dele como o cristianismo, mas uma religião para o

Estado.

Ainda no terceiro capítulo, notamos que o problema central está na

apresentação da religião civil como uma espécie de instituição religiosa

alternativa, uma “via média” que se apresenta na forma de uma profissão de fé

mais adequada para o cidadão e também para o Estado. O que ficou evidente

é que na proposta da religião civil, Rousseau leva em conta duas espécies de

religião definidas a partir de perspectivas distintas da sociedade: a religião do

homem (do ponto de vista da sociedade geral) e a religião do cidadão (do

ponto de vista da sociedade particular).

Por fim terminamos nossa análise tomando como base os

dogmas da religião civil e a sua relação mista, ora religiosa, ora social.

***

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1. Política e religião nos povos antigos: “O deus p olítico”

“Os homens de modo algum tiveram a princípio outros reis além dos

deuses, nem outro Governo senão o teocrático”.5 Os deuses reinam sobre os

homens, assim abre Rousseau o capítulo oitavo do livro quarto do Contrato

Social que tem como título e tema de discussão a Religião Civil. O reinar dos

deuses sobre os homens possui que tipo de fundamento? Os deuses se fazem

carne ou subsistem por meio daqueles que se arrogam governar em seu

nome?

No debate moderno sobre os limites e o verdadeiro valor das relações

entre política e religião, encontram-se presentes as influências produzidas pela

filosofia política de Rousseau, ao uso político da religião como instrumento de

justificação divina do poder. A separação efetiva entre esses dois mecanismos

passa a se tornar realmente concreta no início do período clássico e possui o

seu ápice marcado no século XX.

Ora, a separação entre o poder político e o religioso se configura em

concepções próprias do período moderno. Avançar nos estudos das

implicações da religião sobre a política, nos conflitos provocados pela sua

união, em determinada época histórica e pela sua separação radical em outra,

desembocou em discursos e debates por parte de alguns pensadores, tais

como Diderot, Voltaire e Rousseau. A religião, sobretudo, o cristianismo é

agora um assunto da política moderna torna-se também cada vez mais

importante a tentativa de seu enquadramento dentro dos sistemas jurídicos e aí

está o início do nosso debate.

O que se coloca a nós com os fatos novos levantados pelo cristianismo

e politizados pelos Estados modernos é o seguinte: o que é a religião enquanto

instrumento político? A relação entre religião e política sempre foi conflituosa?

Perguntar sobre as relações políticas e religiosas em uma esfera pública

é também se perguntar como essas relações são possíveis e em que contexto.

Em segundo lugar, perguntar como o poder político pode ser reafirmado, sob

5 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 137.

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que circunstâncias ele deve dar espaço à religião, e que tipo de dimensão

religiosa pode fazer funcionar tanto política quanto religião sem conflito?

Este capítulo não discutira necessariamente todos os campos que

envolvem a história das religiões. O nosso maior alvo será discutir quais foram

de fato as implicações das formas religiosas nos contextos políticos dos povos

antigos, e aqui tomaremos como povos antigos, os sumérios, babilônicos,

gregos, romanos e o povo judeu, ou seja, os povos que de fato deram

relevância à relação político-religiosa a tal ponto de não terem garantido a sua

própria subsistência sem que para isso a existência de seu divino governante

estivesse protegida.

Em nossa investigação, tomamos o cuidado de sequenciar os fatos

históricos citados, buscando seguir a ordem estabelecida por Rousseau.

Dividimos o texto da Religião Civil da seguinte forma: parte um, a análise das

implicações religiosas na política nos povos antigos; parte dois, o cristianismo

como evento novo e diverso nas estruturas sociais e no último capítulo deste

trabalho o problema com a religião civil.

1.1. A fé política.

Os governos sempre fizeram uso de um grande trunfo a seu favor: a fé.

Fé enquanto definição paulina de crença em coisas que não se veem6. Na

leitura de Rousseau, talvez essa afirmação de Paulo fique um pouco vaga, pois

não se trata aqui de fazer um uso da fé buscando referências metafísicas ou de

aperfeiçoamento do espírito. Trata-se aqui de afirmar a fé que os príncipes

possuem e qual a sua natureza.

Ora, para entender o movimento da figura do divino como motor da

história no pensamento de Rousseau será preciso primeiro entender o

movimento da história dentro das dimensões religiosas, e como a política se

efetivou através da unificação entre a ação social e coletiva e a sacralização

religiosa, ou seja, uma espécie de fé política.

A fé usada pelos príncipes tinha e tem uma outra conotação: não

apenas de estabelecer um vínculo de fé entre os deuses e os homens, mas

6 Cf: Hebreus 11:1-2

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levar os homens a acreditar que a fé também precisa ser um mistério de

entrega daquilo que se vê, que se escuta, que se vive: trata-se aqui de uma fé

na política, ou uma fé política.

Fé na política, ou melhor, em seus representantes políticos, não é

possível apenas crendo no poder dos deuses, mas seria necessário crer no

poder que os deuses podem dar aos homens, para governarem os homens em

seu nome.

Rousseau impõe um questionamento logo no início do debate sobre a

religião civil: “como fazer um semelhante assumir outro como seu senhor?”.7

Não seria fácil, de nenhum modo afirmar que as tábuas da Lei de Moisés foram

forjadas por um homem comum que pensava apenas em estabelecer o seu

próprio reinado. Segundo Robert Derathé, é necessária a crença de que o

poder não é algo meramente humano, mas que emana de um espaço divino8.

Uma vez divinizado o poder, os governantes assumem então a

responsabilidade para guiar o poder, assumir a verdade sobre ele. Esta ação

de transformar o poder político e religioso em uma e mesma coisa não é um

evento novo na história humana.

Os governantes existentes até hoje buscaram assimilar estes dois

pontos para assim justificar a sua autoridade. É claro que todos os governos,

de uma forma ou de outra, sustentaram sua ação política sob a tutela sacral de

uma religião. O florentino Maquiavel nos ajuda a entender um pouco essa

questão:

E de fato, nunca houve ordenador de leis extraordinárias, em povo nenhum, que não recorresse a Deus; por que de outra maneira elas não seriam aceitas: pois há muitas boas coisas que os homens prudentes conhecem, mas que não têm em si razões evidentes para poderem convencer os outros9

Os homens que governam podem não expressar figuras que se parecem

divinas, afinal nasceram de mulher, fruto de uma relação sexual como todos os

homens, contudo, são especiais, pois representam o poder divino através de

suas ações. Seus corpos não são de matéria divina, mas o poder que

7 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 137 8 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, p. 50. 9 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes. p. 50.

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representam emana das divindades10. O poder é algo divino, o que nos permite

dizer que aqueles que representam poder também se sentem assim, divinos,

puros, santos e verdadeiros, pois representam o algo que está muito além de

nossa percepção, algo místico e transcendente:

Raciocinaram como Calígula e, então, raciocinaram bem. Impõe-se uma lenta alteração de sentimentos e de ideias para que se possa resolver aceitar um semelhante como Senhor e persuadir-se de que assim se estará bem11

E continua Rousseau:

Não é todo homem, porém, que pode fazer os deuses falarem, nem ser acreditado quando se apresenta como intérprete. A grande alma do Legislador é o verdadeiro milagre que deverá autenticar sua missão. Qualquer homem pode gravar tábuas de pedra, comprar um oráculo, fingir um comércio secreto com qualquer divindade(...) Aquele que só souber fazer isso, pode até reunir casualmente um grupo de insensatos, mas jamais fundará um império·(...)12

Uma vez que se representa o divino, quem o representa assume

também uma forma quase divinizada e tudo que vem desses “ministros”

também configura uma atitude divina segundo Rousseau. Logo, um povo passa

também pela tutela do divino poder; a religião sustenta as ações dos homens,

tanto de forma individual, quanto coletiva; ora, sendo assim, são as divindades

que sustentam as ações dos homens em grupo: agir é seguir em tudo a

vontade dos deuses, e não apenas a vontade meramente humana.

No início de seu texto, Rousseau nos apresenta um grande modelo

unificador. Calígula foi alguém que, com grande percepção política, reuniu sob

seu controle a personificação do poder divino, estabelecendo-se assim como

homem, e assumindo a titulação de imperador divino. Rousseau não escolhe a

figura de Calígula de forma aleatória, afinal o imperador romano deu a si

mesmo uma nova natureza que já o colocava sobre aqueles aos quais ele

estabeleceria um governo13.

10 BURGELIN, P. La philosophie de l’ existence de J.J. Rousseau. Paris: Temps Moderns. p. 440. 11 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 137. 12 Ibidem, p. 59. 13 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 137.Nota do tradutor.

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É claro que Calígula não foi o primeiro na história a manifestar o seu

poder civil sob a tutela de um poder divino. Os faraós egípcios também o

fizeram, como também os antigos reis da Babilônia e da Pérsia. No fundo, para

Rousseau, Calígula e todos os outros trazem em si uma grande semelhança:

descobrem na unificação entre o poder divino e o poder civil um grande trunfo,

afinal a grande questão a ser discutida é como alguém pode aceitar como

senhor alguém que não possua uma natureza distinta da dele? Como afirma

Rousseau: “Raciocinaram como Calígula e raciocinaram bem. Impõe-se uma

lenta alteração de sentimentos e de ideias para que se possa resolver aceitar

um semelhante como senhor e persuadir-se de que assim se estará bem”.14

Maurice Halbwachs, em sua edição crítica do Contrato Social faz uma

referência a uma possível justificativa dessa aceitação:

Aqui, Rousseau diz que naquele tempo, esse raciocínio era justo: os homens, mais próximos do estado de natureza, cujos sentimentos e ideias estavam menos “alterados”, só teriam obedecido a chefes se tivessem acreditado que estes não eram apenas homens como eles15

Senhores eram necessários, afirma Rousseau; contudo, o

reconhecimento de que os senhores eram superiores em natureza a seus

servos partia do princípio de que eles estavam ligados naquele momento às

ideias e sentimentos que lhes eram acessíveis. A ideia estava baseada no

princípio de que não havia dois senhores, mas um só, pois o fato de os

governantes serem representantes dos deuses identificava, que os senhores

eram deuses, e naquele momento da história não havia uma separação entre o

povo e os seus deuses16, logo, os deuses, estavam à frente de cada sociedade

política17.

Porém, a ideia de um poder civil que em tese emana de um poder divino,

ou melhor, que não só emana, mas configura um elo duradouro entre o terreno

e o eterno, só poderia sustentar-se a partir do momento em que a ideia de um

deus é colocada à frente de uma sociedade.

14 Ibidem. 15 ROUSSEAU, J.J. Du contrat social. Paris Aubier, 1943, p. 413, Nota nº 353. 16 Um povo tem sua consolidação enquanto tal no momento em que o seu deus também se consolida para o guiar, defender, punir e salvar. 17 ROUSSEAU, J.J.. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 136.

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Legislar em nome dos deuses ou assumindo a forma de uma figura

divina é obrigar a uma ação também em nome dos deuses, de algo maior,

fortalecendo assim a coesão social, pois o indivíduo sente-se obrigado não

somente a respeitar o homem que está se sobrepondo a outros homens, mas a

respeitar o divino homem, que impôs as divinas leis18. Romper com isso não

significa estar fora apenas da comunhão social dos indivíduos, mas estar fora

da comunhão eterna com os deuses, que não recebem humanos

desobedientes e rebeldes tanto a eles, os deuses, como a seus emissários.

Cito Rousseau:

Eis o que, em todos os tempos, forçou os pais das nações a recorrerem à intervenção do céu e a honrar nos deuses sua própria sabedoria. A fim de que os povos, submetidos às leis do Estado como às da natureza e reconhecendo os mesmos poderes na formação do homem e na da cidade, obedecem com liberdade e se curvassem docilmente ao jugo da felicidade pública19

Essa unificação entre o poder político e o poder religioso se deu de

forma a ser introduzida nas relações de Estado nos povos antigos. Nas antigas

civilizações não há uma separação entre as duas ações, elas estão sob o

mesmo cajado, unidas, política e religião dissolvendo-se uma na outra. Logo,

se quisermos entender os problemas provocados dentro do Estado pela

religião enquanto tentativa de ser uma religião nacional, será necessário passar

pela análise feita por Rousseau das relações entre política e religião nos povos

antigos, o que acompanharemos nos próximos tópicos.

1.2. Relação entre política e religião nos povos an tigos.

O texto de Rousseau sobre a Religião Civil, no Contrato social, abre-se

com uma análise não de caráter histórico da trajetória das religiões, mas busca

entender a trajetória do poder e suas implicações religiosas nos contextos

políticos, e perceber o que há de comum entre cada povo da antiguidade e sua

dimensão religiosa, antes do advento do cristianismo. Trata-se neste momento

de estabelecer na história um exato ponto em que o soberano fazia as vezes

18 Cf. FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. P. 100 e 104. 19 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultura. Livro IV, Capítulo VIII, p. 138.

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de ministro das divindades, não um ministro de ofícios meramente religiosos,

mas como ministro configurado da ordem civil pode-se nesse momento

defender que o governo era de todo exercido pelos deuses, ou seja, era uma

teocracia, não no sentido moderno quando pontífices governavam em nome de

deuses, mas eram os próprios deuses por seus ministros, também divinos, que

governavam.20

Nos primeiros tempos, a figura do governante confundia-se com a representação do sagrado; assim, os reis eram também sacerdotes e uma só pessoa exercia os dois papeis, ou então, eram duas atividades diversas, mas ambas mantinham o caráter de figuras sagradas21

Para entender melhor essa relação entre o divino e a sua presença na

figura do governante, é preciso entender etimologicamente o sentido do termo

sagrado, para isso tomaremos por base o texto de Battista Mondin:

Para uma primeira abordagem do conceito de sagrado, vale a pena interpelar a filologia. Sagrado / sacro provém do latim sacer, que por sua vez vêem de sancire, que quer dizer conferir validade, realidade, fazer com que alguma coisa se torne real. Sancire aplica-se às leis, aos compromissos, às instituições, a um fato um estado de coisas.(...) Do radical sac deriva também sanctus, que qualifica, sobretudo, as pessoas. Os reis são sancti porque escolhidos pelos vaticínios e, portanto, em conformidade com a vontade dos deuses; por isso, sactus dá a qualificação especial que o rei possui para poder desempenhar sua funções22

Rousseau começa a sua reflexão partindo do princípio de que a religião

em certo momento da história não foi o ponto de ruptura, conflito e separação

do Estado. Em algum momento da história os membros de uma sociedade,

localizavam no ato religioso o ato político, e no ato político o religioso; não

havia uma confusão por parte de nenhum cidadão sobre quem obedecer, ao

pontífice, ou ao príncipe. Há uma espécie de “pátria divinizada”23 e não parece

na leitura feita por Rousseau que essa pátria provocasse qualquer espírito de

separação entre os membros da sociedade.

20 Notas de tradução da edição do Contrato Social, feita pela professora Maria Constança Peres Pissarra In: ROUSSEAU. J.J. Discurso sobre a economia política e Do contrato social. Petrópolis: Vozes, 1996. P. 212(nota 220) 21 Ibidem. 22 MONDIN. B. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus. 1997, p. 32. 23 GOUHIER, H.G. Lês méditations métaphysiques de Jean Jacques Rousseau, p. 254.

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As religiões nacionais foram examinadas por Rousseau levando em

consideração o ponto de convergência entre a política e a religião, ou seja,

como as instituições religiosas podem fazer parte integrante do corpo

político24sem que com isso provoquem uma ruptura no quadro da ordem

vigente.

Nos povos antigos e em suas antigas religiões, a ideia máxima de que o

poder emana dos deuses e é colocado em prática por seus legítimos

representantes ganhou a sua forma mais aprimorada nos sumérios, nos

gregos, nos romanos e como um destaque monoteísta e particular no povo

judeu. Diferentemente do modelo cristão, que será ainda fruto de nossa

análise, os antigos povos, davam a seus membros uma perfeita noção de

unidade; não havia em sua estrutura interna nenhum movimento que

provocasse a confusão sobre a quem o povo devia obediência, logo a relação

entre o divino, as leis e o seu povo era bem delimitada.

Os sacerdotes antigos se prestavam dentro do padrão de sacerdote que

foi estabelecido posteriormente com o advento do cristianismo. Sua influência

se dava no estabelecimento de um ministro do culto, ou se um oficializador das

ações do Estado. A interferência dos sacerdotes antigos estava limitada em

sua essência a conduzir e fazer cumprir aquilo que os divinos soberanos

determinavam, ou seja, eles não eram, por si, representantes do divino, mas

seus servos.25

Logo, nos povos antigos todos estavam destinados a servir aquele que

por direito divino detinha autoridade e poder. Não havia uma entidade dentro

do Estado que pudesse provocar uma ruptura no liame social, não se obedecia

a sacerdote algum, obedecia-se ao divino rei e a sua lei, prescrita e executada

pelo divino representante.

A força dada ao representante dos deuses era tão intensa que a

analogia entre ele e aqueles que lhe conferiam poder era quase que imediata,

e ele mesmo se considerava um deus, pois assim era visto, não fazia às vezes

de vigário dos deuses, mas era entendido como um co-participante da natureza

divina.

24 Ibidem. 25 Aqui há a inexistência, do que Rousseau chama de a religião do padre, não há uma relação integrada entre os poderes dos sacerdotes e o controle civil. Cf: ROUSSEAU. J.J. Cartas a Cristophe de Beaumont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Estação Liberdade. P. 72.

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A unidade em um mesmo cetro, do poder político e do religioso, deu aos

povos antigos, segundo Rousseau, a condição necessária para se constituírem

enquanto civilização. Afirmar a religião era afirmar a que povo se pertencia, não

havia ruptura; nas religiões antigas, política e religião estavam unidas, e mais,

todo o sistema estava atrelado a essa relação.

Uma outra particularidade destaca por Rousseau é a percepção por

parte desses povos de que a religião estava diretamente ligada ao espaço

físico habitado por eles, logo estavam delimitadas pelo espaço geográfico.

Segundo Rousseau, as religiões nacionais funcionaram enquanto fonte

de unidade, pois dentre outras coisas elas estavam delimitadas

geograficamente26, não eram universalistas27, não estavam em todos os

lugares, muito pelo contrário, estavam retidas, presas ao seu território e não

poderiam ser reconhecidas em nenhum outro lugar. Para esclarecer esses

eventos, Rousseau explica a situação na qual os gregos se encontravam e em

sua fantasia de reconhecer em territórios alheios a presença de suas entidades

divinas, tomemos o texto:

A fantasia dos gregos de reencontrar seus deuses entre os povos bárbaros veio daquela, que também tinham, de se considerarem os soberanos naturais desses povos. Mas atualmente tornou-se bem ridícula a erudição que fala da identidade dos deuses das diversas nações, como se Moloch, Saturno e Cronos pudessem ser o mesmo deus, como se Baal dos fenícios, o Zeus dos gregos e o Júpiter dos latinos pudessem ser o mesmo, como se pudesse existir algo de comum entre seres quiméricos que tem nomes diferentes28

O que Rousseau defende é que as religiões antigas, enquanto religiões

nacionais, não poderiam em nenhum momento ter a pretensão de tornarem-se

universalistas. Tornar-se universal significaria reconhecer em todos os povos

algo de comum ao seu próprio espaço, reconhecer que as mesmas leis dadas

nesses Estado possuem validade em outro; reconhecer que os deuses de um

povo possuem validade em meio a outro. Segundo Rousseau, os gregos

26 As religiões antigas não alargavam o seu espaço de atuação, pois dependiam estritamente da tutela de seu espaço territorial para concentrar a sua existência. 27 Não havia ação proselitistas entre eles, não se encontrava sentido em converter um povo, sem que antes esse povo estivesse submetido legalmente, ou seja, que a religião estivesse dentro do corpo legislativo do Estado. 28 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 138.

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erram, pois não há nada de comum entre os seus deuses e os deuses dos

povos conquistados.29

As religiões de caráter nacional vigoraram por não permitir em sua

estrutura nenhuma referência de caráter universalista, tudo está muito bem

delimitado, a religião está no sistema legal,

Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo”30

Logo, no quadro antigo das religiões há algo de especial nas relações

entre política e religião. Uma coisa está plenamente associada a outra.

Religião, política e território pareciam estar em completa harmonia no corpo

político. O fundamento dessas três coisas sempre esteve ligado por toda a

história humana às relações de Estado31 através do contexto religioso:

O capítulo de que falo está destinado, como se vê pelo titulo examinar como as instituições religiosas podem entrar na constituição do Estado. Assim, não se trata ali, de considerar as religiões como verdadeiras ou falsas, nem mesmo como boas ou más nelas mesmas, mas unicamente considerá-las por suas relações com os corpos políticos e como partes da legislação32

29 “ Rousseau foi desmentido neste ponto como nas anteriores observações sobre a história político religiosa, pela ciência moderna. Lembremos, contudo, que datam do fim do século XIX os primeiros trabalhos mais sólidos sobre mitologia comparada, bem como o Ramo de Ouro, de fazer (1890), que é a primeira obra a cuidar do caráter mágico do poder mando entre os primitivos. Só na segunda década de nosso século Max Weber analisaria mais amplamente o poder carismáticos.” In. Notas de tradução da edição do contrato social, feita por Lourdes Santo Machado e notas de Paul Arbrousse- Bastide e Lourival Gomes Machado. In: ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 138( nota 481) Na tradução do texto da coleção os pensadores, existe um nota de rodapé feita por Lourival Gomes Machado, fazendo alusão a como Rousseau fora desmentido pela ciência moderna com relação a suas observações político religiosas, observações essas que foram confirmada por Max Weber em seu estudo sobre o poder Carismático. A nota em questão, parece não ter levado em consideração o intuito de Rousseau em analisar a experiência dos gregos. O que Rousseau tenta demonstrar é que a religião dos povos antigos é uma religião existente em um espaço geográfico pré delimitado, a força de um estrutura religiosa não poderia ser comparada à outra pois não leva em seu meio o proselitismo religioso, mas tudo que o Estado contém. O gregos não poderiam se reconhecer em outros deuses pois neles não reconheciam as suas leis. Não se trata aqui de uma analise sob a ótica de reconhecer nos cultos semelhanças de cerimonial, a discussão de Rousseau aqui não é teológica, ou histórica religiosa, muito pelo contrario, é uma discussão genuinamente política. 30 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 31 Mesmo nos tempos modernos os homens recorrem as suas ligações metafísicas, para assim sustentar a sua ação humana de sobreposição sobre os membros de sua própria espécie. 32 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169.

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Ora, na sequência de sua análise sobre as religiões, Rousseau não as

considera simplesmente uma ordem cronológica, mas vê nas religiões que

existiram até o advento cristão33 uma diferença enorme de padrão. Cada

sociedade política constituída antes do cristianismo tinha à sua frente o seu

deus, tanto o transcendente quanto o de figura humana. Logo, cada sociedade

política formada tinha como grande escudo um deus, para sua defesa e

coesão. Se cada sociedade constituída na antiguidade possuía um deus para

seu auxílio, Rousseau faz a sua dedução de que a figura de “deus” não poderia

possuir um caráter unitário, mas ela se configurava de variadas formas assim

como os povos se configuravam diferentemente. Conclui-se, então, afirma

Rousseau, que deus na antiguidade não constitui uma experiência única, muito

pelo contrário, essa experiência é multifacetada de acordo com o número de

povos que assumem para si a experiência do divino:

“Pelo simples fato de colocar-se Deus à frente de cada sociedade política, conclui-se que houve tantos deuses quantos são os povos”34.

E continua Rousseau:

Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo35

Deus à frente das sociedades políticas faz com que o número de deuses

seja identificado com o povo que habita nessa sociedade, é a instituição do que

hoje chamamos de politeísmo. O que nos chama a atenção é que o fato de

colocar deus à frente das sociedades políticas indica que aquele que o

representa nessa realidade, no caso o soberano, configura uma ideia

semelhante a de um deus. Ora, portanto, a visão de deus não é única, mas

passa por quem o personifica, por cada povo, por cada momento e por cada

visão daqueles que por direito detêm esse poder.

33 O cristianismo é para Rousseau um divisor de águas nas relações entre política e religião. Nos povos antigos não há uma diferença fundamental entre um elemento e outro, o que no cristianismo é completamente reformulado, com a ideia do reino dos céus assumindo uma superioridade sobre o reino da terra. 34 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 136. 35 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169.

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Logo, afirma Rousseau, dois povos inimigos entre si jamais poderiam

afirmar em tempos de conflito a mesma convicção religiosa36, significaria uma

traição à bandeira do soberano e um “pecado” contra os deuses daquele povo:

Trata-se, antes de tudo, de entender a lógica da segregação das nações, que ganha força à medida que o vinculo entre política e religião se solidifica, o que é inevitável, uma vez que é exatamente o isolamento das nações que favorece, em cada uma delas, a confusão entre atitudes religiosas e as atitudes políticas37

Por não representarem religiões de caráter universalista, tal qual o

cristianismo38, Rousseau afirma que as antigas religiões nacionais

estabelecem um terreno, cada uma possui uma particularidade, gerada a partir

da experiência local de cada povo. Como exemplo, a religião dos chineses

nada tinha em sua sociedade a ser comparada com os sumérios, cada um em

sua época, em uma região estabeleceu particularidades próprias.

Em outras palavras, a ação de conquista religiosa não pode em nenhum

momento estar separada da ação de conquista política39. É impossível

submeter religiosamente um povo sem que antes haja uma submissão político-

territorial.

A ligação entre as relações políticas e o território será o tema que

trataremos a seguir.

36 Isso seria uma contradição já que a religião segue a identidade política de cada povo. Não seria possível dois povos reconhecendo uma mesma religião sob uma mesma bandeira, estarem em conflito em nome dos mesmos Deuses. É certo que a guerra do Peloponeso que envolveu Atenas e Esparta e todas as polis ligadas a sua federação, pode parecer uma contradição a essa constatação de Rousseau, o que ocorre naquele momento da história é que aquele evento se trata de uma guerra civil, e a estrutura grega, não levada em consideração por Rousseau e portanto, não sendo alvo desse trabalho, se difere dos demais povos e de sua relação de território por referir-se em um sistema de cidades estado. Logo, cada cidade possuía a sua autonomia política, conseqüentemente, a sua autonomia religiosa. A guerra entre os gregos, não se tratava de uma guerra de religião, mas de uma guerra política. 37 Cf: WATERLOT. Ghislain. Rousseau – Religion et politique. Paris: Presses Univertaires de France, p. 64. 38 “O cristianismo, ao contrário, é uma religião universal, que nada tem de exclusivo, nada tem de local” In: ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 39 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950.

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1.3. A delimitação da ação nos povos antigos: Relig ião, política

e território 40.

Nosso autor demonstra que não seria possível reconhecer nas religiões

antigas um caráter que fosse universalista. A universalidade de uma estrutura

religiosa não está presente nos povos, que Rousseau apresenta na primeira

parte do texto sobre a Religião Civil.

Nos povos antigos há uma identificação muito grande com a noção de

território41. O território significa não só um local onde habitam pessoas que

falam a mesma língua, ou possuem os mesmo costumes. Território na

concepção antiga significa algo sagrado, local de culto42 de encontro com o

divino.

A sacralização da terra onde se está é uma constante na formação

social dos povos estudados por Rousseau. Todos eles no fundo seguem a

mesma lógica, que entendem ter direito à posse da terra por meio da promessa

divina feita a eles43. Reclamam por direito seu território, que não se trata

apenas de uma faixa de terra utilizada para um fim humano, profano, a terra,

passa por uma relação entre os que ali estão e o divino.44

O que se faz sobre aquele território, por exemplo, é amplamente

regulado pelo Estado: as plantações, os feriados, os dias santos45. A colheita é

vista como uma espécie de relação sexual em larga escala, onde o homem

fecunda a terra abençoada pelos deuses e espera por um tempo o nascimento

do fruto daquela relação de amor.46 No momento de se efetuar a colheita, por

exemplo, os povos se preparavam de forma exaustiva, tanto espiritual como

fisicamente, para retirar da terra o filho sacro, fruto que iria alimentá-los por

todo um ano até a próxima colheita.

40 A ideia de território não se encontra diretamente referênciada no texto do Contrato. 41 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 144. 42 COULANGES. F. A cidade antiga. São Paulo: EDAMERIS, 1961. p. 18. 43 Cf: Gênesis 17.1-7, 44 FIORI. JOSÉ LUÍS. A visão sagrada de Israel. Jornal valor econômico. Edição de 24/01/2009. 45 Cf: Levítico, 20, 23-25. 46 Cf: MARQUES , LEONARDO ARANTES. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: MADRAS, 2005, p. 30.

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Trabalhando ainda dentro dessa ótica, gostaria de tomar a reflexão feita

por Fustel Coulanges em seu texto sobre o comportamento dos povos antigos,

intitulado, “A Cidade Antiga”. Nesse texto Fustel busca analisar de forma direta

as formações das civilizações gregas e romanas e de como as implicações

religiosas nas formações políticas marcaram o desenvolvimento desses dois

povos como grandes potências nacionais.

Fustel percorre um raciocínio que tenta demonstrar como o homem

passou de um estágio social que o fazia nômade, sem nenhuma noção de

território, posse ou propriedade, para a noção de homem sedentário, que fixa

bandeiras, demarca espaços e por fim defende a terra como sua propriedade.

Para Fustel, o homem torna-se de fato homem não pelo mero advento

da razão, mas pela diferenciação que faz de si mesmo para com outros

animais, quando descobre a concepção de que os seus mortos não são

semelhantes aos animais, e não podem meramente ser abandonado sobre a

terra. Sepultar os mortos não se tratava de um ato prezando a higiene e a

proteção das doenças, mas estava ligado à noção de humanização do homem,

a percepção que os mortos pertencem de alguma forma aos vivos que aqui

estão:

Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo até Cólquida, onde morreu. Mas embora morto, desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse a Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família; mas unida aos restos corporais não podia deixa sozinha Cólquida. Dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento. Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea, necessária para sua segunda vida , era preciso que o corpo ao qual permanecia ligada, fosse coberto de terra, a alma que não possuía sepultura, não possuía morada,e ficava errante”47

Ao perceber que os mortos pertencem aos vivos, os homens, segundo

Fustel, começam a não só sepultar os seus mortos, mas a transformar o

território onde esses mortos foram sepultados em território santo, sagrado,

local de reverências e culto. Culto este que deve ser prestado de uma forma

especial, uma espécie de culto particular, uma religião doméstica.48

47 COULANGES. F. A cidade antiga. São Paulo: EDAMERIS, 1961. p. 20. 48 Ibidem, P. 47.

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Lembra Fustel, que na maior parte dos casos o patriarca era sepultado

dentro de sua própria casa. No momento de sua morte um de seus filhos

assumia não só a chefia sobre aquela família e a aquele espaço territorial,

como também era o responsável por prestar culto àquele que já havia ido ao

mundo dos mortos e de manter a sua lembrança viva.

Por essa razão na Grécia e em Roma, como na Índia, o filho tinha o dever de fazer sacrifícios e libações aos manes dos pais e de todos os ancestrais. Faltar a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer(...)49

Aquele espaço do sepulcro agora ganhava uma nova conotação: seria

preciso manter-se fixo a ele e não permitir que outros, estrangeiros ou não, os

violassem de nenhum modo, sob o peso da perdição eterna, de quem violou e

de quem permitiu tal ato.

A religião ganha espaço nos povos antigos, atrelada ao culto da vida

após essa vida. O processo de culto está atrelado aos ancestrais, sobretudo,

ao local onde os mortos estão sepultados. Para Fustel, o culto ao território está

ligado intimamente a cada membro da família é a configuração do que ele

chama de religião doméstica.50

A religião é plenamente identificada ao território no qual se vive, pois ela

preserva a memória dos mortos que lá estão e o futuro daqueles que lá vivem.

Ora, se a terra é algo sacro, faz a ligação entre os viventes e os que

estão em outra vida e também atua como fonte da alimentação dos povos, é

fecundada por eles e distribui os seus dons, temos que deduzir, portanto, que a

terra não é, um mero espaço onde homens se agrupam. O território é o espaço

em que a vida de um povo prospera. Logo, o território é um espaço sacro,

afirma Fustel: “(Essa era) A era da associação política e religiosa das

famílias”.51

Esse espaço sacro necessitava de um comando, para organizar em seu

interior o bem estar daqueles que lá viviam. Mesmo estando em um solo em

que os deuses prometeram a todos, essa promessa necessita de regulação e

49 Ibidem, P. 49. 50 Ibidem, P. 47 e 48. 51 Ibidem, P. 205.

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necessita também de quem garanta que as normas para a manutenção da

promessa não sejam quebradas.

A regulação de um espaço territorial passa sem dúvida nenhuma pela

introdução de conceitos jurídicos: dizer o que se pode e o que não se pode

fazer em um determinado espaço. Contudo, a Lei não é prescrita nos povos

antigos apenas para regular ações meramente humanas, por homens tão

frágeis quanto sua conduta, ela emana de algo que está para além de todo

homem, no caso aquele a quem Rousseau chamou de Legislador52 e que não

está presente apenas nos povos antigos. O Legislador é um homem, que

habita entre todos os homens, mas está para além de todas as vaidades que

os homens podem produzir:

Na realidade Rousseau não afirma que os Lesgiladores são deuses, ou que sua intervenção é milagrosa. Ainda aqui chamamo-nos diante de uma força de expressão, de um emissário divino ou um deus feito homem, na realidade, é simplesmente a razão encarnada e sua atividade é puramente racional. Individualidade excepcional, o Legislador é simulacro da divindade53

O Legislador lê a vontade geral54, mas não pode arriscar comprometer

aquilo que fez, assumindo para si a função de criador da lei e seu executor,

não deve governar as leis, o que governa as leis não deve governar os

homens.55”

A figura do soberano que executa essas leis ganha aqui um destaque:

quem o faz, o faz em nome dos deuses, fonte e inspiração de toda lei, do povo

e, sobretudo, do resguardar do seu território, pois afinal os deuses ali se

relacionam com os homens.

A sacralização do território deu aos homens das antigas religiões a

noção de que seria necessário resguardar aquilo que os levava à relação com

o divino. Não seria possível reconhecer um deus alheio, pois esse seria

completamente estranho ao seu território, a sua relação política. O deus é

52 A figura, ou função, do Legislador na teoria política de Rousseau impressiona muitas pessoas como um dos seus mais curiosos elementos. Que autoridade é essa? É a autoridade divina falando em nome de Deus ou dos Deuses e desse modo fazendo o povo pensar que os mesmos decretos originados por Deus a que está submetida a consciência de cada pessoa também são encontrados nas leis do Estado. 53 FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. p. 100. 54 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII, p. 58. 55 Ibidem.

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nacional e isso é definitivo, e segundo Rousseau essa é a base do politeísmo,

as divisões nacionais, jurídicas e religiosas:

(...) Não poderiam reconhecer por muito tempo um mesmo senhor; dois exércitos, batalhando não poderiam obedecer ao mesmo chefe. Eis como das divisões nacionais resultou o politeísmo, e daí, a intolerância teológica e civil que naturalmente [nos povos antigos56] é a mesma57(...)

Rousseau reconhece que o politeísmo antigo tem a sua origem não em

convicções religiosas, mas na nacionalização da religião58, na vida dada a um

contexto que é valido para esse território e que significa traição em outro. Logo,

falar em entidades divinas nessa forma de pensamento é autoafirmar-se sobre

outros povos.

Ora, mas do que se trata essa intolerância civil e religiosa à qual

Rousseau se refere? A intolerância civil e religiosa à qual nosso autor faz

alusão não se trata de uma intolerância religiosa, mas de uma intolerância

civil.59

A ação de conquista nesses territórios era também uma ação de

submissão religiosa. Logo guerras de religião não possuem aqui nenhum

sentido, pois os embates não se tratam de trazer à tona batalhas teológicas,

mas a teologia é em sua essência, nesse contexto, a política:

(...) Pois cada Estado, tendo tanto seu culto, quanto seu governo próprio, de modo algum distinguia seus deuses de suas leis. A guerra política era também teológica, a jurisdição dos deuses fica por assim dizer, fixada pelos limites das nações60

O que fica claro nesse momento para Rousseau é que a experiência

pagã do sagrado na antiguidade não produziu um efeito nefasto que está

56 Grifo nosso. 57 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138. 58 Não que as relações pessoais de cada humano com a figura do divino, não encontra nenhum espaço no contexto trabalhado. Sabemos que a religião só ganha força quando consegue ligar o que esta aqui nessa estrutura mundana e o que está em um mundo ainda por vir. Logo, a nacionalização das antigas religiões passa também por critérios metafísicos, mas não só, ela depende, sobretudo, da identificação da religião e sua bagagem espiritual, com as Leis do Estado. 59 Intolerância nesse quadro não está associada com a incapacidade dos Estados cristãos de aceitar facções diferentes do grupo majoritário que está associado ao Estado. Não se trata de não tolerar uma forma diferente de culto, trata-se aqui de um assunto político e não religioso. 60 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138.

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presente na esperança cristã do poder nas guerras de religião.61 Existe sim

uma intolerância, não de ordem teológica mas civil.

A grande questão deixada aqui é a seguinte: se a religião pagã elimina

aqueles que não a aceitam, no que ela se difere das demais experiências que

observamos ao longo da história humana? Por que as guerras de religião não

estão presentes na perspectiva antiga?

Para Rousseau, mesmo utilizar o termo “guerras de religião” não remete

a um equivalente às guerras de religião proselitistas que a Europa assistiu

entre os séculos XVI e XVII. As guerras não são motivadas por ações isoladas

das relações políticas.

Na resposta de Rousseau, percebe-se a distinção dada por nosso autor

para esclarecer a diferença dos conflitos no paganismo e depois aquilo que por

conseguinte vai aparecer no cristianismo. Por primeiro podemos tomar a não

distinção entre os Estados, os deuses e as leis civis. Logo, ocorre que toda a

manifestação divina estava muito bem delimitada dentro de espaços

geográficos pré-moldados por um povo.

Com a figura da divindade presa a uma autoridade jurídica e a um

espaço territorial, não poderia em nenhum momento acontecer um

enfrentamento sem que esse enfrentamento dos povos passasse a ser também

um enfrentamento de ordem política e militar, não poderia ficar retido em um

mero enfrentamento militar. Os deuses estavam em um espaço geográfico bem

definido, bem estruturado, não havia necessidade de inveja, pois cada um

possuía o seu espaço: “Os deuses dos pagãos não eram de modo algum

invejosos; dividiam entre si o império do mundo”.62

Na antiguidade a religião não é somente a fonte de encontro espiritual

dos homens, não é apenas o local em que o espírito deve desprender-se do

corpo para uma experiência mítica, e também a religião não representa a fonte

61 As rivalidades entre a Reforma e a Contra-Reforma, assim como entre os próprios reformistas, provocaram numerosas guerras na Europa entre 1550 e 1659. As mais importantes ocorreram nos principados germânicos, onde a influência do luteranismo político era notória. O principal conflito aconteceu no Sacro Império, sob o comando Habsburgo, no início do século XVII. Apesar de a Paz de Augsburgo ter determinado a separação entre católicos e protestantes alemães, as tensões entre os dois grupos continuavam. A nobreza aproveitava-se da crise para evitar a centralização e unificação política imperial, contudo o conflito entre os Huguenotes, que é a denominação dada aos protestantes franceses (quase sempre calvinistas) pelos seus inimigos nos séculos XVI e XVII, e os católicos, tiveram grande recpercurssão no Estado Francês. 62 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 144.

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ou o caminho meramente para um “reino dos céus”. A religião na antiguidade, a

partir da leitura de Rousseau é a um fato muito importante para a coesão de

uma sociedade.63 O que ocorre nesses modelos de Estado é que não existe

uma separação entre religião, política e território: “Pois cada Estado, tendo

tanto o culto quanto seu governo próprio, de modo algum distinguia seus

deuses de suas leis. A guerra política era também teológica”,64 pois teologia

nas antigas relações é política, concreta e não metafísica.65

Portanto, não há no Estado antigo uma separação entre a Lei e a

religião66. A força de um Estado está em afirmar-se por completo, de forma

unitária, dentro de seu território, fora dele apenas pela conquista de um outro

povo que automaticamente teria de acolher os deuses provenientes do novo

soberano para assim subsistir sob seu domínio. Afirma Rousseau:

Encontrando-se, pois, cada região ligada unicamente às leis do Estado que as prescrevia, absolutamente não havia maneira de converter um povo senão dominando-o, nem outros missionários que não os conquistadores (...)67

Não se trata aqui, segundo Rousseau, de afirmar um deus e seu aparato

cerimonial sobre outro deus, mas de uma afirmação sobre o corpo legal de

uma sociedade. O problema não é e nunca foi, na antiguidade, teológico, mas

nacional e legal: a aceitação de um contexto religioso significa aceitação do

poder de um Estado e não meramente de uma religião.

As guerras internas não eram uma realidade do paganismo, já que as

leis que valiam para todo membro daquela sociedade eram feitas a partir de um

princípio religioso sacro. Para sobreviver naquele Estado, seria necessário,

dentre outras coisas, assumir o contexto religioso, ou na recusa dessa

possibilidade, ser considerado um rebelde.

63 “A religião é útil e até mesmo necessária aos povos. Isso não está dito e sustentado por escrito”. In: ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. Segundo, Pierre Burgelin, a religião segundo Rousseau é uma forma válida de sustentar a coesão social, tanto recorrendo as suas ações de comunhão, como a utilizando para pacificar as partes em meio a um conflito. 64 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 138. 65 A guerra política é também teológica, esse movimento aqui deve ser mais bem explicitado. Não significa aqui que a guerra teológica segundo Rousseau, não é uma guerra de argumentos metafísicos, sobre a natureza da divindade, sobre vida futura, mas um debate sobre a origem a natureza do poder naquele Estado. In: DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, p. 34. 66 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 161. 67 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139.

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É justamente essa rebeldia que Rousseau localiza no exemplo judeu.

Segundo nosso autor as perseguições ao povo judeu se deram muito mais por

sua intransigência política na aceitação dos deuses estrangeiros e a sua lei, do

que em questões que trazem à tona a motivação religiosa. É sobre essa

identificação entre o povo judeu e suas leis político-religiosas e o seu território

que trataremos a seguir.

1.3.1 Religião, política e território: o exemplo ju deu.

Rousseau cita o exemplo do domínio dos babilônicos sobre o povo

Hebreu68. Os judeus naquele momento constituíam um exemplo semelhante

aos povos pagãos, mesmo sob a crença em um Deus único69 o que ainda não

havia se configurado como um monoteísmo de caráter rígido70, pois os judeus

ainda reconheciam a existência de outros deuses que não o deles, mesmo que

68 O Exílio, que aconteceu no século VI aC, foi fruto da expansão territorial imperialista da Babilônia, mas antes da Babilônia convém fazer colocações sobre a Assíria. Judá já havia se livrado da destruição Assíria por volta do ano 701, ficando somente sob o estado de vassalagem, o que aconteceu devida uma política interna estável e boas relações externas. Já no período próximo à invasão babilônica, a situação política de Judá estava um tanto instável. No século VII aC., Manassés tinha imprimido um regime opressor ao povo (2Rs 21, 1-18;21-16). Após a sua morte, o seu sucessor é assassinado por seus ministros ( 2Rs 19 – 26), o que causa grande tensão interna e proporcionará a intervenção do povo da terra, ou seja, os chamados Judaítas, que entronam uma criança de oito anos, Josias. Isso implica o “povo” no poder. Josias instala uma reforma que visa a atender parte das reivindicações do povo da terra, contudo acontece nessa reforma uma centralização do culto e investidas militares, que desembocou na vitória dos egípcios em 609 aC. Nessa época Josias é morto, e os Javistas voltam a proclamar um rei, dessa vez é Jeocaz, que ocupou o trono por três meses, foi deposto pelo Egito (Jr 22, 10-12), que impõe Joaquim como rei, iniciando mais um período de opressão para o povo de Judá, exploração tributária e repressão, até sua morte em 598aC. Seu filho Joaquim é quem colherá o fruto de sua política externa e aparente diplomacia. Joaquim vai investir em uma política contra a Babilônia , o que vai ressaltar na ação Babilônica para evitar avanços do Egito, em 597 ac Jerusalém é desmilitarizada e cerca de 10 mil pessoas são deportadas (2Rs 24, 14-16). Por volta de dez anos depois Zedequias é o líder político imposto e que vai se rebelar contra os Babilônicos, resultando na destruição e desurbanização de Judá em 587 e conseqüentemente o segundo exílio, mas ao que indica Jeremias (52,30) aconteceu outro exílio em 582, chegando a somar 15 mil pessoas de Jerusalém na Babilônia. In: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006 69 Surgido da religião mosaica, o judaísmo, apesar de suas ramificações, defende um conjunto de doutrinas que o distingue de outras religiões: a crença monoteísta em YHWH (às vezes chamado Adonai ("Meu Senhor"), ou ainda HaShem ("O Nome") como criador e Deus e a eleição de Israel como povo escolhido para receber a revelação da Torá que seriam os mandamentos deste Deus. Dentro da visão judaica do mundo, Deus é um criador ativo no universo e que influencia a sociedade humana, na qual o judeu é aquele que pertence a uma linhagem com um pacto eterno com este Deus. Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006. 70 Dentro das três religiões que descendem de Abraão, o Judaísmo e o Islã, qualificam a imagem de Deus como único, e indivisível, Deus é absoluto, simplesmente É. O cristianismo, porém, tem em sua relação com o Deus de Israel, uma diferença com relação ao Islã e ao Judaísmo, reconhece na figura de Deus um monoteísmo trinitário, ou seja, Deus é Deus, mas também é Filho (o Cristo) e Espírito Santo. São três sem deixar de ser um.

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esses outros deuses fossem inferiores ao Deus judeu71, como o livro do Êxodo

expõe: “Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses; porque na

coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou”.72

Ora, os judeus, mesmo configurados como monoteístas, na visão de

Rousseau, representavam de forma clara e absoluta a união entre o poder

espiritual e secular73. Moisés é o grande representante dessa aliança, firmada

não somente entre homens para com homens, mas há uma sacralização da

ideia de poder, tornado-o assim absoluto, pois desobedecer a um dos dois

lados consequentemente é declarar guerra à unidade da sociedade74.

A relação estabelecida por Moisés segue a ordem clássica da

antiguidade. Após a fuga do Egito75, Moisés sente a necessidade de fundar

uma nova ordem e identidade para aquele povo. O que ocorre é que durante o

domínio dos egípcios os Hebreus tinham como ponto de referência a

identidade e a autoridade do Faraó, que não só falava em nome dos deuses,

mas ele mesmo era referenciado como um deus. O Faraó unia em seu cetro as

duas referências, política e religiosa. A lei, a política e a religião no Egito

seguiam o mesmo padrão: não reconhecer essa unidade era um ato de

rebeldia.

Como os hebreus estavam sob o domínio dos egípcios, sua identidade

enquanto povo estava atrelada a eles e a sua unidade política e religiosa,

também. No momento da fuga, liderada por Moisés, a coisa muda de figura.

Longe da unidade do Faraó, quem agora de fato representa a unidade é

Moisés. Moisés possui uma sublime percepção como Legislador; entende que

se não reunificasse o processo entre política e religião, sobre a retomada de

um território, perderia o poder. Ao perceber que sua autoridade junto ao povo

estava ameaçada, recorre imediatamente à unificação entre o que é divino e o

que é humano, como cita Rousseau:

71 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138. 72 Cf: Êxodo 18:11. 73 Cf. PACKER, J. I. TENNEY, M. G. WHITE, JR. W. O mundo do antigo testamento. São Paulo: Vida. p. 78. 74 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. P. 138. 75 Os Judeus foram levados cativos para o Egito por volta de 1700 a.C, o povo judeu migra para o Egito, porém são escravizados pelos faraós por aproximadamente 400 anos. A libertação do povo judeu ocorre por volta de 1300 a.C. A fuga do Egito foi comandada por Moisés, que recebe as tábuas dos Dez Mandamentos no monte Sinai. Durante 40 anos ficam peregrinando pelo deserto, até receber um sinal de Deus para voltarem para a terra prometida, Canaã. Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

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Desse modo, pois, o Legislador, não podendo empregar nem a força nem o raciocínio, recorre necessariamente a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer76

Desse modo, Moisés recorre ao mesmo raciocínio usado pelos egípcios,

e uniu sobre si a autoridade política de seu povo, com a força religiosa,

promulgando o decálogo77. As tábuas da Lei, na visão de Rousseau, não

constituem um mero evento de ordem religiosa, mas dão ao Legislador

autoridade política divina, pois ele exercerá o poder em nome de Deus, e

assumir Deus é sem dúvida alguma assumir a sua Lei:

O Legislador age como se fosse um emissário divino ou um deus feito homem, mas na verdade é a razão encarnada e sua atividade é puramente racional. Individualidade encarnada e sua atividade é um simulacro da divindade (...)78

Os judeus, mesmo monoteístas, configuravam em sua estrutura uma

religião nacional, não separavam a ideia de um código civil, (as tábuas da Lei)

de um código religioso (a torá). As duas coisas são uma e mesma coisa, a lei

para o judeu vale não somente para o templo, mas para a sociedade como um

todo:

Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo”79

Ora, os judeus tinham uma unidade em sua sociedade, e uma unidade

densa que mesmo diante de vários exílios, conseguiu manter-se longe das

tentações de miscigenação das raças. Isso explica, segundo Rousseau, alguns

motivos para as perseguições sofridas durante a sua história. Aqui vamos

seguir o raciocínio de Rousseau com relação ao exílio na Babilônia.

A religião é, portanto, a identidade de um povo, a representação do

poder divino em formas humanas; assumir uma religião nacional é assumir um

76 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII. p. 59. 77 Cf: Êxodo 20:2-17. É repetido novamente em Deuteronômio 5:6-21, usando palavras similares. 78 FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. p. 100. 79 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169.

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Estado e colocar o seu deus à frente dessas bandeiras. A guerra entre os

povos era um conflito de guerra político-teológica80, perder a guerra era

obrigar-se a assumir a religião dos vencedores, pois assim seria configurada a

sua relação de obediência à autoridade dos conquistadores.

Logo, afirma Rousseau “(...) a obrigação de mudar de culto era a lei dos

vencidos, necessário se faz por vencer [um povo81] antes de falar nisso”.82 Ora

o domínio político e territorial demarcava a introdução de uma nova ordem

sustentada pela tríade política, religião e território; os dominados haviam de

encarar a sua existência não mais como uma realidade apenas de seus limites,

mas no momento em que eram anexados por algo maior, sua Tríade havia de

ser abandonada e deveriam assumir a relação de poder advinda do dominador.

O que ocorre nessa experiência é que no momento da conquista de um

povo por outro, o que estava em jogo não era meramente a imposição de uma

crença religiosa, mas a manutenção da ordem do corpo político. Assumir os

novos deuses é, de forma clara e categórica, assumir as novas leis, pacificar o

ambiente e estabelecer a manutenção do Estado.

O conflito com os judeus na Babilônia, tomado como exemplo, não fora

representado meramente por um conflito religioso, e Rousseau parece decretar

o destino dos judeus, pois como aconteceu na antiguidade permanece na

época moderna. A perseguição contra os judeus se dá pelo fato de que esse

povo recusa-se a reconhecer a autoridade das leis advindas dos

conquistadores e de seu projeto pacificador. Os judeus não conseguiram

abandonar a Lei e pagaram um alto preço por isso.

Quando, porém, os judeus, submetidos aos reis da Babilônia e em seguida aos da Síria, obstinadamente não quiseram reconhecer nenhum outro Deus além do seu, essa recusa, considerada como uma rebelião contra o vencedor, incitou contra eles a perseguição que se encontram na sua história e das quais não se conhece outro exemplo antes do cristianismo83

O ato de desobediência dos judeus a essa situação passa longe de ser

um ato de inspiração religiosa. Recusar uma nova dimensão religiosa no caso

80 Isso indica que o objetivo do conquistador não estava centrado somente na imposição de sua dimensão religiosa, via um proselitismo, mas a conquista era também política e territorial. 81 Grifo meu. 82 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. P. 140. 83 Ibidem. P. 138 e 139.

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a dos babilônicos, nada mais seria do que a quebra da unidade social daquele

povo. Aceitar um “novo deus” seria aceitar uma nova lei, que os condenaria à

dissolução ou à incorporação completa por parte daquele Estado. Logo, o

conflito entre os judeus e os povos que os submeteram não é propriamente um

conflito de religião, destaca Rousseau, afinal, não se trata aqui de um embate

entre duas confissões de um mesmo credo, ou de um embate proselitista, mas

há uma crise com relação à tríade religião, política e território. Não se tratava

de desobedecer ao Rei meramente, mas parece aqui configurar uma espécie

de insubordinação clássica, uma desobediência civil, visto que o Rei e a

religião se equivalem.84

Contudo, a experiência judaica com relação ao território é clara e

objetiva: quando se reconhece a unidade dentro do Estado, não existem dois

senhores, mas um somente.

O efeito desse modelo de intolerância religiosa politicamente apresenta-

se, com o passar do tempo, como um grande complicador. Se conquistar um

povo é também submetê-lo às leis e a religião do conquistador, isso já nos

alerta que essa relação não será de modo algum de fácil identidade.

Os povos conquistados possuíam uma identificação territorial, religiosa e

política, e mesmo sendo afastados de seu território, como é o caso dos judeus,

a unidade política e religiosa, os mantinha vivos na esperança de reconquistar

o seu território e ali prosseguir com o culto ao seu deus e a sua regulação

política e social.

Submeter política e religiosamente um povo conquistado apresentou-se

ao longo da história como um grande problema. Se dois deuses não podem

coexistir por tratar-se de religiões nacionais, um teria que dar lugar ao outro. As

resistências aí eram ferozes, o que provocava um estado de conflito

permanente, afinal o discurso teológico é o discurso político. Isso tornava esse

modelo de religião complexo de ser sustentado quando um Estado possuía

objetivos conquistadores. Rousseau reconhece esse problema:

As religiões nacionais são úteis ao Estado como partes de sua constituição, isso é incontestável, mas elas são nocivas ao gênero humano e mesmo ao Estado, em um outro sentido85

84 Ibidem. 85 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 170.

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Por conta dessas objeções sobre a pacificação dos povos, observamos

o advento de uma nova forma de religião nacional, o modelo romano.

Os romanos trazem em sua experiência de conquista um ponto de referência

novo com relação aos demais povos antigos, até mesmo os gregos. Ao

contrário dos gregos, os romanos não reconheciam nos deuses estrangeiros

semelhanças entre os seus deuses e os deles, muito pelo contrario, os

romanos usavam de uma espécie de diplomacia para com esses deuses, os

convidando a fazer parte de seus inúmeros espaços territoriais. Este será o

tema abordado a seguir.

1.4. A experiência romana como religião nacional

Para entender a modificação na relação dos romanos entre a religião e o

Estado, voltaremos a Fustel, para nos apresentar a base dessa transformação.

Em sua análise da formação dos estados greco romanos e de sua inseparável

fusão com a religião, Fustel destaca alguns pontos fundamentais. Citaremos

aqui dois desses pontos.

O primeiro é que para os romanos e os gregos o processo religioso que

resulta na formação do Estado parece seguir a mesma ordem. Antes da

religião se configurar como uma religião de Estado, ela nada mais era do que

uma religião doméstica, um culto particular destinado a membros daquela

família.

Uma vez que há a expansão das relações entre as tribos, e o seu

aumento populacional, gera-se um grande problema com relação aos cultos: a

quem agora se deve obedecer em matéria divina, uma vez que as relações

incestuosas foram proibidas86. Seria necessário buscar em outros clãs os

parceiros para a constituição das famílias. Como cada agrupamento possui um

deus doméstico e um culto, o seu fogo permanece sempre aceso dentro dos

seus lares. O conflito seria iminente entre os deuses, não seria possível cultuar

um sem abandonar o outro.

86 COULANGES. F. A cidade antiga. São Paulo: EDAMERIS, 1961. P. 55 e 56.

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O segundo ponto é a ideia de um Deus comum entre os grupos87, sem

que com isso fossem obrigados a abandonar os seus deuses domésticos,

pacificou os conflitos no Estado e deu a esses grupos um ponto referencial de

unidade. A religião agora passou da ordem doméstica para a ordem pública,

ganhou corpo enquanto religião da cidade.

Lembra Fustel que quando se refere às cidades antigas não se pode

considerá-las como as cidades modernas. Elas não eram construídas através

de argumentos que vão se formando através dos séculos, mas eram formadas

em uma única vez, com um único objetivo. Trazer os deuses da esfera

doméstica para a esfera pública deu aos homens um novo alento para suas

relações com o Estado. O politeísmo para Fustel se estabelece, pois está

fundado entre o culto particular e o culto comum.

Porém, a necessidade dos romanos de modificar a sua relação com

essa estrutura, veio com a nova noção do que seria território. Território, como

fora dissertado, era o ponto de encontro entre os deuses e os homens, lugar do

relacionamento entre eles, lugar onde a sua condução civil através das leis era

executada por aqueles deuses humanos, que são os soberanos.

No momento da vitória dos romanos sobre Cartago, ao final da terceira

guerra púnica88, defendem alguns autores que há uma mudança com relação à

noção que os romanos possuiam de território e religião.

Após a vitória sobre Cartago, os romanos assumem uma nova postura,

entenderam que a noção de reino havia ficado para trás e se estabelecera uma

nova noção de território, que é a noção de império.

A noção imperial romana não era meramente uma noção de conquista

local, em que se buscava o controle comercial de um povo, mas o controle

territorial era de fundamental importância para a manutenção da pax89 e,

sobretudo, para facilitar o controle da capital do império sobre as suas colônias.

Conquistar território enquanto movimento imperial romano também não

deixou de ser um movimento de submissão, segundo Rousseau, da relação

87 Ibidem, p. 188 e 189. 88 Período entre 264 a.C. e 146 a.C. Ao fim das Guerras Púnicas, Cartago foi totalmente destruída. Cf: MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. 89 A Pax Romana, expressão latina para "a paz romana", é o longo período de relativa paz, gerada pelas armas e pelo autoritarismo, experimentado pelo Império Romano, ou seja, uma paz sustentada pela força da guerra.

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entre política e religião. A religião romana era imposta aos povos dominados.

Contudo, há uma inovação no politeísmo romano, que é a introdução da

assimilação do culto aos deuses dos conquistados em sua relação oficial de

divindades.

Como fora feito, nos tempos da formação das cidades antigas, a religião

deixou de ser doméstica e passou a ser através da figura dos deuses comuns,

uma religião pública. No momento das conquistas romanas sobre os povos, a

figura deixa de ser a da submissão meramente territorial e imposição da lei e

da religião como fonte de unificação e passa a ser a da cooptação da estrutura

política e religiosa para dentro dos domínios do Estado conquistador.

Durante o avanço do império, os romanos configuraram uma nova forma

de controle e pacificação social. Sabendo das dificuldades encontradas nas

conquistas dos povos antigos quando o assunto era a religião, os romanos

estabeleceram um fortalecimento quase divino da figura do imperador, evento

que veio logo após o domínio de César sobre o império.90 César Augusto, o

imperador, agora era a referência divina. A conquista dos romanos sobre os

outros povos não passava mais por uma eliminação total e completa das

entidades religiosas do povo derrotado, pois era dado aos vencidos a

oportunidade de permanecer em seu culto. Como referência tomaremos o texto

de Maquiavel sobre a primeira década de Tito Lívio:

(...) encontrando um povo indômito e desejando conduzi-lo à obediência civil com as artes da paz, voltou-se para a religião, como coisa todo necessária para se manter uma cidade [ civiltà]; e a constituiu de tal modo que por vários séculos nunca houve tanto temor a Deus quanto naquela república, o que facilitou qualquer empreendimento do senado ou aqueles grandes homens romanos quisessem entregar-se91

Uma vez que se é permitido àquele povo manter a sua crença e a

liberdade para professar aquilo que acredita, será mais fácil para aquele que

conquista pacificar os seus opositores e restaurar seus objetivos escreve

Maquiavel sobre os Romanos:

90 MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. P. 200. 91 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes. p. 48 e 49.

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Os príncipes duma república ou dum reino, portanto, devem conservar os fundamentos de religião que professa; e, feito isso, ser-lhes á mais fácil manter religiosa e, por conseguinte, boa e unida a sua republica. E todas as coisas que surjam em favor da religião, ainda que possam ser julgadas falsas, devem ser por ele favorecidas e estimuladas; e tanto mais devem fazê-lo quanto mais prudentes e mais conhecedores forem das coisas naturais.92

Ora, mas se um culto proveniente do inimigo fosse aceito como parte da

religião oficial, o que fazer com a sua estrutura jurídica? A quem prestar a

devida obediência? Para os romanos a solução encontrada foi a ideia do

reconhecimento da figura do imperador como o único juiz dos homens e dos

deuses.

O imperador e sua augusta divindade reconfiguraram a medida político-

religiosa do paganismo. O imperador era Roma,93 e uma vez prestado esse

juramento todas as religiões seriam aceitas, o culto seria liberado para ser

praticado e na maioria das vezes era assimilado o deus (ou deuses) daquele

povo como parte oficial do culto romano:

Houve muitos desses milagres em Roma; conta-se, por exemplo, que, quando soldados romanos saqueavam Veios, alguns deles entraram no templo de Juno e, aproximando-se da imagem, perguntaram: “ Vis venire Romam? A alguns pareceu que ela fizesse um aceno afirmativo, a outros, que diziam sim. Porque, sendo aqueles homens cheios de religião (o que Tito Livio demonstra, porque entraram no templo sem tumulto, todos devotos e reverentes), pareceu-lhes ouvir a resposta que houvessem pressuposto para sua pergunta: opinião e credulidade que foram favorecidos e estimulados por Camilo e por outros príncipes da cidade(...)94

Como no paganismo romano subsistiam variadas entidades dentro de

seu contexto, o que de maior importância representava é que a relação

prescrita entre o divino e o humano não era matéria fundamental para os

romanos. Qualquer religião seria bem vinda, desde que os seus membros

estivessem dispostos a reconhecer o poder divino dado ao imperador, que no

fundo representava a relação de todos os deuses, tanto romanos quanto

pagãos, com os homens. Não havia problema algum em absorver os deuses

dos vencidos. Na medida em que o império avançou, também houve um

92 Ibidem. p. 52. 93 MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. p. 205. 94 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes. p. 54.

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avanço na relação entre os deuses dos vencidos e dos vencedores. Os

romanos estabeleceram tantos deuses quanto foram as suas conquistas.95

Os romanos, com sua tolerância religiosa e política, deram a

possibilidade para que diversas modalidades de figuras divinas existissem, e é

justamente nesse contexto, afirma Rousseau, que o cristianismo se apresenta

ainda pequeno no mundo.

A relação entre o poder político e o religioso seguiu ainda um padrão de

unidade com os romanos, mesmo que já apresentando uma certa variação com

relação aos demais povos da antiguidade. O grande problema encontrado

nessa modalidade de paganismo, segundo Rousseau, é que todos os tipos de

deuses foram aceitos, inclusive o Deus de Israel, agora não mais em sua

versão meramente judaica, mas já com uma variação. Jesus agora começa a

despontar como figura política, que modificaria para sempre o movimento

religioso.

Foi nessas circunstâncias que Jesus veio estabelecer na terra um reino espiritual; separando, de tal sorte, o sistema teológico do político, fez com que os Estado deixasse de ser uno.96

Antes de entrarmos no debate sobre como o cristianismo remodelou as

relações religiosas e políticas, reafirmaremos alguns conceitos.

Na primeira das nove Cartas Escritas da Montanha, Rousseau ressalta a

que se destina a sua avaliação sobre as relações religiosas. Elas não passam

por uma relação dogmática ou teológica, primeiro porque isso já havia sido feito

de forma exaustiva por quase todos os autores clássicos que tinham vivido até

aquele momento: dentre eles Santo Agostinho, São Tomas de Aquino, e

outros. A discussão de Rousseau segue por uma linha em que o que mais

importa analisar é como as instituições religiosas podem estar juntas ao

Estado:

O capítulo de que falo está destinado, como se vê pelo título, a examinar como as instituições religiosas podem entrar na constituição do Estado. Assim, não se trata ali e considerar as religiões como verdadeiras ou falsas, nem mesmo como boas ou más nelas

95 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139. 96 Ibidem,

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mesmas, mas unicamente considerá-las por suas relações com os corpos políticos e como partes das legislações97

Logo, o que temos aqui não é um Rousseau que vai discutir as relações

entre política e religião a partir dos dogmas que cada estrutura religiosa

carrega, e nem de disparar um julgamento sobre a história das religiões, e tão

pouco nas dimensões religiosas para determinar se são verdadeiras ou falsas,

mas um Rousseau que tenta entender as implicações políticas da religião,

sobretudo, do cristianismo.

Ainda na primeira Carta Escrita da Montanha, Rousseau retoma as

ideias expressas no Emilio. O que é a religião enquanto parte do Estado para

Rousseau?

Distingo na religião duas partes, além da forma de culto que não passa de cerimonial. Essas duas são os dogmas e a moral. Divido ainda os dogmas em duas partes, a saber, aquela que estabelecendo os princípios de nossos deveres, serve de base à moral e aquela que, puramente restrita à fé, contem apenas dogmas especulativos98

A temática trabalhada no Emilio busca entender a educação do homem

e do cidadão, desligando-o da tutela dos poderes eclesiais99. Ora, Rousseau

questiona, a ingerência do poder religioso na formação dos homens, tanto

enquanto homens como cidadãos, e questiona a validade dos pilares do

cristianismo institucionalizado da época: as superstições e os dogmas. “Uma

das comodidades do cristianismo moderno é ter criado para si um certo jargão

de palavras desprovidas de ideias, com as quais se satisfaz tudo, menos a

razão”.100

A religião para Rousseau, enquanto movimento cerimonial mostra-se

como algo vazio,101 sem nenhuma conexão entre o interior e o exterior do

indivíduo.102 O grande problema está em definir religião enquanto movimento

97 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 98 Ibidem, p. 156. 99 Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’ existence de J.J. Rousseau. Paris: Temps Moderns. P. 537. 100 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P.60. 101 Pois não expressa uma relação válida entre o coração humano e o rito executado. 102 Segue-se o rito mas não se sente o rito.

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fundamental da moral, sem nenhuma regulação; esse precedente torna-se algo

extremante perigoso se não sofrer a devida regulação do Estado:

Quanto à parte da religião que concerne à moral, quer dizer, à justiça, ao bem público, à obediência às leis naturais e positivas, às virtudes sociais e a todos os deveres do homem e do cidadão, cabe ao governo conhecê-lo. Apenas nesse ponto a religião entra diretamente sob sua jurisdição e ele deve banir, não o erro, do qual não é o juiz, mas toda opinião nociva que tende a romper o liame social103

Ora, segundo Rousseau a religião não é nociva, enquanto movimento de

foro intimo104, contudo, torna-se perigosa quando reguladora dos atos em

sociedade.105 Por conta desse motivo é dever do estado conhecer as

regulações morais advindas do poder religioso. A não regulação desses atos

pode acarretar o estabelecimento de um movimento de intolerância com

relação àqueles que não se enquadram nas suas propostas cerimoniais e de

regulação moral diferente dos demais.

E é justamente no movimento de não regulação das relações entre

religião que o cristianismo entra em cena, não somente como um instituição

que se beneficiou da permissividade de culto, mas que não deixou de fazer

uso dela a seu favor.106

Afirma Rousseau:

Tendo, por fim, os romanos estendido, com seu império, o seu culto e seus deuses, e tendo freqüentemente eles mesmos adotado os dos vencidos concedendo a eles o direito de polis, os povos desse vasto império passaram sem sentir a contar com uma multidão de deuses e de cultos, quase que os mesmos e, todos os lugares, e assim, o paganismo foi finalmente conhecido no mundo como única e mesma religião107(...).

E segue Rousseau no Contrato:

(...) Foi nessas circunstâncias que Jesus veio estabelecer na terra um reino espiritual; separado, de tal sorte, o sistema teológico de político108(...)

103 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. 104 Ibidem. p. 156. 105 Ibidem. 106 Cf. MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. 107 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139 108 Ibidem.

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As antigas religiões tiveram sua grande identidade estatal por fundir

território, política e religião em uma relação simbiótica. Uma não poderia existir

separada da outra. Por conta dessa questão, um povo não poderia jamais falar

em catequese sobre outro, pois não seria possível vigorar um sistema religioso

sem que o sistema político o acompanhasse. Não se poderia prever que o deus

Baal dos Fenícios poderia viver em um Estado Judeu, sem contrapor as leis

desse Estado, muito menos subsistir em uma república federativa que subsiste

em nossos tempos.

A modificação na forma estrutural da relação entre política e religião,

provocada pelos romanos, deu a matéria e a forma, para que um novo

referencial político pudesse se estabelecer. Esse referencial novo, que é uma

alusão à estrutura político religiosa, é a religião cristã.109 Como a sua relação

entre o reino dos céus e o reino da terra modificou para sempre a história das

sociedades será o tópico tratado no próximo capítulo.

109 A compreensão de religião cristã destacada por Rousseau nos parece estar ligado ao caráter instucional do cristianismo e não a religião professada pelo evangelho.

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2 “Os vigários do deus político”

Então, aqueles que quiseram fazer do cristianismo uma religião nacional e introduzi-lo como parte constitutiva do sistema de legislação cometeram, dessa forma duas faltas perniciosas, uma contra a religião outra contra o Estado.110

Assim, Jean-Jacques Rousseau define a relação entre o cristianismo e o

Estado, como substâncias heterogêneas, que não podem de forma alguma

estabelecer um princípio de união sem que com isso uma das duas seja

corrompida ou enfraquecida, logo, peca-se contra os dois lados.

Como já apresentado, nas antigas religiões, e aqui para tratar com mais

exatidão aquelas nas quais o paganismo estabelece um estreito laço entre

religião, política e território, entende-se que há um diferencial nessa relação

quando se refere ao cristianismo, e a sua configuração como instituição de

poder político. O que Rousseau deixou claro na primeira parte de sua

exposição sobre a religião civil é que nas antigas religiões não há uma

separação entre o poder religioso e o político, os deuses e os homens

misturam-se no exercício da autoridade sobre os homens, suas leis e suas

instituições assumem ao mesmo tempo um caráter humano e divino.

Um grande motor nessa relação é a noção de território. O território é,

nessa relação entre política e religião para a unificação, o ponto referencial

para que a relação entre política e religião aconteça. A estrutura religiosa e

legal de um povo cresce identificada com o espaço geográfico no qual aquele

povo está localizado.111 Os deuses são infinitos, são muitos, porém, seguem o

padrão de identificação de seu Estado.112

O grande marco de diferenciação, com relação à política e à religião,

encontra-se no estabelecimento do império romano, enquanto este império

presente em todo o mundo antigo, através de sua política de conquista e

expansão, o que é próprio da noção política de império113. O seu modelo de

paganismo trata-se não mais como um modelo de conquista e imposição do

110 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 111 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 137 112 Ibidem. 113 BOBBIO. NORBERTO. Dicionário de política. São Paulo: Imprensa oficial.

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poder sobre as questões religiosas e políticas, de modo a submeter aquele

povo aos deuses do povo vencedor, mas de uma incorporação dos

movimentos religiosos em seu interior, ou seja, os romanos não estabelecem

um movimento de dissolução das estruturas político religiosas daquele

território, mas estabelecem um novo mapa religioso, no qual aquela situação é

assimilada para dentro do império.

O império romano estabelece, com seu modelo de cooptação, uma

permissividade religiosa e política, típica de seu modelo pagão, que dentre

outras coisas abre as portas para a existência e desenvolvimento de uma nova

dimensão religiosa: o cristianismo.

O cristianismo surge na história, não apenas como um movimento

religioso do antigo Israel que buscava a renovação do judaísmo114, mas

desponta no mundo como uma nova ação no campo das relações entre política

e religião. Trata-se de uma nova forma de ser em sociedade, busca um

desprendimento daquilo que é transitório e passageiro115, leva o homem ao

crer mais na vida que está por vir do que nessa que se faz aqui. O cristianismo,

segundo Rousseau, inaugura a noção de reino dos céus e reino da terra, busca

a relação do homem, com outros e com o sagrado de uma forma separada,

sem nenhum contato entre um ponto e outro.116

Ainda sobre o aprofundamento do pensamento político e religioso de

Rousseau, continuamos tomando como sustentação para a argumentação o

texto do Contrato Social, e nesse segundo capítulo estaremos também

baseados nas “Cartas Escritas da Montanha”.

Como procedimento metodológico e investigativo nesse segundo

capítulo, faremos a análise presente no texto do Contrato, quando trataremos

da “instituição dos vigários do deus político” ou seja, daquele que não é mais

um deus, mas em seu nome governa. Faremos também uma leitura tomando

como base a seguinte ordem: contextualizar as implicações religiosas do

cristianismo enquanto religião oficial; demonstrar como Rousseau se apega a

tese de que o cristianismo não pode se configurar como uma religião nacional,

demonstrar também que o cristianismo rompe a unidade do Estado; e por fim,

114 Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006. 115 Cf: Citação biblicaXX. 116 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 167.

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demonstrar que todo movimento em direção a uma “estatização” do

cristianismo, terminará sempre com a corrupção da política e da própria

religião.

2.1. A quebra da unidade entre política e religião: o reino dos

céus e o reino da terra

A unificação entre política e religião garantiu aos povos antigos a sua

unidade não só territorial, mas também populacional e jurídica. Não se poderia

pensar, em uma estrutura como o paganismo, que as relações legislativas

estivessem de forma alguma separadas das relações religiosas, ou que falar de

um líder político, não significasse falar também de uma entidade divina.

Ora, o mundo agora sob o poder político cristão vai conhecer algo novo

no interior do Estado, a religião cristã, e o seu formato institucional que é a

Igreja, tomada por uma relação política inovadora e por um discurso que em

nada pode ser anulado como altamente pragmático. Está aberto, segundo

Rousseau, o tempo da religião do padre:

Há uma terceira espécie de religião, mais estranha, que, dando ao homem duas legislações, dois chefes, duas pátrias, o submete a deveres contraditórios(...) Pode-se chamar, a esta, religião do padre.117

A religião do padre é, para Rousseau, a religião que provoca a confusão

na capacidade de julgamento das ações do ser em sociedade, enquanto

cidadão e enquanto homem, pois estabelece sobre sua realidade um conflito:

dá a ele dois senhores, um no céu e um na terra, e mais, ela vem “tendendo a

formar mais homens do que cidadãos”.118

Para entender essa questão tomemos o nascimento do cristianismo

enquanto instituição religiosa.

A religião cristã possui o seu início em um movimento político-religioso,

liderado por um Galileu, conhecido como Jesus. No momento do nascimento

do cristianismo, o território de Israel estava ocupado pelos romanos e, com

117 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 141. 118 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 172.

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isso, contava com todo o seu aparato militar, jurídico, religioso e, sobretudo,

administrativo.

O império romano deu aos judeus a mesma opção dada às demais

colônias sob seu domínio: aceitar o seu poder e em contrapartida, poderiam

desfrutar de seu culto e de uma certa autonomia administrativa. Segundo

Pierre Pierrard, essa autonomia era constituída por tribunais locais, que

cuidavam da aplicação da lei dos judeus e de fóruns em nível nacional,

administrados pelos romanos, que tinham como objetivo mediar e pacificar os

conflitos não só entre os judeus, mas entre os judeus e os romanos119.

Nesse contexto, segundo Rousseau, Jesus desponta com sua pregação,

anunciando que nesse mundo tudo seria passageiro e que o verdadeiro

tesouro dos homens estaria em um outro mundo que não esse120. Portanto,

pouco importa a quem obedecer e o que construir nesse mundo, se a

verdadeira obediência está não em prestar culto aos homens, mas a Deus, que

em nada é semelhante aos homens, sua grandeza é inalcançável e sua

sapiência é inatingível. Logo, por mais que os homens falem em nome de

Deus, jamais poderão ser como Ele é. Ora, afirma Rousseau, que:“foi nessas

circunstâncias que Jesus veio estabelecer na terra um reino espiritual;

separando, de tal sorte, o sistema teológico do político121”.

Instituir a ideia de um reino espiritual é, na visão de Rousseau, a grande

novidade trazida pelo cristianismo e a grande reviravolta nas relações políticas

institucionais. O reino espiritual, na leitura política feita por Rousseau, não se

trata de um reino metafísico, de aspirações a um mundo para além desse,

trata-se da ruptura entre um antigo sistema de controle social e a introdução de

um novo controle.

Nos antigos sistemas não se falava de um reino espiritual122, de uma

separação entre o que se possuí nesse mundo daquilo que se espera no outro.

A Lei, a política e a religião, eram uma e mesma coisa, estavam dissolvidas na

119 Ibidem. p. 76. 120 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139. 121 Ibidem. 122 Não se trata de afirmar aqui que os antigos não possuíam uma noção de transcendência, ou de prêmio e castigo na qual poderiam possuir uma vida para além dessa, mas sim de configurar que a realização política do homem, ou seja, sua plenificação nas relações com outros homens não poderiam se estabelecer fora dessa realidade, afinal, essa realidade nada mais era do que uma cópia da outra que viria.

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autoridade de um deus ou de vários, e esse deus transcendente esta presente

em sua versão terrena, o divino governante.

O cristianismo, desde a sua origem, buscou uma ruptura com esse

quadro, por ser uma religião derivada do monoteísmo judaico, trabalhou para a

afirmação da sua verdade como única aos homens e às sociedades. Contudo,

para o reconhecimento do cristianismo como verdade seria necessário o seu

estabelecimento como uma instituição universal, impedindo assim a sua

formulação como uma religião de Estado. Ser cristão não é pertencer a um

Estado mas ser cidadão do céu123. Gradualmente o cristianismo vai eliminando

de seu interior a ideia de território:

O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu, não pertencendo a pátria do cristão a este mundo124

O Deus cristão passa a ser entendido como único e verdadeiro, não

apenas em seu território restrito, como era de costume nos povos antigos, mas

o Deus cristão é “invejoso” impõe-se como presença em todos os territórios,

como Senhor de todos os povos:

O que os pagãos temiam aconteceu e, então tudo mudou de aspecto. Os humildes cristãos mudaram de linguagem e logo se viu esse pretenso reino do outro mundo tornar-se neste, sob um chefe visível, o mais violente despotismo125

E continua Rousseau:

Inúmeros povos, no entanto, mesmo na Europa ou nas vizinhança, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, sem obter sucesso. O espírito do cristianismo tomou conta de tudo126

A visão de que o Deus cristão é o único e verdadeiro Deus dá aos

homens a noção de que a religião que lhe presta culto pode ser configurada

também como única e verdadeira127 e deve se impor sobre todos os povos que

não a professam, não mais sob um controle militar que lhe impunha uma ordem

123 Cf. Romanos 8: 18-22. 124 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 125 Ibidem. 126 Ibidem, p.139. 127 ARAUJO. WAGNER C. Pierre Bayle: Fé e paradoxo uma voz em busca da tolerância.

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religiosa e política do povo vencedor, mas através do convencimento prosélito

de que todos os povos são um; pouco importa o Estado a quem se serve, o

que importa nesse momento é assumir o verdadeiro Deus.128 Rousseau afirma

que a partir do momento que o Estado deixou de ser uno, a paz nunca mais se

fez presente nos povos cristãos.129 Nas Cartas da Montanha Rousseau isso

transparece de forma mais clara:

Seu Autor divino, abraçando igualmente a todos os homens na sua caridade sem limites, veio levantar as barreiras que separavam as nações e reunir todo o gênero humano em um povo de irmãos130

O advento do sistema religioso cristão rompeu com a unidade antiga,

estabelecendo o reino espiritual que anula o reino terrestre. Esse estabelecer

do reino espiritual deu aos homens a noção de que estão vivendo em um

mesmo contexto, no caso a sociedade, mas sob duas realidades distintas, pois

estão na terra, mas de modo algum pertencem a ela. A ruptura entre o sistema

político e o teológico se deu no momento em que os homens já não sabiam

mais a quem e o que seguir:

(...) dando ao homem duas legislações, dois chefes(...) o submete a deveres contraditórios e o impede de poder ao mesmo tempo ser devoto e cidadão131

As leis nos povos antigos eram dadas por uma relação direta entre o

deus homem e os deuses para além do homem; a lei era sacra e não valia

apenas para a prática ou a regulação da ação dos homens no íntimo do

contexto religioso, mas ela dava vida à relação dos homens em sociedade. A

lei dos deuses era também a lei civil; o poder dos governantes não era

constituído apenas como um poder temporário e renovável, mas era eterno,

pois marcava uma identificação entre a terra e os deuses.

O sistema teológico era o sistema político e o sistema político era o

sistema teológico, não se podia ver separação entre um e outro: “(...)A guerra

política era também teológica, a jurisdição dos deuses ficava, por assim dizer,

fixada pelos limites das nações”.

128 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 129 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 130 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 131 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 141.

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O reino espiritual cristão estabelece um reino teológico e um reino

político que inaugura duas realidades distintas, ou seja, leva o humano a uma

outra realidade, que não essa. O reino teológico dita os passos concretos para

que cada homem atinja o objetivo último que é a sua salvação. Esse reino é

sustentado por estruturas que são compostas por verdades reveladas e

inquestionáveis, são dogmas de fé, para a formação de um homem para além

do homem.

Esse sistema teológico defende a universalidade da salvação a todos os

povos, afirma o poder do seu Deus sobre todos os povos, mas nada diz dos

sistemas políticos que os homens que professam essa religião devem seguir,

apenas defende, com fé que o reino de Deus não é desse mundo.132

Dizer que o reino de Deus não é desse mundo, segundo Rousseau, é

afirmar que, independentemente dos sistemas seculares de poder, eles nada

podem a não ser tentar assemelhar o reino desse mundo às leis divinas, mas

sempre de forma imperfeita, e que um reino é sempre superior a outro: “(...)O

culto sagrado sempre permaneceu ou tornou-se independente do soberano e

sem ligação necessária com o corpo do Estado133. No caso, o espiritual terá a

prerrogativa de se sobrepor a esse reino terreno, pois congrega as perfeições

da divindade.

Não há interação entre os laços políticos e religiosos, não quando o

assunto é o modelo antigo de relação entre política e religião, e a sua extensa

unidade com o seu território.

Essa separação feita pelo cristianismo entre o sistema político e o

teológico abriu uma crise, tanto em sua relação com os romanos, quanto em

sua relação com o paganismo como um todo, pois havia entre esses povos

uma impossibilidade de aceitação de um reino de outro mundo.134 Daí a

justificativa da perseguição estabelecida pelos povos pagãos aos cristãos.135

Rousseau afirma que a perseguição contra os cristãos, tal qual a que

ocorreu com os judeus, salvo suas motivações, não ocorreu por um problema

gerado pela crença religiosa especificamente. Não se tratava de querer impor

aos cristãos um contexto religioso que fosse diferente do seu, afinal, a prática

132 Cf. Jo 18: 36. 133 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 134 Ibidem. 135 Ibidem.

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romana de conquista, já havia introduzido a ideia de conquista sem que para

isso fosse necessária uma assimilação, total, política e religiosa daquele povo.

O que era intolerável nos cristãos naquele momento era a sua

incapacidade de aceitar a autoridade do imperador como divina, ou melhor,

aceitar que o próprio imperador representava uma figura divina. Paulo Apóstolo

cita de forma clara que “toda autoridade procede de Deus”,136 contudo, Deus

não se encarna no homem que o representa na ação de sua autoridade junto à

nação. Esses governantes de qualquer espécie nada mais são do que meros

representantes entre os homens. Sobre esse tema Derathé afirma:

Essa fórmula, sempre mal compreendida, não significa que Deus designa ele mesmo os governantes, mas que uma vez designados por acordos ou arranjos puramente humanos, eles recebem do próprio Deus sua autoridade. Cabe aos homens fixar a forma do governo e de nomear aqueles que serão investidos do direito de governá-los, mas esse direito em si mesmo é de origem divina.(...) A escolha que os designa é puramente humana, mas a autoridade política que eles detêm vem de Deus, como os bispos recebem de Jesus Cristo sua autoridade pastoral.137

A ideia de falar em nome de Deus, sem que com isso tenha que se

aceitar a divindade de quem fala em nome dos deuses, implica que não há

mais uma unificação entre o humano e o divino, o humano está plenamente

subordinado ao divino. Toda autoridade procede de Deus, porém, proceder não

significa ser plenamente em quem a detém, significa uma espécie de

participação no poder, e não a sua concentração plena na figura humana.

Não aceitar a figura do imperador como um ser divino é uma

incredulidade que vai estabelecer sobre os cristãos, o ódio da opinião

pública,138 em uma situação de isolamento em um primeiro momento, o que, no

entender de Rousseau, foi um erro, pois a intervenção do Estado sobre as

ações das instituições religiosas é fundamental para o pleno entendimento de

suas reais intenções: “(...) Cabe ao governo conhecê-la”.139

O motivo de estar em qualquer Estado sem que fosse necessário

pertencer a ele, deu ao cristianismo a noção de que sua missão era muito mais

136 Cf. Rm 13:1,2 137 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, P. 34. 138 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. Nota de rodapé nº 485. 139 Ibidem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157.

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do que a pregação do evangelho de forma despretensiosa. Na leitura de

Rousseau, a forma institucionalizada do cristianismo queria era o controle do

Estado e a sua reformulação.140 A submissão dos cristãos nunca foi sincera a

Estado algum, pois o único reino que estão obrigados a obedecer é o reino dos

céus:141

eles sempre consideraram os cristãos como verdadeiros rebeldes que, por sob uma submissão hipócrita, só esperavam o momento oportuno para se tornarem independentes e senhores, assim usurpando, pela habilidade, a autoridade que fingiam respeitar em sua fraqueza.142

Esse isolamento não produziu um aniquilamento dos cristãos, muito pelo

contrário, os fortaleceu. De fato, os temores dos pagãos de que os cristãos

tinham como real objetivo o controle total e absoluto do Estado se

concretizou.143

O que os povos pagãos temiam se tornou real com a dogmatizarão do

cristianismo; em outras palavras, em sua organização clássica dentro da Igreja

há seu controle central, baseado na autoridade e na hierarquia144, com a

configuração e centralização do poder nas mãos do papa. Segundo Rousseau,

tudo agora mudou de aspecto, “(...)crê estar praticando uma ação salutar a

todos aqueles que não admitem os seus deuses(...)145. O pretenso reino de

outro mundo, puramente espiritual, mudou de figura e se concentrou a existir

140 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 141 Ibidem. 142 Ibidem. 143 Ibidem. 144 Muito foi divulgado, sobretudo, após a terceira reforma com os batistas e anabatistas, que a Igreja primitiva não possuía organização hierárquica, não estava dividida em ministérios( Bispos, presbíteros e Diáconos), afirmando que a ideia de ministério instituído é uma invenção medieval. Esse ideia reforçado por pseudo- históriadores modernos não sustenta quando partimos para a análise dos textos dos primeiro tempos da Igreja, citamos como exemplo Inácio de Antioquia que assim afirma em suas cartas que datam entre 107 e 110 d.C.: “convém caminhar de acordo com o pensamento do vosso bispo, como já o fazeis. Vosso presbitério, de boa reputação, está unido ao bispo (aos Efésios 4.1). ...eu vos felicito por estardes unidos a ele, assim como a Igreja está unida em Jesus Cristo como o Pai (ibid, 5.1). ...devemos olhar ao bispo como ao próprio Senhor (ibid, 3.1). ....por isso vos peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo (ibid, 6.1). ...uma voz de Deus: permanecei unidos ao bispo, ao presbitério e aos diáconos (aos Filadelfenses 7.1). O que fica constatado é que desde os primeiros movimentos após a separação total entre cristianismo e o judaísmo será marcado pela separação da maneira como a Igreja caminhou sobre a tutela de uma referência institucional. 145 Cf ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139.

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nesse mundo, e assim, constitui um novo chefe e uma nova ordem social, na

qual não se deve obedecer por primeiro ao Estado sem que antes se tenha

sido autorizado pelo vigário de Cristo na terra.

Ora, essa obediência a um vigário de Deus, que não é um deus, mas é o

primeiro a agir e a afirmar a autoridade em nome Dele, é sem dúvida algo novo

na história humana. Os homens, antes de possuírem um vigário de Cristo,

possuíam primeiro a terra, e na terra os seus príncipes que concentraram

durante séculos todos os atributos para a manutenção da ordem em uma

determinada sociedade. Agora estamos diante de um conflito de jurisdição: a

quem devemos obedecer? Ao príncipe ou ao vigário de Cristo? Devemos ficar

no reino da terra ou aspirar ao reino dos céus?

É justamente essa confusão que vai abrir nas sociedades o que se

seguiu na história dos povos, pós experiência cristã: a uma conflito perpetuo146

toda a boa politia,147 segundo Rousseau, tornou-se impossível de ser praticada,

pois inviabilizou a relação direta entre, política, religião e território. Esses três

elementos que nos parecem ser o ponto chave da relação unificada dos

estados antigos, agora se apresentam a nós de forma separada, como se não

necessitassem de uma relação entre si.

Assim afirma Rousseau no Contrato:

No entanto, como sempre houve um príncipe e leis civis, resultou dessa dupla posse um conflito perpétuo de jurisdição que tornou toda boa politia impossível nos Estados cristãos e jamais se conseguiu saber se era ao senhor ou ao padre que se estava obrigado a obedecer148

No momento em que essa ruptura no Estado foi percebida, houve sim,

em muitos Estados, uma grande reação contra ela, tentativas de unificar sob

um mesmo cajado a autoridade pacificadora, determinando mais uma vez a

autoridade do Estado e de seus divinos governantes sobre aqueles que lá

estavam. Tentou-se nos Estados cristãos retomar o poder dado aos papas e

aos bispos sobre a autoridade do príncipe, contudo, isso sempre se mostrou

impossível, pois o cristianismo em sua essência demonstra um diferente ponto:

ele não pode ser nacional! 146 Cf. Ibidem. 147 Podemos entender esse conceito como uma boa convivência entre os cidadãos no Estado. 148 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139.

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2.2 A impossibilidade do cristianismo enquanto reli gião

nacional

Inúmeros povos, no entanto, mesmo na Europa ou nas vizinhanças, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, sem obter sucesso. O espírito do cristianismo tomou conta de tudo.149

Segundo Rousseau, a reação por parte dos povos pagãos contra a nova

doutrina trazida pelos cristãos sobre as relações políticas e religiosas foi

grande em um primeiro momento, contudo, quanto mais o cristianismo se

espalhava, fruto de sua ação missionária, mais a concepção de que pouco

importa quem está no poder e que o que importa é submeter-se à lei de Cristo

e de sua Igreja a ideia de que “(...) fora da Igreja não há salvação”150 tomou

conta das ações e dos povos que viviam nos primeiros movimentos após o

édito de Milão.151

Contudo, há no cristianismo um elemento que o diferencia quase que

por completo de todas as outras experiências políticas e religiosas existentes

no mundo antigo. O cristianismo fala sempre de um reino dos céus, de matéria

espiritual, de felicidade eterna, mas ignora o reino da terra enquanto realidade

sob autoridade de um príncipe humano. A autoridade procede, como já foi dito

por Paulo, mas não pertence a esse rei, pois ele está subordinado à autoridade

do evangelho e do magistério da Igreja.152

149 Ibidem. 150 Ibidem, 145. 151 O Édito de Milão (313 d.C.), também referênciado como Édito da Tolerância, declarava que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente do Cristianismo. O édito foi emitido nos nomes do tetrarca ocidental Constantino I, o grande, e Licínio, o tetrarca Oriental. Na primeira metade do edital, estabelece-se o principio da liberdade de religião para todos os cidadãos e, conseqüentemente, reconhece-se explicitamente que também os cristãos gozam desta liberdade. O edito permitia praticar a própria religião não só aos cristãos mas a todos os cultos. Na segunda metade fica estabelecido que seriam devolvidos aos cristãos seus antigos locais de reunião e de culto, assim como outras propriedades, que tinham sido confiscadas pelas autoridades romanas e vendidas a particulares na última perseguição. In: JIMÉNEZ PEDRAJAS, R. “Milán, Edicto de”, in Gran Enciclopedia Rialp vol. XV, Rialp, Madrid (2ª ed.) 1979, pp. 816-817. 152 “A teologia Católica, sustenta o argumento de que a autoridade da Igreja poupa seus fiéis de disputas sem fim sobre o sentido do evangelho. A Igreja é o juiz infalível do sentido das escrituras e das controvérsias que as diferentes explicações do texto sagrado podem provocar entre os cristãos”. In. SILVA, G.F. Rousseau e a fundamentação da moral (tese de doutorado). Campinas, São Paulo. 2004. P. 191.

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Afirma Rousseau que: “o culto sagrado sempre permaneceu ou tornou-

se independente do soberano e sem ligação necessária com o corpo do

Estado”.153

Os povos antigos estavam relacionados com seus Estados através do

poder exercido pela autoridade política que também configurava a autoridade

religiosa: “pois cada Estado, tendo tanto seu culto quanto seu governo proprio,

de modo algum distinguia seus deuses de suas leis”. As instituições religiosas

estavam presentes na constituição do Estado e eram limitadas por um modelo

geográfico pré-determinado. Os deuses possuíam jurisdições próprias, não

podiam atuar fora de suas jurisdições, pois do outro lado da fronteira havia um

outro deus a atuar por seu povo na defesa de seu território.

Ao território estava identificada a relação entre política e religião, os

deuses ali habitavam com os homens, ali também guerreava com eles, não se

tratava de uma guerra entre dois povos, mas também de uma guerra entre os

deuses. No momento da conquista de um povo sobre outro, não se

conquistavam apenas terras, ou escravos, mas os deuses daquele povo

estavam obrigados a se submeter às relações do Estado vencedor.

Rousseau afirma, nas Cartas Escritas da Montanha, que todas as

antigas religiões, foram nacionais em sua origem:

Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo154

O que Rousseau expõe é a ideia que as religiões faziam parte do

Estado, do aparato jurídico, e de um território delimitado, não havia uma

religião universal, um deus que estivesse presente em todos os povos e

mesmo os judeus, monoteístas enxergavam o seu Deus, maior do que todos os

outros,155 mas, apenas seu, e fiel à terra prometida.

A expansão do cristianismo abre uma nova dimensão nas relações entre

política e religião; ele não é nacional, não pertence a um território, o

cristianismo assume uma forma universalista:

153 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 154 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 169. 155 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139.

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“O cristianismo é uma religião universal em seu princípio, que nada tem de exclusivo, nada tem de local, nada tem de próprio a tal país mais do que a outro”.156

A afirmação de Rousseau de que o cristianismo nada tem de local,

demonstra a real condição dessa dimensão religiosa. Em sua essência o

cristianismo não poderia tomar uma forma própria em um determinado

território. Afirmar que ele assimila costumes dos povos locais nada tem a ver

com a conclusão que o cristianismo em algum momento se fixou em um

determinado padrão cultural ou em um determinado território.

A ação do cristianismo significa em si uma ação que abraça todos os

povos: aqueles que aqui estão nada têm de diferente com relação àqueles que

estão do outro lado da fronteira de um território, o Deus é o mesmo e a ação

entre eles de amor ao próximo também necessita ser.

Isso torna a relação de autoridade do poder civil frágil; como exigir de

um individuo que lute por seu solo sagrado, se essa noção simplesmente

desapareceu do contexto? Todo solo é sagrado na leitura cristã, pois pertence

ao mesmo Deus. Essa visão enfraquece a engrenagem do Estado, pois

prejudica a ação em tempos de conflito:

O cristianismo, ao contrário, tornando os homens justos, moderados e amigos da paz, é muito vantajoso à sociedade em geral, mas enfraquece a força da engrenagem política, complica os movimentos da máquina, rompe a unidade do corpo moral e, não lhe sendo muito apropriado, deve degenerar ou tornar-se peça estranha e embaraçosa.157

Logo, o cristianismo não é territorial, ele deve ir pelo mundo,

independente do território no qual ele está inserido. A religião cristã, enquanto

religião nacional, apresentada como parte de um sistema jurídico legal do

Estado, não é uma realidade que possa se concretizar, e todas as vezes que

se tentou executar essa manobra de introdução do cristianismo no meio legal,

o desastre foi iminente.158

156 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 169. 157 Ibidem. p. 170. 158 Cf. ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. P. 169.

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Não há possibilidade de introdução do cristianismo no sistema nacional,

e a tentativa de transformá-lo em uma religião nacional sempre resultou em um

intenso fracasso159, pois falhou na tentativa de unificar o centro do poder. Os

governantes que tentaram fazer uso do cristianismo, nada mais fizeram,

primeiro por deformar tanto a religião quanto a política: “Então aqueles que

quiserem fazer do cristianismo uma religião nacional e introduzi-lo como parte

constitutiva do sistema de legislação cometeram dessa forma duas faltas

perniciosas(...)”160 e segundo por transformar o cristianismo em um instrumento

tirânico para oprimir as minorias que não se enquadravam dentro do formato

oficial: Ainda é má quando, tornando-se exclusiva e tirânica, transforma um

povo em sanguinário e intolerante161

Dentro de todas as análises clássicas da política, é consenso entre os

especialistas que um império fica cada vez mais difícil de ser comandado na

medida em que expande suas fronteiras administrativas. Quanto mais distante

da capital do império, ou seja, do centro do poder, as mazelas administrativas

despontam, o que torna difícil o controle por parte do centro para com as das

demais colônias a seu favor.

O cristianismo, porém, se configurou como um grande império por todo o

mundo. Não há espaço territorial em que ele não possa estar e região alguma

na qual a sua mensagem não possa chegar. A questão é que o cristianismo,

mesmo enquanto religião universal precisava de uma forma de organização na

qual o centro do poder mantivesse relações diretas com os seus comandados

não importando onde os subordinados estivessem.

O poder universal do cristianismo foi configurado pela invenção de uma

obra-prima da política, a ideia de comunhão e excomunhão.

(...) A comunhão e a excomunhão são pacto social do clero, pacto com o qual será sempre o senhor dos povos e dos reis. Todos os padres, que comungam juntos, são concidadãos, ainda que esteja nos dois extremos do mundo(...)162

159 Ibidem. 160 Ibidem. 161 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 141. 162 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 140. Nota Nº 486.

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2.2.1. A sustentação do poder político sem a noção de

território: Comunhão e excomunhão

Comunhão e excomunhão na doutrina cristã seja ela de qualquer

vertente, dado que entre os protestantes a idéia de comunhão e excomunhão

também vigora163 é o grande trunfo encontrado pelo sistema de governo cristão

para manter o reino da terra subordinado as coisas do céu. Esse controle se dá

não apenas por uma comunhão tratando-se de reuniões em determinados

locais e de repetições de determinadas fórmulas, mas de uma comunhão que

vai além das fronteiras de um país.

Rousseau chama a atenção de que, quando um padre comunga, ou

seja, celebra os mistérios da fé e reafirma os dogmas essenciais do

cristianismo em um determinado lugar, esse padre de certa maneira estabelece

um vínculo de fé e poder com todos os outros membros da comunidade cristã,

mesmo que essas pessoas estejam a milhares de quilômetros umas das

outras: “(...)São concidadãos, ainda que estejam nos dois extremos do

mundo164.

Logo, não há necessidade de uma relação meramente local para

estabelecer comunhão entre os membros do reino dos céus, mas basta eles

estarem em comunhão com aquilo que foi pré-formulado pelas instituições que

representam esse reino. A comunhão se torna o grande laço entre os povos

nos tempos cristãos, ela não só ganhou uma dimensão religiosa, mas,

sobretudo, assumiu uma forma política: “(...) Essa invenção é uma obra prima

de política. Não havia nada de semelhante entre os padres pagãos(...)165

Comungar no sentido político dado pelo cristianismo significa estar

dentro de um sistema, fazer parte de algo muito maior do que uma simples

relação institucional local. Se comungar significa a porta de entrada para o

reino, tanto o da terra quanto o dos céus, a idéia de excomunhão assume na

história política do cristianismo um local extraordinário.

163 LEONARD, E.G. Histoire générale du protestantisme, t. III. Paris: PUF, 1964, p. 73. 164 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 140. Nota Nº 486. 165 Ibidem.

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Excomungar alguém, a olhos leigos, parece ser uma ação puramente

religiosa que delibera sobre alguém que não pode participar da comunhão

dominical na missa ou no culto. Essa é uma análise que não leva em

consideração a noção política que esse termo carrega. Estar excomungado do

seio do cristianismo significa não só um desligar do reino dos céus, no qual

todos os que aqui estão serão julgados e enviados a ele, mas um desligar das

relações terrenas.

Um rei que estivesse excomungado pela autoridade religiosa teria todos

os seus atos de conquista dados como nulos e todas as suas ações dadas

como inválidas em seu território166. Observa-se que a autoridade que determina

a excomunhão daquele rei está fora de seu território, em um outro local

qualquer, mas o vínculo a que essa autoridade está ligada é metafísico, e toma

uma forma universal. Um rei, uma vez fora da comunhão com a fé cristã, não

rompe apenas com a autoridade religiosa de Roma, ou de Constantinopla, mas

está fora também de todas as relações com aqueles que professam a fé, tanto

entre os reis de outros povos como entre os seus próprios súditos, pois a

justificação de sua autoridade sobre os mesmos se dava por manter-se em

comunhão com o reino espiritual.

O poder do rei entre os seus súditos é sustentado por um vínculo entre

aquilo que é humano e o que é divino. No cristianismo, a tradição de interligar o

humano e o divino sob a figura da autoridade do papa, que é o vigário de Cristo

na terra foi um grande primado.

Defendem alguns autores que a justificação do poder civil sob a tutela da

comunhão com a fé cristã, se deu de forma oficial na noite de Natal do ano de

800167, quando Carlos Magno foi coroado sacro-imperador.168 Todos os atos do

imperador agora estavam justificados e abonados por sua missão maior, que

era através de suas conquistas levar o reino dos céus aos quatro cantos da

terra.

166 PIERRARD. PIERRE. História da Igreja. São Paulo: Paulus. p.60. 167 No Natal do ano 800, Roma viveu uma invasão pacífica de nobres e guerreiros francos. Na antiga Basílica de São Pedro, onde o papa Leão III celebrou a missa de Natal, se reuniram autoridades eclesiásticas e líderes políticos, entre eles, Carlos – rei dos francos e lombardos, nessa mesma noite, Carlos Magno foi de sagrado como sacro imperador romano. 168 O Sacro Império Romano-Germânico foi à união de territórios da Europa Central durante a Idade Média, sob a autoridade do Sacro Imperador Romano.

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Logo, trata-se aqui de entender que estar excomungado era agir por si

mesmo, sem carregar sobre seus estandartes a cruz que agora era o símbolo

máximo da ação política.

Mas nessa exposição ainda parece faltar um elemento, que seria pensar

sobre a possibilidade de se fazer com que o controle administrativo se

mantivesse sobre os povos, já que a comunicação entre o centro do poder e as

filiais era mal estruturada.

Segundo Rousseau, o cristianismo estabeleceu algo que entre os povos

pagãos não havia ainda nenhuma referência: a invenção do clero enquanto um

corpo.169 Esse estabelecer do clero enquanto corpo, jurídico e legal, se dá pela

introdução no meio cristão da idéia de hierarquia, copiada do modelo imperial

romano, ou seja, das ordenações às funções clericais.170

Um padre, antes de ser declarado como ministro do reino, tem que

necessariamente passar por um processo de formação, a fim de que entenda

como universalmente o cristianismo está configurado e para que também ele

não venha a romper com essa estrutura. Esse processo dá a alguns a

sensação de que foram eleitos para ocupar determinadas funções na

hierarquia e que essa eleição fora feita não por meios humanos, mas por um

chamado divino. O clero cristão invoca a capacidade de se entender não

apenas como escolhido por Deus, mas como responsável direto pelo

estabelecimento do seu reino no mundo.

Ora, a idéia de comunhão e excomunhão estabelecida pelo cristianismo,

deu a sua política, afirma nosso autor, uma grande capacidade operacional,

pois anulou quase que por completo a necessidade de uma relação local em

matéria religiosa. Então, não existe um cristão nacional francês, nem

169 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 140. Nota Nº 486. 170 Na Igreja Católica foram aceitos três graus de ordenações as funções clericais; primeiro aparecem a figura dos diáconos, como aqueles que auxiliavam no culto e em seguida os bispos (episcopos) ou os que supervisionavam as ações de uma Igreja determinada e oficiavam o culto. Na seqüência aparece a figura dos presbíteros, que na cristandade despontam como ponto central do poder clerical. Com o avanço do poder dos presbíteros os diáconos perdem espaço a ponto de sua ordem praticamente desaparecer e os bispos assumem uma função cada vez mais burocrática, de supervisionar os presbíteros. A figura do presbítero passa a ser determinante na lógica de pensamento da Igreja. Nessa lógica institucional apenas aqueles que recebem as ordenações, são reconhecidos como dotados de direito na oficialização do culto e na propagação do discurso de poder da Igreja Católica. A figura do presbítero foi tão marcante na condução das ações políticas do cristianismo que mesmo após a reforma, alguns grupos presbiterianos (como os calvinistas), abolem a estrutura episcopal, entregando todo o poder na mão de “um conselho de presbíteros”.

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português, nem alemão, o que existe é o cristão, concidadão de todos os

cristãos no mundo, que não possuem outra identidade a não ser essa.

2.2.2 Universalismo e o poder soberano.

Rousseau cita no Contrato Social, que duas tentativas frustradas, feitas

por príncipes cristãos, de unificar sob o mesmo cajado a bandeira da religião e

da política: os reis Ingleses, pós Henrique VIII* e os czares Russos.

Tomaremos como referência a análise do caso inglês.

O rei Henrique VIII governou a Inglaterra, e no período histórico de seu

governo, não só a Inglaterra, mas toda a Europa era sacudida pelos eventos

advindos da chamada reforma protestante. A Inglaterra de Henrique, sempre

apresentou os traços clássicos do conflito entre a religião cristã e os príncipes

do Estado, analisados por Rousseau. Em sua história, as relações entre o

Papado e os povos daquela ilha nunca foram tranqüilas171.

Isso fica claro no momento em que Henrique VIII reina sobre a

Inglaterra. O problema de Henrique sobre a anulação de seu casamento com

Ana Bolena nada mais faz do que obscurecer o que realmente levou a

Inglaterra a romper com a autoridade papal e assumir o controle da Igreja

Inglesa.172

O ato de supremacia,173 promulgado pelo parlamento inglês, dá ao

príncipe da Inglaterra a autoridade sobre a Igreja. Ela passa agora a ser

também parte do seu reino e, conseqüentemente, parte de sua autoridade. A

separação entre a Inglaterra e Roma não se tratou de um ato religioso, fruto de

um desentendimento sobre o sacramento do matrimonio, mas de um ato sobre

a jurisdição política.

Tornar-se chefe da Igreja da Inglaterra, porém, não deu a Henrique VIII a

mesma autoridade da qual gozavam os antigos governantes. Os antigos não

eram “chefes” de suas instituições religiosas, mas eram eles mesmos

instituições religiosas.

171 EARLE. E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 266, 267 172 Ibidem. 173 O primeiro Ato de Supremacia foi criado pelo rei Henrique VIII de Inglaterra concede Real Supremacia à autoridade legal do Monarca do Reino Unido. A Real Supremacia é especificamente utilizada para descrever a soberania jurídica das leis civis sobre as leis da Igreja na Inglaterra.

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Na impossibilidade de ser reconhecido como uma autoridade divina, o

rei Inglês, segundo Rousseau, não pôde em nenhum momento decretar

mudanças sobre os rumos ou sobre o conteúdo daquela Igreja, pois ela nada

mais era do que um pedaço universal do cristianismo presente na Bretanha.

Essa limitação de Henrique pode ser encontrada em seu resumo sobre a fé da

Igreja da Inglaterra.174 Nesses artigos percebe-se que Henrique VIII, mais do

que decretar uma mudança sobre os rumos da Igreja, reafirma um catolicismo

sem papa, subordinado a ele, que nada mais é do que um servo da fé cristã, e

não o seu verdadeiro e legítimo senhor175.

Segundo Rousseau, para reunificar as estruturas políticas e religiosas

seria necessária uma autoridade por parte dos soberanos de legislar em

matéria civil e religiosa. É claro que não há autoridade nos príncipes para

legislar em nome do cristianismo:

(...)porém, tornaram-se menos seus senhores do que seus ministros, adquiriram menos o direito de mudá-la do que o poder de mantê-la, não são nela legisladores, mas somente príncipes176

Logo, sua autoridade está apenas concentrada na manutenção nua e

crua da fé que pertenceu a seus pais e que agora pela qual eles se tornam os

responsáveis:

Entre nós os reis da Inglaterra tornaram-se chefes da Igreja e a mesma coisa fizeram os czares; com esse título, porém, tornaram-se menos seus senhores do que seus ministros adquiriram menos o direito de mudá-la do que o poder de mantê-la, não são nela legisladores, mas somente príncipes177.

Rousseau demonstra por meio de argumentos lógicos, que o

cristianismo, de uma forma ou de outra, tenta manter-se independente da

estrutura política, independente quanto ao governo estabelecido pelo Estado

em sua matéria religiosa, mas não sobre como a matéria religiosa mergulha na

dimensão do Estado.

Uma boa política torna-se impossível nos Estados cristãos, pois não se

pode unir, em um território o poder político e o religioso.

174 Neill, Stephen, El Anglicanismo, p.33 175 A História da Igreja da Inglaterra, Apostilha da série Partilha Teológica nº 1 p.137. 176 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 140. Nota 487. 177 Ibidem. p. 140.

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2.3 O uso político da religião cristã como um mal p ara o Estado

e para a religião

Na análise de Rousseau, há uma clareza máxima em suas idéias

quando o assunto é o uso da religião cristã dentro dos aparatos políticos e

jurídicos do Estado. A impossibilidade de introduzir o cristianismo como parte

do Estado é um ponto, para ele, que não cabe mais discussão. A introdução

do cristianismo como parte do Estado implica segundo Rousseau, além da

destruição da unidade do corpo político, por inviabilizar uma unidade dentro da

sociedade, gera também, por conseqüência dois erros fundamentais; um

primeiro em matéria religiosa e outro em matéria política: “(...) cometeram,

dessa forma duas faltas perniciosas, uma contra a religião, outra contra o

Estado”178.

2.3.1. O uso político do cristianismo: Um erro cont ra a religião.

O erro em matéria religiosa está na falta dos governantes, que não

reconhecem a verdadeira essência do cristianismo, do Espírito de Jesus, que

da a clara convicção de que o reino na qual o cristão deve buscar não pertence

a esse mundo:

A ciência da salvação e a do governo são muito diferentes: querer que a primeira abarque tudo é um fanatismo de estreiteza de espírito; é pensar como os alquimistas, que viam também na arte de fazer ouro a medicina universal, ou como os maometanos, que pretendem encontrar todas as ciências no alcorão.179

Quando se misturam, os interesses terrestres com o da religião cristã,

temos como resultado uma perversão do contexto religioso. A religião torna-se

um instrumento altamente perigoso nessa relação, pois ela perde a sua pureza

divina180, e corre ao encontro de uma variação perigosa, que nas mãos de

178 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. P. 169 179 Ibidem. p. 173. 180 Ibidem. p. 169

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tiranos torna-se o elemento necessário para as perseguições às minorias e a

eliminação de seus opositores: o dogmatismo.

A religião cristã é, pela pureza de sua moral, sempre boa e sã no Estado, desde que ele não faça parte de sua constituição, desde que ela ai seja admitida unicamente como religião, sentimento, opinião, crença. Mas como lei política, o cristianismo dogmático é uma má instituição181

Há no cristianismo dogmático, sobretudo, no católico, segundo

Rousseau, uma relação direta entre aquilo que se pensa e a autoridade da

Igreja. O magistério eclesial age para calar todo o conflito em matéria de fé,

essa ação também se configura uma ação civil. A autoridade da Igreja se

sobrepõe aos fiéis, e as sua consciências, quando existe algum conflito: “A

Igreja decide que a Igreja tem direito de decidir, não é essa uma autoridade

bem fundada?”182

No século em que Rousseau está inserido, a palavra da Igreja é

cristianismo universal. A decisão da igreja naquele momento não se reporta

apenas a definir um conflito religioso, sobre os mistérios dos anjos e milagres,

mas as suas decisões, por se tratarem de decisões universais também

possuem um efeito civil, pois afetam cada local onde está inserido um cristão.

Em 1762 Rousseau recebe de forma furiosa em seu exílio na Holanda a

notícia de que o Parlamento de Paris havia lançado uma condenação de suas

obras, para ser mais exato, o Emílio. Essa condução é precedida de uma carta

pastoral, escrita e publicada pelo então arcebispo de Paris, Christophe de

Beaumont.

O conteúdo da carta pastoral é uma tentativa de desqualificar o

pensamento de Rousseau no trato a suas idéias sobre a formação da

juventude, mas, sobretudo, em relação a sua análise crítica sobre a matéria

religiosa o que não era inédito, pois o século de Rousseau é o século da

contestação às referências de caráter religioso183.

Rousseau segue então a compor uma resposta ao arcebispo de Paris,

expondo as suas defesas e os motivos que levaram a redação de suas obras e

181 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. P. 172. 182 Cf. Ibidem. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P. 110. 183 CHAUNU, P. A civilização da Europa das Luzes. Lisboa: Estampa, 1985. p. 271 e 274.

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de suas posições com relação às questões ligadas à religião e ao próprio

Estado.

O ataque do parlamento e do arcebispo de Paris não feriu Rousseau,

apenas no que se refere aos seus escritos, mas, sobretudo, naquilo que

Rousseau julgou ser abominável: o uso político da religião, para subordinar as

decisões políticas. A Igreja em Paris toma para si o princípio da universalidade

e da validade da comunhão cristã por todo o mundo, e com isso decreta de

Paris, sobre um assunto distante territorialmente, mas que possui um efeito no

mundo todo, Rousseau não estava condenado apenas em Paris, mas em todo

o mundo cristão:

Um genebrino faz imprimir um livro na Holanda,e, por um decreto do parlamento de Paris, esse livro é queimado sem respeito pelo soberano cuja autorização ele ostentava. Um protestante propõe, em um país protestante, objeções contra a Igreja de Roma, e o parlamento em Paris decreta sua prisão(...) O parlamento de Paris deve ter estranhas idéias sobre sua jurisdição e se acreditar o legitimo juiz de todo o gênero humano184

Contudo, os dogmas religiosos cercam a sociedade, seu funcionamento

e sua regulação, não há espaço nesse modelo de contexto para uma reflexão

saudável. O que ocorre nesse tipo de situação é que, diferente dos povos

antigos, que possuem suas leis, que eram nacionais, baseadas em seu estado

civil e religioso de forma unificada, o cristianismo produz uma inversão, onde a

sociedade atua de forma a aceitar apenas os modelos cristãos e a ignorar todo

o resto.

2.3.2 A intolerância.

O modelo cristão na leitura de Rousseau é politicamente intolerante, pois

não pode reconhecer no outro, que não seja cristão, algo de verdadeiro, sob o

peso de trair a sua fé. Uma vez não podendo reconhecer no outro algo de

verdadeiro, não é possível também estabelecer regras de convivência com

esses “não cristãos” dentro do Estado sobre a pena da dissolução do mesmo e

184 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P.42.

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de por em risco a sua fé, que na leitura do cristianismo é o que realmente

importa e não o Estado em si.

Por conta desse modelo de pensamento, Rousseau aponta o produto

dessa inflexão às guerras de religião:

Todos os cristãos promoveram guerras religiosas, e a guerra é nociva aos homens. Todas as facções foram perseguidoras e perseguidas, e a perseguição é nociva ao homem185

As guerras de religião ocorrem no momento em que o reino dos céus

toma o lugar do reino na terra. O fanatismo produzido pelo raciocínio de que a

religião de alguns é superior a de outro em outros pontos da cidade é perigoso,

pois buscará eliminar aqueles que se opõe ao grupo religioso dominante.

No Emilio essa idéia é recorrente. O vigário saboiano apresenta a sua

opinião a cerca das revelações. Para ele, os dogmas particulares provocam

uma grande confusão na cabeça dos homens, e no lugar de os ajudar a

encontrar a verdade das coisas, os confunde ainda mais, e por conseqüência

tornam os homens orgulhosos, intolerantes e cruéis.186 Em meio à variedade

quase interminável de seitas, o vigário chega à conclusão que cada uma das

seitas acusa a outra de mentirosa e de promover o erro, arrogando para si

mesmas o mérito de ser o único e verdadeiro caminho para a verdade: “Qual

delas é a certa? Cada qual me respondia: É a minha”.187

Diante, desses problemas o Vigário, segue o seu raciocínio tentando

encontrar a resposta. Como seria impossível saber sobre qual doutrina é de

fato a verdadeira, seria necessário então entender como as doutrinas se

tornam verdadeiras aos olhos dos homens. Esse verdadeiro aos olhos dos

homens se dá através da intermediação dos vigários de Deus, os clérigos

cristãos. Segue-se que nesse momento fica clara a necessidade do Vigário

criticar a atuação dos padres na interpretação das revelações:

Procuramos, então, sinceramente a verdade? Nada concedamos aos direito de nascimento e à autoridade dos padres e dos pastores, mas chamemos ao exame da consciência e da razão tudo o que eles nos ensinaram desde a infância. Não adianta me gritarem: Submete a tua

185 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P.81. 186 ROUSSEAU. J. J. Emílio, ou da Educação. São Paulo. Martins Fontes, p. 400. 187 Ibidem, p. 402.

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razão. O mesmo pode dizer-me aquele que me engana; preciso de razões para submeter a minha razão.188

O estabelecimento de intermediários do poder divino transforma a

religião em algo fácil de ser manipulado. Como provar o que foi revelado por

Deus a um clérigo? A sua palavra torna-se lei, uma por não haver quem a

conteste por estar no campo da fé e outra por não haver fundamentalmente

como provar racionalmente essa idéia:

Quando se perde de vista os deveres dos homens para se ocupar apenas com as opiniões dos padres e sua frívolas disputas, não se pergunta mais a um cristão se ele teme a Deus, mas sim se é ortodoxo; faz com que subscreva formulários com as questões mais inúteis.189

Fica claro que para Rousseau é a intervenção clerical que reflete de

forma clara o poder cristão nos Estados em que ele está inserido. A religião

deixa de ser dos deuses e passa a ser do padre: “(...) o interesse do padre

sempre será mais forte do que o do Estado”.190 É justamente da transição do

modelo político religioso pagão que abandona a sua antiga função e agora

assume a nova que Rousseau aponta no texto das Cartas da Montanha como

o segundo grande erro cometido por aqueles que tentaram dar ao cristianismo

uma forma nacional e assim fazer um uso político do mesmo. O erro consiste

em dizer que já que a religião e o poder político não pertencem mais aos

deuses e aos seus divinos representantes, mas ao padre, é justamente essa

figura a quem devo obedecer, as leis não são mais do Estado para a religião,

mas da religião para o Estado. Isso “enfraquece a força da engrenagem

política”.191

188 Ibidem. 403. 189 Ibidem. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. p. 85. 190 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 140. 191 Ibidem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 170.

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2.3.3. O uso político do cristianismo: Um erro cont ra a política

O cristianismo é uma religião universalista. O conceito de conversão de

todos os povos e de missão está presente na semente desse movimento

religioso iniciado em Israel e difundido por todo o antigo Império Romano. O

seu conceito de universalidade dá aos homens a clara noção de que o reino a

que verdadeiramente estão subordinados é o reino de Deus e não os reinos

que passam.

O cristianismo nesse formato é reconhecido por Rousseau em sua

forma hierárquica na Igreja. Na exposição do vigário de Sabóia, Rousseau

retoma de forma recorrente a idéia de que o catolicismo em si possui as suas

bases sob dois grandes modelos sistêmicos: a crença na revelação e no poder

das superstições. Uma coisa está na composição da unidade e a outra forma o

poder do catolicismo na medida em que impõe a necessidade da interpretação

sobre as revelações cabe apenas ao magistério da Igreja, e a condução das

superstições, dentre elas o culto aos santos e aos devocionais e controlada

também pela instituição através de cada braço eclesial local. Afirma Rousseau

que, por conta das confusões criadas pela inúmera quantidade de práticas

religiosas, o povo por si jamais teria condições de entender o que se esta

mesmo a celebrar, ou melhor, no que crer. Dai a necessidade sempre presente

daquele que será destinado a instruir o povo, o padre: “sempre teria que

retornar à autoridade dos que o instruem”.192

A Igreja é a grande resposta dada a todos os conflitos, o poder do

“padre” não está essencialmente segundo Rousseau em afirmar a sua religião

sobre as outras, nem em cultuar a sua fé, mas em afirmar a sua religião sobre

o Estado, sobre as suas leis, em provocar a ruptura da unidade política. A ação

do cristianismo não é particular, não pertence a uma sociedade única, mas a lei

cristã avança por toda a humanidade.193

O cristianismo, segundo Rousseau, provoca um grave dano ao Estado,

por não favorecer um movimento de unificação entre os membros daquela

192 Cf. Ibidem. Emílio, ou da Educação. São Paulo. Martins Fontes, p. 471. 193 Cf ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 141. Nota nº 493.

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sociedade em particular. Por pertencer a uma relação metafísica, o homem

tende a entender que sua relação com os próprios homens também é

metafísica, logo, as leis dos homens não encontram respaldo junto a essa

classe de cidadãos, pois para eles essas leis dadas por homens, trazem em

sua formulação um erro tremendo. Terem sido formuladas por Deus e

aplicadas pela sua Igreja.

Mas essa religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa as leis unicamente com a força que tiram de si mesmas, sem acrescentar-lhes qualquer outra, e, desse modo, fica sem efeito um dos grandes elos da sociedade particular.194

Nas sociedades antigas, que estavam fundadas na interligação entre o

político e o religioso, as leis eram o puro “sacramento” dessa relação. Moisés

quando deu ao povo leis civis, nada mais fez do que dar a essas mesmas leis

civis uma roupagem religiosa, ou seja, as sacralizou-as. Desobedecer as leis

era antes de tudo desobedecer a Deus.

O que Rousseau aponta é que o cristianismo ignora esse ponto chave

para a condução da sociedade: a desobediência a uma lei civil, que contrarie

os princípios da lei cristã, não constitui para o cristão nenhuma falta contra

Deus, mas apenas uma falta contra o convívio em sociedade195, um pecado

menor que pode ser perdoado. No caso da relação dos cristãos com o império

romano esse problema é claro.

O cristianismo nasceu dentro do império, portanto, deveria estar sujeito

às leis do império romano. A grande questão é que o cristianismo e seu caráter

universal estabeleceram uma espécie de desobediência civil, os crimes que,

pelas leis do Estado eram punidos com a morte, como o não reconhecimento

da divindade do imperador, tornaram-se, para o cristianismo, sinônimo de sua

guerra contra o Estado.

A negação da figura do imperador como Deus era visto pelos cristãos

não como um crime, mas como uma virtude, pois pouco se importavam com as

194 Ibidem. P. 141. 195 “Esse era o sentido que os seguidores de Jesus entendiam. Por exemplo, quando as autoridades de Jerusalém (sobretudo os sacerdotes) ordenaram que os apóstolos parassem de pregar ao povo, Pedro respondeu: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens.” Ato 5, 29. No entanto, Jesus não parece ensinar uma oposição tão radical as leis civis.(...)” Cf: WATERLOT, Ghislain. Rousseau: Religion et politique, p. 37.

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leis do Estado, o importante era não romper com as suas leis particulares,

essas sim de caráter divino. As punições, inclusive com a pena capital,

passaram a ser vistas por esses cristãos como um motivo de orgulho; o

martírio assumiu a forma de fidelidade ao projeto cristão, pois o cristão morria

para defender o seu reino e lutava contra a inversão pagã do reino da terra e

de suas leis que nada possuíam de sagradas. Há uma desvinculação total da

lei que rege o cristianismo e das leis que regem o Estado.

A fé dos cristãos é contrária ao Estado, pois não reconhecem em suas

leis, em seu corpo social, nada em que o coração humano possa estar

apegado, afirma Rousseau que:

Mas ainda, longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social196

A religião cristã desliga o coração do homem da terra, pois a sua

essência, não é terrena, mas espiritual:

O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual preocupada unicamente com as coisas do céu, não pertencendo à pátria do cristão a este mundo197

No Contrato, sobretudo após as definições dadas sobre as religiões

instituídas, Rousseau segue para uma série de acusações com relação à

possibilidade de se construir uma sociedade genuinamente cristã, a crítica está

direcionada tomando como a base a impossibilidade dos cristãos desviarem o

seu foco do reino dos céus para um reino da terra.

A relação política do cristianismo, por conta do rompimento de sua

estrutura existencial com a estrutura civil, segundo Rousseau, cumpre a sua

função social, bem ou mal, como religião, mas não estabelece nenhum laço de

apego ao Estado no qual está inserido: “É verdade que ele cumpre o seu

dever, mas o faz com uma indiferença profunda quanto ao bom ou mau

sucesso de seus trabalhos”.198

Rousseau reconhece no cristianismo uma espécie de egoísmo civil, um

tipo de interiozação produzida no coração de seus fiéis. O cristianismo busca 196 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 197 Ibidem. 198 Ibidem. p. 148.

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no mundo manter a sua hegemonia e o seu poder, liga-se ao Estado apenas

com esse objetivo. Se o Estado vai bem o mal, se consegue avançar, ou se

vive uma intensa derrocada, o cristianismo não se afeta, pois em tempos de

glória do Estado, ele não se alegra, em tempo de penúria, afirma que a mão de

Deus pesa sobre os que nele habitam:

Contanto que nada tenha a censurar em si mesmo, pouco lhe importa se tudo vai bem ou mal cá embaixo. Se o Estado está florescente, dificilmente ousa gozar a felicidade pública, teme orgulhar-se da glória de seu país; se o Estado perece, bendiz a mão de Deus que pesa sobre seu povo.199

Uma organização coletiva subsiste observando com extrema atenção as

regras de convivência comum. Conviver com outros significa pactuar com

esses a quem tenho que conviver: o que é justo, o que é de interesse comum.

Nas organizações cristãs, o objetivo de todo o coletivo é a construção de um

reino dos céus, de uma matéria espiritual, que não encontra na terra o seu

fundamento. Esse reino dos céus é, segundo Rousseau, o grande objetivo

desses povos, logo, os interesses terrestres tornam-se particulares, e menores.

Não parece contraditório, para o cristão, que não se alcance nesse reino

uma verdadeira igualdade; aqui se pode ser desigual, pagar pela derrocada da

sociedade desde que se alimente a ideia de que o reino dos céus vai

solucionar todos esses problemas: “Que importa ser livre ou escravo nesse

vale de misérias? O essencial é alcançar o paraíso, e a resignação não passa

de mais um meio para isso”.200

Junto à sensação de que nada é mesmo possível nesse reino terrestre,

é necessária a introdução de todos que aqui estão no reino dos céus. Contudo,

nesse reino o acesso não pode ser feito por diferentes. Não existe na

linguagem salvífica do cristianismo o conceito de separação entre os povos,

nem gregos, nem romanos, já anunciava Paulo201, todos são cidadãos do

céu202, pois estão salvos por possuírem a mesma natureza. Rousseau

reconhece nesse movimento, o estabelecimento de uma nova peça de

enfraquecimento da engrenagem social: o reino de irmãos.

199 Ibidem. 200 Ibidem, P. 142. 201 Cf .Romanos. 10,12. 202 Cf. 1Co 2.9.

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A universalidade cristã faz com que todos os membros dessa estrutura

religiosa sintam-se parte de algo maior do que eles mesmos. Aqui o conceito

de comunhão trabalhado por Rousseau talvez ainda ganhe sentido. Não existe

um cristão que seja francês ou inglês, russo ou grego. O gênero cristão é

universal e não conhece nenhum senso de nacionalidade, ou território para

fixar a sua atuação.

O fato de ignorar a relação com o território cria nas chamadas

“repúblicas cristãs” um sério problema. Se a república representa a parte na

qual os homens são iguais perante um mesmo código jurídico e um mesmo

soberano203, representa também a afirmação de que o território ao qual estão

estendidos esse código e esse soberano é um território limitado. Logo, a uma

noção de pertencimento a uma estrutura determinada.

O grande problema apontado por Rousseau no Contrato é que a ação

de um cristão fica limitada, pela ação de sua fé. Por primeiro o cristão ficará

extremamente incomodado ao saber que nas atrás das linhas inimigas vai

encontrar cristãos como ele, que celebram o Natal, batizam seus filhos e que

vão a missa aos domingos. São tão semelhantes na terra, quanto sua fé diz

que serão no reino dos céus.

Essa crise de identidade torna o cidadão cristão fraco em sua ação em

defesa do Estado, pois não encontra no outro a noção de inimigo, mas a frágil

noção de irmão que ora é inimigo.

Nos povos antigos, como as religiões possuíam formatos nacionais,

essa crise existencial e de ação não estava presente. Como defender o solo

era também defender a divindade que lá habitava, os guerreiros daquele

território se dirigiam para o combate tomados pelo desejo da vitória pois não

havia desprezo pelo território. Do outro lado da linha de guerra não estava um

irmão, mas um inimigo mortal que buscava a liquidação não só territorial, mas

também física daquele povo.

Rousseau afirma que no discurso cristão a fragilidade é aparente, pois

como se trata de um povo que busca um reino espiritual, pouco importa a

203 Aqui considero a situação de espaço e tempo vivida por Rousseau no século XVIII, momento esse em que as republicas existentes nada se assemelham com os modelos conhecidos pos revolução francesa. Os modelos dos tempos de Rousseau aproximam-se ainda com grande intensidade das monarquias absolutistas, preservando no Estado a figura do soberano.

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noção de vitória ou derrota, não há território a defender, não há inimigo a

aniquilar, vencer ou perder, na lógica cristã torna-se um mero detalhe:

Sobrevém uma guerra estrangeira, os cidadãos marcham sem dificuldade para o combate, nenhum deles pensa em fugir; cumprem seu dever, mas sem paixão pela vitória; melhor sabem morrer do que vencer. Que importa sejam vencidos ou vencedores? A Providencia não sabe, melhor do que eles o que lhes convém?204

É evidente, que a problemática presente na discussão sobre o que seria

de fato um Estado cristão passa também, pelas possibilidades de manobras

que podem ser efetuadas por aqueles que governam.

A base da argumentação está em afirmar que em uma sociedade

genuinamente cristã, todos os seus membros deveriam portar-se como bons

cristãos205, mas a infelicidade desse Estado seria completa se em seu meio

encontra-se apenas um hipócrita e aqui Rousseau da como exemplo Catilina e

Cromwell206. Segundo Rousseau, um homem que conseguir, mesmo que de

forma legal, apoderar-se de parte da máquina pública, não hesitaria em

raciocinar de forma categórica com relação a manutenção de sua autoridade e

de seu poder. Para Rousseau, o cristianismo dogmático é cercado de regras e

preceitos. Essas regras dão ao homem a noção de que não se é permitido

pensar mal do próximo, ou mesmo de lhe desejar mal. A uma espécie de

conformismo do cristão em entender que não pode levantar-se diante daquele

a quem Deus constitui soberano.

Homens sem escrúpulos com os citados por Rousseau poderiam fazer

um uso político contrário aos interesses sociais valendo-se dessa prerrogativa

conformista, que impede a reação dos cidadãos contra as ações injustas do

Estado e também se usando da prerrogativa de que como é uma autoridade de

Deus, que todos os respeitem, afirma Rousseau que:

Deus quer que o respeitem. Logo mais, ia-lo uma potencia- Deus quer que seja obedecido. O depositário desse poder abusa? – é o açoite com o qual Deus pune seus filhos.207

204 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 205 Ibidem. 206 Oliver Cromwell foi um militar e político britânico, conhecido como um dos líderes da Guerra Civil Inglesa, movimento que derrubou Carlos I, com o apoio de presbiterianos escoceses e levou à instauração de uma república puritana na Grã-Bretanha. 207 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142.

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Derathé retoma essa temática afirmando que a relação entre o poder e

quem o exerce é sempre muito tênue, há uma imensa facilidade entre os

homens de usar suas funções configurando-as a atributos e ao poder, para

assim atingir seus verdadeiros objetivos208.

O raciocínio de Paulo, de que “não há autoridade que não proceda de

Deus”209, pode muito bem ser aproveitado por “cristãos” mais hábeis na

percepção das artimanhas para a manutenção do poder210.

O indivíduo que está introduzido na máquina pública pode fazer uso de

suas atribuições civis, pois está constituído de autoridade e recoberto pela

figura sagrada de um poder por representação, isso dá espaço para o avanço

da intolerância e da tirania, pois se esse representante age em nome do Deus

cristão e de suas leis, não pode permitir nada que seja contrário aos seus

princípios, daí o avanço do derramamento de sangue e da perturbação social:

Toma-se como obrigação de consciência expulsar o usurpador: ter-se-á de perturbar a calma pública, usar de violência, verter sangue211

Para Jean Jacques Rousseau, uma sociedade de verdadeiros cristãos,

não teria nenhuma possibilidade para que o sucesso vigorasse, pois não

haveria garantias legais para que o poder seja preservado das ações dos

usurpadores, pois na lógica cristã. Para ele o desligar do coração dos cristãos

as coisas do Estado indicam um abandono do poder, logo, aqueles que

percebem esse vácuo deles se aproveitam.

Rousseau aponta na possibilidade de uma república verdadeiramente

cristã um outro grande problema. Caso fosse possível que os cristãos

enfrentassem soldados, como os Espartanos212, por exemplo, a aniquilação

seria certa, pois estariam impedidos pela sua própria crença de desejar a

vitória. O sucesso de sua campanha não se daria por seu empenho ou sua 208 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, P. 34 e 35. 209 Ibidem. 210 Segundo Derathé, não é a pessoa que governa o Estado que está dotado de divindade, mas o poder é que é divino, ele emana de Deus e é recebido pelos homens para ser exercido sobre outros homens. Ora, essa relação entre o poder recebido de Deus e quem exerce esse poder pode levar segundo Derathé a uma fácil relação entre quem exerce o poder e a quem de fato esse poder procede. Cf: DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, P. 34. 211 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 212 Ibidem.

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vontade, mas a ação de uma providência, algo que rege e define todas as

coisas. Rousseau cita uma passagem da obra de Tito Livio sobre a história dos

romanos. Trata-se aqui de apresentar o juramento dos soldados de Fabio que

juraram solenemente vencer aquela batalha, defender os seus deuses e seu

território e voltar para casa, para Rousseau esse tipo de comportamento não

cabe no coração do cristão:

(...)A meu ver foi um belo discurso os dos soldados de Fabio – eles não juraram morrer ou vencer, juraram voltar vencedores e cumpriram seu juramento. Jamais cristãos teriam feito semelhante juramento, pois acreditariam estar tentando a Deus213

Como o ensinamento cristão prega o não jurar por nada desse

mundo214, não há como conciliar uma ação juramentária como essa à vida de

fé cristã, pois isso configuraria uma tentação direta a Deus e a sua divina

providência.

Essa condição, nega a afirmação corrente em sua época de que as

tropas cristãs são de uma excelência invejável. Como essas tropas poderiam

se configurar na estrutura de excelência, desprezando a ação temporal dos

homens, não seria possível segundo Rousseau tropas que chamemos de

cristãs: “(...) Quanto a mim, não conheço absolutamente tropas cristãs”.215

Como já era previsto, o apontamento dos soldados cruzados viria para

defender a idéia de tropas que são genuinamente cristãs. Contudo, os

soldados cruzados configuravam uma distorção medieval, um uso indevido das

relações entre política e religião, pois não se portavam como grupos cristãos.216

Antes de qualquer coisa eram cidadãos da Igreja217 que, de certo modo, para

Rousseau, se integram aos modelos pagãos de guerra por seu território, no

caso dos cruzados o espiritual que, não se sabe como se tornou temporal218.

213 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 143. 214 Cf. Tiago 5:12 215 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 143. 216 Ibidem. 217 Na leitura de Rousseau, o conceito de cidadão da Igreja Parece não ser semelhante ao de cristão, pois o cristão seria aquele que busca a vivencia do evangelho, o cidadão da Igreja, por outro lado, busca a defesa temporal dos bens da Igreja, como um soldado mercenário, viver o evangelho não lhes parece uma necessidade, se eles de fato cumprem o seu dever de defender a Igreja. 218 Cf . ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 143.

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O cristianismo não pode se configurar como religião nacional, é também

impossível o entendimento entre as tropas cristãs de uma guerra santa.219

Como a sacralidade do ato belicoso não se configura entre as tropas cristãs

uma guerra sagrada, entre povos cristãos tornar-se impossível.220

É certo que quando os cristãos estavam em conflito contra os

imperadores pagãos a resposta das tropas era um tanto quanto satisfatória,

pois se tratava de um conflito para estabelecer a universalidade do reino. Essa

eficiência das tropas desaparece, segundo Rousseau no exato momento em

que os imperadores tornam-se cristãos: “Desde de que os imperadores

passaram a ser cristãos, essa emulação não subsistiu mais e, quando a cruz

expulsou a águia, desapareceu todo o valor romano”221.

***

A crítica de Rousseau à tentativa de transformar o cristianismo em

religião nacional busca principalmente demonstrar que na religião cristã há uma

dificuldade essencial quando se tenta misturar idéias religiosas e idéias

políticas. É demonstrado que, a expressão “república cristã”, envolve uma

grande contradição, pois eles são heterogêneos, se excluem por definição.

Uma república para Rousseau necessita de homens que aspirem à liberdade e

que nessa condição seria impensável conceber homens que vão a guerra sem

saber se sua ação conflituosa de fato é importante, vencer ou perder não diz

nada em si mesmo. Um verdadeiro cidadão ama sua pátria antes de qualquer

outra coisa, daí algumas acusações modernas, de entender já em Rousseau,

as sementes dos regimes totalitários222.

O que podemos concluir sobre as implicações políticas da religião cristã

é que o cristianismo não é territorial, ele deve ir pelo mundo, independente do

território no qual ele está inserido. A religião cristã, enquanto religião nacional

apresentada como parte de um sistema jurídico legal do Estado, não é uma

realidade que possa se concretizar, e todas as vezes que se tentou executar

219 Entre povos cristãos. 220 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 143. 221 Ibidem. 222 Cf. TALMON, J.-L. The origins of totalitarian democracy. London: Secker & Warburg, 1952.

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essa manobra de introdução do cristianismo no meio legal, o desastre foi

iminente223.

Não há possibilidade de introdução do cristianismo no sistema nacional,

e a tentativa de transformá-lo em uma religião nacional sempre resultou em um

intenso fracasso224, pois falhou na tentativa de unificar o centro do poder. Os

governantes que tentaram fazer uso do cristianismo, nada mais fizeram,

primeiro por deformar tanto a religião quanto a política225 e segundo por

transformar o cristianismo em um instrumento tirânico para oprimir as minorias

que não se enquadravam dentro do formato oficial226.

O cristianismo é universalista, não possui território, não ama nenhuma

pátria terrena e não se importa com o bem-estar do Estado. Para Rousseau,

essas são ações nefastas para o bem-estar de um Estado.

A solução parece clara: diante da impossibilidade de convivência de um

bom Estado que pratique uma boa politia227 com a religião cristã, a eliminação

pura e simples da presença religiosa no meio do Estado.

Essa solução pragmática não se aplica ao pensamento de Rousseau.

Uma república não pode conviver sob a tutela cristã, como tão pouco pode

conviver sem uma presença religiosa. Um Estado ateu não é considerado na

teoria política de Rousseau: “(...) Entretanto é importante que o Estado não

fique sem religião e isso por razões graves(...)”.228

Rousseau é cristão e defende sua visão sobre cristo e o evangelho.

Os conflitos entre Rousseau e aquilo que ele chama de “religião do

padre”, ficam explícitos por todas a sua obra, e em sua tentativa de se

apresentar como cristão, sem que com isso seja assimilado como um seguidor

desse modelo: Sou cristão, Senhor Arcebispo, e sinceramente cristão, segundo

a doutrina do evangelho. Sou cristão não como discípulo dos padres, mas

como discípulo de Jesus Cristo.229

223 Cf. ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 169. 224 Ibidem. 225 Ibidem. 226 Cf. Idem.. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. p. 84. 227 Do grego πολιτεία (politeia, “citizenship; government; civil polity”). 228 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 171. 229 Idem. Cartas a Christophe de Beautmont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Edição Liberdade, p. 72.

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Rousseau é cristão por conservar as suas origens genebrinas e

calvinistas. Afirma Masson:

Apesar de sua abjuração, de suas revoltas, das solicitações libertinas em torno dele na França filosófica, de suas negações intelectuais, ele guardou no fundo do seu coração, - obscurecido talvez, vivo, entretanto – o cristianismo de genebra.230

Ser cristão, na leitura de Rousseau foi e ainda é parte de um grande

paradoxo. Sua resposta ao Arcebispo de Paris e às indagações dos

protestantes parece não ter sido em nada conclusiva ou menos ameaçadora

sobre as verdades que o cristianismo apresenta. Praticar uma religião do

sentimento, do coração, na qual a consciência seja o último e inviolável

caminho para chegar a Deus não parece ser o mais desejável por aqueles que

representavam o cristianismo instituído.

Rousseau quer se separar do modelo que ele chamou de religião do

padre231, não meramente uma religião que trate de assuntos espirituais que

conduzam o homem a uma nova terra após essa vida, mas refere-se à religião

que ousadamente substituiu o paganismo, rompeu com a unidade do Estado e

que agora, de forma irreversível, tal qual a humanização do homem se deu232,

não pode mais ser revertida, abandonada. Fica demonstrado que o cristianismo

de uma forma ou de outra, tenta manter-se independente da estrutura política.

Ora, a questão é se não a religião cristã, à que religião iremos? A outro

conjunto dogmático?

É nesse movimento que Rousseau estabelece a introdução de um

conceito não muito claro em sua teoria, que é o da religião civil, uma religião

não do Estado, como nas antigas religiões, também não separada dele como o

cristianismo, mas uma religião para o Estado:

Que deve fazer um sábio legislador nessa alternativa? Das duas coisas uma. A primeira, estabelecer uma religião puramente civil, na qual, contendo os dogmas fundamentais de toda boa religião233

230Cf. MASSON. P. M. La religion de J- J. Rousseau. Genebra. Slatkine. 1970. 231 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 141. 232 Ibidem. 233 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 171.

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É sobre essa religião para o Estado, que abomina ao mesmo tempo o

ateísmo e o dogmatismo, que Rousseau parece desdobrar-se na última parte

do texto sobre a Religião Civil.

E é justamente essa a temática de nossa investigação no próximo

capítulo. O questionamento mais inquietante que nos fica é como entender

essa “via média” religiosa e política, uma religião nem tutelada pelo Estado e

nem tuteladora do mesmo. Para esse esclarecimento a última parte do texto

sobre a Religião Civil será nosso foco esclarecedor.

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3. A Via média.

Mas, quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice.234

Rousseau quer se separar do modelo que ele chamou de religião do

padre. Esse modelo que em sua leitura provoca uma ruptura nas relações entre

o Estado e o corpo político não pode, segundo Rousseau, permanecer como

referência de organização política e social. O cristianismo como religião

substitui o paganismo, e deu um novo formato às relações de Estado, ele

sempre se comportou de forma independente aos Estados. É certo que sempre

esteve ligado aos governos, mas não por estar convencido de que o governo

tinha autoridade sobre a Igreja, mas por conveniência diplomática.

Ora, a questão é que um retorno ao antigo modelo de estrutura religiosa

baseada na relação com o território pós à expansão do império romano se

mostrou impossível. Ficar retido às amarras do cristianismo também parece

uma relação pouco confiável para Rousseau.

Diante desse dilema e não considerando o Estado Ateu como uma

alternativa, Rousseau estabelece a introdução de um conceito que há séculos

vem provocando discussões sobre o seu significado: a religião civil. Uma

religião não do Estado, como nas antigas religiões, também não separada dele

como o cristianismo, mas uma religião para o Estado:

Que deve fazer um sábio legislador nessa alternativa? Das duas coisas uma. A primeira, estabelecer uma religião puramente civil, na qual, contendo os dogmas fundamentais de toda boa religião235

É sobre essa religião para o Estado, que abomina ao mesmo tempo o

ateísmo e o dogmatismo, que Rousseau parece desdobrar-se na última parte

do Contrato intitulado “sobre a Religião Civil”.

E é justamente essa a temática de nossa investigação nesse capítulo. O

questionamento mais inquietante que nos fica é como entender essa “via

média”. Como entender no contexto moderno a relação entre religião e

234 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 145. 235 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 171.

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política? O que se busca é uma religião que não esteja ligada diretamente ao

Estado e ao mesmo tempo não seja independente do mesmo. Para entender

essa “via média” que Rousseau entende como a Religião Civil, seguiremos o

texto do Contrato, ainda utilizando os comentadores.

Um caminho será percorrido para entender esse movimento que

desemboca no que ficou conhecida como Religião Civil, e que possui em sua

essência uma teologia despersonalizada. Para tanto, seguiremos a seguinte

ordem.

Abordaremos em um primeiro ponto as bases da Religião Civil, a religião

como parte integrante do Estado, também a diferença apontada por Rousseau

entre a religião do homem e do cidadão. Sobre a relação entre a religião do

homem e do cidadão entra na leitura de Rousseau três modelos de religião, o

que desemboca nos dogmas que vão sustentar dentro do Estado a Religião

que não é nem nociva ao homem nem ao Estado.

3.1. A religião como necessidade e não como instrum ento

A religião para Rousseau, na parte final do texto sobre a Religião Civil,

ganha um status de grande importância na manutenção da ordem social. Agora

o que em muitos momentos é questionador está justamente na ideia

estabelecida por Rousseau de que a religião é de fato algo tão importante para

o Estado que não possa ser simplesmente eliminada de seu meio e de suas

perspectivas.

A utilidade da religião para Rousseau não passa pelo mérito do simples

controle e manutenção da ordem social como uma ação manipuladora por

parte daqueles que detém o poder. A religião para Rousseau, diferentemente

de Voltaire, não era algo reservado aos pobres, pois assim eles eram mantidos

mais calmos236 e longe das tentações do crime. Nosso autor entende a religião

como algo inerente ao homem237, mesmo que o respeito aos que não

reconhecem essa opção seja possível238, o homem é um ser tencionado a esse

caminho.

236 VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes. 237 Não a religião do Padre, mas aquela que é fruto do coração. 238 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 84.

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Porém, o que nos cabe analisar não passa pela relação particular dos

homens com o sagrado, mas como essa relação sagrada afeta os padrões de

comportamento do homem enquanto cidadão e muda a sua visão com relação

ao Estado.

As teses sustentadas por Rousseau no texto sobre a Religião Civil

consideram a religião como um instrumento poderoso para manutenção da

sociedade: “jamais se fundou um Estado cuja base não fosse a religião”. Esse

fundar do Estado está tanto na perspectiva das antigas religiões com suas

relações diretas com a política quanto para com o Cristianismo e sua

reformulação clássica dos primados sociais239.

O que é claro é que para Rousseau “é importante que o Estado não

fique sem religião”240. A religião como colocada nas Cartas da Montanha,se

mantém no contexto político, não apenas por seu aspecto de utilidade, mas

também pelo de necessidade: “A religião é útil e até mesmo necessária aos

povos”241.

Os homens seguem a lógica da vida em sociedade e, uma vez que se

estabelecem assim, as religiões tornam-se necessidades para que eles se

mantenham unidos e respeitem as convenções. Nenhum povo jamais subsistiu

nem subsistirá sem religião.

A necessidade do fator religião e de toda a carga simbólica que ela

carrega fica evidente nos momentos em que há a exigência do sacrifício da

vida de seus membros. A crença na vida futura e, sobretudo, a esperança da

recompensa por sua entrega, garante em momentos críticos a manutenção do

Estado, não somente como um ente, mas como um sinal de esperança.

Outro fator que aparece diretamente ligado à necessidade de Rousseau

de demonstrar a necessidade da presença religiosa dentro dos contextos do

Estado está encarnado na figura do Legislador.

Como aponta Luis Roberto Salinas Fortes, o Legislador tem como

principal característica a fundamentação de sua ação revestida por uma certa

“autoridade divina”. Rousseau chega a utilizar expressões como “verdadeiro

milagre” para se referir à alma dessa figura excepcional, cuja missão está

239 Separando o poder político entre secular e temporal. 240 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 171. 241 Ibidem. p. 157.

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associada a uma “intervenção do céu” na história dos homens. Rousseau

conclui o capítulo sobre o Legislador da seguinte maneira:

Não se deve concluir, de tudo isso, como Warburton, que a política e a religião têm, entre nós, um objeto comum, mas sim que, na origem das nações, uma serve de instrumento à outra242

Rousseau conduz o seu pensamento tomando como referência a

necessidade de abrir um canal para a fala dos deuses, e isso fica ao encargo

do Legislador:

(...)trata-se, pois, de um recurso político e não de um princípio religioso. A religião não tem objeto comum com a política, mais não sendo do que um “instrumento” desta, e, ainda assim, tal recurso fica limitado ao momento de origem das nações. Rousseau não quer, de forma alguma, dizer “amém” à política teocrática do bispo243

Ora, a religião é necessária para manutenção da ordem e ficou de certa

forma demonstrado que para Rousseau a relação entre política e religião é

fundamento dos Estados, a alma de sua construção244.

A religião é mesmo necessária para a fundamentação do liame social? A

resposta dada por nosso autor é sim, contudo, já que tanto as antigas religiões

como o cristianismo não cabem nessa lógica como bons modelos de religião

para o Estado. A quem iremos então? Onde encontrar respostas claras

objetivas para uma “boa religião” para o Estado?

A resposta a essas indagações vem na seqüência do texto do Contrato,

no final da segunda parte do capítulo sobre a Religião civil. Rousseau expõe a

subdivisão feita por ele das formas religiosas. Para entender o que é a religião

civil é necessário primeiro entender as religiões que já existiram antes ou

existem sem levar em consideração os pressupostos dessa religião.

242 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo XI, p. 66. 243 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VIII, p. 60. Nota 181. 244 Essa afirmação refere-se a hipótese levanta sobre os Estudos realizados no Contrato Social. Sabemos porém, que textos como o Discurso sobre a desigualdade não se referem a religião como o grande motor social e nem mesmo citam a sua presença na origem das sociedades.

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3.2. O primeiro tipo de religião: a religião do hom em.

Rousseau expõe o debate entre a religião do homem e do cidadão

tomando como base o tipo de sociedade com que cada experiência religiosa se

encaixa no corpo político. Pensar a religião segundo Rousseau é pensar os

modelos de sociedade que ela pode produzir, ou entender o tipo de relação

que ela é capaz de compor. O modelo de sociedade é o ponto escolhido por

Rousseau para organizar seus argumentos, pois, para Rousseau, ainda

segundo Burgelin, “a sociedade é o mediador necessário de toda religião”245.

Para isso Rousseau coloca a religião dentro de dois grandes

movimentos: ela se apresenta como um fenômeno geral e também como

particular246. Mas como entender a distinção entre sociedade “geral” e

sociedade “particular”?

Primeiro é necessário ressaltar que essa distinção não aparece somente

no texto do Contrato; encontramos as mesmas referências sobre a sociedade

geral e particular no Discurso sobre a economia política. Nesse texto

encontramos referências como a “grande sociedade” e as “sociedades civis”

que nos parece tomar o mesmo sentido. Justamente sobre esse ponto, Derathé

explica nas notas das Œuvres complètes: “A sociedade geral é ‘a sociedade

geral do gênero humano’”, que no fundo segue a expressão que serve de título

ao capítulo II do livro I do Manuscrito de Genebra.

A sociedade particular é a sociedade política ou civil.”247 Isso nos serve

para entender que para Rousseau, uma determinada religião pode ser benéfica

ou nociva para o Estado dependendo da espécie de sociedade à qual

estejamos nos referindo. Isso pode ser entendido de maneira mais franca na

afirmação de Rousseau na primeira das Cartas escritas da montanha:

245 BURGELIN. PIERRE. La philosophie de l’existence de J.J. Rousseau. Paris: Temps Modernes. p.436. 246 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 146. 247 OC III, p. 1502. Nessa afirmação Derathé está se baseando em uma carta de Rousseau enviada a Léonard Usteri (18 jul. 1763), onde lemos: “Vous ne me paroissez pas avoir bien saisi l’état de la question. La grande société, la société humaine en général, est fondée sur l’humanité, sur la bienfaisance universelle; je le dis et j’ai toujours dit que le Christianisme est favourable à celle-là. Mais les Sociétés particulières, les Sociétés politiques et civiles ont un tout autre principe. Ce sont des établissements purement humains dont, par conséquent, le vrai Christianisme nous détache comme de tout ce qui n’est que terrestre: il n’y a que les vices des hommes qui rendent ces établissements necessaires, et il n’y a que les passions humaines qui les conservent.” CG X, p. 37 (apud OC III, p. 1503).

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Essa palavra sociedade apresenta um sentido um pouco vago; há no mundo sociedades de tipos bem variados e não é impossível que aquilo que sirva a uma, prejudique a outra248

Ora, o desafio, portanto, para Rousseau, é demonstrar qual a verdadeira

natureza da relação estabelecida entre religião e sociedade, pois se trata de

um pré-requisito para o conhecimento do tipo de religião ao qual podemos nos

referir.

A religião chamada por ele como do homem mantém uma relação direta

com a sociedade geral. Sobre essa religião relacionada à sociedade geral

encontramos no texto do Contrato a seguinte referência:

A primeira, sem templos, altares e ritos, limitada ao culto puramente interior do Deus supremo e aos deveres eternos da moral, é a religião pura e simples do Evangelho, o verdadeiro teísmo e aquilo que pode ser chamado de direito divino natural249

Essa primeira religião que Rousseau apresenta nos coloca diante de seu

posicionamento sobre o que ele mesmo pensa ser a religião. Pensar a religião

não é para Rousseau manter o homem preso as relações simbólicos

exteriores, fruto de uma posição contraria ao próprio homem em si mesmo,

pois abre mão de sua própria consciência e razão para aceitar algo que lhe é

completamente estranho a si mesmo250.

Podemos também aqui lembrar que a citação feita no Contrato sobre a

religião enquanto dimensão ligada à sociedade geral faz uma conexão direta

com a religião natural do vigário. Essa ligação se configura exatamente pelo

uso da palavra: teísmo251. Mais à frente, Rousseau se refere a esse modelo

religioso como “a religião do homem ou o cristianismo”.252 Contudo essa

248 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 168. 249 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 140. 250 A ideia de um combate as relações exteriores que não conformem a consciência está presente de forma categórica em Pierre Bayle. Como sabemos que Rousseau foi um leitor de Bayle e em muito aderiu a suas visões, (apesar de não aceitar o ateísmo como um bem), mantém-se fiel a ideia de que nada pode obrigar a consciência do homem, sobretudo, quando o assunto é a sua fé. 251 “Os sentimentos que acabas de me expor, disse-lhe eu, parecem-me mais novos pelo que confessas ignorar do que pelo que dizes acreditar. Neles vejo, com pouca diferença, o teísmo ou a religião natural, que os cristãos fingem confundir com o ateísmo ou a irreligião, que é a doutrina diretamente oposta.” In: Émile, (p. 399). 252 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 141.

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citação aparece com uma ressalva: “não o cristianismo de hoje, mas o do

Evangelho, que é completamente diverso.”253

Mesmo que o verdadeiro cristianismo seja uma instituição de paz, quem não vê que o cristianismo dogmático ou teológico é, devido à quantidade e obscuridade de seus dogmas, sobretudo pela obrigação de admiti-los, um campo de batalha sempre aberto entre os homens e isso sem que, à força de interpretações e de decisões, se possam evitar novas disputas sobre as próprias decisões tomadas?254

Para Rousseau o cristianismo de hoje, não é nada mais do que “um

campo de batalha sempre aberto entre os homens”255, pois, “como lei política, o

cristianismo dogmático é uma má instituição”.256

Aquilo que Rousseau chama de “cristianismo do evangelho” (que, de

certa forma, se aproxima da religião natural do vigário saboiano), também não

se aproxima muito do que realmente o evangelho é, mas da leitura teísta que

Rousseau faz dos evangelhos, tentando retirar dos textos de uma forma

racionalista257, todos os tipos de referência que provoquem confusão ou que

levem os indivíduos a uma leitura supersticiosa das sagradas escrituras.

Rousseau reconhece a religião do evangelho como uma instituição de

paz258 que traz um certo fortalecimento dos laços da sociedade geral:

Pois nessa religião santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, reconhecem-se todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem na morte259

Para Rousseau, a religião do homem une as pessoas e esta união não

pode ser desfeita nem sobre a tutela da morte260. Do ponto de vista da

sociedade geral essa religião pura do evangelho é, portanto, a melhor. Mas,

253 Ibidem. Para entender essa divisão entre o “cristianismo de hoje” e do cristianismo “do Evangelho”. Por cristianismo de hoje podemos tomar como entendimento a forma institucionalizada que a religião Cristão tomou ao longo do tempo e que entre o século XVII e XVIII está atravessando uma grande crise tanto entre a sua forma como com o seu conteúdo. 254 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 171. 255 Ibidem. 256 Ibidem, 172. 257 O que é típico da leitura protestante das escrituras. 258 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 171. 259 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 141 260 Mesmo mortos, os cristãos se unem por um conceito teológico que já estava presente nos primeiro credos do cristianismo que é simbolizado na comunhão dos santos.

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considerando as sociedades civis, e a complexidade apresentada por elas261,

uma sociedade voltada à “cidadania do evangelho” não seria capaz de produzir

nada mais do que devotos, crentes, mas teria uma grande dificuldade em

produzir cidadãos. É claro que a religião do homem é adequada para o gênero

humano, mas não para os corpos políticos262, uma vez que ela desprende os

corações dos cidadãos do Estado. E é justamente partindo desses

pressupostos que Rousseau apresenta no contrato a conclusão sobre o

modelo de religião do homem que despertou a ira da Igreja: “Não conheço

nada mais contrário ao espírito social”263.

3.2.1 O segundo tipo de religião: a religião do cid adão

Uma vez analisada a ideia de religião do homem, caminhamos para

entender o que seria então a religião do cidadão.

O segundo modelo relacionado por Rousseau é o que ele chama de a

“religião do cidadão”, que está diretamente associada à sociedade particular, à

qual Rousseau se refere nos seguintes termos:

(...)inscrita num só país, dá-lhe seus deuses, seus padroeiros próprios e tutelares, tem seus dogmas, seus ritos, seu culto exterior prescrito por lei(...)264

Como comentamos anteriormente, essa era a religião dos povos antigos,

que “de modo algum tiveram a princípio outros reis além dos deuses, nem

outro Governo senão o teocrático”265, ou seja, que em suas relações para com

o Estado e o divino governante não produziam nenhum tipo de separação. Sua

conduta estava diretamente baseada na ideia de que dentro do Estado não é

possível servir a dois senhores.

A religião do cidadão tem seu fundamento no culto à pátria, ao território,

e é isso que, do ponto de vista da sociedade particular, é considerado por

261 Aqui estamos analisando a sociedade na qual Rousseau está inserido no Século XVIII, vivendo a experiência de uma revolução industrial em curso e as portas da revolução francesa que modificaria para sempre as relações políticas e sociais. 262 Cf. ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 168. 263 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 142. 264 Ibidem, p. 140. 265 Ibidem, p. 137.

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Rousseau uma virtude. Esse modelo religioso é em outras palavras o território

tomado como objeto de adoração e de culto. Nesses antigos modelos sociais

todo o cerimonial desenvolvido em seu interior revela uma grande função

educativa, celebrar o território é celebrar a própria vida e morrer pela pátria é

se unir eternamente a ela. Nesse caso morrer pela pátria é alcançar o martírio,

violar as leis é estar em pecado; e submeter um culpado à execração pública é

devotá-lo à cólera dos deuses266

Porém, para Rousseau por mais que se aproxime de uma conduta

esperada das relações religiosas e políticas esse modelo religioso provoca uma

certa confusão, pois não permite aos homens distinguir seus deuses de suas

leis.

A religião do cidadão traz em sua essência um princípio que para

Rousseau é impossível de ser aceito como positivo: a intolerância total e

absoluta. Ora, para Rousseau é justamente a força que pode tornar boa à

religião do cidadão perante a sociedade particular é a mesma que a desarticula

perante a sociedade geral. É exatamente o culto ao território que, do ponto de

vista da sociedade geral, leva a consideração de que a religião do cidadão é

em sua estrutura má. Como esse modelo se converteu em um modelo

particular, retido a cada povo isoladamente, ela não apenas torna os homens

crédulos e supersticiosos, mas também, o que é pior, assassinos e

intolerantes.

A aplicação do princípio antigo de união entre Estado e divindade resulta

em divisões nacionais e, por conseguinte, em uma atitude de intolerância

teológica e civil perante as outras nações. Por esse motivo, a religião do

cidadão se apresenta para Rousseau como uma “religião nacional

exclusiva”,267, ou seja, os membros dessa nação são incapazes de tolerar os

deuses e as leis de qualquer outra nação:

Afora a única nação que a segue, todos os demais são infiéis estrangeiros e bárbaros; ela só leva os deveres e os direitos do homem até onde vão seus altares268

266 Giorgio Agabem retoma essa ideia quando nos apresenta a trilogia Homo Sacer. Agabem Trabalha o conceito de execração pública ou isolamento total do individuo do Estado tendo como referência o antigo direito romano e o pensa essa realidade no modelo social contemporâneo, sobretudo, pós a experiência nazista na Alemanha. 267 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 143. 268 Ibidem., p. 141.

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3.2.2. O terceiro tipo de religião: a religião do P adre

Ora, o que é bem claro para Rousseau é que a distinção entre a religião

do homem da religião do cidadão é feita pela espécie de direito a elas

associado: para a primeira, tem-se o “direito divino natural”; para a segunda, o

“direito divino civil ou positivo”. E essa classificação de direitos vai servir como

critério para que Rousseau rejeite ainda um terceiro tipo de religião:

Há uma terceira espécie de religião, mais estranha, que, dando ao homem duas legislações, dois chefes, duas pátrias, o submete a deveres contraditórios e o impede de poder ao mesmo tempo ser devoto e cidadão. Tal é a religião dos lamas, a dos japoneses e a do cristianismo romano. Pode-se chamar, a esta, religião do padre. Dela resulta uma espécie de direito misto e insociável que não tem nome269

Essa espécie é a variação institucional e corrompida das religiões, e

aqui, como destaque temos o cristianismo, não do evangelho, mas da Igreja

institucionalizada, personificada pela figura do pontífice romano. Essa terceira

variação religiosa, não merece a mínima explicação e já é imediatamente

descartada por Rousseau, pois uma religião assim não serve para outra coisa a

não ser dividir o homem entre seus deveres de devoto e de cidadão.

Essa religião de “direito misto e insociável”270 torna impossível a

qualquer homem estar livre da culpa, seja perante o chefe espiritual no caso o

pontífice, seja perante o chefe terreno, o governante. Afinal, como cumprir

deveres contraditórios sem tornar-se culpado perante um dos dois chefes?

Evidentemente, Rousseau não pode admitir essa terceira espécie, pois ela se

opõe diretamente à operacionalização do Estado.

Esse é o caso do cristianismo romano (ou “religião do padre”), a questão

é que apresenta um “chefe visível” que representa a divindade na terra e que

se opõe politicamente ao chefe civil, causando assim “um conflito perpétuo de

jurisdição” e deixando os homens sem saber “se era ao senhor ou ao padre

que se estava obrigado a obedecer”271. Quanto a essa religião do terceiro tipo,

Rousseau afirma:

269 Ibidem. 270 Ibidem. 271 Ibidem.

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A terceira é tão evidentemente má, que se perde tempo no divertimento de demonstrá-lo. Tudo o que rompe a unidade social, nada vale; todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo, nada valem272

Uma vez apresentada de forma concisa no texto os três modelos

relacionais da religião e do Estado, Rousseau segue seu raciocínio

apresentando um quadro comparativo das vantagens e dos defeitos

apresentados pelos dois primeiros tipos de religião.

Com esse procedimento, e fazendo uma rápida comparação entre as

duas primeiras formas de religião, o que Rousseau nos revela, segundo

Burgelin, é uma oposição mais fundamental e profunda, entre os modelos de

religião do homem e cidadão273. Para estabelecer o referencial das

comparações, como já foi citado, Rousseau se baseia em dois pontos de vista:

o da sociedade geral e o da sociedade particular.

Podemos, portanto, deduzir que Rousseau estabelece uma certa

hierarquia entre os modelos religiosos em suas formas até então existentes. Há

o estabelecimento de um quadro entre os dois grandes modelos274: de um lado,

a religião do homem associada à sociedade geral; de outro, a religião do

cidadão associada às sociedades particulares.

É aparente que para Rousseau a religião do homem possua uma certa

superioridade com relação à religião do cidadão, contudo, ao apontar no texto

do Contrato essa superioridade, ele não pretende estabelecer uma forma

absoluta da religião do homem sobre a do cidadão, pois é sempre nas relações

que ela estabelece com a sociedade, considerada do ponto de vista geral ou

particular, que são feitas as comparações.

De qualquer modo o objetivo principal de Rousseau ao apresentar no

texto esse quadro comparativo dos modelos religiosos é lançar as bases para a

construção do esquema na qual se sustenta a religião civil e demonstrar que a

sua proposta é um “meio termo” entre o primeiro e o segundo modelo:

272 Ibidem. 273 BURGELIN, P. Le philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Paris: PUF, 1952, p. 445. 274 O texto do Contrato também apresenta a referência a um terceiro modelo, que é o modelo do cristianismo romano, que para Rousseau é tão nocivo em si mesmo que não possui um ponto positivo a ser analisado.

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Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser cidadão275

Esse detalhe é importante: a religião civil não se confunde com a religião

do cidadão, uma vez que não se trata de uma religião nacional exclusiva, cujos

dogmas servem apenas para um determinado corpo político.

Porém a dúvida ainda paira. Como entender esse posicionamento que

Rousseau chama de religião civil entre a religião do homem e do cidadão?

Quais são as exigências desse modelo de religião que se arroga a servir tanto

ao homem quanto ao cidadão? A essas questões daremos conta a seguir.

3.3. A Religião Civil no Contrato Social: entre a religião do

homem e a do cidadão

Para compreender o que a religião civil representa no pensamento de

Rousseau e entender qual a verdadeira natureza da relação entre ela e o

Estado apresentamos o que temos até esse momento do texto.

Destacamos que no pensamento de Rousseau, política e religião são

dois lados de uma mesma moeda. Nas sociedades humanas uma esteve

diretamente ligada à outra. Para Rousseau a história das instituições religiosas

tende a nos mostrar que um sistema governamental só pode ser bem

constituído se em sua formação o poder civil e o poder religioso forem co-

participantes de um projeto comum.

Ressaltamos também que após a análise feita por Rousseau de diversos

“tipos” de relações entre o poder civil e o poder religioso, não foi encontrada

nenhuma modalidade até então existente que de fato sirva para qualquer corpo

político. As religiões nacionais são exclusivas e intolerantes, o cristianismo é

obscuro por dividir a sociedade e os homens entre dois senhores, provocando

uma grande confusão sobre a quem se deve servir, é uma religião que se

apresenta como universal, sem nenhuma relação particular com as nações na

qual está representada.

Rousseau caminha então para pensar em um modelo religioso que não

seja nem nocivo ao homem, a ponto de obrigá-lo a ir contra a sua consciência,

275 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 143 e 144.

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e que também não seja nocivo ao Estado a ponto de desagregá-lo

completamente, impedindo ao homem de devotar a sua pátria o que lhe é de

direito. Porém, estamos diante de um caminho nada fácil, pois Rousseau

demonstra por toda a sua ação textual uma grande preocupação em manter-se

preso a realidade concreta. Seu objetivo não é produzir especulação, não quer

se tornar um “filosofo”276, daí entendemos o seu esforço no sentido de propor

uma religião que seja boa não para o homem em geral, fruto de um conceito

abstrato, mas propor um modelo religioso que sirva as sociedades

historicamente instituídas, que sofrem influência de diversos fatores, e que

sejam capaz de tolerar inclusive outras religiões que não a sua:

(...) O homem é uno, admito; mas o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que agora já não devemos procurar o que é bom para os homens em geral, e sim o que é bom para eles em tal tempo e em tal lugar (...).277

O autor nos coloca diante de um grande problema. Não podendo optar

pela religião do homem, nem pela religião do cidadão e muito menos pelo

cristianismo romano modelado pelo catolicismo e seu pontífice visível. Torna-se

evidente a necessidade de uma religião alternativa, que possua outra essência.

É justamente diante desse problema que Rousseau abre a terceira e última

parte do texto no Contrato. A solução para esse paradoxo está no que ele

chama de religião civil:

Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão.278

A solução de Rousseau, dentro de seu sistema de pensamento em um

primeiro momento parece inusitada. O que temos na verdade se trata de uma

profissão de fé que não seja dogmática? Pouco parece do pensador que na

Carta ao Arcebispo Christophe de Beaumont e no Emilio condena de forma

276 Ou seja, preso as abstrações sem fim. 277 ROUSSEAU. J.J. Carta a d’Alembert, p. 40. 278 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VIII, p. 143 e 144.

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radical a rendição da consciência humana aos dogmas, que no cristianismo

são sustentados pelas profissões de fé279.

Na verdade a expressão “profissão de fé civil” já aparece em escritos

anteriores à redação final do Contrato, como destaque encontramos

referências a essa profissão nas famosas cartas a Voltaire de 18 de agosto de

1756, onde lemos: “Confesso que existe uma espécie de profissão de fé que as

leis podem impor (...)”280. Na seqüência do mesmo momento do texto

encontramos:

Gostaria, então, que houvesse em cada Estado um código moral, ou uma espécie de profissão de fé civil, contendo, positivamente, as máximas sociais as quais cada um seria obrigado a admitir, e negativamente, as máximas fanáticas as quais seria obrigado a rejeitar, não como ímpias, mas como sediciosas.281

Percebe-se que nessas passagens Rousseau tenta separar a sua

proposta religiosa de uma simples compilação de termos teológicos. Nota-se

em alguns termos citados uma tentativa por parte do autor de laicizar os

conceitos, sobretudo, os mais teológicos. É feita uma tentativa para demonstrar

que sua intenção não é transformar sua profissão de fé em um mero conjunto

de ações, ou seja, não é o objetivo de Rousseau apresentar um código moral e

exigir dos membros do Estado uma obediência a esses códigos de forma cega

e sem reflexão282.

O que percebemos na dinâmica do pensamento de Rousseau é que há

uma tentativa de transformação dos dogmas de religião não em um conjunto de

279 Durante os primeiros anos da Igreja muitas heresias surgiram e se transformaram em grande problemas para a Igreja. Exemplos dessa heresias podemos encontrar em Marcião e em Ário. Para resolver os problemas sobre as verdades da fé os concílios resolveram promulgar alguns resumos da fé ortodoxa que deveriam ser professados por todos os membros da Igreja. Esse resumos entraram para a história como credos na qual temos conhecimento de dois que são extremamente famosos, o Niceno e Apostólico. 280 ROUSSEAU. J.J. Carta ao Senhor de Voltaire in: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a moral e a religião. São Paulo: Estação Liberdade. p. 135. 281 Ibidem. 282 Em sua dissertação de mestrado a Professora Maria Constança Peres Pissara, parece também chegar a mesma dedução que os demais comentadores: “A interpretação de Rousseau sobre a religião civil não é uma teologia política, não se trata de retirar, da concepção religiosa, princípios que dirigirão o Estado, como se este fosse uma teocracia. Ao contrário, toda a argumentação orienta-se para a defesa de uma ‘politização’ da religião.” PISSARRA, M.C.P. Religião civil e intolerância: uma análise das “Lettres Ecrites de la Montagne”. Dissertação (Mestrado). São Paulo: PUC-SP, 1988, p. 135-136. Contudo, o que nos parece é que Rousseau não tem a intenção de formular uma teocracia como afirma a professora Maria Constança, mas há em Rousseau uma estrutura que o torna refém de seus próprios vícios de linguagem, nosso autor parece não conseguir se libertar das categorias teológicas, ora de forma católica, ora de forma protestante, quando fala sobre sua religião civil.

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obrigações, mas em “sentimentos de sociabilidade” ou “máximas sociais”; logo,

em um bem para a convivência no Estado. Isso talvez justifique a referência

feita no final do texto à punição de quem não admitir esses dogmas, não está

ligada a cobrança por parte do Estado a uma prestação cerimonial de culto a

uma nova formação religiosa, mas, para Rousseau negar-se a entender a

dinâmica da profissão de fé civil é provocar sedição; um ato contra a

sociedade; enfrentar a vontade geral:

Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua vida a seu dever283

Segundo Gouhier, o que Rousseau está buscando nada mais é do que

uma “radical laicização do Estado”.284 O grande problema enfrentado nesse

momento é que no século XVIII não se pode falar em uma separação radical

entre Igreja e Estado. Falar de um Estado laico é enfrentar diretamente a

autoridade religiosa e também a autoridade soberana. É preciso aprofundar

ainda mais as suas intenções, como justificar que essa modalidade religiosa se

difere das demais até então apresentadas.

Para mergulhar nessa nova realidade, será preciso segundo Rousseau

uma espécie de catequização do cidadão285. Seria necessário para todos

entender que a justiça não é mais justiça divina que possui um olhar de

onipotência, tudo vê, tudo pune, e tudo retribui, mas agora é de intensa

necessidade entender os valores humanos, como valores cívicos baseados,

principalmente, no amor às leis e ao território. Trair essa íntima convicção é

condenar-se a estar fora do Estado, deslocado, perdendo a sua própria

identidade, pois somente na sociedade do verdadeiro contrato social a religião

civil é possível286:

283 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 144. 284 GOUHIER, H.G. Les méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, p. 255. 285 Termo utilizado pelo autor na Carta ao Senhor de Voltaire: “(...)dai-nos agora, nesse que vos proponho, o catecismo do cidadão in: ROUSSEAU. J.J. Carta ao Senhor de Voltaire in: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a moral e a religião. São Paulo: Estação Liberdade. p. 136. 286 Há nessa conclusão uma certa semelhança com a forma de tratamento dada pelos antigos povos estudados por Rousseau aos traidores de sua pátria. Trair a pátria é condenar-se a perdição, não em outra vida, mas nessa.

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Se alguém, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se não cresse neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis287

Mentir as leis, eis um crime imperdoável para Rousseau! Como confiar

em quem trai no fundo a si mesmo e a seu próprio povo? Esses não podem ser

tolerados, pois não podem viver de leis próprias fruto de suas convicções

íntimas. Aparentemente essa dedução nos parece ser intolerante para quem no

fundo busca o problema da tolerância, contudo, não se trata de intolerância e

sim de uma decorrência imperativa da obediência às leis implícita no contrato

social.

A questão se coloca para Rousseau da seguinte maneira: abrir-se às leis

do Estado e entregar-se à vontade geral, formar vínculo de identidade. Negar

as leis do Estado em nome de uma lei particular nada mais representa do que

uma traição, e no fundo a lei pessoal, ou de um grupo isolado, como os

religiosos, é o que realmente provoca a intolerância, sobretudo, quando esse

fundamento jurídico possui uma sustentação que não é civil, mas teológica:

Na minha opinião, enganam-se os que estabelecem uma distinção entre a intolerância civil e a teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em paz com pessoas que se acredita réprobas; amá-las seria odiar Deus que as puniu (...)288

É necessário, portanto, entendermos a punição dos que mentem às leis

não como uma medida cruel e intolerante, mas como um dispositivo para

assegurar a manutenção do corpo político. É importante compreender que na

leitura de Rousseau, qualquer malfeitor, atacando o direito social, pelos seus

crimes torna-se rebelde e traidor da pátria, deixa de ser um seu membro ao

violar suas leis e até lhe move guerra. Entre o inimigo e o Estado será preciso

que um dos dois desapareça.

Para Rousseau, o que justifica a pena de morte não é a liberdade

absoluta do indivíduo em estado de natureza, e sim a liberdade relativa de um

membro da sociedade civil. Podemos entender então que a pena capital é uma

medida necessária para combinar os pontos positivos da religião do homem e

da religião do cidadão.

287 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 144. 288 Ibidem.

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Na seqüência do texto do Contrato, Rousseau enuncia os dogmas da

religião civil, em sua versão definitiva e formalizada. No total, os dogmas se

dividem em cinco; quatro positivos e um negativo:

Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações ou comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e provisória; a vida futura; a felicidade dos justos; o castigo dos maus; a santidade do contrato social e das leis – eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, limito-os a um só: a intolerância, que pertence aos cultos que excluímos289

Os dogmas da religião civil tentam novamente trazer ao contexto laico

conceitos que são da esfera teológica290. Existe no texto sobre a religião civil

uma recomendação por parte do autor de que os dogmas sejam enunciados

“com precisão, sem explicações ou comentários”. Essa preocupação de

Rousseau em simplificar os dogmas e apresentá-los de forma clara possui um

significado. Para Rousseau, os dogmas necessitam ser claros e não apresentar

aqueles que dele tomam contato nenhum tipo de dúvida e também não se

tornar para o Estado um tipo de problema sobre o verdadeiro significado de seu

conteúdo.

Podemos entender os dogmas dentro de um conjunto que funcionaria da

forma explicada a seguir. Os quatro primeiros dogmas no sistema religioso de

Rousseau deveriam funcionar como reguladores sociais. Para Rousseau, não

se pode como pensavam os ateus eliminar da ordem social os sensos morais,

pois para Rousseau, a fonte das bases morais não está fundada na religião,

seja ela qual for, mas na razão. Logo, os quatro primeiro dogmas deveriam

estabelecem a moral em bases difíceis de serem questionadas, ao mesmo

tempo em que impedem que as injustiças da vida presente resultem em

desordem social.

Podemos entender que esse pequeno número de dogmas positivos deu

a Rousseau um escape, pois ele não parece querer pensar sobre as iminentes

dificuldades de ter que se pronunciar acerca das verdades das religiões.

289 Ibidem. 290 É difícil não relacionar diretamente os conceitos apresentados por Rousseau com a experiência de fé do cristianismo. Nos parece não ser possível entender que a “felicidade dos justos e a condenação dos ímpios” não derivem da visão cristã que o próprio Rousseau possui de céu e inferno.

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A intenção de Rousseau nunca foi de discutir o fundamento último das

verdades religiosas, ou se de fato as religiões possuem ou não uma verdade.

Isso já foi expresso por ele nas Cartas da Montanha quando afirma não ser a

sua intenção primeira afirmar se as “religiões são verdadeiras ou falas”. Ele vai

ao encontro de uma possibilidade de pensar os efeitos políticos da religião sem

que para isso tenha que discutir os dogmas que compõe aquela estrutura

religiosa. Trata-se de entender que para Rousseau o problema é pensar a

política e não história das religiões. Logo, como os dogmas apresentados são

comuns a todas as religiões, o problema da verdade (ou falsidade) das

religiões permanece em segundo plano, não exigindo nenhuma solução

imediata no texto do Contrato.

Cabe aqui um outro problema. Já que esses dogmas estão tão próximos

em conteúdo com as dimensões religiosas, poderíamos nos perguntar então

sobre as cerimônias associadas a esses eles.

Esse é um questionamento justificável, afinal, em parte a religião civil é

uma religião de ritos. Contudo, na versão definitiva do Contrato Social que

dispomos, Rousseau não apresenta nenhuma alusão sobre esse cerimonial ou

de como ele deve ser executado. Contudo, alguns comentadores parecem

entender que esse ritual seria algo semelhante às recomendações patrióticas

de jogos públicos e espetáculos ao ar livre que estão presentes no terceiro

capítulo das Considerações sobre o governo da Polônia.

Resta-nos então falar sobre o quinto dogma, que em sua carga

estrutural seria propriamente civil, pois não carrega em sua formulação

nenhuma laicização de conceitos teológicos.

Rousseau resume o quinto dogma em uma única expressão: “a

intolerância, que pertence aos cultos que excluímos”. A base do dogma retira

do Estado todos os cultos que se portam de forma contrária a ele e tende a

assumir apenas os cultos que se adequarem à nova situação. Rousseau define

na carta a Voltaire, um critério objetivo de exclusão das religiões com base nos

dogmas da religião civil:

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Assim, toda religião que pudesse estar de acordo com o código seria admitida, toda religião que discordasse dele seria proscrita, e cada um seria livre para não ter outra a não ser o próprio código291

Tolerar para Rousseau, na expressão do quinto dogma não significa

aceitação de todo e qualquer culto independente de suas doutrinas, mas essa

tolerância passa pela abertura do culto a uma regulação por parte do Estado292:

“O verdadeiro tolerante não tolera de forma alguma o crime, nem tolera

nenhum dogma que torne os homens maus.”293

Contudo, há no fechamento da exposição sobre os dogmas da religião

civil uma expressão que nos impõe um questionamento ao não uso de

categorias religiosas para expressar os argumentos sobre a intolerância no

quinto dogma, esse termo é expresso pela: “santidade do contrato e das leis”.

Aparentemente, a formulação não parece cumprir aquilo a que se

propôs, ser as bases de uma religião civil, contudo, é consenso entre os

comentares de Rousseau que a mistura entre dogmas de naturezas

diferentes294 é proposital pela própria dificuldade que a proposta de Rousseau

provoca em apresentar de forma civil e laica, conceitos que estiveram durante

décadas sobre o domínio da religião. Mouton defende que uma leitura mais

atenta das intenções do autor nos revelará que o seu grande objetivo não se

limitava a neutralizar e laicizar o teológico / religioso, mas em apresentar

dogmas de uma natureza qualitativamente diferente295.

Derathé, também parece chegar à mesma conclusão quando afirma nas

Œuvres complètes:

Nós seríamos tentados a ver nisso uma estranha confusão entre profano e sagrado. Mas, Rousseau propõe-se precisamente a integrar ao domínio do sagrado o contrato social e a legislação do Estado, de modo a estabelecer, segundo a expressão da Carta a Voltaire, “um código moral” ou, se quiser, uma espécie de catecismo do cidadão. Não mais que a moral, a política não poderia, aos seus olhos, prescindir de uma sanção religiosa. Mas, somente os

291 ROUSSEAU. J.J. Carta ao Senhor de Voltaire in: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a moral e a religião. São Paulo: Estação Liberdade. p. 135 e 136. 292 É função dos governos e do Estado conhecer o conteúdo das formas religiosas que dentro dele operam. “(...) Cabe ao governo conhecê-la. Apenas nesse ponto a religião entra diretamente sob a jurisdição e ele deve banir, não o erro, do qual não é juiz, mas toda opinião nociva que tende a romper o liame social”. In: ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. 293 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 165 e 166. 294 Religiosa e política. 295 MOUTON, Y. J.-J. Rousseau: le Contrat social à l’épreuve de la religion civile”. Cahiers Philosophiques, Paris, n. 92, oct. 2002, p. 27.

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dogmas civis constituem, propriamente falando, a moral do cidadão, enquanto os outros concernem à moral do homem. Por sua profissão de fé civil, Rousseau esforça-se em vão para suplantar o dualismo que se afirma em toda sua obra e para atenuar a oposição entre o homem e o cidadão296

***

Como conclusão do capítulo, situaremos a religião civil como essa

proposta de “via média” em relação à religião do homem e à religião do cidadão

tendo em vista o dogma negativo da intolerância. Como primeiro movimento, a

profissão de fé civil pode ser localizada como o marco regulador para a

existência das demais religiões no Estado:

Atualmente, quando não existe mais e não pode mais existir qualquer religião nacional exclusiva, devem-se tolerar todas aquelas que toleram as demais, contanto que seus dogmas em nada contrariem os deveres do cidadão297

Nessa citação, localizamos a influência dos escritos de Montesquieu

sobre Rousseau. Montesquieu parte do princípio de que o Estado, para manter

a ordem, deve não só tolerar as diversas religiões existentes, como também

obrigá-las a tolerarem-se entre si298.

A condição é clara para a existência de qualquer religião dentro do

Estado. A exigência é uma só: os deveres religiosos não podem contrariar os

deveres civis. A religiosidade pessoal será sempre respeitada, desde que não

fique retida a convicções e práticas na esfera privada. Não será possível

compreender que uma religião forma o homem de tal maneira que entre o

Estado e a sua fé o homem opte por sua fé. O Estado deve se sobrepor.

Uma outra questão também necessita ser observada. Sobre nenhuma

condição o Estado pode reconhecer uma “religião oficial”, ou dar a alguma

esfera religiosa a autoridade para ter acesso em primeiro plano às coisas do

Estado. Afirmar que fora “Fora da Igreja não há salvação” não representará

mais nada sobre uma tentativa sórdida de amedrontar os homens e

estabelecer controle sobre eles.

296 OC III, Notes et variantes, p. 1505 (nota 6). 297 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 144 e 145. 298 Cf: Montesquieu. O espírito das Leis. Livro. XXV, Capítulo IX.

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A religião civil, portanto, trata-se, antes de tudo, de uma solução

prática para o problema que Rousseau se propõe discutir: como o cristianismo

em sua estrutura não pode assumir formas nacionais por não estar apegado à

noção de território esse modelo religioso não pode servir ao estado.

Já nas religiões nacionais, a intolerância e o apego a suas dimensões

territoriais particulares tornam os homens intolerantes. O retorno às teocracias

no grau social em que Rousseau se encontra parece uma impossibilidade.

A religião civil se apresenta, portanto, como um meio-termo adequado

por amenizar a intolerância entre as nações ao mesmo tempo em que se

apresenta como uma alternativa de profissão de fé mais adequada ao cidadão

do que o cristianismo. A religião civil não é um culto à pátria como as religiões

antigas e nem muito menos um culto a uma visão universal do gênero humano

e de sua condição como cidadão do céu.

Em vez disso, a religião civil, é constituída de um credo mínimo,

aceitável em qualquer nação, e visando apenas garantir que os seus

seguidores sejam bons cidadãos e súditos fiéis. Evidentemente, ela não é tão

geral quanto a religião do homem, pois ela não pode perder de vista as

sociedades particulares. A diferença é que a religião civil não se prende a uma

única sociedade.

A expressão cunhada por Rousseau apresenta uma atualidade em uma

época de religiões exclusivistas299. A religião civil para Rousseau tem como

grande função abrir um canal para a conciliação entre o nacionalismo da

religião do cidadão com o universalismo da religião do homem, ou seja,

funcionar como o mediador entre um ponto e outro.

299 Como na França e na Inglaterra em que os cargos públicos e os interesses do Estado eram partilhados com membros das Igrejas ditas “oficiais”.

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Considerações finais.

Rousseau é um homem do seu século, um período que se caracterizou

pelas revoluções estruturais das formas sociais. No conflito dessas revoluções,

as religiões acabaram por se tornar um tema central na filosofia, seja para

refutar a sua presença no Estado, seja para garantir a sua manutenção sem

dano algum a ela mesma e ao espaço político.

O século XVIII abriu as portas para o avanço sem limite do projeto

moderno que dentre outras coisas solucionaria por meio da razão o fim dos

conflitos religiosos. Diante disso, porque pensar uma religião para Estado?

Essa é sem dúvida uma pergunta de todos que se deparam com a reflexão de

Rousseau sobre a religião civil.

Por primeiro temos que entender que a religião civil é em sua essência

uma religião política. Um dos fatores que tornam necessária a sua presença na

sociedade é sem dúvida o seu caráter de protetora dos fundamentos para a

manutenção da ordem social. O Estado necessita de uma religião para manter-

se ativo e protegido, mas não de qualquer religião mas que se torne parte

constitutiva da sociedade.

Aparentemente essa é uma argumentação muito frágil se não levarmos

em consideração as necessidades dentro do Estado que a religião em certo

momento supre. Uma das primeiras razões para a existência dessa religião

política é sem dúvida a necessidade de criar uma identidade entre os membros

do Estado visando a sua manutenção e defesa. Rousseau entende que o

sacrifício pelo cívico ganha significado se estiver revestido de uma certa

sacralidade, por exemplo a crença que a imortalidade também subsistirá para

aqueles que se entregam na defesa de seu espaço, de sua pátria, de seu

território. Sem o revestimento sagrado, essa atitude pode ser confundida com

uma atitude qualquer.

Observando os conflitos militares atuais, notamos muitas vezes a

dificuldade que alguns exércitos enfrentam para que em suas ações ocorra

uma total entrega por parte de seus soldados. Enfrentar muçulmanos, por

exemplo, é um desafio para os norte americanos no Iraque, afinal, a entrega da

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vida pela Jihaad é um sinal de martírio e garantia do paraíso. Lutar contra

guerreiros como esses impõe uma dificuldade considerável a qualquer nação,

pois o inimigo despreza a sua felicidade individual para entregar-se a uma

causa. Um país que não consegue pensar com seus soldados o significado

cívico da batalha perde o sentido de sua ação, pois sem o significado do

sagrado a defesa da pátria torna-se uma atitude pequena.

Como segundo ponto, encontramos na necessidade de resguardar de

certa maneira as reservas morais de uma sociedade. A religião é para

Rousseau não o fundamento da moral, mas o que da a ela significado, daí

entender que para ele o ateísmo não é uma posição útil ao Estado, pois em

sua leitura o ateu parece não manter compromisso com nada e ninguém, afinal,

ele elimina completamente as crenças e as substitui por um certo raciocínio

intelectualista, que em si mesmo é vazio.

Ghislain Waterlot chama atenção para essa questão, pois, para

Rousseau tanto o ateu quanto o fanático religioso estão no mesmo patamar de

risco do liame social. O que ocorre é que nenhum dos dois parece disposto a

se entregar pelas causas da pátria, ou ser capaz de desenvolver uma crença

nela, os dois lados tornam-se passivos nessa relação.

Para Waterlot em seu texto “Rousseau: Religion et polítique” defende

que a religião civil no pensamento de Rousseau aparece muito mais como uma

necessidade de sair de um problema provocado pela crise das religiões de

caráter institucional no século XVIII do que por uma convicção meramente

pessoal. Como a crise dos aparatos religiosos se mostrava algo iminente seria

necessário pensar uma forma de preservar dentro do Estado a “religião”.

Rousseau parte então, segundo Waterlot para encontrar nos modelos

religiosos até então existentes e de grande expressão alguns elementos que

poderiam ser mantidos. Nas religiões derivadas do paganismo será mantida a

identificação entre o súdito e a pátria, a visão de sacra, que essa relação

carregou durante séculos.

Contudo, Rousseau sabe que essa visão torna-se superada no momento

em que o paganismo entra em crise e é substituída pela forma institucional do

cristianismo. Pensar o cristianismo não foi tarefa fácil para Rousseau, pois esse

modelo religioso estava presente em sua época e em suas visões de mundo.

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Um ponto a ser destacado nessa relação de Rousseau para com o

cristianismo é sem dúvida a figura singular de Jesus.

Jesus ocupa um importante e singular lugar no pensamento político de

Rousseau, mesmo sendo identificado como o mentor de um aparato religioso

que introduziu uma das maiores rupturas nos sistemas políticos da historia da

humanidade, Rousseau reserva um lugar em que tenta pensar Jesus um pouco

distante do projeto institucional que os discípulos deram após a sua morte.

Para Rousseau uma coisa é certa, Jesus não teve a intenção de cindir o

liame social, sua pregação parece estar muito mais direcionada a uma acética

ou uma purificação das consciências do que a uma revolução de caráter

absoluto na ordem social. Sua radicalidade não chegou a tal ponto.

Contudo, pelo fato de ser Judeu e assumir uma estrutura monoteísta, o

pensamento de Jesus, ou melhor, não o pensamento do “evangelho”, mas o da

Igreja corre em direção a um conflito com os modelos pagãos até então

instituídos.

O cristianismo tende a gradualmente modificar a ordem de

permissividade de culto do paganismo, pois assumiu a figura de universalidade,

a mensagem não estava direcionada apenas a alguns, como era o caso da

experiência monoteísta judaica, mas a toda a espécie humana. A fé cristã deixa

de ser um principio de condução íntima de vida e se torna um projeto para a

transformação do homem e da sociedade, não há conversão sem mudança

social.

É justamente nesse ponto que o cristianismo assume o seu formato

perigoso, pois pensa não ser mais uma religião como as outras, mas a

verdadeira religião e nesse momento Rousseau localiza o nascimento do

fanatismo e da violência que seguiu o projeto de sociedade sobre a tutela dos

cristãos.

Para Rousseau uma coisa é o projeto de Jesus, outra o projeto do

cristianismo em suas variadas versões históricas. O primeiro modelo é bom e

justo, o segundo, escuso e mentiroso.

Ora, a necessidade de escapar dos modelos existentes até o XVIII era

uma necessidade. O paganismo mostra-se frágil, o cristianismo do evangelho

particular demais e o cristianismo institucional pernicioso ao Estado. A solução

pensada foi uma alternativa entre um e outro, uma religião que conserve o

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despertar de pertencer a algo maior nos homens e que conduza a sociedade a

um equilíbrio que no fundo beira a felicidade natural.

Ainda refletindo sobre as razões que levam a uma religião política,

encontramos em Rousseau também uma necessidade não somente de ordem

civil, ou exterior, mas de uma relação com a própria condição de existência do

homem, e como trabalha Waterlot há no pensamento de Rousseau sobre a

política e a religião “une caractéristique anthropologique fondamentale”.

Essa característica antropológica fundamental está associada ao

avanço da desnaturalização do homem. Uma vez fora do Estado de natureza o

homem perde a sua estrutura de liberdade, que era própria do seu estado

anterior. Para resgatar essa liberdade ele funda suas relações no contrato,

onde todos dão e todos recebem. A manutenção do contrato está fundada na

vontade geral e na observância das leis, entretanto essas não se apresentam

como leis comuns, mas como a manifestação “divina” do que os homens

devem fazer na sociedade para resgatar a sua liberdade e por fim serem felizes

novamente.

***

A religião civil foi uma invenção de Rousseau enquanto formato

conceitual, sua criação deve-se a união de dois grandes conceitos no seu

sistema de pensamento. Essa via média fora construída sobre as bases da

religião natural, que não deixa de ser a religião do “cristianismo do evangelho”

e da “religião cívica” que em tese era a religião dos antigos povos. Retiradas

das duas as suas fraquezas e conservada a suas qualidades, temos então uma

religião que mantém a moral viva como um ponto de referência para a

condução dos homens e resguarda o Estado do abandono sacro de seus

cidadãos, pois todos estariam dispostos ao sacrifício por sua defesa e por sua

manutenção.

Quando invoca um culto do coração e estabelece o princípio da

necessidade, Rousseau quer instituir uma relação entre de um lado a formação

de um homem livre, que é a condição geral da existência humana, seu bem-

estar e seus infortúnios, e, de outro lado, o nível de importância da experiência

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religiosa dentro do Estado, garantindo assim o principio orientador da ação dos

homens.

O leitor cuidadoso concordará que o problema discutido nesta

dissertação não reside na definição e no esclarecimento de questões

teológicas. O problema deste trabalho reside nas questões políticas.

Ainda hoje não há nenhuma evidência histórica de que em alguma

sociedade a religião civil pensada por Rousseau tenha existido, mas, a sua

provocante relação com os Estados, mesmo em tese, ainda permanece um

problema aberto para a reflexão filosófica.

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