pontifícia universidade católica de são paulo programa ... antunes... · valiosas e por...
TRANSCRIPT
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação.
Dilma Antunes Silva
De pajem a professora de educação infantil: um estudo sobre a constituição
identitária da profissional de creche
São Paulo
2015
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação.
Dilma Antunes Silva
De pajem a professora de educação infantil: um estudo sobre a constituição
identitária da profissional de creche
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profª Drª Mitsuko Aparecida Makino Antunes.
São Paulo
2015
Banca Examinadora
__________________________________________________
__________________________________________________
__________________________________________________
Por que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a
prova das coisas que se não veem (Hebreus 11)
Agradecimentos
À minha família pelo amor inesgotável, pela compreensão e incentivo constantes. Por ser
minha fortaleza nas horas de angústia, de incerteza. Pelas palavras firmes, sábias, pelo
carinho algumas vezes imerecido.
Ao querido amigo Prof. Ms. Enésio Marinho pelo carinho dispensado a mim, pela
confiança depositada e pelos bons conselhos.
Aos mestres que participaram da minha formação: Profª Drª. Mitsuko Aparecida Makino
Antunes, minha orientadora, pessoa e educadora admirável; muitíssimo obrigada pelas
orientações, pelos conselhos, pela escuta e por me permitir sonhar; Profª Drª Laurinda
Ramalho de Almeida, sempre muito amável com seus alunos, obrigada pelas contribuições
valiosas e por prontamente aceitar o convite de participar da minha banca de Qualificação
e Defesa; Profª Drª Wanda Maria Junqueira a quem sou profundamente grata pelos
ensinamentos; Profª Drª Lindabel Delgado Cardoso, educadora, gestora e pesquisadora
engajada na luta pela defesa dos direitos das crianças e qualidade da educação infantil,
obrigada pela valiosa contribuição e pelo pronto aceite em participar da minha banca de
Qualificação e Defesa. A vocês todo meu carinho, repeito e admiração.
Às professoras que participaram deste estudo, cuja colaboração foi vital. MUITO
OBRIGADA!
A todas as crianças deste país, em especial, meus sobrinhos. A vocês, todo o meu amor!
A todas as professoras de educação infantil, em especial, aquelas com as quais convivi:
toda a minha gratidão e respeito.
Às amigas que me acompanharam em todos os momentos, obrigada por toda ajuda, pelo
carinho e amizade. Jamais saberei como retribuir.
Ao Edson pela gentileza, simpatia e profissionalismo.
À Capes pelo apoio financeiro.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 16
Sobre a identidade das professoras de educação infantil: um olhar para as produções
apresentadas no GT07 nas Reuniões Anuais da ANPED no período de 2004 a 2013 ........ 18
CAPÍTULO 1. A CRECHE NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO ...................... 22
1.1 A educação infantil de zero a três anos ....................................................................... 23
1.2 Legislação Atual e Políticas Educacionais. ................................................................. 30
1.2.1 A Formação das professoras de creche .................................................................... 31
1.2.2 Educar, cuidar e brincar ........................................................................................ 36
1.3 Organização e funcionamento da educação infantil de zero a três anos ...................... 38
1.3.1 Organização dos agrupamentos na creche ............................................................... 39
1.3.2 Funcionamento ...................................................................................................... 40
CAPÍTULO 2. REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................... 42
CAPÍTULO 3. A PESQUISA ....................................................................................... 46
3.1 Objetivos .................................................................................................................... 46
3.2 Concepção de homem para a Psicologia Sócio-histórica ............................................. 46
3.3 Procedimentos ............................................................................................................ 48
3.3.1 O cenário da pesquisa ............................................................................................. 50
CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS........... 52
4.1 Conhecendo as educadoras ......................................................................................... 52
4.2 A origem humilde e as marcas da infância ................................................................. 56
4.3 Trajetórias pessoais e de profissionalização ............................................................... 64
4.4 Dimensão afetiva da prática pedagógica ..................................................................... 81
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 92
ANEXOS
Anexo I- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Anexo II- Entrevistas
LISTA DE SIGLAS
ADI: Auxiliar de desenvolvimento infantil
ANPED: Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação
CLT: Consolidação das leis do trabalho
ECA: Estatuto da criança e do adolescente
EMEI: Escola municipal de educação infantil
EUA: Estados Unidos da América
GT: Grupo de Trabalho
LDBEN: Lei de diretrizes e bases da educação nacional
MEC: Ministério da Educação e Cultura
OIT: Organização Internacional do Trabalho
PDI: Professora de desenvolvimento infantil
PEI: Professora de educação infantil
PEIF: Professora de educação infantil e ensino fundamental I
PMSP: Prefeitura Municipal de São Paulo
RCNEI: Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
SAS: Secretaria de Assistência Social
SEDIN: Sindicato dos Professores de Educação Infantil do município de São Paulo
TCLE: Termo de consentimento livre e esclarecido
UNICEF: Fundo das Nações Unidas para a Infância
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo investigar o processo de constituição identitária de
professoras de educação infantil que atuam em creche, especificamente aquelas que
iniciaram seu trabalho nesse campo como pajens e auxiliares de desenvolvimento infantil e
se justifica pelo fato de ainda ser um tema pouco explorado em pesquisas sobre a docência
na Educação Infantil de zero a três anos. Trata-se de um estudo qualitativo fundamentado
nas concepções da Psicologia Sócio-histórica; adotou-se como procedimento de coleta dos
dados a entrevista não-diretiva, com foco na narrativa da história de vida. Fez-se
necessário, ainda, além de um estudo bibliográfico, o levantamento dos estudos sobre
identidade docente apresentados ao longo da última década no GT07 da ANPED, que
concentra estudos sobre a Educação Infantil de zero a seis anos. Foram encontrados 256
trabalhos durante o decênio de 2004-2013, dos quais apenas três contemplam a temática
abordada nesta pesquisa. Participaram desta pesquisa três professoras de educação infantil
que atuam em creche da rede pública municipal de São Paulo; após a coleta e transcrição
das entrevistas concedidas por elas, procedeu-se à análise temática do material. A análise
dos resultados obtidos se baseou nos seguintes eixos: a origem humilde e as marcas da
infância das educadoras de creche; trajetórias pessoais e de profissionalização e dimensão
afetiva da prática pedagógica. Os resultados mostram que os percursos da vida pessoal e
profissional e os percursos formativos são elementos constituintes das identidades
profissionais das educadoras de creche. Observou-se nas falas das educadoras que o campo
da formação inicial e contínua lhes possibilitou desenvolver o sentimento de pertença a um
grupo de professores da educação básica. Entretanto, ainda permanece, no âmbito da
escola, uma hierarquização, reforçada legalmente, entre os docentes dos diferentes níveis,
na qual a professora da educação infantil, sobretudo aquela responsável pelas crianças de
zero a três anos, é considerada menos “educadora” que as demais, reforçando a ideia da
prevalência do cuidado em detrimento da educação e o não reconhecimento da
indissociabilidade entre essas atividades, independentemente do segmento da educação.
Palavras-Chave: Educação Infantil. Creche. Formação de Professores. Identidade.
ABSTRACT
This research aims to investigate the process of identity formation of teachers in early
childhood education working in daycare, specifically those who have started their work in
the field as day care takers and child development assistants. The research is justified by
the fact that it is still a poorly explored theme in the studies on the field of teaching early
childhood education, from zero to three years old. This is a qualitative study based on
conceptions of social and historical Psychology. The procedure of research adopted was
data collection through non-direct interview policy with focus on narratives of life stories.
Apart from a bibliographical study, it was necessary to carry out a survey of the studies on
teacher identity presented over the last decade at the GT07 of ANPED, which focuses
studies on early childhood education, from zero to six years old. There were 256 papers
found during the decade of 2004-2013, amongst them only three are on the theme
addressed in this research. Three teachers from early childhood education, working
specifically in day care from public municipal de São Paulo participated in this research.
After collecting and transcribing their interviews, we proceeded to the thematic analysis of
the material. The analysis of the results obtained was based on the following axes: the
humble beginnings and the childhood background of educators of kindergarten; their
personal and professional trajectories; and the affective dimension of pedagogical practice.
The results show that their journeys of personal and professional life and their formative
journeys are constituent elements of the professional identity of daycare teachers. It was
observed in the discourse of the educators that the initial and continuing teacher
development in this field has enabled them to develop a sense of belonging to a group of
teachers of basic education. However, as far as the school goes, there is still a hierarchy,
reinforced legally, among teachers of different levels, in which the teacher of early
childhood education, especially those responsible for children from zero to three years old,
is considered less of an "educator" than the others, reinforcing the idea of the prevalence of
caution at the expense of education and the non-recognition of the inseparability between
these activities, regardless of the education segment.
Keywords: Early Childhood Education. Daycare. Teacher Development. Identity.
APRESENTAÇÃO
Quem sou eu?
Sou alguém que não se cansa de sonhar! Nasci em 1982, sou a terceira filha do
casal Antonio Ferreira Silva e Ana Aparecida Antunes Silva, pessoas humildes, naturais de
Espinosa-MG, que deixaram para trás a família e os amigos em busca de uma vida melhor
em São Paulo. Na mala traziam apenas algumas peças de roupas bastante gastas e um
bilhete com o endereço dos parentes que os abrigariam.
Meu pai sem escolaridade, sabendo apenas desenhar o próprio nome teve
dificuldade de conseguir emprego. Mamãe, quando criança frequentou os dois primeiros
anos do ensino básico, aprendeu a ler e escrever e tinha noções de cálculo matemático.
Habilidades que mais tarde seriam fundamentais para lhe conferir o direito de cursar corte
e costura. Em 1987, após o nascimento de minha irmã mais nova, devido às condições
materiais as quais estávamos sujeitos, mamãe decide costurar para fora. Comprou uma
máquina de costura em suaves prestações e diante dela passava horas a fio, cortando
costurando, remendando. Dos retalhos que sobravam ela fazia roupas para nós. Roupas que
usávamos para ir à igreja e para passear.
Minhas irmãs e eu brincávamos de costureiras e sonhávamos com desfiles de
modas. Meu irmão também participava das brincadeiras, era sempre ele quem desenhava
as peças utilizando os moldes de mamãe. Tudo escondido, claro! Bastava que minha mãe
descuidasse um pouquinho ou saísse para resolver alguma coisa ou fazer uma entrega que
lá iam os quatro aprontarem alguma. E aprontamos muitas! Tivemos uma infância muito
feliz. Brincamos muito, fizemos muita traquinagem. Meus irmãos e eu formávamos uma
equipe. Éramos cúmplices, parceiros e defensores uns dos outros. Até pouco tempo atrás
eu jamais tinha dito que os amava, mas quando analiso nossa história, eu sei: Eu os amava.
Sempre nos amamos!
Uma coisa bonita que aprendi com esta pesquisa, algo tão óbvio, mas que às vezes
não damos a devida importância é que não necessitamos de riqueza nem de luxos, quando
somos acolhidos com amor. Quando aprendemos a partilhar com o próximo o pouco que
temos, não importa quem ele seja. Foi exatamente esse o desejo e o ensinamento dos meus
pais.
Toda minha infância e adolescência foi marcada pela presença da bebida, vício
contra o qual meu pai lutou por mais de trinta anos. Minha mãe, sempre guerreira,
batalhava todos os dias para garantir uma vida digna para os quatro filhos. Exigiam que
estudássemos, eram presentes em nossa vida escolar e me lembro claramente das vezes que
minha mãe segurou minha mão na hora do dever de casa.
Nasci e cresci numa família humilde, meus irmãos começaram a trabalhar cedo
para ajudar nas despesas da casa. Lembro que meu irmão vendia picolés e minha irmã mais
velha o acompanhava para garantir que ninguém o passasse para trás. Eu, imatura e muito
sonhadora dizia que só trabalharia para ganhar o salário máximo. Eu não entendia
exatamente as políticas salariais vigentes, mas já sabia que um salário mínimo não era
suficiente para garantir aos cidadãos uma vida digna.
Dos sonhos que tive, e foram muitos, esse foi o que realizei ou, melhor dizendo,
experimentei: fui jogadora de voleibol e disputei dois importantes campeonatos. Eu não
tinha tênis para participar dos treinos e dos jogos, minha mãe teve que fazer um crediário.
Pouco tempo depois troquei o sonho por um emprego.
A universidade não foi algo que sonhei. Aliás, só em 2005 é que comecei a cogitar
essa possibilidade. Antes disso, esse assunto não era abordado em minha casa, meus
amigos também não sonhavam em “fazer faculdade”. Esse silêncio acerca da temática
universidade, certamente era decorrente da histórica divisão de classes que se estabeleceu
nesse país. Cursar o ensino superior, até pouco tempo atrás, não era uma possibilidade para
os filhos das camadas mais pobres da sociedade. Digo isso, pois nos últimos doze anos
especificamente, mais oportunidades de emprego e de acesso aos níveis mais elevados do
ensino têm sido contempladas pelas políticas públicas sociais.
Com os programas do Governo Federal Pro-Uni, Fies e outros, o sonho da
formação em nível superior se torna cada vez mais real na vida dos inúmeros jovens
oriundos de diferentes camadas da esfera social.
Em dezembro de 2009 conclui a graduação em Pedagogia, não fui diretamente
beneficiada pelos programas supracitados, mas tenho a convicção que essa realização está
pautada numa política de ação afirmativa que vislumbrava o acesso das massas aos
serviços de educação, saúde, moradia como nunca se viu na história desse país.
Minha expectativa nessa época era a de lecionar para crianças das séries iniciais do
ensino fundamental. Isso nunca aconteceu!
Nunca me imaginei cuidando de crianças pequenas. Me achava pouco delicada para
isso, eu sequer sabia como segurar um bebê, entretanto...
No ano seguinte, ingressei no cargo de professora de desenvolvimento infantil (PDI) numa
escola da rede pública de ensino na grande São Paulo. Essa foi uma experiência que me
marcou profundamente.
No dia quatro de março de 2010 cheguei à Pré Escola Jardim Eldorado antes do
horário previsto para o início da aula. Fui bem recebida pela diretora que prontamente me
acompanhou até a classe. Lembro a satisfação e a alegria que senti quando pisei no chão da
minha sala de aula pela primeira vez. Eu tinha um sorriso incontido no rosto. Tinha
planos! Eu sabia que ali seria feliz!
Mas ao término do expediente a única certeza que eu tinha era a de não voltar
nunca mais àquele lugar. Eu quis desistir, pois logo no primeiro dia me deparei com
situações para as quais eu não tinha recebido nenhuma orientação. Situações que não foram
abordadas ao longo do curso de Pedagogia.
Chegando em casa, meus pais que aguardavam ansiosamente para saber como foi
meu primeiro dia como professora, tiveram de aparar minhas lágrimas. Contei como havia
sido e disse a eles que desistiria.
Desistir, como assim? Eu havia batalhado tanto para ingressar naquele cargo. Essas
palavras martelaram a minha mente a noite toda. Não dormi.
No dia seguinte, me arrumei e segui viagem. A escola ficava a três horas de
distância da minha casa. Cheguei antes do horário previsto e decidi falar com a
coordenadora, pedi a ela dicas de como trabalhar com aquela turma, pois já no primeiro dia
havia percebido que seria uma tarefa árdua. As crianças fugiam do meu modelo idealizado
de criança e, por conseguinte de aluno. Elas eram indisciplinas, barulhentas e machucavam
umas às outras. As mães me pareceram pouco compreensivas e os colegas de trabalho não
se mostravam companheiros.
Com tudo isso, persisti!
As PDIs eram minoria nas escolas de educação infantil daquela rede e
desenvolviam atividades paralelas ao trabalho da professora de educação infantil. Eram
reconhecidas pelos membros da escola como “tia” ou simplesmente PDI e não como
professoras. Naquela época eu não tinha muita clareza do quanto essa hierarquia
estabelecida oficialmente pode ser perniciosa, sobretudo porque acentua a cisão da imagem
profissional das educadoras infantis, reforça uma visão fragmentada de criança e de
trabalho educativo e contribui para perpetuar desigualdades nesse campo.
O não reconhecimento como professora fazia minar em mim a possibilidade de
construir uma identidade profissional. Eu não era professora, não me sentia parte de um
grupo de professores. Me assumi PDI, alguém sem voz, cujos direitos e sonhos eram
diariamente desrespeitados.
Não me reconhecendo como professora, aceitando-me como PDI, me acostumei
com o fato de ter meu nome raramente pronunciado. No entanto, acostumar-se ao
anonimato não significou aceitá-lo. Não aceitá-lo implicava uma mudança, uma
transformação. A metamorfose da professora começou, efetivamente, em outubro de 2010
quando assumi o cargo de professora de educação infantil (PEI) na prefeitura de São Paulo.
Aqui, ao contrário do que acontecia acolá, não existia uma hierarquia entre as
professoras, todas desempenhavam as mesmas funções eu era a PROFESSORA, e aos
poucos um sentimento de pertença a um grupo começava crescer dentro de mim. Tornei-
me professora de educação infantil!
O contato diário com as crianças possibilitou a descoberta de mim mesma.
Descobri que meus argumentos eram falhos, eu era capaz de cuidar de bebês. De fazê-los
sorrir, de me ver em suas ações. Formei-me professora pelas mãos das crianças. Elas me
titularam.
Nessa nova instituição, assumi, em princípio, a regência numa turma de berçário; a
classe era composta por dois grupos de nove crianças de um ano de idade e o trabalho
diário era partilhado com outra professora. Ela, bastante experiente no magistério infantil,
mãe e avó, cuidava dos bebês como certamente um dia cuidara dos seus filhos e netos. Sua
primeira pergunta, como ela mesma disse, “mais pessoal”: Você tem filhos?
Por um instante pensei que seria o fato de ser mãe um pré-requisito para o
magistério na educação infantil. Não sendo mãe, não seria eu competente o bastante para
lidar com os bebês? E o fato de ser mãe garantiria a qualidade do trabalho docente
desenvolvido diariamente nos centros de educação infantil?
São questionamentos dessa natureza que me proponho a pesquisar. O foco de
interesse da pesquisa centra-se na busca pela compreensão da identidade profissional das
professoras de educação infantil que atuam em creches e centros de educação infantil.
Minha experiência ainda incipiente nesse campo, o desejo crescente por qualidade de
atendimento à pequena infância e a luta pela valorização profissional das inúmeras
professoras de educação infantil caracterizam a relevância acadêmica e social desta
dissertação de Mestrado. .
O trabalho está organizado da seguinte maneira: na apresentação, a pesquisadora
apresenta as motivações e os percursos por ela trilhados para chegar ao objeto de sua
investigação. Em seguida serão apresentados e discutidos estudos correlacionados à
identidade da professora de creche.
O primeiro capítulo trará um breve histórico da Educação Infantil brasileira, cujo
enfoque está no atendimento voltado para a criança de zero a três anos de idade. Ao longo
desse capítulo serão abordadas temáticas relacionadas à legislação, formação de
professores e organização e funcionamento das instituições que atendem a pequena
infância. No segundo capítulo apresentamos o referencial teórico desta pesquisa e em
seguida, no capítulo denominado A Pesquisa, serão apresentadas as etapas para elaboração
do trabalho.
O quarto capítulo será destinado à apresentação, análise e discussão dos dados
coletados durante as entrevistas com as profissionais de educação infantil. Por fim, nas
considerações finais buscaremos uma reflexão acerca das contribuições deste trabalho
tanto no âmbito pessoal, profissional e social.
16
INTRODUÇÃO
Este tópico apresenta uma revisão bibliográfica sobre o tema Identidade Docente e
formação de professores de educação infantil.
Diferentes estudos enfatizam que o trabalho docente realizado em creches traz
consigo características do trabalho doméstico, caracterizado pelo acúmulo de funções, pela
inseparabilidade entre público e privado nas atividades domésticas; pela rotina diária; pela
atividade docente vincular-se ao que se considera como saber “natural” e o fato de ser um
trabalho desempenhado por mulheres, em sua maioria pobres e com poucos anos de
escolarização (ARCE, 2001; CERISARA, 2002; PIZA, 1992).
Buscando compreender os processos pelos quais as identidades docentes se
constituem e quais elementos podem contribuir ou dificultar esse processo de constituição
identitária, foi realizado um levantamento dos trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais
da ANPED na última década (2004-2013).
Foram encontrados 256 trabalhos (pôsteres e comunicação oral) no GT-07
(Educação de crianças de zero a seis anos). No gráfico a seguir temos um retrato da
distribuição dessas produções por ano de edição do evento.
*Elaborado pela autora.
Alguns dados do gráfico merecem ser comentados: a pouca produção de trabalhos
na modalidade pôster nos períodos de 2004 a 2008 e de 2010 a 2013 em relação ao ano de
9
2018 18 19
1618
15 16
12
68
4 52
58
0
4 53
0
10
20
30
40
50
60
70
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Comunicação oral Pôster
Tabalhos apresentados no GT07 da Anped: Educação da criança de 0-6 anos
17
2009; nota-se também que nos anos de 2004 e 2013 concentram-se a menor quantidade de
trabalhos apresentados em comunicações orais.
No ano em que o GT07 completou trinta anos (2007) apenas vinte e três trabalhos
foram apresentados, sendo dezoito comunicações. Destas, apenas duas visavam o estudo
sobre a constituição identitária das professoras de creche.
Deteremos nossa atenção na análise dos trabalhos apresentados no formato de
comunicação oral, um universo composto por 161 produções. Destas, observou-se que
apenas dezesseis faziam menção direta à profissional de creche e, numa análise ainda
inicial, percebemos uma grande variação na maneira de se reportar às professoras, visto
que ao menos dez nomenclaturas distintas foram empregadas para se referir a essa
profissional, o que, a nosso ver, já caracteriza uma cisão identitária na educação infantil e
acentua ainda mais a hierarquização do trabalho nesse segmento.
Os estudos também apontam que a falta de distinção entre atividades profissionais e
familiares no interior das instituições de educação infantil pode dificultar o processo de
compreensão da constituição identitária das profissionais que nelas atuam, pois, na maioria
das vezes, o trabalho limita-se ao cuidar, quando, na verdade, a atividade profissional
deveria ser constituída pela indissociabilidade entre educar, cuidar e brincar.
Aprofundando nossa análise, encontramos nessa pequena parcela de trabalhos sobre
a professora de creche apenas três que apresentavam no título e no resumo a proposta de
estudar a constituição identitária dessas profissionais.
Diante dessas constatações, foi realizado um estudo bibliográfico mais
aprofundado. Teses, dissertações, livros e artigos foram consultados, tendo por objetivo
aprofundar os conhecimentos acerca da temática proposta e extrair subsídios teóricos para
análise e interpretação dos dados revelados pelo universo das participantes.
Ressalta-se que quando da pesquisa por artigos disponíveis em revistas e periódicos
eletrônicos, sobreveio-nos certa preocupação, tendo em vista a diminuta quantidade de
material sobre o tema e a categoria profissional docente do segmento de zero a três anos.
Dos artigos que compõem nosso referencial bibliográfico apenas um trata da construção da
Número de trabalhos cujos títulos e resumos contemplam a temática Identidade
Profissional da educadora de creche.
Total
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
01 0 0 02 0 0 0 0 0 0 03
18
identidade docente tendo como porta-vozes da discussão as próprias professoras de
educação infantil.
Nesse trabalho, Oliveira et.al (2006) analisou as produções da primeira turma de
alunas1 formadas pelo Programa ADI Magistério e constatou:
(...) era composta por mulheres (...). Delas, 41,6% tinham idade entre 41 e 50 anos,
sendo que 34,2% tinham mais de 50 anos e apenas 7%, menos de 35 anos. Eram
casadas ou moravam com companheiros 62,8% das ADIs, e 90,1% delas tinham filhos. Estavam no trabalho em creches há muito tempo: 81% delas trabalhavam
entre 11 e 20 anos, 15,7% tinham mais que 20 anos de serviço e apenas 2,3%
trabalhavam há menos de 10 anos na área. Muitas das ADIs (52%) relatavam ter
tido história de fracasso escolar, 31% haviam deixado de estudar há mais de 20
anos e apenas 4% estavam fora da escola há menos de cinco (pp. 551-552).
Estavam matriculadas nessa turma 850 profissionais de educação infantil que
haviam concluído apenas o ensino fundamental. Foram selecionados 33 textos que
compunham as produções individuais das alunas concluintes da primeira edição do
Programa: “Tais textos compunham um memorial em que as alunas eram convidadas a
traçar sua trajetória pessoal” (OLIVEIRA et. al, 2006, p. 555).
Ainda segundo a autora, os trechos selecionados indicam que “as escolhas feitas
pelas ADIs para representarem a si mesmas trazem marcas significativas cunhadas na
cultura e na participação no programa” (OLIVEIRA et. al, 2006, p. 555).
Pretendendo aprofundar nossa compreensão acerca dessas marcas que as
educadoras de creche trazem consigo, apresentamos e discutimos na sequência os trabalhos
apresentados nas Reuniões Anuais da ANPED que investigaram a construção das
identidades profissionais das trabalhadoras de creche.
Sobre a identidade das professoras de educação infantil: um olhar para as
produções apresentadas no GT07 nas Reuniões Anuais da ANPED no período de
2004 a 2013
Gomes (2004) refere-se às professoras de educação infantil do segmento etário de
zero a três anos como educadoras de crianças pequenas, e não professora,termo este
utilizado para identificar as profissionais que atuam nas pré-escolas e outras etapas da
escolarização. O trabalho apresentado visava uma compreensão dos caminhos pelos quais
1 Segundo a autora havia apenas um homem matriculado na turma, daí a escolha pela utilização do gênero
feminino.
19
as educadoras construíam suas identidades profissionais; para isso, utilizou-se de dois
procedimentos metodológicos: entrevista e relato autobiográfico. Seu universo participante
era composto por doze sujeitos, professoras de educação infantil de ambos os segmentos
(creche e pré-escola) e estagiárias de um curso de Pedagogia.
Em sua pesquisa, Gomes (2004) aponta alguns elementos que, segundo ela, são
dificultadores do processo de construção e revelação de identidades, dentre eles: “o fato do
trabalho com crianças pequenas em creches (...) estar muito próximo daquele desenvolvido
pelas famílias” e “a existência de uma crise de identidade com relação às educadoras de
creche” (GOMES, 2004, pp. 12-13).
Quanto à crise identitária dessas profissionais, a autora explica que as “educadoras
seguem reproduzindo ações, traduzidas, por um lado, na forma de imitação da professora,
tal qual a imaginam, tendo a imagem da escola de caráter instrucional como referência” (p.
13). Não obstante, há uma superposição do papel de cuidadora, daquela que “toma conta”
das crianças, a tia, acarretando um desvio da “função de educadora e prejudicando a noção
de pertencimento profissional” nesse cenário em que educar e cuidar são inseparáveis
(GOMES, 2004, p.13). Em concordância, Campos e Cruz (2006, p. 111), ressaltam que:
(...) a identidade da professora de educação infantil ainda não se consolidou como
profissional. (...) Na ambiguidade de alguém que atua em um “segundo lar” (que deve “cuidar bem” da criança) e ao mesmo tempo como educadora (que precisa
prepará-la para o futuro escolar e para uma melhor situação de trabalho no
futuro), perde-se sua principal função de incentivadora, facilitadora e
propiciadora da aprendizagem e do desenvolvimento da criança dessa faixa
etária no presente, desenvolvimento que supõe a integração entre os aspectos de
cuidado e educação nas práticas cotidianas.
Gomes (2004) chama a atenção para a valorização profissional e formação
contínua como traços importantes para a construção de uma identidade profissional. Para
ela, a valorização e o reconhecimento como professora constituem-se em caminhos para a
superação da crise identitária instaurada no campo da educação infantil.
A formação surge, a partir das narrativas analisadas pela autora, como “uma parte
importante dessa trajetória [da construção do ser professora de educação infantil],
qualificando e valorizando profissionalmente as educadoras desse ofício” (GOMES, 2004,
p. 5).
Dos trabalhos apresentados na 30ª edição do evento, ocorrida em 2007, autores
como Cota (2007) e Nascimento (2007) também colocam as questões sobre identidade no
centro do debate em educação infantil.
20
O trabalho de Cota (2007, p. 01) resulta de um profícuo estudo sobre os “possíveis
traços e processos identitários das trabalhadoras de creche”. Utilizando-se de entrevistas
abertas procurou compreender os processos que constituem a identidade das profissionais
que trabalham na educação infantil. Ao analisar a história oral das cinco entrevistadas, a
autora aponta quatro traços determinantes para desvendar as identidades das professoras de
creche. O primeiro diz respeito à mistura dos papéis de mãe e professora, implicando a
construção de uma ‘identidade profissional’ no âmbito institucional, reforçando que “o
cuidar é de competência da mulher” (COTA, 2007 p. 13).
Outros dois pontos comuns entre as educadoras, apresentados por Cota (2007, p.
14), são a “condição sociocultural e econômica e (...) a formação deficiente das
trabalhadoras”. A autora salienta que o universo participante da pesquisa era de origem
humilde e que todas eram oriundas de meios menos favorecidos, filhas de pais analfabetos
e ou com pouquíssima escolaridade. Por fim, Cota (2007) observa no discurso das
entrevistadas uma falta de pertencimento ao grupo de professoras de educação infantil.
Finalmente, foi possível perceber, diante dos significados expressos por elas, um
sentimento de pertencimento a um grupo específico: sentem-se como professoras
de creche e não como professoras de educação infantil (COTA, 2007, p. 14).
É importante assinalar que, embora a formação dessas profissionais não fosse o
foco dos estudos de Cota (2004), essa temática aparece de forma velada nos discursos das
participantes da pesquisa. A autora ainda destaca “que o desejo de serem reconhecidas
como professoras foi o que motivou o grupo a participar [de um] Programa Emergencial”
de formação de professores para atuar na educação infantil (COTA, 2007, p. 14). A
pergunta que lançamos aqui é: quais as marcas que a formação imprimiu nessas
educadoras?
Cota (2007, p. 14) conclui que faltam às profissionais que atuam em creches “uma
formação mais sistemática para as dimensões do educar e cuidar” e lança outras questões,
para as quais buscaremos as respostas nos relatos de Graça, Penélope e Diana 2*, professoras
de educação infantil que a nós narraram suas histórias de vida, partilharam conosco um
pouco de suas experiências e desejos, nos permitido assim compreender os processos pelos
quais suas identidades vão se constituindo.
Nascimento (2007), em seu trabalho, analisou as práticas de atendimento em vinte
instituições de educação infantil da rede pública. Considerando que a creche vem sendo
2*Nomes fictícios das educadoras participantes desta pesquisa.
21
construída cotidianamente, a autora buscou responder quais são as marcas da identidade da
professora em relação à instituição e ao fazer docente. Para isso desenvolveu uma
pesquisa de campo, na qual observou as práticas de atendimento às crianças da pequena
infância em vinte instituições de educação infantil numa determinada região metropolitana
brasileira.
No que diz respeito à identidade profissional, Nascimento (2007) assinala que a
identidade da professora contribui para a construção da identidade do trabalho pedagógico
desenvolvido na unidade educacional.
Ainda segundo Nascimento (2007), o processo histórico do qual a creche faz parte é
fortemente influenciado por ações da esfera doméstica. Ao longo do trabalho a autora
discute questões ligadas ao cuidar que, em sua concepção, se manifesta no comportamento
profissional que mistura as relações casa-creche. À guisa de conclusão, a autora afirma:
(...) as práticas femininas domésticas caminham junto com as práticas femininas
profissionais: ao mesmo tempo em que “cuida” (...) a professora também tem
uma grande preocupação com a atividade que desenvolve, com o relacionamento entre as crianças, com suas famílias, além do compromisso em trazer para a sala
de aula elementos da cultura e conhecimentos das diferentes áreas do saber
(NASCIMENTO, 2007, p. 10).
Os estudos de Gomes (2004), Cota (2007) e Nascimento (2007) indicam que a
identidade da professora de creche passa por um terreno conflituoso que envolve a
dicotomização dos saberes e fazeres dessas profissionais. Além disso, as pesquisadoras são
concordes em afirmar que no universo da educação infantil estão presentes práticas
femininas domésticas e que o cuidar se sobrepõe ao educar. Observa-se também que esses
estudos não lançam luz sobre a questão da formação contínua dessas profissionais que,
sobretudo, nas duas últimas décadas, têm sido foco de políticas públicas no plano federal.
Revela-se, por fim, a necessidade de se investir no campo da formação inicial e contínua
dos profissionais da educação infantil e de investir na produção de conhecimentos e
promoção de discussões acerca da questão da identidade e formação docente como um dos
elementos propulsores de um atendimento de qualidade para as crianças da pequena
infância.
22
CAPÍTULO 1. A CRECHE NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO
Falar de creche ou de educação infantil é muito mais do que tratar de uma
instituição, de suas qualidades e defeitos, da sua necessidade social ou
importância educacional. (...) É tocar no mistério da pessoa humana enquanto
vida em busca de plenitude, de felicidade, de encontro. E, é, também, falar um
pouco de nós mesmos, pois quando nos colocamos diante da criança, como pais
ou educadores, estamos nos interrogando sobre a nossa própria trajetória a partir
da criança que fomos (DIDONET, 2001, p. 11).
Historicamente o cuidado das crianças pequenas foi relegado a segundo plano; a
falta de políticas públicas e de investimentos na construção de espaços institucionais para
guarda e proteção dos pequenos fez com que ações caritativas predominassem.
Ariès (1981, p.17), em estudo sobre a história da criança, afirma ser muito provável
que, até por volta do século XII, não houvesse lugar para a infância neste mundo.
Por séculos a criança foi concebida como um homúnculo, ser de menor
importância, cuja morte era naturalizada. Além de muito curta, sua passagem pela vida
familiar e social era considerada algo insignificante, passível de substituição; não havia
uma consciência da particularidade infantil, tampouco de criança como pessoa em
desenvolvimento. Kramer (2011), referenciando o historiador francês, afirma que, no
entanto,
Sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças;
corresponde, na verdade, à consciência da particularidade infantil, ou seja, aquilo
que distingue a criança do adulto e faz com que ela seja considerada como um
adulto em potencial, dotada de capacidade de desenvolvimento (KRAMER,
2011, p. 17).
Transformações de toda ordem (política, social, econômica, familiar etc.) e as
influências artísticas e religiosas contribuíram para que, em determinado momento da
história, a criança deixasse de ser vista e tratada como adulto em miniatura, passando a ter
mais espaço na vida familiar e social, saindo de um profundo estado de anonimato.
O termo empregado para expressar a primeira – e muito importante – fase da vida
humana deriva do latim in-fari que significa “aquele não fala”. O silêncio, historicamente
imposto aos infantes, furtou-lhes o direito de serem vistos e respeitados como sujeitos
reais, pertencentes a uma realidade sócio-histórico-cultural e colocou a criança, por
séculos, à margem da história da humanidade.
23
Avançando alguns séculos, no ano de 1990, é aprovada no Brasil a Lei 8.069, que
dispõe sobre a proteção integral da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que considera a infância uma etapa da vida humana, cujas
características diferenciam-se das da fase adulta, refere-se à criança e ao adolescente como
“portadores de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da
proteção integral (...) assegurando-se-lhes (...) todas as oportunidades e facilidades, a fim
de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições
de liberdade e de dignidade” (Art. 3º). No que diz respeito à educação, a referida lei
acentua que esta deve possibilitar o desenvolvimento pleno da criança.
O ECA é, sem dúvida alguma, uma grande conquista para a sociedade brasileira,
não apenas no sentido de assegurar os direitos das crianças, mas, em especial por dar
visibilidade a esse público e contribuir para o início de mais uma importante etapa da
história da infância no país.
1.1 A educação infantil de zero a três anos
A educação infantil dividiu-se em duas modalidades de atendimento: a creche e a
pré-escola. Em ambos os casos, as instituições receberam ao longo de sua história
diferentes denominações; entretanto, aqui utilizaremos os termos creche e pré-escola
quando nos referirmos ao atendimento oferecido, conforme explicita a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional- LDBEN 9394/96 em seu artigo 30, em:
I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;
II - pré-escolas, para as crianças de quatro e cinco anos de idade.
Contudo, vale ressaltar, segundo Silva (2012), que os termos creche e pré-escola
definem-se não somente pela faixa etária do público que atendem, mas pela especificidade
do trabalho desenvolvido nessas instituições.
Criada na França, em 1844, a creche chegou ao Brasil, inicialmente como ideia,
ainda no período Imperial (KUHLMANN Jr, 2000.). A creche, que em francês significa
manjedoura, caracterizou-se em nosso país por atender crianças até três anos de idade,
oriundas das camadas populares e filhas de mães trabalhadoras, tendo como característica
o trabalho diário em período integral e a preocupação com a custódia e assistência
(alimentação, cuidados etc.). Já às pré-escolas competia a educação das crianças
(KISHIMOTO, 1986; SILVA, 2012).
24
Na década de 1920, o atendimento aos “menores necessitados” aconteceu
predominantemente em asilos e orfanatos, em regime de internato, pois, no Brasil, até
meados do século XIX, não havia nenhum tipo de atendimento especializado voltado para
crianças muito pequenas.
Segundo Oliveira (2011), era muito comum em algumas regiões o cuidado das
crianças órfãs ou abandonadas ser assumido por famílias de fazendeiros, enquanto em
zonas mais desenvolvidas e/ou urbanizadas, as crianças abandonadas pelas mães eram
recolhidas nas “rodas dos expostos3”.
A “roda” teve sua origem na Europa e chegou ao Brasil no início do século XVIII,
primeiro no estado do Rio de Janeiro e, mais tarde, foi instalada na Santa Casa de São
Paulo e também na Bahia. Os expostos, muitos deles desnutridos e enfermos, eram
recolhidos pelas freiras que providenciavam a internação4. As crianças muito pequenas, em
fase de amamentação eram entregues às criadeiras, mulheres de origem humilde a quem
era confiada sua guarda, alimentação e cuidados (KUHLMANN Jr., 2000; OLIVEIRA,
2011).
Com o fim da escravidão e com a migração para os grandes centros urbanos,
registrou-se um aumento expressivo no número de crianças abandonadas, concorrendo
para acentuar ainda mais as desigualdades em nosso país. Conforme explicação de Oliveira
(2011, p.92):
(...) a abolição da escravatura no Brasil, (...) concorreu para o aumento do
abandono de criança e para a busca de novas soluções para o problema da
infância (...): criação de creches, asilos e internatos (...) instituições (...)
destinadas a cuidar das crianças pobres.
Na tentativa de solucionar o problema surgiram iniciativas isoladas como a
construção de espaços voltados para o cuidado e proteção de crianças pequenas. Tais
soluções traziam em seu bojo um caráter médico, visto que a preocupação vigente era
combater o elevado índice de mortalidade infantil.
Em decorrência dessa preocupação com a saúde pública, foi criado em 1919 o
Departamento da Criança, precedido da fundação do Instituto de Proteção e Assistência à
Infância, em 1899.
3Conforme consta nos site do Museu Eng. Augusto Carlos Ferreira Velloso.
4Na roda dos expostos eram deixadas crianças não desejadas pelos pais, filhos de mães solteiras (algumas
pertencentes à alta sociedade) e de mulheres de “má conduta”. Além de filhos da pobreza, filhos de escravos
também eram expostos na roda (Ver: http://www.santacasasp.org.br; Didonet, 2005, pp. 11-12; Kuhlmann
Jr., 2006, p. 600).
25
O conceito de assistência nessa época previa um atendimento de baixa qualidade
para as crianças das camadas pobres. Conforme denunciam Rosemberg e Campos (1985, p.
05), “nem sempre se deu a devida importância à questão da qualidade dos serviços
prestados”; o assistencialismo, predominante nas intuições de atendimento à criança
pequena, por muito tempo foi considerado como “favor à população”.
Nesse contexto, a creche tinha como função combater a pobreza e a mortalidade
infantil, não havendo qualquer preocupação com a qualidade do atendimento.
As primeiras creches do final do século XIX e início do século XX eram
precárias e insuficientes de recursos: apresentavam má qualidade no atendimento
(...) e não havia legislação específica ou normas básicas de funcionamento e sim
dificuldades de instrumentos de toda ordem: material/ física/ humana (...)
(OLIVEIRA, 2006, p. 84).
As primeiras décadas do século XX são marcadas por intensas mudanças nas
relações sociais, políticas, econômicas e familiares, sobretudo devido ao processo
acelerado de urbanização das grandes cidades. A chegada da mulher no mercado de
trabalho é impulsionada pela expansão industrial e pela carência de mão-de-obra
masculina; com isso, a exigência por instituições para guarda e proteção das crianças
pequenas é cada vez maior. Entretanto, a insuficiência de creches e instituições gratuitas
obrigavam as mães trabalhadoras a deixar seus filhos em lares vicinais.
Os lares vicinais ou creches domiciliares/familiares passaram a ser alternativas
para as mulheres operárias. Seus filhos ficariam sob os cuidados das criadeiras ou mães
crecheiras, termo empregado às mulheres que se propunham a cuidar dos pequenos em
troca de uma remuneração irrisória.
Vasta bibliografia sobre a história da educação infantil brasileira apresenta
diferentes denominações para um mesmo modo de atendimento à infância: creche
domiciliar ou familiar ou, ainda, de emergência; lar vicinal, mães crecheiras,
nomenclaturas utilizadas para designar o atendimento de crianças realizado por mulheres
em suas próprias casas, em geral, residências extremamente humildes que nem “sempre
tinham condições de garantir às crianças um desenvolvimento adequado, visto que a casa
de muitas crecheiras não tinha água, luz e esgoto, nem suprimentos básicos para higiene e
saúde” (ROSEMBERG, CAMPOS, 1985, p. 78).
Vários autores, (Oliveira, 2011; Rosemberg e Campos, 1985 e Rosemberg, 1986)
afirmam que a creche domiciliar passou a ser vista pelos órgãos públicos como alternativa
possível para uma rápida expansão do atendimento aos pequenos. Tratava-se de um
26
“negócio” de baixo custo sustentado pelo discurso ideológico de “participação da
sociedade” e pela argumentação de que dispensaria investimentos, pois não haveria a
necessidade de construção de prédios para o atendimento das crianças; portanto,
economizar-se-ia com a contratação de pessoal, aquisição de material e manutenção dos
recursos etc. Argumentava-se, ainda, que os lares vicinais eram adequados, pois se tratava
de uma modalidade de atendimento “familiar”, no qual as crianças poderiam conviver com
outras de diferentes faixas etárias enquanto suas mães trabalhavam.
Nos anos 1920 e início da década de 1930, o movimento operário ganhou força.
Trabalhadores com o apoio de organizações sindicais reivindicavam, dentre outros direitos,
um local para atendimento integral das crianças menores de sete anos de idade, por meio
de equipamentos públicos (OLIVEIRA, 2011; ROSEMBERG, CAMPOS, 1985). No
entanto, os apelos dos trabalhadores
(...) eram fortemente combatidos pelas associações patronais (...). Alguns
empresários, no entanto, foram modificando sua política de repressão direta aos
sindicatos e concedendo certos benefícios sociais como forma de enfraquecer os movimentos operários, arrefecer suas aposições e controlar a vida dos
trabalhadores, dentro e fora da fabrica. Para atrair e reter a força de trabalho
fundaram vilas operárias, clubes esportivos e também algumas creches e escolas
maternais para os filhos de operários (...) iniciativas que forma sendo
timidamente seguidas por outros empresários (OLIVEIRA, 2011, p. 96).
Assim, creches e escolas maternais começaram a surgir lentamente em diferentes
cidades brasileiras. Os empregadores, visando maior obtenção de lucros, cediam
gradativamente às reivindicações do operariado, começavam a instalar creches e escolas
maternais onde os filhos de suas funcionárias permaneceriam durante a jornada de trabalho
das respectivas mães, acreditando-se que a proximidade entre a mãe e a criança causava
uma melhora considerável em seu rendimento profissional.
Na segunda década do século XX, o país enfrenta forte crise no sistema
econômico; nesse período também acontece o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à
Infância, no qual, de acordo com Oliveira (2011, p. 97), discutiram-se temas “como a
educação moral e higiênica (...) com ênfase no papel da mulher como cuidadora”.
Mas foi por volta de 1940 que ações governamentais nas áreas da saúde,
previdência e assistência se efetivaram. As creches, “mal necessário”, passam a ser
“planejadas como instituição de saúde, com rotinas de triagem, lactário, pessoal auxiliar de
enfermagem e preocupação com a higiene do ambiente físico” (OLIVEIRA, 2011, p.100).
27
No âmbito trabalhista, a CLT, aprovada pelo Decreto 5.452 de 1º de maio de 1943,
obriga o empregador a fornecer local apropriado, onde suas funcionárias tenham a guarda e
assistência dos filhos garantida durante sua jornada de trabalho (Artigo 389, § 1º). O artigo
396 também garante à mãe trabalhadora o direito de amamentar o filho até o sexto mês de
vida. Tais normas foram direcionadas, na época, às empresas nas quais eram empregadas,
no mínimo, trinta mulheres com idade entre dezesseis e quarenta anos.
Nessa época, entidades filantrópicas também passam a atender crianças oriundas
das camadas populares, priorizando a guarda, a alimentação e os cuidados. Várias foram
as asserções médico-assistencialistas nessa época, das quais destacam-se propostas de
proteção à infância, em geral marcadas pelo higienismo, filantropia e puericultura como
alternativas para combater a mortalidade infantil e resolver problemas de saúde pública
(OLIVEIRA, 2011). Na segunda metade do século XX,
(...) o incremento da industrialização e da urbanização no país propiciou novo
aumento na participação da mulher no mercado de trabalho. Creches e parques
infantis (...) passavam a ser cada vez mais procurados não só por operárias e empregadas domésticas, mas também por trabalhadoras do comércio e
funcionárias públicas (OLIVEIRA, 2011, p. 102).
A inserção das mulheres das camadas médias no mercado de trabalho contribuiu
para um aumento de creches e pré-escolas. Kuhlmann Jr. (2000, p.12) afirma que
“anteriormente não se cogitava de que mulheres de outra condição social pudessem querer
trabalhar” após terem se tornado mães e, caso isso acontecesse, a solução era ficar restrita
ao lar.
Os trabalhos de educação sanitária intensificam-se durante a década de 1950; vários
programas e campanhas visavam combater a desnutrição e fortalecer o conceito de
assistência à infância. Em 1952 são criados os Clubes de Mães5, que visavam à valorização
do trabalho doméstico e seu papel na educação das crianças (KRAMER, 2011).
Nos anos 1970, várias teorias importadas da Europa e EUA defendiam que as
crianças pobres sofriam de privação cultural, influenciando também as tomadas de decisão
para a implementação de políticas para a educação infantil brasileira. Propostas de
5 Azevedo e Barletta (2011) aprofundam a discussão sobre o Clube de Mães e ressaltam que essa organização
de mulheres surgiu, inicialmente, como uma forma de capacitar a mão-de-obra para trabalho doméstico.
Esteve ligada à Igreja Católica e centrava suas ações na oferta de serviços religiosos e na organização de
ações comunitárias. (p. 135).
Disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index. php/cedem/article/viewFile/1647/1400
28
trabalho para a infância foram elaboradas sob uma ótica de educação compensatória e de
cunho assistencial, sobretudo às ditas crianças carentes.
Segundo Kramer (2011, p. 25), o conceito de educação compensatória era
enfatizado “como um antídoto para a privação cultural”. Para a autora, a abordagem da
privação cultural está apoiada na falsa crença de que
(...) as crianças das classes populares (...) apresentam “desvantagens
‘socioculturais”, ou seja, carências de ordem social. Tais desvantagens são
perturbações, ora de ordem intelectual ou linguística, ora de ordem afetiva: em
ambos os casos, as crianças apresentam “insuficiências” que é necessário
compensar através de métodos pedagógicos adequados, se quer diminuir a
diferença entre essas crianças “desfavoráveis” e as demais, na área do desempenho escolar.
Sob essa perspectiva foram elaboradas propostas de trabalho com ênfase na
estimulação precoce e preparo para a iniciação escolar. No entanto, nas instituições que
atendiam a população pauperizada perduravam práticas pautadas por uma visão
assistencialista.
A Lei nº 5692/71(Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDBEN)
contribuiu para uma mudança de olhar em relação à educação infantil. Ao valorizar o
atendimento das crianças pequenas, impulsionou a expansão de creches em todo país. Essa
lei estabelecia que os sistemas de ensino incumbir-se-iam da educação das crianças
menores de sete anos em escolas maternais, jardins-de-infância e instituições equivalentes.
Também na década de 1970, a Legião Brasileira de Assistência e a Fundação
Mobral implantaram projetos cuja justificativa era a de combater as desigualdades e a
promoção de práticas educativas atreladas ao combate à desnutrição, formação de hábitos,
habilidades e atitudes. Tais iniciativas contribuíram para reforçar, no imaginário da época,
a função da creche como equipamento social e assistencial à infância, sobretudo às
crianças das classes trabalhadoras.
No que tange à educação assistencialista, Kuhlmann Jr. (2000, pp. 166-167) afirma
que o pensamento vigente era de creche como:
(...) um lugar de guarda, de assistência e não de educação, sendo assim, a
pedagogia dessas instituições se pautava numa pedagogia da submissão, uma
educação assistencialista (...) marcada (...) por oferecer atendimento como dádiva, como favor (...) que parte de uma concepção preconceituosa da pobreza e
que, por meio de um atendimento de baixa qualidade, pretende preparar os
atendidos para permanecer no lugar social a que estariam destinados.
Em concordância, Kramer (2011) destaca cinco conjuntos de fatores que
contribuíram para a expansão da pré-escola no Brasil, dentre eles os referentes à assistência
29
social, que tinha como característica a baixa qualidade no atendimento (KRAMER, 2011;
KUHLMANN Jr.2000; OLIVEIRA, 2011).
Segundo Oliveira (2011, p. 115), discussões relacionadas à questão das creches
tomam espaço no cenário social e político, no ano de 1986, devido à elaboração do Plano
Nacional de Desenvolvimento. Debates sobre a função da creche, o trabalho a ser
desenvolvido pelos educadores e a quem se destinaria esse equipamento buscavam romper
com as concepções construídas e sustentadas até então.
(...) começava a ser admitida a ideia de que a creche não dizia respeito apenas à
mulher e à família. (...) Retomou-se a discussão sobre a função da creche (...) e
de novas programações pedagógicas que buscavam romper com concepções
meramente assistencialistas e/ou compensatórias, propondo-lhes uma função
pedagógica que enfatizasse o desenvolvimento linguístico e cognitivo das
crianças (OLIVEIRA, 2011, p.115).
Em 1988, a Constituição Federal estabeleceu a educação infantil como um dever do
Estado e direito da criança e não apenas da mãe trabalhadora. Destacou o direito à
educação visando o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente assegurando
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, o direito de serem
atendidos em instituições educacionais desde o nascimento e de serem respeitados por seus
educadores.
A infância passa a ser reconhecida desde então como uma fase da vida com
características peculiares e um período essencial do desenvolvimento do ser humano. Foi a
partir daí que a creche, segundo Montenegro (2005), ganhou legitimidade oficial.
A Lei 9394/96 reafirma a educação infantil como etapa inicial da educação básica
e direito da criança. O texto oficial prima pela garantia de atendimento educacional em
creches à criança, desde seu nascimento até os três anos de idade, prevê medidas referentes
às condições de funcionamento das unidades de educação infantil e ressalta, ainda, a
valorização dos profissionais da educação (OLIVEIRA, 2011).
Ainda na década de 1990 é criado o Estatuto da Criança e do Adolescente. O
documento ressalta que a criança possui “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana”. No que diz respeito à educação, acentua que esta deve possibilitar o
desenvolvimento pleno da criança.
Nota-se, sobretudo, nas últimas décadas, um esforço contínuo para a
implementação de iniciativas que colaborem para que as práticas educativas nas unidades
de educação infantil brasileiras possam se consolidar.
30
1.2 Legislação Atual e Políticas Educacionais.
A educação infantil no Brasil tem sido foco das políticas educacionais e de debates
acadêmicos no que tange à universalização. Nesse sentido, a discussão sobre políticas
públicas, embora não seja o escopo central deste trabalho, é necessária para
compreendermos a importância de ações afirmativas na busca pela melhoria da qualidade
da educação em nosso país e na efetivação dos direitos das crianças, das famílias e dos
educadores. Acreditamos que as políticas públicas podem ajudar a superar ou reforçar6 as
desigualdades presentes nas diferentes esferas da sociedade.
Inspirado na LDBEN em vigor, o Plano Nacional de Educação, elaborado em 2001 e
com validade para dez anos, visava ampliar o atendimento de crianças na faixa etária de
zero a três anos em instituições educacionais. Convém salientar que esta é uma meta ainda
perseguida nos dias atuais. O gráfico a seguir ajuda a entender o porquê disso.
Gráfico 1- Taxa de frequência bruta a estabelecimento de ensino da população residente, segundo os
grupos de idade. Brasil- 2002/2012
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2002/2012.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012
(PNAD), a taxa de frequência bruta das crianças em idade de creche subiu
aproximadamente 10%, considerando o período analisado. Em relação à população com
6 No capítulo 4 trazemos exemplos de reforçamento das desigualdades no âmbito da educação infantil, fruto
de uma política segregacionista que concebe a trabalhadora da creche como não pertencente à classe de
trabalhadores da pré-escola, todos professores de educação infantil.
31
idade para cursar os ensinos fundamental e médio, houve um pequeno aumento como
podemos verificar no gráfico acima.
A taxa de frequência das crianças com idade entre quatro e cinco anos foi a que
mais cresceu nos últimos anos, conforme os dados da pesquisa, sendo superior à somatória
dos demais percentuais obtidos no período analisado.
Corroborando os dados apresentados no gráfico, em 2010, o Censo Escolar7
apontava para um aumento considerável no número de crianças matriculadas na educação
infantil. Dois anos depois, o MEC divulgou uma nota na qual afirma que o número de
crianças atendidas em creches no país subiu substancialmente, tendo o estado de São Paulo
o segundo maior percentual de crianças atendidas em creches8.
Nosso desejo é que esse aumento do contingente de crianças na educação infantil
seja acompanhado da garantia da qualidade dos serviços destinados a elas nesses espaços.
Contudo,
(...) passados vinte e quatro anos da aprovação da Constituição de 1998 e dezesseis
anos da LDB, ainda há uma grande distância entre o que determina a legislação e o
alcance das políticas públicas implementadas no país para efetivar o direito à
educação infantil (CARDOSO, 2014, p.88).
Apesar do avanço, a universalização do atendimento escolar e a ampliação da oferta
de creches para atender a 50% da população de até três anos ainda são desafios a serem
superados.
Outra meta explicitada nos Planos decenais de 2001 e de 2011 diz respeito à
valorização e formação dos profissionais da carreira do magistério e carece de especial
atenção.
1.2.1 A Formação das professoras de creche
Desde a década de 1980 o debate em torno do profissional da pequena infância vem
se fortalecendo; com isso, estudos sobre a qualidade da educação infantil brasileira têm
ressaltado as especificidades do trabalho desenvolvido junto a crianças pequenas no âmbito
dessas instituições.
7 Fonte: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2013/04/numero-de-creches-e-pre-escolas-sera-
ampliado-ate-2014. Acesso em 23/07/2014. 8Fonte:http://www.educacao.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17753:numero-de-
criancas-em-creches-cresce-150-em-uma-decada&catid=207&Itemid=86. Acesso em 25/07/2014.
32
Mesmo sendo a creche uma instituição antiga em nosso país (DIDONET, 2001), a
preocupação com a formação de suas profissionais é algo bastante recente. No município
de São Paulo, durante a primeira metade da década de 1980, iniciou-se um importante
debate sobre a regularização dos cargos públicos e criação de carreiras na esfera municipal,
que culminou com a aprovação da Lei 10.430 de 1988.
No caso das pajens, termo utilizado para denominar as profissionais de creche,
ainda vinculadas à Secretaria de Assistência Social (SAS), a preocupação era ressaltar o
caráter educativo de sua função; entretanto, o fato de não serem concebidas como
professoras, mas “educadoras-natas”, implicou atribuir ao cargo “a responsabilidade pelo
desenvolvimento infantil, mas sem o caráter educativo que exigiria uma formação
acadêmica específica” (CAPESTRANI, 2007, p. 63).
O termo pajem historicamente esteve associado ao cuidado e traz traços de uma
sociedade em que se estabeleceu uma dicotomia entre cuidar e educar e que deixou marcas
na sociedade como um todo e apresenta resquícios na cultura, na prática escolar infantil e
no processo de profissionalização do professor desse nível de ensino.
Com a inclusão da educação infantil ao sistema de ensino, o caráter educativo das
creches é ressaltado e a exigência por qualificação profissional passa a ser cada vez maior.
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível
superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e
institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o
exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do
ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (LDB-
Art. 62º).
A LDB ainda instituiu, em seu artigo 87º, “A década da Educação”, que
compreendia o período de 1997 a 2007. No parágrafo 4º afirma-se que “somente serão
admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em
serviço”. Estados e Municípios tiveram de se organizar para garantir a formação de seus
educadores visto o que determinava a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional.
Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação,
assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do
magistério público: I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas
e títulos; II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com
licenciamento periódico remunerado para esse fim; III – piso salarial
profissional; IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na
avaliação do desempenho; V – período reservado a estudos, planejamento e
avaliação, incluído na carga de trabalho; VI – condições adequadas de trabalho
(LDB, artigo 67).
33
Em cumprimento à Lei, foi criado no município de São Paulo o Programa ADI
Magistério, que tinha como meta formar as profissionais de creche. A parceria da
Secretaria Municipal de Educação com a Fundação Vanzolini permitiu a cerca de 3.6009
ex-pajens a formação em nível médio na modalidade normal. Não obstante, questões de
cunho discriminatório perduravam. De igual maneira, a ideia de polarização da educação
infantil se mantinha (SENE, 2010).
A iniciativa do governo paulistano possibilitou a mudança de cargo, elevação
salarial e integração ao quadro do magistério municipal e contribuiu para uma profunda
mudança em relação às formas de olhar e de conduzir a educação infantil em nosso país.
Vale dizer que a última importante modificação da nomenclatura dos cargos das
professoras atuantes em creches ocorreu quando da transformação dos cargos de
Professora de Desenvolvimento Infantil (PDI) para Professora de Educação Infantil (PEI).
Tantas modificações na denominação de cargos envolvendo as profissionais de educação
infantil de zero a três anos podem ser justificadas pela Lei 11.229/92, que tem como
princípios o aprimoramento da qualidade do ensino público municipal e a valorização dos
profissionais do ensino (Artigo 1º, incisos II e III).
Os princípios dos quais trata a referida lei deveriam ser assegurados através de
programas de formação permanente, condições dignas de trabalho e perspectiva de
progressão na carreira (Lei Municipal 11.229/92; Artigo 4º, incisos I, II e III).
O que causa inquietação é pensar como essa mudança de “status” da educação
infantil refletiu, de fato, na vida profissional e pessoal das inúmeras mulheres-mães, e
agora Professoras de Educação Infantil.
Observando a tabela a seguir, nota-se que o número de funções docentes nas
creches brasileiras mais que quadruplicou nos últimos quinze anos. Todavia, o número de
professores cuja formação compreende apenas o ensino médio (normal e/ou magistério)
beira a 40% do total em todo o território nacional.
9 Número de profissionais que concluíram sua formação. Fonte: Fundação Vanzolini.
Disponível em: http://www.vanzolini.org.br/conteudo-76.asp?cod_menu=768&cod_site=76&id_menu=785
34
Elaborado pela autora a partir de dados extraídos da Sinopse Estatística da Educação Básica, disponível para consulta em: http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-sinopse. *Compreende nível médio na modalidade normal e magistério.
O quadro apresentado também indica que, em 2001, pouco mais de 68,5mil
professores trabalhavam em creches públicas e privadas no território nacional, dos quais
apenas 12% haviam concluído o nível superior (MEC/INEP/SEEC, 2001). Nos anos
seguintes observou-se crescente aumento no número de profissionais que atingiram
formação nos níveis fundamental, médio e superior, bem como uma gradativa queda no
número de profissionais que possuíam apenas o ensino fundamental. Os números no
quadro expressam a necessidade de continuar fomentando programas de formação contínua
e qualificação profissional para as professoras de educação infantil que, a nosso ver, se
caracteriza como um dos pilares para a garantia da qualidade do atendimento nessa etapa
da educação básica.
Como vimos, apenas recentemente as políticas educacionais passaram a enfatizar a
importância de formar profissionais para atuar nesse nível da educação básica. Um
exemplo disso está no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI),
no qual se afirma que a garantia de um trabalho de qualidade a ser desenvolvido junto às
crianças depende, em grande parte, da formação das professoras de educação infantil
(BRASIL, 1998).
Outro exemplo está no documento publicado pelo MEC em 1994, denominado Por
uma Política de Formação do Professor de Educação Infantil. Inspirado nos debates e
estudos ocorridos não só no Brasil como também na Europa e Estados Unidos, atribuía
grande importância à capacitação profissional das educadoras da pequena infância e
criticava “a ideia de que bastava apenas ser mulher e gostar de criança para ser educador
infantil” (ROSEMBERG; CAMPOS, 1994, p. 52).
A política preconizava o caráter profissional do trabalho desenvolvido no âmbito
institucional e enfatizava que a educação infantil deveria cumprir com as funções de
educar e cuidar, de maneira complementar e indissociável (BRASIL, 1994).
Total de funções docentes no
território nacional.
Nível de escolaridade dos professores de creche.
Ano Fundamental Médio* Superior
1999 52.378 8.223 33.530 4.705
2001 68.526 7.990 47.137 8.201
2007 95.643 2.896 52.472 40.255
2009 127.657 2.508 66.195 58.954
2013 211.694 1.738 84.550 125.406
35
A preocupação com a formação dessas profissionais também pode ser evidenciada
nos estudos de Rosemberg (2002); segundo a autora, a formação possibilitaria romper com
a imagem duplicada que se tem de profissional da educação infantil.
Em virtude de a creche ser alocada no sistema educacional e, em decorrência das
exigências legais, esse “novo” espaço educativo começa a ganhar mais visibilidade no
meio acadêmico. Dessa vez, a preocupação com a qualidade dos cursos e programas de
formação de professores para atuar na educação infantil e séries iniciais do ensino
fundamental é alvo dos estudos de Rosemberg et al (1992); Rosemberg (2002), Kishimoto
(2008) e Maciel e Shigunov Neto (2011).
Esses estudos revelam uma baixa qualidade dos cursos oferecidos em grande parte das
instituições de ensino superior (SILVA, 2013). Além disso, evidenciou-se uma presença
reduzida nos currículos de temas voltados para a educação infantil e “uma ausência do
tratamento de práticas pertinentes ao trabalho com crianças pequenas, em suas diferentes
fases do desenvolvimento” (GATTI et al, 2008, s/p).
Kishimoto (2008) também traz importantes contribuições sobre essa problemática.
Ao destacar que a forma como o curso de Pedagogia é organizado precisa ser repensada; a
autora adverte para a necessidade de “pensar em outra modalidade de formação que
respeite a organização da área da infância, uma pedagogia da infância com novos
pressupostos e com formas alternativas de organização curricular” (KISHIMOTO, 2008. p.
113).
O trabalho na educação infantil carrega consigo muita responsabilidade, por isso
precisa ser valorizado no momento de formação, na instituição onde é desenvolvido e na
comunidade. Professoras bem formadas são fundamentais para o alcance da qualidade do
trabalho e do atendimento nas instituições de educação infantil. Uma boa formação,
contudo, não acontece da noite para o dia: “Ela é um processo contínuo que se inicia antes
do exercício profissional das atividades pedagógicas, prossegue ao longo da carreira e
permeia toda a prática profissional, numa perspectiva de formação permanente”
(MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2011, p. 72).
Almejando políticas que questionem e rompam com as raízes ideológicas e
discriminatórias que historicamente alimentam desigualdades no âmbito da educação
infantil, insistimos que os cursos de formação de professores para essa etapa da educação
básica devam propiciar a aquisição de conhecimentos teórico-metodológicos e práticos que
36
subsidiem a ação pedagógica sem desconsiderar as etapas do desenvolvimento infantil e a
unidade entre educar, cuidar e brincar.
1.2.2 Educar, cuidar e brincar
Ao longo das duas últimas décadas, a presença do binômio educar e cuidar no
universo da educação infantil tem ganhado força e legitimidade (BRASIL, 2006). Se no
passado as práticas institucionalizadas reforçavam uma ruptura entre educação e cuidado,
criando estereótipos como, por exemplo, a creche como órgão de assistência e a pré-escola
como uma etapa preparatória para o ensino fundamental, atualmente compreende-se que o
“ato de cuidar ultrapassa processos ligados à proteção e ao atendimento das necessidades
físicas de alimentação, repouso, higiene, conforto e prevenção da dor” (BRASIL, 1999, p.
68).
O termo cuidar, usualmente, refere-se a zelar pelo bem-estar ou pela saúde de
outrem; entretanto, essa concepção, no âmbito da escola ganha outros significados,
podendo ser compreendida sob diferentes enfoques.
Conforme consta no Projeto Práticas Cotidianas na Educação Infantil: bases
para uma reflexão sobre as orientações curriculares, desenvolvido pelo Ministério da
Educação em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1999, cuidar
exige:
(...) colocar-se em escuta às necessidades, aos desejos e inquietações, supõe
encorajar e conter ações no coletivo solicita apoiar a criança em seus devaneios e desafios, requer interpretação do sentido singular de suas conquistas no grupo,
implica também aceitar a lógica das crianças em suas opções e tentativas de
explorar movimentos no mundo (BRASIL, 2009, p. 68).
A Indissociabilidade entre educação e cuidado se faz necessário para:
(...) afirmar na educação infantil a dimensão de defesa dos direitos das crianças,
não somente aqueles vinculados à proteção da vida, à participação social,
cultural e política, mas também aos direitos universais de aprender a sonhar, a
duvidar, a pensar, a fingir, a não saber, a silenciar, a rir e a movimentar-se. O ato
de educar nega propostas educacionais que optam por estabelecer currículos prontos e estereotipados, visando apenas resultados acadêmicos que dificilmente
conseguem atender a especificidade dos bebês e das crianças bem pequenas
como sujeitos sociais, históricos e culturais, que têm direito à educação e ao
bem-estar (BRASIL, 2009, p. 68).
O RCNEI traz em seu bojo uma concepção de práticas educativas integradoras
voltadas para a pequena infância, apontando para a necessidade de se incorporar nas
“instituições de educação infantil as funções de educar e cuidar”, destacando também a
37
importância de não diferenciar ou hierarquizar “os profissionais e instituições que atuam
com as crianças pequenas e/ou aqueles que trabalham com as maiores” (BRASIL, 1998, p.
23).
Durante toda a trajetória de institucionalização da creche em nosso país, muitas
concepções sobre a criança e a função dos equipamentos destinados a atendê-las foram se
modificando em decorrência da luta travada pelos movimentos sociais, por profissionais da
área e por diversas entidades defensoras dos direitos das crianças, além das transformações
advindas dos conhecimentos produzidos e acumulados na área da educação.
Essas mudanças influenciaram fortemente a legislação brasileira; sobre esse
aspecto podemos citar a Resolução nº 05 de 2009, que em seu artigo 5º traz a seguinte
redação:
A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches
e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não
domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados
que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em
jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do
sistema de ensino e submetidos a controle social.
O referido documento, ao destacar que a educação infantil é um espaço
institucional não doméstico, rompe com o estereótipo historicamente atribuído à creche
como “extensão do lar”, valorizando, assim, as práticas pedagógicas, dando maior
profissionalidade ao segmento e às suas profissionais.
No tocante ao brincar, estudos como os realizados por Piaget, Vigotski, Leontiev,
Wallon e outros teóricos ligados à Antropologia, Psicologia e Linguística enfatizam que o
brincar tem um importante papel no desenvolvimento infantil, além de promover processos
de descoberta de si, do outro e do mundo.
O Manual de Orientação Pedagógica, criado pelo MEC com apoio da Unicef,
considera que “ as interações e brincadeiras são eixos fundamentais para se educar com
qualidade”(BRASIL, 2012, p.11). Atrelamos a esses eixos a formação inicial e contínua
dos professores, de modo que possam construir um conhecimento pedagógico
especializado, dotando-os, como diria Imbernón (2000, p. 66), “de uma bagagem sólida
nos âmbitos científico, cultural, contextual, psicopedagógico e pessoal”.
De acordo com o guia de Orientações Curriculares e Expectativa de
Aprendizagem para a Educação Infantil, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação
de São Paulo, o brincar é uma atividade cultural
38
(...) que possibilita que as crianças se constituam como sujeitos em um ambiente
em contínua mudança, onde ocorre constantemente recriação de significados.
(...) Ao brincar, produzem ações em contextos socio-histórico-culturais que
asseguram não só um conhecimento, mas a segurança de pertencer a um grupo e
partilhar da identidade que o mesmo confere a seus membros (SÃO PAULO,
2007, pp. 54-55).
Em concordância com Vigotski (1933/1966/2007), acreditamos que é incorreto
conceber o brincar como uma atividade sem propósito. Por isso, ao propor uma situação
de jogo ou brincadeira, é necessário que objetivos tenham sido definidos pelo professor. O
momento da brincadeira deve, portanto, ser programado de acordo com os interesses e
necessidades das crianças e considerando o estágio de desenvolvimento em que se
encontram.
O papel do educador como mediador das descobertas e aprendizagens das
crianças também é abordado no Manual de Brincadeiras publicado pela Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo em 2006. O texto menciona a importância de
observar as brincadeiras infantis e as formas de brincar das crianças, apontando para a
necessidade de resgatar e valorizar as brincadeiras da cultura infantil e enfatiza que no
contexto da educação infantil é imprescindível que os educadores compreendam a
importância da brincadeira, integrando-a ao educar e ao cuidar durante todo o tempo de
permanência da criança na instituição.
1.3 Organização e funcionamento da educação infantil de zero a três anos
Essa temática é contemplada pelo documento elaborado por Campos e Rosemberg
(2009, p. 07) para o Ministério da Educação, que trata dos critérios para o atendimento em
creches, organizado em duas partes. Na primeira, apresentam–se “os critérios relativos à
organização e ao funcionamento interno das creches” sobre os quais discorremos a seguir.
Na maior parte das creches brasileiras, o atendimento das crianças ocorre
diariamente em período integral. Para um atendimento de qualidade é necessário criar
condições que priorizem a criança e a respeite como sujeito de direitos que vive uma fase
peculiar de desenvolvimento (CAMPOS; ROSEMBERG, 2009).
Uma das maneiras de se evitar que os direitos fundamentais das crianças sejam
feridos é propor uma situação de rotina que compreenda planejamento e flexibilidade das
39
ações e práticas didáticas, respeitando-se sempre as necessidades de cuidados específicos
dessa faixa etária.
1.3.1 Organização dos agrupamentos na creche
Segundo consta no RCNEI, a rotina da creche representa “a estrutura sobre a qual
será organizado o tempo didático, ou seja, o tempo de trabalho educativo realizado com as
crianças”, por isso, deve contemplar “os cuidados, as brincadeiras e as situações de
aprendizagens orientadas”, (BRASIL, 1998, p. 54), zelando pela qualidade do atendimento
prestado à pequena infância.
Contudo, Bassedas, Hugut & Solé (1999), ao analisarem a quantidade de crianças
por grupo, consideraram-na excessiva para as educadoras. Visto que nos grupos de
crianças de até um ano (berçário I), cada profissional é responsável pela educação e
cuidado de sete bebês. Crianças com idades entre um e dois anos, formam um grupo de dez
crianças para uma educadora. O número aumenta conforme a idade das crianças;
entretanto, a quantidade de adultos se mantém. Na faixa etária de 2 a 3 anos, 18 crianças
“torna-se um número excessivo para a educadora”, afirmam (p. 98).
Consideradas as peculiaridades e características próprias de cada faixa etária, a
organização dos espaços educativos deve contemplar a necessidade e o direito da criança a
um ambiente aconchegante, seguro e estimulante, no qual ela se sinta motivada a interagir,
onde possa se sentir protegida e expressar seus sentimentos (CAMPOS; ROSEMBERG,
2009).
No que diz respeito à sala de aula, o Ministério da Educação estabelece como
critérios para o atendimento de qualidade nas creches:
A arrumação com capricho e criatividade dos lugares onde as crianças passam o
dia, incluindo-se a observação das salas se são claras, limpas e ventiladas.
A organização de lugares agradáveis nos quais as crianças possam se recostar e
desenvolver atividades calmas; além de lugares adequados para seu descanso e
sono (CAMPOS; ROSEMBERG, 2009, p. 17).
A organização dos espaços na educação infantil de zero a três anos deve primar
pelo respeito às diferentes necessidades dos pequenos e precisa estar de acordo com a
proposição de diferentes atividades. Nesse sentido, Zabalza (1998, p. 50) afirma que o
40
“espaço acaba tornando-se uma condição básica para poder levar adiante muitos dos outros
aspectos-chave” de uma educação de qualidade.
Em concordância, Forneiro (1998) afirma que a organização do espaço permite que
o mesmo se torne um ambiente rico e estimulante para as aprendizagens infantis.
Na sua consideração educativa, o espaço é um acúmulo de recursos de
aprendizagem e desenvolvimento pessoal. Justamente por isso é tão importante a
organização dos espaços de forma tal que constituam um ambiente rico e
estimulante de aprendizagem (FONEIRO, 1998, p. 241).
Vale ressaltar que, no âmbito institucional, não é a quantidade ou tamanho dos
espaços que caracterizam a qualidade do trabalho desenvolvido diariamente junto às
crianças, mas as possibilidades que esses espaços dão a elas: possibilidades de interação de
autoconhecimento, ricos momentos de aprendizagem, de trocas afetivas e descobertas.
1.3.2 Funcionamento
As normas de funcionamento dos centros de educação infantil municipais estão
apoiadas nas Portarias nº5152, de 19/10/07; 4022, de 23/06/03, e na Deliberação do CME
01/99. No entanto, anualmente são publicadas portarias que dispõem sobre a organização e
os critérios de atendimento nas unidades de educação infantil de zero a três anos, tendo em
vista a demanda por vaga. A Portaria nº 5152/07 ainda trata da titularização das
profissionais de creche e ressalta que as mesmas devem ter a formação mínima prevista na
Lei de Diretrizes e Bases em vigor, a saber, a oferecida em nível médio na modalidade
normal.
A LDB traz em seu título V, Art. 8º, parágrafo 2º, que os sistemas de ensino
brasileiros têm liberdade de organização. Desse modo, e com base nos dispostos legais, o
atendimento em creches públicas tem sua “duração igual ou superior a sete horas diárias,
compreendendo o tempo total que a criança permanece na instituição” (BRASIL, 2010, p.
15).
Percebe-se, portanto, que a legislação contempla a educação da criança de zero a
três anos na perspectiva de uma educação integral, com vistas a possibilitar seu pleno
desenvolvimento, considerando seus múltiplos aspectos (BRASIL, 1994; 1998; 2009),
incluindo a formação dos educadores para atuar especificamente com crianças dessa faixa
etária. Contudo, observada a extensão do território nacional e as diferenças sociais e
41
econômicas, ainda há um longo caminho a ser percorrido para garantir um atendimento de
qualidade em todas as instituições de educação infantil brasileiras.
42
CAPÍTULO 2. REFERENCIAL TEÓRICO
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo (...)
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
Mia Couto
2.1 Identidade
Este capítulo tem como objetivo discutir especificamente a abordagem teórica
acerca da identidade, adotada nesta pesquisa, tendo por base a elaboração teórica de
Ciampa (2005). Segundo Lima (2010, p. 169), pesquisar identidade é buscar compreendê-
la em toda sua abrangência e complexidade.
Sabemos que nenhuma identidade se constitui isoladamente, tampouco se trata de
algo imutável; por isso, quando se objetiva desvendar identidades é fundamental que
consideremos a realidade social e profissional e a trajetória de cada indivíduo (ALFONSI,
2013). O conceito de identidade aqui adotado, o de Ciampa (2005), é compreendido como
processo constante de metamorfose.
A escolha por esse teórico e não outro se justifica pelo fato de considerarmos
Antonio da Costa Ciampa um dos pioneiros na construção de uma psicologia social crítica.
Além disso, Lima (2010, pp. 137-138) afirma que “Ciampa conseguiu propor uma teoria
de identidade que espelha o processo de metamorfose de nossa sociedade e as dificuldades
de emancipação”.
Em A Estória do Severino e a História da Severina, Ciampa assumiu uma
concepção de identidade que rompia com as teorias naturalizantes importadas e utilizadas
no Brasil, que sustentavam uma ideia de identidade como algo dado.
Para o autor, a identidade não é natural, é um processo dinâmico, de constante
metamorfose. O pensamento de Ciampa subverte as concepções teóricas predominantes até
43
o final da década de 1970, superando a ideia de “identidade pessoal” em defesa de uma
identidade constitutivamente social (LIMA, 2010).
Em sua tese de doutorado, Ciampa prevê uma articulação entre unidades de
contrários. Lima (2010, p. 141) confirma nossa proposição ao afirmar que “Ciampa propõe
que a identidade é a articulação tanto entre diferença e igualdade (ou semelhança), como
objetividade e subjetividade”. Sem essa unidade, acreditamos que seria impossível falar de
identidade como processo constante de metamorfose. Para explicar como esse processo
ocorre, Ciampa recorre à dramaturgia: “Metodologicamente, isso implica defender que a
identidade passa a ser vista, expressa empiricamente, por meio de personagens, e que é a
articulação dessas personagens que vai construir a identidade”, esclarece Lima (2010, p.
144).
Nas palavras de Ciampa (2005, p. 205), “podemos dizer que as personagens são
momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um
movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão”. Compreende-se, desse modo,
que não existe identidade fixa, imutável ou desligada das condições históricas, sociais e
materiais às quais o individuo está sujeito.
Em concordância, Oliveira (2006 et. al, p. 550) afirma não ser possível
compreender o conceito de identidade isolado das identidades de “gênero, familiares,
religiosas, raciais, de classe, que são carregadas de contradições, cujas marcas
socioistóricas aparecem nos relatos que as pessoas fazem de si”.
Falar de identidade é considerar o ontem, o hoje e o porvir, pois “ficar só no ontem
é tão absurdo quanto ignorá-lo. O mesmo vale para o hoje e o amanhã” (CIAMPA, 2005,
p. 207). É nesse prisma que esta pesquisa se baseia.
Buscando compreender como vão se constituindo as identidades profissionais das
trabalhadoras da educação infantil, colocamo-nos na condição de ouvintes para captar suas
histórias de vida. Os relatos que as profissionais faziam de si nos revelavam diferentes
personagens encarnadas por elas. Essas personagens, segundo Pacheco e Ciampa (2006),
vão se constituindo mutuamente, de modo que:
(...) o desenvolvimento da identidade resulta da interação das personagens encarnadas pelo indivíduo. Muitas são as personagens que aparecem na vida das
pessoas, sendo que a transformação do sujeito advinda deste movimento de
morte e vida, em que uma personagem é abandonada e outra surge (...) é que
permite a concretização da identidade como metamorfose em busca de
emancipação (PACHECO; CIAMPA, 2006, pp. 164-165).
44
A citação acima nos ajuda a concluir que é impossível ao homem viver sem
personagens, pois a identidade humana jamais poderá ser representada em sua totalidade
(CIAMPA; 2005; 2012).
Estudando Ciampa, compreendemos que a identidade é a expressão de várias
personagens que se articulam dialeticamente e, por conseguinte, revelam o Eu do
indivíduo, pois:
(...) cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência
concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realiza pelo desenvolvimento
dessas determinações. Em cada momento de minha existência, embora eu seja
uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das
múltiplas determinações a que estou sujeito (CIAMPA, 2012, p. 67).
Dessa maneira, entendemos o indivíduo como um portador de múltiplos papéis que
ora coexistem, ora se alternam e dialeticamente representam o sujeito em todas as suas
determinações. Para Lima (2010, p. 145), essa ideia de personagem proposta por Ciampa
explicita “que o papel é uma atividade previamente padronizada, uma tentativa de controle,
administração e reprodução da identidade pressuposta”.
Explicando o que significa identidade pressuposta, Pacheco e Ciampa (2006, p.
164) salientam:
Pressuposições de identidade sempre afetam a todos. Mesmo antes do nascimento de um filho, é possível que os futuros pais já tenham expectativas
que irão interferir significativamente no desenvolvimento e formação da criança
que ainda não nasceu. Ou seja, já nascemos com uma identidade pressuposta,
nem que seja a de que ‘meu filho vai ser o que ele quiser, não o que eu quero’.
Contudo é importante lembrar que há outras pressuposições, além das
expectativas dos outros significativos (como é o caso dos pais), que constituem
uma complexa rede de relações intersubjetivas que organiza a sociedade como
um todo, envolvendo as relações de classe, social, trabalho, gênero, religião,
etnia, faixa etária etc.
Ainda segundo esses autores, quanto maior o conformismo com as convenções
sociais, mais as identidades pressupostas serão repostas, consolidando uma tradição que
torna natural o que é social e consequentemente histórico. Com isso, a identidade pode
parecer estática ou inalterada, contudo, isto é só na aparência. Ela está sendo transformada
à medida que, através de suas ações, o sujeito repõe aquilo que a sociedade põe como
certo, isto é, aquilo que as normas sociais e o pensamento ideológico dominante
estabelecem como mais adequado (PACHECO; CIAMPA, 2006). É nesse processo que o
movimento de mesmice, empregado por Ciampa (2005; 2012), se origina.
Lima (2010, p. 149), a partir das proposições de Ciampa, explica que “o movimento
de mesmice é um fenômeno decorrente da reposição da identidade que pode se dar como
45
consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à repetição”. A mesmice é
dada como natural e não como uma reposição de uma identidade que uma vez foi posta.
Nesse processo, a identidade perde seu caráter de historicidade e se aproxima mais da
noção de “mito”, que prescreve as condutas adequadas, reproduzindo o social sem
questionamentos por parte do sujeito (CIAMPA, 2005; PACHECO; CIAMPA, 2006).
Nessa perspectiva, a metamorfose, que nesses termos se dá por reposição, pode ser julgada
como negativa, pois o que de fato se impede é a emancipação (PACHECO; CIAMPA,
2006, p. 164).
Entendemos por emancipação a possibilidade que o indivíduo tem de um agir mais
livre e criativo para alcançar seus objetivos e realizar seus desejos (PACHECO; CIAMPA,
2006). Emancipar-se é transformar-se em outro “outro” sendo si próprio. Tal
transformação é denominada por Ciampa (2002; 2005) como mesmidade; para ele a
mesmidade é a superação da mesmice, a transformação do ser, não como uma atualização
de uma essência, mas como superação das determinações exteriores. Nesse movimento o
indivíduo se apropria de novos valores, novas normas de conduta que são produzidas no
próprio processo de produção da identidade.
No capítulo quatro discorreremos mais profundamente sobre o sintagma identidade-
metamorfose-emancipação adotado por Ciampa (2005; 2012), concretizado nas narrativas
coletadas para este estudo. Por ora queremos retomar uma ideia explicitada por Ciampa em
A estória do Severino e a História da Severina, que nos conduz ao entendimento de que a
identidade resulta da superação de uma contradição e se configura na dialética posição-
reposição, podendo ser tanto positiva como negativa. A identidade do indivíduo é,
portanto, resultante da articulação que ele próprio faz com o que fizeram ou fazem dele em
todos os momentos de sua história (LIMA, 2010). Por isso, identidade é movimento!
Compreendê-la nesses termos implica aceitar o inacabamento do humano, requer aceitar e
acreditar que o homem é um eterno vir-a-ser e, portanto, não existe uma natureza dada,
pronta e acabada. Requer a compreensão de que o homem vai se constituindo homem, vai
se humanizando ao passo que produz a própria história, sendo ele mesmo produto dela.
46
CAPÍTULO 3. A PESQUISA
Trata-se de um estudo sob o enfoque da Psicologia Sócio-histórica cuja base está na
Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski (BOCK; 2001). Neste estudo, a categoria
identidade será a base teórica e o fio condutor do processo metodológico. Essa abordagem
encontra-se fundamentada “no marxismo e adota o materialismo, histórico e dialético
como filosofia, teoria e método” (BOCK 2001, p. 17).
O problema a que esta pesquisa procurou responder é: como se dá o processo de
constituição da identidade de professoras de educação infantil que atuam em creches e que
iniciaram sua atividade com “pajens”.
3.1 Objetivos
Esta pesquisa tem como objetivo investigar o processo de constituição identitária
das professoras de educação infantil que atuam em creche e se justifica pelo fato de ainda
ser um tema pouco explorado em pesquisas sobre a docência na Educação Infantil de zero
a três anos. Para isso, espera- se responder às seguintes questões:
Como os percursos da vida pessoal e profissional contribuíram para sua constituição
identitária?
Quais os sentimentos e perspectivas das educadoras em relação ao fazer docente?
Qual o significado que essas profissionais dão à função desempenhada?
É importante frisar que, para que esses objetivos sejam atingidos será necessário
apreender o conjunto de significados e sentidos atribuídos pelas educadoras a partir de suas
vivências e experiências nos diferentes tempos e momentos de sua trajetória de vida.
3.2 Concepção de homem para a Psicologia Sócio-histórica
A Psicologia Sócio-histórica acredita que o “homem que se constitui numa relação
dialética com o social e a história” (AGUIAR, 2002, p. 129).
Como afirma Aguiar (2002; 2006), a constituição dialética do homem não se dá
como mera transposição do social, mas resulta de um processo no qual o sujeito transforma
47
o mundo material e social, transformando-se a si próprio, criando assim a possibilidade do
novo. Dessa forma, indivíduo e sociedade são constitutivos um do outro.
Rego (2012, p.98) também traz uma importante contribuição sobre a noção de
constituição humana:
A noção de constituição de homem como ser histórico traz implícita a
concepção de que não há uma essência humana dada e imutável, pelo contrário,
supõe um homem ativo, contínuo e infinito de construção de si mesmo, da natureza e da história.
No que concerne à história, encontramos nas obras de Vigotski duas maneiras de
compreendê-la: “em termos genéricos, significa ‘uma abordagem dialética geral das
coisas’; em sentido restrito, significa a ‘história humana’” (SIRGADO, 2000a, p. 48).
Esses dois modos de compreensão da história revelam a preocupação de Vigotski
de articular a história individual à história da espécie humana (evolução). Podemos
depreender, segundo a abordagem sócio-histórica, que os indivíduos não são iguais entre
si, mas de algum modo eles incorporam a história e a cultura. Desse modo, o homem é um
ser histórico, social e individual ao mesmo tempo, portanto, não dicotômico10
.
Sirgado (2000b) comenta também que a história de cada indivíduo singular está
fortemente ligada à história de seu meio. Colocadas as coisas dessa maneira, podemos
afirmar que todas as pessoas são diferentes, que cada uma é uma história e não
simplesmente tem ou teve uma história ou um passado.
Ciampa (2005, p. 207) diz: “Quando afirmamos que, como ser histórico, como ser
social, o homem é horizonte de possibilidades, estamos pensando em todas as dimensões
do tempo”. A partir dessas contribuições, acreditamos que seria impossível investigar a
constituição identitária das professoras de educação infantil sem contemplá-las em sua
temporalidade ou abrindo mão de seus projetos e desejos. Impossível seria discutir o
conceito de identidade como constante movimento e que se transforma, sem o amparo de
uma teoria e método que compreendam a realidade e os sujeitos em constante
transformação e sem entender as determinações históricas e sociais acerca do fenômeno
analisado.
Nossa tarefa, portanto, é ir além da mera descrição da realidade, saindo da
aparência, e buscar a construção de um conhecimento que seja desvelador da realidade
investigada. Para Aguiar e Ozella (2013):
10 Ideia baseada em anotação de aula, da disciplina Contribuições de Vigotski para a Pesquisa e Educação,
ministrada pela Professora Drª Wanda Maria Junqueira de Aguiar (1ºsemestre/2014).
48
Método é aqui entendido, para além de sua função instrumental, como algo que
nos permite penetrar no real, objetivando não só compreender a relação
sujeito/objeto, mas a própria constituição do sujeito, produzindo um
conhecimento que se aproxime do concreto, síntese de múltiplas determinações
(pp.300-301).
Assim, o método não se reduz à sua função instrumental. A escolha do método, na
perspectiva sócio-histórica, requer que o pesquisador vá além da aparência e da mera
descrição dos fatos e exige uma compreensão da constituição do objeto estudado em seu
processo histórico.
3.3 Procedimentos
Para investigar o processo de constituição identitária das professoras de educação
infantil, optamos por um estudo qualitativo, a partir da entrevista de três profissionais que
atuam nesse segmento da educação básica, que não apenas atuam acompanharam o
movimento da creche no Brasil, como também foram protagonistas desta história marcada
por lutas, contradições e esperança.
Elegeu-se como critério para escolha das participantes o tempo de exercício no
magistério infantil. Interessava-nos entrevistar profissionais que iniciaram na função de
pajem, lactarista, auxiliar de desenvolvimento infantil e que ainda desenvolvem suas
atividades em sala de aula.
Para a obtenção das informações necessárias aos interesses da pesquisa, optou-se
por utilizar a entrevista não diretiva, com foco na história de vida, como instrumento para
coletar as histórias de vida de três professoras de educação infantil que atuam numa creche
pública municipal, localizada numa região periférica da cidade de São Paulo.
Escolheu-se essa técnica, pois, segundo Lüdke e André (1986, p. 33), esse tipo de
entrevista permite ao “entrevistado discorrer sobre o tema proposto com base nas
informações que ele detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista”. Ainda
segundo as autoras, essa técnica possui grande vantagem sobre as demais, pois “permite a
captação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com qualquer tipo de
informante e sobre os mais variados tópicos” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 34).
Me conte a sua história de vida foi a frase precedida aos relatos das histórias
vivenciadas pelas educadoras e, de acordo com Oliveira et. al (2006, p. 549), esta é “uma
forma de trazer à tona como fomos construídos ou como estamos continuamente nos
49
reconstruindo no próprio ato de relatar histórias para diferentes interlocutores em outros
momentos e espaços.
Pretendíamos, além da compreensão do significado por elas atribuído à função
desempenhada, compreender como o ofício e os percursos da vida pessoal e profissional
contribuíram e afetaram a constituição de sua identidade docente.
Os relatos das educadoras foram coletados e gravados mediante expressa
autorização das mesmas. Adotou-se esse tipo de entrevista por acreditarmos que uma
pesquisa que se pretenda histórica e social deve ir além do discurso aparente. Assim, a
entrevista aberta nos colocaria “face a face” com nossas participantes. Interessava-nos
observar suas expressões, apreender o que pensam e sentem; desse modo, foram poucas as
intervenções realizadas pela pesquisadora.
Anterior à coleta das entrevistas fez-se necessário explicar às participantes os
objetivos e interesses da pesquisa. Foi acordado, mediante assinatura de termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE), que as participantes poderiam se retirar da
pesquisa a qualquer momento e sem qualquer tipo de prejuízo.
Após a leitura e aceitação do TCLE, nos colocamos à disposição das professoras.
Os dias, horários e o local foram agendados conforme as possibilidades de cada uma.
Procedemos de igual maneira quanto ao conteúdo das entrevistas; não queríamos, de forma
alguma, deixá-las constrangidas ou enfadá-las com perguntas.
Em seguida, nos dedicamos à transcrição dos relatos com a preocupação de
mantermos a essência de cada uma das histórias a nós confiadas. Diversas leituras do
material transcrito foram realizadas. Nessas leituras, grifamos os trechos mais
significativos da fala de cada sujeito. Buscávamos, segundo Aguiar e Ozella (2013, pp.
308-309):
(...) a partir do que foi dito pelo sujeito, entender aquilo que não foi dito:
apreender a fala interior do professor, o seu pensamento, o processo (e as contradições presentes nesse processo) de constituição dos sentidos que ele
atribui à atividade de docência.
Nesse sentido, Cardoso (2014), salienta que a análise deve estar articulada com a
realidade sócio-histórica, política e econômica a que o sujeito está pertence, pois isso nos
permite apreender o sujeito em sua totalidade.
No próximo capítulo tratamos da análise das entrevistas a partir do levantamento
dos seguintes eixos:
50
I. A origem humilde e as marcas da infância das educadoras de creche, constituído
por seis indicadores, quais sejam: origem, escolarização, trabalho infantil,
violência, brincadeiras e projetos de futuro.
II. Trajetórias pessoais e de profissionalização. Aqui apresentamos os percursos
pessoais e profissionais trilhados pelas educadoras e que contribuíram para a
constituição das suas identidades.
III. Dimensão afetiva da prática pedagógica. Abordamos nesse tema o papel do outro, a
relação mãe-professora e a maneira como as educadoras percebem a dimensão
afetiva de sua prática.
Ao longo do capítulo também serão contempladas questões relacionadas às
condições de trabalho, hierarquização, rotina e desvalorização profissional.
Devemos confessar que essa organização não elimina outras formas de
interpretação, bem como não é capaz de dar conta da infinidade de temas que emergem das
narrativas. Contudo, visando responder às indagações colocadas pela pesquisa é que foram
levantadas, pois, expressam os elementos centrais e mais representativos para a
constituição dos sujeitos entrevistados.
3.3.1 O cenário da pesquisa
As entrevistas aconteceram dentro da unidade escolar onde as mesmas atuam. A
creche, pertencente ao sistema público de ensino, está localizada num bairro periférico do
município de São Paulo. A escolha por essa unidade se deu pelo fato da mesma ser uma
das mais antigas da região. Fundado no ano de 1982, o Centro de Educação Infantil “Arco-
Íris” 11
atende, atualmente, em período integral, noventa crianças com idades entre 1 e 3
anos. O quadro docente é composto por vinte e seis professoras de educação infantil com
idades que variam entre vinte cinco e sessenta anos. Destas, apenas três possuem ensino
médio na modalidade normal, das quais duas são participantes da pesquisa.
Há também uma grande variação no tempo de exercício profissional, sendo que há
quatro professoras em fase inicial de carreira (três a cinco anos de docência), cinco atuam
no magistério infantil há aproximadamente dez anos e a maioria se aproxima da
aposentadoria. É o caso das entrevistadas, todas com mais de vinte e cinco anos de
11 Nome fictício.
51
experiência na educação de crianças com menos de três anos. São elas: Graça, Diana e
Penélope.
Graça
Tem 62 anos, nasceu na Paraíba. Casada, tem quatro filhos adultos e duas netas. Ingressou
no magistério infantil em 1984, no cargo de pajem. Devido a sua infância pobre e pouca
escolaridade, nunca imaginou que seria professora, aliás, seu maior sonho era o de ser
costureira. Profissional da pequena infância há trinta anos, cursou suplência nos ensinos
fundamental e médio e posteriormente obteve, ao cursar ADI Magistério, formação
específica para atuar na educação infantil. Participou de diversos movimentos sociais,
sendo um deles o Grupo de Mães.
Diana
Jamais sonhou ser professora de educação infantil. Tem 58 anos, nasceu num bairro da
Zona Leste de São Paulo, é divorciada e mãe de três filhas. Atua na educação infantil desde
1985. Nessa época desenvolvia a função de lactarista. Em 1990 assumiu o cargo de auxiliar
de desenvolvimento infantil (ADI) no qual permaneceu por quinze anos até a
transformação do cargo para professora de desenvolvimento infantil (PDI). Aos trinta e
cinco anos cursou suplência nos níveis fundamental e médio, em seguida fez o ADI
Magistério. Possui formação em Pedagogia e pós-graduação em nível de especialização em
Psicopedagogia.
Penélope
Tem 60 anos, é casada e mãe de três filhos. Desde pequena gostava de cuidar de criança,
no entanto, nunca sonhou em ser professora. Sua trajetória na educação de crianças
pequenas iniciou quando tinha apenas nove anos de idade e já era responsável pelas tarefas
da casa e pelo cuidado dos irmãos menores. Ingressou na Prefeitura Municipal de São
Paulo (PMSP), em 1982, no cargo de pajem, cursou suplência nos níveis fundamental e
posteriormente se formou no ADI Magistério, não possui formação em nível superior.
52
CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
As narrativas que as pessoas fazem de si e de suas histórias nos revelam “um
discurso de um autor-em-obra” afirma Ciampa (2005, p. 161). Em cada história, as
personagens revelam como vão se constituindo. Os autores, atores e personagens dessas
histórias vão ganhando existência pelo agir e pelo dizer.
4.1 Conhecendo as educadoras
Apresentamos a seguir as professoras de educação infantil que participaram desta
pesquisa. Graça, Diana e Penélope, terão suas falas transcritas com tipo e cores diferentes,
para facilitar a discriminação de cada uma delas pelo leitor e, sobretudo, para dar-lhes uma
marca de individualidade.
53
Graça
Sua entrevista foi realizada na sala de aula durante o período em que as crianças dormiam.
O ambiente era tranquilo, nos acomodamos em colchonetes junto aos bebês e ao som bastante
tênue de cantigas de ninar. Quando digo para que me conte sua história de vida, ela, surpresa,
indaga: “De quando eu vim da Paraíba”? Quantas vezes ela teria contado sua história? E quais
capítulos teriam mais relevância para ser revelado a outrem, estranho a essa história?
Criada sem pai, cresceu vendo o sofrimento da mãe e sonhando com uma vida melhor, uma
vida menos sofrida. Desde muito nova aprendeu a trabalhar na roça e só aos quatorze anos pôde
frequentar a escola. Um dos sonhos da menina era se casar e mudar-se para São Paulo. Aqui
chegando, enfrentou uma “vida torturosa”. De início, morava de favor na casa de parentes; pouco
depois, com o marido já empregado, conseguiram alugar uma casa. Nessa época, sacrifícios eram
necessários para garantir o pagamento do aluguel. Graça conta que o salário do marido era baixo,
por isso muitas vezes era necessário medir a comida; nenhum desperdício era tolerado.
Certo dia, o locador decidiu aumentar o valor do aluguel, mas Graça e o esposo não tinham
condições de arcar com uma despesa mais alta, senão correriam o risco de passar fome.
Participante do Clube de Mães, recebeu instruções de como proceder legalmente e ganhou, na
justiça, o direito de permanecer na casa. Pouco tempo depois conquistou sua primeira casa própria.
Envolveu-se em diversos movimentos sociais, lutando pela melhoria do bairro onde morava e, a
partir de sua militância social e política, percebeu-se como sujeito de direitos, como ser no mundo.
Foi a partir de sua inserção e atividade no Clube de Mães e nos demais movimentos que surgiu a
oportunidade de trabalhar em creche. Graça, apesar da pouca escolaridade, foi aprovada para o
cargo de pajem, pois comprovou experiência anterior no cuidado de crianças pequenas. O salário,
embora baixo, foi de grande ajuda para as despesas da casa e para a criação dos quatro filhos. No
início dos anos 1990 a exigência por escolaridade fez com que Graça retomasse os estudos. A
rotina de trabalho e estudo, além das tarefas domésticas e cuidados dos filhos, se estendeu por
alguns anos. Formou-se nos níveis fundamental e médio e na sequencia cursou o ADI Magistério,
programa que, segundo ela, foi a salvação de tudo na vida das educadoras de creche. Por não ter
formação, Graça, assim como a maioria,não se enquadrava num “padrão” de docente; contudo, o
formar-se professora somado às vivências da militante das causas sociais possibilitou-lhe a
superação de uma identidade mitificada, permitindo sua emancipação como ser no mundo, sujeito
de direitos, pessoa com voz e desejo.
54
Diana
A entrevista foi concedida na sala dos professores. Assim como aconteceu com
Graça, quando lhe peço que me conte sua história de vida, ela indaga surpresa: “O que era
importante na minha vida”? Inicia sua apresentação contando, muito brevemente, onde
nasceu e como foi sua infância. Mas foi ao falar da juventude-que-não-teve, que sua
narrativa se alonga. Enfatiza em seu discurso o trabalho desenvolvido no centro de
educação infantil onde trabalha desde 1985 e a importância dos estudos em sua vida. Para
ela, ter cursado Pedagogia lhe possibilitou descortinar os olhos, abrir a mente. Em suas
palavras “toda realidade se transforma”, ela própria está se transformando...
Foi mãe aos treze anos; nessa época teve que abandonar os estudos e passou a
trabalhar exaustivamente para garantir o sustento da criança. Foi diarista, trabalhou numa
pequena fábrica. Separou-se do marido aos dezesseis anos e com mais uma filha recém-
nascida. Casou-se novamente, dessa vez para fugir da vida que levava na casa da mãe. De
tanto procurar culpados, descobriu-se doente.
Conheceu o budismo, mas questionava a doutrina, não aceitava os ensinamentos.
Conformou-se com sua vida, mesmo sendo ela tão severina. Antes levava uma vida a
“ferro e fogo”; em sua casa os filhos deveriam obedecer às suas regras. Mais tarde,
trabalhando em creche, conviveu com diferentes histórias; vendo problemas maiores que
os seus foi se transformando; aprendeu a sorrir. Mudou-se para a praia. Hoje é uma pessoa
feliz! E se antes procurava culpados por sua vida tão sofrida, pelas mágoas todas que
carregava, hoje já não os procura mais, pois se reconheceu livre, descobriu-se, ao contrário
do que acreditava, capaz de se emocionar.
55
Penélope
Penélope inicia contando sobre sua infância. De origem humilde, aprendeu desde
muito nova a cuidar da casa, cozinhar e cuidar dos irmãos enquanto a mãe trabalhava fora.
Aos doze anos já era babá; cuidava de uma criança de oito meses de vida. O trabalho era
realizado com satisfação e foi por muito tempo um projeto de vida. Sempre sonhou cuidar
de crianças pequenas até que, em 1982, o sonho se concretizou; ingressou no cargo de
pajem na Prefeitura de São Paulo.
Casou-se muito jovem e logo descobriu o que era sofrer. Quando do nascimento do
primeiro filho, não tinha o enxoval e desesperava-se ao pensar como faria para sair do
hospital com a criança.
Enfrentou sérios problemas no casamento. O marido viciou-se em jogos, bebidas e,
mais tarde, tornou-se dependente químico. Conta ela que, em meio a tudo isso, descobriu
que o filho mais velho seguia o exemplo do pai. Desesperada, sem saber o que fazer,
encontrou apoio na religião.
Sua última gestação foi descoberta, talvez, no momento mais difícil de sua vida. O
marido quase não aparecia em casa, ficava dias perambulando pelas ruas, cada vez mais
entregue ao vício. A situação financeira estava seriamente comprometida, mas contava
com os sogros e a família por perto.
A pergunta que se fazia era como ter mais um filho vivendo aquela vida? Planejou
o aborto, foi até uma clinica clandestina para tirar a criança, mas desistiu. Retornou para
casa, decidiu pela vida. Ainda que fosse mais sobrevivência do que propriamente vida.
Sobre o fato de sentir-se ou não professora, ela conta que, inicialmente, por não ter
formação, não era respeitada como tal e isso, consequentemente, contribuía para uma
percepção de si como alguém que cuida de criança pequena. Percepção esta que, com a
conquista da formação foi se modificando. O tempo foi passando (...). Eu fiz o curso [ADI
Magistério]. (...) O curso ajudou a mudar nossa autoestima.
56
4.2 A origem humilde e as marcas da infância
A origem humilde é um dos pontos em comum entre as profissionais de educação
infantil sujeitos deste estudo e tantas outras que atuam no segmento etário de zero a três
anos. Essa questão também já foi abordada nos estudos de Cerizara (2002) e Cota (2007) e,
aqui, dedicamos esse espaço para que nossas participantes se apresentem e nos contem de
onde vieram e como eram suas vidas.
Falar da origem pobre não nos pareceu um problema para nenhuma das professoras
entrevistadas. Aliás, Graça diz com bastante convicção que “nunca tive vergonha de dizer o
que fui, o que eu era, nem de onde vim”.
Não negando sua origem, seguiu acreditando que um dia tudo mudaria. Mas para
falar da trajetória de Graça, quem melhor do que ela? Com a palavra a menina que sonhava
ser costureira, mas cresceu e se tornou professora.
(...) Eu vim da Paraíba (...) Lá a gente tinha uma vida muito simples. Eu sempre tive o
sonho de um dia (...), quando eu crescesse e ficasse uma moça, casasse com uma pessoa que
me trouxesse para São Paulo. Meus sonhos eram tão simples, eu queria vir morar aqui,
mas uma coisa eu queria, eu queria ser costureira. De todo meu sonho, o maior era ser
costureira, porque eu via as mulheres lá que ganhavam dinheiro, que andavam mais bonitas
e mais bem vestidas, todas eram costureiras. Minhas primas, por exemplo, faziam roupas.
Então, desde pequena eu fazia roupa; catava os pedaços de retalhos da minha mãe e fazia
a roupa das minhas bonecas. (...) Os meus sonhos não eram tão altos assim não. Eu queria
morar numa casa que eu pudesse criar os meus filhos, era isso o que eu queria.
“De todo meu sonho, o maior era ser costureira”, diz Graça. Porém, diz Ciampa
(2005) que o desenvolvimento de uma identidade não depende apenas da subjetividade (do
desejo), mas também das condições objetivas. “Por isso, o homem é desejo. Por isso, o
homem é trabalho. (...) o trabalho é o dar-se, que assim transforma suas condições de
existência, ao mesmo tempo que seu desejo é transformado”(CIAMPA, 2005, p. 208).
Graça, após algum tempo morando em São Paulo, encarnou a costureira que “fazia
pequenos consertos e algumas coisinhas” para ajudar nas despesas da casa. O sonho de
menina se concretiza. Seu desejo se materializa, torna-se real.
(...) quando eu ganhei minha segunda filha, o dinheiro que eu recebi do auxílio maternidade,
(...) eu comprei uma máquina de costura. Desejo e trabalho, apesar de ser uma relação entre dois elementos distintos, são
constitutivos um do outro. Nessa relação, ao mesmo tempo em que não são idênticos, se
compõem porque cada um é constituído pelo outro. Nesse ponto, segundo Aguiar (2000),
57
não existe subjetividade sem a relação com o social, ela se constitui nas relações com a
cultura, pois no momento em que indivíduo mantém práticas sociais ele mantém uma
relação que é impregnada de história, cultura, de afetividade, emoções e particularidades,
de ideologia etc.
Ao internalizar o mundo externo, o indivíduo cria uma forma particular, portanto
subjetiva, de representar o mundo externo no mundo interno (AGUIAR, 2000). Desse
modo, nega-se a dicotomia entre subjetividade e objetividade, aqui entendida como desejo-
trabalho, “que passa a ser vista em uma relação de mediação, na qual um existe por
intermédio do outro, sem que um se dilua no outro, perdendo sua identidade” (AGUIAR,
2000, p. 129). Cabe frisar, ainda segundo a autora, que é pela atividade externa que se
criam as possibilidades de reconstrução da atividade interna. Nesse sentido
(...) a atividade de cada indivíduo é determinada pela forma como a sociedade se
organiza para o trabalho, entendido nesse caso como a transformação da natureza
para a produção da existência humana, algo que só é possível na vida social.
Nesse processo, o homem estabelece relações com a natureza e com os outros
homens, determinando-se mutuamente. É nesse sentido que se afirma ser o
homem ativo e social (AGUIAR, 2000, p. 129).
O postulado marxiano atribui grande ênfase no trabalho como atividade
transformadora da natureza e mediadora das relações sociais, na história humana
(SIRGADO, 1990). Por isso, entendemos que o trabalho, na lógica marxiana, não se esgota
no conceito de trabalho partilhado pelo senso comum, muito mais próximo de ocupação,
emprego.
O trabalho, em nossa sociedade se encaixa naquilo que Marx (1848/1989 apud
ALVES, 2010, pp. 6-7) denominou de trabalho alienado, podendo ser identificado de
diferentes formas:
(...) quanto mais o trabalhador se gasta trabalhando, tão mais poderoso se torna o
mundo objetivo alheio que ele cria frente a si, tão mais pobre se torna ele
mesmo, o seu mundo interior, tanto menos coisas lhe pertencem como suas
próprias. (...) o seu trabalho não é voluntário, mas compulsório, trabalho forçado.
(...) não é satisfação de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer
necessidades fora dele (...).
Consideradas essas questões, encontramos na teoria vigotskiana pontos centrais
fundamentados na teoria marxiana. Afirma Vigotski (1984/2007) que o homem ao agir
sobre o meio, o modifica e cria novas condições para sua existência. O trabalho, na
perspectiva materialista histórica e dialética, é central nas relações dos homens com a
58
natureza, com a sociedade e consigo mesmo, se caracteriza como ação humanizadora por
meio da qual o homem cria sua própria existência.
Trabalho infantil
O trabalho infantil ainda é uma realidade em nosso país. A Unicef estima que 150
milhões12
de crianças entre e cinco e quatorze anos estejam envolvidas em algum tipo de
trabalho inadequado para sua idade.
Sabemos que muitas crianças trabalham para ajudar no sustento da casa; no entanto,
muitas delas são forçadas a algum tipo de trabalho degradante e perigoso que violam seus
direitos, furtam-lhes o tempo de ser criança e as afasta da escola.
Retornemos à infância de Graça na Paraíba. Ela conta que quando criança
trabalhava na roça e seu sustento e da família eram garantidos pelo esforço diário no
campo.
(...) a gente trabalhava na roça, colhia o feijão e o milho e o resto Deus provia. A gente
criava galinha, então sempre tinha um ovo para comer de mistura (...). Era uma vida difícil,
(...). [Nossa] casa de taipas (...) tinha duas portas, uma na frente e outra atrás, não tinha
nenhuma janela e a gente não tinha cama para dormir. A gente dormia numa rede, dormia
minha avó numa rede, eu e minhas três irmãs dormíamos no quarto com minha mãe e minha
avó e meu irmão dormia na sala. Minha avó contava histórias para gente no escuro porque a
gente não tinha condições de comprar muito querosene, então tinha que apagar o candeeiro
cedo.
Era uma vida muito difícil, diz ela. Nós podemos imaginar o quanto. O que Graça
não diz, vamos nós nos permitindo imaginar. Trabalho árduo em dias sempre muito
quentes; roupas gastas e pés descalços. Vaidade não tinha, se alimentava de sonho. E
como sonhar, se cama também não tinha? Sonhava acordada para não perder a chance de
ver seu sonho chegar.
Costurando mais um pedaço da história de Graça, veremos que o trabalho era um
meio de garantir sua sobrevivência e uma forma de aprender algum ofício.
(...) eu tinha sete anos quando meu irmão pegou uma enxadinha e me ensinou a trabalhar.
(...) Quando eu entrei na escola já estava com treze para quatorze anos, para você ver o
quanto que eu já estava atrasada. Então, já tinha passado tudo, o tempo de infância e
talvez até hoje eu tenha dificuldade em algumas coisas por isso. Uma coisa é você estudar
12 O trabalho infantil viola o direito de milhões de crianças à saúde, à educação e ao crescimento.
Disponível em: http://unicef.org.br/
59
sem ter a preocupação de trabalhar para comer e outra é você saber que tem
responsabilidades (...).
Aprendera a segurar uma enxada muito antes de aprender a desenhar as letras.
Expropriada do direito de frequentar a escola no tempo certo, traz ainda hoje as marcas de
uma infância severina.
Situação semelhante encontramos no relato de Penélope. A entrevistada conta que,
ainda menina, começou a cuidar de criança pequena. Era responsável pela organização da
casa, por fazer a comida e cuidar dos irmãos mais novos enquanto os pais trabalhavam.
Depois, foi sua vez de trabalhar para ajudar no orçamento doméstico.
Eu era a mais velha, minha mãe trabalhava e eu cuidava dos meus irmãos, já sabia
fazer comida. Eu aprendi, muito cedo, a fazer comida porque minha mãe me fazia cozinhar
(...). Eu só tinha doze anos quando comecei a cuidar de criança pequena, ela tinha oito
meses. O tempo foi passando, (...) continuei cuidando da criança.
Depois da escola eu almoçava e ia para a casa da vizinha cuidar da criança. Essa
foi a condição estabelecida pela minha mãe, de que eu continuaria cuidando da menina, mas
tinha que estudar. A [vizinha] chegava por volta das dez horas da noite e eu ficava lá, na
casa dela até essa hora.
Apenas doze anos e uma responsabilidade de “gente grande”. Segundo a
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Unicef, o trabalho infantil doméstico se
configura como uma das formas mais comuns e potencialmente exploradoras do trabalho
infantil no mundo. Como mudar esse quadro? Clamamos por políticas seriamente
comprometidas com os diretitos sociais, com a educação, com a vida. Precisamos romper
com discursos do tipo “é melhor trabalhar do que roubar” que apenas alimentam a máquina
da exclusão social. Precisamos superar essa forma de alienação que se adianta na vida do
homem e dar mais visibilidade à infância.
Compreendemos o trabalho infantil como alienante, pois em ambas as histórias o
trabalho-atividade essencialmente humano cedeu a uma atividade estafante, um meio para
continuar sobrevivendo, privando-as da escolarização adequada e principalmente do
brincar. Essa forma de trabalho, segundo Alves (2010, p.07), “aliena o homem do seu
próprio corpo, tal como a natureza fora dele, tal como sua essência espiritual, a sua
essência humana”.
Outra marca impressa nas histórias de vida das entrevistadas é a pouca
escolaridade. Antes ouvimos de Graça que, quando chegou à escola, seu tempo de infância
já havia passado. Penélope conciliava o trabalho doméstico com os estudos, afinal essa era
60
a condição colocada por sua mãe. Já Diana, teve que parar tudo aos treze anos de idade, e
partir daí; ela diz:
Trabalhei muito, trabalhei em casa de família, trabalhei numa fábrica de montar
taxímetro. (...) Parei tudo, só voltei a estudar depois de adulta, com os filhos criados.
As marcas das infâncias vividas nos ajudam a compreender o porquê dessa
escolarização tardia. Embora tenham brincado na infância, nossas participantes confessam
ter enfrentado momentos bastante difíceis. Graça não conviveu com o pai e conta que o
mesmo só passou a “tomar atitude de pai” depois que ela fugiu de casa para se casar.
Resgata na memória a idade em que segurou pela primeira vez uma enxada. Nessa época,
deveria estar na escola; no entanto, o trabalho na roça era prioridade.
Diana também comenta de sua infância:
“Eu tive uma infância gostosa; brinquei muito na rua. Tive uma infância muito
bonita; brinquei muito, porém não tive juventude”.
Fala de uma infância feliz, porém com certa brevidade nas palavras. É como se
quisesse se convencer ou, ainda, compensar a juventude-que-não teve.
“Fui mãe aos 13 anos de idade (...). Fiquei meio perdida na vida por muito tempo
(...) casei com quatorze anos, separei aos dezesseis e conheci o segundo marido aos
dezessete”.
A lembrança de uma infância feliz vem carregada de um sentimento de liberdade
quase apreensível. Sentimento este que a jovem mãe não sentia e tentou alcançar se
prendendo a um relacionamento, inicialmente, sem amor.
“Quando eu conheci esse segundo marido (...) fui logo morar com ele, mas nós logo
nos desentendemos, mas como eu fiquei grávida, decidi ficar com ele mesmo. Ele foi mais
uma fuga. Daí veio a terceira filha, continuei trabalhando e continuei com ele. Aprendi a
gostar dele”.
A fuga era uma forma da jovem mãe, que estava se tornando esposa, romper com o
medo de ter sua filha dada para outra família, afinal, essa ameaça era uma constante em sua
vida, pois:
“[eu] deixava [minha filha] com a minha mãe. Eu morria de medo dela dar minha
filha. Se eu não sustentasse, ela dava!”
Mais uma vez é possível sinalizar, no discurso da entrevistada, o trabalho numa
perspectiva de alienação. Quanto mais se dedicava ao trabalho, “Eu tinha que trabalhar
61
bastante”, mais empobrecidas eram as relações com seu meio, mais “vazio” se tornava seu
mundo interior. Era a perda de si mesma.
Penélope não se queixa de sua infância marcada pelos afazeres domésticos e pela
responsabilidade de cuidar dos irmãos. Enquanto a mãe trabalhava, a menina já preparava
a comida, cuidava dos irmãos e ainda arrumava tempo para brincar, de certa forma
resistindo a se tornar adulta e insistindo em manter vivo seu ser criança.
“Quando eu era bem menina, a gente brincava. A gente brincava de casinha, fazia
comidinha e fazia nossa própria bonequinha. Não tinha tudo pronto como é hoje. (...) Não
posso dizer que não tive infância. (...) Fui muito feliz na minha infância e mesmo com toda
minha responsabilidade de cuidar da casa e dos meus irmãos eu ainda tinha um tempo para
brincar”.
Graça lembra com saudade dos tempos em que “catava os pedaços de retalhos (...)
e fazia a roupa das bonecas”. Suas brincadeiras de menina expressavam o universo adulto
do qual ela também era parte. Em ambos os casos, a brincadeira revelava a percepção que
tinham do mundo. Como declara Leontiev (1903-1979):
A brincadeira da criança não é instintiva, mas precisamente humana; atividade
objetiva, que por constituir-se a base da percepção que a criança tem do mundo
dos objetos humanos, determina o conteúdo de suas brincadeiras (LEONTIEV,
1988/2012, p. 120).
A partir da descrição das infâncias foi possível perceber que as circunstâncias
forjaram naquelas meninas, agora adultas, um amadurecimento precoce. Para validar essa
constatação damos a palavra a Penélope: “Passei por esse processo de ser adulta muito
nova.” Ainda que Diana não seja muito explícita, o mesmo é passível de ser observado
implicitamente quando ela fala da gravidez precoce, de ter que trabalhar duro para
sustentar a filha, da separação e de um novo começo (de quando aceitou casar-se sem amor
em troca de alguma liberdade).
Outro elemento que se revela a partir dos depoimentos coletados: a violência
sofrida na infância. Primeiro, queremos dizer que consideramos violência toda ação que
cause marcas físicas, psicológicas ou emocionais no indivíduo. Optamos apresentar esse
tema porque ao longo das narrativas ele aparece com grande força, seja expresso na forma
de ameaça verbal ou pela presença distante da figura paterna, ou ainda, pela imposição de
uma “educação rígida”.
Segundo Bazílio e Kramer (2011, p. 124) “a violência sempre foi usada como
marca de dominação de uma classe social sobre a outra, de um gênero, de uma idade, de
62
um grupo social sobre o outro”. Talvez, por essa razão, adultos e crianças tenham
dificuldade de discutir e falar sobre o assunto em questão.
“Eu tive uma educação muito rígida”, afirma Diana, que “por qualquer motivo e, às
vezes, sem motivo” apanhava da mãe. As marcas emocionais deixadas por esse tipo de
“educação” ainda não se apagaram, é possível apreender mágoa e dor no relato que segue:
“Eu vim de uma linhagem na qual ensinamento é apanhar. (...) Por qualquer motivo,
e às vezes sem motivo, era surra. Lembro–me de um dia em que eu cheguei da escola, estava
chovendo, eu deixei o guarda-chuva na área, só que [o chão] era muito encerado, porque ela
[a mãe] tinha mania de muita limpeza. Minha mãe exigia limpeza máxima. Para ela,
pobreza e sujeira não combinavam em absolutamente nada. A área estava encerada e o
guarda-chuva escorregou; eu tirei o sapato, entrei, tirei a roupa molhada; tomei um banho.
Ela me chamou e perguntou se aqui era lugar para deixar o guarda-chuva. Eu apenas
respondi que o havia deixado ali para escorrer a água. No que eu disse isso, um cabo de
vassoura quebrou nas minhas costas. Eu tinha uns nove anos”.
As palavras de Diana “um cabo de vassoura quebrou nas minhas costas” são
chocantes. Essa história aviva em nós qualquer outra situação semelhante que muitos já
viveram, pois muitos não escaparam de uma chinelada, tapa ou beliscão na infância. Não
importa a força, as marcas permanecerão. A menina fora sentenciada sem ao menos saber
qual era seu crime.
A fim de evitar a indução de algum tipo de pré-julgamento, Diana considera
necessário explicar, mais do que isso, analisar a situação de vida da mãe para justificá-la.
Minha mãe era sozinha; somos em cinco irmãos. (...) Depois eu perdi um irmão
assassinado; então isso acabou muito com ela. Outro irmão teve câncer no intestino, superou,
mas foi muito sofrimento. Ela já tinha passado pelo câncer de garganta do meu pai. (...)
Quando ele morreu (...), eu tinha três anos, não o conheci. Então, ela já vinha de uma vida
muito sofrida (...).
Podemos observar o esforço de Diana para compreender as circunstâncias
motivadoras da violência sofrida na infância. No relato anterior, a riqueza de detalhes
revela o quanto os castigos preencheram sua memória.
Quando falamos de marcas da violência, não estamos nos detendo, obviamente,
apenas às cicatrizes deixadas na pele, falamos, sobretudo, daquelas inscritas no psiquismo,
cuja ação do tempo não pôde apagar. Cicatrizes tão fortes quanto as que Graça e Penélope
adquiriram ao longo de suas vidas. Contudo, e contraditoriamente, necessárias para torná-
las mais fortes e fazê-las ser “outra pessoa” (Professora Diana).
63
Ser negligente ou omisso, deixar de prover as necessidades básicas para o
desenvolvimento global da criança também são formas de violência. No caso de Graça, ela
conta o dissabor de ter um pai que, embora, sempre por perto, fosse ausente.
“Meu pai era um homem rico, mas nunca me deu nada. Nunca ajudou em nada e
nem reconheceu a gente como filho. (...) Minha maior angústia era quando alguém me
perguntava qualquer coisa sobre meu pai. Isso era muito cruel, porque eu não podia falar
que ele era meu pai; afinal ele era casado com a outra mulher. Ele não me considerava sua
filha, meu irmão (filho desse casamento com a outra mulher) não me considerava como
irmã”.
Ainda que devesse ser herdeira, cresceu sem luxo, mas contava com o amor da avó,
talvez sua maior fortuna. “A gente não tinha roupa, calçado, nós não tínhamos luxo, mas o
amor da nossa avó, a gente tinha” (Professora Graça).
Surge nesse relato a menina ferida de morte por ter (ou não ter, embora ele fosse
tangivelmente presente) um pai e não poder revelá-lo ao mundo. Não poder desfrutar do
afago do pai, não ser carregada por ele nos braços e tantas outras coisas que pais e filhos
podem fazer juntos, também são formas brutais de violência.
Encontramos na legislação vigente a máxima: “nenhuma criança ou adolescente
será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos
seus direitos fundamentais” (Art. 5º da Lei 8.069/1990- ECA), no entanto, os relatos aqui
apresentados e as notícias nos jornais e noticiários da TV dão conta de explicitar o quanto
essa lei necessita se concretizar efetivamente para garantir a efetivação de todos os direitos
fundamentais à vida, dos quais um é o direito de sonhar.
Sonhar com uma vida melhor, menos sofrida. Sonhar com uma vida que não seja
assim... tão severina. Uma criança que não sonha é como uma águia nascida sem asas. Não
sonhar é estar condenado a uma vida cinzenta, é mais sobrevivência do que propriamente
vida (DALLARI, 1986).
Os sonhos da infância, como vimos e veremos mais adiante, tornam-se projetos
para um futuro ainda incerto. Na fala de Penélope infante, as primeiras pedras são
colocadas para a construção da personagem que adora cuidar de crianças.
64
4.3 Trajetórias pessoais e de profissionalização
Este tema tem o objetivo de discutir os percursos pelos quais as identidades de
Graça, Diana e Penélope foram sendo constituídas até a metamorfose para professora.
4.3.1 Trajetórias Pessoais
“Minha trajetória foi essa...” anuncia Graça, ao começar a narrar mais um capítulo
de sua história. Retirante, chega a São Paulo, onde, inicialmente viveu “uma vida de
miséria”, tendo sido, inclusive, “explorada por um vizinho que detinha um poste de luz”.
Mais tarde se envolveu em movimentos sociais, participou ativamente das lutas por
melhorias no bairro, integrou o Grupo de Mães e em pouco tempo começou a trabalhar em
creche.
“(...) a gente participou de tudo e a nossa primeira briga foi com a Eletropaulo, para
que viesse luz para todo mundo. Um belo dia a gente consegue ganhar e veio luz para todo
mundo, (...) até hoje (...) as pessoas (...) pagam a taxa mínima (...). Com toda essa nossa
luta, a gente conseguiu ter um Clube de Mães”.
A entrevistada salienta que foi fazendo parte de movimentos como esses que ela
começou a “crescer e (...) a ver que o mundo não era só aquele pedacinho que [ela]
conhecia”. Seu engajamento nos movimentos sociais pouco a pouco a faz perceber-se
como sujeito de direitos cuja sua voz merece ser ouvida. Descobre que existia mais espaço
e mais oportunidades para ela no mundo! Assumiu seu lugar no mundo, se autoafirmou
gente.
Com Diana, o despertar para uma nova vida começou quando da sua busca por uma
religião. Afirma ela que andou perdida por muito tempo, e que não aceitava a vida que
vivia.
“Eu olhava aquele Deus lá pendurado na cruz, eu olhava bem para ele e falava: o
que eu fiz para merecer tudo isso? Por que eu mereço tanto castigo? Sabe, era um castigo
aquilo tudo, ter que trabalhar tanto, separar tão nova, ser traída. Eu não podia fazer nada,
não podia sair, não podia fazer nada! Depois, fui andando, procurando religião, (...)
alguém que explicasse o porquê disso tudo”.
Em suas andanças, conheceu o budismo e lá aprendeu que “ninguém era culpado do
meu sofrimento a não ser eu mesma”. Foi estudando as escrituras que ela foi se
“conformando mais”. Estaria se conformando ou se transformando?
65
Acreditamos que a palavra correta seja transformação. Diana, a menina que se
tornou mãe aos treze anos, e que queria lançar sobre alguém a culpa por sua infelicidade e
sofrimento, agora está se transformando na budista que aos poucos se vai aceitando sua
própria história. Movimento. Metamorfose.
A história de Penélope se assemelha em muitos aspectos às histórias de Diana e
Graça. No que difere, embora ela não o diga, nós supomos: trata-se da história de uma
mulher negra. Das semelhanças, cabe dizer que se casou jovem, enfrentou muitas
dificuldades financeiras além de problemas com o marido. Diz ela que somente depois de
casada conheceu o que é sofrer.
“Casei muito nova com esse meu marido. Foi então que descobri o que era sofrer.
Sofri e sofri muito com meu marido. Ele bebia e tinha vicio de jogo. Tudo o que ganhava
(salário) deixava no jogo. Perdia tudo (...). Eu não reclamava nem falava nada para meus
pais. Jurei eu não que contaria nada, principalmente para minha mãe, porque eles não
queriam o casamento e eu ainda me lembrava da fala do meu pai”.
Enquanto Diana “levava a vida muito a ferro e fogo” e sempre à procura de
culpados, Penélope sofria calada, pois tinha receio do que as pessoas poderiam dizer,
afinal, ela se casara contra a vontade dos pais. Até que um dia a situação fugiu do controle.
Era hora de pedir ajuda. Mas a quem recorrer?
Assim como Diana, Penélope parecia perdida, “já não sabia mais o que fazer! (...)
só me perguntava o que eu ia fazer da minha vida?” Não encontrando as respostas que
precisava, via pouco a pouco seu lar, sua família, sucumbir por causa dos vícios do marido.
A situação limite em que vivia a obrigou a trabalhar para garantir que “o pão não
faltasse à mesa”. Trabalhou em casa de amigas como diarista, como operária numa fábrica
de pequeno porte e também numa grande montadora de eletrônicos. Em 1982 tem início
sua trajetória profissional na educação de crianças pequenas. Nesse ano, seu desejo de
menina começa a se materializar.
Maternidade dilemática
Não poderíamos, mesmo incorrendo no risco de parecermos redundantes, deixar de
abrir um tópico para tratar desse tema, visto sua magnitude no processo de constituição das
identidades dos sujeitos participantes deste estudo.
66
Graça conta que chegando a São Paulo viveu “uma vida torturosa”, nada
comparada com aquela que tinha na Paraíba, pois lá “a gente tinha roça, plantava e comia.
Aqui era mais difícil; (...) porque, se você tiver um trabalho, você tem o que comer e se não
tiver, você vai fazer o quê? É pior ainda!”
De início, dormiam num sofá, ela, o marido e filha, pois não tinham sua própria
casa. Morava de favor na casa de parentes, o esposo ainda não tinha conseguido emprego.
Faltava-lhe liberdade. “Se você não tem seu fogão para cozinhar, você não tem sua casa,
você não tem liberdade”.
Quando engravidou pela segunda vez, a situação era um pouco diferente. O esposo
já trabalhava, haviam conseguido alugar uma casa para morarem, conquistaram um fogão
usado e adquiriram um colchão novo.
Grávida e sem condições para montar o enxoval do bebê, trabalhou num clube de
mães, onde ganhou algumas roupinhas bem simples para a criança: “me ajudaram, [eram]
coisas bem simples, mas mesmo assim foi muito bom, graças a Deus.” Muitas coisas foram
acontecendo na vida de Graça...
“(...) Até que eu fui trabalhar [numa] firma (...). Saía 4 horas da manhã de casa e
só voltava às 10 da noite. Eu engravidei da minha quarta filha. (...) e quando estava com
seis meses de grávida me aconteceu um acidente. (...) fiquei de licença; no seguro do INPS”.
O acidente afetou gravemente a mão de Graça; até hoje ela ainda tem algumas
limitações. Devido a isso, aposentou-se muito jovem. Ainda assim continuava a participar
dos movimentos sociais e a frequentar o Clube de Mães. Foi numa dessas ocasiões que
surgiu a oportunidade de trabalhar em creche. Sua deficiência não foi impedimento para
obter o emprego. Uma das vantagens era a de poder levar a filha pequena, os outros já
eram grandinhos, já estavam frequentavam a escola.
“No começo, eu trabalhava de manhã, então dava tempo de fazer janta e cuidar de
tudo. Depois (...) tive que trabalhar à tarde. Eu (...) sempre dava um banho e penteava os
cabelos dela (filha pequena) lá na creche e vinha correndo. Eu saia 18h da creche e 19h30
tinha que entrar na escola”.
Nessa época, Graça inicia a suplência, pois já era exigido que as educadoras
completassem a educação básica.
Percebe-se na fala de Graça, em diferentes momentos, o quanto era importante para
ela alcançar a liberdade. Conquistar seu próprio fogão foi uma forma de provar esse sabor.
O fogão, para além de um bem material, item de consumo, representava liberdade e ao
67
mesmo tempo sua subsistência material. Envolver-se em movimentos sociais, tornar-se
educadora infantil, retomar os estudos mesmo com tantas dificuldades a serem superadas –
e foram!- foram formas de declarar-se livre, de perceber-se como sujeito com lugar no
mundo e não à margem dele.
Diana diz que achava lindo ser menina-mãe. Quando a responsabilidade de
sustentar a própria filha falou mais alto, todo esse encanto foi perdendo espaço para uma
secura interior. Claro que não era apenas o fato de ter que trabalhar para sustentar a filha
que fez dela “uma pessoa seca”, isso decorreu da sucessão de fatos e circunstâncias pouco
felizes que viveu. Mãe aos treze anos e separada do pai de sua filha, se viu obrigada a
deixar a criança aos cuidados da mãe para trabalhar e garantir o sustento da menina, senão
corria o risco de nunca mais tê-la nos braços.
Enfrentou a vida, como ela mesma diz, sem muitos motivos para sorrir, sem ver
beleza nas coisas, sem vaidade. Criou os filhos muito rigidamente, pois foi essa a lição que
aprendera com a mãe. Imprimia nos filhos a mesma educação que recebeu da mãe.
Autoritária, nunca escutava os filhos: “Na sua casa era a sua lei”. Foi avó antes dos trinta,
e conta ela que nessa época sua “vida já estava toda virada”. A personagem “pessoa seca”
ganha espaço no palco da vida de Diana, sufocando assim a “pessoa tímida” que era. Uma
das estratégias para continuar mantendo essa nova personagem era nunca sorrir, procurar
sempre o porquê e os culpados dessa vida tão cheia de des-graça.
Penélope, emprestando o termo de Graça, também teve uma vida muito torturosa.
Com todas as adversidades, com todas as incertezas e medos, não se permitiu “secar”.
Assim, como nos casos anteriores, foi enfrentar a vida.
Recém-casada, morava numa casinha construída no quintal da sogra. Foram tempos
muito difíceis ao lado do marido; sorte que tinha os sogros para ampará-la. Quando ficou
grávida a sogra lhe fez as primeiras roupinhas para a criança. “Só descobri que estava
grávida aos cinco meses de gestação. Não fiz o pré-natal e nem fiz o enxoval do bebê”.
Grávida, trabalhava de diarista e arrumou serviço numa fábrica de fundo de quintal. Na
maternidade pensava em como contaria para a mãe aquela situação: “Eu não tinha
comprado nada. (...) Era tanta vergonha (...). Eu chorei... Como eu ia fazer para sair com o
nenê do hospital?” Penélope, tão jovem, certamente se casou cheia de sonhos, mas dia após
dia vivia a verdade dos conselhos do pai:
68
“Meu pai costumava dizer que a única coisa que a mulher escolhe na vida é o
marido. Filhos, pai e mãe não se escolhem, mas o marido é escolha e se você não souber
escolher sofrerá duras penas. Mas quando se é jovem não ligamos para isso. Quando se
está apaixonada não enxergamos outra coisa”.
Toda sua história de esposa e mãe é marcada pelo infortúnio trazido pelo
casamento, pelo drama vivido ao lado do esposo e pela tentativa muitas vezes vã de
reescrita dessa história.
Quando a apresentamos, dissemos que, em determinado momento de sua história,
Penélope descobriu-se grávida e num ato de desespero e de amor, decidiu por não levar a
gestação à diante.
Penélope, mesmo já sendo mãe de outras duas crianças, se negava inicialmente a
tornar-se mãe de uma terceira, visto as condições materiais, psicológicas e afetivas às quais
estava sujeita. “Eu sofri muito (...). O [marido] em vez de ele melhorar, ele piorou muito.
Sabe o que é um homem (...) se envolver com o crack?”. Penélope se mantém em silêncio por
alguns segundos, parece sofrer com a lembrança.
Dando prosseguimento, Penélope conta que seu marido passava dias fora de casa e
quando “ele voltava, chegava num estado de calamidade. Eu nem o reconhecia. Quando ele
chegava, eu pegava um saco de lixo para colocar as roupas dele, enquanto ele ia para o
banheiro tomar banho”. Nesse momento ela baixa seu tom de voz. Na sala, onde a
entrevista foi coletada, éramos só nós duas, ainda assim ela age como se alguém mais
pudesse ouvir seu segredo. Um segredo que a mim era confiado. Diante de tais
circunstâncias “para que pôr mais um filho no mundo?”
Ao descobrir-se mãe numa sala de espera, de algum modo Penélope passou a
representar com mais força o papel de mãe, não mais da mãe que rejeitava a própria cria,
mas de mãe que decidiu, mesmo com tantas adversidades, levar a gravidez adiante e amar
a criança a quem estava gerando. Isso nos leva à compreensão de que a descoberta da
vontade de ser mãe daquela criança e sua imediata manifestação possibilita concretizar em
Penélope a materialidade de sua identidade.
Lima (2010, p. 167) traz uma importante contribuição quando afirma, a partir dos
estudos de Ciampa, que a “identidade se concretiza com base em um processo de
significações estabelecidas com outros indivíduos, no jogo do reconhecimento”. Podemos
inferir a partir daí que as histórias aqui apresentadas, são, sobretudo, histórias de luta por
69
reconhecimento. Reconhecimento profissional, mas principalmente, reconhecimento como
seres humanos.
Quando teve inicio sua trajetória na educação infantil, os filhos já haviam atingindo
certa idade, apenas a mais nova era levada para a creche. Começava então a dupla jornada
de trabalho e estudo na vida daquela que já representava os papéis de mulher-mãe-dona de
casa.
Convém lembrar que o particular é síntese do universal, desse modo, entendemos
que as histórias de Graça, Diana e Penélope refletem a história do que é a vida para um
grande número de mulheres.
Quando olhamos para esse retrato social que elas nos dão, é possível perceber ao
fundo as manchas causadas pelo efeito de políticas desiguais, pautadas num ideário
neoliberal. Exemplo disso é a formação aligeirada citada pelas professoras. Note-se que em
sua fala Graça diz que saía do trabalho, deixava a filha em casa e, apressadamente, se
dirigia à escola. Obteve a formação básica necessária para garantir o emprego; entretanto,
ainda hoje, tem “dificuldade em algumas coisas”.
Diana também expressa em seu discurso a necessidade de estudar para manter o
emprego quando diz: “(...) no tempo da Erundina já existiam rumores de que não exerceria
a função a professora que não tivesse faculdade”. Outros exemplos são extraídos ao longo
das narrativas: “Fiz supletivo; era semestral”, diz Diana. Graça corrobora essa afirmação
dizendo: “tudo isso eu fiz no supletivo (...) em dois anos. Eram quatro, mas de seis em seis
meses a gente fazia uma série”.
Maciel e Shigunov Neto (2011), analisando o impacto das políticas neoliberais na
formação de professores, salientam que o processo de mercantilização atinge os serviços
sociais e os transforma em mercadorias a serem comercializadas livremente no mercado;
implicando no âmbito educacional a perda da qualidade dos serviços prestados.
Ao mesmo tempo em que as políticas públicas educacionais neoliberais
proporcionavam uma ampliação dos serviços oferecidos à população, aumentado
com o isso o acesso à educação por parte da parcela mais carente da sociedade,
até então fora do sistema escolar, não investia os recursos necessários para
melhorar os serviços prestados. (...) Em última instancia, isso está refletido na
queda dos índices de qualidade e produtividade da escola pública. Sob o ponto
de vista neoliberal seu objetivo foi atingido, pois houve um acréscimo no número
de pessoas atendidas pelo sistema escolar (MACIEL; SHIGUNOV NETO,
2011, p. 49).
70
Ainda segundo os autores, essas propostas colocam em voga números, dados
estatísticos e quantificáveis, deixando de lado o princípio da qualidade. Incoerência e
contradição, pois qualidade e quantidade são coisas distintas.
A crítica dos autores é bastante pertinente, pois o modelo de formação vigente não
é suficiente nem adequado para formar os professores para atuar na educação básica, tendo
em vista os estudos de Gatti et al. (2008) e Kishimoto (2008).
O decantado discurso “educação de qualidade para todos” somente se concretizará
a partir do momento em que a escola for capaz de organizar e promover de forma eficiente
e eficaz ações educativas que sejam ao mesmo tempo competentes e flexíveis e que
considerem as necessidades de sua clientela (RAMOS, 1992).
4.3.2 Trajetórias de profissionalização
Discutimos anteriormente que, anterior à LDB, praticamente inexistia critérios para
a contratação de pessoal para atuar nas creches. Os depoimentos abaixo ilustram bem essa
afirmação.
“A entrevista foi simples, não foi coisa assim difícil, eles fizeram algumas perguntas
para mim: qual é a diferença que eu achava entre os meus filhos e os filhos da vizinha? Eu
pensei, e acho que Deus sempre põe as respostas certas na hora, da vida da gente. Eu pensei
assim: qual é a diferença dos meus filhos e os filhos da vizinha? São crianças do mesmo
jeito, respondi assim. (...) Então eles me mandaram uma cartinha para eu ir à regional (...)
que lá me encaminhariam para uma creche (...) que ficava pertinho da minha casa, lá eu
trabalharia com crianças (...) da comunidade onde eu morava” (Professora Graça).
A fala de Graça corrobora as afirmações contidas na bibliografia que compõe este
trabalho. Para “pajear” crianças não era necessário nada além de experiência anterior de
cuidado com crianças. A pouca escolaridade também não era problema, podendo ainda
justificar a baixa remuneração dessas profissionais.
“Eu tinha só a 4ª série. Acho que todo mundo tinha nessa faixa de estudo”
(Professora Penélope).
“Só tinha a 4ª serie porque também era o exigido. Bastava ter só a 4ª serie!” (Professora Graça).
“Eu tinha a 6ª série e havia parado de estudar na metade da sétima e tinha filhas
estudando, eu olhava o caderno e acompanhava na lição" (Professora Diana).
71
No relato que segue, observam-se modificações na maneira de conduzir as
contratações das educadoras de creche e anunciam o início de uma “nova era” na educação
de crianças pequenas.
“Fiz concurso, a prova foi, para quem estava nervosa, difícil. Eu estava tranquila”,
lembra Diana. Nessa época, o município de São Paulo já passava a exigir maior grau de
escolaridade para atuar como educadora nas creches. Essa exigência forçou nossas
entrevistadas a buscar formação. Cursaram suplência nos níveis fundamental e médio; em
seguida obtiveram formação específica para atuar no magistério infantil.
“Na época da [prefeita] Luiza Erundina ela exigiu que a gente começasse a
estudar. (...) Ela exigiu que a gente tivesse até a 8ª série, e tudo isso eu fiz no supletivo. Em
dois anos. (...) E eu continuei tendo que estudar. A gente fez o ensino médio, também foi
supletivo” (Professora Graça).
“(...) no tempo da Erundina (...) já existiam rumores de que não exerceria a função
caso a professora não tivesse faculdade. (...) Fui estudar, fiz supletivo, era semestral. Fiz o
colegial técnico e quando veio o ADI Magistério eu fui direto para a faculdade e fiz
Pedagogia” (Professora Diana).
Vale lembrar que na época em que Luiza Erundina era prefeita de São Paulo (1989-
1991), Paulo Freire estava à frente da Secretaria de Educação do município. De acordo
com Néspoli (2013, p.30), ao longo de sua gestão, Paulo Freire provocou uma intensa
“mudança em relação à forma como se vinha gerindo a educação no país, para isso
fundamentou sua administração em uma política de participação popular”. É partir daí que
se inicia o processo efetivo de escolarização das massas populares. Esse momento político
foi o prenúncio de mudanças que entraram para a história da educação brasileira.
A história da professora de educação infantil que atua nas creches paulistas tem em
suas primeiras páginas relatos sobre a inserção dessas educadoras em cursos supletivos; no
entanto, é via ADI Magistério que suas identidades profissionais começaram a se
consolidar.
Após ter concluído o ensino médio, Graça relata que também cursou o ADI
Magistério e, segundo ela, “foi a libertação de tudo nas nossas vidas”. De que libertação
ela trata? Ou melhor, o que as aprisionava? As palavras de Penélope nos indicam um
caminho.
“O ADI Magistério deu às pajens mais dignidade, o valor e o ganho foram enormes.
(...) Antigamente a gente não se via como professora. (...) O curso ajudou a mudar isso
também, mudou nossa autoestima”.
72
Não podemos ignorar que na época da creche como equipamento vinculado à
Secretaria de Assistência Social, vários cursos eram oferecidos às educadoras, contudo,
tinham caráter de treinamento. Mas, como bem lembra Graça, “a gente precisava mesmo de
formação”.
Freire et. al (2014, p. 73) considerando a formação uma demanda fundamental da
educação contemporânea, assinala que é preciso formar, e não treinar os educadores.
Há uma diferença radical entre treinar e formar. Não é somente uma questão
semântica. Formar é algo mais profundo que simplesmente treinar. Formar é uma
necessidade precisamente para transformar a consciência que temos, aumentar sua
curiosidade intuitiva, que nos caracteriza como seres humanos. (...) Do ponto de
vista da educação, uma das questões mais sérias com respeito ao presente imediato
e ao amanha é como formar pessoas de maneira que elas não se percam em meio
às mudanças que a tecnologia vai criando.
Formar professores para a educação infantil é propiciar a aquisição de
conhecimentos teórico-metodológicos e práticos que subsidiem a ação pedagógica sem
desconsiderar as etapas do desenvolvimento infantil, a unidade entre educar e cuidar e que
seja capaz de desmitificar a concepção de creche como extensão do lar, incutindo nos
educadores a consciência de que a creche é um espaço de atuação profissional onde as
relações afetivo-emocionais estão presentes e são necessárias, sobretudo para garantir que
as crianças se sintam respeitadas, seguras e protegidas.
Se no passado essas mulheres, mesmo desenvolvendo atividades de educação e
cuidado, não eram compreendidas nem se identificavam como professoras, é a partir da
formação que elas começam o intenso e contínuo processo de metamorfose profissional.
Na tentativa de garantir que essas poucas palavras que lançamos acerca desse
assunto não soem insípidas, trazemos mais um recorte da narrativa de Penélope:
“Com o tempo a gente foi se acostumando a ser professora; a sociedade passou a
valorizar mais a professora de creche”.
Notemos que a professora diz que “com o tempo, foi se acostumando a ser
professora”. A transformação que insistimos em abordar ocorreu não apenas na esfera
administrativa quando da mudança de cargos e acesso ao quadro do magistério municipal,
aconteceu também nas esferas pessoais e da coletividade.
O reconhecimento social e o prestígio de ser professora foram alcançados à medida
que as personagens centrais, isto é, as ex-pajens/ADIs que agora se transformaram em
professoras, passaram a se reconhecer como tal.
73
A importância dos estudos é reconhecida também na fala de Diana, ao afirmar que
o curso de Pedagogia lhe oportunizou um novo olhar sobre o trabalho e sobre a forma de
lidar com a pequena infância.
“A partir do momento que você estuda sua vida muda em todos os sentidos. A sua
vida profissional e a sua vida particular muda em muitas outras coisas. (...) Os estudos
abrem os olhos”.
Começa-se a admitir que o trabalho voltado para crianças de zero a três anos seja
um trabalho pedagógico marcado pela tríade educação-cuidado-brincadeira, que passa a se
incorporar na prática cotidiana das inúmeras professoras de creche. Uma tarefa que une
educação e cuidado exige a aceitação do ser professora e o reconhecimento daquilo que
fazem como uma tarefa de extrema importância (FREIRE, 1993/2007).
O respeito, a valorização e as mudanças destacados nos fragmentos anteriores
reaparecem nas falas de Graça e Diana, reafirmando que agora elas possuem um espaço na
educação, que se sentem pertencentes a um grupo de professores, os que atuam na
Educação Infantil.
“Hoje, ser chamada de professora não é só por causa do dinheiro, mas é pelo
respeito, a valorização que a gente tem. Hoje é muito diferente daquilo que a gente tinha no
passado. De primeiro, quantas vezes a gente ouvia as mães falarem que a gente estava aqui
para cuidar e (...) para isso não precisava estudar” (Professora Graça).
“Ainda hoje alguns falam ‘tia’. Mas hoje percebo que tem um pouco mais de respeito
e valorização. Antes eles achavam que a gente estava aqui e não era mais que nossa
obrigação dar banho, trocar” (Professora Diana).
Mais do que simples palavras, elas expressavam no olhar a grande conquista,
símbolo de sua ‘libertação’. Marcas constitutivas de uma identidade em movimento.
Hierarquização
Tratamos em capítulos anteriores da questão da falta do sentimento de
pertencimento ao grupo de professoras de educação infantil evidenciados em educadoras
de creche (COTA, 2007) e aqui esperamos lançar argumentos que nos conduzam ao
entendimento do como e por que isso acontece. É Diana, ao falar da hierarquização do
trabalho docente na educação infantil, quem melhor explica:
“Desmereciam nosso trabalho por conta do cuidar (...). Era um trabalho menos
respeitado e menos valorizado”.
74
Tomemos o início da fala de Graça como um ponto para reflexão: “Hoje, ser
chamada de professora...”; no passado (isso não quer dizer que ainda não aconteça), as
professoras eram chamadas “tias”. Segundo Freire (2007, p. 12), identificar a professora
como tia “é quase que proclamar que professoras, como boas tias, não devem brigar, não
devem rebelar-se, não devem fazer greve”. Aceitar-se como tia implicaria sufocar a
identidade da professora forjada a partir da busca por formação. Significaria permitir que
sua profissionalidade lhe fosse retirada para ser tia, parente, família. Diana explica essa
cisão entre ser professora de creche e professora da Escola municipal de educação infantil-
EMEI (pré-escola):
“Querendo ou não ainda existia um pouco de assistencialismo, foi devagar que a
gente foi largando (...), nós tínhamos vícios de assistencialismo ao vir para a educação que
elas não tinham, e isso gerava um conflito bem grande. A visão era bem diferente, a nossa
visão era bastante de cuidados. No caso delas, a parte pedagógica era o que mais as
interessava, existia essa discrepância. A gente via a criança como ser humano e as outras
professoras de EMEI viam como aluno”.
Nos discursos das professoras da creche e da pré- escola existe uma divergência.
Diana diz que na creche as crianças eram vistas como seres humanos e na EMEI eram
alunos. A base dessa afirmação está na diferença estabelecida entre e educação e ensino,
sustentada pela legislação educacional vigente que estabelece como níveis educacionais: a
educação infantil e os ensinos fundamental, médio e superior. Note-se que na primeira
etapa da educação básica atribui-se o termo educação, pois estaria mais voltado aos
aspectos de cuidados físicos e afetivo-emocionais, em detrimento dos aspectos cognitivos,
enquanto ensino ressaltaria os aspectos instrucionais.
A mesma concepção que cinde a professora e reduz o fazer docente na educação
infantil a um de seus polos é a que alimenta esse tipo de discurso que fragmenta a criança.
Como se a criança deixasse de ser como tal só porque entrou para a “escola”. Como se a
educação infantil não fosse um espaço de instrução e ensino e a escola não fosse um lugar
para o cuidado. Como se fosse possível uma educação para o corpo descolada de uma
educação para o pensar, ignorando o fato da criança ser um ser completo, total e
indivisível.
Lembramos que a palavra aluno, etimologicamente, deriva de alumni que significa
sem luz. Porém, como afirma Kramer (2011, pp. 90-91):
75
(...) não nos interessa que a criança passe de uma situação onde está “sem voz”
para outra onde permanece “sem luz”, como se em ambas fosse depositária
passiva da fala do outro, da razão, do esclarecimento, tendo essas instituições a
função de dar a luz! Não podemos continuar a olhar as crianças como aqueles que não são sujeitos de direitos
Ainda segundo a autora, precisamos aprender com as crianças e isso só será
possível quando passarmos a observar seus gestos, ouvir suas falas, compreender suas
interações etc. Assim, a construção de um olhar sensível para a criança no cotidiano da
instituição de educação infantil é fundamental.
Voltemos ao depoimento de Diana, quando ela fala que o trabalho na creche era
bastante pautado pelo cuidado e que na pré-escola a parte pedagógica era o que mais
interessava. Nos capítulos anteriores apresentamos estudos e argumentações teóricas que
visam explicar a gênese dessa dicotomia, por isso não pretendemos retomá-las aqui,
contudo, não podemos nos abster de uma questão: é possível educar sem cuidar?
Ainda em tempos de “assistencialismos puro”, Diana revela que o trabalho junto às
crianças já continha a dimensão pedagógica. Portanto, embora permeado pelo cuidar, o
trabalho desenvolvido na creche também era constituído pelo educar. A entrevistada relata
que a unidade entre educação e cuidado também foi a tônica do concurso para ingresso no
cargo de auxiliar de desenvolvimento infantil, pois as perguntas eram voltadas para os
“cuidados com as crianças e (...) pedagógico também. Nessa época já tinha um olhar mais
pedagógico”.
Compreendemos que o cuidar perpassa toda a vida e as relações do homem com a
natureza e com a sociedade, portanto é um elemento essencial e indispensável à educação.
Assim sendo, “a educação infantil não pode ser compreendida como espaço onde se instrui
nem como lugar só de guarda e proteção, lugar de cuidar e assistir” (KRAMER, 2011, p.
85).
Cerisara (2002), discutindo as relações conflitivas entre auxiliares de sala e
professoras, explica que nunca houve um desvelamento explícito desses conflitos e
assinala que a dinâmica dessas relações entre as profissionais de educação infantil deve ser
analisada considerando uma hierarquização oficial entre elas. Essa hierarquização oficial
tratada pela autora pode ser evidenciada, no caso das professoras da rede municipal de São
Paulo, pela configuração da carreira do Magistério e jornada de trabalho.
76
Art. 6º. A carreira do Magistério Municipal, de que trata o art. 6º da Lei nº 11.229, de
1992, e legislação subsequente, passa a ser configurada da seguinte forma:
I - Classes dos Docentes:
a) Professor de Educação Infantil;
b) Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I;
c) Professor de Ensino Fundamental II e Médio;
Art. 7º. Compreende-se por Classe:
I - para os Docentes: o agrupamento de cargos de mesma natureza, denominação e
categorias diversas (LEI MUNICIPAL Nº 14.660, DE 26 de dezembro de 2007).
No quadro acima é possível perceber a distinção entre as classes dos docentes. Na
creche, as profissionais ocupam o cargo de professora de educação infantil (PEI), cuja
função compreende a educação e cuidados da criança de zero a três anos. As profissionais
que atuam na pré-escola, embora desenvolvam ações de educação e cuidado para e com as
crianças de quatro e cinco anos, ocupam o cargo de professoras de educação infantil e
fundamental (PEIF) podendo, a seu critério, transitar de um espaço para outro, como
mostra o quadro a seguir.
(...) os integrantes da carreira do Magistério Municipal atuarão nas seguintes áreas:
I - área de docência:
a) Professor de Educação Infantil: na Educação Infantil;
b) Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I: na Educação Infantil e
no Ensino Fundamental I (...).
(Seção III, artigo 11 da Lei Municipal Nº14. 660/ 2007).
De acordo com a organização posta pela referida Lei Municipal, o PEIF tem
liberdade para escolher entre a escola de ensino fundamental e a instituição de educação
infantil, afora a creche.
Exceto o PEI, os demais servidores do magistério municipal (diretores,
coordenadores pedagógicos, auxiliares técnicos, assistentes de direção, agentes escolar e de
apoio, supervisores etc.) podem “circular por onde quiserem”. Quando se trata da PEI, essa
liberdade é cerceada, haja vista o que diz alínea A, inciso I, no quadro acima. Note-se,
77
ainda, que nesse artigo não há nenhuma distinção entre os “níveis” de educação infantil ou
especificidades do trabalho a ser desenvolvido pelo professor em função da faixa etária dos
educandos.
Causa-nos inquietação pensar “se o diretor pode ser diretor onde ele quiser”, se a
PEIF pode optar por “educar ou ensinar”, “por que a PEI não pode ser professora onde ela
quiser?” Essa questão foi colocada pelo professor Roselei Júlio Duarte, quando do seu
discurso acalorado na cerimônia de abertura do X Congresso de Educação Infantil,
realizado em São Paulo, pelo Sindicato dos Professores de Educação Infantil do município
(Sedin) em outubro de 2014.
No discurso legal, sustenta-se uma unidade entre as diferentes instituições de
educação infantil, a integração curricular e articulação com o ensino fundamental (Portaria
Municipal 5930/13), na prática, o que ainda se evidencia são relações conflitantes, como
bem descreveu Diana.
A crítica que levantamos não desconsidera o papel precípuo das políticas
educacionais na construção da identidade da creche como espaço educativo, mas não
podemos ignorar os “deslizes” dessas políticas, pois eles acabam por reforçar
desigualdades, estabelecer hierarquias e cinde a imagem do professor de educação infantil.
Nossa crítica se sustenta na necessidade de romper com a lógica que identifica a educação
de crianças pequenas com o cuidado materno (ROSA; GOMES, 2012), lógica esta que se
mantém, porém disfarçada, nos discursos de unificação da educação infantil e valorização
dos profissionais que atuam nesse segmento.
Em São Paulo, no que diz repeito à jornada de trabalho, a Lei Municipal nº
14.660/2007 apresenta a seguinte estrutura:
I - Professor de Educação Infantil (PEI): Jornada Básica de 30 (trinta) horas de trabalho
semanais;
II - Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I (PEIF) e Professor de Ensino
Fundamental II e Médio: Jornada Básica do Docente, correspondendo 30 (trinta) horas aula
de trabalho semanais; (...)
§ 1º. A Jornada Básica de 30 (trinta) horas de trabalho semanais, de que trata o inciso I
deste artigo, será cumprida exclusivamente nos Centros de Educação Infantil (Seção IV,
Artigo 12).
78
O emprego dos termos horas de trabalho e horas aula surge como reforçador dessa
cisão no campo da educação infantil, uma vez que as educadoras de zero a três anos
devem, impreterivelmente, cumprir uma jornada de trinta horas relógio. Já no caso das
demais educadoras do nível básico, cada hora aula perfaz o tempo de quarenta e cinco
minutos, não podendo ultrapassar o total de dez horas aula por dia. Esses apontamentos nos
fazem refletir sobre como, efetivamente, valorizar as profissionais da educação infantil se,
legalmente, distâncias são colocados entre elas?
Rosa e Ramos (2012, p. 133) dão uma pista ao ilustrarem como se dá a estruturação
da carreira do magistério público no Recife:
(...) a professora de berçário é integrante do Grupo Ocupacional Magistério,
podendo atuar desde o berçário até o 5º ano do ensino fundamental de nove anos
e tendo as mesmas vantagens e regime de trabalho estabelecidos no plano de
cargos e carreira municipal.
Acreditamos que dar a possibilidade da professora de creche “ser professora em
outros espaços” é reconhecer a importância dessas profissionais na gestão de ações que
respeitem as especificidades do desenvolvimento infantil. É reconhecer sua identidade e
legitimar um perfil de profissional crítico, reflexivo e comprometido ética, política e
afetivamente com sua prática.
Os desafios iniciais da profissão
Aprender a ser professor é uma aprendizagem que se dá por meio de situações práticas, que sejam efetivamente problemáticas, o que exige o desenvolvimento
de uma prática reflexiva competente. Exige ainda que, para além de conceitos e
de procedimentos, sejam trabalhadas atitudes, sendo estas consideradas tão
importantes quanto aqueles (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2011, pp.
18-19).
Conforme explanação de Maciel e Shigunov Neto (2011), aprender a ser professor
é um processo que vai se dando. Nesse processo, o sentir-se professor também vai se
construindo e, como em toda construção, existem etapas que precisam ser seguidas. A
fundamentação teórica da prática é a primeira delas. Toda ação docente precisa estar
alicerçada, bem fundamentada, esse alicerce é a formação. Exige-se que os tijolos sejam
colocados; os tijolos representam nosso inacabamento. Dia após dia o professor vai se
constituindo professor e nesse processo dinâmico, coletivo e particular, vai atribuindo
identidade ao espaço onde atua. Com o tempo, necessitará de retoques ou que se quebrem
79
algumas paredes e se levantem outras em seu lugar. Essas intervenções serão necessárias
para livrar o professor da mesmice profissional em que vive.
Falamos em outro momento do desafio enfrentado pelas entrevistadas de conciliar
casa-trabalho-estudos. Descortinam-se em suas falas dificuldades que surgiram no inicio
da profissão docente, tais como: excesso de crianças por sala, indefinição das atribuições
da pajem/ADI e solidão pedagógica.
Os recortes abaixo nos dão uma dimensão desses desafios e dificuldades
enfrentados por elas.
Chegando lá, no primeiro dia, já enfrentei um berçário com vinte e tantas crianças
para duas pessoas (Professora Graça).
Penélope confirma o quadro dado por Graça, dizendo “tinha muita criança e a gente
tinha que fazer tudo. (...) Tinha que dar banho, trocar de roupa, arrumar cabelo, tirar
piolho. Tinha que cuidar mesmo”. Ela conta que, em seu primeiro dia de trabalho, sequer
sabia o que era para fazer, pois ainda não existia uma definição das atribuições de cada
profissional contratada. Quando questionada sobre o que queria fazer, ela não teve dúvidas;
“disse que queria cuidas das crianças”.
Embora seja vasta a bibliografia que aborda as misturas dos papéis de mãe e
profissional na educação de crianças pequenas, podemos observar nesses recortes indícios
de um distanciamento entre eles. Pensamos que, se a experiência materna fosse suficiente,
então essas mulheres não encontrariam tantas dificuldades. Mas o que evidenciamos na
fala de Graça é que, ao menos inicialmente, tiveram que encarar os desafios colocados pela
profissão. Certamente deve ter sido fácil, primeiro porque tendemos a idealizações.
Idealizamos um tipo de escola, um modelo de aluno. Mas, qual deverá ser o ideal da
escola?
Choque de realidade foi o que Diana sentiu ao entrar pela primeira vez em sua sala.
Eram muitas crianças e ela teve “toda a dificuldade do mundo” e nenhuma ajuda. Teve que
se virar. “Sozinha, claro! (...) E tinha que dar conta, não podia deixar nenhuma criança se
machucar”.
Para elas, tudo aquilo era novo. Não importa se Graça já trabalhou no clube de
mães, se Penélope havia cuidado de crianças no passado ou a experiência materna de cada
uma delas, importava mesmo a acolhida, o preparo para ser professora naquela instituição;
uma palavra que inspirasse segurança, que lhes desse a certeza de que dariam conta. Tudo
80
o que Penélope sabia era que queria cuidar das crianças, mas para isso precisava de que?
Não tiveram ajuda de ninguém. Foi experimentando coisas que construíram uma pedagogia
da experiência.
81
4.4 Dimensão afetiva da prática pedagógica
A afetividade é um tema bastante explorado em estudos da Psicologia e da
Pedagogia, sendo um termo bastante utilizado também no campo escolar. Queremos
compreender quais as percepções que as educadoras têm sobre a dimensão afetiva de seu
trabalho e qual o significado atribuído por elas à função desempenhada.
Nosso universo participante está na faixa de 60 anos de idade, exceto Diana, são
casadas, têm filhos e já são avós de um ou mais netos. Vimos ainda que quando iniciaram
sua trajetória com educadoras infantis, por terem filhos ainda pequenos, utilizavam os
serviços da creche onde elas mesmas eram educadoras. Queremos com isso voltar a um
ponto anterior: estes “indicativos” bastam para explicitar o suposto duplo papel
desempenhado no âmbito institucional? Vimos, segundo Cota (2007) e Nascimento (2007),
que esse duplo papel é resultado de uma mistura das relações casa-creche que foi se
constituindo como premissa no âmbito das creches. Em concordância, Ongari e Molina
(2003, pp.114-15) explicam:
(...) o entrelaçamento entre a relação familiar e profissional é particularmente
acentuado tanto em relação aos próprios filhos, como em relação à divisão da
responsabilidade com os pais das crianças que lhes são entregues: a educadora
desenvolve funções de cuidado especificamente ligadas, na nossa cultura, ao
papel materno; em muitos casos tem filhos na mesma idade das crianças que
cuida (ela mesma os deixa, portanto, com outras), está, além disso,
frequentemente muito próxima das mães que utilizam a creche (pela idade, nível
de instrução, porque ela também tem filhos pequenos).
Optamos por retomar desse ponto, pois acreditamos, e nossas entrevistadas
sustentam nossa afirmação, que esse olhar sobre as educadoras já não cabe mais nos dias
atuais. Trata-se de um tabu que precisa ser rompido. Ainda que não seja da noite para o
dia, como disse Diana, as mudanças acontecem! Precisam acontecer.
Refletindo sobre a possível mistura dos papéis mãe-educadora, Diana afirma, de
forma muito clara, a heterogeneidade dos papéis mãe e educadora no trabalho
desenvolvido no ambiente institucional.
“O [filho] mais novo frequentou quando eu era lactarista. Eu o levava todos os dias,
meus netos também vieram para cá. (...) Eu nunca interferi, aqui eu não era nem a mãe nem
a avó. (...) Eu olhei os filhos de muitas [professoras] aqui e (...) elas respeitavam o meu
trabalho” (Professora Diana).
O fato de serem mães para essa profissional não interfere na natureza do trabalho a
ser desenvolvido por elas. Em nenhum momento, ao longo das entrevistas, a educadoras
82
afirmaram que a experiência materna foi decisiva para a constituição de sua
profissionalidade, refutando assim um ideário mantido histórica e socialmente, partilhado
por estudiosos, seja em forma de inquietações ou de maneira conclusiva.
Mais uma justificativa que lançamos para elucidar ao leitor o motivo de tal
retomada está contida na resposta de Diana quando indagada sobre se ter sido mãe cedo ou
tido a experiência de criar três filhos a ajudou no trabalho na creche.
“Não! Aqui você tem outra postura, bem diferente do que é em casa. Lá você relaxa
mais, aqui você tem mais medo, mais tensão. Aqui eu sou uma pessoa mais tensa. Não são
meus!”
A professora não nega o quanto gostava de trabalhar no berçário menor (0-1 ano),
tanto é que trabalhou quase a vida toda nesse agrupamento. Lá, devido às especificidades
da faixa etária e os tipos de cuidado com os bebês, havia uma maior aproximação, mas
ainda assim não podemos, por causa das relações afetivas construídas nessa interação,
afirmar que a professora assume ou deseja o papel de mãe das crianças. Isso seria ignorar o
que Diana, profissional experiente nesse campo acaba diz.
Gama (2014), considerando a dimensão relacional como algo inerente à atividade
humana ressalta que o trabalho na educação infantil é uma atividade que envolve tanto o
cuidado material como o imaterial que implica um vínculo afetivo-emocional. No entanto,
a educação infantil exige da profissional uma postura diferente daquela que ela mantém em
casa. Ainda que seja de fato a mãe de um de seus alunos, a professora não poderá
negligenciar sua responsabilidade diante das demais crianças, nem abrir mão do seu fazer
profissional em detrimento de ser mãe.
Com o tempo e as experiências formativas e sociais dessas profissionais, a
afirmação de que a creche é um espaço educativo ganhou notoriedade em seus discursos.
Esse espaço de educação que também é cuidado, já que, como dissermos, o cuidado está
presente em todas as ações do homem, como afirma Diana: “O nosso trabalho aqui é
complementar ao da família e a família deve fazer o mesmo em relação ao nosso”.
Incorporando o discurso da escola, a professora revela dois pontos importantes: a
parceria com a família e o distanciamento dos papéis antes mencionados. Quanto ao
primeiro aspecto, encontramos no artigo 1º da LDB um elo de fortalecimento.
“a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida
familiar na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil nas
manifestações culturais” (Título I; Lei 9394/96).
83
Educar é um ato coletivo, social, ético e político. O estabelecimento de parcerias
entre as instituições escolar e familiar precisa ser respeitado e alimentado cotidianamente.
Relações de respeito mútuo e de valorização das práticas profissionais e maternais (no caso
das mães) de cuidados com crianças, além do maior envolvimento das famílias nos
processos educativos são alguns exemplos que podem surgir dessa parceria. Nesse sentido,
a afirmação de Kramer (1995, p. 100) nos parece bastante atual:
São dois os principais objetivos da interação escola-famílias. De um lado, ela
visa propiciar o conhecimento dos pais e responsáveis sobre a proposta
pedagógica que está sendo desenvolvida, para que possam discuti-la com a
equipe. De outro lado, essa interação favorece e complementa o trabalho
realizado na escola com as crianças, na medida em que possibilita que se
conheçam seus contextos de vida, os costumes e valores culturais de suas
famílias e as diferenças ou semelhanças existentes entre elas em relação à
proposta.
Entendemos, a partir dessa citação, que a relação escola-família deve abarcar o
respeito pelos modos de ser, pensar e agir dos pais e familiares, a valorização de seus
costumes e tradições e explicitar as metas, ações e prioridades do processo educativo.
Nesse ponto, Kramer (1995) e Brasil (2009) são concordes: a interação entre escola-
famílias deve contemplar uma relação de respeito mútuo, na qual pais, responsáveis e as
crianças se sintam acolhidas.
A creche é um espaço de múltiplas vivências, experiências ricas e muitas
aprendizagens, na qual as crianças se socializam, brincam e convivem com a diversidade
humana e cultural. Por isso, a garantia do direito das famílias de acompanhar as vivências
e produções das crianças também deve ser respeitada; desse modo, a instituição de
educação infantil deverá organizar reuniões com os familiares para apresentar sua proposta
de trabalho, seu plano de metas para o ano letivo etc. Abrindo espaço para essa interação, a
creche amplia sua possibilidade de desenvolver um bom trabalho, uma vez que permite a
cooperação e a troca de conhecimentos entre familiares e educadores em relação às
crianças (BRASIL, 2009).
Assim, entendemos que a dimensão afetiva engloba, além dos processos que
contribuíram para a constituição de suas identidades, já explicitados em outros momentos,
as relações da educadora com as crianças e com as famílias. Devemos enfatizar que nos
reportaremos à concepção de afetividade desenvolvida por H. Wallon.
Como ressalta Dér (2010, p.61), a afetividade, na perspectiva walloniana, “é o
conjunto funcional que responde pelo bem-estar e mal-estar quando o homem é atingido e
84
afeta o mundo que o rodeia”. Desse modo, entendemos por afetividade a capacidade
humana de afetar e ser afetado pelo mundo externo e/ou interno, por sensações que podem
ser agradáveis ou desagradáveis13
.
Segundo Wallon (1946, apud WEREBE; NADEL-BRULFERT 1986), as relações
existentes entre indivíduo e meio são mutuamente transformadoras, sendo o meio um
complemento indispensável ao ser vivo. Tomando o depoimento de Diana,
compreendemos a creche como um importante espaço de interação e de construção de
identidades. Nesse espaço, Diana conta que aprendeu ser quem hoje ela é de fato. Na
creche, convivendo com diferentes histórias, interagindo com as crianças e com os demais
sujeitos integrantes de uma “teia” de relações férteis, a professora aprendeu a sorrir.
Descobriu-se outra dentro de si mesma.
“Eu sempre fui muito tímida. Era tímida ao máximo. Essa pessoa que você vê agora,
animada, sorrindo, se desenvolveu depois de muito tempo. (...) (...) Eu não conversava, não
brincava, eu era muito séria e não achava motivo para rir. (...) Aprendi a rir faz pouco
tempo. Tem uns dez anos que eu aprendi a rir. Aprendi a rir aqui”.
Pouco a pouco a personagem tímida que não tinha motivos para rir vai se
transformando na personagem pessoa animada que aprendeu a sorrir na creche.
Convivendo com outros sorrisos e experimentando a alegria alheia se viu contagiada.
Sentiu-se afetada pelas realidades que se desnudavam diariamente diante de seus olhos.
“Eu aprendi a ser menos seca com o tempo (...), depois que entrei aqui no CEI,
convivendo com outras pessoas, vendo outras vidas, outros mundos, vendo vários sofrimentos
tão piores que os meus. Tinha umas crianças, quando comecei, antigamente dizia creche, era
assistencialismo, que eram paupérrimas. Tinha criança que vinha toda marcada. Eu me
perguntava “eu acho que eu sofro?” Tinha aquela mãe que apanhava do marido”
(Professora Diana).
Consideramos que as relações afetivo-emocionais são um dos núcleos do trabalho
desenvolvido diariamente nas unidades de educação infantil, pois essa dimensão relacional
é considerada, de acordo com a psicogenética walloniana, a base do desenvolvimento da
criança e, portanto, não pode ser ignorada ou negada por quem atua nesse campo.
É preciso lembrar que o professor também é afetado pelos alunos com quem se relaciona, e, ao propiciar um ambiente mais adequado ao desenvolvimento desse
aluno, promove, em si próprio, modificações no desempenho de seus papeis.
Professor e aluno - o eu e o outro- são sempre complementares, e a modificação
no espaço de um interfere no espaço do outro (ALMEIDA, 2010, p. 138).
13 Ideia baseada em anotação de aula, da disciplina Afetividade no Processo de Constituição e na Atuação do
Educador VI, ministrada pela Professora Drª Laurinda Ramalho de Almeida (2ºsemestre/2013).
85
Essa importante contribuição nos evoca a conceituação de identidade formulada por
Ciampa, pois a ideia de que a identidade é constitutivamente social implica aceitar o papel
do outro nesse processo de constituição do eu. Professor e alunos vão se constituindo
sujeitos cujas histórias se entrelaçam, sendo que a interferência de um é vital na formação
da identidade do outro. Desse modo, as interrelações estabelecidas no contexto da creche
são fundamentais para assegurar às crianças e às educadoras um ambiente humanizador.
Humanização é necessariamente um processo que implica o sujeito em sua totalidade, o
que significa que, na relação que se estabelece com o mundo social, ele é um ser, no campo
do psiquismo, dialeticamente cognitivo e afetivo-emocional. Isto se torna evidente no
fragmento que segue:
“No berçário tinha muita retribuição, sorriso, carinho, o engatinhar, os primeiros
passos, o falar, o cantar, o bater das palminhas. Se eu falar que não me emocionava, que
não sentia... é impossível, ou não é ser humano” (Professora Diana).
A professora ensina uma importante lição: nenhum de nós é uma ilha! Pereceríamos
sem o contato com o outro e sem a possibilidade de nos emocionar, não teria havido
humanização. A emoção que brota das relações estabelecidas entre educadora-criança e
meio é a base de toda relação pedagógica.
Notamos na fala da professora que lidar com bebês exige o dar-se por inteiro. Sem
essa entrega, Diana não experimentaria o sabor da emoção e correria o risco de manter-se
“seca” e não ser humana.
Merani (1969) afirma que o conceito de humanidade é necessário e constitui a base
de uma pedagogia futura. Uma pedagogia humanizadora, deve, portanto se pautar nos
princípios da justiça e solidariedade como defendia Wallon.
Tanto para a teoria vigotskiana quanto para a walloniana o contato com o outro e
com o meio são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo, pois, embora
nasçamos com um equipamento próprio da espécie, que é orgânico, é o meio que orienta
nosso desenvolvimento. As relações do indivíduo com a cultura, com a sociedade, a forma
como lida com as experiências cotidianas sempre são mediadas pelo outro e permeadas
pela afetividade. Sem essa interação com o mundo físico e social, nosso organismo não
daria conta de produzir no homem sua humanização.
Diante do exposto, compreendemos que no decorrer da existência do indivíduo, o
meio ou os diferentes meios com os quais interage tem um papel primordial para seu
86
desenvolvimento. No caso das crianças, o contato com diferentes educadoras e também
com outras crianças, as formas de lidar com o meio e de conhecê-lo, as diversas maneiras
que encontram para superar os desafios que o meio lhes impõe são essenciais para o
processo de individuação e para o fortalecimento do eu; ademais, esse contato lhes
propicia um sentimento de pertença. Assim, no decorrer de sua vivência na creche, a
criança passa a se sentir parte de um conjunto que para ela tem grande importância.
Esse processo é, portanto, constitutivo da identidade dessa criança e será uma das
bases para as identidades-metamorfoses ao longo de sua vida. Utilizando-nos da concepção
de Wallon sobre a educação infantil, é importante ressaltar:
A escola maternal parece perfeitamente adequada para preparar a emancipação
da criança (...). Para que a criança se sinta feliz, é necessário que exista ainda
relações de ordem pessoal, direta, quase de natureza maternal com as educadoras
(WALLON, 1952/1975, p. 212).
Na educação infantil, o estabelecimento de vínculo afetivo é essencial para o
processo de adaptação e integração da criança à instituição e para a formação de sua
identidade (SÃO PAULO, 2007), além de contribuir para o fortalecimento do ser e sentir-
se professora de educação infantil. Nesse sentido, afirma Cardoso (2014, p. 66), “a
educação infantil tem um papel fundamental na formação humana, em especial nos
primeiros anos de vida”.
A forma como as professoras deste estudo percebem a dimensão afetiva do seu
trabalho pode ser traduzida nas palavras gratificação, satisfação, realização profissional e
aprendizado. Em outro relato fica implícita a preocupação de Diana em não fragmentar a
criança e a necessidade de superar um desafio que se lança diariamente: contemplar
oportunidades para que o inesperado aconteça (SÃO PAULO, 2014).
“O [bebê], por exemplo, ele não tinha as pernas, ele tinha os joelhos que emendavam
os pés. Ele entrou aqui bebê, quando ele ficou em pé pela primeira vez, eu vibrei. Nós
vibramos! Falamos para a mãe, ela ficou perplexa “vocês estão brincando!”, ela dizia. Ele
subiu direitinho nas grades do berço, é gratificante! Você vê o valor do seu trabalho, não
precisa que ninguém fale” (Professora Diana).
Diana assegura que “uma pessoa que trabalhar no berçário e se desesperar, não
trabalha. Tem que ser centrado, tem que ter cabeça fria”. Isto, contudo, não significa não
sentir o calor que emana das relações estabelecidas com as crianças, não significa não dar-
lhes calor.
87
Ao revelar ao mundo que era capaz de se emocionar, Diana transformou seus
mundos (o externo e o interno), anunciou a morte da personagem seca, rígida, daquela que
não tinha motivos para sorrir e fez surgir a pessoa humana, sensível, solidária e que se
reconhece como professora. Nutriu-se de palavras e gestos de esperança, vibrou ao ver os
primeiros passos de uma criança aparentemente sem chances de andar. Aparentemente!
Quando o bebê andou, a professora conta que vibrou e exibe um largo sorriso. Não era
vaidade. Era gratidão. Aqueles passos a fez crer na beleza da vida e a redirecionou ao
mundo humano. Mundo do qual ela se desligara quando seus sentimentos secaram.
Se sentindo privilegiada por ser educadora infantil, Diana diz: “uma pessoa
insatisfeita não consegue fazer nada de bom e nem passar nada de bom para ninguém”,
com isso revela mais um movimento na construção de sua identidade de professora que a
prendeu a vibrar e brindar a vida pelas pequeninas mãos dos bebês.
Paulo Freire em seu livro A Pedagogia da Autonomia, ressalta que ao lidar com
gente não se devia estimular sonhos impossíveis e que, no entanto não seria certo negar a
quem sonha o direito de sonhar. Não negando esse direito à criança, Diana foi
recompensada. Esvaziou-use por completo de qualquer secura ou resistência interior e
permitiu-se completar de solidariedade, de felicidade. É nesse momento da narrativa que a
professora demonstra com maior clareza o quanto seu trabalho a afetou, contribuindo para
que ela chegasse a ser outra “outra” sendo ela mesma. Percebeu nesse instante o quanto seu
trabalho é importante, e para isso não foi preciso ninguém lhe falar. Ela viveu aquele
momento. Certamente, o brilho no olhar da criança, a perplexidade da mãe impactada pela
boa notícia e a reorganização emocional que se movia bruscamente em Diana eram
suficientes para reafirmar a vida, para fazer com que todos compreendessem a importância
do estabelecimento de vínculos no ambiente da educação infantil e para realçar a
importância de um ambiente humanizador para o desenvolvimento infantil.
A solidariedade é outra marca apreendida nos discursos das entrevistadas. Elas
contam que em diferentes momentos da vida experimentaram o sentimento de
solidariedade. Algumas vezes, mesmo não tendo muito para oferecer, se dedicavam a
ajudar o próximo. Diana diz que foi se transformando à medida que convivia com pessoas
cujas histórias eram tão ou mais difíceis do que a dela e Graça, mesmo vivendo uma vida
“torturosa” não negou abrigo aos familiares. No trabalho diário com as crianças muitas
lições sobre solidariedade são partilhadas como pudemos observar no relato anterior.
88
Henri Wallon (apud OLIVEIRA, 2010), desde sua juventude, sempre lutou pela
igualdade e solidariedade entre os homens. Atribuindo grande importância à escola,
defendia uma formação que possibilitasse aos educadores refletir sobre sua prática, as
relações estabelecidas no ambiente educativo e sobre o desenvolvimento do espírito de
solidariedade.
Conforme Mahoney e Almeida (2005), a “forma como o professor se relaciona com
o aluno reflete nas relações do aluno com o conhecimento e nas relações aluno-aluno”.
Nessa perspectiva, o professor é um modelo, por isso deve ser um constante observador de
si mesmo, de suas ações, da situação e, sobretudo, da criança. Observar intervindo.
Na perspectiva walloniana, observar é fazer perguntas ao real, desse modo,
portanto, cabe ao professor observar com sagacidade o comportamento do aluno.
(ALMEIDA; MAHONEY, 2011). Na educação infantil o professor é o mediador das
relações da criança com o mundo, por isso, esse profissional deve estar sempre preocupado
com sua prática, fazendo dela sua fonte de reflexão. Além disso, exige-se do professor que
seja solidário com seus alunos estimulando as crianças desde pequenas a serem solidárias
umas com as outras (MAHONEY; ALMEIDA, 2005).
Um dos princípios fundamentais para a constituição da pessoa humana é a
solidariedade, sem ela nos distanciaríamos cada vez mais da ideia de um mundo
verdadeiramente democrático e justo e não seria possível concretizar a utopia de uma
educação humanizante.
89
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa de Mestrado que tem como tema central o processo de constituição
identitária das professoras de creche, procuramos responder às seguintes questões:
Como os percursos da vida pessoal e profissional contribuíram para a constituição
identitária das professoras de creche?
Quais os sentimentos e perspectivas das educadoras em relação ao fazer docente?
Qual o significado que essas profissionais dão à função desempenhada?
Durante o processo de análise das entrevistas, muitas leituras foram realizadas.
Grifamos trechos das entrevistas que considerávamos significativos e que, a nosso ver,
davam conta de responder às questões colocadas. Um desafio que surgia a cada nova
leitura era a infinidade de temas abordados pelas entrevistadas. As professoras nos
ensinavam em suas histórias de vida importantes lições de esperança, solidariedade, de
políticas públicas, encorajamento, fé e sonhos.
Nos atrevemos dizer que foram os sonhos que permitiram a essas mulheres
continuar existindo como pessoa humana e como profissionais. Os sonhos da menina
Graça materializados anos depois, recompensa por ter sobrevivido a uma vida “torturosa”.
Por não ter desanimado, por não ter desistido de persegui-los. O sonho de Diana, que ainda
não se materializou, mas como ela mesma diz: “só guardei um pouquinho na gaveta para
mais tarde”. Projeto de menina que a mulher já avó ainda alimenta. E os sonhos que não
sonharam, mas viram acontecer. Ou melhor, fizeram acontecer!
Dos sonhos que não sonharam, mas que viram concretizar está a profissão. Nossas
entrevistadas relataram que nunca pensaram que seriam professoras, contudo, Diana
desejou um dia ser professora de inglês e Penélope, desde criança afirmava que cuidaria de
crianças pequenas. Embora tivessem o desejo, as condições materiais às quais estavam
sujeitas não eram favoráveis. Mas, devido às muitas voltas que a vida dá acabaram se
tornando professoras.
Emergiam das entrevistas diferentes aspectos que nos permitiam responder à
primeira questão colocada. Primeiro, porque não se pode falar de identidade sem
contemplar o homem e a história como elementos que se dão dialeticamente, pois não
existe homem fora da história, fora de um espaço-tempo. Não existe história sem
movimento (CIAMPA, 2005; 2012). Segundo, porque não existe identidade imutável.
90
Ninguém nasce programado para ser o que está sendo agora. Se afirmássemos o contrário,
estaríamos negando nosso inacabamento, negaríamos a historicidade contida em cada ser
humano.
Portanto, ao refletirmos sobre esses dois pontos, compreendemos que cada
experiência vivida é fundamental para a construção de uma identidade. Pautamos nosso
argumento nas falas de Graça, quando relata a participação em movimentos sociais e como
esses espaços contribuíram para solidificar nela a concepção de gente com lugar no mundo
e não à margem dele. Diana corrobora nosso pensamento relatando sua metamorfose. Sua
religião, o trabalho na creche e as histórias com as quais conviveu, tudo isso contribuiu
para o resgate de si mesma. Desse modo, consideramos que os percursos da vida pessoal e
profissional forjam nos indivíduos uma identidade que passa por um constante processo de
metamorfose.
No que diz respeito ao sentimento e perspectivas das professoras em relação ao
fazer docente, observamos que as entrevistadas sentem-se pertencentes ao grupo de
professores de Educação infantil e que, apesar de ainda aceitarem ser chamadas de “tias”,
percebem com clareza a diferença entre o profissional e o doméstico na creche. Tais
argumentações são extraídas das falas de Diana, que sabiamente nos lembra que nenhuma
mudança acontece da noite para o dia.
As narrativas analisadas nos conduziam a um distanciamento da concepção de
mulher naturalmente apta para cuidar de crianças. Entretanto, observou-se que permanece,
no âmbito da escola, uma hierarquização, reforçada legalmente, entre os docentes dos
diferentes níveis, na qual a professora da educação infantil, sobretudo aquela responsável
pelas crianças de zero a três anos, é considerada menos “educadora” que as demais,
reforçando a ideia da prevalência do cuidado em detrimento da educação e o não
reconhecimento da indissociabilidade entre essas atividades. Com isso, defendemos que a
valorização profissional e do trabalho educativo, o respeito à categoria que atua em creches
e a insistência por condições dignas de trabalho (aí inclusa a não hierarquização do quadro
docente) são pilares fundamentais para a construção de uma identidade profissional para as
trabalhadoras desse segmento, além de corroborar para a identificação creche como um
espaço educativo.
O trabalho educativo, mesmo em tempo de “assistencialismo puro”, como disse
Diana, unia educação e cuidado; corpo e psiquismo. As atividades de pintura, as
brincadeiras no parque, as histórias, a hora do banho, a troca e a alimentação etc., toda a
91
rotina da creche contemplava os cuidados com as crianças e também o aspecto pedagógico.
Isso significa que existia por parte das educadoras uma proposta de trabalho com objetivos
definidos, dos quais, o principal era contemplar a criança em sua totalidade, criando na
creche um ambiente humanizador, estimulante e rico de interações, portanto, propício ao
desenvolvimento infantil.
A formação foi um dos fatores que contribuíram para construção da identidade das
professoras que atuam em creches. Formar-se é construir a própria identidade, é
transformar-se e perceber-se membro de um grupo de professores (PROENÇA, 2009), isto
é, desenvolver o sentimento de pertença.
Afirmar a formação inicial e contínua como elemento constitutivo das identidades
das professoras de creche nos pareceu possível graças aos relatos de Diana, Graça e
Penélope. Cada uma, a sua maneira, revelou o quanto os estudos foram importantes para
conquistarem respeito, dignidade e reconhecimento profissional.
Em consonância com Gomes (2004), investir na promoção de relações
interpessoais, pautadas pelo respeito e pelo reconhecimento profissional pode abrir
caminhos que possibilitem um maior desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Sem
professores bem formados e capacitados, sem uma boa infraestrutura e sem uma política
viva de educação infantil não obteremos ambientes de qualidade para o atendimento e
formação das nossas crianças.
92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, W. M. J. A escolha na orientação profissional: contribuições da psicologia
sócio-histórica. Psic. da Ed., São Paulo, 23, 2º sem. de 2006, pp. 11-25.
__________. A pesquisa em Psicologia Sócio-histórica: contribuições para o debate
metodológico. IN: BOCK, Ana Mercês Bahia; GONÇALVES. Maria da Graça Marchina;
FURTADO, Odair. (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em
Psicologia. São Paulo: Cortez, 2001. pp. 129-140.
__________. Reflexões a partir da Psicologia Sócio-histórica sobre a categoria
consciência. Cadernos de Pesquisa, nº 110, p. 125-142, julho/2000.
_________. OZELLA, Sérgio. Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos
núcleos de significação. Revista brasileira de Estudos pedagógicos. Brasília, v. 94, n. 236,
p. 299-322, jan./abr. 2013.
ALFONSI, Selma Oliveira. Compreendendo o conceito de identidade. In: ALFONSI,
Selma Oliveira. A crise não reconhecida identidade docente de professores do ensino
fundamental II. (Dissertação de Mestrado. Programa Psicologia da Educação- PUC pp.
22-38). 2013.
ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Ser professor: um diálogo com Henri Wallon. IN:
MAHONEY; Abigail Alvarenga. ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. (Orgs.) A
constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo: Loyola, 2010. pp. 119-
140.
___________. MAHONEY, Abigail Alvarenga. A psicogenética walloniana e sua
contribuição para a Educação. IN: AZZI, Roberta Gurgel. GIANFALDONI, Mônica
Helena Tieppo Alves (Orgs.). Psicologia e Educação. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2011. Série ABEP formação. pp. 101-127.
ALVES, Álvaro Marcel. O método materialista histórico dialético: alguns
apontamentos sobre a subjetividade. Revista de Psicologia da UNESP 9(1), 2010.
ARCE, Alessandra. Documentação oficial e o mito da educadora nata na educação
infantil. Cadernos de Pesquisa, n.113, pp. 167- 184; Julho/2001.·.
ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
AZEVEDO; Jô. BARLETTA, Jacy Machado. O Cedem e os documentos dos Clubes de
Mães da região Sul de São Paulo. Cadernos Cedem v.2, n. 2. 2011. pp. 133-146.
93
BARBACELI, Juliana Trindade. Da identidade universitária à identidade profissional
docente: a FEUSP e a formação inicial dos professores para os primeiros anos de
escolarização. (Dissertação. Faculdade de Educação- USP. pp.57-64). 2013.
BASSEDAS, Eulália; HUGUET, Teresa, SOLÉ, Isabel. Aprender e ensinar na
Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 1999.
BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sônia. Infância, educação e direitos humanos.
4ªed. São Paulo: Cortez, 2011.
BOCK, Ana Mercês Bahia; GONÇALVES. Maria da Graça Marchina; FURTADO, Odair.
(org.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. São Paulo:
Cortez, 2001.
_______; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma
introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Lei Federal de 05/10/1988.
_________. Decreto-Lei 5.452 de 01/05/1943. Aprova a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT). Rio de Janeiro, 1943. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em outubro 2013.
_________. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Federal nº 9394, de
26/12/1996.
_________. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Federal nº 5692, de
11/08/1971. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692.htm. Acesso em outubro de
2013.
________. Lei 8.069, de 13/07/1990. Dispõe sobre o Estatuto dos Direitos da Criança e do
Adolescente. Brasília, 1990.
_________. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998.
_________. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Por uma Política de
formação do profissional de Educação Infantil./MEC/SEF/COEDI - Brasília:
MEC/SEF/DPE/COEDI, 1994.
_________. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Indicadores de
qualidade na Educação Infantil. Brasília: MEC/SEB, 2009.
_________. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brinquedos e
brincadeiras de creches: manual de orientação pedagógica. Brasília: MEC/SEB, 2012.
94
________. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Política Nacional
de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação.
Brasília: MEC, SEB, 2006.
BRASIL, CNE, CEB. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
Resolução nº 05, de 17/12/2009.
__________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Docentes da
Educação Infantil e dos anos iniciais do ensino Fundamental, em Nível Médio, na
Modalidade Normal. Resolução CNE/CEB nº 25, de 19/04/1999.
__________. Projeto de Cooperação Técnica MEC/UFRGS para Construção de
Orientações Curriculares para a Educação Infantil. Práticas Cotidianas na Educação
Infantil: bases para uma reflexão sobre as orientações curriculares. Brasília:
MEC/SEB, 2009.
BRASIL, MEC/INEP. Sinopse Estatística da Educação Básica-2001. Brasília:
MEC/INEP, 2002.
CAMPOS, M. M. A formação de professores para crianças de 0 a 6 anos: modelos em
debate. Revista Educação e Sociedade, Campinas, nº 68, p. 126-142; 1999.
CAMPOS, M. M.; CRUZ, S. H. V. Consulta sobre Qualidade na Educação Infantil: o
que pensam e querem os sujeitos deste direito. São Paulo: Cortez, 2006.
CAMPOS, M. M. ROSEBBERG, Fúlvia, FERREIRA, I. M. Creches e Pré- escolas no
Brasil. Cortez/ Fundação Carlos Chagas. 2006. pp. 17-124.
CAMPOS, M. M; ROSEMBERG, Fúlvia. Critérios para um atendimento em creches
que respeite os direitos fundamentais das crianças. 6º ed. Brasília: MEC, SEB, 2009.
CAPESTRANI, Ruth de Manincor. De auxiliar de desenvolvimento infantil (ADI) a
professora de educação infantil: mudanças subjetivas mediadas pela participação no
Programa ADI-Magistério. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação
Universidade de São Paulo- USP; 2007.
CARDOSO, Lindabel Delgado. Análise sócio-histórica do programa Educriança, uma
política pública de ação afirmativa de educação infantil na interação entre a cultura
da criança, da família e da escola da primeira infância. Tese de Doutorado. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo; 2014.255f.
CERIZARA, Ana Beatriz. Professoras de Educação Infantil: entre o feminino e o
profissional. São Paulo: Cortez, 2002.
95
CIAMPA, A.C. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de Psicologia
Social. São Paulo: Brasiliense, 2005.
________. Identidade. In: LANE, Silvia. T. M. CODO, Wanderley. (org). Psicologia
Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2012. pp. 59-74.
COTA, T. C. M. A gente é muita coisa para ser uma pessoa só: desvendando
identidades das “professoras” de creches. 30ª Reunião Anual da ANPED. GT07:
Educação da criança de 0 a 6 anos. Caxambu, MG: 2007.
CUSTÓDIO, Maria do Carmo. Profissionalização do Magistério na educação básica:
análise da valorização profissional do professor da educação infantil e anos iniciais do
ensino fundamental. (Tese de Doutorado, Programa Educação Currículo. PUC SP) 2011.
DALARI, Dalmo de Abreu. Os direitos da criança. IN: DALARI, Dalmo de Abreu. J
KORCZAK, Jausz. O direito da criança ao respeito. 4. ed. São Paulo: Summus, 1986.
(Novas buscas em educação; v.28).
DÉR, Leila Cristina Simões. A constituição da pessoa: dimensão afetiva. IN:
MAHONEY; Abigail Alvarenga. ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. (Orgs.) A
constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo:Edições Loyola, 2010.
pp. 61-75.
DIDONET, Vital. Creche a que veio... para onde vai? Revista Em Aberto. Vol. 18. nº 73,
Brasília, 2001. pp.11-27.
FORNEIRO, Lina Iglesias. A Organização dos Espaços na Educação Infantil. IN:
ZABALZA, Miguel Antonio. Qualidade em Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed,
1998, pp. 229 – 281.
FREIRE, Paulo. Professora sim tia não: cartas á quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’água, 2007.
________. FREIRE, Ana Maria Araújo. OLIVEIRA, Walter Ferreira de. Pedagogia da
Solidariedade. 1ªed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
GALVÃO, A. C. T, BRASIL, Ive. Desafios do ensino na Ed. Infantil: perspectiva de
professores. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v.61, n.1, 2009 (Disponível em:
www.psicologia.ufrj.br/abp).
GAMA, Andréa de Souza. Trabalho, família e gênero impactos dos direitos do
trabalho e da Educação Infantil. 1ª ed. São Paulo: 2014.
96
GARCIA, M. M. A., HYPÓLITO, A. M., VIEIRA, J. S. As identidades docentes como
fabricação da docência. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 45-56, jan./abr.
2005.
GOMES, Marineide de Oliveira. As identidades das educadoras de crianças pequenas:
do eu ao nós. 27ª Reunião Anual da Anped. GT: Educação da criança de 0 a 6 anos. 2007.
GATTI, B. A. et.al. A formação de professores no Brasil. Estudos e Pesquisas Fundação
Victor Civita. 2008.
HADDAD, Lenira. A creche em busca de identidade. Loyola, 1991
HOUAISS, Antonio; VILLAR , Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente profissional: Formar-se para mudança e a
incerteza. São Paulo: Cortez, 2000.
KRAMER, Sônia (Org.). A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. São
Paulo: Cortez, 2011.
_________. Com a pré-escola nas mãos. Uma alternativa curricular para a educação
infantil. Editora Ática, 1995.
_________. Profissionais de Educação Infantil. São Paulo: Ática, 2005.
KISHIMOTO, T. M. A pré- escola em São Paulo: das origens a1940. Tese de
Doutorado- Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo: 1986.
_________. Encontros e desencontros na formação dos profissionais da educação
infantil. In: MACHADO, Maria Lúcia de A. (Org.) Encontros e desencontros em
Educação Infantil. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.
_________. Pedagogia e a formação de professores (as) de Ed. Infantil. Proposições,
v.16 n.3(48) set/dez, 2005.
KUHLMANN Jr., Moysés. As exposições internacionais e a difusão das creches e
jardins de infância. (1867-1922). Proposições, v.7 n.3(21). 24-35 novembro/1996.
__________. Educação no asilo dos expostos da Santa Casa em São Paulo: 1986-1950.
Cadernos de Pesquisa, v.36, n.129, p. 597-617, set/dez.2006.
__________. Histórias da Ed. Infantil Brasileira. Rev. Brasileira de Educação. 2000.
__________. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre:
Mediação, 2010.
97
LEONTIEV, A. N. Os princípios psicológicos da brincadeira escolar. In: VIGOTSKI,
L.S.; LURIA, A. R. LEONTIEV, A. N. Linguagem, pensamento e aprendizagem. 12ªed.
São Paulo: Ícone, 2012. Pp.119-142.
LIMA, Aluísio Ferreira de. Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A
identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. São Paulo: FAPESP, Educ.,
2010.
LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. São Paulo, SP: EPU, 1986.
MACIEL, L. S. B. SHIGUNOV NETO, Alexandre. Formação de professores: passado,
presente e futuro. 2ª edição. São Paulo: Cortez, 2011.
MAHONEY, Abigail Alvarenga. ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Afetividade e
processo ensino-aprendizagem: contribuições de Henri Wallon. Psicologia da educação
[online]. 2005, n.20, pp. 11-30.
_________. Henri Wallon: Psicologia e Educação. 11ªed. São Paulo: Edições Loyola,
2012.
MELO NETO, J. C. de. Morte e vida Severina. Poemas escolhidos. 3. ed. Lisboa:
Portugália, 1963.
MERANI. Alberto L. Psicologia Y Pedagogia: Las ideas pedagógicas de Henri Wallon.
Editorial Grijalbo. México: 1969/1970.
MONTENEGRO, Thereza. Educação Infantil: a dimensão moral do cuidar e educar.
Psicologia da Educação, São Paulo, 20, 1º sem. De 2005, pp. 77-101.
NASCIMENTO, Anelise Monteiro do. O cotidiano da educação infantil: questões de
identidade. 30ª Reunião Anual da Anped. GT07: Educação da criança de 0 a 6 anos.
Caxambu, MG: 2007. NÉSPOLI, José Henrique Singolano. Paulo Freire e Educação Popular no Brasil
contemporâneo: Programa MOVA-SP (1989-1992). Rev. Ed. Popular, Uberlândia, v.
12, n. 1, p. 31-40, jan./jun. 2013. OLIVEIRA, Arlete dos Santos. Mulheres negras e educadoras: de amas de leite a
professoras. São Paulo: 2009. (Dissertação de Mestrado- Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo).
OLIVIVEIRA, Célia Viderman. Henri Wallon: O homem e a obra. IN: MAHONEY,
Abigail Alvarenga. ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. A constituição da pessoa na
proposta de Henri Wallon. São Paulo Edições Loyola, 2010. pp. 141-148.
98
OLIVEIRA, Waldete Tristão Farias. Trajetórias de mulheres negras na educação de
crianças pequenas no distrito de Jaraguá, em São Paulo: processos diferenciados de
formação e de introdução no mercado de trabalho. (Dissertação; Programa Educação:
História, Política e Sociedade) PUC SP. 2006.
OLVIVEIRA, Z. M. R. Educação infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2011.
_________. Formação e profissionalização de professores da educação infantil.
Revista Acadêmica de Educação do ISE Vera Cruz. v.2, n.2 ano 2012. pp. 223-231.
OLIVEIRA, Z. M. R; SILVA, A. P.S CARDOSO, F. M. AUGUSTO, S. O. Educação
Infantil: a dimensão moral da função de cuidar. Psicologia da Educação, São Paulo,
v.20, p. 77-101, 2005.
OLIVEIRA, Z. M. R. (et al) . Construção da identidade docente: relatos de educadores
de educação infantil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 129, dez. 2006.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0100-
15742006000300003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em abril 2014.
ONGARI, Barbara. MOLINA, PAOLA. A educadora de creche: construindo
identidades. Tradução de Fernanda L. Ortale e Ilse Pachoal Moreira; revisão técnica Ana
Lúcia Goulart de Faria. São Paulo: Cortez, 2003.
PACHECO, K.M.B., CIAMPA, A.C. O processo de metamorfose na identidade da
pessoa com amputação. Acta Fisiátrica. 2006; vol.13 nº3, pp. 163-167.
PLACCO, V.M.N. de S. e SOUZA, V.L.T. de. Identidade de professores: considerações
críticas sobre perspectivas e suas possibilidades na pesquisa. IN: CORDEIRO, A.F.M.,
HOBOLD, M de S. AGUIAR, M.A.L. de. Trabalho docente: formação, práticas e
pesquisas. Joinville, Editora UNIVILLE, 2010. pp. 79-99.
PIAGET, J. A Formação do Símbolo na criança: imitação, jogo e sonho. Rio de Janeiro,
Zahar, 1978.
PIZA, Edith. A contaminação de práticas no trabalho do magistério: notas para
reflexão. Projeto História. São Paulo: Educ., n.11, nov.1994, p. 79-90.
PROENÇA, Maria Alice. A construção de um currículo em ação. In: Revista Pátio
Educação Infantil. Ano VII nº 21. Nov/dez, 2009 pp. 14-16.
RAMOS, Cosete. Excelência na educação: a escola de qualidade total. Rio de Janeiro,
Qualitymark, 1992.
99
ROSA, E.C.S. RAMOS. T.K.G. O que dizem as professoras de bebês sobre seu
processo formativo? IN: RAMOS, T. K.G. ROSA, E.C.S. Os saberes e as falas de bebês
e suas professoras. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012; pp. 137-144.
REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 23ª
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. pp. 133-136.
REIS, Edna dos. Identidade docente: sua construção nos professores que atuam no
EAD. (Tese de Doutorado, Programa Educação: Currículo, PUC SP. pp.80-122.) 2013.
ROSEMBERG, Fúlvia. Creches domiciliares: argumentos e falácias. Cadernos de
Pesquisa, SP (56) 73-81, fev. 1986.
______. Do embate para o debate: educação e assistência no campo da Educação
Infantil. In: MACHADO, Maria Lúcia de A. (Org.) Encontros e desencontros em
Educação Infantil. São Paulo: Cortez, 2002.
_______. CAMPOS, M. M. PINTO, R. P. Creches e Pré-escolas. São Paulo: Nobel, 1985.
SÃO PAULO. Deliberação CME nº 01/99, homologada pela Portaria nº 2.476, de 06 de
maio de 1999.
____________. Lei Municipal nº 10.430 de 29 de fevereiro de 1988.
___________. Lei Municipal nº 11.229 de 26de junho de 1992.
____________. Lei Municipal nº 14.660 de 26 de dezembro de 2007.
____________. Secretaria Municipal de Educação. Portaria nº 5152/07. Institui normas
gerais para celebração de convênios no âmbito da Secretaria Municipal de Educação com
Entidades, Associações e Organizações que atendam crianças na faixa etária de 0 a 5 anos.
____________. Portaria nº 4022/03, de 23 de junho de 2003. Dispõe sobre competências
e procedimentos para autorização de funcionamento das instituições privadas de educação
infantil.
___________. Portaria nº 5930/13, de 14 de outubro de 2013. Regulamenta o Decreto nº
54.452, de 10/10/13, que institui, na Secretaria Municipal de Educação, o Programa de
Reorganização Curricular e Administrativa, Ampliação e Fortalecimento da Rede
Municipal de Ensino de São Paulo- “Mais Educação São Paulo”.
____________. Orientação Normativa nº1, de 02/12/2013. Disponível em:
www.portalsme.prefeitura.sp.gov.br/ Acesso em julho/2014.
___________. Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica.
Orientações Curriculares: expectativas de aprendizagem e orientações didáticas para
a Educação Infantil. Secretaria Municipal de Educação. São Paulo: SME/DOT, 2007.
100
. Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica. São
Paulo é uma escola. Manual de brincadeiras. Secretaria Municipal de Educação. São
Paulo: SME/DOT, 2006.
. Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica.
Tempos e espaços para a infância e suas linguagens nos CEIs, creches e EMEIs da
cidade de São Paulo. Secretaria Municipal de Educação. São Paulo: SME/DOT, 2006.
SENE, Daniela G. Alfredo. Rotas alternativas: histórias de professoras que não
puderam cursar os Programas Especiais de Formação Pedagógica Superior em São
Paulo. (Dissertação. Faculdade de Educação USP; p. 93-100). 2010.
SILVA, Talita Dias Miranda e. Trajetórias de formação das professoras de educação
infantil: história oral de vida. São Paulo: 2012. (Dissertação de Mestrado- Universidade
de São Paulo, USP).
SIRGADO, Angel Pino. A Psicologia concreta de Vigotski: implicações para a
educação. IN: MAHONEY, PLACCO, V. M. N. S. et.al (orgs.) Psicologia e Educação:
revendo contribuições. São Paulo: Educ., 2000. pp. 33-61.
_________. A corrente Sócio-histórica de Psicologia: fundamentos epistemológicos e
perspectivas educacionais. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 48, out./dez. 1990. pp. 61-67.
________. O social e o cultural na obra de Vigotski. Educação & Sociedade, ano XXI,
nº 71, Julho/00. pp. 45-78.
SOUZA, Irene. Garcia Costa de. A educação infantil na cidade de São Paulo. In:
Subjetivação docente: a singularidade constituída na relação entre o professor e a
escola. pp. 59-116. (Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da USP): 2012.
VIGOTSKI, L. S. O brinquedo e seu papel no desenvolvimento psicológico da criança.
Conferência, Instituto Pedagógico de Leningrado, 1933. IN: VIGOTSKI, L. S. A
formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7ª
ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007. pp. 107-124.
WEREBE, M. J. G., NADEL-BRULFERT, J. Henri Wallon. Trad. Elvira Souza Lima.
São Paulo: Àtica.
ZABALZA, Miguel Antonio. Qualidade em Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed,
1998.
101
ANEXOS
I. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
II. Entrevistas
102
ANEXO I. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Caro (a) Professor (a)
Sou aluna de Mestrado do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da
Educação – Educação, da PUC-SP e estou em processo de elaboração de minha
dissertação, cujo objetivo é investigar o processo de constituição identitária das professoras
de educação infantil que atuam em centros de educação infantil e creches públicas. Para
tanto, estamos utilizando como procedimento de coleta de dados entrevistas abertas que
focalizam a história de vida.
Estou entrando em contato com profissionais que ingressaram no magistério
infantil como pajens e/ou auxiliares de desenvolvimento infantil e que ainda desenvolvem
atividades em sala de aula. Gostaria de contar com sua colaboração, que será de grande
importância na construção de conhecimentos e contribuirá para o desenvolvimento dos
estudos sobre a educação infantil de zero a três anos com ênfase na identidade profissional
e formação de professores.
Esclarecemos que os dados coletados nesse trabalho serão utilizados respeitando a
identidade do sujeito da pesquisa.
Para facilitar nossa conversa e garantir um registro fiel da mesma, farei uso do
gravador.
Agradeço, desde já, sua colaboração.
Dilma Antunes Silva
103
DECLARAÇÃO DE CONSENTIMENTO
Fui esclarecido que:
Não poderei esperar benefícios pessoais advindos desta entrevista;
Não existem possíveis desconfortos e riscos decorrentes da participação;
Minha privacidade será respeitada, ou seja, qualquer dado ou elemento que possa,
de qualquer forma, me identificar será mantido em sigilo;
Posso me recusar a ser entrevistada e a retirar meu consentimento a qualquer
momento, sem precisar justificar-me, e não sofrerei qualquer prejuízo;
Tenho livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o
estudo e suas consequências durante a pesquisa; enfim, tudo o que eu queira saber
antes, durante e depois da minha participação.
Finalmente, tendo sido orientado quanto ao teor do projeto e compreendido o
objetivo da entrevista, manifesto meu livre consentimento em participar.
Nome:_______________________________________________
RG:_________________________________________________
CPF:________________________________________________
São Paulo ____/_____/_______
_________________________________
Professor (a) Participante
__________________________________
Dilma Antunes Silva.
104
ANEXO II. ENTREVISTAS
Entrevista com Graça.
Graça, eu vou pedir para você me contar um pouco da história da sua vida.
Graça: Minha história de vida inteira? De quando eu vim da Paraíba, por exemplo?
A sua história. Por exemplo: de como era lá...
Ah, lá a gente tinha uma vida muito simples. A vida de sonhar em viajar e fazer,
enfim... Eu sempre tive esse sonho de um dia é... Como a gente foi criada sem pai, por
exemplo, no meu caso, eu fui criada sem pai, então eu via o sofrimento que minha mãe
passava, aí eu pensava, desde eu garotinha que escutava as histórias, eu queria que quando
eu crescesse e ficasse uma moça, casasse com uma pessoa que me trouxesse para São
Paulo. Meus sonhos eram tão simples, eu queria vir morar aqui, mas uma coisa eu queria.
Eu queria ser costureira.
E foi alguma vez, por algum tempo?
De todo meu sonho, o maior era ser costureira porque eu via as mulheres lá que
ganhavam dinheiro, que andavam mais bonitas e mais bem vestidas, todas eram
costureiras. Minhas primas, por exemplo, faziam roupas. Então, desde pequena eu fazia
roupa; catava os pedaços de retalhos da minha mãe e fazia a roupa das minhas bonecas. Aí
eu fiquei noiva pela primeira vez, não deu certo. O cara pensava em me levar embora para
Goiânia, aí a gente terminou o noivado mesmo, estava de aliança no dedo e tudo. Depois
eu fiquei noiva desse que foi o meu marido; a gente teve nossos quatro filhos, mas, nós
ficamos lá só dois anos e pouco.
Na Paraíba?
[Graça confirma com a cabeça].
Depois que gente casou, a gente ficou só dois anos e pouco. Aí teve uns problemas
lá e a gente teve que vir embora; ele veio embora para São Paulo antes de mim. Ele veio
um mês antes de mim. Fiquei lá com a minha mãe para vender as coisas e ele veio para a
casa da avó dele. Depois viemos eu, minha sogra e meu cunhado. Chegando aqui, a gente
passou uma vida que só Deus!... Eu tinha uma filha já, eu tinha minha primeira filha com
seis meses, a gente ficou na casa de uma tia dele por seis meses. Era uma vida “torturosa”,
porque eu ficava na casa dos outros. Se você não tem seu fogão para cozinhar, você não
tem sua casa, você não tem liberdade. Dormia eu, ele e a criança num sofá.
105
Num sofá?
Num sofá!
Nossa Graça...
Mas depois, ele já estava trabalhando, aí ele conseguiu um dinheiro e a gente
comprou um fogão usado, uma cama usada, só o colchão é que foi novo.
Só ele quem trabalhava na época?
Só ele trabalhava na época e a gente já conseguiu alugar uma casa e foi morar. Mas
aí eu tinha que levar minha sogra e meu cunhado, que é deficiente, e a minha filha que era
pequena. A vida era bem, bem cruel mesmo! O que ele ganhava era pouco, era de quinze
em quinze dias e eu tinha que medir a comida, o feijão, o arroz, e a mistura era quando ele
tinha condições de comprar, e assim foi, um sufoco danado mesmo que a gente passou
nessa época. Pagava o aluguel tudo certinho, aí quando foi um dia, o senhor dono da casa
de aluguel queria aumentar o aluguel.
E vocês não tinham condições de arcar com mais essa despesa?
Nós não tínhamos condições de pagar mais do que aquilo, senão nós íamos
literalmente passar fome, porque necessidade já passava, e ai foi aonde toda nossa história
de vida começou mais sério ainda. Mas aí a gente com mais experiência, está aqui em São
Paulo; não, vou resolver assim e assim, e a gente não, e aí, eu não tinha vergonha, nunca
tive vergonha de dizer o que eu sou nem de onde eu sou, nem o que eu fazia, como eu não
tenho até hoje. O velhinho pôs lá no advogado, falou que queria um aumento, eu fui num
advogado, conversei com ele, ele falou: não; você passa a depositar esse dinheiro do
aluguel todo mês, pois não havia vencido o contrato, o contrato era de um ano. A gente
começou a juntar esse dinheiro numa caderneta de poupança que o juiz mandou.
Então ele chegou a te processar?
O juiz deu a causa ganha para a gente. A gente não estava se negando a pagar, a
gente só queria que vencesse o contrato e ele queria a casa para poder alugar. O advogado
combinou como o dono da casa para que ele recebesse o dinheiro em um ano para frente,
pois o dinheiro que a gente tinha, a gente ia usar esse dinheiro para fazer alguma coisa e
mudar dali. A gente morava em frente a uma favela, a Imperatriz Dona Amélia. Aí ele (o
marido) falou “o que nos resta agora é pegar esse dinheiro e comprar um barraco na favela.
Você quer morar?".
E você concordou?
106
Nossa, eu não achava nada de difícil ali porque eu morava na casa do velho onde eu
pagava aluguel, mas eu tinha que carregar água na cabeça quando secava o poço que tinha
lá, não tinha agua encanada, não tinha água no banheiro que a gente pudesse tomar um
banho.
Era parecido com a vida que você tinha na Paraíba?
Era mais ou menos; na Paraíba a gente tinha roça, plantava e comia. Aqui era mais
difícil porque aqui se você tiver um trabalho você tem o que comer e se não tiver você vai
fazer o que? É pior ainda. E no meio de estranho, eu não tinha ninguém da minha família
mesmo, tinha a família do meu marido que são parentes, mas, é diferente de você ter
irmão, pai, mãe, essas pessoas da família da gente. Eu me sentia muito sozinha. Muitas
noites ele me pegava de noite chorando, sonhando com a minha mãe. Eu chorava e, ainda,
com tudo isso, eu engravidei da segunda filha.
Com toda essa dificuldade...
[Graça balança a cabeça afirmativamente].
Aí, não tinha enxoval para a minha filha. Eu trabalhei num clube de mães e foi
aonde eles me deram um pouco de roupinha, me ajudaram. Deram-me essas roupinhas bem
simples, igual às que a Prefeitura agora dá. Coisas bem simples, mas mesmo assim foi
muito bom, graças a Deus! Eu estava falando para minha filha que a gente comprou tanta
coisa para a nenezinha dela e que quando ela nasceu não tinha nada daquilo.
Quando ela nasceu você já morava no barraco?
Não. Nós ainda morávamos naquela casa e esse foi um dos motivos de eu ter
ganhado a causa; eu estava grávida e não tinha condições de me mudar dali. Mas mesmo
assim a gente juntou dinheiro; aí ele (o marido) pediu para ser mandado embora da firma e
continuar trabalhando. Eles (os patrões) foram muito legais com a gente. Mandaram ele
embora, mas ele continuou como se fosse um funcionário novo. Juntou esse dinheiro e a
gente comprou o barraco. Aí, a gente dizia: ai meu Deus, isso aqui é nosso, a gente não vai
mais pagar aluguel! Aí, nossa, lá era feio. Não tinha água, não tinha luz.
Como fazia com duas crianças pequenas?
A gente tinha um vizinho que tinha um poste. Ele morava na frente da rua e desse
poste, e explorava meio mundo, explorava a gente mesmo. Então ele emprestava um bico
de luz e uma tomada se você fosse usar uma televisão ou um rádio velho, então era isso
que a gente tinha. Nós não tínhamos televisão ainda nessa época. Começamos a pensar
depois que a gente entrou nesse barraco: “oba, a gente precisa fazer alguma coisa”. Tinha
107
um rapaz que a gente conhecia e que estava começando uma luta pela melhoria das favelas,
e isso foi muito gostoso. Foi muito gratificante essa luta da gente.
Você participou do movimento?
Participei de tudo! Foi muito legal, a gente participou de tudo e a nossa primeira
briga foi com a Eletropaulo, para que viesse luz para todo mundo. Um belo dia a gente
consegue ganhar e veio luz para todo mundo, que até hoje a luz lá é meio, assim, as
pessoas têm luz, mas pagam a taxa mínima, inclusive minhas duas filhas ainda moram lá,
só que não é mais um barraco, hoje é uma casa feita de tijolo; as pessoas tem documentos,
hoje é legalizado.
Lá era um bairro violento, quando você mudou?
Era. Morria muito gente ali.
Mexiam nas casas?
Bom, mexer na nossa não, mas a gente via violência ali, morte, roubo. A nossa luta
nossa era para que não catassem as coisas que a gente conseguiu. Com toda essa nossa luta,
a gente conseguiu ter um clube de mães lá dentro. A primeira historia minha, foi o clube de
mães, porque eu já tinha participado, então eu já tinha um pouquinho de experiência e
através disso a gente fez um movimento legal.
Como que era o clube de mães, como funcionava?
O clube de mães, vinha sempre uma pessoa voluntária que dava aula para aquelas
mães e essas mães davam uma orientação para a gente. E também, no meio dessas
orientações a gente participava na igreja e no meio de tudo isso entrou gente da política. É
muito interessante você ajudar alguém quando está no meio de uma situação dessas porque
você vai ganhar o quê? Eles vão ganhar muitos votos. E foi o que aconteceu, e a gente
começou pelo PMDB. Tinha o diretório do PMDB, então lá teve muita gente legal, muita
gente boa, muito, muito mesmo. No sentido de, tinha advogado que ajudava a fazer as
reivindicações nossas , as propostas que a gente tinha, tinha sempre um advogado ou dois
para resolver as coisas, então isso foi fazendo a gente crescer e eu comecei a ver que o
mundo não era só aquele pedacinho que eu conhecia e que as coisas eram mais, tinha mais
lugar para gente sair.
Que você tinha muito mais oportunidade...
Que tinha muito mais oportunidade e numa dessas oportunidades, foi apesar de que
eu já tinha trabalhado, aí tudo aconteceu, porque aconteceu esse acidente com a minha
mão.
108
[mostra a palma da mão com uma grande cicatriz.]
Como que foi esse acidente?
Eu estava trabalhando numa firma, nesse tempo trabalhava numa firma, meu
marido me deixou trabalhar numa firma, porque antes ele não deixava. E assim... aí vai
ficar ruim... porque é muita coisa!
Imagina, a gente tem tempo! E quando você quiser me contar... (risos) a gente
senta aqui, para mim, vai ser maravilhoso!
(risos). Nessa época, minha cunhada se separou do marido e veio morar com a
gente naquele barraquinho apertado. Ela veio com três filhos e grávida de outro.
Então, já estava você, sua sogra, seu marido, o cunhado deficiente, as meninas
e ainda veio uma cunhada. E o barraco pequenininho para toda essa gente?
É! E mais três filhos. Nessa época minha sogra tinha recebido herança dos pais dela
e havia comprado um barraco do lado, que a gente aumentou mais um cômodo e abriu uma
porta para o outro lado. Então, tinha melhorado nesse sentido. Eu fui trabalhar e não tinha
terceira filha, só... O meu filho tinha vários problemas de saúde porque era pequeno e teve
problema de alergia a úmido, tinha mofo lá, sabe? E ele ficava muito doente. Até que eu
fui trabalhar nessa firma, a gente começou a trabalhar, eu e ele (o marido). A gente saía 4
horas da manhã de casa e só voltava às 10 da noite. Eu engravidei da minha quarta filha.
Nossa Graça!
É! Aí fiquei lá, e quando estava com seis meses de grávida me aconteceu um
acidente. Minha mão entrou na máquina de passar roupa e queimou toda. Eu estava grávida
de seis meses, fiquei de licença; no seguro do INPS e dois meses depois minha filha nasceu
e eu fui para um centro de reabilitação no Ipiranga. Mas a gente não parava de participar
dos movimentos. Minha mãe veio ficar comigo um tempo para ajudar a cuidar da minha
filha.
O tempo que eu fiquei nessa situação, a firma, depois de três anos tinha que resolver meu
problema: ou me aposentar com 80% do salário mínimo da época ou saía de lá com todos
os meus direitos. Esse foi o acordo que foi feito. Eles pagaram os meus direitos: férias, 13º,
tempo de casa, tudo e eu saía. Só que nisso, tinha muitos assistentes sociais no hospital que
me deram muitos conselhos e uma delas me aconselhou a receber apenas 40% do salário
mínimo, pois assim resolveria meu problema e eu teria algum dinheiro. E eu poderia
trabalhar em outro serviço. Eu estava liberada para ter outro serviço. É tipo uma
aposentadoria, miserável, mas ajudava pelo menos para comprar o leite da pequena. E
109
nisso, eu fiquei desesperada porque meu marido, nesse intervalo foi mandado embora
também e o dinheiro que ele recebeu foi acabando porque a gente comia daquilo ali. Eu e
ele não recebíamos, né? Numa das nossas reuniões lá no PMDB tinha umas amigas que
trabalhavam para a prefeitura e que perguntaram: se a gente conseguir alguma coisa para
vocês lá na prefeitura? Então, já tinha eu, minha comadre e o compadre José que conseguiu
emprego no metrô, para mim e para ela que já tínhamos filhos, seria legal se a gente
conseguisse numa creche porque a gente levaria os filhos. Então nós dissemos que
queríamos. Até hoje eu não me lembro o nome da pessoa que me deu esse emprego. Que
bendita seja, que Deus a abençoe, de coração. Mais tarde mandaram uma cartinha para
irmos lá fazer a entrevista e passar no médico, para ver se tinha alguma deficiência. Graças
a Deus, nem a deficiência da minha mão eles viram.
Eles não viram?
Não, assim pelo menos não...
Não consideraram como algo que fosse atrapalhar o trabalho?
Não viram ou não quiseram considerar porque eu fazia tudo, como faço até hoje.
Aí você entrou para a Prefeitura no cargo de pajem?
Aí foi minha trajetória, comecei no cargo de pajem em 1984. No dia 21 de julho,
era para eu ter começado no dia 20, eu não pude porque eu não consegui passar no exame
de vista. Aí o que aconteceu? Eu fui correndo para fazer os óculos e no dia 21 eu voltei
com os óculos.
E na entrevista, como foi?
A entrevista foi simples, não foi coisa assim difícil, eles fizeram algumas perguntas
para mim: qual é a diferença que eu achava entre os meus filhos e os filhos da vizinha? Eu
pensei, e acho que Deus sempre põe as respostas certas na hora, da vida da gente. Eu
pensei assim: qual é a diferença dos meus filhos e os filhos da vizinha? São crianças do
mesmo jeito, respondi assim. E ela respondeu: “Ah é? E você já cuidou de criança alguma
vez?”. E eu já tinha cuidado também de um filho de uma prima minha desde pequeninha,
então falei que já tinha cuidado dele. Eles pediram que eu levasse uma cartinha de próprio
punho da mãe, para atestar que eu já tinha trabalhado cuidando e criança. E hoje ele já é
um homem, é pai (risos). Então foi isso, eu passei e já me deram os papéis todos para
assinar. Eu não tinha nem dado baixa ainda na minha carteira, desde 1980 que trabalho
certinho. Então eles me mandaram uma cartinha para eu ir na regional do Butantã que lá
me encaminhariam para uma creche que se chamava Vila Alba, que ficava pertinho da
110
minha casa, lá eu trabalharia com crianças que eu já conhecia, que era da comunidade onde
eu morava. Mas não deu certo!
Não deu certo, por quê?
Porque lá não estavam precisando e onde estava precisando era no Educandário,
que tinha problemas de meningite lá. Já tinha morrido uma criança e outra estava doente.
Então eu fui lá rapidinho, eu fiquei lá uma semana na regional só organizando os remédios
que tinha. Vendo os remédios que estavam vencidos e fazendo fichário, cumpri minhas
horas fazendo isso. Quando aconteceu esse problema lá (no Educandário), rapidinho me
botaram para lá. Chegando lá, no primeiro dia, já enfrentei um berçário com vinte e tantas
crianças para duas pessoas. Você tinha que dar banho, trocar, ensinar, fazer tudo. E para
mim, tudo era novo, pois estudo eu não tinha, eu tinha a quarta série e daquelas lá que eu ia
uma vez por semana e no resto dos dias eu trabalhava na roça, no tempo que eu estudei.
Você trabalhou desde cedo na roça então?
Desde cedo, acho que eu tinha uns sete anos quando meu irmão pegou uma
enxadinha e me ensinou a trabalhar (risos). Trabalhei três anos nessa creche e depois
trabalhei na creche que eu queria.
E você pôde levar seus filhos quando você começou?
Pude levar a pequena, os outros já eram grandinhos, já estavam indo para escola.
Desde cedo eles foram para a escola com os amiguinhos. A gente trabalhava na
comunidade; então, todo mundo era amigo de todo mundo e uma mãe levava uma
montoeira de crianças “tudo da favela” como era falado, então todos iam junto. E assim
foi. Na época da Luiza Erundina (prefeita) ela exigiu que a gente começasse a estudar.
Você só tinha a quarta série?
Só tinha a 4ª serie porque também era o exigido. Bastava ter só a 4ª serie!
Então não foi concurso? Foi só a entrevista e você já entrou?
Isso, naquele tempo ninguém era efetivo. Depois dessa época é que nós passamos a
ser efetivas. Ela (a prefeita Luiza Erundina) exigiu que a agente tivesse até a 8ª série, e
tudo isso eu fiz no supletivo.
Em quanto tempo?
Em dois anos. Eram quatro, mas de seis em seis meses a gente fazia uma série.
Foi ai que vocês mudaram de cargo, ou não?
Na época da Luiza a gente passou a ser efetiva.
Mas ainda continuava sendo pajem?
111
Continuava.
Não tinha mudado para ADI ainda?
Não, acho que mudou em (19)91, (19)92, acho que foi isso. Não tenho lembrança
das datas certas, Teve concurso em (19)90, nós prestamos e passamos. Quem passou foi
efetiva e graças a Deus eu fui efetiva e ficou a luta do estudo.
Como conciliar o trabalho, quatro filhos pequenos e os estudos?
Eu ia trabalhar de manhã, fazia as coisas. No começo eu trabalhava de manhã e
meio dia eu vinha para casa e dava tempo de fazer janta e cuidar de tudo. Só que depois me
mudaram para a tarde, tive que trabalhar a tarde. E eu tinha que chegar em casa deixar a
pequena, sempre dava um banho e penteava o cabelos dela lá na creche e vinha correndo.
Eu saia 6hrs da creche e 7h30 tinha que entrar na escola. Eu trabalhava no educandário que
era bem para lá, já próximo de Cotia e eu tinha que estudar no colégio Bonfiglioli, que era
bem no centro, ali perto da USP. Então era muito corrido e só tinha a passagem de um
ônibus, sendo que a gente precisava de duas passagens. Mas graças a Deus eu tinha um
diretor maravilhoso e sempre que ele podia ele dava carona para mim e para minha
comadre, porque a gente tinha criança pequena. Ela tinha duas e eu tinha a minha pequena
também. Uma ajudava a outra, uma ficava lá dentro enquanto a outra entrava com a
criançada. Ai meu Deus! (risos) Mas, era muito bom! A gente começou a estudar junto
também, íamos para a escola juntas. A gente fazia tudo junto. Quantas vezes sobrava sopa
na creche e não tinha essa miséria de comida, se sobrava sopa e se você tinha vasilha, você
podia levar para casa. Isso ajudava muito. Muito porque até então o salário não era aquele
salário que a gente podia comprar de tudo para os filhos. Ai, foi muita coisa! E eu
continuei tendo que estudar. A gente fez o ensino médio, também foi supletivo. Depois do
ensino médio foi a época que a gente já entrou para a educação que acho que foi no
começo de (19) 90. Foi na época da Marta, daí teve o ADI-Magistério. Que graças a Deus,
foi a libertação de tudo nas nossas vidas.
Então mudou muito na sua vida sair da assistência social e ir para a
educação?
Mudou muito, a Claudete (atual presidente do Sindicato dos trabalhadores nas
unidades de educação Infantil- Sedin; ex- pajem e mestre em Educação) foi uma pedrinha
fundamental no sentido de...
Então foi uma mudança principalmente no patamar de vida?
É, foi uma mudança assim, bem... grande.
112
Isso influenciou na vida que você levava, né?
Isso influenciou bastante, muito mesmo.
Você acha que ter mudado de nomenclatura, as vezes que foram mudadas,
isso muda alguma coisa para você enquanto pessoa e não só no sentido financeiro?
Ah muda muito né, porque cada coisa que muda na sua vida para melhor, é claro,
você tem orgulho de dizer “eu batalhei para isso e cheguei aqui”. Aí depois, as coisas
mudam de novo. Aí você fala, olha a gente mudou até aqui. Estamos aqui. Hoje, ser
chamada de professora não é só por causa do dinheiro, mas é pelo respeito, a valorização
que a gente tem. Hoje é muito diferente daquilo que a gente tinha no passado. De
primeiro, quantas vezes a gente ouvia as mães falarem que a gente estava aqui para cuidar
e para limpar cocô de nenê não precisava estudar.
E isso foi logo quando você começou?
Durante toda aquela época;
E isso mudou?
Agora mudou. O respeito que a gente tem dos pais hoje é muito maior que do era
antes. Tem mais exigência em relação ao que você é hoje, tem mais exigência, mas
estamos aí. A gente já falou uns dias aí, que a gente tinha uns cursos na época da
assistência social, tinha mesmo uns cursos e a gente precisava mesmo de formação e era
tudo gratuito e a gente tinha pontuação, cada centavo que vinha a mais era uma vitória.
Era comemorado então?
Era comemorado; e hoje, graças a Deus eu posso dizer que em vista do que eu
comecei, eu posso dizer que eu sou rica.
Que benção!
No sentindo de que hoje eu tenho uma casa para morar, própria. Estou pagando
meu carro, mas tenho um carro. Imagina, isso nunca me passou pela cabeça. Que nem eu
falei no começo, do sonho de ser costureira, quando eu ganhei minha segunda filha, o
dinheiro que eu recebi do auxílio maternidade, do lugar onde eu trabalhava, eu comprei
uma máquina de costura.
Para se realizar?
Para me realizar e isso me ajudou muito, muito porque eu fazia concerto de
roupas e fazia algumas coisinhas assim e isso ajudava nas despesas da casa, pagar
contas... Essa máquina foi tão engraçada que eu nem sabia onde enfiar a agulha; foi uma
113
vizinha quem me ensinou. E no dia que eu fui ganhar minha filha, eu estava lá fazendo
umas roupinhas dela e não deu tempo, eu comecei a sentir muitas dores e tive que ir para
o hospital. (risos) Mas tudo isso eu vou, eu nossa... é benção, é muita vitória, muitas,
muitas. (Risos) Já ajudei os meus filhos né, pouco, mas ajudei. Hoje eu vejo que os meus
filhos, os dois que têm filhos não moram num barraco, nunca precisaram morar.
E não passaram pelo que você passou.
Não precisaram passar fome, não precisaram medir a comida para pôr no fogo,
mas é assim, eu agradeço de coração, só tenho que ajoelhar e agradecer ao Senhor.
Desculpa te perguntar; você falou que foi o seu primeiro marido que passou
esses momentos difíceis com você, em que momento vocês decidiram cada um viver
sua vida?
(único instante que parece desconfortável) Ele era muito ciumento, muito, muito.
Só porque ele é mais velho do que eu seis anos.
Você se casou com quantos anos?
Eu casei com de 19 anos, tive a primeira filha ia fazer vinte e um. Minha última
filha eu tinha vinte e sete, que foi quando eu engravidei dela eu já estava trabalhando,
mas é só benção e vitórias. Até ter uma casa na praia agora eu tenho.
Você nunca imaginou ter uma casa na praia?
Imagina! Os meus sonhos não eram tão altos assim não. Eu queria morar numa
casa que eu pudesse criar os meus filhos e era isso o que eu queria.
Quando você era menina na Paraíba, você falou que ia uma vez por semana
para a escola porque tinha que trabalhar na roça; quando você estava na escola,
você imaginava que um dia seria professora?
Não. Eu pensava diferente. Os sonhos das meninas lá, naquela época eram muito
diferentes dos das meninas de hoje. Eu queria estudar para eu pegar num livro. Eu via
meu irmão ler livros. Quando eu entrei na escola já estava com treze para quatorze anos,
para você ver o quanto que eu já estava atrasada. Então, já tinha passado tudo, o tempo de
infância e talvez até hoje eu tenha dificuldade em algumas coisas por isso. Uma coisa é
você estudar sem ter a preocupação de trabalhar para comer e outra é você saber que tem
responsabilidades, pensar num futuro, lá na frente poder fazer uma faculdade, porque
você pensa no que vai acontecer de bom lá na frente. A gente não tinha pensamentos
assim não. As meninas pensavam mesmo era em casar,ter uma casa, era o meu caso né?
Ter filhos, uma vida comum?
114
É uma vida comum como as mulheres lá. Então, quem me ensinou as primeiras
letras foi a minha avó. Eu ganhei uma carta de ABC, era assim que falava. Tinha vários
jeitos de escrever as letras, mas era só o ABC. Minha avó era cega e a primeira folhinha,
ela se lembrava, ela começou a ensinar ABC, de memória, e ela me mandava pôr o dedo
em cada letra, que assim eu aprenderia. Então devo isso também a minha avó. A gente
tinha uma vida tão simples, a gente trabalhava na roça, colhia o feijão e o milho e o resto
Deus provia. A gente criava galinha, então sempre tinha um ovo para comer de mistura,
quando matava uma para gente comer tinha mistura. Era uma vida difícil, mas era
gostoso porque tinha tanto amor dentro de casa. Eu costumo dizer para minha irmã,
embora ela diga assim: você sente saudade de ser pobre. Mas não é de ser pobre.
Podíamos até ser pobre, porque a gente não tinha roupa, calçado, nós não tínhamos luxo,
mas o amor que a gente tinha da nossa avó era (pausa: choro).
Você ficou emocionada... (acaricio sua mão).
Era maravilhoso! As histórias que ela nos contava... Hoje nós estávamos falando
de casa grande e, naquela época (na infância), tinha três cômodos na nossa casinha. Lá, a
gente chama de casa de taipas porque é feita de madeira e joga o barro, nossa casa era
daquela. Tinha duas portas, uma na frente e outra atrás, não tinha nenhuma janela e a
gente não tinha cama para dormir. A gente dormia numa rede, dormia minha avó numa
rede, eu e minhas três irmãs dormíamos no quarto com minha mãe e minha avó, e meu
irmão dormia na sala. Minha avó contava história para gente no escuro porque a gente
não tinha condições de comprar muito querosene, então tinha que apagar o candeeiro
cedo. Depois ela balançava nossa rede, contava história balançando a primeira rede, que
batia na minha que era a última. As meninas dormiam entre eu e minha avó, ela
balançava nossa rede e a gente dormia ouvindo as histórias. Até hoje eu me lembro de
algumas historinhas que ela contava, música que ela cantava para a gente. Era
maravilhoso. Nossa que delícia! E seu pai? Faleceu cedo?
Meu pai era um homem rico, mas nunca me deu nada. Nunca ajudou em nada e
nem reconheceu a gente como filho. No meu caso, não me reconhecia como filha.
Vocês eram em quantos?
Nós somos em quatro, três meninas e meu irmão. Ele era o mais velho, era o
paizão. Era aquele irmão que terminou sendo um pai de três meninas que não eram filhas
dele. Ele tem como filhas mesmo, apesar de que hoje ele fala que eu sou como mãe para
115
ele. Nós dois somos os mais velhos, perdemos pai e mãe,então, somos nós quem dá
conselho às mais novas.
Vocês não tinham contato frequente com o seu pai?
Tinha, a gente ia à casa dele, mas não como filho. Minha mãe andava na casa
dele, normal, não tinha inimizade com ninguém, mas ninguém era tratado como filho,
ninguém falava nesse assunto. Minha mãe nunca abriu a boca para dizer “teu pai é
fulano”. Só depois, eu não me lembro com qual idade, eu sei que um dia ele deu um
tecido para minha tia mandar fazer um vestido para mim, não sei por que ele deu. Mas
mandou minha tia me dar. Foi quando minha tia começou a falar dele para mim. Ela
dizia: “ó filha, esse tecido aqui foi o seu pai quem comprou”; e eu tenho pai tia? (risos) A
curiosidade veio. Quem é o meu pai? Ela falou: “eu não queria dizer não, sua mãe não
quer dizer, mas o seu pai é o senhor (nome)”. Nossa... Minha maior angústia era quando
alguém me perguntava qualquer coisa sobre meu pai. Isso era muito cruel porque eu não
podia falar que ele era meu pai; afinal ele era casado com a outra mulher. Ele não me
considerava sua filha, meu irmão (filho desse casamento com a outra mulher) não me
considerava como irmã. E como a gente vai crescendo, as histórias vão acontecendo, e
todo mundo morando no mesmo lugar, a turma começava a falar “fulano é teu irmão”, eu
tenho muitos irmãos da parte do meu pai. E da parte da minha mãe, nós somos quatro.
Mas a gente só se considerava irmão nós quatro. Não tinha outros irmãos e os outros não
nos reconheciam. Eu fui crescendo e meu pai foi tomando atitude de pai, mas de longe e
do jeito dele, ele era muito fechado. Eu pedia benção sempre para ele, eu o chamava de
Seu (nome). Sempre tive muito carinho, muito carinho mesmo pelo meu pai. Quando eu
fiquei noiva desse com quem me casei, meu irmão me fez terminar o casamento, então eu
fugi de casa, fui para a casa da minha madrinha e lá eu fiquei um mês e casamos. A gente
casou.
Seu irmão impediu o casamento e você fugiu?
Fugi daquela situação, eu não aguentava mais! Eu casei, quando a gente se casou
nós não tínhamos nada.
Por que ele não queria esse casamento?
Por que a minha sogra tinha uma língua muito grande e um dia ela xingou minha
irmã, ela falou um palavrão com a minha irmã e ele (o irmão) falou que se ela falava
aquilo para uma menina pequena, imagina o que ela faria comigo se eu me casasse com o
filho dela.
116
Daí vocês fugiram?
Primeiro a gente conversou, decidimos casar no mesmo dia que minha irmã se
casaria, só que escondido. Mas, decidimos depois não fazer mais isso. Num outro dia, eu
estava na escola quando ele me mandou um bilhetinho dizendo que se eu quisesse fugir,
ele me buscaria. Quando eu mandei a aliança para ele, eu mandei dizer que se ele
gostasse de mim, de verdade, e me quisesse, então eu fugiria com ele. Passados uns dias,
ele tomou uma decisão e foi me buscar. Ele, minha madrinha, meu padrinho (risos), um
monte de gente foi me buscar (risos).
Um monte de testemunhas do amor de vocês.
(risos) Compramos o vestido do casamento, tudo muito simples até porque nós
não tínhamos muitas condições mesmo. Meu pai foi lá, foi na verdade, tomar atitude de
pai, perguntou se precisávamos de alguma coisa para o casamento, mas meu marido disse
que não precisávamos de nada. A gente comprou tudo, graças a Deus! Mas na verdade, a
gente foi morar na casa da avó dele e a mãe também morava no mesmo quintal.
(A entrevista é interrompida pelo choro do bebê).
117
Entrevista com Diana
Bom, Diana, eu quero que você comece contando um pouco da história da sua
vida.
De onde?
Do começo, o que você considerar importante me contar.
Desde quando eu era pequena?
Sim, desde quando você era pequena.
Assim....o que era importante na minha vida?
O que te vem à mente?
Eu tive uma infância muito gostosa, brinquei muito na rua.
Você é daqui de São Paulo mesmo?
Nasci no bairro do Tatuapé. Tive uma infância muito bonita, brinquei muito, porém
não tive juventude. Fui mãe aos 13 anos de idade. Não tive orientação porque minha mãe
era muito rígida. Fiquei meio perdida na vida por muito tempo. Trabalhei muito, trabalhei
em casa de família, trabalhei numa fábrica de montar taxímetro.
Tudo isso depois que você teve sua filha?
É, separei. Uma mulher chegou lá com um filho no braço e perdi o contato com ele.
Depois veio o segundo marido.
Quantos anos você tinha?
Bom... do primeiro casamento para o segundo marido, casei com 14 anos, separei
aos dezesseis e conhecei o segundo marido aos dezessete e aos dezenove anos já estava
grávida da terceira filha.
Como foi ser mãe aos treze anos?
Para mim, foi bom! Eu achava lindo. Meu medo era o da minha mãe dar minha
filha.
Ela dizia isso?
Falava; então, eu morria de medo dela dar minha filha.
E o seu pai? Ele já era falecido?
Falecido, não conheci meu pai. Quando ele morreu com câncer de garganta, eu
tinha três anos, então não o conheci. Meus irmãos já eram todos casados.
Então você parou a escola, parou tudo por conta da gravidez?
118
Tudo. Parei tudo, só voltei a estudar depois de adulta, com os filhos criados.
Quando voltei a estudar eu tinha trinta e dois anos.
E sua menina, da sua primeira gravidez, você deixava em casa para ir
trabalhar? A deixava com sua mãe?
Deixava com a minha mãe.
Então por isso que você tinha tanto medo?
Eu morria de medo dela dar minha filha.
Mas, alguma vez ela chegou a dizer que faria isso?
Se eu não sustentasse, ela dava! Se não sustentasse, ela dava! Eu tinha que trabalhar
bastante, trabalhava de diarista, tanto é que eu não tenho registro na carteira. Eu trabalhava
como diarista porque dava muito dinheiro. Eu tinha casas mensais, trabalhei num
consultório médico que eu limpava aos sábados, que era mensal e tinha casas que eram
todos os dias, então eu sempre tinha dinheiro.
E isso ajudava a sustentar a menina? E o pai, ele não te ajudava?
Não. Quando eu me separei dele, eu estava na dieta da minha segunda filha. Eu não
quis mais contato nenhum, nem para pedir, nem para receber nada.
Ele era mais velho ou tinha a mesma idade que você?
Ele era mais velho, eu tinha 13 e ele 18 anos. Eu me separei com 16 e ele já tinha
vinte anos. Quando eu me separei, me separei de vez. Então eu fui trabalhar e enfrentar a
vida. Trabalhei de diarista.
E como eram os patrões?
Eu sempre fui muito tímida. Era tímida ao máximo. Essa pessoa que você vê agora,
animada, sorrindo, se desenvolveu depois de muito tempo.
Com as experiências da vida?
Exato. Eu não conversava, não brincava, eu era muito séria e não achava motivo
para rir.
Te entendo. Tão jovem e com uma responsabilidade tão grande.
Não fui uma pessoa que ria à toa. Aprendi a rir faz pouco tempo. Tem uns dez anos
que eu aprendi a rir. Aprendi a rir aqui. Antes eu levava a vida muito a ferro e fogo e a
minha mãe era muito católica, fazia a gente ir à missa. Eu olhava aquele Deus lá pendurado
na cruz, eu olhava bem para ele e falava “o que eu fiz para merecer tudo isso?” Por que eu
mereço tanto castigo? Sabe, era um castigo aquilo tudo, ter que trabalhar tanto, separar tão
nova, ser traída. Eu não podia fazer nada, não podia sair, não podia fazer nada!
119
Era do trabalho para casa?
E de casa para o trabalho. Minha mãe não admitia. Quando eu conheci esse
segundo marido foi através de ir e voltar do trabalho. Fui logo morar com ele rapidamente,
mas nós dois já logo nos desentendemos, mas como eu fiquei grávida, decidi ficar com ele
mesmo. Ele foi mais uma fuga.
Para você sentir um pouco mais de liberdade?
Eu não aguentava mais a pressão da minha mãe. Daí veio a terceira filha, continuei
trabalhando e continuei com ele. Aprendi a gostar dele. Depois, fui andando, procurando
religião, isso e aquilo, alguém que explicasse o porquê. Sou uma pessoa, eu sou leonina e
os leoninos gostam muito dos porquês da vida. Eu sou mandona, tudo eu quero saber e se
eu quero... Fui indo até que eu achei o budismo, que no começo eu não gostava muito. Ela
falou tudo tinha que sido escolha minha. Eu fiz isso para mim?
Por que você não gostava? Como que era?
No budismo eles falavam assim: “se você está sofrendo é porque fez alguém
sofrer”. Se você está sofrendo é porque você escolheu esse caminho. Ninguém faz você
sofrer!”
No budismo tem alguém que orienta?
Tem o presidente Ikeda, ele escreve e tem as pessoas que estudam. Eu estou no
grau médio, então já posso orientar. Você tem que estudar escrituras de Nitiren Daishonin
para poder entender alguma coisa.
E a pessoa que te orientava; você não aceitava muito?
Não. Ela falava que eu estava mexendo num copo e que a sujeira estava embaixo e
a água por cima e que quanto mais eu rezava, mexia mais a sujeira. A sujeira subia;
ninguém era culpado do meu sofrimento a não ser eu mesma. Não existia um deus que
castigava e que o certo e o errado eu sabia, eram resquícios do passado. Eu disse: “Quem
falou que eu vivi no passado?” Ela me explicou que todo ato tem uma consequência e que
elas retornam. No budismo não existe aquela pessoa que é coitada. Cada um tem o que
merece. Eu tenho um neto que teve leucemia aos cinco anos e usa muletas, mas tudo isso é
consequência de uma vida passada. Você pode dizer: “mas ele só tem cinco anos!” Mas é o
ato que ele trouxe da existência passada. Ele carrega isso! O que você pode fazer por ele
diminui, mas ninguém pode tirar, pode apenas diminuir. A minha filha é católica, ela (a
orientadora) falou que não faz mal e que era para eu deixá-la rezar, pois toda reza para o
bem é bem vinda. Por isso que eu sempre falo “gente, entra em oração”, principalmente
120
quando minha mãe estava no hospital. Tem gente que me pergunta “ué, você não é
budista?” A oração do bem, vai para o universo, eu tenho certeza que aquela pessoa que
está orando, de coração, o universo pega, então vai dar no mesmo. O universo capta o
coração, a força do bem, a sinceridade. Aí que fui me conformando mais, estudando.
Você se perguntava o que você tinha feito no passado? Você não aceitava tudo
aquilo?
Eu me perguntava muito. Então, eu dizia, “nossa eu fui ruim hein.” Eu fui muito
ruim! Minha dirigente me perguntava: “será que você ainda não é? Você já se analisou?
Sente-se na frente do oratório, junta suas mãos, se autoanalisa e veja como você é. Você
manda muito, Diana. Na sua casa é a sua lei. Você ouve suas filhas? Você tem uma filha
que ficou grávida aos dezesseis anos, será que você a escutava? Você vai culpar a aquém?
Ela ou você, pois não a escutou? Não existem culpados, pare de procurar culpados.”
Você sempre procurava culpados?
Queria sempre. Queria pôr a culpa nas costas de alguém. Eu não queria ser a
culpada. Eu sempre queria mandar, eu sempre queria acusar.
Então você era meio rígida?
Eu era muito rígida. Eu tive uma educação muito rígida. Minha mãe era sozinha.
E você era filha única?
Não. Somos em cinco irmãos.
Sua mãe era sozinha, ela precisava dessa postura rígida.
É, precisava. Depois eu perdi um irmão assassinado; então isso acabou muito com
ela. Outro irmão teve câncer no intestino, superou, mas foi muito sofrimento. Ela já tinha
passado pelo câncer de garganta do meu pai, que trouxeram para casa e ele acabou
morrendo. Então, ela já vinha de uma vida muito sofrida; lavadeira, então ela já era como
eu: seca. Eu aprendi a ser através dela. Ela era seca. Ela falava que beijo era falsidade.
Hoje em dia a gente não se abraça e dá beijinho? (assenti com a cabeça) Se fizessem isso
com ela, ela falava que a pessoa era falsa.
Até com vocês, filhos, ela tinha essa resistência?
Sim. Não podia beijar de jeito nenhum, era no máximo na mão. “A benção mãe” e
nada de carinho, nenhum. Eu aprendi a ser menos seca com o tempo, com a religião,
estudando, trabalhando, depois que entrei aqui no CEI, convivendo com outras pessoas,
vendo outras vidas, outros mundos, vendo vários sofrimentos tão piores que os meus.
Tinha umas crianças, quando comecei, antigamente dizia creche, era assistencialismo, que
121
eram paupérrimas, umas mães bem pobres e cheias de filhos. Tinha aquela mãe que vivia
bêbada, que vinha drogada, você sabe o que é isso? Tinha criança que vinha toda marcada.
Eu me perguntava “eu acho que eu sofro?” Tinha aquela mãe que apanhava do marido. Foi
a partir disso que eu comecei a abrir minha mente. Mas eu ainda era rígida. A Pedagogia
abriu melhor minha cabeça.
Posso dizer que você já se sensibilizava?
É. Muito.
Aquelas mulheres, aquelas crianças te sensibilizavam. Então você não era tão
rígida assim, você queria se esconder atrás de uma máscara e essa, de pessoa rígida,
era a que você usava. Você falou que seu segundo casamento era uma fuga, então
talvez esse perfil também fosse, né?
Talvez. Acho que foi uma fuga para eu não me machucar de novo. Não deixar as
pessoas me atingirem. Na realidade, como meus filhos eram mais próximos de mim (em
relação ao pai, principalmente as meninas), eles apanhavam muito. Eu vim de uma
linhagem na qual ensinamento é apanhar.
Então sua mãe te batia?
Bastante e por qualquer coisa! Por qualquer motivo e às vezes sem motivo, era
surra. Lembro–me de um dia em que eu cheguei da escola, estava chovendo, eu deixei o
guarda-chuva na área, só que era muito encerado, porque ela tinha mania de muita limpeza.
Minha mãe exigia limpeza máxima. Para ela pobreza e sujeira não combinavam em
absolutamente nada. A área estava encerada e o guarda-chuva escorregou, eu tirei o sapato,
entrei tirei a roupa molhada; tomei um banho. Ela me chamou e perguntou se “aqui era
lugar para deixar o guarda-chuva?” Eu apenas respondi que o havia deixado ali para
escorrer a água. No que eu disse isso, um cabo de vassoura quebrou nas minhas costas.
(fiquei muito chocada! Lembrei-me dos castigos que recebi na infância.) Nossa
Diana! Você era pequena?
(Balançava a cabeça afirmativamente enquanto falava:) Sem falar nada!, Eu tinha
uns nove anos. Tem muita coisa que, assim, tem gente que fala que se lembra da infância
aos quatro ou cinco anos, eu não lembro e nem quero lembrar. (risos).
Era constante?
Era muito constante, com meus irmãos também. Eles falam ainda hoje que comigo
era ela “pegava leve”; pois com eles era mil vezes pior.
Nossa! Você era a mais nova?
122
Eu era caçula.
Está explicado, então. As caçulas sempre têm uma colher de chá, eu percebo
isso lá em casa. (risos).
É!, Minha irmã sempre fala que eu tive mordomias. Se eu tive, nem imagino como
foi na época deles. (risos). Certamente era bem mais pesado! Então, eu pegava pesado
com as minhas filhas. Eu batia muito nas minhas filhas. Quando eu entrei na creche
comecei a ver as outras vidas, quando comecei a estudar e quando fiz Pedagogia, eu dizia:
“quanta burrice que eu fiz!”. Mas daí já era tarde, eu já tinha feito tudo isso. Minha filha
estava grávida com dezesseis anos, as outras tão novas já casadas. Minha vida já estava
toda virada.
E quando sua filha ficou grávida, como foi para você receber a notícia que
seria avó?
Eu estava com 35 anos. A primeira engravidou com dezoito e logo casou, a outra ia
completar dezoito, mas eu não a deixei se casar. Eu achava que o rapaz não era boa coisa.
Essa, de dezesseis, foi a última. Mas eu já estava cursando contabilidade e já era mais
tranquila.
Então suas meninas cresceram e, você voltou a estudar a partir de qual série?
Quantos anos você tinha?
Comecei da 6ª série e nessa época eu já estava na prefeitura. Fiz o ADI Magistério.
Entrei em 1986 como lactarista. Lavava mamadeiras, punha as canecas no hipocloro, fazia
três tipos de sopa, os legumes não podiam ser preparados misturados para não dar alergia,
fazia três tipos de leite. Eu ficava nessa parte de preparar os alimentos dos bebês e cuidar
dos utensílios deles. Só dos bebês, cuidava dos alimentos e utensílios só dos berçários. Fui
lactarista por cinco anos.
E decidiu ser ADI, fez concurso?
Na realidade eu fiz concurso para auxiliar de limpeza e auxiliar de cozinha. Como
eu tinha uma diretora muito folgada, eu decidi fazer ADI, ela me falou que eu não tinha
capacidade para isso. Eu disse que via “a meninada” trabalhar fazia cinco anos, então eu
saberia o que fazer. Mesmo assim ela disse “tem que saber, pois no tempo em que elas
fizeram o concurso a exigência era ginásio”. Então eu falei que tinha a 6ª série e que havia
parado de estudar na metade da sétima e que tinha filhas estudando, eu olhava o caderno e
acompanhava na lição, mesmo assim ela duvidava.
E você entrou para ADI com a 7ª série, ela desacreditou de você?
123
Entrei só com a 7ª série e ela desacreditou que eu conseguiria, como se alguém não
pudesse acessar um cargo melhor só por ter a 7ª série. Mas o meu interesse, na realidade,
era me efetivar. Em qual cargo? Para mim, (gesticula com as mãos, sinal de indiferença), o
que eu queria mesmo era o de auxiliar de cozinha, que era a coisa que eu mais conhecia e
tal, foi um lugar onde eu passei tão bem. Para ADI eu fui mais calma, pensava que era um
simples desafio.
Você se lembra da prova?
Não, a prova foi, para quem estava nervosa, difícil. Eu estava tranquila, pois já
tinha feito os outros dois, o de auxiliar de cozinha e de auxiliar de limpeza. Se eu passasse
ou não, eu estava tranquila. Tinha muita pegadinha na prova e como ADI tinha que ter
muita atenção, é preciso atenção com a criança, percepção.
As perguntas eram voltadas para quais aspectos?
De cuidados com as crianças, pedagógico também. Nessa época já tinha um olhar
mais pedagógico e a gente tinha também um fechamento mensal.
Como se fosse Reunião Pedagógica?
É. Mesmo a gente sendo do SAS. Também tinha reuniões pedagógicas. Tivemos
uma diretora que puxava muito essa questão do pedagógico e todos participavam. Naquela
época ela já falava que “não existe só a ADI, todos aqui são responsáveis pela criança”,
Então, ela fazia reuniões e todos, até o serviçal que fazia a limpeza participava.
Ela valorizava a figura de todos na escola?
Exato.
Tinha professoras e ADIs ou todas eram ADIs?
Eram todas ADIs, não existia essa distinção em sala. Mesmo dividindo a sala com
outra professora ou no contraturno não existia essa distinção. Era ADI, auxiliar de cozinha,
lactarista e auxiliar de limpeza. E para a reunião pedagógica ela exigia que todos
participassem. Ela falava que o olhar pedagógico todos deveriam ter.
E quando você assumiu a função de ADI, qual foi sua maior dificuldade? Você
sentiu alguma dificuldade?
Minha maior dificuldade foi entrar na sala lotada e ouvir assim: “entra, essa sala é
sua.”
Então... não entendi, você não teve dificuldade?
Tive toda a dificuldade do mundo! Eu não tive ninguém para me ajudar em nada!
Você trabalhou sozinha?
124
Sozinha!
E qual foi a turma que você assumiu? Não tinha uma parceira, como é hoje em
alguns agrupamentos?
Não! Era maternal e tinha trinta crianças e simplesmente me disseram “essa sala é
sua!”
Estou chocada! Trinta crianças para cuidar você sozinha?
Exatamente, uma sala com trinta crianças de três anos de idade.
E como cabia trinta crianças dentro de uma sala de aula, por exemplo, na hora
do sono?
Você ficava no corredor. Os colchões todos na sala e você tinha que ficar no
corredor e tinha que dar banho. Então fazíamos assim, dávamos banho em quinze pela
manhã e à tarde nos outros quinze. Tinha que trocar, alimentar e tinha que dar atividade.
Isso era cobrado!
Que tipo de atividade você dava?
Fazíamos muito brinquedo com sucata, utilizávamos bastante guache e íamos muito
ao parque. Essas três coisas eram bastante trabalhadas. E a parte de cuidados também era
necessária, então dávamos banho, trocávamos, todos os dias. A professora da manhã
deixava anotado o nome das crianças em quem ela já tinha dado banho e, eu dava nos
outros quinze. A gente tinha que dar conta dos trinta! Era uma época que não tínhamos
tempo nem para respirar.
E como que vocês faziam, no caso de ter na sala uma criança com algum tipo
de deficiência?
A gente se virava sozinha, claro! Já tivemos aqui uma menina, agora eu não me
lembro o nome dela, que detectamos uma deficiência, mas a mãe não aceitava. Então, a
gente se virava.
E vocês não tinham apoio da SME, da DRE, enfim de algum órgão?
Não! Era assistencialismo puro. Não tinha, simplesmente.
Houve uma vez que uma criança com problemas mentais graves pulou o muro e
saiu correndo para a rua. Uma professora o viu e fez o mesmo, pulou o muro e saiu
correndo atrás dele. O portão era trancado com cadeado.
Então, durante muito tempo vocês trabalharam “abandonadas” por assim
dizer?
125
AH, Sim! E tinha que dar conta, não podia deixar uma criança se machucar senão,
“o bicho pegava”, você apanhava dos pais.
É mesmo? Existia uma relação assim complicada?
Bem complicada. Você estava no céu se não entregasse a criança arranhada,caso
contrário, a coisa ficava feia.
Como eles se reportavam a vocês, profissionalmente?
Tia. Ainda hoje alguns falam tia. Mas hoje percebo que tem um pouco mais de
respeito e valorização. Antes eles achavam que a gente estava aqui e não era mais que
nossa obrigação dar banho, trocar. Eles queriam pegar a criança para botar na caminha e
nada mais. Achavam que além de a gente cuidar, tínhamos que educar. Educação vem de
casa, o que fazemos aqui é um complemento, mas eles queriam que alimentássemos,
ensinássemos e educássemos. O nosso trabalho aqui é complementar ao da família e a
família deve fazer o mesmo em relação ao nosso. De que adiantaria uma educação se em
casa não existisse uma ação complementar? O que eles queriam era que a gente educasse
aqui, e quando não tinha uma complementação em casa, eles reclamavam dizendo que a
criança estava ficando malcriada. Mas, claro!, ensinávamos uma coisa aqui e quando as
crianças chegavam em casa faziam outra totalmente diferente. Então não tinha como.
Você acha que ter sido mãe cedo, ter tido a experiência de criar três meninas te
ajudou no trabalho na creche?
Não. Aqui você tem outra postura, bem diferente do que é em casa. Lá você relaxa
mais, aqui você tem mais medo, mais tensão. Aqui eu sou uma pessoa mais tensa. Não são
meus! (em relação às crianças, responsabilidade de cuidá-las).
A experiência dos cuidados maternais, eu falo, isso te ajudou, por exemplo,
você trabalhou em berçarinho?
Eu amo berçarinho! Trabalhei, praticamente, a vida toda no berçário.
E isso te ajudou?
Com certeza! Bastante. Eu amava bebê.
Isso (os sentimentos e experiências de mãe e professora) se misturava? A
relação maternal e profissional se misturava?
No berçário sim. Fora dele, não.
Por que nos outros não?
Eu tinha medo! Os pais eram, sei lá, a criança podia chegar em casa falando alguma
coisa e te complicar ou ir ralada. O bebê não, era só trocar; o bebê te devolve muito, em
126
termos de afeto e devolutiva do trabalho. Você pega um bebê de três meses, se bem que já
tivemos um de sete dias. A mãe precisava trabalhar, o marido estava preso, eu apenas exigi
que deixasse o umbigo cair. Aí é o que eu te falei, era assistencialismo puro. Ela era
diarista e tinha outros três filhos; precisava sair para ganhar dinheiro ou os filhos passariam
fome. A diretora me perguntou na época se eu ficaria com a criança, eu disse que sim, mas
tinha que esperar o umbigo cair. Eu não cuidei dos umbigos dos meus filhos, não
conseguiria tratar desse.
No berçário tinha muita retribuição, sorriso, carinho, o engatinhar, os primeiros
passos, o falar, o cantar, o bater das palminhas, se eu falar que não me emocionava, que
não sentia, é impossível ou não é ser humano.
O (bebê), por exemplo, ele não tinha as pernas, ele tinha os joelhos que
emendavam os pés. Ele entrou aqui bebê, quando ele ficou em pé pela primeira vez, eu
vibrei. Nós vibramos! Falamos para a mãe, ela ficou perplexa “vocês estão brincando!”, ela
dizia. Ele subiu direitinho nas grades do berço, é gratificante! Você vê o valor do seu
trabalho, não precisa que ninguém fale.
Você se preenchia com isso?
Isso é a sua satisfação, sua realização profissional, o interior satisfeito, sensação de
dever cumprido, é gostoso! Sabe, tem gente que vem trabalhar e “fazer o que”, mas lá no
berçário não, cada dia era um dia diferente, uma surpresa diferente, uma criança fazendo e
aprendendo coisas diferentes. Então era gratificante. O trabalho era pesado? Dar banho, dar
“de mamá” (mamadeira), bater nas costinhas para arrotar, dar comidinha na boca, colocar
para dormir. Era pesado, não vou negar. Mas era muito gratificante, tem mais recompensa,
você se satisfaz mais como profissional. Na sua vida profissional você se sente mais
realizada.
Você pode dizer que isso te ajudou também na vida pessoal? Você disse que
queria arrumar culpados, se sentia prejudicada. Isso foi saindo?
É, isso acabou!
Os bebês te transformaram?
A inocência me mostrou, os bebês me mostraram a vida como ela é, eles me
ensinaram isso. O bebê com deficiência, o (bebê) com síndrome de Down.
Realmente, problemas bem maiores, que no caso deles não teriam como
contornar. Já os seus poderiam ser contornados, de acordo com os caminhos que você
escolhesse né?
127
E os meus eram fáceis de serem resolvidos. Quando meu neto teve leucemia, eu
tive todo tipo de apoio dos meus companheiros de trabalho. Então, eu pensava assim, ele
vai vencer! Eu vi tanta coisa pior lá dentro daquele CEI, eu sei que ele vai vencer e venceu.
Que bom!
Ele te 15 anos (risos)
Você ficou quanto tempo de ADI até transformar seu cargo?
Foi de 1990 até 2005. Depois passei para PDI, precisava fazer o ADI Magistério, eu
trabalhava aqui e à noite ia para a faculdade.
Então você fez o supletivo do 7º ao 3º ano?
Isso eu fiz no tempo da Erundina, pois já existia rumores de que não exerceria a
função caso a professora não tivesse faculdade. Se não me engano foi a “época da
educação”. Fui estudar, fiz supletivo, era semestral. Fiz o colegial técnico e quando veio o
ADI Magistério eu fui direto para a faculdade e fiz Pedagogia.
O que mudou, para você, ter feito Pedagogia, ter concluído os estudos?
Passei a ter outra visão.
Em termos financeiros, mudou bastante, e na vida profissional?
Também. Mil por cento! Antigamente, não tínhamos nenhum suporte. Quando se
comprava um brinquedo, a gente dizia: “a criança destruiu” e agora falamos que a criança
“explorou”. Brinquedo não é eterno, é feito para brincar e a criança quer ver o que tem
dentro, ótimo!, ela está explorando, mostra o quanto é inteligente. Antigamente taxavam as
professoras de “relaxadas” (desleixadas) e as crianças de destruidoras. Então, tínhamos que
cuidar até disso. Eu tinha uma raiva de ir para a brinquedoteca, eu não gostava de ir. As
crianças não podiam brincar à vontade, as coisas precisavam permanecer inteiras.
Brinquedos desgastam, quebram, uma criança mais curiosa quer saber o que está fazendo
barulho dentro do objeto. E você não vai conseguir olhar todas. Então, antigamente não
havia um suporte. Mas eu não vou ser hipócrita, eu também achava que a criança destruía
brinquedos, hoje em dia isso é diferente, não se trata apenas de destruir, ela quer construir
o novo. Minha visão mudou. A relação com os pais também foi beneficiada, hoje em dia
eu os compreendo mais.
Quando vocês passaram por essa transformação, de ADI para PDI e agora
PEI, o comportamento dos pais para falar e abordar vocês, isso mudou?
Não, foi aos pouquinhos. E ainda hoje muitos nos veem como tias. Estamos
engatinhando, acho que no futuro vão encarar melhor.
128
Você aceitava ser “tia”? Era natural?
Para mim, que entrei lá atrás, era natural. Eu aceitava, mas muitas professoras que
vinham da EMEI, elas achavam uma aberração. Eu dizia: “gente, calma, aqui é outra
realidade”. Realidade que está se transformando e isso não acontece da noite para o dia.
Leva-se tempo.
E muitas lutas!
Exato. No meu tempo de criança eram poucas as crianças que entravam numa
EMEI; hoje em dia, é direito, é para todos. Creche era raríssimo, hoje em dia é um direito,
tudo é uma questão de transformação.
Quando você entrou aqui devia ter poucas creches na região, considerando a
superlotação das salas.
Tinha. Essa foi inaugurada em 1985 junto com o conjunto. (Conjunto
Habitacional).
Seus filhos chegaram a frequentar?
Sim, o mais novo, frequentou quando eu era lactarista. Eu o levava todos os dias,
meus nove netos também vieram para cá.
E como era ser professora e avó ao mesmo tempo?
Eu nunca interferi, aqui eu não em mãe nem avó. Algumas vezes até me virava para
não ver. Nunca tive nenhuma discussão quando cuidaram dos meus netos. Eu olhei os
filhos de muitas aqui e nunca tive nenhum tipo de bate-boca, elas respeitavam o meu
trabalho.
Ocorreu-me uma coisa agora, voltando lá para as adolescência um pouco
conturbada, você disse que não podia sair, não podia nada, que era da casa para o
trabalho e do trabalho para casa. Você tinha sonhos?
Tinha. (seu tom de voz muda) Tinha muitos sonhos.
Ser professora era um sonho?
(estampa um largo sorriso) Era! Ser professora era um sonho. Mas você não vai
acreditar, sabe qual era meu sonho? Ser professora de inglês, uma coisa na qual eu sou
péssima (risos) e a minha filha é ótima. Teve um tempo que estudamos juntas e ela me
passava cola da disciplina. Até hoje ela é boa em inglês. Mas o sonho dela também foi
interrompido, ela queria ser médica. Então eu digo “nunca é tarde”. Eu realizei meu sonho
com 36 anos de idade.
Você só o atrasou um pouquinho, não o impediu.
129
Não. Só guardei um pouquinho na gaveta para mais tarde. E a vida foi uma
sucessão de coisas para eu vir a ser professora. Todo mundo falava: “mas não cansa?” Eu
estudava no período da manhã, pegava ao meio dia e ia até às seis da tarde. Era pesado,
mas era para correr atrás de um sonho, né?
O normal era 36 crianças na sala e quando vinham todas era uma tragédia. Tinha
que pôr colchão até no corredor. Era um grudado no outro, respirando o chulé do outro
porque eu colocava “pé- prá- lá e pé- prá- cá”, um trocando bactéria com o outro...
Por falar em bactéria uma professora comentou comigo que quando ela
ingressou na rede houve um caso de morte. Uma criança morreu de meningite. Era
comum as crianças ficarem doentes e morrerem nessa época?
Bastante comum. Aqui também chegou a morrer uma criança. Morreu por falta de
cuidados, a gente avisou tanto a mãe. A criança estava com pneumonia, falamos com a
mãe, ela só precisava trazer a criança, aqui nós medicávamos. Ela sempre perdia a hora da
medicação, tinha dias que se esquecia de mandar o remédio, a criança foi ficando fraca, foi
passando para o outro pulmão, ficou internada e morreu. Foi revoltante! Uma vontade de
“catar” essa mãe, mas infelizmente, não pude. Ter que olhar para ela e ouvi-la dizer “Deus
quis assim”, coitado de Deus viu!
Será que ela já tinha perdido outro?
Nem quis entrar em detalhes, minha revolta era tanta. A gente batalhou tanto para
que a criança sobrevivesse.
Você se viu ali como mãe?
Me vi como um parente, mas quem tomava conta dela (a criança), saiu. Não soube
lidar com isso, pediu a conta e foi embora. (pausa).
Deixa eu te perguntar outra coisa. Você falou que tinha sonhos e que ser
professora era um sonho que você conseguiu realizar, teve algum outro?
Morar na praia. (risos)
Verdade! (Risos) por isso que você faz essa viagem e não reclama?
Não reclamo, é minha verdadeira paixão.
Quando você olha para trás e fala assim “nossa tudo aquilo que eu vivi; tudo o
que passei”, valeu a pena?
Valeu, valeu muito a pena. Aprendi muito, eu sou outra pessoa!
E no que você se difere tanto dessa outra pessoa que foi um dia?
Em tudo!
130
E sua religião te ajudou nisso?
A minha religião me ajudou muito a enxergar. Eu era uma pessoa doente e não
sabia. Na minha família há casos de bipolaridade, minha mãe era bipolar, eu sou bipolar e
minha filha é bipolar mais grave. Ela tem um grau a mais de bipolaridade. E naquela época
eu não compreendia nada disso. Eu explodia, eu chorava, e ria. A pessoa bipolar muda
muito e rapidamente de humor.
A minha religião fez com que eu me enxergasse. Fez, primeiramente, com que eu
olhasse para dentro de mim e me transformar. Você nunca poderá ajudar ninguém nem
nunca verá nada de diferente se não estiver transformada interiormente. Se você não se vê
interiormente como pessoa transformada, nunca conseguirá fazer nada por ninguém.
O primeiro olhar, então, é para dentro, né?
Eu não gostava de mim. Eu trabalhava tanto, vivia feito louca. Vivia a vida dos
meus filhos, a vida do marido, a do vizinho, as das pessoas aqui da creche e das crianças;
eu não vivia a minha vida.
Não vivia para você, não se cuidava, não se dava um presente?
Exatamente. Hoje em dia não, as pessoas falam que eu sou a “dona das bijuterias”.
Eu sou!
Você é bem vaidosa?
Eu sou! Antigamente bastava apenas um chinelo de dedo e uma blusa, hoje em dia,
não. Primeiro eu vejo se preciso de alguma coisa, só depois é que penso em ajudar. A
viagem daqui até a praia é longa, mas me satisfaz.
Só de chegar e ver o mar da janela... (Risos)
(risos) Exatamente, sentir aquela calmaria é maravilhoso. Então, eu me ponho em
primeiro lugar. Uma pessoa insatisfeita não consegue fazer nada de bom e nem passar nada
de bom para ninguém.
Ainda mais atuando na educação infantil, né? Você precisa estar satisfeita e se
sentir realizada em algum ponto.
Se você não está realizada... (deixa algo subentendido)
Eu tenho uma professora que fala que a emoção é contagiosa e ela é mesmo. Se
você está num clima ruim, sempre para baixo, não terá condições de enxergar as
coisas boas da vida e as outras pessoas vão te olhar com essa mesma negatividade, né?
Exatamente, os problemas de hoje não serão os mesmos amanhã. E se você parar
para pensar, quem trabalha com crianças é privilegiado.
131
Quando te perguntavam o que você fazia, você dizia que trabalhava em
creche?
Sempre! Eu tinha orgulho de dizer isso. E se me perguntavam o que era creche eu
dizia que era um lugar onde ficavam os bebês, eu cuido de bebê até quatro anos de idade.
Tinha muita gente que não conhecia, não era muito divulgado. Agora se você falar em CEI,
todo mundo sabe o que é Centro de Educação Infantil. Antigamente, creche se chamava
depósito de crianças, CEI é uma coisa mais recente.
Você acha que essa mudança trouxe valorização para o professor?
Trouxe. Bastante! As pessoas entendem melhor o que fazemos aqui dentro. Deixou
de ser um depósito. Antigamente, todo cuidado era pouco. A gente era muito ligada,
tínhamos que estar sempre muito atentas a qualquer risco iminente. Tinha que ter esses
cuidados, por exemplo, no berçário, depois de alimentar a criança eu tinha que esperar
arrotar, pôr no berço mesmo que tivesse outro chorando. Você tinha que ter paciência, eu
não poderia colocar a vida de um em risco porque o outro estava chorando. Ele choraria
cinco minutos e depois seria saciado, mas em cinco minutos um bebê poderia perder sua
vida. Até para trabalhar no berçário é necessário jogo de cintura.
E nesse ponto, você acha que as personagens mãe e profissional se misturam?
Não. A mãe certamente pegaria no colo, ainda que fossem gêmeos ela pegaria os
dois no colo e o profissional tem que ter cabeça fria. Uma pessoa que trabalhar no berçário
e se desesperar, não trabalha. Tem que ser centrado, tem que ter cabeça fria. Tem que dar
comida, esperar arrotar, deitar a criança de lado, tem que ter vários cuidados e tem que ter
paciência, não se incomodar com grito e ter sensibilidade para escutar o choro, na hora do
banho tem que deixá-lo brincar um pouquinho na água.
(Pausa para atender uma ligação. Faço uma anotação: “contradição; as mães
também fazem isso”).
Nessa época do assistencial, além das mães que necessitavam ou porque eram
muito pobres e seus maridos estavam presos, ainda tinham aquelas que precisavam
do equipamento porque não tinha com que deixar a criança para poder trabalhar.
Tinha, cansei de fazer sabe o quê? Eu e outra professora comprávamos pente fino,
com nosso próprio dinheiro e tirávamos os piolhos, mas tudo no mais absoluto segredo.
Era nossa obrigação? Não, mas enfim.
Você se sentia na obrigação de fazer isso?
132
Eu me sentia na obrigação, eu não achava certo por causa do descaso de uma mãe
prejudicar outras que trabalhavam, que davam tudo de si. E tinha mãe que até ajudava, ela
trazia um remedinho para passar na cabeça do filho, eu passava na cabeça dele e na do
vizinho também.
A década de (19)90 foi muito importante para a educação, em termos de
políticas públicas, a creche estava se tornando CEI, tivemos o RCNEI e tratava do
educador numa visão mais humanista, um profissional com qualificação, que até
então isso não existia no SAS. Você comentou que começou a trabalhar na creche com
a 7ª série e deveria ter outras com menos escolaridade que você.
Tinha, até com a 4ª série.
Aí começou a exigir um pouco mais, você acha que isso foi bom?
Ótimo. A partir do momento que você estuda, sua vida muda em todos os sentidos.
A sua vida profissional e a sua vida particular muda em muitas outras coisas. Quando eu
disse que os estudos abrem os olhos, é verdade! Até mesmo a política, você aprende a ver a
política com outros olhos. Acho que é importantíssimo.
Você falou que vinham professoras da EMEI para cá. Existia essa distinção
entre professora da creche e professora da EMEI? Como era lidar com isso? Tinha
algum tipo de discriminação, ou não.
Tinha! Elas não gostavam muito. Querendo ou não ainda existia um pouco de
assistencialismo, foi devagar que a gente foi largando, foram anos de assistencialismo;
então, nós tínhamos vícios de assistencialismo ao vir para a educação que elas não tinham,
e isso gerava um conflito bem grande.
A visão era bem diferente, a nossa visão era bastante de cuidados. No caso delas, a
parte pedagógica era o que mais as interessava, existia essa discrepância. A gente via a
criança como ser humano e as outras professoras de EMEI viam como aluno.
Essa diferença que existe em relação ao olhar do professor de educação
infantil em relação a vocês, você acha que era devido ao salário, a escolaridade?
Tinha mesmo essa diferença salarial e de formação?
Tinha. Falava-se muito que a gente ganhava para limpar “bunda e catarro”.
Desmereciam nosso trabalho por conta do cuidar, mas que continha também o pedagógico.
Era um trabalho menos respeitado e menos valorizado.
Mas o principal era a criança?
133
A gente punha o pedagógico, sempre tivemos. Se você buscar o nosso passado vai
ver o pedagógico sempre. No assistencialismo, como também nos dias de hoje, tem o
pedagógico. Tanto é que quando tem essas coisas que o povo fala que é novo, nós olhamos
uma para a cara da outra e pensamos “que há de novo nisso?”
(risos).
Teve uma pedagoga, que tudo para ela era lindo e novo, para nós aquilo tudo era
cansativo, nós já estávamos carecas de ver isso.
Tinha muito curso na época de ADI?
Tinha. Muito focados no pedagógico, pois para o cuidar nós já éramos bem
preparadas.
Depois da Pedagogia você tem alguma outra formação?
Tenho várias (risos), fiz pós- graduação em Psicopedagogia, Arte- Educação. Fiz
bastante cursos para evolução funcional.
Depois disso tudo, você algum plano em mente? Já que seu outro desejo você
acabou de realizar.
Eu acho que vou trabalhar como psicopedagoga. Foi um curso que eu fiz por acaso
e me interessei.
Diana, estou muito feliz com a sua entrevista. Tem mais alguma coisa que você
deseja me contar?
Não. Estou solteira, estou feliz.
Se eu precisar...
Fique à vontade, a gente conversa sobre a vida, que é muito bom, a hora que você
quiser.
134
Entrevista com Penélope
Bom dia Penélope, essa entrevista tem como tema a constituição identitária da
profissional de creche. Eu vou pedir para você me contar a sua história de vida.
Mas o que você quer que eu fale?
A sua história, desde pequena até hoje. Como e quais foram os seus passos
para você ser quem você é hoje: a professora, a mãe, a avó, a esposa.
Ave Maria! Tem que começar do começo? (risos) Primeiro quando eu era menina...
Vou começar contando de quando eu era bem menina. A gente brincava. Hoje eu sinto
falta disso A gente brincava de casinha, fazia comidinha e fazia nossa própria bonequinha.
Não tinha tudo pronto como é hoje. Quando eu tinha aproximadamente doze anos a vizinha
da minha mãe ficou doente e ela tinha uma filha pequena. A vizinha não sabia o que fazer
para cuidar menina já que estava muito doente, então pediu para minha cuidar. Só que
minha mãe disse que não tinha paciência e por isso não poderia cuidar da menina e me
incumbiu dessa responsabilidade. A minha disse assim: eu não vou cuidar não, mas vou
deixar a Penélope com você, ela cuida direitinho e vai te ajudar. Eu só tinha doze anos
quando comecei a cuidar de criança pequena, ela tinhas uns oito meses. O tempo foi
passando, a (vizinha) melhorou e decidiu procurar emprego. Continuei cuidando da criança
e estudava de manhã. Depois da escola eu almoçava e ia para a casa da vizinha cuidar da
criança. Essa foi a condição estabelecida pela minha mãe, de que eu continuaria cuidando
da menina, mas tinha que estudar. A (vizinha/patroa) chegava por volta das dez horas da
noite e eu ficava lá, na casa dela até essa hora.
Naquele tempo a gente era mais responsável com as coisas. Eu era a mais velha,
minha mãe trabalhava e eu cuidava dos meus irmãos, já sabia fazer comida. Eu aprendi
muito cedo a fazer comida porque minha mãe me fazia cozinhar. Um dia a (vizinha/patroa)
me perguntou se eu me importava de fazer a comida para ela. Eu disse que não afinal e já
sabia fazer comida. Comecei a cozinhar e a vizinha/patroa gostou muito. Chegou a dizer
que eu deveria ser cozinheira, mas eu disse que não, pois “quando eu crescer vou cuidar de
criança.” Eu nem imaginava que eu seria professora hoje, eu queria cuidar de criança. Eu
gostava, adorava cuidar de criança.
Passei por esse processo de ser adulta muito nova. Meu pai perdeu o emprego e
minha mãe passou a trabalhar fora para ajudar nas despesas da casa e me deixou
responsável por cuidar dos meus irmãos. Aos doze anos eu já tinha toda essa
135
responsabilidade, mas não posso dizer que não tive infância. Fui muito feliz na minha
infância e mesmo com toda minha responsabilidade de cuidar da casa e dos meus irmãos
eu ainda tinha um tempo para brincar.
Eu namorei, tive alguns namoricos e me casei muito nova com esse meu marido.
Você tinha quantos anos?
Dezessete e ele vinte e quatro. Eu era novinha, novinha. Ninguém queria que a
gente se casasse porque eu era muito nove e ele não tinha muito juízo. Ninguém queria que
a gente se cassasse. Minha mãe mesmo não queria de jeito nenhum. Mesmo assim nos
casamos. Passamos por muitas dificuldades. Meu pai costumava dizer que a única coisa
que a mulher escolhe na vida é o marido. Filhos, pai e mãe não se escolhem, mas o marido
é escolha e, se você não souber escolher sofrerá duras penas. Mas quando se é jovem não
ligamos para isso. Quando se está apaixonada não enxergamos outra coisa. Casei. Foi
então que descobri o que era sofrer. Sofri e sofri muito com meu marido. Ele bebia e tinha
vicio de jogo. Tudo o que ganhava (salário) deixava no jogo. Perdia tudo, sabe?
Vocês se casaram e foram morar longe da sua família?
Fomos morar no quintal da mãe dele. Era bem perto da casa da minha mãe.
Morando no quintal da mãe dele, ao invés de ele vir para casa com o dinheiro; eu ficava
esperando- o para pagar as contas, fazer compras; cadê? Esse homem não aparecia. E
quando aparecia era no outro dia, cansado tanto é que nem conseguia trabalhar, pois tinha
jogado e bebido a noite inteira.
Ele trabalhava numa estamparia. Um dia eu pensei: quando eu era menina eu já me
virava, agora que eu casei não vou trabalhar? Não, eu tenho que fazer alguma coisa.
Trabalhei em casa de amigas minhas como diarista. Eu não tinha vergonha de oferecer meu
serviço. Eu falava: olha fulana se você precisar de alguém para fazer uma faxina, eu venho
fazer para você e cobro baratinho.
E sua sogra, o que ela falava sobre o vício do seu marido e o fato de você sair
para trabalhar?
Eu morava no quintal da minha sogra, mas eu tinha o meu canto e ela o dela. Sobre
isso ela e o meu sogro até brigavam com ele. Ele (o marido) era muito rebelde, não
adiantava ninguém lhe falar nada, continuava a fazer tudo errado. Sempre vi meus sogros
como pais. Hoje estão mortos, mas sempre foram para mim como verdadeiros pais. Eu
tinha muita consideração por eles. Ai se não fossem eles. Meus sogros me socorriam
quando eu precisava de alguma coisa e estavam sempre por perto. Viam tudo o que eu
136
passava com o meu marido. Eu não reclamava nem falava nada para meus pais. Jurei eu
não contaria nada, principalmente para minha mãe porque eles não queriam o casamento e
eu ainda me lembrava da fala do meu pai.
Você tinha medo de eles dizerem “eu não te avisei”?
Medo e orgulho. Muito orgulho! Naquele tempo eu era muito orgulhosa, hoje não
sou muito. Por isso não falei nada. Sofria com meu esposo e ficava quieta. Minha mãe
quando ia à minha casa, eu não demonstrava de maneira nenhuma. Eu sempre tinha um
cafezinho para servir. Morava num cômodo que fazia de quarto e cozinha, mas você se
enxergava no meu chão. Fazia questão de deixar tudo bem limpinho.
Minha mãe só soube da minha dificuldade quando fui ter meu primeiro filho. Eu já
não aguentava mais aquela situação. Esperando nenê, trabalhava de diarista e arrumei
serviço numa fabrica de fundo de quintal. A patroa pagava direitinho fiquei algum tempo
ali.
Quando você é jovem e sem recurso não se atenta para algumas coisas. Só descobri
que estava grávida aos cinco meses de gestação. Não fiz o pré- natal e nem fiz o enxoval
do bebê. Fui ter o nenê, minha mãe não sabia que eu não tinha nada. Eu não tinha
comprado nada. A minha sogra é quem fez uns cueiros. Nesse dia a minha mãe foi até a
minha casa para buscar a bolsa para levar ao hospital e eu, sem jeito pensava: como vou
falar para ela que não tenho bolsa, não tenho nada? Era tanta vergonha, sabe? Naquela
época a mulher ficava uns dias no hospital, quando meu marido veio me visitar eu
perguntei se ele não ia comprar as roupas do nenê. Ele me disse “’Nega’, me perdoa. Eu
perdi todo o dinheiro”. Eu chorei, chorei, chorei. Perguntei se ele não sabia que tinha que
comprar o enxoval. Como eu ia fazer para sair com o nenê do hospital agora? Eu perguntei
para ele.
Eu fiquei com raiva. Foi a primeira vez que eu fiquei com raiva dele. Quando
minha mãe veio me visitar eu pedi para voltar para a casa dela. Por um momento minha
mãe ficou sem saber o que me responder. Em seguida disse se era aquilo que eu queria,
então tudo bem. Mas quis saber se estava acontecendo alguma coisa. Eu não falei nada a
não ser que o nenê não tinha nenhuma roupa. Eu não sei como vou fazer. Só tenho algumas
fraldas que a Dona (sogra) fez, mas roupas, cobertor etc., isso eu não tenho. Minha mãe
não acreditava, se eu tivesse contado o que estava acontecendo ela teria comprado o
enxoval. Ela ficou brava, xingava meu marido e disse que iria me buscar e que meu marido
nunca mais ia me ver. Minha mãe foi numa loja e comprou no crediário tudo o que o nenê
137
precisava, comprou até um carrinho. Quando eu cheguei à casa da minha mãe, ela tinha
preparado um quarto (que antes era meu e da minha irmã) para eu ficar com o meu filho.
Mais tarde meu marido bateu lá na casa da minha mãe. Ele tinha ido me buscar no hospital
só que eu já tinha saído. Esse homem ficou louco. Ele gritava: Por que você não quis ir
para nossa casa? O que eu te fiz? Eu estava decidida, não queria mais viver daquele jeito.
Falei “se você mudar, podemos voltar”, mas, daquele jeito, eu não queria mais. Meu
marido não aceitou essa separação e decidiu conversar com meus pais, ele queria morar lá
na casa junto comigo e meu filho. Eu amava demais ele, mas voltaria a viver com ele só se
ele mudasse e deixasse o vício do jogo. Ele disse aos meus pais que gostava de mim, que
iria mudar... E veio. Moramos lá com pouco tempo. Ele jurou que deixaria com o jogo e
com a bebida, e não fez nada. Foi até pior. Ele não ajudava na despesa da casa. Meu filho
nasceu em abril; e no dia de finados, minha mãe e minha tia costumavam ir ao cemitério
nessa data. Elas visitavam túmulos de parentes, assistiam a missa de finados. Nesse dia,
meu marido ficou dormindo, deixei o bebê com meu pai no outro quarto e eu fui com elas.
Demorou um pouco. Quando chegamos, ele estava bravo, me xingou, xingou minha tia.
Foi a gota d’água. Eu disse: arruma suas coisas e vai embora!Eu tinha uns dezenove anos
nessa época. Ele não acreditou que eu estava falando sério, eu repeti: arrumas suas coisas e
vai embora! Eu peguei as roupas dele, enfiei num saco e joguei lá no quintal. Meus pais
ficaram quietos; eu estava decidida. Eles viram que estava certa e preferiram não inflamar
mais a situação. O (marido) recolheu suas coisas no quintal e voltou para a casa dos pais.
Depois de algum tempo eu arrumei emprego na Philco, trabalhava lá até as dez da
noite e continuava separada do meu marido. Fazia um ano e meio que eu trabalhava nessa
empresa e esse homem me perturbando, sempre ia atrás de mim, querendo voltar. Eu
sempre falava que não queria voltar com ele não. Quando foi um dia, lembro como se fosse
hoje, era um sábado, meu cunhado estava me esperando na porta da firma. Eu estranhei,
senti uma sensação estranha. Achei que tinha acontecido alguma coisa. Eram dez horas da
noite, é claro que alguma coisa aconteceu. Meu marido tinha se envolvido numa briga e
tinha levado muitas facadas, estava em coma. Minha sogra foi quem pediu a esse meu
cunhado para me avisar. Como já era de noite, eu não podia visitá-lo. Fui para casa
chorando, nervosa. No outro dia, bem cedo fui ao hospital. Lá o medico disse que o estado
era muito grave e me perguntou se eu tinha alguma crença, se eu acreditava em Deus ou
em algum santo. O médico falou que já haviam feito tudo o que podiam. Meu marido ficou
em estado grave, perdeu a metade do fígado por causa de uma das facadas. Foi muito sério
138
o que aconteceu com ele. Eu entrei numa capela e comecei a pedir para Deus pela vida
dele. Se Deus achasse que nós merecíamos uma segunda chance, que livrasse meu marido
dessa situação difícil. Eu sentia culpa, sabe? A primeira coisa que a minha sogra me disse
quando me viu no hospital é que eu era culpada. Eu achei mesmo, porque toda vez que ele
bebia toda vez que ele saia e voltava revoltado, era por minha causa. Ele vivia atrás de
mim e eu não queria voltar. Ele ficava revoltado e chorava e dizia que queria sua mulher de
volta. Então minha sogra achava que eu era a responsável pela piora dele e pelo que havia
acontecido. Ela (a sogra) dizia que se eu ainda estivesse casada com ele isso não teria
acontecido. Ajoelhada eu só pedia isso a Deus. Depois de um tempo que estava orando, o
médico chamou a família e eu pude entrar para vê-lo, eu achei que seria a despedida. Juro
por Deus, eu não achei que meu marido sairia daquela. No instante em que olhei para ele,
temi que já estivesse morto. Ali eu pensei que minha sogra estava com a razão. Se eu
estivesse ao lado dele, isso talvez não tivesse acontecido. Como foi de madrugada, talvez
ele estivesse em casa comigo. Foi isso o que ela quis dizer. Naquele instante eu pensei que
talvez pudesse ter evitado tudo isso. Aproximei-me, segurei em sua mão e fui pedindo a ele
que pelo amor de Deus se levantasse daquela cama. Ele precisava melhorar para cuidar do
filho. Nisso, senti que ele apertou minha mão e vi que uma lágrima escorria no canto do
olho dele. Ali eu acreditei que ele sobreviveria. Antes ele não tinha demonstrado nenhuma
reação, o médico nos deu um pouco mais de esperança, mas disse que, se ele sobrevivesse
poderia ficar com sequelas. Fui embora e só voltei no outro dia, fiquei aliviada quando
soube que ele tinha saído do como, a enfermeira disse que ele estava bem. Eu havia
prometido que se ele melhorasse, voltaria para nossa casa. Eu disse isso a ele e também
quando eu estava orando. E isso foi o que eu fiz. Quando ele recebeu alta e foi para casa eu
voltei junto.
Foi só lua de mel?
Não, ainda demorou um pouco. Ele ainda estava muito debilitado e demorou a se
recuperar. Ainda hoje ele tem as marcas no corpo. Como eu havia prometido nunca mais
me separar dele; nunca mais tive coragem de deixá-lo. E passei muitas situações difíceis.
Sério? Seu marido continuava com o vício do jogo?
Continuava com vício da bebida e do jogo só que nessa época ele mudou um pouco
e passou a ser mais responsável, pois tinha medo que eu fosse embora. Eu trabalhava na
Philco ainda, engravidei do meu segundo filho. Fui demitida da firma. A vida já estava um
pouco melhor com ele. Meu marido continuava bebendo, mas pelo menos cumpria com as
139
obrigações dele. Foi um avanço, só que ele não conseguia deixar a bebida. O tempo foi
passando, meu filho nasceu depois fiquei grávida novamente e esse filho morreu porque eu
tenho pressão alta, daí o nenê morreu. O cordão umbilical enroscou por causa da pressão
alta. Só depois de dez anos é que engravidei de novo. Tive minha filha. Mas, quando
descobri que estava grávida, eu não a queria. Meu marido não mudava de jeito nenhum e
eu não tinha coragem de me separar mais dele, afinal eu havia prometido isso. E passei
por poucas e boas com ele.
Valia a pena levar a promessa à diante?
Valia. Se fosse hoje eu não faria. Eu achava que valia a pena. Ele tinha melhorado
um pouco eu achava que ele melhoraria e, eu tinha os meninos pequenos.
Quando eu engravidei da minha filha eu quis tirar, eu já estava trabalhando na
prefeitura, meu marido não tinha nenhum juízo, eu já com dois filhos.
Você mudou de ideia? Como foi isso?
Quando eu descobri que estava esperando ela, eu não queria de maneira nenhuma.
Nova de emprego; estava começando a ter minhas coisas. Meu apartamento tinha saído na
COHAB, esse homem não melhorava então para quê eu iria por mais um filho no mundo?
Falei com uma amiga minha e ela me arrumou o dinheiro para fazer o aborto. Levou-me
até a clinica, eu estava decidida. Tinha três pessoas lá. Quando chegou a minha vez eu me
arrependi. Era uma clínica clandestina, eu pedi meu dinheiro de volta e disse bem segura
que não faria aquele aborto. Voltei para casa, chorado e passando a mão pela barriga, pedi
perdão. Eu nem sabia se era menino ou menina. Passei na casa da minha amiga e devolvi o
dinheiro que ela havia me emprestado. A (amiga) disse que me emprestou o dinheiro
porque viu meu desespero, mas ficou pedindo para Deus me iluminar. Cheguei a minha
casa, arrependida, chorei, chorei,chorei.
Você contou isso para alguém?
Não! Só contei muito depois. Tivemos três meninos (cotando com o que morreu) e
nenhuma menina. Meu marido era doido para ter uma filha. Foi passando o tempo, fiz o
pré- natal e fiquei sabendo que era uma menina. Chorei muito e pedi perdão a Deus, só ai
que eu falei para ele (o marido) o que fiz. Nessa hora ele ficou preocupado e demonstrou
que queria mudar, só que ele não conseguia. Quando minha filha nasceu, ‘Nossa Senhora’,
foi uma felicidade!A felicidade dele era inexplicável. Quando os outros nasceram nós
ficamos felizes, mas o nascimento dela... Foi especial. Hoje ela é meu anjo da guarda. Para
140
tudo eu conto com ela. Ela sabe da burrada que eu ia fazer. Tudo é ela. Eu convivi muito
tempo com essa culpa.
Como foi quando você chegou à clínica? Você observou as pessoas, obsevou se
o lugar era limpo? Você observou algum detalhe? Qualquer coisa que te fizesse
mudar de ideia?
Não. Não vi nada! Eu estava focada.
Você pensou que poderia morrer durante o procedimento?
Não. Não, não. Não pensei em nada disso. Eu só queria tirar a criança. Meu
arrependimento veio na hora em que a enfermeira me chamou. Deu-me aquele estalo “o
que eu estou fazendo?” e eu comecei a chorar e decidida, não fiz. Graças a Deus, porque
senão... Embora eu tenha um pouco de remorso por causa disso; ela está aí. Já me deu dois
netos maravilhosos, que são meus xodós. Ela faz 31 anos em setembro.
Eu sofri muito e ela sofreu muito comigo. O (marido) em vez de ele melhorar, ele
piorou. (fala isso com um pesar). Quando ela estava na adolescência, ele piorou muito.
Naquela época ele começou a onda do crack. Ele se envolveu. Sabe o que é um homem
com mais de cinquenta anos se envolver com o crack? (nesse momento nós duas nos
silenciamos. Foi um silencio de profundo que durou alguns segundos. P3 parece sofrer
com a lembrança, ainda assim se esforça para extrair da memória aquilo que considera
importante para revelar sua identidade de guerreira).
A bebida, tudo bem. Mas... a droga...
E, você se mantinha ali, forte, por causa daquela promessa?
Eu tinha jurado que não o deixaria mais. Ele piorava cada vez mais. Eu, até então
não sabia e me perguntava “o que esse homem está fazendo da vida dele?” Só comecei a
desconfiar porque ele pegava o pagamento e não vinha para casa. Quando ele voltava,
chegava num estado de calamidade. Eu nem o reconhecia. Quando ele chegava, eu pegava
um saco de lixo para colocar as roupas dele, enquanto ele ia para o banheiro tomar banho.
(nesse momento ela baixa seu tom de voz. Na sala, onde coletei a entrevista, éramos só nós
duas, ainda assim ela age como se alguém mais pudesse ouvir seu segredo. Um segredo
que a mim era confiado.).
Você fazia isso porque as roupas estavam muito sujas?
Ele fedia. Era um mendigo. Ele ficava dias sem voltar para casa. Enquanto ele
tivesse dinheiro ficava lá no lugar usando droga e se transformando num mendigo. E eu só
141
sofrendo, sofrendo, sofrendo. Nessa época eu já morava na Cidade Tiradentes, meus filhos
já eram crescidos. Eles foram crescendo com esse exemplo.
Foram crescendo com esse exemplo de mãe batalhadora.
E de pai cada vez mais...
Foi indo... e eu sofrendo. Eu não tinha me atentando que poderia ser a droga. Só
depois que eu comecei a perceber. Via na televisão, ouvia pessoas falando uma coisa ou
outra que eu comecei a pensar que isso estivesse acontecendo lá em casa. Quando eu
estava com esse problema, demorei a perceber porque tinha os filhos, o trabalho. Nessa
época eu já estava fazendo ADI magistério. Isso faz pouco tempo. Era tudo junto. Aí
quando foi um dia, eu estava na casa da minha mãe e ela comentou que “o (marido) passou
por aqui e eu fiquei com dó. Você tem que fazer alguma coisa”. O meu marido não é uma
pessoa ruim, é uma é uma pessoa que todo mundo gosta. Ele é bom de coração. Ela (a
mãe) falou assim: “você tem que fazer alguma coisa por aquele homem”. Mas o que eu
poderia fazer? Já conversei, já falei. Teve um dia que eu passei a Mao na mala dele e o
levei a casa do pai nessa época sua mãe já tinha falecido e falei para meu sogro “olha Seu
(sogro) eu não aguento mais”. Passado um tempo meu filho foi pai precoce. Aos dezoito
anos já foi pai.
(Penélope se silencia por um instante, eu apenas a observo e digo: Conte-me apenas
aquilo que considera importante que eu saiba. Ela e me olha e decide continuar.).
A menina também era muito nova. Eles não se ajustavam e ele trabalhava, mas não
tinha um bom emprego. Essa mulher teve outro filho e eu sempre ali, ajudando. E com
tudo isso, esqueci um pouco do (marido). Ele (o marido) foi se afundando mais. Quando eu
pensei que não, esse meu filho começou a me dar trabalho também. Eu já não sabia mais o
que fazer! Agora eram dois. Eu pensava assim: a pessoa convive com o exemplo do pai a
tendência era essa. Era o exemplo. Só me perguntava o que eu ia fazer da minha vida.
O meu filho do meio tinha o sonho de ir para a aeronáutica. Ele fez de tudo para
conseguir realizar esse sonho. Foi admitido e ficou cinco anos. Durante esse tempo meu
marido, né... ?
Durante todo esse tempo você nunca procurou tratamento para seu marido?
Não. Eu comecei a ir para a igreja evangélica. Eu não estava aguentando mais
aquela situação. Eu não olhava mais na cara dele. Eu fiquei separada dele por dez anos; eu
só não sai de casa, mas ficamos separados de corpos. Eu estava muito magoada.
Você achava que era culpa dele o que aconteceu com seu filho mais velho?
142
Sempre foi!
Vocês brigavam por causa disso?
Não. Mas, ele e o filho brigavam muito.
O tempo foi passando, eu estava na igreja e o pastor estava pregando sobre a
mulher sabia. A palavra dizia que a mulher sábia edifica sua casa. A mulher tinha que
cuidar da casa, do marido e dos seus filhos. Quando o pregador disse você que está
passando por isso, isso e isso (lutas familiares por causa da bebida, das drogas). Parecia
que estava falando comigo; nunca vou esquecer!
(Pastor:) “Mulher você que está passando por essa situação; ore por aquela pessoa
que está na sua casa. Converse com aquela pessoa”. Eu tinha certeza que o pastor estava
falando comigo.
Você nunca falou sobre isso na igreja?
Nunca. Você sabe como é a Igreja? Uma multidão, pelo menos naquela época era
uma multidão. Eu acredito que certas coisas sejam de Deus. Aquela palavra falava comigo.
Era simplesmente um homem falando para uma multidão. Tem coisa que não têm
explicação. É sobrenatural. No final do culto, ele falou para que erguêssemos as mãos em
direção a casa e orasse para que quando eu chegássemos lá as coisas estivessem do jeito
que gostaríamos que fossem. Eu ergui a mão desacreditada. Pensei “imagina que eu vou
chegar em casa e encontrar meu marido; vou chegar lá e encontrar tudo do mesmo jeito.”
Mesmo assim eu fiz.
Menina; eu falo, é coisa de Deus! Quando cheguei em casa, meu marido não estava
ainda, fazia dois dias que ele estava fora de casa. Tomei meu banho e fui dormi. Não
demorou muito ouvi baterem à porta bem forte. Eu estranhei, devia ser mais de meia noite,
nem pensei que pudesse ser o (marido) afinal ele nunca chegava a essa hora. Quando abri a
porta, era ele. O (marido) foi direto para o banheiro e como só fazia dois dias eu nem
peguei saco de lixo, enquanto eu pegava uma roupa limpa ele me chamou. Minha casa tava
um silêncio, ele estava calmo, minha casa estava (sorri) do jeito que eu gostaria que ela
estivesse. Você vê que coisa interessante? É de Deus! Claro que é de Deus! Ele (o marido)
se ajoelhou e disse “filha, pelo amor de Deus, só você pode me ajudar”. Eu perguntei
como eu poderia ajudá-lo foi quando ele me disse que queria se internar.
Minha filha já era casada, eu já tinha meus netinhos e meu genro me ajudou muito.
Na realidade ele começou a beber e a fumar muito cedo. Meu genro arrumou uma clínica
que fica lá na Vila Alpina. Vimos o anúncio no jornal e estava bem explicito no anúncio
143
que se tivesse interesse já era para levar o paciente para internar. Nós fomos. Chegando lá,
o dono da clinica acolheu meu marido. Disse que ele (o marido), a partir daquele dia seria
outra pessoa. Explicar o procedimento não tocou no assunto de dinheiro nada. Meu marido
foi bem acolhido pelo Doutor. Meu marido queria mesmo o tratamento, era uma tábua de
salvação. Lá ele ficou cinco meses. O tratamento ficou em dez parcelas de seiscentos reais
fora os medicamentos. Desde que ele saiu de lá, graças à Deus, ele é outro homem. A
minha casa ficou do jeito que eu gostaria que fosse. Sossegada. A gente conversa, a gente
ri e briga também.
E seu filho? Ele aceitou fazer tratamento?
Fez, ele mora em Mongaguá e cuida das coisas lá pra mim. Ele era uma pessoa que
você não podia deixar um real que ele pegava para tomar pinga e usar droga. Se visse uma
coisa dessa (apontando para o gravador) e se pudesse, ele pegava para vender e usar as
coisas. Hoje ele cuida das minhas coisas, tem uma poupança, paga as contas, trabalha.
E seu esposo, ele também foi para a Igreja?
Meu marido? Não. Ele é católico roxo, daquele que sempre vai à Aparecida do
Norte. Quando ele vai e me chama eu vou também. A gente nunca disse que não. Eu
prefiro a minha igreja, foi a minha igreja que me tirou disso.
O pessoal fala do Apóstolo, que o apóstolo é isso, é aquilo; eu não estou vendo o
(apóstolo) homem. Eu vou atrás de Cristo. Sigo a Cristo e não o homem. Eu vou atrás da
minha paz. Eu tenho a minha fé. Não discuto com ninguém e também não sou de ficar
falando não, estou falando porque é para os seu trabalho.
Não sou de ficar falando de religião não. Cada um tem a sua e essas coisas sempre
geram algum tipo de conflito. Eu acho assim, quando você quer alguma coisa você vai
atrás, não fica esperando por ninguém não.
É verdade! Eu também sou muito assim. Não gosto de esperar pelos outros. Eu
mesmo gosto de resolver minhas coisas. Luto pelo que acredito e me esforço para
realizar meus sonhos, por isso estou aqui, conversando com você sobre a vida.
Isso mesmo.
Quando você entrou na PMSP, você ingressou como pajem, certo? Como era
esse período? Você tinha que administrar casa, trabalho, o curso e viver toda essa
turbulência.
O curso foi há pouco tempo. Eu fiz o curso em 2002 e terminei em 2004 e em 2005
é que teve a transformação (de cargo para PDI.). Mas, antes disso, aconteceu muita coisa.
144
Quando eu era pajem pegaram um monte de mulher, muitas sem estudo.
Quando você entrou, você tinha que série?
Eu tinha só a 4ª série. Acho que todo mundo tinha nessa faixa de estudo. Era um
monte de mulher, de várias regiões: da Penha, São Miguel; de vários lugares e fizeram uma
prova de seleção para que as que passassem fossem trabalhar em creche.
Você se lembra de como era essa prova?
A prova foi de conhecimentos gerais e as quatro operações, se não me engano. Não
teve entrevista. A gente tinha que esperar a chamada. Não tinha muitas creches prontas, a
prefeitura ia chamando conforme fossem ficando prontas. Passaram-se dois anos e não fui
chamada. Em 82 chegou uma carta lá em casa tinha uma carta da prefeitura informando
que eu deveria comparecer e levar os documentos pessoais. Eu não acreditei, eu pulava e
gritava de tão feliz. Eu nem sabia o que ia fazer, quando cheguei; no começo, como te falei
ainda não tinha creche pronta então fui para a Regional. Nessa época teve um surto de
hepatite e rubéola na creche São Pedro, então fui para essa creche e fiquei trabalhando até
a creche que eu ia definitivamente ficasse pronta. Não tinha uma definição de quem seria
pajem, auxiliar de lavanderia, lactarista ou da cozinha ou limpeza. A diretora de lá é quem
distribuía os cargos. Ela perguntava quem queria fazer o que e eu disse que queria cuidar
das crianças.
Tinha muita criança e a gente tinha que fazer tudo. Naquele tempo a gente tinha que
entregar a criança impecável. Tinha que dar banho, trocar de roupa, arrumar cabelo, tirar
piolho. Tinha que cuidar mesmo.
Tinha enfermeira nas creches, elas verificavam quem tinha piolho e
providenciavam o remédio para lavarmos as cabeças das crianças.
Seus filhos já não tinham idade para frequentar a creche, correto? Como você
fazia; com quem eles ficavam enquanto você trabalhava?
Meus filhos já estavam grandes, não tinham mais idade de creche. Como eu morava
no quintal da minha sogra, ela cuidava deles para mim. Depois eu me mudei para o
apartamento, nessa época eu tive minha filha. Quando acabou a licença maternidade eu a
levei para a creche comigo. Ela vinha comigo e os meninos ficavam lá sozinhos.
Para você, o que mudou após ter feito o curso?
Mudou muito financeiramente. Mudou também a questão de não termos mais que
fazer tudo, como era antes. Antes cuidava da criança, fazia faxina no banheiro da sala,
145
arrumava e higienizava os colchonetes. Depois do almoço das crianças “ai se deixasse a
mesa suja”. A gente tinha que limpar tudo.
Antigamente a gente não se via como professora. O curso ajudou a mudar isso
também, mudou nossa autoestima.
Se você fosse comparar o tempo em que você era pajem e hoje, qual é a maior
diferença que você vê?
Quando a gente era pajem, fazíamos muita coia mesmo sem saber, afinal não
tínhamos formação; hoje temos alguma formação. Nós não achávamos que dar atividade
era importante, mas fazíamos. Eu não pensava que aquilo era importante para o
desenvolvimento de alguma habilidade na criança. Fazia porque as professoras falavam
para fazer. Tinha professoras e pajens. As professoras bolavam as atividades e as pajens
executavam.
O que você observava em relação ao fazer docente; era muito mais o cuidado
ou o pedagógico?
Era muito mais o cuidado. Hoje não tem essa separação.
Antes de ser professora tive que fazer o ADI Magistério, isso foi em 2002. Comecei
a fazer o curso, passava por todos aqueles problemas com o meu marido e para completar
minha filha engravidou. No final do curso eu passei por uma fase muito difícil da minha
vida. Eu passei muitas fases difíceis, mas essa foi a que mais me marcou.
Meu filho do meio, aquele que serviu à Aeronáutica, comprou um apartamento e se
mudou para outro bairro, afastado de mim. Depois que ele se mudou, ficou uma semana
sem dar notícia. Fiquei preocupada.
Num sábado eu fui dormir, já não tinha passado bem naquele dia. Eu estava com
diabete, mas não sabia ainda. Naquela noite eu não conseguia dormir, estava muito
preocupada porque não recebia notícia do meu filho. Era tarde da noite quando recebi um
telefonema pedindo para eu comparecer no Hospital da Zona Leste. A pessoa não quis me
falar o que tinha acontecido com o meu filho. Eu passei mal então, meu filho mais velho
foi ao hospital. Ao chegar lá ficou sabendo qual era o estado do meu filho.
O que tinha acontecido?
Tudo que ele lembra é que ele tinha parado num mercado para comprar cerveja.
Quando fui visitá-lo eu não acreditei no que vi. O rosto do meu filho estava
deformado. Tinham batido muito nele. O médico não deu esperança nenhuma. Eu fiquei
146
desesperada! Ele exala um cheiro forte, ruim. Os médicos já tinham feito de tudo, mas
meu filho não reagia. Ele ficou dias sem reagir.
Os dias passavam e eu orando. Pedia a Deus para salvar meu filho e todos os dias
eu ficava ao lado da cama falando com ele. Eu achava que ele podia me ouvir. Foi assim
durante mais de duas semanas. Quando ele saiu do côma... Não era o meu filho. Tiveram
que amarrá-lo, ele era um louco. Ele nos reconhecia, mas devido as pancadas que ele levou
na cabeça ele não estava mais bem da cabeça. Teve que ficar mais de um mês amarrado,
tomando medicamento forte. Ele deixou de ser aquela pessoa alegre. Agora era um rapaz
agressivo. Por causa disso tudo minha doença foi se agravando e um dia acordei sem
enxergar nada. Você não imagina o desespero que é você não enxergar nada de repente.
Não enxergar nada é horrível. Nessa época eu estava concluindo o ADI Magistério, eu
fiquei seis meses sem enxergar absolutamente nada. Eu sofria com essa situação. Eu
chorava com medo de não voltar a enxergar.
Hoje eu sou feliz, muito feliz. Graças a Deus hoje a gente está muito bem.
Tudo isso fez de você uma pessoa mais forte?
Com certeza! Tudo na vida é aprendizado. Sempre pensei assim: “claro que minha
situação é difícil, mas tem muita gente em situação pior que a minha”.
Você se define em uma palavra?
Sim. Agradecida. Sou muito grata a Deus, pois é ele que me fortalece. Não importa
como foi meu dia, ao me deitar eu agradeço a Ele.
O que, em sua opinião, determina a escolha profissional? O que leva alguém
desejar ser professora?
No meu caso, foi por ter tomado conta de outras crianças. Na época em que eu
comecei como pajem, não pensava em ser professora, eu queria tomar conta das crianças.
Eu não pensava em ser professora, eu não tinha estudado. Tinha apenas o primeiro grau. Se
hoje somos professora é devido a muita luta, naquele tempo existiam muitos movimentos
sociais e um deles era pela luta por creches. A atual presidente do Sindicato de Educação
Infantil liderava os movimentos de greve. Ela era uma de nós, mas estudou, foi à luta e
conseguiu muita coisa para a categoria.
Nunca tive esse sonho de ser professora, eu queria cuidar de criança. Durante muito
tempo o cuidar era o mais importante. Quando eu comecei não tinha curso preparatório, eu
comecei com uma sala com sete bebês, alguns com quatro meses. Eu não tive medo algum.
147
Eu gostava de cuidar dos bebês. Você, por ser negra, sofreu algum tipo de
discriminação ao longo da carreira?
Sim. Por ser negra. Mas essa situação não me abalou, eu tirei muito proveito disso.
A mãe dizia que eu maltratava a filha dela, ela sempre inventava alguma coisa para me
prejudicar. Ela me olhava com um jeito estranho e não me cumprimentava.
Para você, o que significa trabalhar na creche?
Hoje o trabalho na creche está sendo mais valorizado tanto pela população como na
lei. As professoras são mais valorizadas, se sentem mais confiantes e gostam mais do
trabalho do que antigamente. Hoje, por exemplo, temos fraldas descartáveis, no passado
eram de pano e tínhamos que lavar à mão.
Você acha que essa valorização veio porque vocês fizeram o ADI Magistério?
Foi através da luta. A Erundina foi uma prefeita boa que valorizou muito as
creches. O ADI magistério deu às pajens mais dignidade, o valor e o ganho foram enormes.
Com o tempo a gente foi se acostumando a ser professora, a sociedade passou a valorizar
mais a professora da creche.