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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Alessandro de Lima Francisco Relação com o outro e cuidado de si: um estudo sobre a noção de mestria no curso L’herméneutique du sujet, de Michel Foucault. MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2010

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

PUC-SP

Alessandro de Lima Francisco

Relao com o outro e cuidado de si: um estudo sobre a noo de mestria no curso

L hermneutique du sujet, de Michel Foucault.

MESTRADO EM FILOSOFIA

SO PAULO

2010

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

PUC-SP

Alessandro de Lima Francisco

Relao com o outro e cuidado de si: um estudo sobre a noo de mestria no curso

L hermneutique du sujet, de Michel Foucault.

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em Filosofia, sob a orientao da Profa. Dra. Salma Tannus Muchail.

SO PAULO

2010

Banca Examinadora

___________________________________

___________________________________

___________________________________

Dedico este trabalho s mestras e aos mestres que tm me acompanhado e me inspirado ao longo da vida: ao Prof. Caio Ferraz, Profa. Heloisa Prado Cato,

Profa.Dra. Silvana Santos Garcia, Profa.Dra. Sonia Ignacio Silva e Profa.Dra. Salma Tannus Muchail, mestre e mestras do cuidado de si, na medida em que me

incitam a me ocupar comigo mesmo.

Dedico-o especialmente ao Prof. Antonio Cndido de Mello e Souza, que, pelo texto A culpa dos reis: mando e transgresso no Ricardo II, e por seu

exemplo mesmo de intelectual, fez nascer em mim o interesse pela Filosofia e pela tica.

Dedico-o, por fim, a todos aqueles que buscam o caminho da mestria de si.

AGRADECIMENTOS Agradeo a meus pais, Vera Lucia de Lima Francisco e Joo Batista Francisco, e

familiares especialmente a Ida Laurito (bisav), Iris Greccho (av) e Magda Mara

Santelli de Lima (tia) , por me terem proporcionado aprender, pela convivncia, a

serenidade e a concentrao necessrias a todo pesquisador.

A minha esposa, Eliana Pereira Costa Francisco, agradeo pela pacincia, pois

que teve de conviver com a solido, enquanto eu dividia meu tempo com o pensamento

de Michel Foucault.

Aos Superintendentes Regionais da Caixa Econmica Federal, Augusto Bandeira

Vargas e Valter Gonalves Nunes, bem como a Ana Lucia dos Santos, Gerente

Regional, agradeo o apoio no perodo de realizao das disciplinas, possibilitando que

eu assistisse a algumas aulas e participasse das reunies do Grupo de Estudos, bem

como das reunies de orientao, cujos horrios seriam inviveis, dada minha jornada

de trabalho.

Agradeo aos amigos do grupo botecopsi, que me permitiram exercer a reflexo,

ao ler a Microfsica do Poder: especialmente a Ftima, Priscila, Cleber, Rodrigo,

Anderson e Armeny.

Aos mestres-amigos do Grupo de Estudos Michel Foucault, da PUC/SP, que, pela

convivncia e dilogo, me possibilitaram um entendimento ainda mais profundo do

pensamento de Foucault: Claudia Maria Martins, Rogrio Xavier, Flavia DUrso,

Roberta Sendacz, Edelcio Ottaviani, Fabiano Incerti, Adriana Borghi, Marta Souza dos

Santos, Nadia Vittorino Vieira, Luis Camargo Neto, Cassia Suzuki e Pedro Ivan

Moreira de Sampaio.

Agradeo aos amigos Ingrid Bianchini Samczuk e Francisco Valdrio, pelas

discusses permanentes que estabelecemos aos finais de semana, especialmente nos

estudos sobre Kant.

amiga Silvia Altieri irm na Academia e na Arte , agradeo pela pacincia

com que ouviu minhas idias e pelo rico dilogo acerca da Filosofia e da Vida que

estabelecemos j na ocasio da prova de seleo do Programa de Ps-Graduao.

Profa.Dra. Filomena Yoshie Hirata (USP), Profa.Dra. Maria Cecilia de

Miranda Nogueira Coelho (UFMG) e especialmente querida Profa.Dra. Anise

DOrange Ferreira (UNESP), agradeo pelo entendimento dos termos em grego clssico

citados neste trabalho, propiciado pelo curso de lngua grega que mantm na UNESP e

pela ateno, sempre intensa, dedicada aos alunos.

Meu agradecimento sincero Profa. Heloisa Prado Cato, pela bela amizade de

mais de dez anos, e pela Microfsica do Poder.

Ao Prof. Dr. Vicente Augusto de Aquino Figueiredo (UNINOVE), agradeo pelos

comentrios acerca de meu projeto de pesquisa e pelo estmulo, decisivos para que eu

acreditasse na possibilidade de cursar o Mestrado na PUC/SP.

Profa. Dra. Silvana Santos Garcia (PUC/SP), pelas leituras que realizamos

juntos da Microfsica do Poder, pelo contnuo incentivo, pela leitura e crtica de meu

projeto de pesquisa, pela energia com que vive aquilo que ensina.

Profa. Dra. Sonia Ignacio Silva (PUC/SP), querida amiga-mestra, que me

possibilitou introduzir, ainda que de modo claudicante, o pensamento de Foucault no

interior da reflexo sobre a Educao na contemporaneidade, abrindo-me perspectivas

de leitura que foram reunidas no estudo realizado em minha ps-graduao sob sua

orientao , e que, de certo modo, aparecem tambm neste trabalho.

Agradeo ao Prof. Ms. Valter Lellis Siqueira, grande amigo, que, gentil, paciente

e rigorosamente revisou este trabalho.

querida Simia de Mello Araujo, secretria do Programa de Estudos Ps-

Graduados em Filosofia, que to gentilmente acolheu nossas dvidas burocrticas e nos

auxiliou em sua soluo, e tambm ouviu atentamente nossas angstias, na fase de

produo.

Profa. Dra. Silvia Saviano Sampaio e ao Prof. Dr. Andr Constantino Yazbek,

agradeo pelas observaes levantadas sobre este trabalho, pois apontaram para

caminhos abertos por ele sem que seu prprio autor os tivesse percebido.

Agradeo ao Prof. Dr. Marcio Alves da Fonseca, que ministrou as primeiras aulas

sobre Foucault que cursei no Mestrado da PUC/SP, pois lhe devo muito do

entendimento alcanado acerca de cada uma das obras de Michel Foucault.

Ao Prof. Dr. Mario Ariel Gonzalez Porta, agradeo pelo rigor filosfico e

metodolgico que fru de suas ricas aulas, os quais constituem a base sobre a qual tenho

edificado minhas reflexes.

querida Profa. Dra. Salma Tannus Muchail, um especial agradecimento pelo

cuidado e rigor com que me orientou e me ensinou ao longo deste processo educativo,

pela pacincia com que acolheu minhas reflexes nos diversos estgios de seu

amadurecimento, por suas belas, acolhedoras e inesquecveis aulas, que propiciaram

minha alfabetizao filosfica posto que aprendi ainda mais uma vez a escutar, ler,

escrever e falar.

Agradeo tambm a Caio Ferraz, Mutilo Antonio Oliboni, Taila Sartori, Anna

Maria Kieffer, Rodolfo Nani, Walter Weizsflog, Eduardo Janhro-Abumrad, Joo

Moreira Reis, Joninhas, Conceio, Ademir Silva, Flavio Costa, Rosana e Luiz Barakat,

Selma Asprino, Sonia Lima, Fernanda Lima e Luiz Lima, Paulo Queiroz, Ana Hutz,

Tais Cardoso Barato. Enfim, a todos os mestres-amigos que influenciaram este trabalho

por meio de seus exemplos e por terem compartilhado comigo suas experincias de

vida, provendo-me do equipamento e da armadura que me acompanharo ao longo da

experincia que fao de mim mesmo, sem os quais eu no viveria com a mesma alegria

experimentada em sua companhia ou pelas recordaes dos momentos juntos.

RESUMO

Este estudo busca reconstituir a elaborao de Michel Foucault ao longo do curso

proferido em 1982, denominado Lhermneutique du sujet, a partir do tema da mestria,

relao entre mestre e discpulo, realizando uma leitura sistemtica de suas aulas e, ao

final, levantando reflexes concernentes Filosofia e Educao, bem como ao

entendimento do pensamento de Michel Foucault. O presente estudo possibilita abrir

uma perspectiva de leitura dos escritos deste pensador a partir da noo de mestria,

recolocando o tema da relao com o outro em destaque no quadro geral do cuidado de

si.

Palavras-chave: Michel Foucault, filosofia, mestria, relao com o outro, cuidado de si,

tica.

ABSTRACT

This study aims at rebuilding Michel Foucaults elaboration during his course presented

in 1982, and called Lhermneutique du sujet, on the following theme: mastering, that

is, the relationship between master and disciple, through a systematic reading of his

classes, and a final proposal to ponder on Philosophy and Education, as well as on the

understanding of Michel Foucaults thought. This study allows a new reading

perspective of this thinkers writings based on the nation of mastering, re-emphasizing

the theme of the relationship with the other on the general perspective of taking care of

oneself.

Keywords: Michel Foucault, philosophy, mastering, relationship with the other, care of

oneself, Ethics.

Consequentemente, como vemos, o cuidado de si necessita da presena, da insero, da interveno do outro. [...] o outro necessrio.

Michel Foucault

Durante muito tempo, a inexistncia de instituies propriamente educativas fez com que um s tipo de educao aprofundada pudesse existir: o que assim ligava o discpulo ao mestre que o distinguira chamando-o a si, que o escolhera.

Henri Marrou

Mestre no aquele que ensina, mas quem de repente aprende. Por que que todos no se renem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez?

Joo Guimares Rosa

SUMRIO

Nota Tcnica acerca das tradues ................................................................................. 13

Introduo ....................................................................................................................... 14

Captulo 1: A mestria de tipo socrtico-platnico: Scrates, o mestre do cuidado ........ 16

Introduo ....................................................................................................................... 16

1.1. Scrates e a posio do mestre: cuidar do cuidado e si ....................................... 16

1.2. Cuidar de si para cuidar dos outros: uma leitura do Alcibades .............................. 21

1.3. O si e o cuidado: elementos da mestria ................................................................... 24

1.4. Caracterizao do cuidado de si socrtico-platnico: seu campo de aplicao, seu

objetivo e sua forma ....................................................................................................... 28

1.5. Tipologia da mestria socrtico-platnica ................................................................. 30

1.6. A mestria socrtico-platnica e sua inscrio no jogo entre ignorncia e memria: a

platnica ........................................................................................................ 32

1.7. O cuidado de si e a arte de viver na mestria de tipo socrtico-platnico ......... 34

Consideraes ................................................................................................................. 36

Captulo 2: A mestria de tipo helenstico: o mestre como guia da existncia ................ 39

Introduo ....................................................................................................................... 39

2.1. Da dupla generalizao do cuidado de si e da mestria no perodo helenstico ........ 40

2.2. O aspecto formativo do cuidado de si na mestria de tipo helenstico: a

(paraskeu) ..................................................................................................................... 44

2.3. O novo jogo entre ignorncia e memria na mestria de tipo helenstico ................ 47

2.4. A converso a si do perodo helenstico: o convertere ad se. .............................. 51

2.5. Caracterizao do cuidado de si de tipo helenstico: seu campo de aplicao, seu

objetivo e sua forma ....................................................................................................... 53

2.6. Cuidado de si e arte de viver na mestria de tipo helenstico ............................ 56

2.7. O lugar (ou todo lugar) da mestria: a (skhol) ....................................... 58

Consideraes ................................................................................................................. 61

Captulo 3: A mestria e sua relao com a e com a ............................ 64

Introduo ....................................................................................................................... 64

3.1. Mestria e : o conhecimento necessrio para o cuidado consigo mesmo. ... 67

3.2. A mestria e as etapas da no mbito do : do silncio fala do

verdadeiro. ...................................................................................................................... 76

3.2.1. Escuta: silenciar-se para recolher o . ........................................................... 76

3.2.2. Leitura: a meditao sobre o . ..................................................................... 79

3.2.3. Escrita: a materializao do . ....................................................................... 81

3.2.4. Fala: a transmisso do . ............................................................................... 84

3.3. A mestria e os exerccios da no mbito do : a vida como prova. ....... 90

Consideraes ................................................................................................................. 94

Captulo 4: Algumas reflexes guisa de consideraes finais. ................................. 97

Introduo ....................................................................................................................... 97

4.1. Reflexes concernentes Filosofia ......................................................................... 98

4.2. Reflexes concernentes Educao ...................................................................... 104

4.3. Reflexes para o entendimento do pensamento de Michel Foucault .................... 108

Consideraes ............................................................................................................... 111

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 114

REFERNCIAS ELETRNICAS ............................................................................... 116

13

Nota tcnica acerca das tradues

Ao remeter aos textos gregos e latinos citados por Michel Foucault em suas aulas

de 1982, buscamos recorrer ou s edies por ele utilizadas no curso ou a edies

clssicas, como aquelas que compem a Loeb Classical Library, (Harvard University

Press), a srie Classici Greci e Latini (Biblioteca Universale Rizzoli), ou mesmo

remetemos a edies disponveis em projetos eletrnicos, como o Hodoi Eletronikai:

Du texte l'hypertexte, da Universit Catholique de Louvain, e a Perseus Digital

Library, da Tufts University (atualmente tambm hospedado no site da University of

Chicago).

Salientamos que as tradues realizadas ao longo deste trabalho, a partir de textos

gregos e latinos, so baseadas em duas lnguas, uma vez que as edies utilizadas so

bilngues, em sua maioria. Visa-se, deste modo, a fazer convergir as duas lnguas

apresentadas (entre grego, latim, francs, ingls e italiano), para a verso que propomos

em lngua portuguesa. Isto explica nossa referncia a duas lnguas quando de citaes

traduzidas, as quais sero seguidas de expresses que indiquem as lnguas da edio

utilizada, como por exemplo traduo nossa do latim e do ingls ou traduo nossa

do grego e do italiano.

As tradues sero incorporadas ao texto, com intuito de tornar a leitura mais

fluida, e os excertos originais sero transcritos em nota de rodap.

Quando da utilizao de textos em grego antigo, far-se- a transliterao do

excerto em alfabeto latino.

14

Introduo

O tema central do curso que Michel Foucault proferiu no Collge de France, em

1982, Lhermeneutique du sujet (A hermenutica do sujeito), a noo e prtica

denominadas de cuidado de si ( ), que ele estuda a partir de escritos

do sculo V a. C. a II d. C. Em meio explanao do curso, um tema aparece vinculado

ao tema central e ao quadro geral no qual este se localiza: a mestria, ou a relao

mestre-discpulo1.

O propsito deste estudo reconstituir e reorganizar a exposio de Michel

Foucault ao longo do curso de 1982 a partir do tema da mestria, destacando-o e

apontando suas relaes com o quadro geral, com o complexo de conceitos e prticas no

qual se localiza, explicitando as transformaes que se deram neste conceito-prtica2.

No que tange forma, o curso constitudo por 12 aulas de duas horas cada,

ministradas de 06 de janeiro a 24 de maro de 1982. Em funo de concentrarmos nossa

reflexo em torno da mestria, podemos reorganizar o curso em duas partes: na primeira,

composta pelas aulas de 06 e 13 de janeiro, Foucault estuda mais detidamente o

momento por ele denominado de socrtico-platnico, por meio da leitura de alguns

escritos platnicos; na segunda, mais longa e bloco focal do curso, composta pelas aulas

de 20 de janeiro a 24 de maro, Foucault estuda o perodo helenstico3, debruando-se

sobre escritos epicuristas e esticos. Deste conjunto destacamos particularmente a aula

de 27 de janeiro, momento importante para nossa reflexo, pois nela o tema da mestria

explicitado e delimitado, e tambm onde Foucault j estabelecer distncias entre a

mestria de tipo socrtico-platnico e a mestria de tipo helenstico. Com base nela

podemos dar mais consistncia noo de mestria e realizar uma nova articulao dos

temas do curso.

a partir desta organizao em dois blocos que tambm propomos as linhas

gerais para a ordem de nosso estudo. No primeiro captulo, estudaremos a mestria de

1 Veremos adiante que a mestria no se reduzir relao mestre-discpulo, mas se estender s relaes de amizade, entre outras. Talvez se pudesse afirmar, o que seria ainda pouco preciso, mas mais prximo do sentido de mestria que aparece nos escritos estudados por Foucault, que se trata da relao de si mesmo com o outro. 2 Utilizamos a palavra composta conceito-prtica com intuito de destacar que a mestria no consiste somente em um conceito, mas tambm em uma prtica, ou melhor num conjunto de prticas. 3 Cabe-nos observar que Foucault denomina de momento helenstico um longo intervalo que cobre tanto o perodo denominado tradicionalmente de helenstico (IV a. C. a I a C.) como o perodo imperial ou perodo greco-romano (I a. C. a IV d. C.), conforme os helenistas consultados em nosso estudo (CORTLEDGE, 2009; HADOT, 2004; RHODES, 2007; SPIVEY & SQUIRE, 2008;).

16

Captulo 1: A mestria de tipo socrtico-platnico: Scrates, o mestre do cuidado

Scrates o homem do cuidado de si e assim permanecer..4 Michel Foucault

Scrates o mais espantoso fenmeno pedaggico da histria do Ocidente..5

Werner Jaeger

Introduo Visamos, na primeira parte de nosso estudo, a realizar uma leitura das aulas do

curso de Michel Foucault de 1982 em que retoma os escritos platnicos,

especialmente o dilogo Alcibades explicitando o tema da mestria que, neste

momento (socrtico-platnico), ainda aparece restrita ao mbito da relao mestre-

discpulo. Buscaremos recolher elementos caractersticos desta relao, em cada aula,

como que juntando os pedaos de um grande quebra-cabea. Ao adotar a figura do

quebra-cabea, no pretendemos insinuar que a elaborao de Foucault, no curso que

estudaremos, carece de sistematizao. Ao contrrio, Foucault retoma diversas vezes

sua elaborao de tal maneira a permitir sempre quele que o ouve e, agora, que o l

acompanhar cada passo da reflexo, de maneira gradativa. Foucault faz aparecer o

momento que denomina de socrtico-platnico em todas as aulas, seja para realizar uma

anlise detida sobre ele, seja para diferenci-lo de outros momentos (o monstico-

cristo ou o helenstico), seja ainda para identificar pontos de contato entre os elementos

dos diversos momentos histricos pelos quais se embrenha seu pensamento. Assim,

abordaremos estes elementos que esto dispersos, mas no desconectados, presentes na

sucesso das aulas, e que muitas vezes se apresentam em novas conjugaes, medida

em que Foucault os resgata.

1.1. Scrates e a posio do mestre: cuidar do cuidado e si Na aula de 06 de janeiro, Foucault nos d uma primeira pista do que seria a

mestria, ou melhor, a posio do mestre, ao ler A apologia de Scrates.

4 FOUCAULT, 2004, p. 11. 5 JAEGER, 2001, p. 512.

17

De todo modo, no se deve esquecer que no texto de Plato, A apologia de Scrates, sem dvida demasiado conhecido mas sempre fundamental, Scrates apresenta-se como aquele que, essencial, fundamental e originariamente, tem por funo, ofcio e encargo incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados consigo e a no descurarem de si. (FOUCAULT, 2004, p. 07).

Scrates est numa posio que dele exige ocupar-se do cuidado que os outros

tm de si mesmos. Ele responsvel por incitar nos outros atenienses a vontade, o

desejo de cuidar de si. a posio que ocupa que o exige e o conclama a cuidar para

que os outros estejam comprometidos com o cuidado de si6.

Foucault destaca ao menos trs momentos em que, nA apologia de Scrates, a

posio de Scrates evidenciada. No primeiro deles, em 29d, Scrates ratifica sua

misso, afirmando que, ainda que o absolvam, permanecer firme no propsito de

cuidar dos outros. Trata-se do momento em que Scrates responde a uma situao

hipottica: ser absolvido pela assemblia, em seu julgamento. Eis o trecho:

Estimo-vos, atenienses, e a todos prezo, porm, sou mais obediente aos deuses do que a vs, e enquanto tiver alento e capacidade, no deixarei de filosofar e de exortar a qualquer de vs que eu venha a encontrar, falando-lhe sempre na minha maneira habitual: Como se d, caro amigo, que, na qualidade de cidado de Atenas, a maior e mais famosa cidade, por seu poder e sabedoria, no te envergonhes de s te preocupares com dinheiro e de como ganhar o mais possvel, e quanto honra e fama, prudncia e verdade, e maneira de aperfeioar a alma, disso no cuidas nem cogitas? E se algum de vs protestar e me disser que cuida, no o largarei de pronto nem me afastarei dele, mas o interrogarei, examinarei e arguirei a fundo. [...] Assim procederei com quantos encontrar: moo ou velho, estrangeiro ou meu concidado. [...] o que me ordena fazer a divindade, bem o sabeis [...]. Outra coisa no fao seno perambular pela cidade para vos persuadir a todos, moos e velhos, a no vos preocupardes com o corpo nem com riquezas, mas a pordes o maior empenho no aperfeioamento da alma [...]. (PLATO, 2001, p. 130-131, grifos nossosw).

H dois elementos relevantes que podemos extrair deste primeiro trecho citado e

analisado por Foucault. Em primeiro lugar, trata-se de compreender o sentido daquilo

que corresponde, na citao, expresso aperfeioamento da alma. Deve-se observar

6 Cabe observar que a expresso cuidado de si, ou , remete, mais originariamente, cultura lacedemnia espartana e no estava, at ento, includa no interior do discurso filosfico. Tratava-se de uma sentena que aludia a um privilgio poltico e econmico, dos aristocratas espartanos, que explicava porque estes possuam o hilota () como eram denominados os servos na Grcia, aqueles que possuam a condio de (heilotea). O hilota cuidava dos afazeres de rotina, como o cultivo, enquanto os aristocratas cuidavam de si mesmos, ou seja, da cidade, da poltica, da sociedade, da economia. (FOUCAULT, 2004, p. 42).

18

que este trecho resume o alerta de Scrates aos atenienses ao longo de sua vida:

ocupem-se consigo mesmos. Observemos que a noo de cuidado aparece, neste

pequeno excerto, diversas vezes7, seja de maneira negativa quando Scrates diz o que

no deve ser feito (cuidar das riquezas e do corpo, por exemplo), seja com referncia ao

verdadeiro cuidado: cuidar de si mesmo, cuidar de aperfeioar a alma.

Em segundo lugar, pode-se observar que a posio ocupada por Scrates no foi

assumida com base numa presuno, mas numa misso delegada a ele pela divindade.

Foi o deus que entregou a Scrates a tarefa de cuidar do cuidado que os outros devem

ter consigo mesmos.

Note-se, e isto nos parece importante ressaltar, que Scrates no alude sua

posio como algo que lhe tenha sido conferido como honraria. Ela o distingue dos

demais, porm no encarada como uma posio de superioridade. Diversamente deste

entendimento, ela encarada como uma responsabilidade que lhe foi confiada pela

divindade.

Em 30c, Scrates alude mais uma vez sua posio, uma vez que reclama a

necessidade de algum que incite o outro a ocupar-se consigo mesmo: Sabeis

perfeitamente que, se me condenares morte, sendo eu como vos disse, no me

prejudicareis tanto como a vs mesmos. (PLATO, 2001, p. 131).

No segundo momento citado por Foucault (31a a 31c), Scrates solicita aos

membros da assemblia que o poupem, argumentando no ser fcil encontrar algum

como ele, que ocupa-se dos outros para que estes cuidem de si mesmos.

Que sou, realmente, um indivduo nessas condies, entregue cidade pelo deus, podeis inferir do que se segue: no condiz com a simples natureza humana descurar-me a esse ponto dos meus prprios interesses e deix-los em abandono durante tantos anos, para ocupar-me apenas dos vossos, com dirigir-me a cada um de vs em particular como pai ou irmo mais velho, para concitar-vos a vos preocupardes com a virtude. (PLATO, 2001, p. 132, grifos nossos).8

Observe-se que Scrates mais uma vez evoca sua tarefa incitar o cuidado de si

nos atenienses , e novamente justifica sua posio de delegado do deus.

7 A noo de cuidado aparece quatro vezes, nas palavras , e , esta por duas vezes. Todos os vocbulos esto relacionados ao nominativo (cuidado). 8 Ainda que na traduo no aparea referncia explcita noo de cuidado, as palavras relacionadas aos verbos ocupar-se e preocupar-se remetem quela noo, especialmente porque a traduo preocupardes com a virtude corresponde, originariamente, ao grego . Mais uma vez o verbo cuidar aparece relacionado a Scrates e sua posio.

19

O terceiro momento dA apologia (36b a 36d) destacado por Foucault remete ao

trecho em que Scrates prope assemblia aquilo que haveria de receber como

sentena, uma vez que ao exercer sua tarefa somente visa ao bem dos atenienses, ao

bem da cidade: ser alimentado no Pritaneu9.

[...] empenhei-me apenas em proporcionar a cada um de vs o que a meu ver constitui o maior dos benefcios, procurando convencer cada um a no se ocupar com seus negcios sem primeiro ocupar-se de si mesmo para tornar-se cada vez melhor e mais prudente, nem dos interesses da cidade em detrimento dela prpria, e em tudo o mais seguir a mesma orientao. (PLATO, 2001, p. 139).10

Acerca destes trs momentos, Foucault levanta quatro observaes. Primeiro, a

funo de Scrates corresponde a fazer com que os outros se ocupem consigo mesmos,

e esta funo constitui a obedincia a uma ordem divina, ou seja, consiste em uma

obrigao. Segundo, Scrates no se ocupa consigo mesmo, em certo sentido, uma vez

que deve ocupar-se com os outros, ou seja, no constitui a preocupao de Scrates

cuidar de ter riquezas, honrarias, ou qualquer outra coisa que no seja incitar o cuidado

de si nos outros. Terceiro, o cuidado de si a que Scrates incita consiste em um

despertar: possvel que vos impacienteis, como se d aos dorminhocos, quando

despertados com sacudidelas, convencidos como estais de que podereis continuar a

dormir. (PLATO, 2001, p. 132). Finalmente, comparando-se a um inseto, Scrates

mostra que sua posio exige que ele incomode os outros (comparao de Scrates com

um tavo, presente em 30e), ou seja, sua funo , em certa medida, atormentar, agitar,

picar os outros para que estes sintam-se inquietos no curso de sua existncia

(FOUCAULT, 2004, p. 11).

neste momento, quando levanta estas quatro observaes, que Foucault utiliza

uma expresso peculiar para se referir posio de Scrates, esta espcie de sacrifcio

em que se deixa de lado a preocupao consigo mesmo para ocupar-se com o cuidado

de si dos outros: position du matre (posio do mestre). (FOUCAULT, 2004, p. 11).

Trata-se da posio daquele que deve despertar os sujeitos para o cuidado de si,

que relega os cuidados consigo mesmo em prol de provocar os sujeitos, de, em certa

9 O era o local onde a chama sagrada era mantida, onde se recebiam convidados ilustres, onde se reuniam aqueles que representavam o povo. Algo como um hall, uma cmara, onde se renem chefes ou prncipes. 10 Novamente a noo de cuidado aparece, aqui traduzida por ocupar-se de si mesmo: .

20

medida, os inquirir (especialmente aqueles que sustentam estar imbudos do cuidado

de si). Scrates aparece como o mestre por excelncia: o mestre do cuidado de si.

Ainda na primeira aula de 1982, Foucault estabelece uma diferena fundamental

entre duas noes, possibilitando-nos compreender, com mais rigor, em que mbito se

desenvolve a relao de mestria no momento socrtico-platnico. Trata-se da distino

entre filosofia e o que Foucault denomina de espiritualidade11. A primeira aquela

que busca [...] determinar as condies e os limites do acesso do sujeito verdade

(FOUCAULT, 2004, p. 19). Sua demanda fundamental concentra-se em descobrir o que

possibilita ao sujeito o acesso verdade. A resposta a esta questo implicaria que o

sujeito no necessitaria transformar-se para acessar a verdade. Foucault denomina de

espiritualidade a atitude diversa, que o sujeito deve adotar em relao a si e em

relao ao que o cerca, que corresponderia ao preo que pagaria para acessar a

verdade (FOUCAULT, 2004, p. 19). Isto implica uma transformao do sujeito como

condio sine qua non para acesso verdade.

A atitude reclamada pela posio de Scrates encontra-se, conforme Foucault,

mais no mbito da espiritualidade que da filosofia, pois a , de que

Scrates mestre, designa justamente [...] o conjunto das transformaes de si que

constituem a condio necessria para que se possa ter acesso verdade (FOUCAULT,

2004, p. 21). Scrates incita os outros a operarem uma transformao em si mesmos, de

tal modo que possam acessar a verdade. H, aqui, uma relao entre sujeito e verdade

caracterstica do perodo que Foucault denomina de socrtico-platnico, que ir

reaparecer nos sculos I e II d. C., porm j modificada.

sobre as caractersticas desta relao, deste conjunto de transformaes

operadas pelo sujeito sobre ele mesmo, incitadas por um mestre, que visamos nos

debruar neste captulo, de tal modo a explicitar, posteriormente, as relaes de

aproximao e distanciamento relativamente ao que aparecer como

no perodo denominado por Foucault de helenstico12.

Assim, detenhamo-nos ainda sobre a figura de Scrates e sua posio de mestre,

bem como perguntemo-nos sobre o que ser o fundamento, aqui, neste momento

socrtico-platnico, do cuidado de si do qual ele responsvel.

11 Utilizamos aspas na palavra espiritualidade com intuito de evitar confuso com o sentido que se d comumente a esta noo. Para Foucault a espiritualidade ser um modo pelo qual o sujeito se relaciona com a verdade. 12 Foucault utiliza-se, geral, da expresso helenstico para referir-se aos escritos dos sculos I-II d. C. por ele estudados. Observe-se que algumas vezes tambm utiliza a nomenclatura helenstico-romano, pois estuda textos de Sneca e Musonius Rufus, por exemplo.

21

1.2. Cuidar de si para cuidar dos outros: uma leitura do Alcibades Ainda na aula de 06 de janeiro, na segunda hora, Foucault prossegue sua reflexo

em torno do cuidado de si de tipo socrtico-platnico. Porm, desloca sua anlise para

outro dilogo platnico, o Alcibades13, que constituir o foco de sua ateno e o cerne

do estudo que visar destacar os elementos fundamentais do cuidado de si caracterstico

deste momento.

Alcibades ( ) foi um general e poltico

ateniense, filho de Clnias e Dinmaque, educado por Pricles. Este ltimo casou-se

com Dinmaque aps a morte de Clnias em 447 a.C..

Um dado relevante para nossa reflexo consiste na relao que Scrates mantinha

com Alcibades. Sabe-se que Alcibades possuiu fortuna considervel, uma vez que teve

Pricles por seu tutor, e que era belo conforme Foucault (2004, p.43), era orgulhoso

de sua beleza e constantemente assediado por enamorados, dispensando todos em prol

de sua admirao e amor por Scrates, que passa a influenci-lo aps t-lo salvo na

batalha de Potideia (em 432 a.C.).

E foi assim que Alcibades, embora tenha sido mimado desde muito cedo, foi impedido, pelos companheiros que buscavam apenas agrad-lo, de dar ouvidos a algum que iria instru-lo e trein-lo, no obstante, por meio da bondade de seus pares, finalmente viu tudo o que estava em Scrates, e apegou-se a ele, afastando seus amantes ricos e famosos. (Plut. Alc. 4.2-4.3, PERSEUS DIGITAL LIBRARY, traduo nossa do ingls).

Sabe-se tambm que havia reciprocidade neste amor, pois Scrates foi o primeiro

a amar Alcibades.

filho de Clnias, deves estar admirado de que, tendo sido eu o primeiro a te amar, seja o nico que no te abandonasse, quando todos se afastaram, apesar de no te haver dirigido a palavra durante tantos anos em que a turba te importunava com suas atenes. (PLATO, 2007a, p. 233).

13 Cabe salientar que os critrios que nortearam a escolha do dilogo Alcibades so evidenciados relativamente tarde no curso somente na aula de 03 de fevereiro quando Foucault reporta-se aos comentrios neoplatnicos de Olimpiodoro e Proclo, com base nos quais levanta trs princpios: Primeiro, o Alcibades [...] o prprio resumo da filosofia de Plato. Segundo, ele a introduo, primeira e solene na filosofia do gnthi seautn como condio da prtica filosfica. (FOUCAULT, 2004, p. 210). Ainda conforme Foucault (2004, p. 210), para Proclo o Alcibades o princpio de toda a filosofia, uma vez que comear a filosofar est condicionado pelo conhecimento de si mesmo, pelo .

22

Foucault observa que Scrates, sabendo-se amado por Alcibades e tendo resistido

ao amor que ele mesmo sentia pelo jovem, dirige-se a ele somente neste momento em

que Alcibades encontra-se em idade crtica, no que concerne aos

(aphrodsia)14, pois havia envelhecido e a partir desta idade no pode amar os

enamorados que dispensou ao longo da juventude. Scrates percebe que Alcibades

pretende seguir a vida poltica, e por este motivo que dirige-se a ele.

Foucault levantar quatro observaes acerca do cuidado de si socrtico-

platnico: o vnculo entre o cuidado de si e o exerccio do poder (governo dos outros); a

insuficincia da educao de Alcibades, que o cuidado consigo mesmo vir preencher

(seja no que tange ao mbito do conhecimento, ou pedaggico, seja no que tange ao

amor pelos rapazes, ou no que concerne educao entendida como comportamento

adequado); a idade ideal para ocupar-se consigo mesmo, isto , aquela em que se entra

na atividade poltica e que se liberou dos pedagogos, ou seja, no ser relevante ocupar-

se consigo mesmo com idade avanada; cuidar de si mesmo, ocupar-se consigo mesmo

surge como uma urgncia quando se apercebe que se ignora o objeto do qual se deve

ocupar ignorado, quando se ignora o objeto do bom governo.

Acompanhando as observaes de Foucault sobre o cuidado de si socrtico-

platnico, traamos algumas reflexes acerca da mestria de Scrates.

Primeiramente, cabe observar que se cuidar de si mesmo, se dever ocupar-se

consigo mesmo na medida em que se visa vida poltica, em que o cuidado dos outros,

o governo dos outros constitui o objetivo. Assim, a mestria de Scrates ser exercida

sobre Alcibades na medida em que este manifesta sua inteno de governar Atenas. A

relao mestre-discpulo, ainda que abarque uma relao de amor ou amizade, ter

como fim a preparao para exercer o governo sobre os outros.

Segundo, note-se que a mestria necessria para no somente preparar, mas

formar aquele que ir governar. Trata-se de complementar a educao daquele que ir

cuidar dos outros, tanto no que tange ao mbito do conhecimento, ao qual Foucault se

referir como pedaggico, seja no que tange ao comportamento, aos modos daquele que

pretende governar a cidade. Da ser necessrio incit-lo a cuidar de si mesmo.

Uma terceira reflexo abarca a idade em que se deve ser discpulo, pois, conforme

Scrates, no se pode ser velho demais para ocupar-se consigo mesmo. Alcibades

14 Conforme Foucault (FOUCAULT, M. Histria da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 11. Ed. Rio de Janeira: Graal, 1984), o Suda prope a seguinte definio que Hesquio repetir: os aphrodisia so as obras, os atos de Afrodite erga Aphrodits. (p. 38). Ou ainda, os aphrodisia so atos, gestos, contatos, que proporcionam prazer (p. 39).

23

estava na idade ideal para que Scrates pudesse incit-lo a cuidar de si mesmo. Foucault

evidencia esta idade ideal, que denominar muitas vezes de idade crtica, por meio da

distino entre as noes gregas de e (FOUCAULT, 2004, p. 107). A

primeira noo abarca sentidos diversos, mas, dentre aqueles que se reportam idia de

tempo, podemos ressaltar: momento conveniente ou oportuno, tempo favorvel, ocasio

(BAILLY, 2000, p. 1000-1001). A segunda noo diz respeito a toda diviso do tempo,

perodo de tempo, estaes, perodos do ano, dentre tantos outros (BAILLY, 2000,

2184-2185). A idade crtica no seria um um momento oportuno ou

conveniente para se estimular o cuidado de si, para a mestria , mas constituiria, mais

que isto, uma , um perodo da prpria existncia, um momento da existncia, ou

mesmo, como Foucault denomina, uma estao da existncia (FOUCAULT, 2004, p.

107), em que se deve ocupar-se consigo mesmo. Trata-se de um perodo, de uma

estao crtica no que tange pedagogia, ertica e poltica. Ou seja, h um limite de

idade para que se ocupe consigo mesmo, h um limite de idade para ser discpulo, para

aprender a cuidar de si mesmo. H uma idade crtica em que se necessita de um mestre

mais especificamente de um mestre do cuidado.

Mas, nesta forma, precoce, se quisermos, socrtico-platnica, o cuidado de si antes uma atividade, uma necessidade de jovens numa relao entre eles e seu mestre, ou entre eles e seu amante, ou entre eles e seu mestre e amante. (FOUCAULT, 2004, p. 49).

A quarta observao remete ao objeto do cuidado, ou seja, como dissemos

anteriormente, quando a pessoa que visa ao governo da cidade desconhece o objeto do

bom governo, do cuidado dos outros, quando no sabe como ocupar-se do bem-estar

da cidade, deve, ento, ocupar-se consigo mesmo. Neste momento Foucault levanta a

seguinte problemtica: uma vez que se desconhece o objeto do bom governo e que, por

conseguinte, deve-se ocupar-se consigo mesmo, o que o si, ou melhor, o eu com que

se deve ocupar?

O que est em jogo no dilogo , pois: qual o eu de que devo ocupar-me a fim de poder, como convm, ocupar-me com os outros a quem devo governar? este crculo [que vai] do eu como objeto de cuidado ao saber do governo como governo dos outros que, creio, est no cerne deste final de dilogo. (FOUCAULT, 2004, p. 51).

24

Assim, dado que a quarta reflexo realizada por Foucault nos obriga a debruar-

nos detidamente sobre o si do cuidado de si, reservamos o prximo item anlise dos

elementos constituintes do cuidado de si: o si e o cuidado.

1.3. O si e o cuidado: elementos da mestria Se a mestria de tipo socrtico-platnico consiste em incitar o discpulo a cuidar de

si mesmo, mais especificamente incitar aquele que tem a pretenso de governar a

cidade, devemos determinar com preciso, juntamente com Foucault, em que consistem

os dois elementos constitutivos do cuidado de si, o si e o cuidado: sobre o que deve-se

ter cuidado e em que consiste este cuidado. A elucidao de ambos os termos

importante para que possamos melhor compreender o papel que o mestre exerce na

mestria de tipo socrtico-platnico.

Na primeira hora da aula de 13 de janeiro de 1982, Foucault estuda o si, o eu do

qual se deve cuidar. Citando a Apologia de Scrates (29e), o Crtilo (440c), o Fdon

(107c) e o Alcibades (132c), Foucault nos faz perceber a identidade entre o

(auts), si mesmo, e a noo de (psykh), alma. A expresso evocada no

Alcibades (psykhs epimeleton), ocupar-se com a alma.

Foucault, inicialmente, busca precisar ainda mais a noo de alma que os dilogos

evocam, a partir do prprio Alcibades, apoiado no trecho 129b-130c, onde Scrates

distingue, na atividade da palavra na fala a alma do instrumento, ou apoiado

ainda em 129e onde difere o homem de seu corpo. H, conforme Foucault (2004, p. 69),

uma distino entre o sujeito e o meio tcnico, o instrumento. a alma que governa o

corpo, pois, conforme Scrates (130b), se necessrio que algo governe o instrumento,

o corpo, no possvel que as duas partes alma e corpo exeram o governo. Uma

delas, a alma, deve governar (130c).

Sendo assim, uma vez que o homem no nem o corpo, nem o conjunto dos dois, s resta, quero crer, ou aceitar que o homem nada, ou, no caso de ser alguma coisa, ter de ser forosamente a alma. (PLATO, 2007a, p. 278).

No entanto, conforme Foucault (2004, p. 71-72), no se trata da alma como

substncia. Na afirmao de Scrates, a alma se serve do corpo como instrumento.

Aqui, o corpo deve ser entendido como conjunto de rgos, e a alma, como aquilo que

25

se serve dos rgos. A noo de (servir-se de)15 possibilita a Foucault

reconhecer a identidade entre alma e sujeito de ao. Entendida como aquilo que pe o

corpo do homem em movimento, que possibilita ao corpo do homem agir, entendida

como sujeito de ao, a alma ser denominada, ento, por Foucault, de alma-sujeito.

(FOUCAULT, 2004, p. 71).

O exemplo de relao de mestria a que remete o Alcibades, aquela entre Scrates

e Alcibades, ilustra com preciso o eu com o qual se deve ocupar: Scrates resistiu

beleza de Alcibades e agora ocupa-se com Alcibades propriamente, como sujeito de

ao, como sujeito que visa governar a cidade. Assim, o mestre aquele que dever se

ocupar, cuidar do cuidado que o outro tem com sua alma-sujeito o que remete s

atitudes, aos comportamentos do sujeito de que ele cuida, em ltima instncia. O mestre

deve incitar o outro a cuidar de sua alma-sujeito. Ele deve estimular o discpulo a cuidar

daquele elemento que possibilita a ele discpulo agir.

Ora, uma vez que o mestre cuida do cuidado que o outro tem de si mesmo,

precisar a noo de cuidado to relevante quanto a reflexo em torno do si mesmo de

que se cuida. Assim, voltemo-nos agora para o outro elemento: o cuidado.

Foucault diferencia o cuidado do cuidado de si de trs outros tipo de cuidado,

aquele do mdico, aquele do dono de casa e aquele do enamorado. Sabendo-se que o si

a alma-sujeito, cuidar de si no como a atividade do mdico, pois ao tratar de um

mal, de uma doena, o mdico visa ao bem-estar do corpo; no se trata, tambm, de

ocupar-se consigo entendido como ocupar-se daquilo que lhe pertence ou est sob seu

domnio, como faz o chefe de famlia, ou seja, ocupar-se dos bens, das riquezas ou

mesmo da famlia; e no se trata, ainda, como no caso dos enamorados, de ocupar-se do

corpo, ou da beleza do amante.

Foucault prosseguir sua elaborao na segunda hora da aula de 13 de janeiro,

quando se perguntar: o que cuidar? A resposta imediata: conhecer-se a si mesmo.

Cabe-nos observar que, a partir deste ponto da reflexo de Foucault que ele

retomar em diversos trechos de seu curso e de outros escritos, especialmente no que

tange leitura de Alcibades h, no momento socrtico-platnico, uma certa

identificao ente o elemento cuidado da noo cuidado de si e o preceito conhece-te

a ti mesmo. Foucault utilizar-se- da noo forma para caracterizar esta relao, esta

quase-identidade entre cuidado e conhecimento: o conhecimento de si ser a forma na

15 Mais precisamente a expresso pode ser entendida como ao de se servir de, uso, emprego, ou ainda pode ser evocada no sentido de utilidade (BAILLY, 2000, p. 2153).

26

qual o cuidado de si aparecer no momento socrtico-platnico16. Assim, para que

compreendamos este vnculo entre cuidado e conhecimento, Foucault realiza um estudo

acerca do preceito conhece-te a ti mesmo e como ele aparece nos escritos platnicos,

especialmente quando associado figura de Scrates, o qual ser reconstitudo a seguir.

Scrates evoca um sentido profundo do preceito dlfico, ou ainda, conforme

Foucault (2004, p. 85), o esplendor, ou o sentido pleno deste preceito.

Scrates De seguida, assentamos que da alma que precisamos cuidar e para que devemos volver as vistas. Alcibades claro. Scrates Os cuidados com o corpo e com as riquezas devem ser confiados a outras pessoas. Alcibades Perfeitamente. Scrates Porm de que modo alcanaremos o conhecimento perfeito da alma? Sabido isso parece, conhecer-nos-emos a ns mesmos. Mas pelos deuses, ser que penetramos, de fato, no sentido mais profundo do excelente preceito de Delfos a que h momentos nos referimos? (PLATO, 2007a, p. 281-282, grifos nossos).

Para explicar este sentido profundo do conhecimento de si, Scrates utiliza-se

do exemplo da viso: o olho somente ao ver-se, percebe a si mesmo, v sua imagem

refletida como num espelho. No entanto, no somente o espelho pode devolver ao olho

sua prpria figura. Scrates remete imagem que se forma na pupila daquele para quem

olhamos. A pupila: a parte mais excelente do olho17. Deve-se voltar a viso, o olhar,

para algo da mesma natureza do olho. A metfora visa explicar como a alma deve

conhecer a si mesma. Devemos reclamar esta figura que remete viso, a que Scrates

se refere, para o mbito da prpria alma, ou seja: para conhecer a si mesma deve a alma

voltar-se para algo da mesma natureza. Ora, o que constitui a natureza da alma seno o

elemento divino pensamento e saber (FOUCAULT, 2004, p. 88) que nela h (133c)?

Ocupar-se consigo mesmo ser abrir-se ao conhecimento do divino para que nos

conheamos, ou ainda, para que nos reconheamos. Portanto, preciso olhar-se no

elemento divino para reconhecer-se: preciso conhecer o divino para reconhecer-se a si

mesmo. (FOUCAULT, 2004, p. 89).

Mais uma noo aparecer no Alcibades, neste quadro que nos possibilita

perceber uma certa identidade entre o cuidado de si e o conhecimento de si: a 16 Saliente-se que, ao evocar a noo de conhecimento, Foucault refere-se mais a um processo de reconhecimento de si que ao conhecimento de um objeto. O vnculo entre cuidado e conhecimento, que se apresenta, na elaborao de Foucault, pela noo de forma, ou seja, o conhecimento de si como a forma na qual o cuidado se apresenta, ser tratado em detalhe no item 1.4. 17 Conforme a traduo de Carlos Alberto Nunes (PLATO, 2007a, p.282).

27

, a sabedoria18 (134c). Ela evocada juntamente com a referncia vida

poltica. Scrates dir a Alcibades que, se este pretende ocupar-se com a cidade, ou

seja, com os outros, alm de ocupar-se consigo mesmo, dever adquirir a virtude.

Scrates Ento, primeiro precisars adquirir virtude , tu ou quem quer que se disponha a governar ou a administrar no s a sua pessoa e seus interesses particulares, como a cidade e as coisas a ela pertinentes. (PLATO, 2007a, p. 285, grifo nosso).

Esta virtude a sabedoria e somente ser obtida pelo reconhecimento de si no

elemento divino que se lhe constitui, no elemento divino da mesma natureza de sua

prpria alma (alma-sujeito ou sujeito de ao). A sabedoria possibilitar discernir o bem

do mal, distinguir o verdadeiro do falso.

Numa passagem posterior do Alcibades (134c a 135e), isto , na reflexo que

finaliza o dilogo, Scrates nos diz que a aquisio de virtude possui uma finalidade.

Inicialmente, ele afirma que esta virtude necessria para a felicidade do Estado e para

a prpria felicidade daquele que se ocupa consigo mesmo (135b), porm a finalidade

ltima no resta a. Com a aquisio desta virtude, a sabedoria muitas vezes evocada

como aptido do entendimento (PLATO, 2007a, p. 286) , Scrates encaminha sua

elaborao para a noo de (justia), como pode ser verificado na passagem

134c-134d.

Scrates Assim, o que precisas alcanar no o poder absoluto para fazeres o que bem entenderes contigo ou com a cidade, porm justia e sabedoria. Alcibades muito certo. Scrates Se tu e a cidade procederdes com sabedoria e justia, fareis obra grata divindade. (PLATO, 2007a, p. 285).

O fim ltimo de ocupar-se consigo mesmo governar a cidade com sabedoria e

justia o primeiro termo desta dicotomia parece ser indicado, na reflexo de Scrates,

como a maneira pela qual se pode dirigir, governar os outros com justia.

Deste modo, o cuidado de si se apresentar como um privilgio e dever dos

governantes, pois, afinal, cuida-se de si mesmo para bem compreender como governar

cidade de modo conveniente. O vnculo entre cuidado de si e cuidado dos outros

aparece bem delimitado, na elaborao de Scrates. Como poderia algum que no se 18 A palavra (sabedoria), nas tradues de Donatella Puliga (PLATO, 2006, 155) e de Carlos Alberto Nunes (PLATO, 2007a, p.285), -nos apresentada inicialmente por meio da noo de (virtude), ou seja, a sabedoria a virtude de que se necessita.

28

ocupa consigo mesmo no conhece a si mesmo, no sentido de reconhecer-se no

elemento divino de sua alma assegurar-se de que possui sabedoria para governar com

justia? Ou conforme diz o prprio Scrates: E poder algum dar o que no tem?

(PLATO, 2007a, p. 285).

Ocupar-se consigo ser, ento, em ltima instncia, ocupar-se com a justia, cuja

finalidade mxima consistir em bem governar a cidade, bem exercer o governo sobre

os outros.

Por conseguinte, ocupar-se consigo ou ocupar-se com a justia d no mesmo e todo o jogo do dilogo, partindo da questo como poderei tornar-me um bom governante?, consiste em conduzir Alcibades ao preceito ocupa-te contigo mesmo e, desenvolvendo o que dever ser este preceito e o sentido que lhe ser necessrio atribuir, descobrir que ocupar-se consigo mesmo ocupar-se com a justia. (FOUCAULT, 2004, p. 91).

Assim, podemos observar que a mestria, no momento socrtico-platnico, mais

precisamente no Alcibades, que consiste em cuidar do cuidado que os outros tm

consigo mesmos, tendo por objetivo possibilitar ao discpulo desenvolver sabedoria

(entendimento, discernimento), por meio de um reconhecimento do elemento divino de

sua alma, para que governe a cidade com justia. O fim ltimo da mestria preparar o

governante da cidade para que exera o governo com sabedoria e justia. Conforme diz

Scrates no Alcibades (134e):

Porque, seja quem for, meu caro Alcibades, que tenha a possibilidade de fazer aquilo que lhe aprouver, se carecer de entendimento, quais sero provavelmente as consequncias para o indivduo ou para a cidade? (PLATO, 2007a, p.286).

1.4. Caracterizao do cuidado de si socrtico-platnico: seu campo de aplicao, seu objetivo e sua forma

Em 20 de janeiro, Foucault far trs observaes acerca do cuidado de si do

momento socrtico-platnico que lhe possibilitaro no somente prosseguir sua

elaborao, mas tambm resumir a reflexo, realizada nas duas primeiras aulas do

curso, em torno do cuidado de si, e tambm delimitar trs critrios dentre tantos outros

que sero explicitados ao longo do curso de diferenciao entre este cuidado de si

29

socrtico-platnico e aquele caracterstico do momento helenstico19. A partir destas

observaes, propomos reconstruir, no mbito da mestria, a reflexo de Foucault e

reorganizar nossa elaborao at o momento.

A primeira observao feita por Foucault diz respeito ao campo de aplicao do

cuidado de si. O cuidado de si devia ser estimulado pelo mestre do cuidado20, porm

possua um campo de aplicao restrito: era reservado aos jovens aristocratas que

necessitavam preparar-se para exercer o governo da cidade. O mestre se reportava

queles que exerceriam o governo e que, portanto, cuidariam dos outros21.

A segunda observao concerne ao objetivo do cuidado de si. Se este era

estimulado naqueles que visavam ao governo da cidade, o objetivo de cuidar de si

mesmo consistia em que se desenvolvesse sabedoria, discernimento, para que se

pudesse governar da melhor maneira possvel, isto , para que se pudesse governar com

justia. Por conseguinte, a mestria era solidria ao objetivo do cuidado de si socrtico-

platnico: o mestre tinha como objetivo desenvolver o discernimento no discpulo, para

que este pudesse distinguir o verdadeiro do falso, distinguir o bem do mal.

A terceira observao diz respeito forma que o cuidado de si toma no momento

socrtico-platnico, ou seja, aquela do conhecimento de si. Observe-se que, conforme

abordado anteriormente, o cuidado, a , consistia em conhecer a si mesmo, ou

seja, o cuida de ti mesmo socrtico-platnico tomava a forma do conhece-te a ti

19 Vale ressaltar que Foucault realiza um salto cronolgico do platonismo ao momento que denomina de helenstico, no tratando os caminhos que o cuidado de si toma ao longo de todo o platonismo (debrua-se num estudo mais profundo dos dilogos Alcibades, Banquete e Apologia de Scrates), nem mesmo nos escritos de Aristteles. Isto nos impede de prosseguir um hipottico caminho cronolgico da mestria que se desenvolveria em torno da Academia de Plato, bem como daquela que caracterizaria a escola de Aristteles. Lembremos que o critrio de escolha de textos de Foucault reside na noo de cuidado de si, especialmente no que esta corresponde ao que Foucault denominar de espiritualidade. Foucault ainda reporta-se aos dilogos platnicos, mas ressalva que [...] o platonismo foi, antes, o clima perptuo no qual se desenvolveu um movimento de conhecimento, conhecimento puro sem condio de espiritualidade [...]. (FOUCAULT, 2004, p. 97). O mesmo ele adverte quanto a Aristteles: A exceo maior e fundamental daquele que, precisamente, chamamos o filsofo, porque ele foi, sem dvida, na Antiguidade, o nico filsofo [...]. Contudo, como sabemos todos, Aristteles no o pice da Antiguidade, mas sua exceo. (FOUCAULT, 2004, p. 22). Para perfazer o caminho da mestria nos contextos da Academia de Plato e da escola de Aristteles, ver Pierre Hadot (2004). 20 Foucault trata da necessidade de um mestre do cuidado no final da primeira hora da aula de 13 de janeiro, quando afirma: No se pode cuidar de si sem passar pelo mestre, no h cuidado de si sem a presena de um mestre. (FOUCAULT, 2004, p. 73). 21 Observe-se que h uma diferena entre cuidado dos outros e o cuidado do mestre. O que Foucault denomina de cuidado dos outros est relacionado com o governo dos outros, com o exerccio do governo da cidade. O cuidado do mestre no consiste propriamente neste cuidado dos outros, mas em cuidar do cuidado que os outros devem ter consigo mesmos. Trata-se, neste ltimo, de estimular o cuidado de si nos outros. Parece-nos, inclusive, que, na Apologia de Scrates, a figura de Scrates nos ajuda a compreender a posio do mestre caracterstica do momento socrtico-platnico, bem como a partir do Alcibades conseguimos delimitar a relao entre cuidado de si e cuidado dos outros.

30

mesmo dlfico modificado22. Ao buscar fazer com que o outro cuidasse de si mesmo, o

mestre instigava o discpulo a conhecer-se a si mesmo, com intuito de proporcionar a

devida identificao da alma com o que lhe da mesma natureza e que detm a virtude

da prpria alma: o elemento divino ou a pupila da alma.

So estas as trs caractersticas do cuidado de si de tipo socrtico-platnico, que

Foucault (2004, p. 102) denomina de condies condies do cuidado de si , que se

transformaro e consequentemente transformaro a noo de mestria e a sua prtica ao

longo da histria. em torno delas que propomos analisar a mestria de tipo socrtico-

platnico.

Esta nomenclatura campo de aplicao, objetivo e forma relevante na

medida em que no somente nos possibilita reorganizar nossa reflexo, mas porque

poderemos recorrer a ela sempre que buscarmos, juntamente com Foucault, estabelecer

as diferenas/disperses e as aproximaes possveis entre as mestrias dos dois

momentos abordados neste estudo o socrtico-platnico e o helenstico.

1.5. Tipologia da mestria socrtico-platnica Michel Foucault identifica ao menos trs tipos de mestria no Alcibades e nos

demais dilogos socrtico-platnicos. So elas: a mestria de exemplo, a mestria de

competncia e a mestria socrtica propriamente dita. (FOUCAULT, 2004, p. 158).

Cabe-nos ressaltar que as relaes de mestria que Foucault identifica, no geral, se

restringem, em certa medida, relao mestre-discpulo, mas no da maneira como

entendemos o mestre e o discpulo na contemporaneidade. O mestre no exercer papel

de professor, e tampouco o discpulo a de apenas aluno. Trata-se de algum que

exercer uma funo a funo de mestre , algum que, mais precisamente, manter

com o jovem uma relao indispensvel formao deste.

O primeiro tipo de mestria, a mestria de exemplo, consiste num caso em que o

outro23, no necessariamente o mestre-professor, constitui-se no modelo para o mais

jovem. Esta relao em que se d o exemplo pode ser mantida de trs maneiras,

conforme Foucault (FOUCAULT, 2004, 158): pela tradio, isto , quando, por meio

22 Ver o estudo realizado por Foucault acerca das transformaes do conhece-te a ti mesmo dlfico dentro do prprio Alcibades,nas aulas de 06 e 13 de janeiro de 1982 estudo ao qual j aludimos. 23 Utilizaremos outro, para designar outrem, qualquer outro que possa estabelecer relao com uma pessoa. Assim, no nos referimos a algum especfico, mas a qualquer pessoa que possa estabelecer relaes com aquele que aprende, com o jovem, o adolescente, o discpulo.

31

das epopias e narrativas, o jovem acessa os exemplos dos grandes homens e dos heris;

pela presena dos ancestrais, que possuem status de ancios gloriosos; ou ainda pelos

enamorados, uma vez que esta relao constitua prtica da civilizao grega, ou seja, a

pederastia no sentido que a Antiguidade dava a este vocbulo como atividade

pedaggica, que complementava a educao do (phebos)24. Quanto a esta

modalidade da mestria de exemplo, vale ressaltar que a constitua uma

parte do processo de formao do jovem, mantendo uma relao com a

(paidagoga) e a (paidea)25.

O segundo tipo de mestria que Foucault identifica corresponde ao que denomina

de mestria de competncia. Trata-se daquela em que o mais jovem aprende

conhecimentos e princpios, desenvolve aptides e habilidades, a partir do contato com

o outro.

A terceira mestria aquela que remete diretamente figura de Scrates e que,

portanto, Foucault denominar de socrtica26. Esta a mestria do embarao, da

descoberta e que se exerce pelo dilogo. (FOUCAULT, 2004, p. 158).

Podemos levantar uma caracterstica que nos parece comum aos trs tipos de

mestria identificados por Foucault, a partir de um estudo de Marrou (1973): o modelo

que o mais velho, aquele que representa um estado de maturidade mais avanado seja

o heri das epopias, seja o ancio, seja o enamorado, seja o professor de ginstica

(), o professor de letras () ou o professor de ctara

(), seja o prprio Scrates inspira no jovem.

Para o homem grego, a educao () residia essencialmente nas relaes profundas e estreitas que uniam, pessoalmente, um esprito jovem a um mais velho que era, ao mesmo tempo, seu modelo, seu guia e seu incitador , relaes essas que uma chama passional iluminava com um turvo e clido revrbero. (MARROU, 1973, p. 59, grifo nosso).

24 O desejo, no primeiro [o mais velho], de seduzir, de afirmar-se, de fazer nascer no segundo [o mais jovem] um sentimento de admirao ardente e dedicada: o mais velho o heri, o tipo superior pelo qual preciso modelar-se, a cuja altura procurar o outro, pouco a pouco, alar-se. [...] respondendo a esse apelo, o mais velho sentia nascer em si uma vocao pedaggica, fazia-se mestre de seu amado, apoiando-se sobre esta nobre necessidade de emulao. (MARROU, 1973, p. 57). 25 Para um estudo mais aprofundado desta relao ver o captulo Da pederastia como Educao. (MARROU, 1973, p. 51-65), do livro Histria da Educao na Antiguidade. 26 Observe-se que Foucault geralmente refere-se mestria presente nos dilogos de Plato, em que a figura de Scrates aparece de maneira privilegiada, de mestria socrtico-platnica ou de mestria de tipo socrtico-platnico. Na aula de 27 de janeiro, trecho que abordamos neste momento de nosso estudo, Foucault a denomina de mestria socrtica.

32

Observe-se que o sentido dado prtica educativa, prtica da Educao, na

Antiguidade grega era bem mais amplo que aquele dado na modernidade, ou mesmo na

contemporaneidade:

[...] a educao era, em princpio, menos um ensino, uma doutrinao tcnica, do que o conjunto de cuidados dispensados por um homem mais idoso, cheio de terna solicitude, no sentido de favorecer o crescimento de um mais jovem, inflamado pelo desejo de corresponder a tal amor, dele mostrando-se digno. (MARROU, 1973, p. 59, grifo nosso).

Foucault ressalta o que corrobora a reflexo de Henri Marrou (1973) que a

mestria no se d propriamente pela transmisso de conhecimentos, pela aquisio de

conhecimentos. Para Foucault, trata-se de uma relao que se inscreve no jogo27 entre

ignorncia e memria: esta a caracterstica, por ele levantada e destacada, comum aos

trs tipos de mestria.

1.6. A mestria socrtico-platnica e sua inscrio no jogo entre ignorncia e memria: a platnica

Na aula de 20 de janeiro, Foucault introduz uma noo que tambm nos

possibilita delimitar a mestria socrtico-platnica e, posteriormente, estabelecer as

disperses em relao mestria de tipo helenstico: a ignorncia. Ressalte-se que esta

noo introduz uma problemtica que lhe correspondente, aquela que vincula

ignorncia e memria.

A ignorncia aparece relacionada ao cuidado de si, no mbito do momento

socrtico-platnico, sob dois aspectos. O primeiro corresponde ignorncia daquilo que

se deveria saber. O segundo aspecto diz respeito ignorncia de si mesmo, na medida

em que a pessoa no se sabe ignorante, no se apercebe da ignorncia, do no-saber.

Ora, na medida em que a ignorncia reporta-se quilo que no se sabe sobre as

coisas sobre o mundo , mesmo em seu segundo aspecto, ela se liga diretamente

forma na qual o cuidado de si socrtico-platnico se apresenta: a forma do

27 Pela palavra jogo no devemos entender algo como simulao, imitao, representao. Pretendemos nos referir a um conjunto de regras, conjunto de condies que estabelecem uma relao entre a ignorncia e a memria. O uso da palavra jogo, em nosso estudo, proposital e reporta-se ao modo como Foucault se refere a um conjunto de regras, seja ao remeter-se verdade (jogos de verdade) ou a qualquer outro tema por ele estudado (FOUCAULT, 2001b, 1544).

33

conhecimento28. O cuidado de si socrtico-platnico, aqui, possibilita ignorncia que

ela se relacione com mais proximidade com o conhecimento do que com o que

significar mais tardiamente cuidado.

Assim, uma vez que toma a forma do conhecimento de si, o cuidado de si

socrtico-platnico localizar-se- no quadro da ignorncia. Foucault observa que

Alcibades ignora como exercer o bom governo e ignora a prpria ignorncia que possui

acerca do bom governo, ou seja, no sabe e no sabe que no sabe.

Seria permanecer no senso comum afirmar a necessidade da mestria quando se

ignorante. Seria bvio afirmar que se precisaria de um mestre quando se est na

ignorncia. No entanto, no momento socrtico-platnico, a ignorncia no se inscreve

no mesmo quadro terico daquela ignorncia a que nos referimos na

contemporaneidade. No se trata de dar ao sujeito erudio, dar conhecimentos. Ela se

inscreve num jogo mais complexo e dinmico: o jogo entre ignorncia e memria.

A memria constituir o elemento de ligao entre a ignorncia e a no-ignorncia

de tal maneira que possibilite passar de um estado a outro. A mestria socrtica

propriamente dita, diferentemente dos outros dois modos de mestria socrtico-

platnicas (mestria de exemplo e mestria de competncia), possibilita quele que

est na ignorncia alcanar a no-ignorncia, o estado do saber, a partir da prpria

ignorncia: deve-se saber que no sabe.

A memria ser o elemento basal do processo que Foucault denominar mais

tardiamente, no seu curso de 1982, de converso a si ( ), pois

se trata no somente de constatar a prpria ignorncia, mas, a partir desta constatao,

desviar-se das aparncias, desviar-se das coisas como elas se nos apresentam e, enfim,

num movimento de retorno, voltar-se para si, conduzir-se prpria ptria

(FOUCAULT, 2004, p. 257). Ser este retorno a si que conduzir a pessoa

reminiscncia, ptria das essncias, ptria da verdade do Ser (FOUCAULT, 2004,

p. 258). O mestre possibilitar ao outro acessar sua prpria essncia e, a partir dela, o

conhecimento, por meio de uma converso a si mesmo. Trata-se da noo de

(epistroph) platnica.

Foucault levanta trs elementos caractersticos da , desta converso,

como aparece em Plato, para a qual conduz o cuidado de si a que o mestre incita. O

primeiro deles consiste em que esta prtica da converso est apoiada na distino entre

28 Reportamo-nos ao estudo realizado por Foucault, j abordado nos itens 1.3 e 1.4 deste trabalho.

34

este mundo e outro; o segundo, a dualidade corpo-alma, na qual a alma deve se liberar

do corpo; o terceiro, o privilgio do conhecimento: conhecer-se- a si mesmo para que

se conhea o verdadeiro. Em resumo: deve-se conhecer a si mesmo para, desviando-se

das aparncias que se nos apresentam em nosso mundo, acessar outro mundo o mundo

das essncias de tal modo que se possa acessar o verdadeiro, conhecer o verdadeiro e,

neste movimento, liberar-se de si mesmo.

Observe-se que Foucault apia-se, para seu estudo sobre a platnica,

nos escritos de Pierre Hadot, e recorre a eles com intuito de precisar ainda mais suas

observaes.

A epistroph, diz ele [Pierre Hadot] uma noo, uma experincia, da converso que implica o retorno da alma em direo a sua fonte, movimento pelo qual ela retorna perfeio do ser e se recoloca no movimento eterno do ser. De certo modo, a epistroph tem o despertar como seu modelo, e a anamnsis (a reminiscncia) como modo fundamental do despertar. (FOUCAULT, 2004, p. 265).

A mestria socrtico-platnica, estimulando o cuidado de si, inicia um movimento

de liberao da alma. Trata-se, ento, da reminiscncia: a memria ser a ponte pela

qual a pessoa avana da prpria ignorncia a partir do momento em que a constata

para o estado da no-ignorncia, a ponte por onde a pessoa deve passar para formar-se

sujeito poltico, o que possibilitar exercer o bom governo, o governo justo. o mestre

do cuidado que conduz o discpulo ao longo dessa ponte. O mestre do cuidado conduz o

discpulo at o reconhecimento de si no elemento divino de sua alma.

1.7. O cuidado de si e a arte de viver na mestria de tipo socrtico-platnico Se o cuidado de si o elemento pelo qual o mestre exerce seu papel, se por ele

que deve passar a prtica da mestria, se pelo cuidado de si que se deve nortear a

relao mestre-discpulo, ou seja, se ele o eixo da mestria de tipo socrtico-platnico

e veremos que o eixo da mestria de tipo helenstico tambm , devemos buscar

entender a relao que se estabelece entre o cuidado de si e outra noo e prtica to

cara Antiguidade grega: a (tkhne to bio), a arte de viver. Fazer

este caminho, perseguindo os passos de Foucault, nos possibilitar compreender ainda

melhor o mbito em que a mestria se desenvolvia neste momento socrtico-platnico,

ou seja, compreender em que quadro de relaes e de prticas ela estava inscrita.

35

Somente no final do curso de 1982 Foucault tratar com mais detalhe do tema da

, a arte da existncia ou arte da vida que ele denomina tambm de

esttica da existncia29, especialmente ao referir-se ao perodo helenstico. A relao

entre e , no momento socrtico-platnico, aparece na

penltima aula do curso, a de 17 de maro.

Para fundamentar nossa reflexo sobre a relao entre estas noes (arte de viver e

cuidado de si) devemos, inicialmente, buscar entender a prpria noo de

.

Ao usar esta noo arte de viver Foucault refere-se a um modo de se

relacionar consigo mesmo que visa a fazer de nossas prprias vidas obras de arte. No

se trata de regras que possibilitem vida da pessoa constituir-se em obra de arte. Trata-

se de dar uma forma prpria vida, de tal maneira que esta forma seja a mais bela

possvel. Nem regra nem norma, mas forma: este a sentido fundamental que est na

base do que Foucault entende por .

Poder-se-ia afirmar que a arte de viver est presente no momento socrtico-

platnico na medida em que h, nos dilogos de Plato, e mesmo associado figura de

Scrates, um conjunto de exerccios, que posteriormente Foucault reunir sob o nome

de (skesis) ascese , que possibilitam pessoa dar uma bela forma prpria

vida, fazer dela obra de arte. Exerccios, ento, que visam forma vitae. Ora, conforme

Foucault, ademais, nos textos do prprio Plato, no platonismo clssico, se quisermos,

um princpio fundamental que a philosopha seja uma skesis. (FOUCAULT, 2004,

p.508).

Alguns exemplos destas menes a tcnicas, exerccios30, aqui evocados no

mbito do (thos), da atitude, do hbito, so os exerccios fsicos, especialmente a

importncia dada por Plato ao atletismo (FOUCAULT, 2004, p. 518); ou ainda o olhar

sobre si mesmo (auti blepton) presente no Alcibades (133b).

Recordemos que, ao evocar o olhar sobre si, o elemento que olha a viso uma figura

utilizada por Scrates no referido dilogo, conforme visto anteriormente, a alma: a

alma se reconhece no elemento divino, ela que olha para si, que visa a conhecer-se.

29 Ver FOUCAULT, 2001c. 30 Parece-nos relevante mencionar que os exerccios socrtico-platnicos diferem daqueles que Foucault estudar em seguida, no momento helenstico. A base sobre a qual se funda o conjunto de exerccios da ascese socrtico-platnica ser o conhecimento de si e nele o reconhecimento de si como elemento divino, ou seja, trata-se de um tipo muito particular de exerccio fundado no conhece-te a ti mesmo.

36

Se se pratica o cuidado de si com intuito de desenvolver, de adquirir, virtude,

especialmente a sabedoria, ento cuidar de si mesmo constituir uma tcnica pela qual a

pessoa poder dar uma bela forma vida. Mas que forma seria esta seno aquela que

consistiria em possuir entendimento, discernimento, sabedoria para governar a cidade

com justia?

A mestria de tipo socrtico-platnico estava vinculada diretamente sua

finalidade ltima: o cuidado dos outros, o bom governo da cidade. Era-se mestre para

possibilitar ao discpulo que este desse uma bela forma sua prpria vida de tal modo

que pudesse, ao olhar para si mesmo, reconhecer-se no elemento divino, alcanando a

sabedoria (discernimento) e, por consequncia, governando a cidade com justia. Em

certa medida, nos permitimos afirmar, baseados na elaborao de Foucault31, que a

felicidade individual dependia ou estava em funo da felicidade da cidade.

Entretanto, pode-se dizer que no tipo de cuidado de si do Alcibades temos uma estrutura um pouco complexa na qual o objeto do cuidado o eu, mas a finalidade a cidade, onde o eu est presente a ttulo apenas de elemento. A cidade mediatizava a relao de si para consigo, fazendo com que o eu pudesse ser tanto objeto quanto finalidade, finalidade contudo unicamente porque havia mediao da cidade. (FOUCAULT, 2004, p. 103)

Consideraes Pretendemos, at este momento, destacar o quadro geral em que a mestria de tipo

socrtico-platnico se desenvolveu, como tambm justificar, em certa medida, por que

recorremos a tantas noes, tantas prticas, evocadas por Foucault ao longo do curso

estudado, para determinar e delimitar o tema da mestria.

A relao que o mestre estabelece com o discpulo, no perodo socrtico-platnico

do modo como abordada por Foucault inscreve-se num quadro mais geral, e

complexo, de relaes entre o mestre e o outro, entre o jovem e o velho.

No possvel estudar a mestria sem recorrer ao cuidado de si e como ele se nos

apresenta no momento socrtico-platnico. Se existe mestria, porque h um vnculo

entre todas as prticas e relaes que ela abarca prticas e relaes que o cuidado de si

reclama.

31 Aludimos ao vnculo que Foucault estabelece entre a salvao de si e a salvao da cidade, na aula de 20 de janeiro de 1982, e especialmente na aula de 03 de fevereiro do mesmo ano (FOUCAULT, 104, p. 215-217), a que Foucault se refere como vnculo de reciprocidade.

37

A mestria rene, ao mesmo tempo, relaes do eu com o outro por exemplo, a

relao mestre-discpulo e relaes que se estabelecem de si consigo mesmo. Se

podemos afirmar que a relao com o outro era caracterizada por um estmulo ao

cuidado de si mesmo, ou ainda pelo incmodo causado por ser constantemente incitado

a cuidar de si mesmo, a relao de si consigo mesmo caracterizava-se por algumas

prticas (converso a si, arte de viver, olhar para si mesmo, reconhecer-se no elemento

divino de sua prpria alma, conhecer a si mesmo), reciprocamente implicadas numa

complexa teia, num complexo quebra-cabea.

Nosso objetivo consistiu em reorganizar os elementos que Foucault apresenta ao

longo das aulas do curso que ministra em 1982, de tal maneira a explicitar os vnculos

entre as diversas noes que ele evoca, bem como esboar o quadro formado pelas

diversas prticas, relaes e noes a que alude: o quadro geral que possibilita conjugar

todos os elementos do momento socrtico-platnico (re)apresentados por Foucault.

Assim, se o cuidado consigo mesmo vier a se transformar ao longo da Histria

como realmente vir , a conjugao do quadro, a maneira como ele se compe poder,

como veremos, at inverter diversas das relaes s quais nos referimos. A maneira

como estas prticas, relaes e noes, resgatadas por Foucault, so articuladas, em sua

elaborao, nos possibilita recriar o quadro geral de relaes e prticas em que se

desenvolveu a mestria de tipo socrtico-platnico, bem como nos possibilita,

consequentemente, um entendimento mais profundo de como as relaes com o outro e

consigo mesmo se estabeleciam no perodo socrtico-platnico.

Ressalte-se que buscamos, nestas consideraes, apontar para uma viso

panormica da mestria de tipo socrtico-platnico, ou seja, pretendemos sintetizar os

elementos levantados e estudados por Foucault, que caracterizam, de modo geral, esta

mestria. Deste modo, cabe-nos observar que, apesar de sintetizarmos os elementos

constituintes da mestria socrtico-platnica num mesmo quadro, dando-lhe um carter

de unidade, os textos de Plato nos quais Foucault esteve concentrado apresentam

caractersticas dispersas desta mestria: na Apologia de Scrates, ela aparece relacionada

posio do mestre, ou ainda do mestre como mestre do cuidado, e, em certa medida,

consistia em abordar os atenienses e incit-los a cuidarem de si mesmos; no Alcibades

ela j se apresenta como a relao na qual o mestre do cuidado visa a preparar aquele

que tem pretenso de governar a cidade para exercer o bom governo. Nesta ltima obra,

a mestria denuncia dois vnculos cujo destaque parece-nos ser relevante, uma vez que

possibilita constatar as transformaes que se sucederam no cuidado de si e

38

consequentemente, na mestria. Primeiramente, vnculo entre cuidado de si e cuidado

dos outros, em que o primeiro est em funo do segundo. Assim, vnculo com a

poltica (cuidar dos outros, cuidar da cidade). Em segundo lugar, vnculo com a

formao do jovem aristocrata; deste modo, vnculo com a pedagogia.

Note-se que, mesmo nos textos platnicos selecionados por Foucault, a mestria

aparece de modos diversos, o que denota no haver um fio condutor necessrio e

evidente que possibilite a interligao de todos os elementos conjugados nesta noo e

prtica.

Pode-se afirmar, ento, que a mestria de tipo socrtico-platnico, ao incitar o

outro o jovem a cuidar de si mesmo, busca, fundamentalmente, por meio do

conhecimento/reconhecimento do si mesmo do discpulo no elemento divino de sua

prpria alma, prepar-lo para governar a cidade (cuidado dos outros). Trata-se de

induzir o outro a um processo de converso a si, no qual, pelo reconhecimento de si no

elemento divino que lhe constitui, adquire-se a virtude (a sabedoria, o discernimento).

Trata-se, enfim, de form-lo, primordialmente ressaltamos , um sujeito poltico.

39

Captulo 2: A mestria de tipo helenstico: o mestre como guia da existncia Assim como as folhas no podem crescer por seu prprio esforo, mas necessitam de um ramo no qual se prendem e de onde sorvem a seiva, tambm seus preceitos, se esto ss, murcham completamente; eles devem estar fincados numa escola de filosofia.32

Sneca.

Doravante, o sujeito no pode mais ser operador de sua prpria transformao e nisto se inscreve agora a necessidade de um mestre 33

Michel Foucault

Introduo Na segunda parte deste estudo, a ateno ser concentrada no maior bloco do

curso Lhermeneutique du sujet, mais precisamente no seu ncleo. Nossa leitura inicia-

se com a aula de 20 de janeiro, seguindo at a ltima aula, em 24 de maro de 1982.

Uma vez que o ncleo do curso de Foucault consiste na anlise acerca do

cuidado de si de tipo helenstico, e que faremos, a partir daqui, a extrao dos

elementos caractersticos da mestria de mesmo tipo, a segunda parte de nosso trabalho

concentrar tambm mais elementos que a primeira, consistindo numa reflexo mais

extensa, no que tange ao contedo.

Neste captulo, visamos realizar a caracterizao geral da mestria de tipo

helenstico, determinando-a e evidenciando as relaes que mantm com as demais

noes e prticas caractersticas deste momento (sculos I d.C. a II d.C.) e com o quadro

geral em que se localiza.

O estudo de Foucault que trata do perodo helenstico apia-se em diversos

autores, mas se concentra nos escritos de Sneca, Plutarco, Marco Aurlio, Epicteto e

Musonius Rufus. Operando um deslocamento cronolgico, h tambm referncias aos

escritos epicuristas e cnicos, especialmente aqueles do prprio Epicuro e de Digenes

Larcio.

Assim, diferentemente do modo como organizamos o captulo anterior de nosso

estudo, no dedicaremos itens leitura de obras especficas, como no momento

socrtico-platnico o fizemos com o Alcibades e com a Apologia de Scrates. Isto se

deve ao fato de Foucault, conforme afirmado acima, recorrer, em sua elaborao, a

diversas obras e a diversos autores, no se concentrando necessariamente na leitura de 32 Cf. traduo nossa do latim e do ingls. Texto original: Quemadmodum folia per se vivere non possunt, ramum desiderant, cui inhaereant, ex quo trahant sucum; sic ista praeceptera, si sola sunt, marcent; infigi volunt sectae. (SENECA, 2006a, p. 94). 33 FOUCAULT, 2004, p.161.

40

uma ou outra. Ele recolhe elementos de todas as obras lidas para construir sua reflexo

acerca do cuidado de si caracterstico do momento helenstico.

Ser a partir dos escritos desses autores, apoiados na leitura realizada por Michel

Foucault, que visamos a reconstituir o que seja a mestria caracterstica deste perodo.

2.1. Da dupla generalizao do cuidado de si e da mestria no perodo helenstico Na aula de 20 de janeiro de 1982, Foucault inicia seu estudo acerca do cuidado de

si de tipo helenstico a partir do levantamento de uma pletora de expresses que

designam esta relao de si para consigo mesmo, pletora que divide em quatro tipos

por ele designados de famlias (FOUCAULT, 2004, p. 105). As primeiras expresses

referem-se a atos de conhecimento e ao olhar: estar atento a si, voltar o olhar para si,

examinar a si mesmo. As expresses da segunda famlia remetem a um movimento da

existncia: estabelecer-se, instalar-se, converter-se a si, voltar-se para si. O terceiro

grupo de expresses remete aos vocabulrios mdico, jurdico e, em certa medida,

religioso, pois referem-se a condutas, atividades em relao a si: tratar-se, curar-se,

amputar-se, reivindicar-se a si mesmo, respeitar-se, honrar-se, cultuar-se. Ora, em nosso

estudo, devemos nos deter na quarta famlia de expresses, pois designam uma relao

permanente consigo mesmo: sentir prazer consigo mesmo, ser feliz em presena de si,

ser mestre de si.

Esta ltima expresso aponta para a relao de mestria no somente como uma

relao que reivindica o outro, pois no momento helenstico ela tambm passar

necessariamente pelo outro, mas que reivindica tambm o si mesmo, uma relao de si

para consigo, que indica uma espcie de direo de si mesmo. Aqui, no momento

helenstico, a mestria aparecer em duas dimenses: uma relao que se estabelece com

o outro, com intuito de prepar-lo, instru-lo; e outro tipo de relao, que se estabelece

consigo mesmo, com intuito de guiar-se a si mesmo, dirigir-se a si mesmo ao longo da

existncia.

Foucault observa, a partir do resgate deste conjunto grande e heterogneo de

expresses que designam relaes de si para consigo mesmo e que apontam para o

cuidado de si, que houve um transbordamento (FOUCAULT, 2004, p. 106) desta

prtica no que tange aos limites que apresentava no momento socrtico-platnico.

Segundo ele, houve uma dupla generalizao do cuidado de si no momento por ele

designado de helenstico: generalizao que ampliou as prticas em torno do cuidado de

41

si para a vida toda do indivduo e generalizao deste cuidado para todos os indivduos,

ou seja, todos podem acess-lo e pratic-lo. Esta dupla generalizao do cuidado de si,

que, em relao ao cuidado de si de tipo socrtico-platnico, transformar a relao que

se estabelece consigo mesmo, promover tambm uma transformao na relao de

mestria, aquela que se estabelece com o outro. Assim, veremos como a generalizao do

cuidado de si promover uma generalizao tambm da mestria de tipo helenstico.

com Epicuro, num pequeno extrato do princpio da Carta a Meneceu, que

Foucault inicia seu estudo acerca da primeira generalizao do cuidado de si, aquela que

possibilitar ao cuidado de si abarcar toda a existncia do indivduo.

Que ningum hesite em se dedicar filosofia enquanto jovem, nem se canse de faz-lo depois de velho, porque ningum jamais demasiado velho para alcanar a sade do esprito. Quem afirma que a hora de dedicar-se filosofia ainda no chegou, ou que ela j passou, como se dissesse que ainda no chegou ou que j passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia til tanto ao jovem quanto ao velho: para quem est envelhecendo sentir-se rejuvenescer atravs da grata recordao das coisas que j se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que esto por vir [...]. (EPICURO, 2002, p. 21-23).

Primeiramente, deve-se notar o que Foucault (2004, p. 108) denomina de

assimilao entre as expresses, presentes no texto de Epicuro, filosofar e ter

cuidados com a prpria alma34. As expresses gregas utilizadas so, para filosofar,

(philosophen) e para cuidados com a prpria alma,

(to kat psykhn hygianon). Assim, filosofar designar, neste trecho, um modo

de cuidado com a prpria alma, ou ainda, conforme a traduo citada acima a sade do

esprito.

Em segundo lugar, observe-se que no se trata mais de um momento, uma estao

da prpria vida, no seria a na qual se deve dedicar a filosofar, ou melhor, a cuidar

de si mesmo, da prpria alma, mas se trata, agora, de pratic-lo ao longo de toda a vida.

Quando se jovem ou velho, ser sempre o tempo de ter cuidados consigo mesmo.

Poder-se- perceber, ainda, ao final da citao utilizada por Foucault, que, quando se

velho, tratar-se- de permanecer jovem no bem, pela recordao do passado, e quando

se jovem, dever-se- ser firme como um idoso, perante o futuro.

34 Conforme traduo de R. Genaille, de 1965, utilizada por Foucault e citada na nota 19 da primeira hora da aula de 20 de janeiro.

42

O segundo exemplo a que Foucault se reporta remete aos esticos. Primeiramente

um excerto de Plutarco (453d), das Moralia (Obras Morais), em que este cita uma

mxima de Musonius Rufus o estico : deve-se cuidar-se sem parar35, para poder-

se salvar. Depois, Foucault remete s relaes entre Sneca e dois de seus discpulos,

Serenus e Luclio, observando que o primeiro era um homem jovem, mas no um

, quando ainda se correspondia com Sneca, e o segundo era dez anos mais novo

que Sneca, ou seja, no eram adolescentes. Em seguida, Foucault resgata a ida de

adultos escola de Epicteto para escutar seus ensinamentos e buscar conselhos, ou seja,

no eram apenas adolescentes ou jovens os que escutavam suas aulas.

O terceiro exemplo reclamado por Foucault ser o dos oradores cnicos, que se

dirigiam em praa pblica a todo tipo de gente, independentemente da idade.

O quarto