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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Jorge Luiz Gonzaga Vieira PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E RESSIGNIFICAÇÃO DO UNIVERSO IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS Belo Horizonte/Grenoble 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Jorge Luiz Gonzaga Vieira

PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E RESSIGNIFICAÇÃO DO UNIVERSO

IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS

Belo Horizonte/Grenoble

2014

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Jorge Luiz Gonzaga Vieira

PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E RESSIGNIFICAÇÃO DO UNIVERSO IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa, em cotutela com a Université Stendhal Grenoble 3, Grenoble, France. Orientadores: Dr. Hugo Mari e Philippe Walter.

Belo Horizonte/Grenoble

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Vieira, Jorge Luiz Gonzaga

V658p Práticas identitárias e ressignificação do universo imaginário dos povos

indígenas do sertão de Alagoas / Jorge Luiz Gonzaga Vieira. Belo Horizonte,

2014.

290 f.: il.

Orientador: Hugo Mari

Orientador: Philippe Walter

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Índios – Identidade étnica - Alagoas. 2. Índios – Rituais. 3. Índios – Trato.

4. Imaginário. 5. Análise do discurso. I. Mari, Hugo. II. Walter, Philippe. III.

Pontifícia Universidade Católica de Gerais. Programa de Pós-Graduação em

Letras. IV. Université Stendhal – Grenoble 3. IV. Título.

CDU: 397.5(813.5)

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Jorge Luiz Gonzaga Vieira

PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E RESSIGNIFICAÇÃO DO UNIVERSO IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa, em cotutela com a Université Stendhal Grenoble 3, Grenoble, France.

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Hugo Mari (Orientador) – PUC Minas

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Philippe Walter – Université Stendhal Grenoble 3, France

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Bernard Émerry – Université Stendhal Grenoble 3, France

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Douglas Apratto Tenório – Universidade Federal de Alagoas - UFAL

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Juliana Alves Assis – PUC Minas

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PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E RESSIGNIFICAÇÃO DO UNIVERSO IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS

SUMÁRIO

Introdução 16

1. Colonização portuguesa e povos indígenas no nordeste brasileiro: séculos XVIII-XXI ..................................................................................

29

1.1 Retrospectiva histórica : contato, origem e ressurgimento dos povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katokinn e Koiupanká.........

29

1.1.1 Povoamentos das Américas, Brasil e Alagoas: ocupação e espoliação.....................................................................

29

1.1.2 Novos povoamentos territoriais e étnicos ......................... 32

1.2 Abordagem etnohistórica sobre os provos indígenas do sertão no contexto da colonização ..........................................................

37

1.3 Missões religiosas: confinamento e proletarização no aldeamento Brejo dos Padres ......................................................

42

1.3.1 Discurso missionário europeu: da negação do outro em busca da conversão .........................................................

45

1.3.2 Análise antropológica dos relatos dos viajantes e do discurso missionário..........................................................

46

1.3.3 O discurso de conversão: religião e interpretação............ 53

1.4 Formação do aldeamento Pankararu............................................ 55

1.5 Colonização em Alagoas: portugueses, holandeses e franceses.....................................................................................

59

1.6 Conjuntura social e política brasileira do período do ressurgimento étnico dos povos indígenas em Alagoas................

61

1.7 Práticas religiosas Pankararu e os povos do Sertão de Alagoas..........................................................................................

65

1.7.1 Povos ressurgidos no Sertão de Alagoas: aspectos históricos e sociais ...........................................................

66

1.7.1.1 Geripancó......................................................... 66

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1.7.1.2 Kalankó............................................................ 68

1.7.1.3 Karuazu............................................................. 69

1.7.1.4 Katökinn................................................................... 70

1.7.1.5 Koiupanká......................................................... 72

1.8 Reterritorialização nos povos do Sertão de Alagoas..................... 74

2. Cultura, identidade étnica e imaginário................................................... 82

2.1 Pensamento ocidental: matriz greco-romana cristã...................... 82

2.2 Pensamento antropológico: monoculturalismo e diversidade étnica..............................................................................................

85

2.3 Outra abordagem antropológica: a etnogênese............................ 94

2.3.1 Povos do Nordeste: em busca de artefatos, danças “tradicionais” e apoio político.............................................

96

2.4 Uma etnologia indígena além do exótico...................................... 104

2.4.1 Economias: mercado e distributiva................................... 109

2.4.2 Religião indígena e religião católica.................................. 111

2.4.3 Cotidiano: vestimenta........................................................ 117

2.4.3.1 Vestimenta........................................................ 117

2.4.3.2 Relações Sociais: família, economia e política 118

2.4.3.3 Idioma................................................................ 120

2.4.3.4 A linguagem da ciência dos Encantados 120

2.5 Geripankó e os povos do sertão de Alagoas: organização social 122

2.5.1 Geripankó: clãs – diversidade de clãs e discurso de unidade étnica...................................................................

122

2.5.1.1 Expropriação da terra, submersão étnica e negociação política...........................................

125

2.5.1.2 Identidade Geripankó: parentesco, religião e disputa política..................................................

129

2.5.1.3 O mundo religioso: ritos e mitos ressignificados.................................................

131

2.5.2 Kalankó: origem étnica e construção social...................... 134

2.5.2.1 Reconhecimento étnico: apoio indígena e político...............................................................

135

2.5.3 Karuazu............................................................................. 137

2.5.4 Katökinn............................................................................. 138

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2.5.5 Koiupanká.......................................................................... 139

2.6 Monoculturalismo e diversidade étnica: uma revisão epistemológica...............................................................................

140

3. Povos indígenas do sertão de Alagoas: memória, construção e ressignificação da identidade étnica......................................................

146

3.1 Geripankó: cacique Genésio Miranda........................................... 147

3.1.1 Situação: ambiente da entrevista..................................... 147

3.1.2 Personagem: Genésio Miranda......................................... 148

3.1.3 Análise do personagem Genésio Miranda: indígena, camponês, operário, patriarca, cacique e líder religioso...

140

3.2 Pajé Elias e cacique Genésio: religioso e político no processo de ressurgimento Geripankó...............................................................

172

3.2.1 A etnia Geripankó: origem, articulação interétnica e formação do pajé...............................................................

173

3.2.2 Indígena: sujeito político da identidade étnica.................. 195

3.2.3 Religião indígena e cristianismo – católicos e protestantes – convivência possível..................................

200

3.2.4 Cacique e pajé: agentes da afirmação política e étnica.... 202

3.3 Kalankó: ritual dos Praiás e a Páscoa Cristã................................. 204

3.3.1 Organização social e política............................................. 205

3.3.2 Rituais indígenas: Páscoa, Festa da Santa Cruz e Praiá.. 206

3.3.3 Rituais dos Praiás Kalankó: Sábado e Domingo de Aleluia..............................................................................

213

3.3.4 Ritual da Santa Cruz......................................................... 216

3.4 Karuazu: religião, terra e identidade étnica................................... 217

3.4.1 Organização social............................................................ 219

3.4.2 Religião Karuazu: a semente dos Encantados................. 221

3.4.3 Religião Karuazu e os rituais dos povos do Sertão........... 225

3.4.4 A mulher na cosmologia Karuazu: papel político, guardiã dos Encantados e da história............................................

227

3.4.5 Terra: base da tradição cultural e do discurso político...... 233

3.4.6 Demarcação do território Karuazu.................................... 238

3.4.7 Trabalho: dependência da economia de mercado........... 242

3.4.8 Karuazu e o não indígena: conflito e negociação............. 245

3.4.9 Identidade étnica: decisão política e mudança social....... 247

3.5 Katökinn: o sonho do etinônimo Katökinn e o Rei dos Peixes...... 249

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3.5.1 Nina Katökinn: a história da personagem.......................... 250

3.5.2 Análise do sonho Katökinn................................................ 256

3.5.2.1 O sonho Katökinn analisado............................. 257

3.5.2.2 Ritual do Rei dos Peixes................................... 259

3.6 Kouipanká: análise do discurso do cacique Zezinho no processo de afirmação da identidade étnica Koiupanká...............................

265

3.6.1 Origem e histórico Koiupanká........................................... 266

3.6.2 Reconhecimento da identidade étnica.............................. 267

3.6.3 Crenças e ritos Koiupanká................................................ 268

3.6.4 Cacique Zezinho Koiupanká: caçador, pedreiro e líder comunitário........................................................................

270

3.6.5 Liderança religiosa e política............................................. 273

3.6.6 Discurso: construção política e ideológica........................ 274

Considerações Finais............................................................................. 282

Referências............................................................................................ 287

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EPÍGRAFE

“A história que eu sei é essa que foi bem contada”.

Cacique Geripankó, Genésio Miranda (85 anos).

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais Gerson (in memoriam) e Socorro pela vida, dedicação e proteção que incansavelmente dedicam para a minha felicidade;

Aos meus filhos Emmanuel e Mayana e ao neto Nikolas pela minha realização pessoal e perpetuação dos meus sonhos;

Ao eterno amigo e mestre Antônio Brand (in memorian) pelos ensinamentos, apoio incondicional e responsabilidade pela minha inserção, no mundo da mais pura ciência e da academia, orientada à defesa dos silenciados, à educação e formação de novas gerações e à construção de uma sociedade pluriétnica e justa;

Ao amigo e professor Douglas Apratto, pelo acolhimento paternal, apoio e vibração na realização deste doutoramento;

Aos povos indígenas, porque sem eles não teria experimentado a inesgotável sabedoria histórica e espiritual.

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AGRADECIMENTOS

Esta é a parte mais difícil de ser escrita. Primeiro por entender que o

conhecimento é fruto de uma construção coletiva, nunca individual; em segundo

lugar, fazendo uma retrospectiva histórica, vemos quantos atores agiram

decisivamente para que este trabalho chegasse à fase atual. Desde a contribuição

dos movimentos e pastorais sociais, do movimento e povos indígenas até as

professoras e professores do ensino fundamental e médio, os dos cursos de

Filosofia e Teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ) e do Instituto de

Teologia do Recife – (ITER/PE), os do curso de Jornalismo na Universidade Federal

de Alagoas (UFAL), Instituto Cajamar/SP. Neste momento, não tem como não

lembrar os colegas que participaram de grupos de estudos, debates e reflexões

coletivas.

Como agradecer a todos e a todas que participaram desse processo de

aprendizagem e da formação pessoal, em nível ético, moral, político-ideológico e

acadêmico? Não é uma tarefa fácil, porque sempre se corre o risco de esquecer

pessoas e instituições. Por isso, quero, reconhecidamente, agradecer com afeto a

todos e todas que, individual e coletivamente, participaram direta ou indiretamente

de processo. Sintam-se presentes nesse trabalho.

Tudo foi conquistado com muita dificuldade. Poder estudar já foi uma grande

vitória. Terminar o ensino médio foi uma batalha. Chegar à Faculdade extrapolou

qualquer expectativa! O que dizer do Mestrado? E, agora, o Doutorado?!

Por isso, acima de tudo, quero agradecer a Deus. Foi a sua presença

companheira, amiga e firme que me fez chegar até aqui. Somente Ele sabe o quanto

tem sido duro enfrentar esta caminhada.

Aos meus pais, Gerson (in memoriam) e Socorro, trabalhadores rurais

analfabetos, que lutaram para educar os filhos numa consistente formação religiosa

e moral, com carinho e dedicação. Como são importantes em minha formação,

personalidade e trajetória de vida. Muitas opções que fiz, algumas, certamente não

estiveram de acordo, mas sempre permaneceram ao meu lado, rezando, cuidando,

orientando, opinando e se dedicando numa intransponível cumplicidade.

Aos meus filhos Emmanuel e Mayana, que sempre me incentivam para o

estudo, vibraram com a seleção do Doutorado e elaboração da Tese. Tenho mil

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razões para agradecer, por fazerem parte de minha vida e por tudo que significam

pra mim. E junto com eles o meu neto Nikolas, a Vanessa e o Murilo.

À Gemma Galgany, namorada, corajosa e solidária durante toda a realização

da pesquisa e defesa da Tese.

Às minhas irmãs, Cícera, Marta e Betânia. Especialmente à Marta pela total

dedicação e acompanhamento da situação de papai durante todo o período em que

não pude estar presente.

À querida professor e amiga Francisca (Chiquinha), pelo apoio intelectual,

carinho e disponibilidade na orientação e compromisso ético.

Aos amigos de caminhada nos úlitmos quarto anos, Manoel Hnerique e Luiz

Manoel, juntos e solidários nas dificuldades acadêmicas, hospedagens e viagens

entre Brasil e França e Belo Horizante.

À minha Igreja, por ter me educado na fé e para a vida acadêmica. Foi na

minha paróquia que alimentei a minha fé; no seminário, com a filosofia e teologia,

aprofundei. Com a Teologia da Libertação, me encontrei com os pobres e aprendi a

ter compromisso com os excluídos, os pequenos. Foi com eles que aprendi a

dialética entre a teoria e a prática.

Ao CIMI, por tudo que tem proporcionado. O Regional Nordeste, por onde

cheguei aos povos indígenas e à formação indigenista. Aos Fulni-ô, ponto de partida

dessa trajetória, pelos bons momentos que nos proporcionaram, com os

companheiros Saulo, Ivamilson, Prazeres e Auta, por tudo que aprendemos e

construímos juntos.

Aos meus compadres Ângelo e Evinha, pela torcida e apoio bibliográfico desde

o Mestrado, junto com o Augusto e Daniel, família que encontrei e pela qual fui

acolhido.

Aos compadres e afilhada de Água Branca, Zé Silva, Neide e Déborah pelo

acolhimento em sua casa durante os períodos da pesquisa de campo. E ao amigo e

companheiro Cloves, incentivador e apoiador dos pesquisadores da cultura

sertaneja.

Aos companheiros da política, deputado Judson Cabral e vereador Sílvio

Camelo, pelo apoio e incentivo nessa empreitada.

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Às minhas colegas professoras, Alyshia e Tânia, pelas correções dos textos em

francês e inglês, respectivamente.

À Analice Leandro, pelo trabalho dedicado e paciente das correções

ortográficas e da ABNT.

Aos meus alunos (as) pesquisadores (as) do Curso de Direito pelas

transcrições exaustivas e precisas das entrevistas com as lideranças indígenas:

Francisco, Joyciere, Paula, Taianny, Mirna, Crislene, Maria de Lara, Iago e Carol.

Ao povo Xokó, Sergipe, por ter sido o primeiro grupo indígena com que tive

contato. Aos povos de Alagoas, especialmente Geripankó, Kalankó, Katökin,

Karuazu e Koiupanká, meus agradecimentos pela amizade, conhecimento e

ensinamento, pois só através deles foi possível fazer esta caminhada.

No Doutorado, encontrei professores e professoras maravilhosas, sem eles não

teria chegado até aqui, a exemplo do professor Bernard Émery e da professora

Maria Eva, na Université Stendhal Grenoble-3, França; as professoras Márcia

Marques e Jane Quintiliano da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Minas), no

Brasil, pelo acolhimento e reflexões. Quão importantes foram as contribuições

teóricas e experiências para a elaboração desse trabalho. A cada palavra que ia

sendo escrita lembrava, especialmente, das reflexões dos professores Philippe

Walter e Hugo Mari. Levarei na bagagem para toda a minha vida.

À banca de Exame de Qualificação pelas valiosas contribuições. Quanto

trabalho professor William e professor Douglas! Senti-me grato e honrado em tê-los

como membros da Banca de Qualificação.

Nesse longo processo, tive dois grandes amigos. Os meus orientadores,

Philippe Walter e Hugo Mari, foram os guias dessa longa caminhada. O professor

Walter, com a sua prontidão costumeira e presteza, nos acolheu na universidade e

nos abriu os caminhos de entrada no universo francês, com passeios sobre

monumentos históricos, vilas medievais e conventos, especialmente com os

profundos estudos em seu gabinete sobre antropologia e imaginário e as valiosas

orientações. E o professor Hugo Mari, através das disciplinas, estudos, análise,

sínteses e pistas precisas e seguras durante as horas dedicadas às orientações.

Como orientador, logo expressou em um dos primeiros encontros os esquemas que

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eu devia seguir - as famosas “picadas”. O companheirismo e orientações dos dois

ficarão marcados como exemplo profissional e de sabedoria.

Para que esta trajetória fosse exitosa, contou com a presença de uma mulher

guerreira, obstinada, inteligente e com uma visão internacional, a professora Enaura

Quixabeira. Através do seu conhecimento e dos seus contatos, foi possível abrir as

portas da Université Stendhal Grenoble-3 para nós estudantes brasileiros. Com zelo

institucional, acadêmico e maternal, cobrou e acompanhou permanentemente o

andamento dos estudos, da produção científica e da qualidade, que foram

fundamentais para que eu chegasse até aqui. Com ela, estendo a minha eterna

gratidão à professora Maria Jeane, que, juntas, lutaram pela consolidação da

cotutela junto à PUC-MG. E, portanto, às universidades Stendhal Grenoble-3 e

Pontifícia Universidade Católica/MG pelo aprendizado e por tudo que representaram

em minha vida acadêmica e profissional.

À amiga e sempre simpática Profa. Dra. Pró-Reitora Acadênica de Pós-

Garduação e Pesquisa, Cláudia Medeiros, pelo competente acompanhamento e

empenho na finalização do processo, dedico incomensurável apreço. E junto à pró-

reitoria, ao Coordenador de Pós-Graduação Stricto Sensu, Prof. Dr. Giulliano

Anderlini, pela torcida, cuidado, agilidade e eficiência no encaminhamento

administrativo.

Aos meus coordenadores dos Cursos de Direito e Comunicação Social, prof.

Dr. Fernando Amorim e profa. Ana Cristina Brito, pelo pronto apoio e esforço em

adequar e distribuir as disciplinas com a carga horária dos colegas. A estes, pelo

sacrifício que fizeram para a presente realização.

E, finalmente ao Centro Universitário CESMAC, nas pessoas do Magnífico

Reitor, Dr. João Rodrigues Sampaio Filho, e do Vice-Reitor Prof. Dr. Douglas Apratto

Tenório, responsável pelo apoio financeiro e liberação para os estudos de

doutoramento. Aos senhores que conduzem esta bela instituição de ensino

genuinamente alagoana, o meu mais singelo e puro agradecimento por tudo que

isso representa para toda a minha vida, para o povo alagoano, especialmente os

povos indígenas. Mais não só por isso, os senhores são os mais fiéis seguidores do

espírito educacional do padre Téofanes Augusto de Araújo Barros, fundador desta

instituição, à semelhança dos trabalhadores que não tinham acesso ao ensino

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superior, eu, como filho de trabalhador rural, fui alçado à condição de Doutor pelas

vossas mãos.

O meu compromisso é o de sempre honrar e dignificar por todos os cantos,

como professor e profissional da comunicação a bela história desta instituição e de

quem os representa. Muito obrigado!!!

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RESUMO

O presente trabalho de Tese investigou as práticas identitárias e a ressignificação do universo imaginário dos povos indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, localizados no Sertão do Estado de Alagoas. A pesquisa estudou o processo de intervenção dos agentes da colonização portuguesa, holandesa, espanhola e italiana sobre as organizações sociais, culturais, religiosas e dos territórios ao longo dos 500 anos, com o recorte entre os séculos XVIII e XXI, período que compreende o confinamento étnico administrado pelos missionários católicas no aldeamento Pankararu Brejo dos Padres, município de Tacaratu, Estado de Pernambuco, e o ressurgimento de grupos étnicos. Com o crescimento populacional, redução dos territórios e acirramento de conflitos internos e com fazendeiros, diversas famílias pankararu se dispersaram pelos Estados da Federação. Em Alagoas, fixaram moradia na faixa serrana e baixa do sertão, propícia ao cultivo de roça e criação de animais. Em 1872, em Relatório do presidente da Província de Alagoas, Luiz Rômulo Peres Moreno decretou a extinção das etnias, denominando-as de caboclo e, portanto, objetivando a transferência dos territórios indígenas para terceiros. Em consequência disso, foram transformados em mão de obra e passaram a trabalhar em fazendas e centros urbanos. Com o ressurgimento de grupos indígenas, a partir da década de 1970, realizou-se uma revisão da concepção greco-romana e cristã no campo filosófico e científico, trabalhando uma nova abordagem da história, com base na teoria antropológica etnogênese, do imaginário e da Análise do Discurso, como instrumentos possíveis de diagnosticar e explicar a nova realidade pluriétnica. Com isso, constatou-se que os povos pesquisados no presente estudo conseguiram manter as tradições religiosas, afirmar a identidade étnica e reivindicar os direitos, diferenciando-se do restante da população não indígena. PALAVRAS-CHAVE: Território; Etnia; Identidade; Imaginário; Rituais; Produções Discursivas.

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RÉSUMÉ

Ce travail de thèse a enquêté sur les pratiques d'identité et le nouveau sens de l'univers imaginaire des peuples autochtones Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn et Koiupanká, situé dans l'arrière-pays d'Alagoas. La recherche a étudié le processus d'intervention par des agents de la colonisation espagnole et italienne les Portugais, les Hollandais, des organisations sociales, des cultures, des religieux et des territoires au cours des 500 années, avec la découpe entre le XVIIIe et XXIe siècles, une période qui inclut la confinement ethnique administré par les missionnaires catholiques dans le village de Pères Fen Pankararu, municipalité Tacaratu, État de Pernambuco, et la résurgence de groupes ethniques. Avec la croissance démographique, la réduction des territoires et de l'intensification des conflits internes et des agriculteurs, de nombreuses familles Pankararu dispersés par les Etats. Dans Alagoas, ont élu domicile dans la chaîne de montagnes et de réduire l'intérieur, propice à la culture des champs et du bétail. En 1872, dans le rapport du président de la province d'Alagoas, Luiz Romulo Moreno Peres a décrété la suppression de groupes ethniques, les qualifiant de Caboclo et donc visant à transférer à des tiers les territoires autochtones. En conséquence, ont été transformés en main-d'œuvre et sont est allés travailler dans les fermes et les centres urbains. Avec la résurgence des groupes autochtones depuis les années 1970, il y avait un examen de la gréco-romaine et la conception chrétienne dans le domaine philosophique et scientifique, travaillant une nouvelle approche de l'histoire, basée sur la théorie anthropologique ethnogenèse, l'imaginaire et de l'analyse discours que possible de diagnostiquer et expliquer les nouveaux instruments de la réalité multiethnique. Ainsi, il a été constaté que les personnes interrogées dans cette étude étaient en mesure de maintenir les traditions religieuses affirmer l‟identité et revendiquer des droits ethniques, enfin, se différencier du reste de la population non autochtone. MOTS-CLÉS: Territoire; l'appartenance ethnique; identité; imaginaire; rituels; Productions discursives.

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INTRODUÇÃO

Selvagem, caboclo e índio: imaginário construído e a afirmação da identidade étnica.

Tratar sobre as populações indígenas do Brasil, requer que a pesquisa, a

análise e, consequentemente, a produção teórica se pautem por uma lógica

diferentemente trabalhada pelos segmentos da sociedade dominante e da legislação

oficial materializada ao longo da formação social brasileira, nos períodos da Colônia,

do Império e da República.

Mesmo encontrando-se em pleno período republicano, as populações

indígenas ainda são ignoradas socialmente, em suas diferenças étnicas, no

reconhecimento e garantia de direitos por parte da sociedade e do Estado nacional,

excetuando-se algumas vozes dissonantes. Em 1910, impulsionado pelo espírito

positivista e pela crise com a missão católica, o Estado brasileiro assume a

assistência destas populações, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e

Localização dos Trabalhadores Nacionais-SPILTN, com base em uma concepção

política de caráter assistencialista e integracionista. No âmbito da legislação, até a

Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro colocava os povos indígenas em

situação de relativamente capazes e, nesta condição, carentes de autonomia e,

portanto, objetos de integração através de ações civilizatórias.

A partir da década de 1940, no campo acadêmico, político e religioso inicia-

se, no contexto da América Latina, o caminho de reconhecimento e denúncia de

atrocidades cometidas contra as populações indígenas pelos agentes

governamentais e invasores em geral.

Oficialmente, o marco desta estrutura é delimitado pelo desembarque da

delegação portuguesa, quando da ocupação do território brasileiro, em 1500. O

passado histórico, o território, a cultura e a religião são negados, cabendo aos

conquistadores a imposição do modelo e dos interesses sobre os grupos nativos.

Em nível político, religioso e econômico, entre a presença exógena,

aliciamento, dominação e conquista dos agentes representantes do Império e da

Igreja Católica, as forças do rei e sacerdotes ignoraram os líderes políticos e

religiosos indígenas, suas culturas, territórios, seus deuses, seus mitos e seus ritos.

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Com a aproximação, a população indígena foi submetida à condição de

mão de obra escrava, objetivando a implantação de uma economia voltada para

exploração das riquezas naturais, iniciada com o pau-brasil e continuada depois com

o cultivo da cana de açúcar e da pecuária.

O modelo eurocêntrico teve sua base de organização social no sistema

monolítico e monocultural, impondo-se sobre a diversidade de organização étnica

dos nativos e do poder político e religioso endógeno, atrelando-os ao controle da

estrutura externa, oposta ao modus vivendi indígena. No interior deste contexto,

franceses, holandeses e ingleses participam desse processo de intervenção social,

utilizando os nativos na disputa territorial, exploração das riquezas e do trabalho na

correlação de forças. A partir do cenário em que ocorreu, e ocorrem atualmente,

encontros, desencontros e confrontos entre os diversos mundos europeus e

indígenas.

No campo da revisão bibliográfica e da pesquisa de campo, é visto e

considerado o antes da colonização, reconstruído no presente com suas histórias,

suas culturas, suas religiões e seus valores, construídos e armazenados pelos

sujeitos indígenas milenarmente vivenciados na história deste território. E, na

perspectiva hermenêutica e epistemológica, é feita uma análise crítica do processo

de colonização imposto, a partir de 1500, às populações indígenas do Brasil, em

suas várias etapas e formas diversas.

Por razões metodológicas, o trabalho indica duas linhas de investigação:

de um lado, os interesses e visão dos exploradores europeus, ou visões, sobre os

territórios e os habiantes indígenas; e, por outro lado, a realidade sócio-política,

econômica, cultural e religiosa indígena no curso da trama entre europeus e nativos.

Nesse campo de ação, ocorreram, e continuam a ocorrer, mobilizações

sociais forçadas e conflituosas, encontros e desencontros de projetos e cosmologias

que se debatem. Neste cenário, culturas, mitos, ritos, valores e costumes se

enfrentam, se rejeitam, se misturam e se ressignificam.

Entre os invasores, encontram-se o conflito e a disputa política,

culturalmente ligada aos seus projetos e interesses. Para os nativos, deste ponto de

vista, também não se diferenciavam, visto que eram e são etnias diversas, com

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culturas e projetos diversos. Todavia, com perspectivas diametralmente opostas às

dos invasores.

Do ponto de vista econômico, a partir da análise sobre vencidos e

vencedores, os europeus impuseram às etnias nativas o seu modelo político,

econômico, cultural e religioso. E, em consequência dessa realidade, os vencedores

construíram e estruturaram seus projetos e interesses sobre o território brasileiro,

escravizando, matando e civilizando etnocentricamente a população nativa;

posteriormente, continuam o projeto com as etnias africanas, formando o segmento

mestiço e, consequentemente, a massa excluída econômica e socialmente.

Para além dos projetos de conquistas e de submissão, foi produzido o que

é denominado, em nível ideológico e geográfico, o povo brasileiro ou nação

brasileira – categoria genérica e indefinida culturalmente -, determinada por uma

circunscrição territorial por desapropriação, impondo idioma e cultura, fazendo

sucumbir oficialmente diferenças étnicas e idiomáticas, religiões, mitos, ritos,

costumes, valores e o domínio sobre os territórios.

Cientificamente, contrapondo-se a visão dualista e mecanicista que opera

de forma simplista, a divisória na forma estanque europeu e indígena, como se

fossem blocos homogêneos internamente e entre si, mas também, reconhecendo e

afirmando a essência do projeto imperialista de dominação sobre as populações

conquistadas. Na realidade, observa-se que na materialização do processo

sóciohistórico e cultural, todos os segmentos envolvidos são levados a se

apropriarem e se reconstruírem em suas respectivas cosmologias, valores e

estruturas sociais.

Na visão do europeu, registrada em documentos oficiais e textos literários,

consta que o nativo foi tratado e narrado como selvagem. E, em consequência desta

compreensão, fora-lhe imposto o modelo civilizatório, implantado politicamente pelos

representantes da Coroa Portuguesa e do Império e, posteriormente, pela classe

dominante brasileira.

No período republicano, considerando a convivência imposta nos moldes

do conquistador e, consequentemente, com o processo de mistura entre europeu,

indígena e negros africanos, o Estado brasileiro e seus idealizadores, formularam

sua política indigenista caracterizada pela herança colonial sobre os povos nativos,

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utlizando-se da categoria de selvagem e, posteriormente, de caboclo – terminologia

destinada a desqualificar e descaracterizar de forma pejorativa os povos nativos.

Ao longo dos seus mais de 180 anos de história no país, as constituições brasileiras foram representativas não dos anseios dos diversos segmentos historicamente excluídos da sociedade, mas dos interesses das elites, vinculadas a uma visão essencialmente europeia de país. (LACERDA, 2008, p. 13).

E, ainda, quanto à criação e utilização de terminologias para identificar

esses povos, denominaram-os de índio – termo que se origina no contexto do

desembarque dos portugues na denominada Terra de Santa Cruz -, termo popular e

politicamente massicado até à atualidade, oficialmente e na sociedade.

Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e diferentes entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilidades tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e filosofia peculiares, resultantes de experiências de vida acumuladas e desenvolvidas em milhares de anos. (RODRIGUES, 1986, p.17).

Em 1943, pelo decreto-lei do presidente da República Getúlio Vargas,

originalmente o termo adquire uma conotação de política nacional e, posteriormente,

com a abertura da política brasileira no final da década de 1970, o mesmo é

apropriado e utilizado pelas populações indígenas e entidades indigenistas não

governamentais como símbolo de luta política e de defesa dos direitos indígenas.

No entanto, na linha da lógica dominante, tanto a da política oficial, quanto

a do campo acadêmico, foram criadas legislações e teorias para definir e justificar a

operacionalização da política indigenista oficial integracionista, com o objetivo de

apropriação dos territórios e da formação de mão de obra indígena. O silvícola

(LÉVI-STRAUSS, 1962) foi delimitado com o biotipo do ser indígena, excluindo todos

os outros sujeitos que não se enquadrassem no estereótipo preestabelecido, e que,

como consequência, significou a perda do pertencimento ao território tradicional e da

assistência por parte do Estado. Em outras palavras, foi criada uma legislação e

decretada a extinção dos povos indígenas, ignorando a realidade vivida pelos

sujeitos históricos. Foi no contexto de abertura e discussão política dos anos 70 do

século XX que os povos indígenas considerados oficialmente extintos, emergiram do

silêncio étnico imposto e reivindicaram o reconhecimento das identidades étnicas

diferenciadas e os direitos.

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Frente a isto, a lógica científica, principalmente nos campos da História e

da Antropologia, impulsionada por novas abordagens teóricas e nova base

constitucional, na década de 80, redireciona o seu foco teórico e passa a pesquisar

e produzir a partir de outro enfoque, que considera o sujeito da pesquisa – os

indígenas - no espaço e no tempo contextualizado histórico e culturalmente.

Por conta da nova abordagem, os conceitos de selvagem, caboclo e índio

das teorias acadêmicas, ou academicistas, produzidos e forjados em laboratórios

passados, foram superados pela realidade engendrada pelos sujeitos históricos que

resistiram à imposição do monoculturalismo dominante, instigando a criação novos

parâmetros e redirecionamento científico.

Considerando esta realidade, a presente pesquisa se depara e busca

investigar, a partir do viés teórico étno-histórico, dialogando com a teoria do

Imaginário e da Análise de Discurso (AD), analisar os povos indígenas do sertão do

Estado de Alagoas, dados como inexistentes oficialmente e pela população nacional

até o início da década de 1980, considerando os condicionamentos e interesses que

perpassaram a formulação teórica e a política de negação da sociedade nacional, a

construção do imaginário e o processo de ressignificação e afirmação da identidade

étnica Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn1 e Koiupanká2.

O problema central do trabalho é identificar nos referidos povos, objeto da

pesquisa, o processo de negação da identidade e de passagem no anonimato e no

silencio étnico por mais de um século, período em que foram desterritorializados

continuamente, enfrentaram novas estruturas e grupos sociais, mas mantiveram as

raízes e tradições culturais e religiosas e, em pleno final do século XX, conseguiram

emergir reivindicando o reconhecimento da identidade étnica e dos direitos

constitucionais.

Pesquisador e Pesquisa: contextualização histórica e objetividade científica

1 Grafia originalmente apresentada pela cacica Maria das Graças, a Nina, na revelação povo

para a sociedade nacional. 2 A grafia utilizada neste trabalho dos nomes indígenas é a estabelecida pela convenção da Associação Brasileira dos Antropólogos (ABA), em 1953.

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Ao tratar do desenvolvimento da pesquisa, em primeiro lugar, faz-se

necessário expor a identidade do pesquisador, em razão da relação histórica do

mesmo com os povos pesquisados no processo de acompanhamento de

identificação e afirmação da identidade étnica e garantia dos direitos,

particularmente com os povos Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká.

Em setembro 1978, na condição de coordenador de grupo jovem do

movimento católico denominado Treinamento de Liderança Cristã (TLC), da

paróquia de São Cristovão, Santana do Ipanema/Alagoas, motivado por religiosas

holandesas da Congregação Franciscana de Santo Antônio e por padres da diocese

de Palmeira dos Índios, Alagoas, mobilizei a comunidade cristã local para doar

donativos para o grupo indígena Xokó, localizado no município de Porto da Folha -

Sergipe, que se encontrava acampado na Ilha de São Pedro reivindicando a

demarcação do território.

Depois da graduação universitária, em 1986, já como membro do Conselho

Indigenista Missionário/CIMI, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil/CNBB, dediquei-me efetivamente ao trabalho missionário indigenista,

passando a morar e trabalhar com o povo Fulni-ô, no município de Águas Belas,

Pernambuco, de onde a equipe prestava assistência e apoio político também aos

povos do sertão da Bahia e do Estado de Alagoas.

Neste período, mantenho os primeiros contatos com o povo Geripankó, em

Pariconha, então distrito do município de Água Branca, Alagoas, onde existia uma

equipe missionária de padres, frades, religiosas e leigos/as, com trabalho pastoral

fundamentado nos documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965) e das

Conferências do Episcopado Latino Americano de Medellin (1968) e Puebla (1979),

e metodologicamente orientado pelo método Ver, Julgar e Agir3 e pela Teologia da

Libertação (BOFF, 1982; GUTIÉRREZ, 1979; RUBIO, 1977) sustentado na

espiritualidade de compromisso com os pobres (BOFF, 1980) e com a transformação

das injustiças encrustradas historicamente na realidade social do Continente.

(MUÑOS, 1979).

Até o início da década de 1990, a realidade indígena de Alagoas, para

efeito de estatística, parecia estar definida com o reconhecimento de seis povos:

3 Boff, Clodovis. Como trabalhar com os excluídos. São Paulo: Paulinas, 1994.

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Kariri- Xokó, Xucuru-Kariri, Wassu-Cocal, Tingui-Botó, Karapotó e Geripankó. Neste

período, como missionário e assessor da organização indígena Articulação dos

Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo/APOINME, durante

contato com o povo Geripankó fui convidado para conhecer um grupo de pessoas

que afirmava ser indígena e que queria conhecer os procedimentos políticos e legais

para ter a identidade étnica reconhecida e os direitos garantidos. Atendendo a

solicitação, a visita à comunidade ocorreu em maio de 1998, quando o grupo se

apresentou com o etinônimo de Kalankó e, através do pajé Antônio Preto, informou

que iria apresentar a identidade indígena à sociedade nacional, o que aconteceu no

dia 26 de julho daquele ano.

Impulsionados pelo processo de movimentação local e mobilização

estadual, regional e nacional dos povos indígenas, os dois povos, Geripankó e

Kalankó, organizaram cursos de formação sobre direitos indígenas na Constituição

Federal de 1988, com o assessoramento da equipe missionária e jurídica do

Regional CIMI/Nordeste.

Observei que, durante a realização dos encontros, lideranças indígenas

participavam sem identificação de grupo até então, ato que somente um ano depois

aconteceu. Como resultado desse processo, obedecendo à sequência cronológica,

em abril de 2000, o grupo de famílias Karuazu assumiu a identidade étnica, sob as

lideranças do pajé Antônio Santos e do cacique Edvaldo dos Santos; em setembo do

mesmo ano, foi a vez do povo Katökinn, liderado pelo pajé Juvino Henrique dos

Santos, mais conhecido por Arvilino, e a cacique Maria das Graças, a Nina; e, em

dezembro de 2001, o povo Koiupanká, representado pelo cacique Zezinho e o Pajé

Antônio Silva.

Neste contexto, demonstro que o presente trabalho desenvolvido pelo

pesquisador tem sua origem na militância missionária e indigenista, orientado

metodologicamente pela prática da inculturação e expresso na convivência e

observação do cotidiano das práticas religiosas, da organização política, das

mobilizações e das manifestações reivindicatórias (OLIVEIRA, 1988), além do

assessoramento e acompanhamento das etapas de reconhecimento étnico e

formação da organização política em defesa dos direitos indígenas, da assistência

em saúde, educação e da recuperação dos territórios (NEDEL, 1984).

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Em consonância com o aspecto estritamente científico, em vista da

constatação de minha estreita relação histórica e política como sujeito pesquisador

com o objeto pesquisado, compreendo a necessidade do policiamento e a vigilância

de forma permanente e intransigente durante a pesquisa, com o devido

distanciamento objetivo e metodológico, para que o resultado da pesquisa não sofra

influência indevida em nível ideológico, político, religioso e social. Referindo-se

sobre a alteridade do cientista, afirma Eni P. Orlandi: “Ele não reflete, mas situa,

compreende, o movimento de interpretação inscrito no objeto simbólico que é seu

alvo. Ele pode então contemplar (teorizar) e expor (descrever) os eleitos da

interpretação”. (1998, p.61).

Postas as considerações acima, seguem didaticamente os procedimentos

metodológicos da pesquisa: iniciei com a preparação e elaboração do projeto,

obedecendo aos procedimentos estruturais da metodologia científica e do trabalho

acadêmico, com identificação e delimitação da relevância temática e importância

social, considerando efetivamente a originalidade e pertinência do assunto quanto à

identificação pessoal, o retorno para a sociedade e para a academia.

Com a aprovação do projeto de pesquisa, o trabalho se desenvolveu em

duas instâncias acadêmicas: na Université Stendhal Grenoble 3, França, sob a

orientação teórica e metodológica do Prof. Dr. Philipe Walter, em nível presencial

durante três etapas consecutivas, e online, durante quatro anos, com aulas dirigidas,

palestras, seminários e simpósios internacionais; e na Pontífícia Universidade

Católica/PUC-MINAS, o trabalho transcorreu sob a orientação teórica e

metodológica do Prof, Dr. Hugo Mari, com aulas presenciais das disciplinas

específicas da matriz curricular do curso de Linguística, seminários avançados e a

produção de artigos cientificos.

Durante o período em que transcorreu a pesquisa, como pesquisador

produzi e publiquei artigos científicos referentes à temática em revistas

especializadas; apresentei trabalhos em congressos acadêmicos, simpósios

internacionais e seminários temáticos, em níveis local, regional e nacional; participei

de eventos e atividades promovidas pelas instituições às quais estou vinculado

academicamente, como também de atividades realizadas por outras instituções

universitárias do Brasil.

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Quanto à pesquisa bibliográfica, realizei ampla revisão bibliográfica e

leituras de obras inusitadas sobre a temática, no campo da historiografia indígena,

antropologia e linguística, com leituras organizadas em fichamento e resumo, de

acordo com as orientações dos professores orientadores e das disciplinas cursadas.

Para a execução da pesquisa de campo, as ações foram planejadas e

realizadas obedecendo ao cronograma metodologicamente elaborado para atender

às demandas específicas do trabaho e do calendário religioso dos povos estudados.

Dentre as atividades realizadas, coloquei em prática a pesquisa participante,

observando e registrando os aspectos considerados importantes no comportamento

social, político e religioso dos membros das comunidades em seu habitat; os

encontros e reuniões promovidas por organizações governamentais e entidades não

governamentais, autoridades e agentes indigenistas; organização, planejamento e

execução das atividades políticas, e, especialmente, no período da realização dos

rituais religiosos.

Organização e estrutura da Tese

O trabalho de Tese, em nível conteúdo textual, é composto pela introdução,

onde consta o tema, os objetivos, a metodologia e uma síntese do conteúdo dos

capítulos, seguida da conclusão.

No primeiro capítulo abordei a história da Colonização Portuguesa e os

povos indígenas do Nordeste, numa visão panorâmica dos séculos XVIII ao XXI,

identificando principalmente as condições sociais, políticas, econômicas e a

diversidade étnica e linguística da região, destacando alguns aspectos da realidade

da, então, Província alagoana, atual Estado de Alagoas.

Neste cenário, o objetivo é o de identificar as ações dos principais atores

envolvidos: europeus, missionários, indígenas, coronéis, cangaceiros e sertanejos,

com destaque para a catequese missionária e a estruturação eclesial, o

confinamentno indígena nos aldeamentos, a formação de mão de obra e economia

agropastoril e a relação com o poder local.

Em seguida, analisei a legislacão vigente do período republicano, desde a

criação do SPI, a sua extinsão e a substituição pela Fundação Nacional do

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Índio/FUNAI; o Estatuto do Índio, a Lei 6.001/73; a Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho/OIT, e os direitos indígenas na Constituição Federal de

1988, destacando-se a superação do instituto da Tutela e o reconhecimento da

Autonomia.

No segundo capítulo abordei a temática cultura, identidade e imaginário,

com o objetivo de fundamentar e conceituar os conteúdos do monoculturalismo e da

diversidade étnica em consonância com a identidade étnica e a teoria do imaginário,

na busca de compreender os mecanismos de dominação e propagação ideológica

dos interesses ocidentais sobre as populações nativas e a superação destas

enquanto processo de apropriação e ressignificação dentro do fenômeno

emergência étnica no Nordeste, objetivamente, o ocorrido com os povos indígenas

do sertão de Alagoas.

Em razão da relação étnica dos povos do Sertão de Alagoas, objeto da

presente pesquisa, e a etnia Pankaruru, em nível histórico, cultural, religioso e

político, apresentei um quadro sobre a realidade social e a estrutura política,

econômica, cultural e religiosa do aldeamento Brejo dos Padres e Entre Serras, em

Pernambuco; a participação missionária no processo de confinamento; a

desterritorialização geradora dos conflitos territoriais, étnicos e interétnicos; a

sobreposição dos núcleos urbanos sobre o território indígena e a luta pela

recuperação dos territórios; o calendário religioso das práticas e ritos e a importância

e apoio dos Pankararu no processo de formação e ressurgimento dos povos

indígenas do Sertão de Alagoas.

No terceiro capítulo, apresento o estudo e análise sobre os povos

indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, considerando suas

origens históricas, culturais e religiosas no aldeamento Brejo dos Padres, os

conflitos e dispersão ocorridos ao longo do século XIX e XX; a territorialização na

região do Sertão de Alagoas, seguida da expulsão dos territórios; a negação das

identidades aliadas ao processo de silenciamento étnico. Ao longo deste período,

destaco a capacidade criativa desses grupos indígenas de manterem vivos os

rituais, tendo como referência, fonte e matriz a cultura Pankararu e, ao mesmo

tempo, a relação com a sociedade do entorno das comunidades, em permanente

fricção interétnica cultural, econômica e religiosa.

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Em nível nacional, no contexto da abertura política e redemocraticação do

Brasil, no final da década de 1970, e na década de 80 no processo constituinte,

ocorre a inserção das populações indígenas nas mobilizações e manifestações

políticas e na luta pelo reconhecimento dos direitos.

Até aquele período, imperava na sociedade a compreensão de que não

havia mais indígenas no Nordeste brasileiro, visto que as populações existentes

encontravam-se misturadas com a população sertaneja, restando-lhes apenas a

figuração e denominação de caboclo.

Contrariando a lógica oficial e a da sociedade nacional, os povos indígenas

do Nordeste retomaram a luta pela recuperação da terra, com o apoio de entidades

religiosas, não governamentais e pesquisadores.

Neste contexto, apresentei, neste capítulo, a análise sobre os povos

considerados extintos, sua emergência étnica reivindicatória do reconhecimento

étnico, dos direitos constitucionais e, principalmente, da demarcação dos territórios.

Identifico que o contato desses grupos indígenas, desde a origem

Pankararu até a região sertaneja alagoana e a convivência com a população local

não ocorreu de forma estanque e paralela. Observo que, nas diversas fases e

situações em que viveram e se encontram atualmente, colonizadores, invasores,

religiosos, coronéis, sertanejos e indígenas, a convivência ocorre entre permanentes

conflitos, negociação, adaptação, construção e desconstrução, apropriação e

ressignificação, respaldada na elaboração discursiva de aceitação e submissão ao

modelo imposto ou, considerando o novo cenário social e político, a construção e

reelaboração da afirmação étnica e da autonomia política.

Constatei com a pesquisa que, considerando a revisão bibliográfica, a

observação de campo e a análise das entrevistas com os membros da comunidade,

a afirmação étnica não é uma necessidade que parte do interior das comunidades e

da população indígena em geral, mas é colocada pela sociedade nacional e/ou por

instituições governamentais e não governamentais.

Em vista desta constatação, a metodologia utilizada para o

desenvolvimento do trabalho reconhece e coloca como princípio a autonomia dos

povos indígenas, tratando-os como sujeitos históricos e atores do prórpio processo

de ressignificação dos mitos, símbolos culturais e religiosos e da afirmação étnica.

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Diante das constatações acima mencionadas, o trabalho demostrou que a

emergência étnica Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koupanká foi resultado

da opção e decisão política desses povos, tomadas em determinado espaço e

tempo, impulsionada pela conjuntura internacional e brasileira, com o objetivo do

reconhecimento de uma realidade histórica, anteriormente vivenciada dentro de suas

respectivas culturas, mitos, ritos e identidades construídas.

Ademais, para garantir o direito de se manifestarem livremente em suas

culturas e religiões e, junto a isto, conquistar os direitos garantidos legalmente pelo

Estado brasileiro para os segmentos étnicos, os grupos se assumiram como povos

diferenciados, afirmando a identidade e reivindicando os direitos constitucionais.

Neste cenário, constato dois momentos de um mesmo processo histórico

na vida destas populações: o cotidiano das comunidades; e a relação dos indígenas

com a população do entorno. No primeiro, os indígenas conduzem a vida cotidiana

cumprindo as mesmas atribuições, regras e tendo os mesmos comportamentos de

um sertanejo, exceto durante o calendário religioso; em vista disso, são confundidos

com a população do entorno, marcando a diferença durante os períodos de

celebrações religiosas.

Por outro lado, quando da participação em reuniões, seminários e eventos

políticos com autoridades governamentais, indigenistas e pesquisadores, em geral,

os indígenas se apresentam com roupas, adereços e pinturas típicas do estereótipo

exótico construído pela socidade nacional, com produções, comportamentos e

elaborações discursivas apropriadas ao interlocutor, demarcando com isso as

fronteiras culturais com a afirmação de uma identidade étnica que atenda as

expectativas do outro, o não indígena.

Na presente análise do trabalho, constato e demonstro que a identidade

indígena é mantida, alimentada, construída, reconstruída e ressignificada

permanentemente no imaginário destes povos e vivenciada pelos sujeitos históricos

em seu tempo e espaço próprio.

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1. COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E POVOS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO: SÉCULOS XVIII – XXI

1.1 Retrospectiva histórica: contato, origem e ressurgimento dos povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká.

1.1.1 Povoamentos das Américas, Brasil e Alagoas: ocupação e espoliação.

O povoamento das Américas, segundo estudos históricos e antropológicos

mais recentes, mesmo considerando as mais diversas teorias sobre a sua origem e

os caminhos percorridos, indicam que ocorreu através do Estreito de Bering por

onde os primeiros grupos humanos se constituíram na população originária do

chamado “Homem Americano”, pertencentes às frações de Esquimós e Mongóis,

como também de outras migrações oceânicas através do Pacífico. “As provas

etnológicas das concordâncias culturais de malaios-polinésios e ameríndios foram

apresentadas por W. Schimidt, Nordenskjöld e outros etnólogos na primeira década

do século XX”. (PEREIRA, 2000, p. 26). Segundo o mesmo autor, “os povoadores

oceânicos agruparam-se nas duas zonas continentais: a alta, dos Andes a oeste; e a

baixa, a oriental, compreendendo principalmente o Brasil”. (Op. cit., p. 29).

Na área brasileira foram se constituindo, ao longo dos séculos ocupando

florestas e rios, troncos culturais e as famílias dos troncos linguísticos Tupi, Tupi-

Guarani, Macro-Jê, Aruack, Karib, Aruwa, Tukano, Maku e Yanomami, dentre outros

subgrupos menores e isolados.

Em Alagoas, como uma das maiores populações indígenas, foi identifiicado

o povo Caeté (Kaeté), de língua tupi, que ocupava a região litorânea do Nordeste

brasileiro entre a Ilha de Itamaracá e a foz do rio São Francisco da então Província

de Pernambuco. O historiador Moacyr Soares Pereira registra a presença marcante

do povo Caeté: “os destemidos Caetés da margem esquerda do rio São Francisco

guerreavam os Tupinambás da margem oposta Sergipana, do litoral baiano e da

própria Bahia de Todos os Santos”. (Idem, p. 40).

Os estudos historiográficos e etnológicos retratam que o etinômio Caeté é

da língua tupi, que significa “mata verdadeira”, denominação dada pelos parentes

Tupinambá povo ao qual também pertencia o Caeté, assim como o grupo Tabajara.

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O desaparecimento do povo Caeté da região alagoana deveu-se a valentia

e reação deste povo contra os invasores de seus territórios e a colonização4, que

culminou com a acusação de ser o responsável pela morte do primeiro bispo do

Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha5, em 15 de junho de 1556, tem como

consequência o acirramento dos conflitos com colonos e seus aliados, escravos e

indígenas de outras nações. Afirma o historiador Álvaro Queiroz: “Após o

assassinato do primeiro bispo, D. Pero Fernandes Sardinha, atribuído aos Caetés,

empreendeu-se uma das mais cruéis e violentas „guerras santas‟ de que se tem

notícia em nossa história”. (2010, p. 29). “A „Guerra dos Caetés‟ durou de três a

cinco anos, a partir de 1560. Naquela época, talvez somassem, esses índios, uns

oitenta mil, dos quais quase a metade retirou-se da Capitania de Pernambuco,

inclusive os do sul das Alagoas”. (Op. cit., p. 161).

Da guerra contra colonos, espoliação dos territórios, migração e

contaminação de doenças transmitidas pela população branca resultou o

desaparecimento do povo Caeté das terras alagoanas, como de outras populações

da família tupi – “... senhoras da costa oriental do Brasil no século do descobrimento,

quando desapareceram do seu mapa”. (Ibidem., p. 148).

Além do povo Caeté, encontravam-se registrados em documentos

históricos e, depois da emancipação política de Alagoas em 16 de setembro de

1817, nos relatórios anualmente apresentados pelos presidentes na Assembleia

Provicinal, a presença de outros grupos indígenas que circulavam ou viviam em

terras alagoanas. No Quadro I, organizado no livro do antropólogo Clovis Antunes

(1984, p. 15), encontram-se registrados 20 grupos indígenas: Abacariaras, Aconãs,

Caetés, Cariris (Kariris), Canapotiós, Ceococes, Moriquitos (Mosquitos?), Natu,

Prakiô, Pipianos (Pipiões), Prato (Pratto), Potiguaras, Romaris (Omaris), Shocó

(Xocó), Shucurus, Umãs (Umans), Vouvés, Wakona (“Shucuru, Cariri”), Tingui-Botó

(Tingui-Botó-Wakonã), Wassu6.

4 Rererindo-se ao castigo aplicado aos indígenas da Bahia pelo primeio Governador-Geral do Brasil, Thomé de Souza, Jayme de Altavila afirma em relação ao grupo Caeté: “Idêntico castigo aplicou Jerônimo de Albuquerque aos selvagens que impediam a colonização eficiente do nosso território”. (1988, p. 20). 5 Ver LEMOS, João R. Dom Fernandes Sardinha – Um bispo, Mártir, em Coruripe. Maceió, 2004.

6 O uso da grafia dos etinônimos obedeceu ao texto original do autor do livro.

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Com a ação dos colonizadores (LEÓN-PORTILLA, 1987) e da

evangelização, os territórios anteriormente ocupados pelos indígenas foram

tomados, provocando a sua espoliação, escravização e dipersão da maioria dos

grupos7.

No Relatório do Governo Provincial dirigido à Assembleia Legislativa das

Alagoas, em 13 de junho 1862, pelo Bacharel Manoel Lourenço da Silveira, o

mesmo afirma: “nada originalmente consta dos archivos públicos sobre o facto

anterior da instituição de aldeiamentos dos índios, ora existentes”. (Apud

ALBUQUERQUE, 1984, p. 16). Logo em seguida, no mesmo documento-relatório,

reconhece a existência de 8 aldeias indígenas: Jacuípe, Cocal, Urucú, Limoeiro,

Santo Amaro, Atalaia, Palmeira dos Índios e Colégio ou Porto Real. O historiador

Queiroz, em sua obra Episódios da História de Alagoas, cita 10 grupos: “Na região

Norte de nosso território viviam os Potiguares e Tabajaras. No litoral e vale do São

Francisco, os Caetés, Kariris, Aconans, Coropotós e Moriquitos. Na parte Oeste, os

Xucurus, Vouvés e Pipiannos”. (Op, cit., p. 28).

Oficialmente, a extinsão dos aldeamentos indígenas (JÚNIOR, 2013) foi

decretada em 1872, sendo as terras transferidas para particulares e para o

patrimônio público. Apesar disso, os grupos indígenas continuaram existindo e

reivindicando os seus direitos, como atesta o professor e estudioso Clovis Antunes:

“apesar de serem extintos os aldeamentos na Província das Alagoas pelos anos idos

de 1872, os índios das Aldeias de Porto Real do Colégio e de Palmeira dos Índios8

sempre lutaram pelo reconhecimento dos seus direitos, especialmente pela posse

das suas terras”. (Op. cit., p. 9).

Observa-se que, há mais de 500 anos, as populações indígenas do

Nordeste foram colocadas diante de projetos estranhos às suas culturas,

organizações sociais, políticas, econômicas e religiosas, expulsas de forma violenta

de seus territórios tradicionais e obrigadas permanentemente a se deslocarem para

outras regiões em busca de outros espaços e localidades. “Os invasores fizeram

7 LINDOSO, Dirceu. A utopia armada – Rebeliões de Pobres nas Matas do Tombo Real. 2ª ed. Maceió: Edufal, 2005. 8 MATA, Vera Lucia Calheiros. A Semente da Terra - Identidade e Conquista Territorial por um Grupo Indígena Integrado. Maceió: EDUFAL, 2014.

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contínuas guerras contra os indígenas, com a finalidade de prendê-los e vendê-los

como escravos”. (PREZIA; HOORNAERT, 1994, p. 72).

E completa Rodrigues: “Naturalmente, o maior número de línguas

indígenas desapareceu nas áreas que foram colonizadas há mais tempo e mais

intensamente, constituídas pela região Sudeste e pela maior parte das regiões

Nordeste e Sul do país”. (Op. cit., 1986, p. 19).

1.1.2 Novos povoamentos territoriais e étnicos.

No contexto de espoliação territorial, guerra, migração, despovoamento,

depopulação, as etnias Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká

(VIEIRA, 2007), no sertão de Alagoas, são originárias de Pankararu, povo localizado

na antiga Província, atual estado de Pernambuco, carregam em sua memória

histórica a perseguição e o confinamento em antigos aldeamentos missionários,

acompanhados de resistência e negociação. Agregados em pequenas glebas, foram

submetidos ao convívio com etnias de diferentes estruturas sociais, resultando no

acirramento de conflitos interétnicos e dispersão; outro fato é a divisão do

aldeamente em lotes, o que provocou o êxodo de grupos familiares a partir do

século XIX.

O deslocamento permanente e o contato impositivo com culturas europeias

e com outras etnias indígenas marcaram profundamente suas cosmologias,

provocando o processo de ressignificação dos mitos e ritos em cada contexto

geográfico e cultural, além de seus membros serem transformandos em

trabalhadores rurais e sertanejos. Expulsos do habitat foram obrigados a viver em

terreno movediço socialmente, impelidos a negociarem a sobrevivência e a negarem

as diferenças étnicas e culturais.

A partir da década de 1980, impulsionado pela redemocratização do Brasil

e pelas mobilizações indígenas no Nordeste, ocorre o ressurgimento de etnias, que

reivindicam o reconhecimento da identidade etnicamente diferenciada e dos direitos

constitucionais. Esse fenômeno tornou-se conhecido como etnogênese – movimento

construído e conduzido por grupos indígenas considerados extintos oficialmente, em

busca de espaço para demonstrar e expressar as diferenças étnicas em relação à

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população do entorno e, assim, poder cobrar o reconhecimento dos direitos

constitucionais.

O conhecimento público da identidade étnica dos povos do sertão, as

mobilizações políticas e tradições religiosas passaram a ser veiculados pela mídia,

mesmo que ainda condicionada por uma visão estereotipada e caricaturizada pelo

silvícola amazônico, contrapondo-se à imagem e à realidade histórica, social,

econômica, política e religiosa das etnias e das populações indígenas do Nordeste.

No contexto do processo de desterritorialização e reterritorialização dos

Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, a pesquisa identificou a

ressignificação do imaginário e a afirmação da identidade étnica, como também a

representação imagética construída pelas obras literárias e midiáticas, conteúdo

este que será analisado e explicitado com profundidade no último capítulo do

trabalho, limito-me aqui a constatar e apontar as bases históricas, econômicas e

sociais e os caminhos pelos quais a pesquisa trilhou.

Em vista disso, em nível da pesquisa bibliográfica referente ao período e

aos respectivos teóricos, a abordagem da temática ocorre no diálogo entre cultura e

literatura, destacando-se a fricção interétnica, a mestiçagem, as culturas híbridas e a

etnogênese. Seguindo a linha de investigação teórica, o estudo aponta o

desenvolvimento, o papel e os impactos da mídia no contexto da indústria cultural,

impulsionado pela globalização e emergência das identidades étnicas.

(MATTELART, 2005).

Por outro lado, os ritos e mitos Pankararu, Geripankó, Kalankó, Karuazu,

Katökinn e Koiupanká foram registrados na etnohistoriografia e na história oral dos

anciãos, com suas estruturas, formação e, posterior, reestruturação no processo de

ressignificação e afirmação da identidade étnica.

A origem e matriz cultural dos povos emergentes encontram seus

elementos fundantes no grupo Pankararu. Sua organização religiosa e base

mitológica estão fundadas nos espíritos dos antepassados, celebrados durante os

rituais religiosos e no cotidiano, como guias que protegem e orientam os membros

das comunidades.

A partir da organização Pankararu, a análise identifica a base social,

cultural e estrutural do imaginário identitário Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn

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e Koiupanká, os componentes do meio ambiente geográfico e simbólico que

possibilitaram a ressignificação mitológica Pankararu no contexto de

desterritorialização e reterritorialização do semiárido alagoano.

No campo especificamente cultural, a continuidade dos Encantados

Pankararu foi possibilitada pela volta permanente dos membros dessas

comunidades indígenas ressurgentes às fontes. Retomam, assim, a ligação e a

reconstrução da organização social e a afirmação da identidade étnica, mesmos

inseridos no longo processo de submersão à cultura sertaneja e ao imaginário

cristão.

O problema central desse processo apresenta-se nos elementos que

perpassam as relações interétnicas entre povos indígenas e a sociedade nacional,

submetidas aos conflitos e às negociações, que condicionaram a negação e

afirmação da identidade e a busca pela recuperação dos respectivos territórios

ocupados anteriomente pelos antepassados. Isto porque, encontra-se no imaginário

indígena do sertão, a relação intrínseca entre o território, os Encantados e a

identidade étnica. No ressurgimento ou etnogênese, a construção política e étnica

sustenta-se na religião dos espíritos dos Encantados que caracteriza a identidade

diferenciada em relação à população do entorno.

Constato, com isso, que os povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn

e Koiupanká reconstruíram étnico, social e culturalmente o imaginário no processo

de reterritorialização, na relação direta com a mitologia Pankararu e a

reinterpretação simbólica, possibilitando a ressignificação no semiárido alagoano,

inseridos em uma sociedade nacional que os marginaliza e não os reconhece em

suas identidades diferenciadas.

A tensão entre os aldeamentos missionários, o expansionismo agropastoril

no sertão e da cultura da cana de açúcar no litoral, provocaram nas populações

indígenas uma relação ininterruptamente conflituosa. A manutenção da identidade

indígena recorreu à negociação com estes três segmentos, como forma de

resistência à submissão (BURSZTYN, 1984). O recurso à tradição oral,

fundamentado na memória dos mais velhos, manteve-se imbricado entre a

apropriação dos elementos da cultura indígena e da cultura sertaneja, da religião

católica e a dos afrodescendentes (SILVÉRIO; PINTO; ROSEMBERG, 2011).

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Aspectos estes que se encontram presentes na organização e luta das comunidades

indígenas pela garantia dos direitos e recuperação dos territórios.

A íntima relação com os rituais e a formação com os guias – entidades

espirituais - Pankararu, possibilitaram a resistência frente à cultura do entorno, como

também a participação de lideranças indígenas no processo de redemocratização do

país na década de 1980 e a reivindicação do reconhecimento dos direitos pelo

Estado brasileiro.

Com o fim do regime militar, os anseios da sociedade civil organizada pela construção de uma democracia plural e participativa levaram à exigênica do fim do „entulho autoritário‟, expressão então usada para denominar os requícios antidemocráticos ainda presentes na legislação e nas práticas do poder público. (LACERDA, 2008, p. 31).

Ademais, este ambiente possibilitou o desenvolvimento da pesquisa

histórica e antropológica e o apoio de organizações indigenistas não

governamentais. Essas ações contribuíram, também, com a visibilidade da questão

indígena em nível nacional e internacional, favorecendo a política de articulação

interétnica e com os movimentos sociais.

A relação mitológica com o tronco Pankararu e as ações políticas

possibilitaram a emergência étnica no sertão de Alagoas frente à cultura sertaneja e

o imaginário cristão. Processo este, instaurado de forma artifical e interesseira pelas

autoridades provinciais, como se constata no texto a seguir: “Imbuídas da tarefa de

„civilizar‟ os índios, as Assembleias Provinciais logo associaram a definição, pela

aparência, do seu pertencimento à „massa da população civilizada, com a

consolidação do esbulho das terras indígenas”. (LACERDA, 2008, p. 13).

A partir dos dados acima, abstraem-se dois elementos fundamentais como

eixos de sustentação da tradição, da identidade e do pertencimento à cultura

Pankararu. Primeiro, o imaginário religioso, fundado na ciência da semente9

Pankararu, que possibilitou a permanente reconstrução do imaginário simbólico e

territorial identificado com as necessidades da reprodução física e cultural.

Nesta „mitopráxis‟, o ritual se configura como uma „ponte‟ entre o passado mítico, o passado histórico e o tempo presente, na perspectiva da inauguração do futuro. A coexistência de

9 Denominação dos Encantados, que aparecem para alguns indígenas, em localidades diversas. Esses indígenas assumem a obrigação de cuidar e zelar dos praiás.

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temporalidades distintas parece ser um traço caracterísitco da atuação „milenarista‟. (POMPA, 2002, p.167).

Em segundo lugar, a etnogênese Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e

Koiupanká sustenta-se no tronco Pankararu, marcado diretamente pela relação de

parentesco familiar e interétnica, vivenciado e alimentado nas práticas dos rituais

religiosos e representado politicamente na relação com a sociedade nacional.

Eles se constituem, em primeiro lugar, como processos de revisão lógica da cosmogonia, em função da refundação de uma nova história (através dos mesmos elementos „míticos‟ com que esta foi fundada illo tempore, frente à necessidade histórica de dar significado ao „outro‟ e ao „eu‟, na nova realidade colonial). (Op. cit., 2002, p.167).

Por último, esses processos fundantes recebem a influência das novas

tecnologias na estruturação do imaginário indígena e na construção da imagem na

sociedade nacional, são apropriados e redimensionados pelos indígenas. (LOPES,

2003, p. 174).

Os imaginários Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká

identificam-se nas raizes mitológicas e simbólicas Pankararu e na construção e

estruturação das imagens de reelaboração e ressignificação dos mitos no processo

de reterritorialização e afirmação da identidade étnica em permanente fricção

interétnica com as demais culturas.

Afirma Pompa:

Neste sentido, parece totalmente inviável a posição metodológica que explica o passado de alguns grupos com o presente de outros, pressupondo a „cultura nativa‟ imobilizada em uma dimensão atemporal, onde o discurso mítico permanece idêntico a si mesmo ao longo de cinco séculos de colonização. (2002, p.1140).

Com isso, identifica-se historicamente a origem étnica dos rituais religiosos

e o processo de ressurgimento dos povos indígenas no sertão de Alagoas, com

base no referencial temático, especialmente sobre o Nordeste, no qual se busca os

conceitos de mito, imagem, símbolo e imaginário no contexto das relações sociais e

culturais.

Na abordagem étno-histórica sobre esses povos, identifica-se também o

impacto civilizatório sobre as populações indígenas do Nordeste, entre o século XVI

e XIX (SUESS, 1992), destacando a invasão dos territórios, o papel das missões no

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aldeamento e a diáspora dos grupos pertencentes ao povo Pankararu. E, no

segundo momento, em consonância com os interesseses dos colonizadores, é

contruída a política integracionista governamental para as etnias indígenas, que

perduraram legalmente até a promulgação da Consituição brasileira de 1988.

1.2 Abordagem etnohistórica sobre os povos indígenas do Sertão de Alagoas no contexto colonização

Neste item procuro identificar na historiagrafia a presença das populações

indígenas do sertão nordestino (MONTEIRO, 1981), apresentando as variadas

formas de ajuntamento, confinamento e dispersão, como também a sua

reorganização política e social. Por outro lado, destaco também as novas

perspectivas de abordagem teórica sobre a realidade histórica e antropológica

Pankararu e as pontas de rama – denominação criada pelos própros indígenas para

identificar os povos ressurgentes.

As primeiras referências históricas sobre os Pankararu ou Pankaru datam

de 1702, citados entre outros grupos, como os Pankaru, Geritacó, Calancó, Umã,

Canabrava, Tatuxi, Fulê. “Uma unidade que está profundamente ligada

historicamente às estratégias de conquista colonial e formação do Estado nacional:

guerras „justas‟, missões e misturas”. (ARRUT apud SILVA, 2009, p.34).

Acossada pelas fronteiras agropastoris e arrebanhada por missionários, a

população indígena ficou obrigada a viver em pequenas glebas de terra. Com o

passar do tempo, os grupos familiares cresceram, a população aumentou e os

espaços territoriais diminuíram, gerando, consequentemente, doença e conflitos.

Diante dessas condições, muitas famílias migraram em busca de novas terras e

trabalho. (HOORNAERT, 1982).

As permanentes e abruptas mudanças provocaram, dentro desses grupos,

profundas desestruturações sociais, migrações e reterritorialização ao longo dos 500

anos de contato com europeus e, hoje, com a chamada sociedade nacional.

Na primeira metade do século passado, surgem iniciativas de uma

abordagem etnográfica sobre as populações indígenas do Nordeste. Refiro-me aos

estudos de Estevão Pinto como etnólogo, publicados a partir de 1935, Os Indígenas

do Nordeste, e, em 1956, com o título Fulni-ô - Os últimos Tapuias. Em 1937,

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comissionado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, realizou seu

primeiro trabalho de campo entre os Pankararu, no aldeamento Brejo dos Padres.

No mesmo patamar metodológico e etnológico, deve também ser ressaltado o

trabalho de Clóvis Antunes, com o documentário: Índios de Alagoas, em 1984, obra

citada no presente trabalho.

Com estes trabalhos, constato um movimento de transição na

etnohistoriografia sobre as populações indígenas, identificando a movimentação

desses grupos, como afirma Silva, a passagem do “índio objeto ao índio sujeito

político”. (2007, p.14).

Em nível geral, essas abordagens estão no contexto da superação do que

os registros, relatos e livros tratam como o Descobrimento10 e a expansão territorial

portuguesa, na perspectiva do conquistador. A historiografia luso-brasileira é farta

quanto a esses fatos, tratando-os como símbolo de progresso e de civilização.

Nesta lógica, os acontecimentos e práticas são enaltecidos como feitos

importantes para o crescimento e desenvolvimento da humanidade, enquanto que a

invasão, o extermínio, a escravização, a imposição de valores e costumes sobre os

povos conquistados são justificados.

E, com isto, à população nativa foi negada a sua história, a cultura, a

religião, os costumes e os valores. E quando os indígenas aparecem na literatura da

época, é de forma estereotipada e etnocêntrica, construída sob uma imagem

genérica e a serviço dos interesses políticos, religiosos e econômicos da sociedade

dominante.

Everardo Rocha, ao analisar a forma como os livros didáticos descrevem

os indígenas, identifica três aspectos sobre como a imagem do indígena é veículada:

O primeiro papel que o índio representa é no descobrimento. Ali, ele aparece como „selvagem‟, „primitivo‟, „pré-histórico‟, „antropófago‟ (...) O segundo papel é no capítulo da catequese. Nele o papel do índio é de „criança‟, „inocente‟, „infantil‟, „almas virgens‟ (...) O terceiro é no capítulo „Etnia brasileira‟ (...) num passe de mágica etnocêntrica, vira „corajoso‟, “altivo”, cheio de „amor à liberdade‟. (2000, p. 17-18).

10 Termo utilizado oficialmente para definir a chegada das caravelas portuguesas, em 22 de abril de 1500, ao Brasil. Portanto, sempre será utilizado neste trabalho referindo-se à chegada dos portugueses, inclusive o que adveio com eles, e será empregado entre aspas ou itálico para designar a invasão e não descobrimento de algo novo.

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Com o obetivo de recuperação e superação da ausência nos relatos

históricos da presença dos povos indígenas anterior à chegada dos portugueses,

cabe lembrar o processo de ocupação territorial, povoamento da América e,

particularmente, do Brasil, envolvendo a presença de milhões de habitantes e

centenas de etnias já presentes no Continente.

Segundo Prezia e Hoornaert,

Ainda não há consenso entre os pesquisadores sobre quando e como chegaram os primeiros grupos humanos na América. Alguns acreditam que tenha sido há cerca de 12 mil anos, enquanto outros defendem uma data bem mais recuada (cerca de 48 mil anos), como Niède Guidon e os pesquisadores de São Raimundo Nonato, no Piauí. (2000, p. 23).

Para Bitencourtt e Ladeira,

A ocupação do território foi sendo feita lentamente, durante muito tempo, por migrações de populações indígenas diferentes que estabeleceram contatos entre si, trocaram experiências, realizando alianças que enriqueceram suas heranças culturais ou, então, fizeram guerras para dominar áreas mais férteis ou de fácil comunicação. (2001, p.19).

Independente das divergências acadêmicas quanto ao início da presença

humana no Brasil, foi, em Lagoa Santa, Minas Gerais, encontrada ossada humana

de 12 mil anos (2000, p. 24). E, também, na pesquisa arqueológica sobre os

sambaquis do baixo Amazonas, realizada pela norte-americana Anna Roosevelt,

foram encontradas cerâmicas de 11 mil anos (Op. cit., 2000, p. 33).

Portanto, as pesquisas arqueológicas notificam a presença humana há

milhares de anos antes da chegada dos europeus. Escrevem ainda Prezia e

Hoornaert:

Por volta de 5 mil anos atrás, o território brasileiro começou a ser ocupado por novas levas migratórias, povos que dominavam uma agricultura simples, horticultura. Algumas plantas já eram cultivadas, como abóbora e pimenta. Outras começaram a ser domesticadas, como mandioca, a bata-doce e o cará. Certos produtos tornaram-se de grande utilidade prática, como a cuia e o algodão, ou passaram a ser usados em rituais, com o tabaco e o urucum (2000, p.31).

Quando de sua chegada o conquistador europeu, para dominar os

territórios indígenas e submetê-los à sua lógica, utilizou-se das mais variadas

formas, a exemplo do genocídio e da escravização da população nativa. Guerras e

expedições foram executadas no período colonial contra as populações indígenas,

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principalmente contra os que resistiram à submissão e defenderam os seus

territórios.

Dentre outros acontecimentos, destaca-se a expedição organizada durante

o governo de Mem de Sá, o terceiro Governador–Geral, em setembro de 1558,

registrado na história como um dos primeiros massacres praticados na região do

Paraguaçu, atual estado da Bahia. O próprio governador comandou um exército de

quatro mil homens que destruiu cerca de 130 aldeias. Fato semelhante aconteceu

com o povo Tupinikim, em Ilhéus, Sul Bahia, em junho de 1559, acontecimento que

entrou para a história como a Guerra dos Nadadores. Registrado em carta do

governador Mem de Sá ao rei Dom João III, informou que por volta das três horas da

manhã entrou numa aldeia e “nenhum Tupinikim ficou vivo e todos os trouxeram à

terra e os puseram ao longo da praia por ordem que tomavam os corpos perto de

uma légua”. (Apud CIMI, 2000, p. 41).

Segundo Prezia e Hoornaert (2000), não se sabe ao certo o total de povos

que ocupavam a América, mas são estimados em torno de três mil. No Brasil eram

mais de mil, com uma população entre três a cinco milhões (2000, p. 44). Esta

população foi reduzida, na década de 1980, a cerca de 200 mil pessoas (CUNHA,

1987). Dentre os fatores causadores do extermínio, segundo a antropóloga Manuela

Carneiro da Cunha, pelos quais a população foi sendo dizimada estão as mortes

ocasionadas “pelas epidemias, pela guerra, pela escravização e, de forma geral,

pelo avanço da fronteira econômica” (1987, p. 19). João Pacheco de Oliveira

constata a ínfima presença indígena que restou na região nordestina: “na década de

1950, a relação de povos indígenas do Nordeste incluía dez etnias”. (1999, p. 11).

Os indígenas foram utilizados como guias, mão de obra e defensores dos

interesses da empresa colonial. Essas ações continuaram e tiveram o respaldo na

política indigenista imperial, com algumas variáveis, que perduram até o final do

século XX, em pleno período republicano. A intervenção é apoiada na concepção de

„civilizar‟ os nativos através da catequese, da escola, da aprendizagem da língua,

dos costumes e dos valores da cultura ocidental, além do incentivo à miscigenação.

(Op. cit., p. 22).

Constato que o interesse principal da política integracionista sempre foi

direcionado para a ocupação das terras e a utilização da mão de obra indígena.

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Como instrumentos dessa política, os governantes engajavam os indígenas nas

fileiras militares e, através da disciplina e da formação, teriam a possibilidade de

inserí-los nos costumes e valores da sociedade brasileira.

Em nível geral, segundo Vasconcelos,

Os indígenas eram retirados de suas terras para servir ao serviço militar e com isso abriam espaço cada vez mais para a ocupação branca. O uso da mão-de-obra indígena era uma prática rotineira na região. O engajamento desses índios às tropas brasileiras fazia-se mediante presentes e promessas de concessão de terras. (1999, p. 43 e 87).

As formas de conquista e dominação dos índios estavam condicionadas às

possibilidades de submissão ao modelo político e econômico do Império. No início

do governo imperial, a política adotada para os considerados índios “arredios” era a

utilização de meios violentos, como perseguição e castigo. No caso dos indígenas

“amigos da civilização”, eram favorecidos com concessões e projetos particulares

(Op. cit., p. 44).

Essas correntes continuaram presentes no século XIX até a segunda

metade do século XX – uma defendia meios violentos e, a outra, meios humanísticos

-, como forma mais adequada de civilizar o indígena. A Lei de Terra - Lei 601, de

18/9/1850, autorizou reservas de terras para a colonização e aldeamento de

indígenas considerados selvagens.

Vasconcelos constatou ainda na legislação indigenista do século XIX, sua

aplicação e consequência:

Num extremo, a corrente defensora do uso da força como medida eficaz para chamar o índio à civilização, que teve Varnhagem como defensor radical, apoiado pela legislação colonial promulgada por D. João VI; noutro, a partidária dos métodos brandos como única saída para o mesmo fim, cujo tutor foi José Bonifácio (Idem, p. 125).

As populações indígenas não tiveram alternativa, enquanto umas etnias

foram extintas ou se dispersaram em busca de espaços, outras foram submetidas

aos interesses econômicos, políticos e religiosos, negociando a convivência com as

forças não indígenas.

1. 3 Missões religiosas: confinamento e proletarização no aldeamento Brejo dos Padres.

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No contexto da empresa colonial, a monarquia portuguesa estava

representada pelos agentes do mercantilsmo e, acompanhando-os, os missionários

católicos. No cenário da ação colonizadora, as missões cumpriram um papel

ambíguo no trabalho junto às populações indígenas. Em nome da fé, os missionários

buscavam almas para o seu domínio religioso, transformando-os em católicos, mas

também em mão de obra, com a proteção violenta dos colonizadores. Padre Pinho,

em missão junto aos indígenas, revela: “(...) pero o qual nos denunciao de ajuntarse

em maiores povoações, porq. não era possível visitar tantas povoações”. (Francisco

Pinto, Carta ao P. Geral. 17 de janeiro de 1600, ARSI, Bras. 3 (1), ff.177-179 apud

POMPA, 2002, p 158). João Pacheco de Oliveira, tratando do papel das missões,

afirma: “eram núcleos coloniais que objetivavam a catequização dos indígenas e a

geração de riquezas para a Coroa e as próprias Ordens Religiosas”. (Op. cit., p. 24).

As atrocidades contra os indígenas, massacres, extermínio e escravização

foram cometidas desde o início da colonização, testemunhadas pelo frei Martinho de

Nantes; registradas em 1706:

Renderam-se todos, sob a condição de que lhes poupassem a vida. Mas os portugueses, obrigando-os a entregar as armas, os amarram e dois dias depois, mataram a sangue frio todos os homens de arma, em número de quase quinhentos, e fizeram seus filhos e mulheres. (...) Os portugueses entraram na cidade da Bahia como triunfadores, apresentando-se ao governador, pedindo licença para a distribuição dos escravos que haviam feito. (Apud CIMI, 2001, p. 41-42).

A linha de atuação aplicada nas populações indigenas pelos agentes da

Coroa e os missionários da igreja é a mesma. O Nordeste, região de primeiro

contato, muitos povos foram violentados, massacrados, exterminados, confinados e

escravizados em nome da civilização e da salvação cristã.

Neste contexto, os aldeamentos tiveram papel importante no processo de

transmissão dos interesses dos colonizadores. As missões cumpriam determinação

da Coroa, desde a sua constituição, organização e utilização dos indígenas no

desenvolvimento da estrutura colonial. Sobre as missões de aldeamento, Lopes

afirma:

A instrução do Rei João III aos Governadores Gerais do Brasil, no que diz respeito aos índios, foi bem clara: aldeiá-los nas proximidades das povoações, nas chamadas Aldeias de El-Rei. Porém, esse tipo de aldeia permitia um contato muito próximo com o colono, que se interessava pelo índio apenas como mão de obra. (1999, p. 155).

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É nesse ambiente que se pode analisar a missão junto à unidade

Pankararu. A presença dos colonizadores provocou a desocupação compulsória dos

povos de seus territórios tradicionais e, conseqüentemente, a desestruturação das

organizações sociais, políticas e étnicas. Os povos foram obrigados a se refugiarem

em espaços estranhos ao seu habitat.

Os grupos arrebanhados pelos missionários foram submetidos à

convivência com etnias de diferentes culturas, línguas e costumes e, em alguns

casos, etnias inimigas históricas. Em regime de confinamento, as missões

possibilitaram inicialmente a proteção das populações indígenas frente aos ataques

violentos praticados por bandeirantes e coronéis11. As aldeias, ao mesmo tempo em

que serviam como espaço para a catequese missionária, tornavam-se também

meios de transmissão da cultura e religião dos missionários em substituição aos

costumes e tradições culturais e religiosas das etnias. Junto a isso, os indígenas

eram preparados para assumir as atividades econômicas do novo sistema, na forma

de mão de obra.

Segundo a autora acima citada, utilizando texto de Julio Pernetta, o próprio

Men de Sá definiu como deveria ser a organização do aldeamento:

As Missões deveriam ter uma organização administrativa como uma vila colonial, com um Meirinho, espécie de autoridade civil escolhida pelos missionários entre os indígenas, que se encarregava da vida na aldeia, isto é, de fazer os outros índios cumprirem as novas atividades: trabalho na roça, idas à igreja, confissões. Era ele, também, que se encarregava das punições quando havia infrações das normas. Para tanto, era eregido um Pelourinho, que também teria a função de „tronco de castigos‟. (Op. cit., p. 156).

À medida que as propriedades agropastoris avançavam sobre os territórios

e população crescia, a convivência interna nas aldeias se inviabilizada cada vez

mais pela pouca terra disponível para o trabalho, provocando conflitos étnicos e

interétnicos, além de fome e doenças. Segundo Prezia, “para abastecer os

aldeamentos que se esvaziavam com doenças, os missionários organizavam

constantes expedições ao interior, para convencer os indígenas a se aldearem,

como forma de fugir à escravidão. Eram os chamados descimentos”. (2004, p. 35).

11Figura que representava o poder econômico e político de uma determinada região, expressa principalmente na posse de grandes extensões de terra.

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Frente aos ataques e impacto econômico e sociocultural, referindo as

populações indígenas do Nordeste, e considerando ser a área de colonização

brasileira mais antiga, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, afirma:

Para as etnias que sobreviveram só existiram dois caminhos: ou buscavam temporariamente áreas de refúgio, algumas vezes coexistindo com quilombos, até que viessem a ser incomodados por novas pretensões territoriais das fazendas e dos pequenos agregados urbanos; ou foram incorporados pelo processo civilizatório – seja insulados (isto é, reunidas, reterritorializadas e disciplinadas pelas missões religiosas), ou colhidas na sua capacidade (i.e., fragmentadas em famílias e coletividades acabocladas ou destribalizadas). (1999, p. 24).

Percebe-se que, com isso, aos povos indígenas do Nordeste restou a

convivência forçada com as missões religiosas, com a povoação do entorno e a

inserção no modelo de sociedade mercantil.

1.3.1 Discurso missionário europeu: a negação do outro na busca da conversão

O presente conteúdo é resultado da análise de trechos extraídos de

discursos de missionários europeus registrados no livro Formação do Leitor

Brasileiro – Imaginário da Leitura no Brasil Colonial, escrito por José Horta Nunes.

São relatos da pregação do cristianismo e das práticas catequéticas dos

missionários junto aos indígenas do Brasil, que se revela partidário de uma

concepção antropológica evolucionista enraizada na matriz eurocêntrica.

Dos textos, analisei os fragmentos do discurso do capuchinho francês Frei

Martinho de Nantes, representativo da pregação da necessidade de conversão das

populações nativas à religião católica. Esta opção é justificada pelo fato de o

religioso ter desenvolvido suas atividades missionárias no Nordeste, particularmente

nas regiões ribeirinhas do Rio São Francisco, espaço habitado pelo povo Pankararu

e descendentes, nos atuais Estados de Pernambuco e Alagoas.

A análise fundamenta-se em uma abordagem antropológica e discursiva,

identificando os elementos econômicos, políticos, culturais, religiosos e ideológicos

que condicionaram a visão da empresa colonial, transmitidas através dos agentes da

colonização. Nesta perspectiva, analiso a matriz discursiva missionária ligada à

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visão eurocêntrica e enraizada no projeto imperialista de dominação econômica,

cultural e religiosa das populações indígenas.

A partir da Análise do Discurso, identifiquei na estrutura textual a

formação literária de matriz europeia veiculada através dos discursos produzidos

pelos agentes da colonização e da evangelização. Além disso, observei que nos

discursos missionários encontra-se embutido o projeto de uma sociedade monolítica

e monocultural, com explícita negação do outro e da diversidade étnica.

Por fim, a análise discursiva demonstra que a leitura de um texto é

necessariamente contextualizada do ponto de vista histórico. No caso dos textos

referentes ao Brasil, deve-se compreendê-los a partir das condições em que foram

escritos, por quem foram escritos e o objetivo para o qual foram destinados. No

cenário da colonização, identifiquei uma literatura de origem variada, com elementos

unificadores da matriz greco-romano e cristã.

1.3.2 Análise sobre discurso missionário

Os registros literários das primeiras décadas de contato dos europeus com

os nativos do chamado Mundo Novo12 se encontram em relatos históricos dos

viajantes, missionários católicos e evangélicos e, até, em reflexões de filósofos.

Dependendo do ponto de vista e dos interesses de cada um, os relatos são

elaborados com algumas variantes e perspectivas.

Os relatos de viajantes e missionários são uma fonte textual complexa, que

compreende diversas instâncias do saber: a política, a ciência, a religião com

diversas modalidades discursivas: descrição, narração, enumeração. A saber, os

relatos dos viajantes André Thevet e Jean de Léry: Les singularités de la France

Antarctique, de 1557 e o de Jean de Léry: Histoire d’un voyage faite em la terre du

Brésil autrement dite Amérique, de 1578. Thevet veio com a expedição de

Villegaignon, em 1555. Léry juntou-se à empreitada, um pouco mais tarde, em 1557.

Thevet narra sua viagem por diversos países: sua saída da Europa, a

passagem pela África e a América e o retorno ao Continente europeu. A narração é

12 Terminologia inadequada do ponto vista histórico, visto que o território encontrado pelos europeus no início do século XVI já se encontrava habitado pelo ser humano acerca de 40 mil anos, com suas organizações, culturas, religiões, costumes e tradições.

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de tom colonialista, retoma todo um imaginário da tradição grega e também

medieval. O mesmo acontece com Léry, ao relatar sua “Viagem à Terra do Brasil”.

Estes textos constroem um imaginário sobre o Novo Mundo, um imaginário

que reúne aspectos heterogêneos da realidade. Estes relatos tornam-se fontes de

referência em certos textos, como os ensaios de Montaigne, escritos de poetas e

muitos outros. Estes conhecimentos sobre o Novo Mundo desencadeiam uma série

de reflexões na Europa, favorecendo assim a produção de um rico imaginário.

Entre 1612 e 1615, houve outra empresa colonizadora francesa, desta vez

no Nordeste do Brasil. Alguns religiosos, missionários capuchinhos franceses, como

Claude d‟Abeville e Yves d‟Évreux, relatam sua viagem e prática catequética entre

os indígenas.

Dois aspectos importantes se destacam nessas duas fontes de produção

do discurso: por um lado, enquanto o discurso dos viajantes se dirige mais aos

europeus, como tivesse como objetivo a confirmação ou crítica, dependendo da

perspectiva, ao modelo de sociedade, interesses políticos e econômicos; por outro, o

discurso dos missionários dirige-se em grande parte para os nativos, com objetivo

claro de conversão e inserção no modelo de cristandade.

Mesmo que os franceses tenham sido expulsos do Maranhão13, os

missionários franceses se fazem presentes em conventos capuchinhos e nas

missões entre os indígenas, sob o domínio do reino português14. Martinho de Nantes

chegou ao Brasil, em 1671, em Pernambuco, onde havia um convento de sua

ordem. Aproximadamente em 1706, o frei capuchinho Martinho de Nantes publica a

primeira edição da Rélation succinte et sincère. A sua presença tinha como objetivo

ajudar na pacificação de indígenas que habitavam junto às redondezas do rio São

Francisco, onde havia sérios confrontos entre indígenas e portugueses na disputa

pela terra.

O relato de Nantes não se reduzia, a exemplo do que aconteceu com

Abbeville e Évreux, às descrições detalhadas da viagem, da descoberta, das coisas

desconhecidas. Nantes se atém com prioridade na narração das missões entre os

13 QUEIROZ, Álvaro. A Igreja e os Sistemas de Governo na História, 2010.

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indígenas, à narração dos conflitos envolvendo sesmeiros, governadores, superiores

religiosos e autoridades do reino.

Os relatos de viajantes e missionários propõem-se a satisfazer essa

curiosidade, a dar prazer aos leitores e a contentá-los com o conhecimento sobre o

Novo Mundo. Era necessário que os viajantes prestassem conta aos superiores

religiosos e aos franceses que faziam perguntas a respeito das Índias Orientais.

A escrita é para os europeus o conhecimento verdadeiro das coisas, em

primeiro lugar, através das Escrituras Santas, depois pelo intermédio da ciência.

Atribuindo aos indígenas a ignorância da escrita, os colonizadores dão um estatuto

aos conhecimentos deles, classificando-os como superstições e falsidades.

Entretanto, é através desses conhecimentos e do discurso indígena, que este é

integrado na tradição escrita.

E, de fato, os selvagens ensinam e recitam a seus filhos os acontecimentos dignos de memória. E nisso passam os velhos a maior parte da noite, depois que despertam, contando história aos mais novos. Vendo-os, julgareis que são pregadores ou mestres em suas cátedras. (Apud NUNES, 1994, p. 82).

Há, pois, um reconhecimento da memória dos indígenas, que é mantida

pela tradição oral. Os indígenas são considerados bons discursadores, mas falta-

lhes a instituição da escrita, que lhes permitiria chegar ao saber verdadeiro. A falta

de uma tradição de escrita nos moldes europeus é argumento, inicialmente, para a

negação aos indígenas da possibilidade interpretativa.

Na perspectiva antropológica, Everardo Rocha, dentre as várias formas

que os livros didáticos descrevem os indígenas, destaco uma: “capítulo da

catequese. Nele o papel do índio é de „criança‟, „inocente‟, „infantil‟, „almas virgens‟

(...)”. (2000. p.18).

No entanto, diferentemente dessa perspectiva, com um olhar renascentista,

o filósofo Michel Montagne, com a presença de um grupo de Tupinambá na França,

coloca a perspectiva de um olhar questionador, interrogando sobre o que os

indígenas pensam dos europeus. (Dos Canibais, Ensaios, Livro I, Capítulo XXXI)15.

15 Neste contexto, do ponto de visto teórico, compreende-se que uma leitura pode ser

valorizada a partir de vários princípios, como a coerência, o prazer, a verdade, a comparação e os interesses políticos, religiosos e ideológicos. A leitura é uma atividade ao mesmo tempo individual e social, mais social porque está sujeita às convenções linguísticas, ao contexto social e à política.

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Partindo dessa visão, interpreta-se que o filósofo coloca no indígena o referencial

questionador do modelo social da soceidade europeia medieval, ao mesmo tempo

em que aponta novas bases de pensamento.

No Brasil, as práticas de leitura estiveram, por longo tempo,

predominantemente ligadas à Igreja, como centro de difusão a escola. Neste

contexto, os discursos dos viajantes trazem uma série de elementos da memória

discursiva europeia; entretanto, não têm uma tradição de leitura com a qual eles

possam se confrontar, pois, não há discurso já instituído sobre os indígenas. A

escrita dos europeus dá-se no contato com o discurso dos nativos.

O fato de haver habitantes quando os colonizadores chegaram, traz

algumas opções para os europeus, entre as quais se destacam duas: conquistar o

território pela força, eliminando as culturas indígenas e suas memórias; ou travar

relações de contato que tragam benefícios para os reinos, num processo de

dominação e transformação política e cultural. As duas opções foram efetuadas,

dependendo das condições políticas, sociais, economias e históricas. E, com isso, a

prática dos missionários traz as condições para a realização de leituras no país a

partir da perspectiva do colonizador. Assim, a memória discursiva abre-se para o

indígena e para os leitores no Brasil.

No caso dos missionários franceses, a empresa colonizadora visa o

estabelecimento de uma colônia francesa no Brasil. Os missionários agem entre os

indígenas para que se forme uma “boa sociedade”, a união entre franceses e índios.

Nós abaixo-assinados, dando voluntariamente nossos bens e nossas vidas em prol do estabelecimento da colônia francesa além da linha equinocial, a serviço do rei, em obediência aos desejos de sua majestade e às promessas de nossos chefes, reconhecendo que só pela disciplina, pela união e a boa conduta entre os índios, poderemos alcançar tão louvável e generoso intento, prometemos, em benefício dessas ações essenciais, fazer tudo o que depender de nossa coragem, constância, observância das leis francesas, obediência, caridade e bom entendimento e ainda tudo o mais que se faça necessário a

Para Kleimam, quando aborda a compreensão de texto escrito, identifica o engajamento do sujeito – leitor que pressupõe a presença de um outro, no caso, o autor. A leitura é um ato social, entre dois sujeitos, leitor e outro, que interagem entre si, obedecendo a objetivo e necessidades socialmente determinados. (1989, p. 10). O leitor ideal para Kleimam é o leitor engajado, o leitor crítico. Um conhecimento prévio ajuda desde na compreensão do conhecimento do outro. Paulo Freire dizia: “A leitura da palavra é somente precedida da leitura do mundo” (1983, p. 8).

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manter em paz e união uma boa sociedade. (A, 21, apud NUNES, 1994, p. 21).

Os discursos dos missionários retomam elementos dos discursos dos

viajantes. Mas o foco temático desses relatos é então a conversão dos indígenas.

Relatam o modo como essa conversão se realiza, os meios utilizados, os efeitos da

conversão, os discursos de doutrinação. A figura do indígena é construída na

relação com a Sagrada Escritura, e, portanto, com uma identidade do leitor religioso.

A história é construída no campo religioso. A origem dos índios é buscada seja nas

profecias, seja na descendência do povo de Adão, no Dilúvio, em alguma referência

ao Senhor e a observação do comportamento depois da conversão.

E isso foi o que disse há muito o profeta Oséias quando, ao prever a conversão dos habitantes das olhas marítimas e de além-mar, afirmou: Post Dominum ambulabunt, quase leo rugiet, quia ipse rugiet, et formidabunt filii maris, et avolabunt quase avis ex Egipto, et quase columba da terre assyriorum: et colocabo eos indomibus suis dicit Dominus.’Caminharão após o senhor e gritará e rugirá como um leão, e ele próprio rugirá; e os filhos do mar se aterrarão e fugirão do Egito, como as aves e as pombas da terra dos Assírios, e eu os porei em suas casas, disse o Senhor‟. (A, 5 apud NUNES, 1994, p. 88).

Mas para converter o indígena, o missionário o considera antes como um

aprendiz, estabelecendo uma relação dele com a escrita e colocando-o na tradição

da leitura dos pagãos. Eles não possuem a técnica de escrita, os meios para

designar as coisas, fazer história e preservar a memória.

Vendo o nativo como alguém a converter, o missionário utiliza-se de

conhecimentos anteriores daquele para poder introduzir os valores europeus. Diante

discurso indígena, o missionário foca pontos de identificação com o discurso

religioso católico. Entre esses pontos, estão: a existência do espírito, a existência de

uma força superior, um conhecimento da criação, a presença de uma posição

política, no caso, os chefes indígenas.

Para explicar o Novo Mundo, os missionários faziam um trabalho

interpretativo totalizador, que compreende desde a descrição do globo terrestre até à

organização de discursos de conversão. A história é construída no campo religioso.

A origem dos indígenas é buscada seja nas profecias, seja na descendência do

povo de Adão, ou no Dilúvio.

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Diz Platão no „Livro dos Convivas‟ que os primeiros homens foram gêmeos e que se separaram quando Pandora descobriu o pomo da desgraça. Parece-me que o mesmo querem dizer os nossos índios tupinambá quando contam, o que ouvi dos mais velhos dentre eles, que anteriormente ao dilúvio eram uma só a sua nação e a nossa, que todos descendemos do mesmo pai mas que eles são os mais velhos e nós os mais moços. Dizem que depois do Dilúvio nós fomos separados deles e passamos a ser os mais velhos porque o avô deles não quisera receber a espada do profeta que Deus lhe enviara. (A, 7 apud NUNES, 1994, p. 89).

Nesse dilúvio, a “Arca Mística da Igreja Católica, Apostólica e Romana”, se

livra do dilúvio universal da danação eterna. E quem salva as pombas, os exilados,

os tupinambá é o Noé que abre as portas da Arca, isto é, a França.

Ó France!, A ti filha mais velha da Igreja é que elas se dirigirão como a um novo Noé! Rogar-te-ão, de joelhos em terra e lágrimas nos olhos, que lhes abras as portas e lhe estenda as mãos. (A, 6 apud NUNES, 1994, p. 89).

O missionário identifica o bem no discurso indígena, ele parte de um

conhecimento sobre a língua do sujeito, no contexto indígena:

Existe, entretanto, entre eles, algum conhecimento de um deus verdadeiro, como se percebe do discurso de Japi-açu referido no capítulo XI, onde o leitor, se quiser, poderá encontrar alguns pormenores sobre as crenças desses índios. Em sua língua chamam a Deus Tupã; quando se verificam trovoadas, afirmam que Deus as envia, dando a denominação do trovão Tupã-remimonbã, „Deus fez

isso‟. (A, 323 apud NUNES, 1994, p. 90).

Mas, por um lado, se constrói a posição da autoridade divina; por outro

lado, se constrói a posição de representante do diabo:

É preciso saber que esses curandeiros são personagens de que se utiliza o Diabo para manter viva a superstição dos índios; são muito estimados, entretanto, por esses bárbaros que lhes dão o nome de pajé, curandeiro. (A, 325 apud NUNES, 1994, p. 91).

Os pajés fazem também predições; eles são localizados, então, em uma

posição interpretativa que eles vão falar com Tupã. “Só ao trovão chama Tupana,

que é como quem diz coisa divina. Assim, não temos outro vocábulo mais

conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus do que chamá-lo Pai Tupana”.

(NÓBREGA, in Leite, 1954-1957, I: 150 apud POMPA, 2003, p. 45). Ou, ainda,

segundo a mesma autora: “assinalamos, também, mais um „filtro tupi‟ na narrativa a

respeito da esfera religiosa dos „Tapuia‟, análoga a „Tupã‟, e „Pai Grande‟”. (Op. cit.,

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p. 363). Os missionários procuram forma d eadaptção da mensagem cristã à cultura

indígena, identicando a capacidade interpretativa, mas, com os companheiros, agem

com um discurso de desmoralização da figura do pajé, que produz no discurso um

efeito de apagamento da memória do indígena, com o abandono de suas crenças.

O missionário, em sua metodologia catequética, salienta as qualidades

naturais dos índios:

Mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se diariamente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros bens do país; e prezam de tal forma essa virtude que morreriam de vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que possuem; e com a mesma liberalidade tratam os seus aliados. (L, 330 apud NUNES, 1994, p. 95).

O mesmo processo pode ser encontrado quando se leva em consideração

o aspecto moral, com valores representados pela obediência, a piedade, a caridade,

sob o prisma da natureza:

Eles são muito liberais no início, diligentes na caça e na pesca, a fim de vos contentar e ganhar vossa afeição pra obter mercadorias, mas evitai dar tudo no início, pois não os terás sempre em exercício. Presenteai-lhes cada mês com uma coisinha. (E, 222 apud NUNES, 1994, p. 96).

O discurso de conversão se apresenta como aquele que transforma em

uma linguagem nova.

Eles falarão novas linguagens. Certamente nossos selvagens do Maragnan falam uma linguagem bem nova, pois ninguem antes de nossa missão senão esse marata Ancião, quer dizer um dos Apóstolos de IESUS-CHRIST do qual falamos mais acima, lhes ensinou a falar como eles falam agora, a saber, professando o cristianismo, recitando o Símbolo dos Apóstolos, Arobiar Toupam, falando a Deus pela Oração Dominical, Orerouue, dirigindo suas vidas e ações segundo as leis de Deus, ymoeté yepé Toupame segunda as leis da Igreja, Are maratecouare chumé &c., lavanda e fortificando suas almas pelos S. Sacramentos. Iemongaraïue& c. (E, 313 apud NUNES, 1994, p. 97).

A caracterização desta língua nova mostra uma relação do indígena com a

leitura: isto é, repetir unidades textuais estereotipadas, dentro de uma situação

ritualística, e também seguir uma conduta moral a partir desses conhecimentos.

A prática do missionário assenta-se sobre o princípio didático da imitação.

Eles fazem os indígenas repetirem suas palavras, ações e exemplos. Para batizá-

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los, por exemplo, os missionários exigem marcas e provas de seu desejo. Importa

que eles recitem as orações e repita os textos religiosos.

Guardávamos uniformemente o método de não batizar nenhum adulto antes que desses sinais e provas de seu desejo de tornar-se cristão elo fidelidade às práticas respectivas, de forma que queríamos ter cristãos pelas obras antes que pelo nome. (N, 40 apud NUNES, 1994, p. 98).

A língua indígena antes da conversão é a língua do diabo de Jurupari: a

língua falada pelos antepassados, pelos feiticeiros, pelos pajés. A língua nova é a

língua de Deus, de Tupã, dos padres e dos indígenas convertidos. Os discursos de

conversão são feitos em latim, português, francês, mas principalmente em língua

indígena, que os missionários aparecem para o uso na conversão.

1.3.3 O discurso de conversão: religião e interpretação

Existem pontos de identificação do discurso indígena com o discurso

religioso católico. Entre esses pontos estão: a existência do espírito, a existência de

uma força superior, um conhecimento da oração, a presença de uma posição

interpretativa (os pajés) e a presença de uma posição política (os chefes indígenas).

A partir desses pontos nodais se desenrola o discurso da conversão, que

promove um percurso, entre a memória indígena e a do europeu, a Palavra de Deus

tem outras vias interpretativas.

A partir do texto bíblico o missionário utiliza para explicar a realidade, como

se observa no trecho a seguir:

E isso foi o que disse há muito o profeta Oséias quando, ao prever a conversão dos habitantes das ilhas marítimas e de além-mar, afirmou: Post Dominum ambulabunt, quase leo rugiet, quia ipse rugiet, et formidabunt filii maris, et avolabunt quase avis ex Egipto, et quase columba da terre assyriorum: et colocabo eos indomibus suis dicit Dominus. ‘Caminharão após o senhor e gritará e rugirá como um leão, e ele próprio rugirá; e os filhos do mar se aterrarão e fugirão do Egito, como as aves e as pombas da terra dos Assírios, e eu os porei em suas casas, disse o Senhor‟. (A, 5 apud NUNES, 1994, p. 88).

Esses fragmentos de textos que predizem os acontecimentos – conversão

dos habitantes das ilhas (...) -, com uma visão catastrofista – os filhos do além-mar

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se aterrarão e fugirão do Egito - são explicados, em seguida, de acordo com a

interpretação do missionário:

Discurso em verdade admirável! Quem são esses banidos e exilados no Ocidente senão esses pobres índios Tupinambás da ilha do maranhão e terras circunvizinhas que, para fugir à crueldade e à tirania de seus inimigos, viram-se forcados a deixar sua pátria e as regiões em que nasceram para refugiar-se nessas ilhas marítimas e plagas próximas do mar em que se encontram agora? (A, 6 apud NUNES, 1994, p.88).

A origem dos indígenas é procurada nas profecias. A história é construída

no campo religioso, com base em profecias - os filhos do mar se aterrarão e fugirão

do Egito -, em metáforas - as pombas da terra dos Assírios. Os fatos históricos são

contextualizados no discurso religioso, por meio de versões de texto religioso em

conformidade com os conhecimentos dos índios. Encontram-se muitos versos da

criação e do dilúvio, tanto da parte indígena, como por parte dos europeus.

O missionário reconhece o seu ensino na nova linguagem indígena:

Eles falarão novas linguagens. Certamente nossos selvagens do Maragnon falam uma linguagem bem nova, pois ninguém antes de nossa missão senão esse Marata Ancião, quer dizer, uns dos apóstolos de IEJUS-CHRIST do qual falamos acima, lhes ensinou a falar como eles falam agora, a saber, professando o cristianismo, recitando o Símbolo dos Apóstolos, Arobiar Toupan, falando de Deus pela Oração Dominal, Orerouue, dirigindo suas vidas e ações segundo as leis de Deus, ymoesté yepé Toupan e segundo as leis da Igreja, Are maratecouare chumè Ec., levando e fortificando suas almas pelos S. Sacramentos. Iemongaraïue Ec. (E, 313 apud op. cit., p. 97).

O discurso do missionário é apropriado pelo indígena, ressignificado nas

condições históricas e sociais dos atores e interlocutores,

Ave Maria, adoro! Pade Damião é um ministro de Deus. Tem muita gente que diz palavrão, mas, ô meu Deus! Que, que pena que elas num sabe, né? Num sabe que Pade Ciço é um ministro de Deus ai eu num.. Pade Damião também. Mas o povo... tem muita gente que descrente, né? (IRACEMA, 2012, p. 12).

Lugares de onde são produzidas as relações discursivas inseridas

situações complexas de negação, aceitação, submissão e afirmação da identidade

étnica. Escreve Nunes:

Os textos produzidos na situação de contato, tal como se apresentam nos relatos, constituem um imaginário oral do Brasil. Os europeus perguntando aquilo que lhes convém e os índios

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respondendo o que agrada àqueles, em uma comunicação mostrada como complemento bem sucedida. (Ibidem, p. 101).

1.4 Formação do aldeamento Pankararu

A formação do aldeamento de etinômio Pankararu, composto também por

Kararúzes, Tacarubas, Porus, Umã, Vouves e Jeritacó, remete a período bem

anterior ao datado pelos relatos documentais de 1702, provavelmente no século

XVII, na Ilha de Surubabé, às margens do rio Pajéu, afluente do rio São Francisco. O

aldeamento, administrado pelos jesuítas, recebeu a denominação de Nossa Senhora

do Ó. (BARBALHO apud OLIVEIRA, 2004, p.11).

O aldeamento atual, denominado Brejo dos Padres, data do século XIX,

criado provavelmente pelos padres Oratorianos ou Capuchinhos. Segundo Silva,

Há notícias dos últimos remanescentes indígenas que viviam selvagens no sertão de Pernambuco, sendo cristianizados, no início do século XIX, por Frei Vide Frescarolo, num lugar conhecido como Brejo, nas ribeiras do Moxotó. (2007, p. 66).

Ainda, segundo o mesmo autor, utilizando citação de Arruti, afirma:

O aldeamento do Brejo dos Padres constitui-se como fruto da estratégia de desterritorialização e reterritorialização, que levou a um movimento de divisão e/ou concentração dos diferentes grupos étnicos num mesmo espaço. (Apud., op. cit., 67).

Segundo a indígena Maria do Carmo de Oliveira, membro da etnia

Pankararu, “a aldeia foi doada em carta Régia pelo Imperador Pedro II, formando

quatro léguas em quadro, num total de 14.294 hectares”. (Op. Cit., p. 11). Território

que foi invadido por criadores de gado e pequenos posseiros. Com o

reconhecimento oficial do grupo pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o território

Pankararu foi reduzido na primeira demarcação, em 1941, para 8.100 hectares.

Essa parte foi homologada em 1987, enquanto que os outros 6.194 hectares

encontram-se identificados e em processo de reivindicação pelas comunidades

Pankararu sob a liderança da cacique Hilda16 da aldeia Entre Serras. “Aqui é uma

terra sagrada, mantemos nossa tradição, nossos terreiros sagrados. Terra indígena

é aquela terra onde nós nascemos e se criamos; era de nossos antepassados,

bisavós, avós, pais e até hoje é”. (Apud PORANTIM, 2012, p.14).

16 Hilda Bezerra Barros, 73.

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Antes do processo de cristianização, segundo relatos transmitidos pelos

indígenas mais velhos, eles viviam da caça e pesca, desenvolviam a agricultura de

autossustentação, articulados e celebrados nos rituais religiosos, inseridos na

cosmovisão.

No contato dos colonizadores, o território sofreu a invasão e as populações

que foram submetidas ao confinamento e obrigadas a conviverem geográfica e

culturalmente sob o domínio da catequese e dos senhores de fazendas. Com a

retirada dos povos, as terras foram ocupadas com pecuária, principalmente a região

da bacia do rio São Francisco.

A perda da terra e o crescimento populacional provocaram o aumento da

fome e dos conflitos internos, inviabilizando a permanência de diferentes grupos

étnicos em um mesmo espaço. No final século XIX, muitas famílias Pankararu

migraram em busca de terras para trabalhar e reproduzir-se culturalmente, juntando-

se a outros parentes em vários Estados do país afora, a exemplo de São Paulo,

Bahia, Minas Gerais e Alagoas.

O povo Pankararu mantém contato com a sociedade nacional há mais de

400 anos. A população atual está estimada em cerca de 5.000 mil pessoas,

distribuídas em 17 aldeias distintas no interior do território, tendo como centro a

aldeia Brejo dos Padres.

Considerando o longo contato com a sociedade nacional e o impacto

sofrido com a perda do território e suas organizações socioculturais, Athias constata:

Não obstante, toda essa situação percebe-se um sentimento muito forte de identidade manifestado em festas tradicionais como as celebrações do Toré, as celebrações do Menino do Rancho e a Festa da corrida do Imbu celebradas anualmente na Reserva Indígena. (2002, p. 185).

Todas as manifestações culturais e religiosas estão organizadas a partir

dos Encantados – entidades espirituais que protegem e orientam a vida do

Pankararu. Mesmo tendo sofrido enfretado todas as conseqüências do processo

civilizatório colonizador, o povo Pankararu conseguiu manter e praticar as tradições

culturais e religiosas dos antepassados. Como relata Maria das Dores Oliveira:

Embora a ação missionária tenha sido efetiva, que permite que a maioria se autodefina como católica, seguidora do cristianismo, cultue Santo Antônio (padroeiro), promova missas, casamentos e batizados na igreja, com igual fervor é vivenciada a religião

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Pankararu, presente em várias situações como a festa do Menino do Rancho, corrida do Imbu, além de outros rituais realizados praticamente durante todo o ano, de acordo com a necessidade ou a vontade de quem queira promovê-los, podendo este acontecer ao mesmo tempo em várias casas ou aldeias. (Op. cit., p. 14).

Além da permanente vivência interna dos rituais, muitos pankararu levam

suas experiências religiosas para outros povos do Nordeste (CRUZ, 2004). Assim

fundamenta a sua penetração religiosa entre outros povos:

Culturalmente, somos guardadores de Sementes. Trata-se de uma herança ancestral que procuramos manter com muito cuidado. Ser possuidor de uma semente é algo valioso, pois somente algumas pessoas podem possuí-las. Na concepção Pankararu, a Semente tem vontade própria. É ela que elege seu zelador. (Idem., p. 6).

E completa,

Assim como as sementes „caminham‟ e procuram outros zeladores, muitos Pankararu costumam migrar para várias comunidades e, inevitavelmente, levam suas crenças e valores ancestrais. Por ser assim, talvez, subconscientemente, temos a necessidade de „semear‟ cultura como forma de mantê-la cada vez mais viva, pois mesmo que o „novo grupo‟ venha a dar-lhe uma outra conotação, estará lá, sempre, uma parte da memória Pankararu. (Ibidem., p. 7).

Sobre o assunto, transcrevo entrevista que relata o meu diálogo com o pajé

António Karuazu:

Jorge: Tonho, como é que você descobre que aquela semente... é o Encantado que fala pra você? Antônio: Jorge, ele num... por uma parte que tem acontecido aqui, eu vi porque foi acontecido, né! Jorge: hunrum. Antônio: Ele, ele vem gostoso, tão fino assim... quinem essa noite tava tão... porque a todo mundo ele num pode tá dizendo, né?! Jorge: Claro. Antônio: Mas ele é tão importante que os daqui mesmo, foi ticido a roupa dele e eu fui pro Brejo da Madrinha Aninha que ela tem muita experiência, aí levei a semente pra ela, quando ela pegou, que dixi: - é meu fio! Pra ela dizer o nome dele que eu não sabia o nome dele. Que vamos batizar ele. Você acompanhou aqui no dia do batizado aqui, da abertura num foi? Jorge: hunrum. Antônio: Na mesma semana foi um dia de domingo. Aí ele dixe, rapaz porque tá próximo, mais batizar ele... como é que batiza uma pessoa sem saber o nome? Jorge: Hunrum. Antônio: Aí ela dixi: - Meu fio! Foi um dia de domingo. Meu fio, vá pra casa. Ela quem disse, vá pra casa quando chegar lá ele vai dizer o nome, ou a você, ou a Galega, agora você a partir de hoje você

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separe da sua muié, separe! Galega druma prun canto e você durma pra outro. Separa que ele vem dizer o nome dele! Ai nisso foi o que aconteceu, quando foi num dia de quinta-feira, separei do domingo Galega drumindo prun canto e eu drumindo pra outro. Quando foi domingo, vôte! Quando foi quinta-feira, aí ele chegou e disse o nome dele a Galega! Jorge: Hunrum. Antônio: Que é dela, né! foi dada a ela, que...faz premero ela contano. Primeiro veio o dono que deu a ela. Que o dono que deu essa semente a ela, foi, foi... chamar era, era..Antão. era que dava. Aí primeiramente ele tava nos traje que ele usava, ele já faleceu, mas num foi nos traje de falecido, foi nos traje de vivo. Jorge: Hunrum. Antônio: Com um chapéu de laça ou roça na cabeça, e... camisinha eita! era preta que ela disse, cacinha branca e o chapéu de marca. Ela dixi que quando chegou ela tava só esperando, quando tava em pé ali, aí... eu foi mais ela aí perto daquele jardim, né! que é tanta flor, aquelas rosas mais linda do mundo! Que ela só dá rosa, aí levou ela naquele jardim, aí eu fui mais ela, quando chegou...aí tava o... home, tava em pé, aí tava aquele parzinho do lado dele. Aí ele dixi: - Ói, o meu nome chama KANKARAREZINHO! Dixi três vezes a ela. E tinha o outro que ela não sabia o nome que era finado Zé do Carmo, aquele veio. E... ai ele dixe: - e o nome do meu irmão é KATRIAZINHO. Foi dois a vontade que... foi os dois. (ANTÔNIO, 2013, p. 34).

É assim que os membros do povo Pankararu explicam a penetração

cultural em outros povos e a organização de novos grupos. Constata-se que, nos

cinco séculos, de diferentes maneiras e períodos, as forças econômicas expulsaram

a população nativa e se apropriaram para explorar a riqueza, com a extração de

borracha, da madeira, na construção de rodovias, de hidrelétricas, e na produção de

grãos, da cana de açúcar e da pecuária. Essas terras, depois de 1850, foram

consideradas devolutas para atender à lógica expansionista, sendo transferidas para

municípios e particulares.

Até recentemente, na perspectiva das políticas públicas, esses povos não

existiam mais ou estavam destinados ao desaparecimento, a ponto de autoridades

governamentais definirem prazos para a aculturação na sociedade e a sua extinsão.

A título de exemplo, em 1978, o ministro do Interior, Rangel Reis, preveu que em

dez anos o fim das populações.

Contrariando a lógica integracionista da política indigenista oficial – a

perspectiva de redução e extinção -, os povos indígenas do Nordeste, desde a

década de 1940, procuram meios para afirmar a identidade em nível nacional e

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internacional. E com o crescimento populacional e a estruturação de organizações

internas, fortaleceram a reconstrução da identidade étnica e novas formas de

articulação interétnica. A partir desse processo, a quantidade de povos e a

população não pararam de crescer (OLIVEIRA, 1999).

A desestruturação do território no aldeamento Brejo dos Padres ocorreu

com divisão das terras em lotes para as famílias Pankararu, tratada pelos indígenas

como o tempo de linhas. Para os estudiosos, talvez esse fato tenha sido o fator

determinante para impulsionar a diáspora Pankararu, junto com a perseguição de

fazendeiros e coronéis. Com a falta de terra, ocasionou a fome, doenças e o

acirramento dos conflitos internos, provocando a saída de muitas famílias.

1.5 Colonização em Alagoas: franceses, portugueses, holandeses

O historiador alagoano Douglas Apratto, em seu livro A presença

holandesa – A História da Guerra do Açúcar vista por Alagoas, registra a presença

de portugueses, holandeses e franceses no território brasileiro, o contato com os

índios e a disputa pela mão de obra indígena e suas terras. Os holandeses, dirigidos

por Maurício de Nassau, implantaram novas tecnologias, artes, urbanização, fortes,

produção e comércio utilizando o trabalho indígena e africano. “Alagoas, então

periferia do núcleo político-administrativo principal, participou ativamente dos

desdobramentos dessa ocupação batava e é necessário que a memória desses

fatos seja feita também sob a ótica alagoana”. (TENÓRIO, 2013, p. 19).

As etnias indígenas aparecem no período Colonial, no Império e na

República sempre como objeto de disputa econômica, política e ideológica das

classes dominantes. (Op. cit., p. 62-63). Em nível religioso, identifica-se que desde o

início da colonização os padres Jesuítas levaram a evangelização para os nativos:

Os Jesuítas organziaram entradas com a finalidade de recrutar índios. Os seus trabalhos nos colégios, nas entradas e aldeias, foram, conforme Monsenhor Cícero Vasconselhos: „Os Mestres, os civilizadores, os bandeirantes das almas, sob os céus de Pátria‟. (MÉRO, 1995, p. 21).

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E completa: ”Rio São Francisco que foi, inegavelmente, o caminho que

levou o EVANGELHO ao sul da Capitania de Pernambuco (Território alagoano),

entendendendo-se pelo sertão” (Op. cit., p. 23).

De forma inquestionável, identifica-se em todos os momentos da história

oficial a presença indígena, e, dependendo da perspectiva política ou religiosa, é

tratado como selvagem, infiel e objeto da civilização ou dominado servindo de

coadjuvante em atividades desenvolvidas por senhores de engenho, religiosos ou

bandeirantes.

Na história da colonização do território brasileiro, as etnias indígenas são

inseridas, e mais especificamente as localizadas no Nordeste, por cronistas,

religiosos, viajantes, historiadores e antropólogos no projeto colonial português como

objeto caracterizado pela exploração, escravização, assimilação, dominação,

servidão, militarização, catequese, cristianização, desapropriação dos territórios,

extermínio e mão de obra na perspectiva do aldeamento. (VIEIRA, 2009).

Neste contexto, a empresa colonial expressa duas faces da mesma moeda:

a dominação política e a religiosa. Dirceu Lindoso, afirma:

A tipologia das aldeias indígenas submeteu-se sempre aos interesses dos colonizadores e aos objetivos da colonização. O que interessava era a desapropriação das terras indígenas, onde seriam implantadas as empresas coloniais. Acontece que essas terras disponíveis se encontravam no espaço da precedência indígena, e por isso era preciso modificar esse estado de precedência, convertendo-o de estado social natural em estado social provocado, isto é, em terras sesmeiras. (2005, p.132).

E continua:

Na carta que enviou a Tomé de Sousa, datada de 5 de julho de 1559, o padre Manoel da Nóbrega mostra o que foi a política repressiva de sujeição dos índios executada pelo governador-geral Men de Sá, definindo-a como a conversão „por paz ou por guerra‟(Idem, p. 131).

Na região sul da Província de Pernambuco, atual estado de Alagoas, os

grupos indígenas foram submetidos à lógica da colonização17 e inseridos na

catequização18, resultando na espoliação dos territórios, desaparecimento de grupos

17 “Nos meados do século XVI teve início a conquista do território alagoano ao íncola, que resistiu de tacape em punho, aos invasores lusos”. (ALTAVILA, 1988, p.16). 18 Na visão dos religiosos, os indígenas são definidos como tabula rasa, que devem ser incutido o conteúdo mínimo da civilização, para que possam viver de acordo com as leis, regras e ritos cristãos. (POMPA, 2002, p. 259).

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étnicos, restando apenas algumas refências étnicas diluídas com a denominação de

caboclo, nos municípios de Porto Real do Colégio e Palmeira dos Índios,

respectivamente, os grupos Kariri-Xokó e Xucuru-Kariri.

1.6 Conjuntura social e política brasileira no período do ressurgimento étnico dos povos indígenas em Alagoas.

Durante a abertura política do Brasil, no final da década de 1970, os

movimentos sociais, organizações populares e partidos de esquerda começaram a

se organizar e ter papel político importante na reconstrução da democracia. Neste

contexto, com o apoio da Igreja Católica, organizações da sociedade e professores

universitários, os povos indígenas fortaleceram suas organizações e a articulação

interétnica.

No cenário internacional, foi realizada a Primeira Conferência Internacional

dos Povos Indígenas, em Port Alberni, Colúmbia Britânica, Canadá, de 27 a 31 de

outubro de 1975, marco importante para o apoio e fortalecimento da luta dos povos

indígenas. (SUESS, 1989). Em nível nacional e regional, foram realizadas grandes

assembleias e mobilizações em defesa da terra e dos direitos constitucionais. O líder

Guarani-Nhandeva, Marçal de Souza, em 1980 – assassinado em 25 de novembro

de 1983 por fazendeiros do Mato Grosso do Sul -, por ocasião da visita do papa

João Paulo II ao Brasil, expressou indignado:

Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, nossos territórios são invadidos... Dizem que o Brasil foi descoberto; o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre. O Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história (Apud CIMI, 2000, p. 5).

Neste contexto político, a mobilização da sociedade brasileira em torno do

movimento Diretas Já, em defesa de eleições diretas para presidência da República,

e a participação indígena no processo constituinte, foram fatores importantes para o

reconhecimento dos direitos indígenas.

A primeira grande presença indígena junto à Subcomissão das Populações Indígenas ocorreria já na reunião seguinte, em 22 de abril de 1987, por ocasião da apresentação da Proposta Unitária relativa aos direitos indígenas. Cerca de 40 lideranças indígenas, dos

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povos Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó (PA/MT), Xavante (MT), Terena (MS) e alguns Xingüanos (MT) dirigiam-se para acompanhar a sessão. (LACERDA, 2008, p. 56).

Momentos relevantes na vida e no destino dos povos indígenas do Brasil,

entre os anos de 1987 e 1988, que culminou com a garantia dos direitos

constitucionais, o fim da tutela e o reconhecimento dos territórios tradicionais. (CF,

1988, artigos 231 e 232).

Como indicado anteriormente, os povos indígenas de Alagoas, até a

década de 1980, foram reduzidos, segundo os órgãos governamentais e a opinião

pública, a dois povos: Xucuru-Kariri e Kariri-Xokó. Nos dois municípios onde

estavam localizados os povos, Palmeira dos Índios e Porto Real do Colégio, foram

instalados Postos do SPI e, posteriormente, da FUNAI, como centros de assistência

e atendimento, principalmente nas áreas de educação e saúde. A Reserva dos

Kariri-Xokó – denominação criada pela política segregacionista do Marechal Cândido

Rondon para a institucionalização da demarcação das terras indígenas no Brasil -,

tornou-se referência política e religiosa importante para articulações políticas e

práticas religiosas de diversos povos, particularmente no período do o Ouricuri –

lugar sagrado -, onde os indígenas se concentram em determinados períodos do

ano.

O Ouricuri tornou-se espaços de resistência e de desintoxicação da cultura

ocidental e do sistema capitalista. O referencial geográfico e simbólico do Ouricuri

exerce papel fundamental no fortalecimento da afirmação da identidade étnica e é

fator que impulsiona a luta pelo reconhecimento e garantia dos direitos,

especialmente da demarcação dos territórios tradicionais.

Segundo relatos dos mais velhos, a exemplo do cacique do povo Xokó,

Cícero de Souza Santiago, mais conhecido por Cíço Daruanda, desde o início do

século passado lutam pelo reconhecimento étnico e pela demarcação da terra.

Relata que saiam da aldeia de Porto Real do Colégio, quando ainda tinha 18 anos,

acompanhado pelo antigo pajé Francisquinho, passavam por Palmeira dos Índios,

onde se encontravam com o cacique e o pajé do povo Xucuru-Kariri,

respectivamente, Alfredo Celestino e Miguel Celestino, para dançar o toré - dança

realizada nos rituais religiosos, nas festas e nas apresentações culturais nos centros

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urbanos - na Cafurna de Baixo, e, depois, seguiam para Bom Conselho,

Pernambuco, a procura do apoio do padre Alfredo Dâmaso (SANTIAGO, 2000).

Essa realidade vai se manifestar com maior intensidade a partir da

segunda metade da década de 1970 e início de 1980. Apoiados na memória dos

mais velhos, participando de momentos coletivos, com apoio pesquisadores e

entidades não governamentais , aparecem em Alagoas para o cenário local e

nacional reinvindicando o reconheciemnto étnico e a demarcação da terra os povos

Wassul-Cocal, no município de Joaquim Gomes; Tingui-Botó, em Feira Grande;

Karapotó, em São Sebastião; e Geripankó, em Pariconha. E, a partir de 1998, no

Sertão de Alagoas, Kalankó, Água Branca; Karuazu e Katökinn, Pariconha; e

Koiupanká, Inhapi.

Utilizando o título do livro organizado pelo antropólogo João Pacheco de

Oliveira, estes povos fizeram a “Viagem da volta” (1999). Com o sofrimento

decorrente da inserção forçada na sociedade ocidental e o conhecimento que

adquiriram, seus objetivos estão voltados para a afirmação cultural, para a

organização das comunidades e recuperação dos territórios tradicionais.

No cenário alagoano dominado pela força do capital, do latifúndio

(TENÓRIO, 2009) e da monocultura açucareira - os povos praticam outras culturas19

-, a terra para estes povos tem importância fundamental no processo de afirmação

étnica, na reelaboração e continuidade das tradições religiosas. O espaço físico não

é somente um espaço geográfico para o indígena, mas é o lugar de reprodução

física e cultural. Para Silva, “a relação do índio com a terra e o sagrado inventa uma

coletividade étnica e reivindica a tradição de uma família, Geripankó-Pankararu”.

(Op. cit., p.79).

Os povos indígenas do Sertão de Alagoas buscam, através da recuperação

da memória dos mais velhos e do processo de formação sobre os direitos indígenas,

19 “Antes mesmo da chegada das caravelas de Cabral, o algodão já era conhecido em toda a América do Sul, sendo cultivado pelos índios na Terra de Santa Cruz. Tanto em Alagoas, que seria a capitania de Pernambuco, como nas capitanias vizinhas, manifestava-se como produto nativo do exemplar arbóreo por eles utilizado na fabricação de material de caça, e pesca, de cordas, de objetos caseiros, de redes de dormir, na alimentação e na cura de certas moléstias”. (TENÓRIO, Douglas Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e as vilas operárias. Maceió: Edufal, 2013).

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conhecer e repassar para suas comunidades, especialmente crianças e jovens, os

direitos históricos e constitucionais.

Constato que, nos últimos decênios, os povos indígenas conseguiram

reverter o processo de depopulação e de desaparecimento das etnias. Fenômeno

este fortalecido a partir da articulação interétnica e das alianças com setores

estratégicos da sociedade, como os movimentos sociais e organizações não

governamentais. Além de numericamente ter ampliado a quantidade de etnias, os

povos do Sertão têm conquistado, paulatinamente, o reconhecimento da sociedade

e pressionado o governo Federal para que seja posto em prática o que determina a

Constituição Federal de 1988 sobre a garantia dos direitos, visto que são elementos

fundamentais na construção da autonomia.

Mapa oficial do Estado de Alagoas com a identificação e localização dos povos indígenas reconhecidos até o ano de 2002. (FONTE: Imprensa Oficial).

1.7 Práticas religiosas Pankararu e os povos do sertão de Alagoas

As práticas religiosas dos Pankararu tornaram-se comuns e fonte para os

seus descendentes em Alagoas que, à exceção do ritual dos Pássaros, assumiram a

Flexada do Imbu, a Puxada do Cipó, o Menino do Rancho, a Mesa e os vários rituais

de cura, celebrados com a semente dos Encantados, a dança dos praiás e a dança

do toré.

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As regras estabelecidas são vivenciadas de acordo com o calendário

religioso Pankararu referentes aos dias que antecedem as cerimônias, como a

preparação específica dos Praiás - Homens cobertos da cabeça aos pés com roupas

fabricadas com fibras do cipó crauá, escolhidos especialmente pelas entidades

religiosas protetoras da comunidade, os Encantados.

Para cada ritual há uma preparação específica de no mínimo os três dias

que antecedem o ritual, quando os homens são submetidos à abstinência sexual, a

não ingestão de bebida alcoólica e a tomar banhos com ervas para a purificação do

corpo dentro do Poró - lugar de acesso exclusivo aos homens, durante o período de

preparação e nos dias dos rituais -, regras que são obedecidas até o encerramento

das atividades. Na abertura de cada atividade celebrativa, os Praiás cruzam o

terreiro por nove vezes até exaustam, com danças intercaladas durante a noite do

sábado e o dia de domingo; ao final da madrugrada e da tarde do domingo, os

toantes – cantores - puxam as músicas e tocam o maracá -, e começa o toré,

oportunidade em que os membros da comunidade e visitantes podem participar da

dança.

Durante o ano ocorrem outras práticas religiosas, como curas, orações e

venerações aos santos católicos e entidades de origem afrodescendentes.

Comumente, encontram-se santuários postos no interior das casas, com imagens

sobre uma pequena mesa ou afixadas nas paredes de santos católicos, de

entidades afrodescendentes e de indígenas.

As curas são realizadas em indígenas, mas percebe-se também a

presença de pessoas da circunvizinhança à procura de tratamento e de

medicamentos. Os trabalhos, como assim são chamados pelos indígenas, são de

responsabilidade principalmente do pajé e das rezadeiras - senhoras da

comunidade, detentoras do conhecimento religioso e da ciência medicinal do povo.

1.7.1 Povos ressurgidos no Sertão de Alagoas: aspectos históricos e sociais

Até a presente pesquisa, da década de 1980 até o início da primeira

década do século XXI (VIEIRA, 2007), ressurgiram e se encontram reconhecidos na

região do sertão de Alagoas cinco povos indígenas, formados por grupos familiares

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de descendência Pankararu. Mais detalhadamente, como objeto de estudo da

pesquisa da presente, passo a descrever a história, a localidade e os principais

elementos sociais, políticos, econômicos, culturas e religiosos dos grupos

Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká.

1.7.1.1 Geripankó

Dos grupos descendentes de Pankararu, o povo Geripankó foi o primeiro a

se organizar e reivindicar o reconhecimento no estado de Alagoas. Encontra-se a

360 km de Maceió, com cerca das 500 famílias, organizado nas aldeias Ouricuri,

Figueiredo, Serra do Perigoso, Poço da Areia e Moxotó.

A primeira família geripankó chegou à região no final do século XIX,

atravessou o Moxotó, rio que separa os estados de Pernambuco e Alagoas, foi o

casal Zé Carapina e Izabel. História relatada pelo neto, cacique Genésio Miranda:

Em 1852, o índio Zé Carapina, fugiu da perseguição dos colonizadores ao povo Pankararu, atravessou o Moxotó e se fixou em uma terra que tinha mata, caça e pesca. Mas, muita mais, a paz. Ali, se casou com sua prima Izabel, começam a criação do povo. Aos poucos, em consequência da violência, outros parentes foram e chegando e se juntando. Hoje já são mais de duas mil pessoas, com umas 400 famílias. (VIEIRA, 2002).

Os mais velhos e descendentes continuaram participando dos rituais

Pankararu, como a Corrida do Imbu, o Menino do Rancho, a dança dos Pássaros -

dança dirigida por um homem ou mulher tradicionalmente designado (a) por um

antepassado, onde 26 animais são incorporados e imitados por indígenas -, Praiás e

os Encantados.

Maria do Carmo, tratando da relação dos grupos indígenas com o tronco

Pankararu, afirma:

A maioria desses índios mais velhos são registrados lá em Pankararu. Pankararu e Geripankó, tudo é uma aldeia só. O que modifica é que lá é Pernambuco... Quando eram poucos, podia vir para Pankararu, mas agora que está aumentando, pode ser reconhecido! Desse fomos procurar a FUNAI para vir aqui no Ouricuri. Pensamos como seria o nome da aldeia, porque para o reconhecimento, precisava botar um nome, então achamos Geripankó. Esse nome veio de Pankararu, porque lá o nome Pankararu-Geripankó de Samambaia. Esse era nome da aldeia de Pankararu. Lá era o Brejo dos Padres e aqui era o Ouricuri dos

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índios. Quando passou para a aldeia, nós botamos o nome de Geripankó. Aqui é a mesma família de lá de Pankararu. O nome é que modifica. Até as brincadeiras dos índios são as mesmas. Lá tem Menino do Rancho, aqui também. (SANTOS apud SILVA, p.78).

A relação de parentesco, o conhecimento e as práticas da religião dos

Pankararu realizadas pela etnia Geripankó são os fudamentos da sua organização

social e política. Tratados na região, até então, como caboclos do Ouricuri, no início

da década de 1980, impulsionado pelo processo de redemocratização do Brasil, o

apoio de lideranças de outros povos indígenas, as lideranças Geripankó se juntaram

aos povos da região e reivindicaram o reconhecimento étnico e a demarcação do

território.

1.7.1.2 Kalankó

A etnia Kalankó - o termo kalankó tem sua origem em Pankararu e,

também, segundo informação do pajé Antônio Preto, é uma referência ao calango,

réptil que vive na região do semiárido, caçado pelos indígenas como complemento

alimentar em períodos de seca -, é mais um grupo oriundo de Pankararu do Brejo

dos Padres. As primeiras famílias percorreram a mesma trajetória, juntaram-se aos

parentes, e ocuparam a região de caatinga do município de Água Branca, até então

desabitada, formando uma comunidade que está localizada no extremo oeste do

estado, espaço onde se encontram atualmente. O povo vive a 18 km do centro

administrativo da cidade de Água Branca e a 380 km de Maceió, com uma

população de aproximadamente 400 pessoas organizadas em 77 famílias, nas

comunidades Januária, Quixabeira, Lajero do Coro, Gregório e Santa Cruz - esta

localizada no município vizinho de Mata Grande. (VIEIRA, 2011).

Por mais de um século o grupo viveu no anonimato, assimilando as

tradições católicas, vestimentas e formas de produção e se confundindo com o

sertanejo, obrigado a dissimular a identidade étnica e cultural. Para celebrar os

rituais, ocultavam-nos do olhar do não indígena ou participavam das festas -

denominação utilizada até os dias atuais pelos povos indígenas do Nordeste para

designar os momentos de suas práticas religiosas, criada para esconder ou

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dissimular o ritual, em razão da perseguição, violência20 e discriminação praticada

pelas autoridades governamentais e policiais e pela população não indígena - dos

Geripankó e Pankararu.

Segundo Herbertta,

Em julho de 1998 apareceram então para a sociedade do entorno pleiteando seus direitos no centro de Água Branca, o que repetem todos os meses de julho desde então. A partir de 29 de julho de 2001 surgiram para a imprensa nacional no jornal Tribuna de Alagoas, dançando e cantando o Toré, sua religião, afirmação de sua indianidade, hábito cotidiano de seu povo. Escancarando agora para os outros, sem medo, levantando a poeira do terreiro. (2003, p. 58).

A primeira celebração de aparecimento para a sociedade ocorreu no dia 25

de julho de 1998, com a participação de grupos organizados da sociedade não

indígena, grupos de jovens da igreja católica, representantes de sindicatos, partidos

políticos, imprensa e, ao final, foi encerrada com o ritual da missa, intercalada com

cantos católicos e indígenas, ritualizada com os maracás tocados pelos praiás.

Os rituais religiosos são realizados em momentos alternados, alguns

praticados publicamente, enquanto que outros ocorrem somente entre os membros

da comunidade. Anualmente, segundo calendário religioso do povo, são realizadas

duas celebrações religiosas que podem ser presenciadas pela sociedade não

indígena: a noite do Sábado de Aleluia e Domingo de Aleluia21; e, em razão da festa

do reconhecimento étnico, no dia 25 de julho, em memória da luta política pela

afirmação étnica, com a participação dos Geripankó, Karuazu, Katökinn e

Koiupanká. (VIEIRA, 2009).

O pajé Antonio Preto, atualmente chamado por Antônio Kalankó justifica o

motivo da festa, visto que a mesma não estava no calendário da tradição religiosa

indígena: “os índios sempre existiram; nós velhos sabemos disso, mas os mais

novos não sabem por que estamos festejando”. (2009).

Este fato demonstra a capacidade e a dinâmica da cultura indígena de

criação, recriação e adequação à realidade que está sendo vienciada por esses

grupos. Com isso, o pajé deixa claro que o ritual do reconhecimento foi estabelecido

20 HERBERTTA, Alexandre Ferraz. Peles braiadas: modos de ser Kalankó. Recife: Editora Massangana, 2013. 21

As referidas datas remontam ao período da catequese ensinada pelos missionários da Igreja Católica durante o período de aldeamento, na aldeia Brejo dos Padres.

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no calendário para celebrar a luta da comunidade e fazer com que os seus membros

guardem na memória este momento.

1.7.1.3 Karuazu

O grupo Karuazu é composto de 116 famílias, com 955 pessoas, habita

atualmente as aldeias Campinhos e Tanque. Desde o final do século XIX encontram-

se confinado em uma pequena gleba de terra herdada dos antepassados adquirida

através de compra, no município de Pariconha, Alagoas, a 360 km de Maceió.

Mantém o calendário religioso de acordo com a tradição Pankararu. Por

motivos religiosos e políticos, a população se dividiu em torno das lideranças de

Antônio dos Santos, pajé de Campinhos, e Edvaldo Soares de Araújo, cacique de

Tanque.

Segundo o cacique Gerônimo Karuazu, da aldeia Campinhos, seus

antepassados foram até os Pankararu e pediram a permissão das lideranças para

organizar o povo. Com a autorização dos anciãos e com o apoio das lideranças do

cacique Genésino Miranda e do pajé Elias Bernardo do povo Geripankó, o grupo

decidiu assumir publicamente a identidade étnica no dia 19 de abril de 2000.

A comunidade organizou uma celebração, que contou com a presença da

imprensa alagoana, historiadores, antropólogos, representantes de entidades não

governametais e de partidos políticos, prefeito e vereadores do município e da

população local, animada com o som de caixas eletrônicas.

Durante o dia, o terreiro foi batizado pelos praiás Karuazu, Geripankó,

Kalankó e Pankararu, puxados ao toque dos maracás e cantos dos toantes

Pankararu. No final da tarde, as atividades foram encerradas com a celebração da

missa presidida pelo pároco da comunidade, padre Rosevaldo Caldeira de Souza.

A partir daquela data, as lideranças Karuazu se juntaram com as lideranças

dos outros povos de Alagoas e iniciaram a reivindicação pela assistência e

demarcação do território.

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1.7.1.4 Katökinn

O povo Katökinn, inicialmente encontrava-se organizado politicamente

com Karuazu, seguindo a orientação do cacique Genésio Miranda, mas suas

lideranças decidiram assumir separadamene a identidade étnica, organizando uma

festa que aconteceu nos dias 25 e 26 de setembro de 2002. Organizado em cerca

de 360 famílias, inicialmente tinha as lideranças de Maria das Graças, mais

conhecida por cacique Nina e pelo antigo pajé Arvilino, que mobilizaram os membros

da comunidade para lutar pelos direitos à saúde e educação e a demarcação da

terra.

Os Katokinn ultrapassam o número de 400 pessoas que se auto-reconhecem e são reconhecidos pela sociedade local como indígenas. Contudo, ainda não são reconhecidos oficialmente como indígenas pela Funai, que requer para conduzir tal formalidade o laudo antropológico. Dependendo da vontade política e administrativa do órgão e do antropólogo, o reconhecimento pode sair em dois meses, caso contrário pode demorar décadas. Neste caso, a efetivação da „perícia antropológica‟ irá depender basicamente da luta indígena e do apoio da sociedade civil organizada. (AMORIM, 2003).

O povo segue a tradição Pankararu, com os rituais a Flechada do Imbu, as

Corridas do Imbu, a Puxada do Cipó, a dança dos Praiás, o toré, Menino do Rancho,

a Mesa e o Prato.

O ritual do Prato acontece ao longo do ano, todas as vezes que um

membro da comunidade tiver a necessidade ou passar por um problema pede a

proteção do Encantado, com a promessa de, caso tenha o pedido atendido, realizar

o ritual colocando os praiás no terreiro. O compromisso da pessoa que teve o pedido

atendido é propiciar a alimentação para o dia do ritual, os gêneros alimentícios e a

carne de carneiro ou de bovino.

Segundo Nina, o etinônimo katökinn apareceu através de sonhos

transmitidos pelos Encantados, mediante várias etapas. Ela narrou assim para o

antropólogo Siloé Amorim:

Na primeira apareceu parte do nome em tábua pintada de branco; na segunda, pedindo orientação aos seus encantados, Nina solicita confirmação do nome da aldeia que aparece completo noutro sonho; nos sonhos seguintes, recebe a aprovação do „rei‟ dos índios como a

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cacica e recebe orientação para fazer seu arco e flecha. Índio que é índio carrega seu arco. (2003, p. 55-56).

Em razão da morosidade dos órgãos governamentais responsáveis pela

regularização dos territórios indígenas, famílias Katökinn se reuniram e acamparam,

em 2009, em uma parcela do território reivindicado, próxima à aldeia, como forma de

pressionar o governo Federal no cumprimento das etapas de demarcação da terra

indígena. Por decisão da Justição Federal, no dia dois de dezembro de 2010, as

famílias foram despejadas da fazenda Chico Quelé com a intervenção da Polícia

Militar.

A jornalista Patrícia Bastos do jornal Gazeta de Alagoas, em sua

reportagem “Índios são obrigados a deixar fazenda”, escreve:

Um ano e meio depois da retomada da Fazenda Chico Quelé, os índios da aldeia Katoquim, de Pariconha, tiveram ontem que deixar suas casas e as roças que mantinham em seus quintais. A Polícia Federal, com o apoio do Centro de Gerenciamento de Crises da polícia Militar, deram cumprimento do mandado de reintegração de posse concedido pela Justiça Federal em favor de Carmélia Maria Feitosa, que declara ser proprietária das terras. (GAZETA DE ALAGOAS, 2010, p. A17).

A reportagem registra a situação social em que se encontra atualmentne a

população Katökinn, expulsa mais uma vez da terra de onde viveram os seus

antepassados, sem providência dos órgãos governamentais quanto aos

procedimentos legais referentes ao direito indígena, garantido na Constituição

Federal brasileira de 1988 e regulamentado no decreto-lei 1.775/96.

1.7.1.5 Koiupanká

O povo Koiupanká22 é formado por 186 famílias, organizado nos

aldeamentos Baixa Fresca, Baixa do Galo e Aldeia Roçado - centro de reuniões e

decisões políticas, onde fica o terreiro onde são realizadas as atividades religosas.

As comunidades estão localizadas no município de Inhapi, sertão de Alagoas,

22 A origem do etinônimo Koiupanká ainda é uma incógnita para os que não foram iniciados no mundo religioso do grupo, inclusive indígenas. A explicação oficial é o nome da Associação das Comunidades Koiupanká. Mas, em nível etnográfico, o termo tem a sua origem etimológica na estrutura linguística dos etinônimos Pankararé e Pankararu, por isso deram origem a Geripankó, Kalankó, Katökinn e Karuazu.

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enquanto há outras famílias do grupo que, por falta de espaço, se encontram

morando em serras, periferias e grandes centros urbanos do país.

As observações da pesquisa de campo indicam que - não confirmadas

objetivamente, e provavelmente jamais reveladas por membros do grupo -, em nível

de organização cosmológica, a identidade do “dono do terreiro” – Encantado – está

ligada à cosmogonia Pankararé, grupo localizado no município de Nova Glória,

sertão da Bahia, e não ao grupo Pankararu. Entretanto, quanto aos rituais,

vestimentas, danças e cantos, as semelhanças com os rituais Pankararu são

recorrentes. Mesmo assim, identifica-se algumas variações na estrutura social do

grupo Koiupanká, a exemplo do calendário religioso, a ritualização do murici na

celebração do terreiro e a forte insistência de afirmação da autonomia frente à

organização social e política Pankararu.

Em nível histórico, indiscutivelmente, confirmam-se o pertencimento e as

relações de parentesco de Koiupanká ao grupo Pankararu, fatos assegurados nos

relatos dos mais velhos. Segundo dona Iracema, matriarca da família e guardiã da

religião, a família Bispo saiu do Brejo dos Padres para Alagoas no século XIX,

período em que ainda pertencia à Província de Pernambuco23.

Chegando à região, onde já viviam outras famílias Pankararu, Anselmo

Bispo de Souza encontrou uma pedra onde juntava água – segundo os indígenas,

de onde se origina a palavra inhapi -, e ao seu redor começou a preparar e cultivar a

roça. Mais tarde, aos poucos outros parentes chegaram e se juntaram para formar o

grupo Koiupanká.

Com o domímio dos coronéis sobre a região, as famílias perderam as

terras e foram transformadas em mão de obra para as fazendas e, em períodos

sazonais, nas usinas de cana de açúcar na condição de boias-frias24. Em

consequência da perda da terra, com o avanço agropastoril e o crescimento das

vilas, começaram a sofrer pressão e violência por parte da população do entorno. Os

rituais praticados regularmente tornaram-se ocultos. Em função disso, segundo o

23 Emancipação política de Alagoas, em 16 de setembro de 1817. 24 Termo utilizado popularmente para designar os trabalhadores que levam a alimentação marmitex para o trabalho distante da residência e, em vista de ter sido preparada pela manhã, no horário do almoço encontra-se fria.

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cacique Zezinho Koiupanká, o instrumento utilizado no ritual, muitas vezes, era uma

caixa com palitos de fósforos em substituição ao maracá.

Os Koiupanká têm o ritual da cura na Mesa durante o ano, dirigido por

dona Iracema, matriarca e uma das principais lideranças religiosas da comunidade,

além da dança do toré e o ritual com os praiás.

O principal ritual, denominado Queimada do Murici, ocorre em três finais de

semana consecutivos. O ritual celebra a criação do povo, com os ritos do milho, da

mandioca e encerrando com o do murici. Inicia-se no primeiro final de semana

depois da Páscoa - Sábado de Aleluia e Domingo de Aleluia. Segundo os indígenas,

o milho representa a criação do homem; a mandioca, a mulher; e, o murici, a criação

do povo e alimento do fundador e dono do Terreiro.

O homem que se veste de praiá, representa a entidade do Encantado, nos

três dias que antecedem o ritual e durante as três semanas, se abstém de relação

sexual, ingestão de bebida alcoólica, se banha de água com ervas de cheiro e fica

recluso no Poró – lugar onde só é permitida a entrada de homem –que lá dança,

fuma e reza.

Durante os três finais de semana dos rituais, a dieta é preparada com o

alimento celebrado. O ritual começa com a colheita feita pelos homens e, depois, o

alimento é preparado pelas mulheres – anteriormente era preparada na casa do

cacique e, atualmente, na casa da comunidade. Na hora da refeição, primeiro o

alimento é abençoado pelos praiás e servido aos homens25, e depois as mulheres

distribuem para os todos os membros das comunidades e convidados.

O ritual é iniciado oficialmente às 19 horas do sábado e prolonga-se,

intercalado por vários atos religiosos, até o nascer do sol do domingo; às 08 horas

do domingo é reiniciado, com uma parada durante o almoço, recomeçando às 14

horas até o final da tarde, com o toré comunitário.

No último final semana do ritual Queimada do Murici, homens e

mulheres dançam e se penitenciam em círculo ao redor do terreiro por 9

vezes, carregando nas costas um feixe de cansanção (família da urtiga);

ao término, colocam os galhos no centro do terreiro e dançam

alucinadamente sobre os mesmos até exterminá-los.

25 Termo usado para os homens que se vestem de praiás.

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1.8 Reterritorialização nos povos do Sertão de Alagoas

Para compreender o processo de reterritorialização posto em curso pelas

populações tradicionais do sertão de Alagoas ao longo dois úlltimo dois séculos, é

requerida a definição de conceitos que perpassam a realidade social e o imaginário

indígena. Visto que, para esses povos, o espaço não se resume às condições físicas

e geográficas, mas inclui também a construção de imagens, símbolos e do

imaginário constitutivos de suas culturas. A construção e a estrutura simbólica de um

povo perpassam sua cosmologia.

Para Aracy Lopes da Silva (1988, p. 95), cosmologia é: “teorias do mundo.

Da ordem do mundo, do movimento do mundo, no espaço e no tempo, no qual a

humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena”. Neste sentido, a

cosmologia define o lugar da humanidade no cosmo e expressa as concepções

sobre a natureza, a humanidade e os deuses, revelando as interdependências e

reciprocidades entre os diversos personagens.

A cosmologia de uma população expressa-se através de seus rituais,

músicas, mitos, ornamentos, atividades econômicas e políticas, dentre outros

aspectos, expressões e manifestações as mais variadas possíveis produzidas por

um determinado grupo social. Entretanto, o ritual é um momento privilegiado de

contato com o universo mais amplo de interação entre o sobrenatural, a natureza e

os homens. É, ainda, o momento de integração interna, de superação das divisões e

das divergências, reafirmando a solidariedade e a reciprocidade interna. São

momentos importantes de redistribuição da colheita e, também, de festa.

Cosmologia e seus mitos associados são produtos e são meios de reflexão de um

povo sobre sua vida, sua sociedade e sua história, expressões, concepções e

experiências. Constroem-se e reconstroem-se ao longo do tempo, dialogando sobre

as alterações trazidas pelo fluir do tempo, pelo circular em novos espaços, pelo

contracenar com novos atores (BRAND, 2003).

É importante destacar que as sociedades indígenas26 têm conceitos

distintos de natureza27, sendo que, ao contrário do pensamento ocidental, entendem

26 LÉVI-STRAUS, La pensée Sauvage. Paris: Librairie Plon, 1962. 27 DESCOLA, Philippe. L’Écologie des autres. L’anthropologie et la question de la

nature. Paris: Quae éditions, 2011.

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haver “interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização

social” (DIEGUES e ARRUDA, 2001, p. 32). Não se trata de uma dependência, mas

de uma “imbricação”, na expressão de Posey, entre os “mundos natural, simbólico e

social” (1987, p.15).

Jesús Azcona (1993, p. 201-202), ao abordar a configuração do tempo e

dos espaços em sociedades indígenas, destaca que as exigências do espaço são,

em alguns casos tão poderosos e inflexíveis, como nas regiões árticas, exigindo dos

homens a invenção de incríveis formas de subsistência, íntima correspondência com

os imperativos impostos pelo espaço. Tempo e espaço emergem, não na relação

das coisas, mas na relação dos homens com as coisas. Segundo afirmação do

mesmo autor:

Cada sociedade aprende a construir seu próprio tempo e seu próprio espaço, numa palavra, seu mundo [...] Deuses e heróis, antepassados e descendentes, mortos e vivos, a caça e a pesca, a semeadura e a colheita, as relações entre eles e com outros permanecem unidos nesse tempo e nesse espaço que derivam da relação do homem com as coisas (1993, p. 204).

Brand, utilizando-se da análise de Bremem, destacou duas importantes

concepções que permitiram às populações indígenas, antes mesmo da sociedade

ocidental, construirem um conhecimento inédito e abrangente sobre plantas e os

animais:

A primeira origina-se, exatamente, da profunda interdependência entre o mundo da natureza, dos vegetais e dos animais, e o mundo dos humanos; e, segunda, a concepção da natureza como algo vivo com quem se interage e se estabelece uma comunicação constante, apoiada numa visão cosmológica integradora (BRAND, 1987, p. 14).

Neste contexto, segundo Brand (2003), a quebra da relação harmônica

com a natureza indica, também, uma quebra na relação com os deuses. Nesse

sentido, segundo o historiador (2003, p.198), o confinamento no aldeamento não

pode ser reduzido ao dado. Falta compreender a dimensão constitutiva mais

relevante, que é sua dimensão cosmológica, segundo a qual, a natureza adquire seu

significado exatamente enquanto integrantes das demais dimensões da realidade,

ou seja, o mundo dos homens e o mundo deuses. Sob a ótica indígena, ha uma

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íntima interdependência com a natureza, os homens e os deuses, ou seja, que a

natureza, o mundo dos homens e dos deuses formam um todo.

Entretanto, além das ações colonizadoras do passado e, consequemente,

a quebra do mundo místico e holístico das populações indígenas, no contexto atual,

não se pode deixar de considerar o impacto da globalização sobre as culturas locais.

Cultura local é aqui entendida como cultura particular de um grupo que, a partir de

relações cotidianas em espaços geográficos relativamente pequenos e delimitados,

estabelece códigos comuns e sistemas próprios de representação. Wallerstein

(1991, p. 184) observa, entretanto, que “cultura é por definição particularista”. Ou

seja, cultura é o conjunto de valores ou práticas de uma parte menor que o todo,

embora tendo como referência alguns critérios presumivelmente universais ou

universalistas. Ou, tendo como base a perspectiva de Lévi-Strauss, como um dos

elementos que perpassa a história da humanidade, o conflito entre o local e global.

(2011, p.48-50).

E afirma:

C‟est que chaque cultures particulière, et l‟ensemble des cultures dont toute l‟humanité est faite, ne pouvent subsister et prospérer qu‟en fonctionant selon um double rythme d‟ouverture et de fermeture, tantôt déphasées l‟une par rapport à l‟autre, tantôt coexistent dans la durée. (2011, p. 145).

Por outro lado, a globalização é percebida como se associando ao

aprofundamento da tendência à hegemonia da cosmovisão ocidental

“americanizada” [...], promovendo o declínio das identidades, a desconstrução do

local, bem como a descaracterização ou perda de autenticidade das culturas

locais28. No entanto, acredita Albagli (1999), sob uma perspectiva distinta, a

globalização não significa o fim de toda identidade territorial estável, mas que, ao

contrário, cada sociedade ou grupo social é capaz de preservar e desenvolver seu

próprio quadro de representações, expressando uma identidade ao mesmo tempo

espacial e comunitária em torno da localidade.

Santos, tratando sobre o assunto, defende:

Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a freqüência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e as coisas distantes, revelam, por contrastes, no ser

28 Ver Lévi-Strauss, Claude. L’identité. 5ª Ed. Paris: PUF, 2008.

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humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante do universo difícil de apreender (1996, p. 251).

Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afirma M. A. de Souza

(1996, p. 65), “todos os lugares são virtualmente mundiais”. Mas, também, cada

lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se

exponencialmente diferente dos demais. A uma maior globalidade, corresponde uma

maior individualidade. É a esse fenômeno que Benko denomina de “glocalidade”,

chamando a atenção para as dificuldades do seu tratamento teórico (1990 apud

SANTOS, 1996, p. 252).

A história concreta do nosso tempo repõe a questão do lugar numa posição

central, conforme, aliás, assinalado por diversos geógrafos. A. Fisher (1994 apud

SANTOS, 1996, p. 252), por exemplo, refere-se “à redescoberta da dimensão local”.

Ainda, segundo Santos, “o território compartido impõe a interdependência

como práxis, e essa como “base de operação” da “comunidade”, no dizer de

Parsons” (1996, p. 91). Nas cidades, esse fenômeno é ainda mais evidente, já que

pessoas desconhecidas entre si trabalham conjuntamente para alcançar resultados

coletivos. Entendendo território como extensão apropriada e usada. Mas o sentido

da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence [...]

esse sentimento de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da

existência do Estado. Assim, essa idéia de territorialidade se estende aos próprios

animais, como sinônimo de área de vivência e de reprodução. Mas a territorialidade

humana pressupõe, também, a preocupação com o destino, a construção do futuro,

o que, entre os vivos, é privilégio dos homens.

Neves (1998, p. 271) tem o entendimento de territórios como “espaços de

ação e de poderes”. Para Mesquita (1995, p. 83), “território é o que é próximo; é o

mais próximo de nós; é o que nos liga ao mundo”.

Para Brand (1994), essa concepção de território emerge com mais clareza

na abordagem das sociedades indígenas. Esta questão tem sido abordada com

ênfase pela antropologia no contexto da discussão da garantia das terras indígenas.

Citando Oliveira Filho (1999, p. 108), a noção de território indígena com a qual se

trabalha atualmente [...] “é uma elaboração dos brancos e encontra-se

historicamente datada”. Teria sua origem na década de 1950, durante os debates

relativos à criação do Parque Indígena do Xingu.

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Neste contexto, também, pela primeira vez, emergia a preocupação com os

recursos naturais necessários e suficientes para garantir aos índios a plena

reprodução de sua cultura e do seu modo de vida (1999, p.109). Os critérios

anteriormente utilizados pelos governos para definir a demarcação de terras eram de

caráter mais humanitário, relacionados à proteção de indivíduos e não de grupos.

Não explicitava, portanto, a relação cultura e território. A noção de território

tradicionalmente ocupado refere-se ao modo tradicional de os índios ocuparem e

utilizarem as terras e ao modo de produção ou ao modo como se relacionam com

ela. Tem, portanto, este conceito uma dimensão profundamente cultural, e por ser

cultural, também está em permanente reelaboração.

Para Albagli,

O local, enquanto conceito e enquanto realidade empírica, é uma noção relacional, remetendo aos seguintes principais aspectos: a) tamanho/dimensão, associando-se ao conceito de escala; b) diferenciação/especificidade; c) grau de autonomia; d) nível de análise e de complexidade, os quais vêm sendo postos em cheque no momento atual (1999, p. 12).

Situado ante o global, o local pode referir-se a uma localidade (cidade,

bairro, rua), região ou nação, constituindo, em qualquer dos casos, um „subespaço‟

ou um subconjunto espacial, e envolvendo algum modo de delimitação ou recorte

territorial, o que se expressa em termos econômicos, políticos e culturais. O conceito

de lugar pode assim ser visto a partir da complementaridade de três dimensões,

conforme Agnew e Ducan (1989): a) dentro de uma ótica mais econômica, enquanto

localização de atividades econômicas e sociais operantes em uma escala mais

ampla; b) de uma perspectiva microsociológica, como espaço rotineiro de interação

social; c) de um ponto de vista antropológico e cultural, correspondendo a um sentir

e organizar no lugar, mediante a identificação do sujeito com o espaço habitado.

Constata-se, território, cultura, imagens, símbolos e imaginário na lógica

indígena como sendo elementos de um mesmo processo, que se interligam e

imbricam numa mesma lógica.

Para Durand,

O imaginário não é mais do que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam pelas „pelas acomodações anteriores do sujeito‟ ao meio objetivo. (2002, p. 41).

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Para os povos indígenas, o meio objetivo é a territorialidade, o espaço de

onde são construídas as reproduções simbólicas do imaginário, realizadas e

concretizadas nas relações sociais, políticas, econômicas, religiosas, valores.

Seguindo a mesma orientação, sublinha Pitta, “as imagens não vêm

prontas e transmitidas pela hereditariedade; muito pelo contrário, pela interação

desses reflexos e das pulsões às quais eles são ligados com o meio material e

social que as imagens se formam”. (2005, p. 23).

Durand define o trajeto antropológico do imaginário:

Precisamos nos colocar deliberadamente no que chamamos o trajeto antropológico, quero dizer, a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas emanadas do meio cósmico e social. Essa posição afastará de nossa pesquisa os problemas de anterioridade ontológica, pois postularemos de uma vez por todas que há uma gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio ambiente material e social, e vice-versa. É nesse intervalo, nesse caminhamento reversível que se deve instalar a investigação antropológica. (DURANT apud PITTA, op. cit., 23-24).

Nesse contexto, o imaginário indígena armazena e resgata dinamicamente

o processo de colonização imposto às populações indígenas. A luta pela

recuperação dos territórios tradicionais, signica refazer-se em suas culturas, religiões

e sua formas de organizações sociais, como também as formas de resistência

construídas e sua tradições a partir da reelaboração e ressignificação dos rituais e

da organização na recuperação do espaço perdido.

Em nível cultural, aplicado à realidade, um elemento comum aos povos do

Sertão, a Semente da ciência indígena – os Encantados –, que permanecem vivos

na cosmovisão do povo, possibilitando a sua presença na memória de cada grupo

que se organiza etnicamente. A Semente, dispersada com o território perdido, se

revela ao indígena no local em que ele se encontra. E, com isso, a tradição do povo

se perpetua, passando de geração a geração e nos grupos receberam a Semente

da tradição Pankararu.

Os povos do Sertão ressurgem politicamente ligados aos terreiros e

Encantados, mantendo a forma e a resistência de luta na conquista do direito à terra,

à educação e à saúde. Essas conquistas estão ligadas diretamente ao processo de

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afirmação da identidade e fortalecimento da autonomia frente ao Estado nacional e à

sociedade não indígena.

O emergir etnicamente dos povos indígenas em Alagoas, colocaram novas

demandas políticas e acadêmicas até então ignoradas. O processo de etnogênese

das populações indígenas remete ao Estado brasileiro construir novas bases de

relacionamento com o diferente. E, cabe à academia, a tarefa de compreender

corretamente o processo civilizatório do passado, a construção das várias formas de

resistência ao longo da história e a formação do imaginário identitário indígena

permanentemente reconstruído no presente.

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2. CULTURA, IDENTIDADE ÉTNICA E IMAGINÁRIO

2.1 Pensamento ocidental: matriz greco-romana cristã

Para refletir sobre a identidade étnica, em particular a dos povos indígenas

do sertão de Alagoas, faz-se necessário, primeiro, definir a base teórica que guiará o

caminho trilhado ao longo do percurso desenvolvido na formação étnico e histórica

de determinado grupo social. Independente da opção que cada uma constrói ou a

que está submetida, a trajetória é sempre construída em meio a conflitos,

contradições, rompimentos, separações e junções. Por isso, cada sociedade se

estrutura e determina a sua identidade, afirmando-a de acordo com as condições

sociais, históricas, econômicas, políticas, religiosas, valores e princípios norteados

pela base social.

A relação das sociedades hegemônicas com as sociedades nucleares ou

tradicionais dar-se-á sempre na perspectiva de imposição de suas estruturas sobre

as sociedades ou grupos sociais de estruturas diferenciadas. As estruturas culturais,

políticas e ideológicas da chamada sociedade ocidental, fundada na matriz greco-

romana e cristã (LARA, 1988), delinearam uma identidade social, cultural, religiosa e

política, denominando-se de monocultural. E, portanto, a partir dessa concepção e

orientação, sob o argumento de sociedade superior, os povos possuidores dessas

matrizes culturais ampliaram seus domínios territoriais e políticos, impondo-se e

utilizando-se de argumentos religiosos, morais, éticos e civilizatórios sobre os grupos

dominados.

Considera-se que, a partir da racionalidade lógica de cada cultura,

produzem-se e se reconstroem as identidades do grupo social grego, medieval,

moderno e contemporâneo. Cada povo constrói para si a própria identidade,

contextualizada em cada espaço e tempo. Trantando-se do povo brasileiro,

entretanto, afirma Gomes: “Mergulhado num escafandro greco-romano – embora

não seja nem grego nem romano -, o brasileiro foge de sua identidade” (2001, p.11).

E a filósofa Marilena Chauí, completa:

A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causa do mundo e de suas transformações, da origem e causas das

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ações humana e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego. (2002, p. 20).

A racionalidade grega colocou as bases da formação de princípios

universais, absolutos e do conhecimento abstrato. Os povos medievais dialogaram

com esses fundamentos, utilizando as bases metafísicas e ontológicas,

transformando-os em dimensões sobrenaturais e teológicas. “A verdade é que todos

os filósofos da Idade Média, com maior ou menor empenho, recorreram ao assunto

para demonstrar a existência de Deus”. (CRESCENZO, 2002, p 91). Sobre a

Metafísica Tomista, Aniceto Molinaro afirma:

(...) A experiência do multíciple e do devir, as coisas não são e não são sequer deste ou daquele modo, isto ou aquilo: aparentemente são, mas relativamente não são. Neste caso a multiplicidade e o devir não passam de ilusão, aparência, opinião, quando não são consideradas no seu ser, ou seja, na sua verdade. (2004, p. 25).

E, sobre a Metafísica de Kant, o autor citado continua: “o ser é

transcendental, enquanto não se restringe nem se limita nem se determina a

nenhuma destas dimensões, mas às abraça todas e as transcende todas, sejam

entidades singularmente, sejam entidades no seu conjunto”. (Op. cit., p. 59).

A modernidade encarregou-se de romper com as bases metafísicas e

sustentar-se em bases técnicas e científicas. O ser humano centra-se na identidade

da razão, da eficácia e da objetividade. O parâmetro identitário é o ser social da

rigidez abstrata e universal. As sociedades modernas se estruturam e se impõem

sobre outras sociedades como modelo de identidade e cultura absoluto.

O direcionamento teórico desta orientação tornou-se dogma para a

academia e para a intelectualidade. O pensamento filosófico e teológico justificou-se

perante a conquista de povos e nações, apoiando-se em princípios de superioridade

social, política, cultural, tecnológica e científica. Em tempos modernos, sobressaiu-

se o pensamento técno-científico, exterminando outras formas de pensar e de

organizar. (CHAUÍ, 2002, p. 49-50).

Balizado em princípios da razão grega e da ciência mecanicista, cria-se um

raciocínio lógico que delimita matematicamente as fronteiras identitárias, limitando o

território das diferenças do imaginário cultural à categoria da abstração e da

universalidade ontológica. A abstração de dimensões intra-históricas, compostas,

estruturadas e tecidas material e dialeticamente no seio das teias e entranhas

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humanas e sociais, desfaz-se do seu teor próprio, e culmina com a negação da

própria realidade historicamente produzida.

Colonizadores e missionários, de posse desta lógica e como agentes do

imperialismo culltural, político e conômico, diante de povos que tradicional e

historicamente não se estruturam e não se formaram sob esta categoria, julgaram-

nos incapazes e inferiores, e, portanto, objetos de negação, aniquilamento ou, na

melhor das hipóteses, assimilados culturalmente. Entretanto, pondo-se no curso

contrário, esses povos subsistem no substrato das culturas oficiais e dominantes,

fazendo-se e refazendo-se dialeticamente na materialidade histórica. (CARVALHO,

1979).

Em pleno período da colonização brasileira, em meados do século XVI,

com perspectivas e realidades diferentes, surgem duas abordagens sobre as

populações nativas do Brasil. Um impulsionado pela motivação religiosa, por volta

de 1556, com o calvinista francês Jean de Léry, que desembarca na Baia da

Guanabara, atual cidade do Rio de Janeiro, e descreve, obra citada anteriormente, a

Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil, autrement Dite Amérique (História

de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, também dita América), descreve o

comportamento dos povos nativos. Em relação à antropofagia, coloca um ponto de

questionamento sobre a antropofagia indígena, demonstra que a relação e a visão

valorativa do ato estão condicionadas ao grupo que o pratica, enquanto ação ou

comportamento, ou, por outro lado, de quem o julga.

Originário da mesma nacionalidade, período e linha de pensamento, mas

em contexto diferente, o filósofo renascentista francês, Michel Montagne (1533-

1592), diante da presença do grupo Tupinambá, na França, formula: E eles, o que

pensam de nós? - Dos Canibais (Ensaios, Livro I, capítulo XXXI).

Contraditoriamente, as duas visões renascentista emergem das fontes do

chamado Velho Mundo, abrindo a crítica ao período medieval e colonialista. No caso

de Montaigne, dentre os literatos da época, pode ser considerado o primeiro a

abordar a questão indígena brasileira, filosoficamente. Entretanto, os textos e

documentos que relatam a paisagem e a população, tratam-os na perspectiva da

beleza tropical e da selvageria dos nativos. Esta era a visão que perpassava a

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Europa no trato para com aqueles que não eram considerados um dos “seus”, pois

eram considerados bárbaros.

Para os parâmetros teóricos da época, surpreende positivamente a

questão posta. Quando o ambiente era favorável à espetacularização do grupo

tupinambá da parte da plateia diante de seres exógenos para seus padrões

culturais, a perspectiva era considerá-los exóticos e selvagens. Entretanto, o filósofo

coloca o contraponto, mesmo que de forma subliminar, compara o mundo dos

indígenas e o mundo do seu povo, sua moral, suas mazelas, espoliação cultural e

guerras.

Mesmo que a inquietação filosófica perpasse toda a trajetória iluminista

(FORTES, 2004), e desemboque na modernidade sem a devida pertinência que a

mesma comporta, mantém-se, então, a visão etnocêntrica ocidental em nível da

academia e da sociedade.

2.2 Pensamento antropológico: monoculturalismo e diversidade étnica

A ciência antropológica, originária e herdeira da mesma matriz e categorias

filosóficas e científicas europeias, estrutura-se etnocentricamente viciada e

dependente das categorias ocidentais e eurocêntricas, justificando a superioridade

da sociedade colonizadora, com isso excluindo as culturas e as identidades de

matrizes exógenas à sua cosmovisão. Pode–se ver no evolucionismo cultural de

Morgan e Taylor, que autodenuncia a rigidez mecanicista e o biologismo cultural. Diz

Laraia, referindo-se a Taylor: “A diversidade é explicada por ele como o resultado da

desigualdade de estágios existentes no processo de evolução. Assim, uma das

tarefas da antropologia seria a de “estabelecer, grosso modo, uma escala de

civilização”. (1986, p. 33).

Diante disso, observa-se que o eixo estruturador do núcleo de estudo das

culturas padece ad intra da miopia mecânica e estatizante, ignorando a dinâmica e o

processo histórico de formação social e material de uma cultura.

E continua o autor:

Para os evolucionistas do século XIX, a evolução desenvolvia-se através de uma linha única; a evolução teria raízes em uma unidade psíquica através da qual todos os grupos humanos teriam o mesmo potencial de desenvolvimento, embora alguns estivessem mais

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adiantados que outros. Esta abordagem unilinear considerava que cada sociedade seguiria o seu curso histórico através de três estágios: selvageria, barbarismo e civilização. (Op. cit., p. 37).

Os teóricos evolucionistas ao se dedicarem ao estudo das culturas nativas,

negaram-nas a sua alteridade, rebaixando os seus sujeitos ao nível da animalidade

irracional.

O funcionalista polaco Bronislaw Malinowski, em seu trabalho de campo

nas ilhas trobriandeses, mesmo considerando que o seu trabalho foi um avanço

científico em relalação ao evolucionismo, observa-se que, enquanto a antropologia

está desenvolvendo novo método e novas técnicas científicas, as culturas estão

desaparecendo. “A preocupação com a adequação das categorias à realidade

estudada está estreitamente associada ao empenho em reconhecer e preservar a

especificidade e particularidade de cada cultura”. (1978, p. X). Esta constatação

expressa que os instrumentos da ciência clássica não dão conta de compreender a

totalidade e dinamicidade interna de uma cultura.

Malinowski fundamentava-se na aplicabilidade das ferramentas da física

mecânica sobre a cultura, que enquadra matematicamente valores, signos,

símbolos, ritos e costumes em espaços estanques e lineares, movimentado em

função da ação isolada de cada elemento cultural.

Essa perspectiva excluiu a compreensão da realidade social e histórica em

nível da própria dinâmica interna de uma cultura e, também, na relação com outras

formas de organização social. Em seu espaço e tempo, internamente, a cultura se

transforma e se refaz continuamente, sustentada no eixo de múltipla realidade

material e expressões simbólicas. No contato com estruturas externas ao seu campo

de realização, necessariamente, a mudança é identificada imediatamente, mais

rápida e explicitamente. Por um lado, o refazer-se interno e externo resultante da

lógica em si subjacente, impulsiona a dinâmica do retroalimentar-se material e

simbolicamente; por outro lado, o da lógica das categorias e ferramentas da ciência

clássica, a dinâmica, o contato, o impacto e o resultado da relação com outros

modos sociais de se realizar, induz a perda e, até, o desaparecimento das estruturas

culturais. São lógicas opostas, contraditórias e que se excluem como instrumento,

forma e conteúdo programático e epistemológico.

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A história da ciência e, no século XX, da antropologia, vê-se traída pelos

seus próprios pressupostos, arrazoados diante da realidade social, cultural, étnico e

histórico dos grupos e dos povos. A antropologia, refém dos mesmos instrumentos,

também foi sucumbida, e, assim, teve que encontrar caminhos para além de sua

origem mecanicista e racionalista.

O século passado foi prodigioso para o labor antropológico na tomada de

iniciativas de saída e deslocamentos do berço materno, suscitando outros olhares na

busca de encontrar novas bases e novas categorias de estudo-pesquisa

contextualizada, como também na tentativa de alcançar a totalidade do arcabouço

de uma determinada cultura.

No século XX, a teoria estruturalista de Lévi-Strauss foi uma das

tendências teóricas que marcou a busca por novos campos de conhecimento. O

método de encontrar estruturas fixas na cultura, identificando seus elementos e as

relações manteve por longo tempo a compreensão de cultura como fronteira

delimitada, recortada estruturalmente. Mas, ao contrário, a pretensa segurança

teórica demonstrou a inconsistência antropológica diante de uma realidade

movediça das culturas, transformando-a em mendiga e itinerante. A aguçada e

sensível percepção teórica de Lévi-Strauss, o fez revisar e realinhar a própria teoria

estruturalista, em sua obra L’Anthropologie Face Aux Problèmes du Monde

Moderne. (LÉVI-STRAUSS, 2011).

Do ponto de vista epistemológico, o movimento e deslocamento do eixo

eurocêntrico fez com que a antropologia afundasse na crise, provocando no ser

antropólogo a necessidade de reordenamento de suas convicções e bases teóricas,

gerando um mal estar no meio acadêmico. Mesmo assim, mantêm-se os referenciais

teóricos e o campo de pesquisa. Ainda no campo da crítica científica, desde o seu

surgimento, a antropologia trata as culturas autóctones e indígenas como objeto de

pesquisa, identificadas como culturas exóticas e estranhas aos modelos europeu e

estadunidense, e não em seu existir próprio sócio-histórico.

A modernidade, fundada em bases racionalistas e técno-científica, com

princípios abstratos e universais, produz modelos de sociedades burocráticas,

hierárquicas, monoculturais e monolíticas. Os sujeitos do pensamento,

concomitantemente, gestam conhecimentos e produtos de alta precisão mecânica,

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como também a própria autodestruição. Os mecanismos criados tornam-se

incapazes de dar respostas aos próprios desafios, proporcionando a crise da

chamada pós-modernidade. “As transformações associadas à modernidade

libertaram o indívíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”.

(HALL, 2002, p. 25).

A antropologia não se encontra imune a esses pressupostos científicos. Ao

contrário, ao mesmo tempo em que se fundamenta e utiliza das mesmas categorias,

é levada pela crise da identidade enquanto ciência do estudo das culturas. Os

princípios totalitários se deparam com a pluralidade, obrigando a criação de outros

paradigmas, como também de construir novos referenciais teóricos que advenham

da diversidade cultural e étnica.

Com isso, no cenário de crise e mudanças da modernidade, observa-se

que a antropologia procurou responder e se adequar à nova realidade, na busca de

novos caminhos. Neste sentido, Claude Lévi-Strauss compara o antropólogo ao

astronauta:

O antropólogo é o astrônomo das ciências sociais: ele está encarregado de descobrir um sentido para configurações muito diferentes, por sua ordem de grandeza e seu afastamento, das que estão imediatamente próximas do observador. (1967, p. 422).

Na perda da segurança teórica adquirida secularmente, o antropólogo trilha

por caminhos tortuosos, inseguros e conflituosos diante de uma realidade movediça,

inacabada e dispersa do olhar cultural etnocêntrico. Deste ponto de vista, se o

problema está posto pela própria lógica cientifica, fica mais complexo quando este

olhar não identifica os seus instrumentos de caracterização cultural de determinada

realidade social.

No século XIX, sob a égide da cientificidade, justificada pelos princípios da

objetividade cientifica, desenvolveu-se o conhecimento antropológico, impregnado e

aportado na perspectiva do evolucionismo cultural.

Do século XX em diante a ciência antropológica procurou novo rumo na

construção das técnicas e métodos de estudos das populações tradicionais, em que

o cientista procura afastar-se de seus condicionamentos sociais, históricos, políticos,

econômicos e ideológicos e procurou construir um novo conhecimento. Destacam-se

os estudos de Radcliffe-Brown, Franz Boas e Bronislaw Malinowski com suas

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pesquisas, quando se deslocam do seu lugar cultural e partem para a realidade do

“outro”. Mesmo assim, a produção teórica mantém-se ainda impregnada e carregada

dos condicionamentos culturais do pesquisador europeu. Portanto, dentro dos limites

do seu tempo, do ponto de vista do conhecimento, considera-se um avanço

importante. Entretanto, o “outro” não teve a oportunidade de falar sobre si próprio e,

menos ainda, dizer o que acham de “nós”!

A aplicabilidade do estudo das culturas a partir de teorias antropológicas

centradas em categorias mecanicistas, fundadas em modelos preestabelecidos, com

estereótipos e estigmatizados, causa profundo descompasso quando utilizadas na

realidade dos atuais povos indígenas do Nordeste brasileiro, com mais de 500 anos

de contato com culturas europeias, africanas, orientais, indígenas, regionais e

nacionais.

Na etnologia brasileira, as abordagens iniciais não diferem dos relatos e

crônicas dos viajantes e missionários católicos. O indígena é visto na perspectiva

evolucionista, considerado silvícola e inferior. Na literatura brasileira, ele surge

transformado na imagem do bom selvagem, cheio de docilidade e amante da

natureza. Destaca-se a obra do poeta cearense José de Alencar, Iracema (1865),

com a criação imagética da índia dos lábios de mel.

A maioria das teses produzidas no Brasil do século XX, balizadas por

teorias europeias e estadunidenses, capitaneadas por etnólogos e antropólogos

estrangeiros ou introduzidas por brasileiros, oscila entre a superação do

evolucionismo cultural, a utilização da imagem indígena da identidade nacional, o

reconhecimento dos valores culturais nativos, a delimitação das fronteiras culturais,

étnicas e o direito à terra.

Na primeira metade do século, destacam-se as obras do francês Lévi-

Strauss e as dos brasileiros Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira,

principalmente os estudos sobre as etnias localizadas na região central brasileira.

A antropologia produzida no Brasil tem relevância internacional, com

publicações de teses, exposições, conferências e debates nas academias e com

impactos sobre a política interna brasileira, caracterizada por denúncias de

massacres, extermínio de nações indígenas e invasão das terras indígenas.

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No início do século, impulsionado pela disputa entre positivistas e

religiosos, o governo brasileiro criou o órgão indigenista, o Serviço de Proteção ao

Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais/- SPILTN, em 1910, ligado ao

Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). (FREIRE, 2011). O órgão foi

dirigido pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, que movido pelo objetivo

humanista de dar proteção à população indígena, implantou a política de

demarcação de reservas indígenas e de assistência em educação, saúde e

agricultura.

Da segunda metade do século XX em diante, o SPI é marcado pela

presença de antropólogos e sertanistas na formulação e execução da política

indigenista oficial, destacando-se pela simbiose entre a academia e o órgão

indigenista oficial. Ao mesmo tempo em que os principais expoentes da antropologia

desenvolviam suas pesquisas de campo, eram também os mesmos que ocupavam

as instâncias de governo, formulando e executando a política indigenista oficial.

No contexto de avanço da presença indígena no cenário nacional e

internacional, as últimas três décadas do século XX são marcadas por grandes

encontros de antropólogos, indigenistas, criação de entidades não governamentais e

realização de eventos, a exemplo da Conferência de Barbados, realizada de 25 a 30

de janeiro de 1971; em 1972, a criação do Conselho Indigenista Missionário/CIMI,

órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB; a Associação Nacional

de Ação Indigenista/ANAI e Operação Anchieta/ OPAN; União das Nações

Indígenas/UNI.

No Brasil, a antropologia passa por profundos embates, enfrentamentos e

questionamentos quanto ao seu objeto, visto que, em nível de definição teórica,

tendo como base os princípios e categorias até então definidos, a pesquisa das

culturas indígenas apresentava-se delimitada e circunscrita aos povos que

conseguiram manter-se isolados e afastados da sociedade nacional, conservando os

signos, valores e símbolos a paartir do não contato com o não indígena. As etnias

habitantes da floresta amazônica, parques e reservas mantiveram-se distantes do

avanço das fronteiras agrícolas, transformadas em nichos ecológicos e biológicos

como objeto de estudo. Dentre outros, o parque do Xingu se destaca por sua

visibilidade exótica e espetacularização midiática, resultado de uma política

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indigenista e da visão antropológica em curso. Identificados os povos isolados da

floresta e os povos do litoral, os estudiosos das culturas indígenas importaram

teorias para delimitar o objeto da antropologia. O antropólogo Darcy Ribeiro chegou

ao extremo de criar categorias para definir o grau de contato da sociedade indígena

com a sociedade nacional. (RIBEIRO, 1979, p. 231-242). Sobre o tema tratado pelo

referido antropólogo, João Pacheco de Oliveira afirma: “Darcy Ribeiro é ainda mais

incisivo. Utilizando-se de imagens fortes, fala em „resíduos da população indígena

do Nordeste‟, ou ainda em „magotes de índios desajustados‟, vistos nas ilhas e

barrancos do São Francisco”. (2004, p. 16-17).

De acordo com os critérios estabelecidos, os povos do Nordeste foram

considerados aculturados. O termo aculturação (FERREIRA, 2002), segundo Félix

M. Kessing surgiu nos EUA e tornou-se central para os antropólogos no final do

século XIX até metade do século XX, a exemplo do 14º Congresso de

Americanistas, realizado em 1904, em Stuttgart; no Brasil, sua presença se efetivou

em 1937, com a publicação dos Ensaios de Etnologia Brasileira, de Herbert Baldus,

que colocou o problema da mudança cultural (Apud VIEIRA, 2004). Em vista disso,

até a década de 1970, a população indígena do Nordeste foi denominada de

cabocla. Para Dirceu Lindoso: “cabocolo ou caboclo do mato aparece para designar

não só o índio da recusa colonial, os das correrias e corso nos descobertos da

conquista, como também o índio embaralhado das aldeias mistas e das aldeias-

presídios”. (2005, p. 155). Outra caracterização foi a de remanescente de índio –

conotação semântica de uma relação tênue com as etnias originárias do período

pré-colombiano.

Pode se dizer que a antropologia oficial e categorias aplicadas aos grupos

étnicos da região nordestina não conseguiram se confirmar academicamente, em

razão do próprio arcabouço teórico e a realidade social, econômico, cultural e

religiosa das populações indígenas do sertão e litoral, por estarem convivendo com

os grupos do entorno e da comunidade nacional por 500 anos.

A interação, como ocorre com qualquer grupo humano em contatos com

outros grupos sociais de culturas diferentes, a convivência com europeus, africanos,

etnias indígenas e outros de outros continentes, produziu transformações genéticas

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e culturais,que se apropriaram e ressignificaram simbolicamente a estrutural social,

territorial, econômica, religiosa e a relação familiar.

Portanto, não é adequado e, é até improvável, aplicar as categorias

estruturalistas de relação de parentesco aportadas pelo antropólogo Lévi-Strauss em

populações que passaram por mudanças aceleradas em seu processo de

organização social. A relação dos laços de parentesco não se identifica, neste caso,

somente pela linhagem genética e étnica, mas, também, por outras relações sociais,

religiosas e políticas reconstruídas.

O impacto da empresa colonial sobre os territórios e as culturas desses

grupos fez com que os mesmos construíssem histórias, organizações e articulações,

enfrentassem forças e poder econômico e religioso adverso às suas próprias

estruturas, cosmovisão e cosmologia – no sentido dado pela antropóloga Aracy

Lopes, cosmologia são “teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento do

mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos

personagens em cena”. (Apud VIEIRA, 2004).

Constata-se, assim, que as outroras categorias antropológicas não

respondem mais à nova realidade material e histórica das populações indígenas,

principalmente para as que passaram por esse processo de enfrentamento. Elas

podem até funcionar enquanto fronteiras territoriais e culturais, com estruturas de

parentesco e simbólicas definidas. Mas, à medida que a arquitetura cultural mudou,

os referenciais teóricos não conseguem mais conceituar e sistematizar a realidade.

Observa-se que a miopia antropológica e/ou a política indigenista nela

fundamentada, ou vice e versa, encarregou-se de negar a realidade plural e a

diversidade étnica. A trajetória das ciências antropológica e históricas brasileiras e

seus respectivos expoentes teóricos se limitaram a pesquisar as culturas

consideradas intactas e preservadas – se é que existiram em algum momento na

história da humanidade -, transformando-as em objetos exóticos e limitando-se

contar a história oficial dos vencedores. Podemos citar como exemplo, o historiador

alagoano Álvaro Queiroz, que abordando as atuais populações indígenas de

Alagoas, afirma:

Hoje, formando grupos étnicos aculturados em completo declínio, os indígenas das Alagoas conservam pouqíssimos traços e tradições culturais característicos das suas raças de origem. Vivem em situação difícil, trabalhando na agricultura de subsistência. Quando

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há pragas na plantação ou alguma adversidade da natureza, empregam-se em usinas de açúcar ou na construção civil. Parecem ter perdido completamente a identidade própria, preferindo ser chamados de caboclos, o que representa uma atenuante, uma espécie de proteção racial. Para eles, ser caboclo significa sofrer menos. (Op. cit, 2010, p. 31).

O resultado imediato desta postura acadêmica, lamentavelmente ainda

presente em muitas obras literárias, foi o de reduzir conceitualmente o que é cultura,

etnia e identidade, produzindo formas estáticas, como algo dado socialmente e

determinada territorialmente.

Como podemos explicar esse paradoxo? Sem dúvida as lacunas etnográficas e os silêncios da historiografia – componentes de um discurso do poder (ver Troulot 1995) – constituem fontes geradoras desse enigma, mas não resolvem o problema, tornando-se necessáario discutir também as teorias sobre etnicidade e os modelos analíticos utilizados. (OLIVEIRA, 2004, p.14).

Efetivamente, considerando o dado histórico, observa-se que na medida

em que o conceito não conseguiu dar conta e apreender a totalidade da

materialidade dialética e histórica da realidade, a consequência foi negar a

realidade. E para justificar a não compreensão teórica, os antropólogos e

historiadores formularam critérios e graus de definição e identificação de indianidade

e identidade étnica. Do ponto de vista da análise, a antropologia procurou identificar

elementos exóticos ou sinais diacríticos nas culturas indígenas do Nordeste, no

cotidiano ou nos rituais religiosos, para justificar cientificamente a realidade das

populações indígenas existentes no Nordeste.

2.3 Outra abordagem antropológica: a etnogênese

Em vista da insuficiência teórica da antropologia tradicional em relação a

amplidão da dinamicidade interna das culturas em processos de conflitos entre as

fronteiras culturais e étnicas, faz-se necessário buscar novas abordagens.

Para compreender, então, a realidade cultural dos povos indígenas do

Nordeste, visto que as teorias da antropologia clássica não se enquadram na

perspectiva da realidade em questão, seja funcionalista ou estruturalista, faz-se

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necessário romper radicalmente com as categorias de matriz naturalista, racionalista

e mecânica, para realizar um corte epistemológico.

A compreensão de Malinowiski de que enquanto a antropologia estava

desenvolvendo novo método e novas técnicas a cultura da população das ilhas

trobriandeses estaria perdendo suas características e tenderiam ao desaparecer,

sucumbe na própria base teórica que a sustenta. Como indicado por Serge

Gruzinski, no livro O pensamento Mestiço, à medida que o mesmo desconstrói

teoricamente a pretensa unicidade das culturas europeias, como também as

formuladas sobre as culturas autóctones, expressam, por outro lado, a diversidade

do tecido social e cultural dos sujeitos históricos e as identidades étnicas

diferenciadas da identidade da sociedade nacional.

As etnias indígenas do Nordeste, à margem de categorias estereotipadas e

estigmatizadas pelos referenciais do silvícola amazônico, o biotipo, os costumes, a

economia, as expressões culturais e manifestações religiosas, fora-lhes negado o

reconhecimento da identidade étnica diferenciada e dos respectivos direitos

históricos garantidos pela legislação brasileira. Afirma Almeida: “Jamais os senhores

de terra iriam permitir a possibilidade de uma sociedade indígena”. (1999, p.15).

A negação é resultado da política integracionista e da incapacidade da

ciência antropológica da época de identificar os elementos internos e submersos na

estrutura das culturas e realidades étnicas do Nordeste. No aporte científico para

responder a questão, constata-se que a realidade submersa, em que se

encontravam as culturas indígenas do litoral e do sertão, não se limitava ao âmbito

subjetivo de seus membros, mas, ao contrário, era resultado do silêncio a que foram

submetidos. “Os símbolos de sua origem haviam sido adotados no processo de

aculturação”. (RIBEIRO apud OLIVEIRA, 2004, p.17).

Dois pontos são importantes e devem ser destacados dentro desta reflexão

antropológica: por um lado, a limitação teórica do arcabouço etnológico, restrito à

razão mecânica, categórica e, quantitativamente, matemática; por outro lado, em

consequência da questão anterior, a percepção e a análise teóricas tornam-se

incapazes de captar o mundo real vivenciado historicamente pelos sujeitos

detentores e protagonista de projetos históricos, no caso, os povos indígenas.

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Estruturalmente, a teoria coloca-se abstratamente sobreposta ao tecido social

produzido e vivenciado intrinsecamente no veio da realidade histórica.

Em vez de optar por um eixo ordenador central (como a história e as formas de colonização, ou os nichos ecológicos e sua capacidade diferenciada de atender às demandas das culturas e gerar processos adaptativos), que lhes possibilitaria desenvolver um discurso teórico e interpretativo, os autores associam variáveis de natureza teórica muito distinta dentro de uma moldura que tem um caráter regional e particularizante. (Op. cit., p. 18).

Ainda em relação ao primeiro problema, constata-se que, em sua origem

de ser e de se fazer enquanto conhecimento ontológico, a antropologia tradicional já

se constitui incapaz teoricamente de compreender e responder cientificamente às

questões postas a partir do mundo do outro, devido ao seu atrelamento umbilical ao

mundo da ciência estática e mecânica produzida pelo próprio eu – a matriz cultural

eurocêntrica. A contradição metodológica e epistemológica se encontra no imbróglio

produzido dentro de uma mesma história. Por um lado, as motivações imperialistas

do colonizador originam-se na mesma matriz cultural, filosófica e política, e, ao

mesmo tempo, é a base que impulsiona o desenvolvimento do conhecimento sobre

as populações dominadas. Cientificamente, ao contrário dos estudos objetivos da

natureza através da química, da física, da matemática e da biologia, em nível teórico

e prático, as culturas se constituem no espaço e no tempo, historicamente

contextualizadas, à mercê da dinâmica e movimentações sociais, políticas e

econômicas de cada época e realidade. As culturas se constroem dentro das

mudanças que em si carregam, recebem de outras culturas e de fenômenos que

encontram e se enfrentam.

O outro problema está relacionado à constituição estrutural da

monocultura, intrínseco e ontologicamente incapaz de ver o outro, o diferente, o não

eu. No caso em estudo, o que se coloca como eu, o colonizador, constituído de

culturas com origem e composição diferentes, mas com projeto e visão de mundo

monolítico e monocultural; o não eu, aquele que não é colonizador, o outro, neste

caso, o sujeito indígena ou as culturas indígenas.

A tendência imediata do eu é colocar o outro em categorias niveladoras da

cultura dominante. E, quando o outro não se adéqua à estrutura do eu, a ação

imediata é buscar no outro os elementos que se aproximem de suas próprias

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definições; ou, dito de outra forma, faz-se com que o outro se encaixe nas categorias

definidas pelo eu cultural considerado superior, e, portanto, definidor de parâmetros.

Para esta definição, a identidade do outro passa, necessariamente, pelo

reconhecimento do eu. Neste aspecto, é incapaz interpretar e reconhecer o

processo histórico do outro, o indígena do Nordeste brasileiro, até porque o eu do

dominador formulou e executou categorias de enquadramento do outro – os

indígenas - no eu – o europeu - resultando em que o saber antropológico não

conseguiu reconhecê-lo, por encontrar-se contaminado na origem pela base teórica,

as ações e argumentos. E, no máximo, conseguiu identificar elementos que

justificaram etnocentricamente a base cultural e teórica.

2.3.1 Povos do Nordeste: em busca de artefatos, danças “tradicionais” e apoio político.

A política assimiliacionista e integracionista da empresa colonial,

transmitida e implantada pelos agentes mercantilistas e missionários da Coroa e do

Império, respaldada na violência física, perseguição e discriminação cultural,

determinou a invisibilidade das culturas indígenas. O parâmetro de categoria

indígena passou a ser o modo de vida dos povos da floresta amazônica e regiões

similares, vivendo nus ou seminus e praticando a economia de caça, pesca e coleta.

Na mesma linha de ação, os primeiros estudos antropológicos, condicionados pelas

mesmas categorias colonialistas, submeteram-se às categorias de silvícola,

selvagem e exótico.

Com o fenômeno da emergência étnica da década de 70, o indígena no

Nordeste se viu obrigado a buscar ornamentos de povos de outras regiões do Brasil

para poder se firmar etnicamente diferenciado dos demais povos e da população

sertaneja local. Desenvolveram manifestações de representações culturais,

utilizando instrumentos artesanais, como cocar, maracá, colar, anel, cachimbo;

aprenderam danças, cantorias e, até, tradições religiosas; pinturas e palavras. As

representações foram apropriadas de outras culturas e povos, inclusive os

amazônicos, com o objetivo de atender as expectativas do outro, no caso, as

exigências e critérios de autoridades políticas, representantes de órgãos

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governamentais, da sociedade nacional e, particularmente, para diferenciar-se do

sertanejo nordestino, que reside no entorno das suas comunidades.

No comportamento dos indígenas, alguns aspectos chamam a atenção

para efeito de análise do fenômeno do contato entre os agentes da colonização, a

sociedade nacional e as populações nativas. No primeiro momento, os povos nativos

foram conduzidos para a assimilação da cultura lusitana – religião, crenças, valores,

costumes, idioma -, com o argumento do sujeito indígena poder ser considerado

humano; depois, com a apropriação, o indígena foi destituído da categoria índio, e

posto na condição de caboclo – sem identidade: não europeu e não indígena; na

etapa seguinte, no contexto do ressurgimento, quando o indígena decide afirmar a

própria identidade, novamente é obrigado a apropriar-se de elementos culturais que

outrora fora tirado.

Constata-se nesta análise que o referencial do ser cultural e da identidade

é sempre determinado pelo outro – em geral, o que representa o poder dominante –,

que determina o parâmetro de indianidade, caracterizado por aspectos exteriores e

exógenos aos modus vivendi e padrões culturais do eu indígena do Nordeste.

Mas a questão não se esgota aí, visto que a dimensão do eu indígena foi

ignorada como fronteira de autodeterminação do ethos e da identidade étnica -

poderia ter sido identificado e estudado enquanto fenômeno de ressurgimento

étnico.

Na perspectiva da Análise de Discurso, o ethos é tratado por Maingueneau

(2008b, p. 17) da seguinte forma:

O ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma „imagem„ do locutor exterior à sua fala; o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU, 2008 b, p. 17).

Neste caso, outros aspectos devem ser abordados também nesta análise,

vistos por dois ângulos: um é a dependência indígena aos referenciais culturais da

cultura dominante, o outro determina o ser indígena; mas, também, por outro lado,

destacam-se dois fatores que se intercalam: a inesgotável capacidade dos indígenas

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de se apropriarem dos elementos culturais do outro – colonizador ou etnias -, e criar

novos significados e representações; como também, expressa a segurança e

garantia de manutenção dos mitos, ritos e crenças no conjunto da identidade interna

e da representação política.

Entretanto, visto que a cultura e, portanto, a relação cultural não é estática,

observa-se que a apropriação de materiais externos ao grupo pode ocorrer

compulsoriamente – o outro dominante/colonizador sobre o eu dominado/indígena -,

ou ainda, com objetivos políticos. Independentemente da condição,

indubitavelmente, os elementos infiltram-se no seio das culturas em contato, alheio à

vontade do sujeito. Este, por sua vez, transforma-os em novos significados, para si e

para outro, dependendo das condições apresentadas e demandas exigidas de

representações.

A maioria das atividades desenvolvidas pelos indígenas contava com o

apoio de entidades indigenistas e religiosas, sob o olhar de antropólogos,

historiadores e pesquisadores.

Do ponto de vista político, a retomada da movimentação e mobilização

indígena, em nível nacional, se intensifica em torno da construção de hidrelétricas,

rodovias, ferrovias e hidrovias sobre os territórios indígenas, provocando

assassinato, gerando doença, fome e desmatamento da Amazônia. Ao mesmo

tempo em que esses acontecimentos são denunciados e repercutem em nível

internacional, internamente, final da década de 70, a Ditadura Militar29 dava sinais de

abertura política. Em nível eclesiástico, em 1978, na cidade de Medellín, na

Colômbia, os bispos católicos da America Latina e Caribe realizam a segunda

Conferência Episcopal Latino Americana/CELAM, e denunciam a exclusão social e o

sistema gerador das injustiças sociais na região.

Nesse cenário, a sociedade brasileira começa a organizar partidos

políticos, sindicatos de trabalhadores no campo e na cidade, associações de

moradores e movimentos sociais. Enquanto isso, bispos, em torno da CNBB,

promovem a organização de pastorais sociais, movimentos de leigos e apoiam as

reivindicações políticas dos movimentos sociais, como a luta pela Reforma Agrária,

29 Instaurada em 31 de março de 1964.

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demarcação das terras indígenas, moradia, eleições diretas para presidente da

República e uma nova Constituição Federal.

Nesse contexto, os interlocutores dos povos indígenas são os militares,

órgãos governamentais, bispos, agentes de pastoral, militantes políticos e dos

movimentos. No campo governamental, destacam-se o Ministério do Interior e a

Funai - criada em 1967 -, como instâncias diretamente responsáveis pela assistência

e demarcação das terras indígenas. Do lado da sociedade, as lideranças indígenas

buscam apoio para as suas reivindicações junto às autoridades eclesiais, pastorais,

movimentos sociais e universidades.

O CIMI, órgão criado pela CNBB, em 1972, para prestar assistência aos

povos indígenas, inicia o trabalho missionário nas comunidades30, de onde denuncia

as atrocidades cometidas pelo governo, fazendeiros, garimpeiros, madeiros e

mineradoras contra as populações. (LACERDA, 2008, p. 18-240). Com isso, a

chamada questão indígena tornou-se uma bandeira de luta da sociedade contra a

Ditadura Militar (Op.cit., p. 25-26), aglutinando militantes políticos e de movimentos

sociais, religiosos e pesquisadores.

Em nível da conjuntura política, do lado institucional, imperava o poder dos

militares e as políticas de desenvolvimentistas; do outros, ressurgia segmentos na

sociedade denunciando as injustiças e reivindicando a redemocratização do país. A

disputa política repercutiu no movimento indígena, provocando no governo ações de

cooptação de lideranças, com empregos, cargos e projetos financeiros para as

comunidades, e perseguição às lideranças dos movimentos sociais e missionários,

chegando a assassinato de indígenas, padres, religiosas, sindicalistas e agentes dos

movimentos sociais.

No caso dos grupos indígenas não reconhecidos, o governo negava a sua

existência como povo etnicamente diferenciado, restando aos indígenas recorrer ao

apoio dos agentes de pastorais e pesquisadores de universidades. À medida que o

movimento indígena avançava na luta reivindicativa, os agentes governamentais

procuravam barrar a luta pela terra e pelo reconhecimento étnico, pressionando e

cooptando as lideranças.

30 O Renascer do povo Tapirapé – Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucaud, 2002.

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Nesse cenário político, as lideranças indígenas, militares, missionários do

CIMI, hierarquia da Igreja, antropólogos, historiadores, militante político e

movimentos sociais, eram movidos por dois grandes polos de aglutinação das lutas:

governo x sociedade. No entanto, aos poucos os interesses políticos e ideológicos

foram se desenhando, e o palco de disputa ficou cada vez mais movediço.

Nesse contexto, os discursos são desenhados e explicitados em suas

particularidades. As lideranças indígenas conseguiram sair do anonimato,

identificando atores e respectivos interesses, e construíram os discursos de acordo

com o interlocutor: Governo Federal-FUNAI, CIMI, hierarquia católica e

pesquisadores.

Conforme afirma Orlandi, “a formação discursiva se define como aquilo que

numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma

conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”. (Op. cit., p.

43).

Os indígenas, como sujeitos do processo, perceberam nos interlocutores

os diferentes discursos, capitalizaram o discurso para os seus interesses. E,

segundo a mesma autora, referindo-se a Pêcheux, afirma: “não há discurso sem

sujeito e não sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela

ideologia e é assim que a língua faz sentido”. (Idem, p. 17).

Do CIMI, espera-se o apoio político e a radicalização; da Universidade, o

estudo científico; da hierarquia, o apoio oficial e o respaldo político; do governo,

emprego, assistência e proteção. Portanto, para o reconhecimento étnico e

demarcação da terra, tem o CIMI e os pesquisadores como aliados contra o

governo; quando os interesses conflitam com o CIMI ou com os pesquisadores,

assume a posição que mais lhe beneficie; quando o discurso é para cohseguir

emprego ou qualquer outro benefício, visto que o CIMI não concede benefícios

pessoais, alia-se ao governo e confronta com o CIMI.

Para melhor compreender, utilizo a definição de Orlandi quando à ação do

sujeito: “o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia”. E completa:

“O discurso é efeito de sentidos entre locutores” (Ibidem, p. 20-21). No caso dos

sujeitos discursivos - indígenas, governo, igreja, CIMI - todos agem e dão sentido de

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acordo com a realidade sócio-histórica, a representatividade e o interesse político e

ideológico.

Os processos discursivos em Alagoas se reproduzem na forma e no grau

de acordo com o que ocorrem no cenário nacional. Os povos reconhecidos

anteriormente, Kariri-Xokó e Xucuru-Kariri, serviram de base para o canal com o

governo, com o discurso contrário às entidades indigenistas e movimentos sociais.

Os que emergiram posteriormente, sem exceção, buscaram o apoio das entidades

até o reconhecimento, aliarando-se ao governo logo após o reconhecimento. “O

interdiscurso disponibiliza o modo como o sujeito significa em uma situação

discursiva dada”. (Op. cit., p. 31).

No caso dos povos do Sertão, em razão do tempo, constata-se que os

processos discursivos se encontram em andamento. À medida que conhecem os

interlocutores e seus discursos, com base nos direitos constitucionais e nos

interesses específicos de cada liderança e povo, os discursos são produzidos e

dirigidos a cada interlocutor, em nível político e religioso.

Considerando que as condições de produção do discurso compreendem

sujeitos, situação e memória, identifica-se no discurso e na situação dada aos

sujeitos indígenas, a construção discursiva dirigida ao interlocutor. Em vista disso,

escreve Orlandi: “Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito

e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se considerarmos

em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico,

ideológico”. (Op. cit., p. 30).

Neste caso, implica nas duas condições, em sentido estrito e amplo, tanto

em nível conjuntural, a necessidade imediata do reconhecimento e da garantia dos

direitos; mas, também, em nível estrutural, considerando o processo de espoliação

dos territórios, massacre, guerra, conflitos e exclusão social vivenciado no confronto

e na relação histórica com o colonizador, poder econômico local e com as forças

governamentais.

O presente trabalho constata, ainda, que, para a população indígena,

apropriar-se e utilizar indumentárias, língua, instrumento ou discurso de outro grupo

social, autoridade governamental, entidade indigenista ou religiosa, antropólogo e

historiador para afirmar a identidade, é prática comum entre os povos e etnias.

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Por trás da utilização e apropriação, os indígenas também usam o outro – o

não indígena – de acordo com os seus interesses. No jogo, identifica-se que o ator,

o sujeito indígena, usa sua habilidade para manejar os atores que tratam dos seus

interesses, sobreponde-se aos interesses de cada entidade, organismo,

personalidade e órgão governamental. O sujeito indígena se diferencia e manipula o

outro de acordo com os interesses imediatos ou estratégicos.

Na Análise do Discurso, discorrendo sobre as condições de produção,

Orlandi que chama um dos elementos de mecanismo imaginário, escreve:

Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Temos assim a imagem da posição sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar assim?), mas também da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim?), e também a do objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala? (Op. cit., p. 40).

Os discursos são produzidos no contexto das culturas; dentro de suas

dinâmicas próprias, as culturas se cruzam, intercruzam, conflitam, produzem,

mesclam e se reproduzem, continuamente. Em vista disso, os indígenas não se

furtam em utilizar qualquer mecanismo material, imaterial, discursivo, linguístico ou

simbólico para atender às categorias estereotipadas ou demandas sociais ou

políticas da sociedade nacional, utilizando e usando costumes exógenos como

forma de afirmação da identidade. Segundo Orlandi, “é fundamental para

compreender o funcionamento do discurso, a sua relação com os sujeitos e com a

ideologia”. (Op. cit., p. 32).

E analisando antropologicamente, a necessidade do argumento diacrítico

cobrado pela cosmovisão do outro, observa-se que foi também apoiado

subliminarmente pelo indigenismo e pela etnologia indígena. (PÊCHEUX, 2009, p.

171-182).

A ação política dos povos indígenas do Nordeste tem um objetivo e direção

claros. Frente à expectativa da visão colonizadora e da sociedade não indígena, o

grupo étnico identifica e reconhece a concepção, e dá uma resposta política dentro

das regras postas no jogo das culturas e da relação interétnica.

Nessa arena, o antropólogo pesquisa, analisa e elabora suas reflexões e

arrazoados teóricos, mas, às vezes, não consegue se distanciar das regras postas

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pela ação política dos atores, ou seja, o objeto de estudo e das condições sócio-

históricas. No processo de reconhecimento étnico, os indígenas submeteram-se às

regras estabelecidas pela a ação dos atores - colonizador, missionário, indigenista,

militar, pesquisador -, como condição de negociação.

Por isso, suscito, do meu ponto de vista, duas relevantes questões sobre o

indígena: enquanto sujeito que age historicamente; e o objeto da ação dos atores

não indígenas. Esta polarização bipolar, aparentemente contraditória, só é

compreendida na condição de negociação, e que o indígena que é o sujeito principal

e também o objeto central da ação dos outros sujeitos. E nessa condição, se

submete às condições e regras impostas, mas obtém o reconhecimento étnico e

garantia dos interesses e direitos. O indígena sabe utilizar bem as ferramentas do

não indígena, manipulando e ressignificando de acordo com os seus objetivos. Para

compreender a questão, do ponto de vista da AD, Orlandi escreve: “Disso se deduz

que há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo que é a que existe entre

o interdiscurso e o intradiscurso, ou, em outras palavras, entre a constituição do

sentido e sua formulação”. (Op. cit., p. 32).

Entretanto, do ponto de vista da antropologia e da etnologia, constata-se

que as mesmas deixaram de cumprir o seu papel científico, de se afastar dos

interesses imediatos do sujeito – ator indígena - e do objeto da pesquisa - o indígena

estudado. Ao contrário, metodologicamente, as duas ciências tornaram-se

engajadas e militantes de uma causa, o reconhecimento étnico, agindo muito mais

como agentes da política indígena do que propriamente da ciência enquanto tal; um

engajamento político que se justifica politicamente, mas é desnecessário

cientificamente. A sustentação teórica da identidade étnica do ser indígena, nesse

caso, não se restringe e nem se limita às categorias postas pelo outro, seja a

sociedade ou os agentes governamentais, muito menos no jogo discursivo. O olhar

antropológico deve buscar a sua fundamentação científica para além das

expressões materiais ou discursivas, visto que, para os indígenas, a sua identidade

encontra-se nas formas de viver interiormente as expressões simbólicas, construídas

no interior do imaginário.

Por omissão ou cumplicidade, tornaram-se, uma antropologia e etnologia,

engajadas. Nessa perspectiva, negativamente, não conseguindo enxergar as

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dimensões mais profundas do núcleo fundador e organizador das culturas e

identidades dos povos indígenas do Nordeste.

2.4 Uma etnologia indígena para além do exótico

No contexto das disputas políticas, o jogo de interesses entre a sociedade

hegemônica e as etnias indígenas é real. Enquanto ação imediata, em particular

para os subjulgados, usar a lógica do dominador para se afirmar como sujeito

histórico faz parte da disputa. Mas, em nível científico, a pesquisa antropológica se

confundiu com o indigenismo, entrando no jogo político. Caberia, portanto, no dizer

de Orlandi, sobre o trabalho do analista: “observando as condições de produção e

verificando o funcionamento da memória, ele deve remeter o dizer a uma formação

discursiva (e não outra) para compreender o sentido do que ali está dito”. (Op. cit., p.

45).

A discussão não está em considerar que o deslocamento é um problema

em si; ao contrário, é no campo político que a identidade se define e se afirma

etnicamente diferenciada. No entanto, a problemática se centra no campo científico,

no qual o sujeito pesquisador, com suas opções e concepções, deve se afastar

objetivamente do objeto pesquisado. Com o deslocamento metodológico, a etnologia

indígena trabalhou a diferença a partir das expressões externas, deixando de

penetrar o sentido mais profundo da cultura e a identidade étnica, com suas

estruturas simbólicas específicas do imaginário, construídas no decorrer do

processo histórico, político, econômico e religioso de cada grupo social do Nordeste.

E, portanto, o deslocamento da base metodológica do objeto central da pesquisa – o

anonimato e o ressurgimento étnico -, acarretou em um problema de ordem

epistemológica.

O Nordeste, na história da colonização, é geograficamente a região onde

aconteceram os primeiros contatos com os europeus – há uma discussão

acadêmica se o local do desembarque foi o estado da Bahia, Monte Pascoal, ou em

Coruripe, litoral sul de Alagoas. (ALTAVILA, História da Civilização das Alagoas,

1988).

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Consta nos relatos históricos que, antes da presença de portugueses,

franceses e holandeses, as populações nativas da costa brasileira, já eram

conhecidas por outros navegadores europeus e membros do povo Viking.

Independente de quem fez os primeiros contatos, a história da região e dos povos

nela habitada ainda é escrita na perspectiva da história oficial construída

secularmente pelo colonizador nas academias palacianas.

À semelhança da antropologia, a ciência historiográfica também carece de

um corte epistemológico. Do ponto de vista acadêmico, a pesquisa histórica e a

escrita dos livros padecem da mesma limitação congênita das outras ciências

ocidentais. A matriz teórica greco-romana ocidental, positivista e mecanicista,

condiciona os estudos ao viés do técnico-científico à visão hegemônica da cultura

ocidental.

O rompimento com os princípios e marcos da ciência mecânica parece não

ser uma tarefa posta pelos pressupostos categóricos da maioria dos pesquisadores

e cientistas. Pelos arrazoados arqueológicos, históricos e antropológicos a academia

tem como base ontológica a concepção da sociedade moderna e, ainda, parâmetros

da empresa civilizatória.

Entretanto, essa discussão epistemológica e a análise teórica não

significam o descarte da contribuição da ciência moderna e dos seus avanços

tecnológicos. A questão fundamental está na base do princípio norteador da

pesquisa. O objeto não deve ter como referência somente o que a colonização

provocou, independentemente do ângulo. Como já demonstrado no presente

trabalho, a questão coloca-se sobre as populações que se encontravam em época

milenar no território, por onde e quando chegaram; como se organizavam, ocuparam

as terras e desenvolveram suas culturas; como os grupos étnicos se formaram e se

constituíram como forças étnicas e interétnicas; as cosmologias que criaram e os

mitos que as sustem; as ciências medicinais e astronômicas que desenvolveram; as

produções artísticas e os projetos de mundo que formaram.

Com a intervenção das culturas europeias e do poder imperialista

dominante, as culturas e organizações étnicas foram impactadas e pressionadas a

desenvolverem em curso histórico e organizativo de contato, observação, medo,

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resistência, confronto, negociação, adaptação, assimilação e reelaboração material

e simbólica.

Um cenário social foi construído sob o impacto das novas relações de

sujeição impostas pelos atores, sob a égide do binômio conquistador e conquistado.

É patente que as culturas europeias e indígenas não passariam incólumes

estruturalmente às mudanças impostas pelo contado.

Os europeus, mesmo considerando a base de sustentação cultural

ocidental – pensamento filosófico e religioso -, suas formas de organização étnica,

social, e política e os interesses econômicos são divergentes e conflitantes. Para

sobrevivência e manutenção dos interesses da metrópole, tiveram que negociar

entre si e com as populações conquistadas.

As populações nativas, por sua vez, também não foram simples

depositárias inertes dos desejos, interesses e política dos conquistadores e

dominadores europeus. Com uma constituição étnica multicultural e pluriétnica,

também negociaram entre si e com os europeus. Movidas por disputas étnicas e/ou

articuladas com os europeus, construíram organizações, grupos e forças políticas

em defesa dos interesses e das disputas internas ou dos colonizadores31.

Nesta linha de investigação cultural, a análise sobre os grupos étnicos

nativos e os colonizadores, não pode limitar-se às categorias marxista opressor e

oprimido, vencedor e vencido. Na política imposta pela empresa colonial,

portuguesa, francesa ou holandesa, muitos grupos foram dominados, cooptados,

exterminados e integrados aos interesses e perspectivas dominantes; outros

resistiram, negociaram e ressurgiram. Por isso, o contato e ensinamento dos

costumes culturais, religiosos, organização econômica e política não foram

apropriados de forma automática e imóvel pelos nativos; e vice-versa. As

populações indígenas foram ativas no processo de colonização, mesmo

condicionadas ao modelo de sujeição e dominação, como também de não aceitação

e de enfrentamento político, organizativo e bélico.

Os primeiros períodos da formação do território brasileiro são marcados

pela imposição da lógica colonizadora e pela articulação e negociação entre

31 Ver GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras 2001.

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europeus e indígenas. A imposição do modelo econômico (VIEIRA, 2008) e cultural

sobre os povos indígenas provocou a criação de novos referenciais entre os grupos

europeus e os grupos étnicos nativos.

Com a entrada das etnias africanas, fator importante no processo

organizativo do tecido social e produtivo, novos atores se compõem e recompõem

no processo. Grupos de origens diversas, com culturas, línguas, religiões, costumes,

valores e organizações diferentes foram postos juntos na mesma lógica da empresa

colonial. O contato entre as diversas vertentes culturais torna-se mais complexo,

bem como a dinâmica do processo político dos povos e organizações.

As culturas indígenas e africanas são determinadas e/ou se apropriam dos

costumes dos europeus, como também entre si, utilizam os costumes e recriam de

acordo com o novo contexto sócio-político-econômico e geográfico. Os signos e

símbolos encontram-se registrados, culturalmente, na economia, nas manifestações

religiosas, nos costumes, nos valores morais, na arquitetura e no cotidiano de

grupos indígenas, afrodescendentes e do povo brasileiro.

O Nordeste do contexto da invasão europeia, marcado pela imposição

cultural e religiosa, combates e guerras de sujeição e extermínio, apropriação dos

territórios e escravização da mão de obra indígena e africana, produz socialmente

segmentos detentores do poder político, econômico e religioso, por um lado, e a

massa dos despossuídos, por outro.

É neste cenário que os atores se movimentam no Nordeste. De um lado, os

segmentos representados na classe detentora do poder político, econômico e

religioso – as oligarquias -, produtoras e dirigentes do controle social oficial; do

outro, as massas submersas, compostas por negros, indígenas e brancos pobres,

detentoras de culturas, religiões, organização políticas. No jogo de interesses, a

classe dominante avança no processo de homogeneização cultural, decreta a

extinção das diferenças étnicas, apropria-se das terras e o indígena é relegado à

categoria de caboclo.

A configuração étnica nordestina é constituída por fatores compostos pelas

forças sociais, políticas e econômicas que estruturam as manifestações sociais e

culturais. A formação da cultura letrada, de origem europeia, limita-se por longo

tempo aos membros da Casa Grande, sendo extensiva a alguns poucos originários

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das classes subalternas. E, por isso, a oficialidade dominante define e determina as

categorias, as fronteiras culturais, etnicidade indígena e o caráter de indianidade.

No Nordeste, pela origem e composição histórica, a negação do outro, o

indígena, é a negação de si mesmo, visto que o outro está em seu imaginário

cosmológico e permeia todo o seu mundo cultural e religioso. O arquétipo esconde e

guarda a ancestralidade da matriz indígena.

A decretação da extinção das culturas e das populações indígenas

resolveu pontualmente o problema imediato, a espoliação e expropriação das terras,

mas não conseguiu extinguir o ser indígena do imaginário cultural. Mesmos

desterritorializadas, sem desistirem de suas origens identitárias, as populações

indígenas sustentaram e se reproduziram culturalmente, no diálogo ou no confronto

com os valores culturais da sociedade nacional, a religião, a economia, a política, a

arte e suas manifestações sociais e ideológicas. No contexto da materialidade

dialética entre o ato dialogal e conflituoso, carregaram e mantiveram o eixo condutor

de suas identidades étnicas.

Só é possível entender o fenômeno do ressurgimento étnico no Nordeste, a

partir do drama vivenciado na história dos povos indígenas do Nordeste e refletido

no jogo de negociação com a cultura oficial dominante. As etnias foram niveladas ao

monoculturalismo regional, despojadas do ser indígena, da etnicidade e identificadas

com o ser sertanejo.

Por trás do jogo político, encontra-se dupla esperteza imperialista:

desconstruir o indígena de sua identidade própria, incutindo no seu ser elementos da

cultura do colonizador como meio de torná-lo humano, visto que, sob este olhar,

encontrava-se na condição de selvagem e de animalidade; em seguida, extinguí-lo

da condição étnica de indígena, diferença cultural e descaracterizado etnicamente

para justificar a desterritorialização.

2.4.1 Economias: mercado e distributiva

No campo econômico, as formas de produção das populações tradicionais

(SCHRÖDER, 2003) identificadas como autossustentação/reciprocidade ou dom, na

perspectiva de Marcel Mauss – Ensaio sobre o Dom -, são substituídas pela

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economia mercantilista de mercado, na concepção marxista – modos de produção

capitalista. (LAJUGIE, 1981, p. 43-63).

No campo da economia também ocorreu o processo civilizatório, tendo

como consequência a estrutura do modo de produção capitalista interferindo nas

formas tradicionais das comunidades indígenas.

Este dado desconstrói estereótipos construídos pelas mais diversas e

variadas correntes e modelos antagônicas, destacando-se duas grandes vertentes:

colonialista e a romântica. No início da colonização, o indígena foi caracterizado

como preguiçoso, indolente, incapaz e inapto para o trabalho; posteriormente, o ser

amante da natureza, da harmonia e vivente da sociedade comunitária. (SAHLINS,

1977).

As duas concepções não se justificaram nem no período em que foram

formadas e, muito menos, aplicadas às populações indígenas do Nordeste,

particularmente aos povos do sertão de Alagoas. São concepções inconsistentes

teoricamente e inadequadas histórica e socialmente.

No primeiro caso, estava em jogo modelos de produção e de

desenvolvimento, a mercantilista; do lado, a economia caracterizava-se como meio

de exploração da natureza ou de sustentação e reprodução física e cultural dos

povos. Neste contexto, encontra-se também a concepção romântica, resultado de

uma construção imaginária, com fundamentação literária e bíblica - o paraíso

perdido do livro Gênesis (1,1-31; 2, 1-3; 3, 1-24, p. 3-8), desconexa com a realidade

histórica e econômica de cada povo, contextualizada no seu tempo e no seu espaço.

Visto que as vertentes não se adéquam à realidade histórica dos povos

indígenas pesquisados, busca-se encontrar outro caminho de análise para que

melhor se aproxime e se expresse a realidade econômica em que a população

indígena está inserida em suas comunidades, considerando as condições históricas,

sociais, econômicas e religiosas, suas contradições, interesses, mundo simbólico e

imaginário.

No contexto dos 500 anos e da conjuntura atual da globalização, cada

grupo indígena construiu e constrói relações econômicas dependendo do contato e

distância que manteve e mantém com a economia de mercado. Em todos os

momentos da história, os povos indígenas constituíram relação com a população do

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entrono de suas comunidades, com as formas de produção e o comércio local. As

comunidades estão inseridas na comercialização, dentro das regras de mercado, de

compra e venda de gêneros alimentícios e de venda do excedente produzido nas

aldeias.

As relações não ocorrem de forma estática, limitadas às relações pontuais

com os membros da sociedade nacional. Elas acabaram entrando no cotidiano dos

indígenas, interferindo e transformando as formas coletivas de organização

econômica, segundo Marshall Sahlins, em A economía de la edade de piedra.

Mas as mudanças econômicas ocorrem não somente pela relação direta

com a economia mercantilista e capitalista, mas, também, em consequência da

desterritorialização forçada, provocada pela expropriação da terra e a consequente

falta de condições na natureza para a produção, a coleta e a pesca. Destituídos do

espaço necessário para desenvolvimento das atividades produtivas, foram obrigados

a buscar novas formas de manutenção das famílias; os homens assumiram

atividades de vaqueiros nos currais das fazendas, de diaristas nas roças dos

pequenos produtores rurais, em usinas de cana de açúcar e na construção civil; os

que permaneceram nas comunidades continuaram com a agricultura de subsistência

em pequenas glebas, ou em terras arrendadas ou como meeiros - agricultores e

proprietários de terra que utilizam o sistema de divisão da produção em condições

determinadas pelo proprietário da terra.

Apesar de encontrarem-se inseridos na economia capitalista, as relações

econômicas determinam as relações sociais e políticas, mas não as explicam

totalmente. As culturas indígenas tornaram-se subjulgadas pela cultura dominante,

mas não submergiram por completo da história, conseguindo construir alternativas

de resistência e manutenção da identidade étnica. Observa-se que durante os

períodos de rituais, os indígenas mantêm os laços de partilha na alimentação dos

visitantes e da comunidade, com a contribuição coletiva com gêneros alimentícios,

com produtos das roças e com dinheiro. As relações capitalistas vividas ao longo do

ano com a sociedade do entorno e internamente, são superadas durante os eventos

religiosos e entre os familiares.

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2.4.2 Religião indígena e religião católica

Em nível da religião, a catequese missionária dos padres católicos impôs

sua prática, os santos, os ritos, as cerimônias e o Deus cristão. Foram se

construindo igrejas e capelas nas terras ou nas proximidades das comunidades com

o objetivo de inserir os indígenas na cosmologia católica. Em torno da missão, os

indígenas foram aldeados, onde receberam os ensinamentos religiosos e a

formação disciplinar para o trabalho na missão ou em fazendas de gado.

A inserção dos santos, ritos, costumes, valores e práticas católicas ocorreu

de forma impositiva pelos missionários através da catequese, provocando a

assimilação compulsória dos indígenas na religião católica. Mas como cultura e

religião não são estáticas, os indígenas apropriaram-se e transformaram os

elementos católicos em entidades religiosas dos antepassados. Nos dias atuais,

durante as festas e celebrações de padroeiros da Igreja Católica, próximas aso

aldeamentos, a presença e participação indígena são marcantes, com vestes e

trajes culturais e apresentação da dança do povo, o toré - dança indígena praticada

no Nordeste em período religioso ou de festa.

O catolicismo colonialista ficou marcado nas formas de expressões e

práticas religiosas dos povos indígenas do Nordeste. Identifica-se como prática

permanente dos membros da maioria das comunidades, o respeito pelo sacerdote

católico e a procura pela celebração do batismo, do matrimônio e da eucaristia – a

missa. Atividades que ocorrem na igreja paroquial, geralmente localizada no centro

urbano do município, em capelas da circunvizinhança ou dentro do aldeamento.

A prática sacramental e a relação das autoridades da Igreja Católica com

as populações indígenas na América Latina, especialmente no Brasil, em nível

oficial, tem levantado crítica quanto ao objetivo da evangelização desses povos

depois da realização do Concílio Vaticano II. Nos documentos oficiais encontra-se o

posicionamento de respeito às diferenças étnicas e às culturas autóctones.

Entretanto, existem contradições na prática missionária, em mutos casos, ignorando

as tradições religiosas próprias de cada povo.

Nas Conferências do Episcopado Latino Americano (CELAM) de Medellín

(1968), e Puebla (1979), o episcopado assume a ação pastoral de opção pelos

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pobres, que viabilizaou a Teologia da Libertação – usa o instrumental marxista na

análise dos fenômenos sociais. Em 1992, realizou a de Santo Domingo, com o tema

inculturação, propondo uma nova forma de evangelização.

A inculturação visa à assunção dos últimos como próximos e pioneiros.

Sua vida é o lugar preferencial da epifania de Deus. Se o ponto de partida da

inculturação é a presença no meio da vida fragmentada, o ponto de chegada é a

participação da vida integral. Vida fragmentada e vida integral são articuladas por

uma proposta, o Evangelho, e por um caminho a percorrer, a missão. (SUESS,

1996, p. 1).

Do ponto de vista social, o posicionamento da Igreja avança em relação às

práticas anteriores, marcadas pelo compromisso e convivência com o poder

dominante. No entanto, quanto às questões culturais, a mesma igreja tem

dificuldade em compreender e relacionar-se com o etnicamente diferente. Afirma o

teólogo Paulo Suess: “Continuam até hoje práticas com mentalidades baseadas

mais na eclesiologia do Vaticano I do que na Lumen Gentium e na Gaudium et Spes

do Vaticano II”. (2002, p. 7).

A maioria das Igrejas da América Latina, através das Conferências

Episcopais, demonstra na prática pastoral, documentos e congressos internacionais

o descompasso e a ambiguidade entre o discurso das autoridades eclesiásticas e à

realidade pastoral local. Persiste o modelo de evangelização baseado na imposição

das práticas católicas.

Na lógica de compromisso com os pobres, a CNBB criou o CIMI, como

órgão destinado a articular a ação missionária junto às instâncias eclesiásticas –

diocese, paróquia organismo de pastoral. Os missionários do CIMI esbarraram nas

velhas práticas pastorais de evangelização, situação em que os levou à ação

missionária direta com os povos indígenas. Os conflitos internos de origem pastoral,

teológica e ideológica resultaram no surgimento de uma nova prática pastoral

indigenista, marcada pela defesa das culturas indígenas, das diferenças étnicas e

dos direitos indígenas – terra, educação, saúde, autonomia –, fundamentado

teologicamente no princípio do direito à vida. (SUESS, 1989, 17-27).

Constata-se que, independente do alinhamento pastoral e teológico, com

laços políticos mais ou menos estáveis, os povos indígenas têm uma relação

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diplomática e amigável com as estruturas e lideranças eclesiásticas católicas. Em

alguns povos do Nordeste, já se tornou comum o convite a padres e bispos para a

celebração eucarística na abertura dos rituais indígenas, a exemplo do Ouricuri -

denominação do espaço e ritual indígena, realizado em determinadas épocas do ano

pela maioria dos povos indígenas do Nordeste –, como também, em alguns casos

especiais, durante o ritual dos praiás.

Constata-se que, na região nordestina, a identificação formal dos

indígenas, majoritariamente, é com a religião católica. Entretanto, este fato expressa

um fenômeno que deve ser cuidadosamente analisado cientificamente. À primeira

vista, é praticamente unânime a compreensão do catolicismo como a religião dos

indígenas. Historicamente, do ponto de vista estritamente religioso, a formação

catequético-missionária conseguiu impregnar os ritos e cerimônias na vida e no

cotidiano dos aldeamentos indígenas. E, com isso, a proclamação identitária do

indígena com o catolicismo é dada um sentido político. Visto que a igreja católica

assumiu ao longo da colonização o papel de vanguarda e protetora da população

indígena, com todas as ambiguidades políticas que isso possa implicar em nível

pastoral e teológicoao longo da história, tornar-se católico significou o passaporte

para a humanização do ser selvagem, a ligação oficial entre o mundo indígena e o

mundo ocidental.

Neste aspecto, é determinante a polarização entre selvagem e civilizado,

infiel e fiel, no sentido de delimitar o pertencimento do ser ou não ser gente,

pertencer ou não a sociedade dos humanos. Na escrita do missionário Martinho de

Nantes, vê-se a comparação do indígena com o animal: “seriam macacos para imitar

o que vissem fazer ou papagaios repetir o que lhes ensinassem...” (Apud LINDOSO,

2005, p.124). Postura que, no século XX, vai mudar com a abertura da Igreja

Católica em relação ao reconhecimento e valorização das culturas indígenas e o

engajamento mais ativo de missionários na defesa dos direitos indígenas,

favorecendo o surgimento de um olhar mais aproximado dos membros da igreja

católica.

A absorção indígena dos ritos, signos e símbolos católicos e as práticas

cotidianas, analisada superficialmente e condicionada a interesses do proselitismo

religioso e ideológico e, ainda, desconsiderando os elementos acima mencionados,

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pode levar a conclusão apressada e frágil da catolicidade indígena – no sentido

teológico cristão; ou, por outro lado, pode levar ao erro da negação pura e simples,

afirmando ser uma pura utilização oportunista em razão da força política e apoio da

igreja na luta dos povos indígenas na defesa dos direitos.

Percebe-se que as duas questões carecem de uma fundamentação

antropológica mais substancial. A própria dinâmica interna da religião e da cultura

não permite o mecanicismo newtoniano, objetivando a transposição ou conversão do

mundo indígena para o mundo cristão católico; ou, ainda, o sincretismo. Na

realidade, a relação entre os elementos da religião católica e os das religiões

indígenas, ocorre em um terreno extremamente movediço e poroso. Portanto, este

fenômeno nem deve ser visto como conversão dos infiéis selvagens ao cristão

civilizado, nem também um emaranhado de elementos confusos, conflitantes e

sincréticos. Ao contrário, esse fenômeno é resultado da apropriação de elementos

do catolicismo imposto pelo efeito colonizador e/ou assumido em consequência do

contato entre os sujeitos culturais, ressignificados no contexto histórico das disputas

de projetos políticos, étnicos e culturais.

A afirmação do ser católico pelos indígenas não significa a negação da

religião do seu grupo étnico. Como também, as religiões indígenas levaram para

dentro de suas respectivas culturas signos e símbolos de outras culturas e religiões,

indígenas, africanas, europeias, asiáticas.

Nos dias atuais, o fenômeno se repete com elementos religiosos

evangélicos de origem protestante e pentecostal que têm penetrado nas

comunidades indígenas do Nordeste de forma significativa. Na maioria dos casos,

identifica-se que o indígena utiliza a alcunha de ser católico para não permitir a

entrada, o crescimento e o êxito das igrejas protestantes em suas áreas. O uso dos

ser católico diante do fenômeno pentecostal, não expressa necessariamente uma

identidade religiosa e teológica, mas uma identidade social e política. Nesse sentido,

o título serve como escudo e proteção contra a penetração de elementos religiosos

até então estranhos ao mundo indígena; e, também, nos tempos recentes, como

aceitação da convivência relativamente pacífica entre a Igreja Católica e as religiões

indígenas.

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113

Nas últimas décadas, com o crescimento tecnológico radiofônico e

televisivo nas comunidades, o número de evangélicos adeptos de denominações

protestantes pentencostais cresceu entre os indígenas. Além da penetração

midiática, o acesso de evangélicos às comunidades ocorre mais frequentemente

através doações de alimentos e roupas, aproveitando-se do estado de carência da

população indígena, especialmente em períodos de escassez alimentícia, carência

econômica e doenças.

A prática e visão pastoral das denominações cristãs seguem a linha da

conversão compulsória ao cristianismo, tendo Jesus Cristo como o único Salvador,

impondo o radical rompimento com o passado indígena. À semelhança da prática

pastoral católica dos primeiros séculos de missão, o conteúdo evangélico é de

demonização das práticas religiosas dos indígenas, os ritos, os mitos, as entidades

espirituais e as danças e cantos. Ao olhar evangélico, os dois mundos são

incompatíveis na vida do indígena. Segundo a indígena Roseli Ferreira da Silva:

Mas eu digo assim, como uma pessoa evangélica, jamais eu vou escolher assim entre ser reconhecida pela minha cultura indígena e que ninguém nunca vai me tirar isso, quem nasceu rei vai ser rei pra vida inteira, se eu nasci indígena eu vou ser indígena até morrer, entre continuar com a cultura ou a minha salvação eu particularmente... (ENTREVISTA, 2013, p.10).

Outra indígena do povo Koiupanká, Socorro Silva, membro da Congressão

Assembleia de Deus, em Inhapi, afirma que não participa mais dos rituais do seu

povo, mas só das reuniões políticas. A justificativa para a conversão é em função do

casamento, visto que o marido é membro daquela congressão cristã.

Em geral, na abertura da festa do padroeiro, em algumas comunidades, o

pároco da comunidade convida o grupo indígena para apresentar a dança do toré

durante o novenário - celebração católica realizada em 9 noites consecutivas. Na

ocasião, os indígenas se vestem e pintam o corpo com traços típicos indígena do

imaginário da sociedade: saias confeccionadas com as fibras de cipó do crauá ou

croá - cipó encontrado no sertão destinado a produção de fibras -, tinta extraída de

argila – quando não é possível encontrar na natureza, recorrem à palha do ouricuri –

palmeira típica da vegetação semiárida -, à tinta industrializada. Ao encerrar a

apresentação, o grupo tira as vestes e a pintura e volta à forma do cotidiano.

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É relevante analisar o convite da igreja católica ao líder ou a comunidade

indígena para se apresentar durante os eventos religiosos. Neste aspecto, o teólogo

Paulo Suess, alerta para o caráter de continuidade da ação evangelizadora da

igreja, fundamentado teoricamente com a distinção entre aculturação – a não cultura

- e inculturação – respeito à autonomia do outro -, no caso, sobressaindo-se a

aculturação como negação da inculturação. (Op. cit., 1996, p.7).

2.4.3 Cotidiano: vestimenta

2.4.3.1 Vestimenta

Em contraste com o imaginário estabelecido no pensamento cultural

nacional do indígena, andando nu ou seminu na floresta, carregando nas costas um

cesto, com arco e flechas nas mãos, a indumentária do indígena do Nordeste não se

diferencia da usada pela população sertaneja. As vestimentas do cotidiano ou em

eventos especiais assemelham-se às da população da região. No dia a dia, o

homem usa calça, calção, bermuda, camisa, camiseta e cueca; a mulher usa

vestido, saia, calça jeans, calcinha, bermuda, blusa, biquine. Os produtos são

industrializados e comercializados em loja, supermercado ou feira livre, acessivéis a

toda a população da região. Em eventos cívicos ou em de festa de padroeiro, os

indígenas destacam-se usando roupas de época, participando de baile dançante; as

crianças brincam em parques estilizados; e, em bares, barracas e tendas,

encontram-se indígenas degustando aperitivos. Faz lembrar Mário de Andrade: “Sou

um tupi tangendo um alaúde” (Apud GRUZINSKI, 1999, p. 23).

Levanta-se o questionamento: o que é vestimenta indígena? A vestimenta

do cotidiano também não é indígena? O quê e em quê a vestimenta diferencia o

indígena do restante da sociedade? Compreende-se que, a partir do comportamento

e mobilidade do indígena em se vestir e se pintar diferentemente durante um mesmo

evento, o exemplo dado anteriormente, não é o distintivo em si definidor da

identidade étnica, mas um dentre outros na complexidade de uma infinidade de

meios. O que caracteriza a ação indígena no evento, com a sua autocompreensão

de sujeito simbólico, é a leitura que faz das distintas etapas de representação

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cultural, simbólica, que, para ele, surge como oportunidade ímpar para a delimitação

da fronteira cultural e afirmação da identidade étnica.

2.4.3.2 Relações Sociais: família, economia e política

No conjunto da sociedade, as relações sociais e políticas dos povos

indígenas são as mesmas praticadas pela população não indígena. Os

compromissos sociais, o compadrio, a relação de respeito para com autoridades e

instituições, participação em processos eleitorais, ritos católicos e evangélicos, não

se diferenciam do restante da população local. Exemplo, o batismo de uma criança,

indígena ou não indígena, os padrinhos assumem o compromisso de doar a roupa e

de promover a festa no dia da celebração.

A celebração de casamento não é diferente e obedece às regras

estabelecidas pela sociedade local. Os nubentes se escolhem livremente, inclusive

com enlaces matrimoniais constituídos entre indígena e branco. Em geral, a escolha

é individual e tomada por padrões de identificação estéticos e sentimentais,

enquanto as relações familiares são constituídas por laços de parentesco, étnicos e

por interesses políticos e econômicos.

As relações de cruzamento e casamento com membros de povos europeus

e de etnias africanas, em consequência do contato e interesses econômicos dos

colonizadores, os caracteres biótipos do indígena não se diferenciam em geral na

região. Dependendo da localidade regional, no caso em estudo, os povos do Sertão

de Alagoas, os traços assemelham-se aos do homem e da mulher sertaneja, de

estatura baixa e média, pele parda ou negra e cabelo crespo.

A estrutura da família nuclear - pai, mãe e filhos -, é identificada

principalmente na organização econômica, na responsabilidade dos pais para com a

educação dos filhos e a manutenção das necessidades familiares. Os avós

participam da vida dos filhos e netos no contexto da comunidade, em que cada um

tem papel e obrigações definidas na educação das crianças. Na relação familiar -

avós, filhos e netos -, os anciãos têm também o papel econômico na manutenção

alimentar, diferentemente da estrutura familiar dos antepassados (ATHIAS, 2002,

p.184). Inseridos nas políticas públicas do Brasil, os anciãos – mulher com 55 e

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116

homem com 60 anos -, conquistaram o direitos à aposentadoria da previdência

social com um salário mínimo32 brasileiro, no valor de R$ 724,00, a partir do dia 1 de

janeiro de 2014. Para o economista Cícero Péricles, no Estado de Alagoas, em

razão da fragilidade econômica do Estado, o salário dos aposentados tem relevante

destaque na economia local e, também, nas comunidades indígenas. (PÉRICLES,

2005, p. 82).

Com isso, na maioria das famílias indígenas, os avós acabam tendo

destaque na economia de suas comunidades, ainda mais considerando a perda da

terra, o desemprego e a escassez de bens alimentícios, as relações sociais são

modificadas, como guardiões da memória e da sabedoria do povo, participam

ativamente da sustentabilidade familiar.

Mesmo considerando o impacto das mudanças sociais dentro das

comunidades indígenas em consequência das influências externas, observa-se que

os mais velhos continuam recebendo a atenção dos mais jovens, principalmente em

relação ao respeito à tradição cultural, familiar e religiosa. Há um tratamento

específico de respeito aos avós e, em geral, para com os idosos da comunidade,

como referência dos rituais religiosos e de cura.

Quanto à organização política, por tratar-se da relação com a sociedade

não indígena, a exemplo da luta pela demarcação dos territórios, são apropriadas

formas organizativas da sociedade nacional, inspiradas em vertentes ideológicas

conservadoras ou democráticas, como conselho, associação, participação e

representação comunitária. Em relação à participação do indivíduo como membro do

grupo, o critério político é determinante, na condição de assumir o compromisso com

as demandas reivindicatórias e mobilizações políticas do povo, conduzidas pelo

grupo dirigente.

32 O salário mínimo nacional foi instituído pelo decreto lei nº 399 de abril de 1938 do presidente Getúlio, passando a vigorar em 1º de maio de 1940. As leis básicas que garantem o direito à aposentadoria dos trabalhadores rurais estão na Constituição Federal de1988, as leis nº 8.212/91, nº 8.213/91 e Decreto nº 3.048/99. Ao indígena é exigido certidão fornecida pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI -, certificando sua condição de trabalhador rural.

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2.4.3.3 Idioma

A língua falada no cotidiano indígena é a portuguesa, típica estrutura do

interior sertanejo: sotaque, forma de expressão, construção lógica e representações

culturais e religiosas, econômica e social. Na relação com a sociedade nacional, as

formas e meios de comunicação são os mesmos para com a economia de mercado,

a política, a educação, a religião católica e denominações evangélicas.

Do ponto de vista da necessidade de constituir canais e instrumentos de

comunicação na relação com a sociedade não indígena, e na condição de excluído

da cultura letrada e submissão social, política, religiosa e econômica, o indígena

demonstrou alto nível de capacidade no aprendizado da cultura do outro, em todas

as dimensões materiais, culturais, simbólicas e valorativas, ao ponto de chegar a ser

confundido com outro.

2.4.3.4 A linguagem da ciência dos Encantados

No contexto das relações sociais internas, constata-se a formação indígena

como princípio dentro das comunidades do Nordeste, o ensinamento religioso para

os filhos, o segredo – cosmogonia indígena33 - e a construção de uma linguagem

especifica para explicar os símbolos e significados contidos nos ritos e nas

atividades religiosas. A forma linguística é a mesma: ciência – termo é originário do

conhecimento ocidental, que foi apropriado, interpretado e traduzido pelo indígena

para o mundo religioso, como expressão de um conhecimento dominado pelos

iniciados. É um termo que resume o segredo que não pode ser revelado ao branco –

identificado por não indígena, o cabeça seca, sem conhecimento -, mas, também,

para o indígena que não conhece as entidades religiosas do povo.

Em Alagoas, os povos Wassu-Cocal, Tingui-Botó, Karapotó, Kariri-Xokó,

Aconã e Xucuru-Kariri , localizados nas regiões da Mata, Agreste e Médio-Sertão, de

origem Tupi e Kariri, definem o local e ritual com a denominação de Ouricur34 –

nome de palmeira nativa da região seca e úmida do Nordeste, fornecedora de palha

e fruto; a palha é tradicionalmente utilizada pelo indígena para a cobertura da casa,

33 JONES, David M.; MOLYNEAUX, Brian L. Mythologies des Amérique, 2001. 34 Não há comprovação precisa se o nome do ritual é originário da palmeira ouricuri.

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confecção de esteira, tapete, chapéu, saia e bolsa; a massa do coco é usada na

alimentação e produção de óleo. Para esses povos, tudo que está envolto ao

Ouricuri é segredo.

No período do ritual Ouricuri, 15 dias ao ano e em finais de semana,

convocado pelas lideranças religiosas, só participam os indígenas conhecedores do

ritual – significa que membros de comunidades indígenas que não conhecem o ritual

são também impedidos de participar.

Na entrada ou abertura oficial do ritual Ouricuri - termo utilizado pelos

indígenas no dia do ato celebrativo em que efetivamente se recolhem no Ouricuri -,

em alguns povos, a sociedade é convidada para participar, amigos, pesquisadores,

parentes não indígenas e até meios de comunicação, podendo permaner até o meio

dia. Todos são obrigados a respeitar as proibições determinadas pelo pajé, como

não cruzar o terreiro, não ultrapassar os limites de entrada do local reservado aos

homens, não fotografar ou filmar lugares e objetos relacionados ao sagrado.

No Sertão, os povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká,

os rituais são realizados de acordo com o calendário religioso determinado por cada

etnia, com período e regras definidas. Os rituais são realizados em dois momentos

distintos: os rituais de preparação correm somente entre os indígenas; e o público,

no qual os praiás e toantes dançam e cantam no terreiro, na presença de todos,

indígenas, convidados, pesquisadores e curiosos.

A linguagem que os indígenas usam para falar sobre os rituais é do

domínio da língua portuguesa, como festa ou brincadeira – divertimento e lazer;

coisa de criança –, isso remete à lembrança da prática catequética missionária de

infantilização dos indígenas; ou, ainda, do linguajar popular, usada pelo cacique

Genésio Miranda, chama forguedo – folguedo. (FERREIRA, 2001, p. 327).

2.5 Geripankó e os povos do sertão de Alagoas: organização social

A tradição dos rituais geripankó tem a origem no povo Pankararu, aldeia

Brejo dos Padres. Em respeito às raízes e às tradições de origem, os povos do

Sertão de Alagoas esperam, e até participam, do início dos ritos Pankararu, no mês

de dezembro, depois da colheita do primeiro fruto do umbu com o ritual Flechada do

Imbu. No ano seguinte, no período que antecede imediatamente a Semana Santa ou

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Paixão de Cristo do calendário litúrgico da Igreja Católica, realizam os rituais da

Corrida dos Praiás, durante quatro finais de semana seguidos, onde acontecem a

Puxada do Cipó, a Dança dos Pássaros, a Queimada do Cansanção e o ritual dos

Penitentes. Ao longo do ano, ainda realizam o Ritual da Santa Cruz, da Mesa e do

Menino do Rancho.

2.5.1 Geripankó: clãs – diversidade clânica e discurso de unidade étnica

Em nível religioso, está organizado geograficamente em oito terreiros:

quatro na aldeia Ouricuri, organizados por dois grupos religiosos; um na comunidade

Figueiredo, na casa do pajé Elias Ferreira; um em Piancó, do cacique Genésio

Miranda; e o da comunidade Poço da Areia.

No campo político, havia uma compreensão por parte dos órgãos

indigenistas governamentais e das entidades não governamentais, diferentemente

de outros povos indígenas, de que Geripankó era um povo unido e coeso, no qual

reinava a harmonia entre o povo e suas lideranças, onde não havia conflitos internos

e interétnicos. As lideranças tradicionais, o cacique Genésio Miranda e o pajé Elias

Ferreira, conseguiam manter em nível de representação a unidade interna do grupo.

Em 2002, o cacique Genésio Miranda renunciou ao cargo, segundo ele por

opção, justificando cansaço e idade avançada. Com a renúncia do posto, entregou o

cargo para o sobrinho, Manoel Antônio da Silva, conhecido como cacique Manu35.

O período em que o novo cacique esteve à frente da comunidade foi

considerado desastroso pelos seus membros, gerando divisões e grupos; acusado

pelos antigos aliados de desvio de bens e de recursos da comunidade; provocou

conflitos entre as forças políticas e religiosas do povo. Outro fator levantado por

alguns membros da comunidade como motivo dos conflitos internos estava

relacionado à interferência política do funcionário da FUNAI e do ex-vereador

Talvane Ramalho Vieira, que tinha alimentando a disputa entre o presidente da

Associação Comunitária, Severino José do Nascimento, e o grupo liderado pelo

cacique Genésio Miranda e Elias Bernardo Ferreira. E um terceiro elemento,

35 Atualmente encontra-se na penitenciária cumprindo pena pelo assassinato de uma pessoa.

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diluídos entre os membros das comunidades – funcionários públicos e estudantes -,

estes ligado à política indigenista, baseados na disputa de grupos indígenas por

cargos na política de Estado.

Entretanto, para além da visão anterior sobre a unidade e coesão do grupo,

esses três pontos podem dar pistas para uma análise mais aprofundada e

específica, podendo revelar, assim, razões mais profundas do discurso de unidade e

coesão do grupo. Concepção que tem origem no princípio filosófico grego da

universalidade do ser social indivisível e absoluto, combinando com a visão cristã da

unidade como modelo de perfeição. (CHAUÍ, 2002, p. 20). Por outro lado, no campo

da AD, referindo-se ao lugar da interpretação, diria Eni Orlandi:

Que escuta ele deve estabelecer para ouvir para lá das evidências e compreender, acolhendo, a opacidade da linguagem, a determinação dos sentidos pela história, a constituição do sujeito pela ideologia e pelo inconsciente, fazendo espaço para o possível, a singularidade, a ruptura, a resistência? (1999, p. 59).

O sentido de perfeição de origem greca-cristã expandiu-se com a empresa

colonial, marcadamente no período medieval. No século XVI, mesmo na Europa os

intelectuais suscitaram novos ares com o pensamento renascentista, enquanto que

os agentes da colonização atuaram com os critérios e concepção medieval. O que

vai dar a base teórica e ideológica para a formação da brasilidade, suas instituições,

mantendo a visão eurocêntrica e monocultural. As instituições indigenistas,

expressão da concepção da sociedade nacional oficial, têm como fonte a

racionalidade grega e suas categorias cartesianas e mecanicistas que produzem

critérios de enquadramento das culturas e constroem parâmetros idealistas para o

ser indígena.

Por sua vez, o indígena, como ser histórico, contextualizado no tempo e no

espaço, agente e sujeito, elabora também o discurso interessado, utilizando a

mesma fonte do processo catequético, missionário e da formação escolar e social do

contato com a sociedade não indígena. Por isso, em vista da Análise de Discurso,

pode-se aplicar a análise de Orlandi: “A própria língua funciona ideologicamente,

tendo em sua materialidade esse jogo”. (Op. cit., p. 59).

No encontro com as formas organizativas, o indígena faz a leitura da

concepção do interlocutor, para elaborar o conteúdo discursivo que interessa ao

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poder dominante, resguardando-se de intempéries, conflitos, perseguição e exclusão

a que foi historicamente submetido. A construção do discurso ocorre no contexto

histórico de uma relação de poder entre o dominador e dominado em nível religioso,

político e econômico.

A unidade, no sentido posto pela racionalidade ocidental, possivelmente

nunca existiu dentro das relações internas da população e, muito menos, nas

relações interétnicas. Em nível da composição dos grupos étnicos encontrados no

Brasil, identificam-se troncos linguísticos de diversos povos espalhados por todas as

regiões do território. Antes da chegada dos europeus, os povos estavam

estruturados e mantinham os contatos de acordo com as relações interétnicas e

linguísticas.

Na perspectiva de responder à expectativa dos interlocutores – agentes

públicos, autoridades governamentais, missionários e indigenistas-, as lideranças

indígenas se apropriam do discurso da unidade, como uma forma de manter

também o poder político sobre o grupo que lideram.

A intervenção política, religiosa e cultural europeia fez com que os povos

nativos mudassem o curso social, com o impacto e a instabilidade social obrigou-os

a construírem novas composições políticas e formações étnicas. O estado de

instabilidade migratória e de submissão ao coronelismo local, como relata o cacique

Genésio Miranda sobre a origem Geripankó,que é identificada pelo conflito e não

pela unidade. A história do primeiro casal indígena Geripankó que chegou à

Comarca de Água Branca é marcada por conflitos e disputas de terra. A migração

aconteceu por razões de terra, fome, doenças e conflitos internos em Pankararu; e,

em Água Branca, a terra que ocupa já se encontrava dominada pelo Major Marques,

por isso, mais uma vez, sofrem ameaça de expulsão, que, somente com a

intermediação do Barão de Água Branca, a permanência na terra é conquistada. Isto

favoreceu a migração de outras famílias para a localidade e aglomeração grupos

indígenas na região entre os estados de Alagoas e Pernambuco.

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2.5.1.1 Expropriação da terra, submersão étnica e negociação política

Pouco habitada, aos poucos a região do sertão de Alagoas foi ocupada

pela pecuária extensiva, principalmente nas margens rio Moxotó e na planície; as

regiões mais distantes e as serras foram disputadas pelos indígenas e pequenos

trabalhadores.

Anteriormente ocupado, praticamente, só por indígenas, com avanço das

fazendas, pequenas propriedade e núcleos urbanos, o espaço ficou reduzido a

pequenas glebas adquiridas através de compra (Lei de Terra)36. Com isso, a

realidade indígena foi reduzida a pequenos grupos que mantiveram isoladamente a

prática dos rituais religiosos – os anciãos deslocavam-se para participar dos rituais

Pankararu e/ou os praticavam às escondidas em família. Por quase dois séculos os

indígenas mantiveram no anonimato as práticas religiosas, construindo novas

relações sociais com o mundo não indígena.

A maioria dos membros das famílias indígenas foi inserida na economia

local, o homem transformado em vaqueiro - atividade marcadamente masculina,

caracterizada pela vestimenta do gibão, roupa confeccionada de pele bovina, usada

na lida com a boiada na caatinga sertaneja -, e peão - trabalhador braçal - de

fazendas e, em determinado período do ano, trabalhador diarista nas roças de

pequenos agricultores ou na agricultura da cana de açúcar.

À medida que a população foi crescendo, formas alternativas e

oportunidades de sobrevivência foram criadas, especialmente com a busca de

emprego nas grandes metrópoles e regiões do Brasil e, até, em países vizinhos, a

exemplo do Paraguai e Bolívia, trabalhando na construção civil e na mecânica

industrial.

O distanciamento da comunidade e do grupo de origem levou-os a

formação de novas relações sociais, constituindo laços matrimoniais, contrato

trabalhista e apropriação de costumes urbanos. Em todas as situações acima

postas, o mundo do sujeito indígena teve que apoderar-se do mundo urbano,

impulsionado pela negociação e convivência com o não indígena, e, com essas

36 Lei de Terras, como ficou conhecida, é a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850.

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condições, manteve os costumes, as tradições culturais e religiosas no subterrâneo

da oficialidade política e cultural.

A relação conflito e negociação mantém-se presente ao longo da relação

indígena com a sociedade nacional e suas instituições. Em determinados períodos e

situações, sobressai mais um ou outro, que, de acordo com os interesses e forças

políticas externas e internas, interferem na relação e composição organizativa dos

grupos.

Na área governamental, outro fator de negociação interna Geripankó

ocorre no processo de reconhecimento étnico com o órgão oficial, a FUNAI, em

1982. Até então, os geripankó encontravam-se na condição de caboclos do ouricuri,

como eram chamados na região. Para a sociedade, na prática, a cultura indígena

presente nos rituais religiosos, não era reconhecida, vista somente como algo que

tem alguma referência remota com os primeiros habitantes, o índio de 1500.

Com a abertura política do Brasil no final da década de 1970, os geripankó

foram contatados politicamente por lideranças do povo Xucuru-Kariri, localizado em

Palmeira dos Índios, para, juntos, lutar pelo reconhecimento étnico e pela

assistência. Segundo o cacique Genésio Miranda, ele foi o escolhido da comunidade

devido à experiência que tinha – trabalhou nos estados de São Paulo, Mato Grosso

Sul e chegou até a Bolívia. O pajé escolhido foi Elias Ferreira, que mesmo não tendo

nascido na comunidade, detinha o conhecimento religioso Pankararu, com a

justificativa que foi ele quem levantou o terreiro e os praiás, “aqui não tinha mais

isso”.

Genésio Miranda e Elias Ferreira, definidos nos cargos de cacique e pajé,

respectivamente, e acompanhados de outras lideranças indígenas de Alagoas,

começaram a viajar para Recife, sede Regional, e Brasília, a presidência da FUNAI,

com o objetivo de buscar o reconhecimento étnico e a demarcação da terra.

Entre idas e vindas da aldeia para as sedes administrativas do órgão

indigenista, o povo Geripankó conseguiu a demarcação de uma área de 200

hectares, (Relatório circunstancial da FUNAI), espaço destinado à habitação e

produção da população. A terra consolidou e deu visibilidade à organização e à

identidade étnica, delimitando a fronteira cultural na relação com a população do

entorno.

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Considerando as informações acima, identifica-se que o povo Geripankó

encontrava-se no anonimato como grupo étnico e organização política, limitados às

práticas isoladas do ritual. Com o reconhecimento político da sociedade e órgão

governamentais e articulação com as lideranças indígenas de outros povos e

entidades indigenistas, com a garantia dos direitos constitucionais e a conquista da

gleba de terra, os rituais religiosos e a identidade étnica tornaram-se públicos.

A comunidade continua a reivindicação pela demarcação do restante do

território. O cacique Genésio Miranda apresenta os marcos do território Geripankó:

Aí foram feito limite assim, da Cadeia do João Curto, Serra da Chapada, Cabeça da Grota D‟água, Bem Dizer, Serra do Simão, descendo Pedra Letrero, Lagoa do Croatá, subindo a Serra do Lunguinha pega a Serra do Cardoso, a Lagoa da Samombaia, lá vortando direto a Lagoa do Ripelo, e lá vortando vem direto embugando a ferrada que é aquele Oraçicum, e sobe a Cadeia de João Curto, e eu tenho todo os documento, e tá no cartório de Doutor Irácio de Melo, lá em Água Branca. (ENTREVISTA, 2013, p.12).

Na história Geripankó, surge, no período que antecede o golpe militar de

1964, a presença de grupos comunistas na região, com uma célula dentro da

comunidade indígena, com o objetivo de formar trabalhadores rurais para a luta

revolucionária. (SILVA, 2007, p. 141-164).

Este fato suscita duas hipóteses para serem analisadas: a influência, ou

ambiente propício suscitado pelo pensamento e reivindicações de esquerda para

dentro da comunidade, como a organização da luta pela terra; ou, ao contrário,

favoreceu o distanciamento dos indígenas das lutas políticas contra o poder

constituído, inibindo a participação em atividades reivindicatórias.

Pela retrospectiva histórica do povo quanto à participação em políticas

reivindicatórias contra o poder dominante, ou mesmo em relação ao direito

adquirido, constata-se que a opção da população indígena é pela negociação. Em

dissonância com essa postura, em 1992, depois de muitas tentativas de negociação

frustradas com a Fundação Nacional de Saúde/FUNASA e a Prefeitura de

Pariconha37, consegui-se a reabilitação de um gabinete odontológico da comunidade

apropriado indevidamente pela administração municipal.

37 Fundação do município, 7 de abril de 1992.

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A ação foi liderada pelo cacique Genésio Miranda, com o apoio de um

grupo indígena da comunidade, da organização Articulação dos Povos Indígenas do

Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo/APOINME e do CIMI. No Estado de

Alagoas, os povos indígenas estavam organizados na Microrregião Alagoas e

Sergipe38, mobilizados em torno da luta pela terra e da saúde.

O cacique Genésio Miranda, personagem central desse processo, coloca-

se sempre, na relação que tem com órgãos governamentais e autoridades políticas

da sociedade nacional, como analfabeto, ignorante, chegando até construir o

discurso de bobo ou de desentendido. Com isso, assumindo a infantilização e

ignorância dada pela sociedade não indígena, assim, ele se apropria e reconstrói

politicamente o discurso do interlocutor, o discurso da dependência e da negociação.

Com a construção de novas relações sociais, as autoridades geripankó

percebem a importância da organização de novos grupos indígenas na região,

aumentando a correlação de forças com os povos do Agreste e do Sertão no

processo de demarcação da terra. A correlação de forças é percebida e assumida

politicamente pelo cacique, trazendo para si a responsabilidade do apoio à

organização de novos grupos.

A dinâmica do processo social repercute nas forças internas e externas,

entre lideranças da comunidade e dos outros povos, com os políticos locais e frente

ao órgão indigenista oficial. Sentindo-se fragilizadas, lideranças dos outros grupos

internos, tendo à frente o presidente da Associação Comunitária, Severino

Nascimento, questionaram os laços de parentesco e de desvios de recursos dos

principais atores políticos sustentados politicamente pelo cacique Genésio.

Neste cenário, apresenta-se a movimentação de vários atores e interesses,

internos e externos. Além dos grupos indígenas internos que aparecem em disputa,

participam direto ou indiretamente, organização indígena interétnica, órgãos

governamentais, partidos políticos, autoridades do poder executivo e legislativo,

entidades indigenistas e religiosas.

Duas forças políticas se destacaram na disputa política em torno do

gabinete odontológico: indígenas e indigenistas de um lado; órgãos governamentais

do outro. Por trás da disputa, identifica-se a expressão ideológica das duas forças.

38 Relatório de Tânia Silveira e Jorge Vieira - membros do CIMI e assessores da APOINME.

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2.5.1.2 Identidade Geripankó: parentesco, religião e disputa política.

As relações sociais e políticas constituídas no processo de formação

organizativa e a relação de parentesco estruturam-se em torno de cinco grupos

familiares ou clânicos Geripankó, segundo dados do cacique Genésio Miranda:

Ói, famia do Zé Carapina era Miranda e Gomes, tinha Monteiro e

Francilino, mas morava mais pra lá, esse Francilino morreu no

Ceará, e Zé Monteiro morreu aqui em trinta e dois, aí só tinha da

famia do Zé Carapina Ana e Maria, essa era a famia Miranda, que é

a minha descendência, e então meus componente, que era Caipira,

Mané Caipira, Francisco Peba, Vicente Gabão, e João Puscena né...

(ENTREVISTA, 2013, p. 20).

Atualmente, os grupos se articulam e disputam a direção do povo,

perpassando pelos interesses políticos, econômicos e religiosos. À medida que o

povo foi reconhecido etnicamente pela sociedade e pelos órgãos governamentais,

cada família procura garantir o seu espaço político.

No processo de conquista dos direitos e de afirmação étnica, a organização

política do povo Geripankó tem se deslocado entre as pessoas do pajé e cacique.

Os grupos existentes na comunidade, a exemplo da Associação Comunitária e os

Penitentes - grupo religioso, com prática originada da tradição católica medieval -,

disputam politicamente a direção política. Além dos grupos mais antigos, nos últimos

anos surgiram novos atores dentro das comunidades, os estudantes, os agentes de

saúde e os professores, com novos conhecimentos e reivindicando a participação

nas decisões e na distribuição dos benefícios destinados ao povo pelos órgãos

públicos.

As disputas entre clãs e grupos geram conflitos políticos, que por sua vez

refletem na organização religiosa; e vice e versa. Esse fenômeno pode ser

observado no povo Geripankó com a diversificação dos segmentos políticos e

criação de terreiros dentro das comunidades.

Ao contrário do conceito de unidade como perfeição (ZANNONI, 1999), a

atual realidade vivenciada em geripankó tem promovido e ampliado, por um lado, a

participação política e as discussões dentro das comunidades, em nível político e

religioso; por outro, provocou a desarticulação da luta política pela demarcação da

terra.

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Portanto, os dados apontam, exceto no caso da desarticulação interétnica,

o fortalecimento político dos grupos e da própria religião Geripankó, possibilitando o

envolvimento de mais pessoas nas atividades religiosas. Observa-se, ainda,

ultimamente tem ocorrido com maior frequência o ritual do Menino do Rancho em

praticamente todos os terreiros da comunidade, em razão de graças – dádivas –

alcançada por meio dos Encantados.

Contrariando o conceito de unidade da sociedade ocidental, a

descentralização e diversificação da organização política e religiosa do povo

Geripankó, expresso no surgimento de novos atores, na participação dos jovens e a

criação de novos espaços religiosos, favoreceu o fortalecimento interno, em nível

cultural, étnico e religioso.

Do ponto de vista histórico, a unidade concebida pela sociedade nacional,

em seu sentido filosófico e teológico, representa a concepção ideológica da classe

detentora do poder político e do saber acadêmico. No povo Geripankó, a diversidade

interna possibilitou o surgimento de novas formas de organização, mobilização

política e religiosa, fortalecendo a afirmação da identidade étnica diante da

sociedade nacional.

A unidade nivelada horizontalmente, certamente nunca existiu para os

indígenas. É uma criação do pensamento ocidental, europeu e do cristianismo. No

aldeamento organizado pelos missionários, dezenas de etnias foram confinadas em

uma mesma localidade, falando um único idioma e celebrando os mesmos rituais.

Isto demonstra que, mesmo nessa condição, imperou no aldeamento o conflito e as

disputas entre povos. Mesmo com o impacto da colonização, mantiveram-se os clãs

e as famílias dentro da estrutura organizativa de cada grupo. E, portanto, esta

unidade do imaginário ocidental não se encontra na cosmovisão e na história

Geripankó.

2.5.1.3 O mundo religioso: ritos e mitos ressignificados

A tradição indígena, a missão, a catequese, o conflito, a disputa política, o

confinamento e a migração se misturam no aldeamento, se reconstroem e

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ressignificam nos rituais que sustentam o fio condutor da afirmação da identidade

étnica do povo.

Segundo relato do pajé Geripankó, Elias Ferreira, à semelhança

Pankararu, os rituais iniciam depois que um indígena encontrar o primeiro fruto

maduro do umbu ou imbu - fruta nativa do semiárido. Depois que encontra, é

comunicado ao pajé, que marca o primeiro ritual para o final de semana seguinte,

sempre no mês de dezembro, Flechada do Imbu. Colocam-se os imbus em um saco

plástico, amarrado na extremidade de uma vara, pendura-se o saco na vara

arrarrada com cordão e, então, os praiás enfileirados, com uma distância inicial de

cinco metros, com um arco e uma flecha tentam acertar o saco. À medida que todos

os praiás tentam, mas não conseguem, o espaço é diminuído até que algum venha a

conseguir flechar e derrubar o saco. O praiá que conseguir tem o direito de chupar

ou dar para outra pessoa os imbus.

O ritual Puxada do Cipó é realizado com um grande cipó colhido na mata.

Os praiás - homens encobertos com indumentária fabricada com a fibra extraída do

cipó crauá ou caroá -, investidos dos espíritos dos Encantados, enfileirados fazem

três rodadas dançando e carregando o cipó, intercalados com indígenas vestidos em

trajes do cotidiano. Ao término das rodadas, os praiás se dividem em dois grupos,

seguidos pelo restante das pessoas, coloca o cipó na direção leste-oeste. Como

cabo de guerra, os dois grupos puxam com força o lado oposto do cipó até um grupo

vencer. Os grupos envolvidos, aparentando uma simples brincadeira – gritarias e

torcida -, representam as forças dos espíritos Encantados.

Segundo informações coletadas pela pesquisa, o grupo vencedor revela

significados positivos ou negativos para o povo, dependendo da direção em que o

mesmo se encontrar. Muitas variáveis podem ocorrer: se o cipó quebrar, o grupo

poderá sofrer com problemas climáticos, doenças; caso o grupo do norte vença – o

referencial norte é resultado de uma construção do imaginário indígena do sertão,

originado no pensamento dual eixo norte e sul; na realidade, o ponto cardeal é leste

-, o povo sofrerá grandes dificuldades na agricultura, com falta de chuva para plantar

e a colheita será fraca; no caso do sul, será um ano chuvoso, propício para a

plantação e para colheita abundante.

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Seguindo o calendário Geripankó, no período imediatamente anterior à

Quaresma - segundo a tradição cristã, são os 40 dias que antecedem a Semana

Santa ou a Paixão de Cristo, quando Jesus Cristo foi crucificado na cruz e

ressuscitou no terceiro dia, a Páscoa -, realizam-se as Corridas dos Praiás, dança

composta de nove rodadas ininterruptas, durante o sábado e o domingo. Depois de

cumprirem a obrigação, os praiás se revezam durante o dia e a noite no terreiro,

parando somente em torno da meia noite para retornar no outro dia acerca das 8

horas. Em seguida, os toantes abrem as rodadas do toré até às 5h da manhã.

As Corridas dos Praiás são estruturadas em vários atos. Durante os três

primeiros finais de semana, ocorre o ritual Queimada do Cansanção, composto por

homens e mulheres compenetrados, carregando molhos de cansanção sobre os

ombros acompanhando o ritmo dos praiás; ao encerrar a dança em círculo e

simulando passar os galhos sobre as costas dos parceiros, todos pisam os galhos.

Ao final das celebrações, organizados e carregados por mulheres, balaios cheios

com gêneros alimentícios e frutas, principalmente o umbu, são colocados no terreiro

como oferendas para as entidades.

Em vários momentos, com bebidas apropriadas para o ritual, garapa e

imbuzada, homens e mulheres servem ao público presente. A garapa é feita de água

com açúcar ou rapadura, colocada em baldes ou potes de barro, é abençoada pelos

praiás antes da partilha. A imbuzada, ou umbuzada, é feita do fruto umbu, água e

açúcar – o termo usado imbuzada é utilizado pelos indígenas -, para se referir ao

líquido que depois de cozido é transformado em caldo grosso e adocicado.

Durante o ano, os grupos Pankararu realizam o ritual da Mesa. O trabalho

é conduzido pelo líder religioso, o pajé ou curandeiro, em torno de uma mesa –

espaço imaginário -, com a participação de homens, mulheres, jovens e crianças. O

pajé invoca os Encantados, os espíritos que orientam a vida, o destino e a cura da

população indígena. Segundo o pajé Elias, o ritual é realizado semanalmente, em

três sessões - terça-feira, quinta-feira e sábado. A Mesa tem como objetivo a cura de

doenças físicas e mentais, inclusive de participantes não indígenas. O pajé Elias

informou, ainda, que o trabalho para o indígena é uma obrigação do pajé, mas

quando feito para o branco, o trabalho é pago.

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O ritual Menino do Rancho é realizado com os praiás, como pagamento de

promessa ao Encantado que concedeu a graça pela cura de uma criança do sexo

masculino. Formalmente, a explicação das autoridades sobre o ritual, é a de cura de

um menino, mas, apreende-se pelos elementos inseridos no ritual, que indicam a

entrega do menino no terreiro, a iniciação no mundo dos Encantados. Os pais ou

parentes da criança, ou a comunidade quando os familiares não têm condições,

assumem a obrigação de realizar o ritual e arcar com as despesas. “Toute société

primitive possède um ensenble cohérent de traditions mythiques, une „conception du

mond‟, et c‟est cette conception qui est graduellement révéllé au novice au cours de

son initiation”. (ELIADE, 1959, p. 13).

A Festa da Cruz, de origem cristã, é realizada durante três dias, em datas

variadas de acordo com o povo, e encerrada com a celebração da missa. Há uma

grande participação da comunidade, principalmente no encerramento.

Desperta a observação do pesquisador, a presença de cruzeiro instalado

sobre uma pedra no alto de um morro ao redor do aldeamento, presente em todas

as comunidades de origem Pankararu. São símbolos que demonstram a relação

desses povos com os símbolos, ritos e manifestações culturais católicas, praticados,

desde o período de colonização no antigo aldeamento de Brejo dos Padres e que

foram mantidos, mas reelaborados em novo contexto social.

A princípio, constata-se que a cosmologia indígena é composta por uma

infinidade de entidades espirituais, originados de seus antepassados, de religiões

afrodescendentes e cristãs católicas, mas ressignificados e transformados em ritos

próprios.

2.5.2 Kalankó: origem étnica e construção social

O povo Kalankó é originário do tronco Pankararu, desmembrado e formado

como mais um grupo étnico. A história das famílias kalankó segue a linha migratória

impulsionada pela dispersão, conflitos e necessidade por espaço territorial dos

grupos Panakraru.

Nos registros históricos, identifica-se kalankó fazendo parte da composição

cosmológica e da estrutura social Pankararu. Com a migração, as famílias se

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apossaram das terras localizadas no oeste do Estado de Alagoas, próximas à divisa

com o Estado de Pernambuco, no século XIX. Com tempo, as famílias kalankó

foram inseridas na estrutura da sociedade nacional, absorvendo costumes, valores e

formas de trabalho.

Depositária das tradições religiosas indígenas e da religião católica

aprendida através da formação missionária, em Água Branca, a população

masculina foi transformada em peão de fazenda, trabalhador braçal, arrendatário e

boia fria nas usinas de cana de açúcar, na região da Mata de Alagoas. Nos últimos

anos, pela escassez de alimentos e de trabalho, a população, majoritariamente os

homens, tem buscado trabalho na construção civil, principalmente como servente de

pedreiro.

O processo de afirmação da identidade étnica aconteceu em um contexto

de mobilização política dos povos indígenas frente às medidas econômicas

neoliberais e à política indigenista do então governo do presidente Fernando

Henrique Cardoso, na década de 1990, que afetaram diretamente os direitos dos

povos indígenas na Constituição Federal do Brasil.

O debate político e a mobilização social contra as medidas neoliberais

fomentaram a participação dos povos indígenas no cenário nacional. Afetada por

essas medidas, a economia do Estado Alagoas encontrava-se em profundo déficit

público, com a economia estagnada, falência do banco estatal, desemprego e não

pagamento dos salários do funcionalismo público. A crise social se abateu sobre o

Estado, provocando a discussão e formação política da população excluída.

2.5.2.1 Reconhecimento étnico: apoio indígena e político

As lideranças Kalankó, Antônio dos Santos, conhecido Antônio Preto, e o

cacique Antônio Silva, procuraram o CIMI para revelar que eram indígenas e saber

como proceder para buscar, exatamente é o termo usado pelos indígenas, os

direitos, afirmando ter o ritual e a relação com os parentes Pankararu e Geripankó.

O cacique Genésio Miranda disse que foi procurado para apoiar os direitos

do grupo Kalankó na comunidade Geripankó, mas orientou para que o grupo

formasse a própria organização, justificando que o seu povo já tinha uma população

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numerosa. O argumento foi confirmado pelo pajé Elias Ferreira, mas com a

orientação de irem até Brejo dos Padres, aldeia Pankararu, para comprovar com os

parentes a origem indígena.

No discurso das autoridades Geripankó, confirma-se a coerência quanto o

apoio à organização de Kalankó como grupo autônomo; entretanto, diferencia-se

quanto à argumentação. Enquanto o argumento quantitativo do cacique é

determinante para formação do grupo – pode-se interpretar a sua convicção na

identidade étnica do grupo, fruto da convivência e participação nos rituais e relação

de parentesco -, para o pajé, a formação do grupo deve ser encontrada na relação

de parentesco com o tronco Pankararu.

Entretanto, esses argumentos discursivos não são contraditórios e nem

conflitantes quanto ao processo de organização e reconhecimento étnico, mas

expressam realidades diferentes dos dois personagens. Nos respectivos discursos,

identifica-se que a relação de parentesco do cacique Genésio Miranda com o tronco

Pankararu e com as primeiras famílias Geripankó, o investe de autoridade e o

qualifica a conceder prontamente a legitimidade do grupo para se organizar

autonomamente. No caso do pajé, é diferente, visto que, mesmo tendo o

conhecimento do sagrado e ser o responsável pela direção dos rituais, esses

elementos não o qualifica a reconhecer o grupo, transferindo a responsabilidade

para o tronco Pankararu, em razão de sua origem não estar no grupo Geripankó do

Ouricuri. Portanto, dentro da organização social do grupo, cada ator tem clareza do

seu papel, definido e reconhecido nas ações do cotidiano e na estrutura social do

grupo ao qual pertence. A rede de relações Geripankó, construída historicamente,

tem como base a relação de parentesco, o domínio e a manipulação do religioso, a

capacidade de constituir relações políticas e religiosas e compreender o

funcionamento das sociedades, indígenas e não indígenas.

Envolto na trama discursiva dos atores citados, os Kalankó ocupam o

espaço de afirmação da identidade étnica, sustentados nas relações de parentesco

com Pankararu e Geripankó. Os Kalankó fazem-se presentes nas Corridas dos

Praiás e no ritual do Menino do Rancho. O grupo, com o apoio do CIMI, do padre

Rosevaldo Caldeira de Souza da paróquia de Água Branca, partidos políticos,

movimentos social e sindical, firmou-se na sociedade com sua identidade indígena.

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O ritual Kalankó segue a tradição Pankararu, com preparação espiritual e

abstinência de álcool e sexo durante os três dias que antecedem o ritual para os

homens dos praiás, durante o sábado e o domingo de Aleluia.

A data de apresentação da identidade indígena está marcada no

calendário religioso. Kalankó tem a obrigação de celebrar o ritual do reconhecimento

e o do Sábado de Aleluia. O pajé Antônio Preto dirige as cerimônias, incluindo o

ritual da cura.

A celebração deu visibilidade à identidade indígena e despertou a atenção

dos moradores da circunvizinhança, das autoridades civis e religiosas, dos

agricultores e fazendeiros. A reação da sociedade não indígena fundamenta-se na

concepção estereotipada de índio, o silvícola. O técnico agrícola e funcionário da

EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de

Alagoas – e fazendeiro, José Roberto, referindo-se ao primeiro cacique Kalankó,

expressou: “O Tonho até pouco tempo trabalhava em minha fazenda como peão,

cuidava dos meus animais, e agora diz que é índio?!”. (ENTREVISTA, 1998).

2.5.3 Karuazu

A identidade étnica Karuazu vai em direção contrária à lógica

governamental. Os movimentos sociais e sindicais, indígenas, indigenistas, partidos

políticos de esquerda, religiosos, puseram-se em marcha contra as comemorações

dos 500 do Descobrimento do Brasil. Em 19 de abril de 1999, data instituída pelo

presidente Getúlio Vargas em homenagem ao índio, pelo Decreto-Lei 5.540, de 2 de

junho de 1943, em razão do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano,

realizado no México em 1940, ocorreu a celebração da Festa do Ressurgimento.

A festa foi organizada pela comunidade e participaram os povos Pankararu,

Geripankó e Kalankó, com os praiás e o toré, além da presença de autoridades

locais civis e religiosas, pesquisadores e imprensa do Estado.

O cotidiano das comunidades não mudou. Continuaram realizando as

mesmas atividades econômicas na agricultura, pecuária, comércio e prestação de

serviços; as relações sociais, contatos e compromissos; e práticas religiosas.

Entretanto, a condição advinda da apresentação da identidade étnica, criou novas

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relações com agentes de entidades não governamentais, órgãos públicos e

autoridades locais. Novas demandas foram postas quanto ao conhecimento e

relacionamento com os novos atores. Por exemplo, em nível da linguagem, são

obrigadas a aprender palavras e siglas, como FUNAI, CIMI, ANAÍ, DISEI - Distrito

Sanitário Especial Indígena -, para poder se comunicar com os novos interlocutores;

surgem novas categorias de trabalhadores, como servidor público, professor (a) e

agente de saúde.

As relações internas e externas, que não eram observadas, passaram a ter

uma nova visibilidade entre os membros da comunidade indígena, na disputa dos

grupos por cargos e liderança, como também no olhar da comunidade não indígena

em relação aos grupos étnicos.

A afirmação da identidade não se reduz ao ser identificado etnicamente

diferente, mas carrega consigo um caráter eminentemente político. No contexto do

Nordeste, a afirmação étnica dos povos do Sertão de Alagoas significou a conquista

da autonomia e a melhoria na autoestima.

2.5.4 Katökinn

O ressurgimento étnico Katökinn ocorreu, oficialmente, no dia 26 de

setembro de 2000, com a dança dos praiás e a do toré. O grupo, do tronco

Pankararu, vive na periferia de Pariconha, no bairro denominado Alta de Pariconha.

Semelhante aos outros povos indígenas do Sertão, as primeiras famílias migraram

do aldeamento Brejo dos Padres. Com o crescimento populacional da região, o

espaço territorial foi reduzido, os indígenas foram obrigados a trabalhar nas roças

dos pequenos agricultores, nas fazendas, nas usinas de cana de açúcar e em

empregos domésticos.

Na periferia, os indígenas vivem nas condições de exclusão em que se

encontra a maioria da população, sem saneamento básico, escola e precária, assim

como a assistência à saúde. A proximidade com a cidade possibilitou acintosamente

perseguição às celebrações dos rituais realizados no terreiro. Perseguido por

policiais e acusado de feiticeiro e macumbeiro, o pajé conhecido por Arvelino (Juvino

Henrique da Silva), foi obrigado a pagar propina ao Cabo Rocha da Polícia Militar,

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segundo sua neta, Cidinha Katokinn, para poder continuar a realizar os rituais (cura,

mesa, Corridas dos Praiás, toré, Menino do Rancho, Rei do Peixe - praiá traseiro ou

coice do cordão, celebrado no quarto sábado de janeiro) e se filiar na Federação

Espírita de Alagoas.

Com o ressurgimento étnico, enquanto grupo diferenciado dos outros

povos originários de Pankararu, não somente os rituais tornaram-se abertos ao

público local e aos visitantes, como também possibilitou politicamente a formação e

fortalecimento da organização da luta em defesa dos direitos indígenas, assistência

à saúde, educação específica e a luta pela terra.

Com o falecimento do pajé Arvilino Katokinn, em 09 de outubro 2006, a sua

filha Nina - Maria das Graças Soares de Araújo, 52 anos -, tornou-se a principal

liderança da comunidade, assumindo a direção dos rituais e da defesa dos direitos

do povo.

A decisão de assumir a direção própria enquanto povo deu visibilidade às

manifestações culturais, religiosas e políticas Katokinn. Entretanto, e nível dos rituais

religiosos e político, os povos Karuazu e Katökinn mantêm relação permanente de

articulação e de participação nas atividades.

2.5.5 Koiupanká

O ressurgimento Koiupanká foi orientado também pelo cacique Genésio

Miranda, e proporcionado pela participação das lideranças no processo de formação

política do CIMI.

O cacique Zezinho Koiupanká, sob a orientação do cacique Genésio

Miranda, procurou o CIMI para saber o que deveria fazer para ser reconhecido como

indígena. Em reunião com a comunidade, no dia 12 de dezembro de 2001, ficou

marcada a data para convidar os grupos indígenas, pesquisadores, a imprensa e a

sociedade em geral para a apresentação da identidade étnica.

Os indígenas celebram os rituais dos praiás nos sábados e domingos,

enquanto que a cura e a mesa acontecem durante a semana. Segundo o cacique

Zezinho, devido à perseguição dos brancos, os rituais eram realizados às

escondidas, tanto que, ao invés do maracá, usavam uma caixa com fósforo. O

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calendário religioso Koiupanká inclui a participação no ritual Kalankó, realizado no

Sábado de Aleluia e, em seguida, a realização dos três finais de semana na

comunidade.

A liderança religiosa principal, dona Iracema Maria da Silva, 76 anos,

habita na aldeia Roçado, lugar onde se realizam as reuniões e se tomam as

decisões políticas.

A relação política de Koiupanká com a sociedade local ocorre entre

negociação e conflito, dependendo das questões e interesses políticos de ambos.

Na linha do tempo, o povo Koiupanká é um dos últimos a reivindicar o

reconhecimento étnico. Em pouco tempo, pela forma como tem se portado, as

lideranças têm conquistado o apoio dos outros povos e o respeito das instituições

governamentais. O cacique Zezinho, com os cantos do toré e a liderança política, foi

eleito vice-presidente do Conselho de Saúde Indígena de Alagoas, atualmente

exerce a função de assessor da Secretaria Especial de Saúde Indígena de Alagoas -

SESAI.

A habilidade política é marcada, profundamente, pela sutileza entre a

pressão política e a negociação. A relação com os órgãos públicos é marcada por

conflitos e tensão. O discurso é construído na defesa dos direitos da população.

2.6 Monoculturalismo e diversidade étnica: uma revisão epistemológica

O ser humano, desde o seu mais tenro estágio de compreensão e

conhecimento, investiga para descobrir os mistérios da origem do mundo, os

fenômenos da natureza humana e sociais. Nessa busca criou mito, a teologia, a

filosofia e a ciência. Na modernidade, o pensamento científico se pôs como único e

como a última etapa da longa trajetória epistemológica.

A ciência antropológica, com todas as teorias que construiu, caminha na

busca de desvendar os sentido e significados dos signos e símbolos gestados no

interior das culturas. A incessante procura do sentido último da produção simbólica

humana possibilitou avanços teóricos, rupturas, reconstrução das bases e princípios

que norteiam o conhecimento científico.

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Os evolucionistas descobriram a possibilidade de conhecer através de

instrumentos precisos do conhecimento científico. Malinowski deslocou o

conhecimento antropológico criando novas técnicas e novo método de pesquisa. No

século XX, a antropologia daá o seu grande voo, principalmente com o pensamento

do francês Claude Lévi-Straus, rompendo definitivamente com a divisão entre

sociedade primitiva e sociedade selvagem.

No final do século passado, surge o fenômeno social dos povos indígenas

do Nordeste, realidade que a antropologia clássica não conseguiu explicar. Foi

necessário se reinventar para poder penetrar em mundo até então desconhecido, ou

melhor, visto, mas não compreendido cientificamente.

O fenômeno da etnogênes reafirmou as bases de uma realidade que foi

negada socialmente e, em nome da ciência, dada como não existente. Os povos

indígenas, considerados extintos, emergiram politicamente e se mostraram como

sujeitos históricos, com autonomia reivindicando os direitos e o respeito por suas

histórias, suas culturas e identidades étnicas.

As forças sociais hegemônicas, bélicas e cientificistas que engendraram o

aniquilamento e desaparecimento de grupos indígenas na história da colonização do

Brasil, não deram conta de visibilizar as relações sociais complexas produzidas

pelos diversos atores em cena.

Para Karl Marx, o homem não passa de um “conjunto de relações sociais”

(Apud RABUSKE, 2001, p. 9). Usando como base teórica o materialismo histórico

dialético, com o objetivo de analisar e compreender as relações sociais dos povos

indígenas do Sertão de Alagoas, enquanto grupos sociais, te-se que a negação e

afirmação da identidade étnica, são processos que resultaram das relações

econômicas, políticas, religiosas e simbólicas intrinsecamente gestadas e

produzidas no seio da história.

Nesta perspectiva, indubitavelmente, os povos indígenas foram marcados

profundamente pelo processo histórico no contato interétnico entre culturas

indígenas, europeias, africanas e asiáticas. A homogeneização da diversidade foi

resultado da imposição imperialista dos agentes da colonização e das formas de

produção material entre as classes dominantes e dominadas, dialética e

historicamente produzidas.

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No campo religioso, etimologicamente a conversão carrega em si o

princípio da contradição, visto que a mesma supõe um conteúdo gnóstico produzido

anteriormente, pois se o indígena é condiderado tabula rasa, como entender a

conversão do vazio. Implicitamente, portanto, o conteúdo discursivo missionário se

depara, ontologicamente, com as cosmologias indígenas.

É nesse contexto que acontece o confinamento indígena no aldeamento

Brejo dos Padres. Na ótica missionária, o aldeamento possibilita a execução da

formatação programática do modelo de sociedade europeia em substituição às

formas indígenas.

A leitura missionária também se tornou equivocada. Na construção

simbólica do indígena, os elementos da economia, da cultura e da religião foram

apropriados e ressignificados de acordo com a base de produção dos sujeitos. A

apropriação e/ou simulação do conteúdo das culturas em contato põe em cheque a

visão do agente colonial. Pois, o conteúdo foi reestruturado nas condições impostas

ao sujeito indígena, na lógica e perspectiva da construção social dos interlocutores.

À medida que os grupos indígenas ressignificaram as categorias culturais

do colonizador em consonância com as suas bases culturais, tiveram como objetivo

afirmar seus projetos étnicos e de sociedade.

Cliffor Geertz defende o conceito de cultura de que o homem é um animal

amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu. A cultura vista como sendo

estas teias e suas análises, portanto, não age como uma ciência experimental em

busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura de significados.

(GEERTZ, 1975, p.15).

Na perspectiva de Geertz, analisando a formação da identidade étnica dos

povos indígenas do Sertão, encontramos, em carater permanente, esse processo de

construção simbólica. A condição histórica posta conduziu à construção de uma rede

de relações sociais, analisadas e avaliadas na correlação de forças do poder

religioso, econômico, político e bélico.

Investigando o contexto sociocultural dos grupos étnicos do Sertão de

Alagoas, compreende-se como foi construído o imaginário desses povos. Na

perspectiva conceitual de Durand,

O imaginário não é mais do que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais

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do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam „pelas acomodações anteriores do sujeito‟ ao meio objetivo. (2002, p. 41).

Seguindo a mesma orientação, sublinha Pitta, “as imagens não vêm

prontas e transmitidas pela hereditariedade; muito pelo contrário, pela interação

desses reflexos e das pulsões às quais eles são ligados com o meio material e

social que as imagens se formam”. (2005, p. 23).

E, nessa investigação e compreensão do imaginário, Durand define como

trajeto antropológico:

Precisamos nos colocar deliberadamente no que chamamos o trajeto antropológico, quero dizer, a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas emanadas do meio cósmico e social. Essa posição afastará de nossa pesquisa os problemas de anterioridade ontológica, pois postularemos de uma vez por todas que há uma gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio ambiente material e social, e vice-versa. É nesse intervalo, nesse caminhamento reversível que se deve instalar a investigação antropológica. (DURAND apud PITTA, op. cit., 23-24).

As denominações dadas ao indígena – como selvagem, caboclo ou índio –

pelo não indígena ocorreram no contexto da relação de uma concepção social sobre

as outras no processo de colonização imposto às populações indígenas. Esse

processo acontece na dinâmica de apropriação do território, através de diversas

etapas e formas. Os portugueses, em nível político, religioso e econômico,

impuseram-lhes seu poder de dominação através de seu rei e seus sacerdotes,

ignorando os líderes políticos e religiosos indígenas, com os seus deuses, seus

mitos e seus ritos. E, em seguida, transformaram-nos em mão de obra escrava,

objetivando a implantação de uma economia voltada para exploração das riquezas

naturais.

O modelo eurocêntrico - organização social monolítica e monocultural - se

impõs sobre a diversidade étnica, submetendo o poder político e religioso endógeno

ao controle da estrutura externa, diferente do modus vivendi indígena. No interior

desse contexto, franceses, holandeses e ingleses participam desse processo de

intervenção social na disputa do território, das riquezas e utilização dos nativos na

correlação de forças.

Em meio à mobilização social forçada e conflituosa, encontros e

desencontros de projetos e cosmologias se debatem. Culturas, mitos, ritos, valores e

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costumes se enfrentam e se rejeitam. Entre os invasores, postam-se o conflito e a

disputa política, representados, interna e culturalmente, em seus projetos de

sociedade. Para os nativos, desse ponto de vista, também não se diferenciam, visto

que eram etnias diversas, com culturas e projetos diversos, todavia com

perspectivas, diametralmente, opostas.

Do ponto de vista econômico, a relação vencidos e vencedores, os

europeus impuseram-lhes o seu modelo político, econômico, cultural e religioso

sobre as etnias. Em consequência dessa realidade, os vencedores estruturaram

seus projetos e interesses sobre o território brasileiro, escravizando, matando e

civilizando a população nativa, como processo imperialista de imposição de uma

cultura sobre as outras culturas.

Para além dos projetos de conquista e de submissão, forma-se o que foi

denominado ideológico e geograficamente, povo brasileiro ou nação brasileira, com

um território, um idioma, uma cultura, sucumbindo oficialmente as diferentes etnias,

idiomas, costumes, valores, mitos e ritos. Entretanto, do ponto de vista cultural,

todos os segmentos envolvidos apropriam-se e reconstroem suas cosmologias, seus

valores e suas estruturas sociais.

No período Republicano, considerando a convivência imposta e,

consequentemente, o processo de mistura com europeu, indígena e negros

africanos, o Estado Brasileiro e seus idealizadores formularam sua política

indigenista, diagnosticando os povos nativos com as categorias de selvagem e

caboclo.

Seguindo a lógica dominante, a academia formulou suas teorias

justificando a política indigenista oficial, ignorando a realidade vivida pelo sujeito

histórico. E, no contexto de abertura e discussão política, os povos indígenas,

considerados extintos, emergiram do silêncio étnico e reivindicaram o

reconhecimento das identidades.

A História e a Antropologia redirecionaram seus focos teóricos, tendo como

base uma abordagem do sujeito contextualizado histórico e culturalmente no espaço

e no tempo. E, portanto, os conceitos de selvagem, caboclo e índio das teorias

acadêmicas ou academicistas, produzidos e forjados anteriormente em laboratórios,

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foram superados pelos sujeitos históricos, que resistiram à imposição do

monoculturalismo dominante.

O imaginário, neste contexto, depara-se e busca seu espaço, a partir do

viés teórico étnico e histórico, considerando os condicionamentos e interesses que

perpassaram a formulação teórica e política da negação da identidade, com a

presença dos povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká no

processo de ressignificação identidade étnica.

A partir dessa argumentação teórica e política, a construção da identidade

indígena é produzida na trama da história, que envolve disputas pela terra e pela

visão de mundo, materializada nos interesses econômicos, políticos, religiosos,

culturais e ideológicos, entre indígenas e colonizadores.

Nessa linha de argumentação, considerando o ressurgimento das etnias no

sertão de Alagoas, observa-se coerente e lógico o processo de ressignificação,

diante da imposição do modelo hegemônico dominante, como também a

reelaboração discursiva na interlocução com os atores da sociedade nacional –

órgão de Estado, Igreja, movimentos sociais, instituições não governamentais -, na

conjuntura de abertura política brasileira, reivindicando o reconhecimento étnico.

Este fato demonstra a capacidade de conhecimento do indígena sobre a

realidade em que se encontra inserido, como também a habilidade política de suas

lideranças em analisar a conjuntura adequada para se manifestar e se organizar

para garantir os seus direitos.

O fenômeno da emergência étnica da década de 1980, considerando os

fatores que impulsionaram o rompimento com as bases tradicionais teóricas,

contrariou em todos os aspectos, a lógica estabelecida pela classe dominante e

pelas teorias científicas.

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3. POVOS INDÍGENAS DO SERTÃO DE ALAGOAS: MEMÓRIA, CONSTRUÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA.

O trabalho deste capítulo tem como objetivo apresentar a construção

histórica dos grupos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, tendo

como base teórica o diálogo interdisciplinar a partir da história oral armazenada na

memória dos membros dessas comunidades, especialmente dos anciãos e das

lideranças políticas e religiosas. Trata-se de uma interpretação, a partir de princípios

antropológicos e da Análise do Discurso (AD), das representações dessas

comunidades manifestadas através das culturas e das organizações sociais, nos

rituais religiosos e nas formas de organização política.

O material analisado é resultado da pesquisa de campo, participativa e

dirigida, entre os anos de 2010 e 2013, de onde foram extraídos os dados coletados

na observação do cotidiano e das atividades religiosas e políticas realizadas nas

respectivas comunidades, de acordo com o calendário litúrgico, e aplicação de

entrevistas com as principais lideranças indígenas de cada povo estudado.

Os personagens entrevistados foram escolhidos obedecendo aos critérios

de representatividade política e religiosa de cada povo, na relação interétnica e na

sociedade nacional, destacando o papel de cada um na tradição cultural e no

processo de afirmação da identidade étnica, no apoio às organizações políticas dos

outros povos e na interação com os representantes dos organismos governamentais

e sociais da sociedade brasileira.

Em primeiro lugar, foram entrevistados o cacique Genésio Miranda e o pajé

Elias Bernardo Ferreira do povo Geripankó, pela importância religiosa e política que

exercem internamente e com as lideranças dos outros grupos, com o objetivo de

resgatar a memória histórica e religiosa das primeiras famílias que migraram de

Pankararu e se estabeleceram na região do alto sertão de Alagoas; por razão

cronológica, visto ter sido o grupo Geripankó o primeiro a ser reconhecido

étnicamente; e, por último, por identificar que os dois personagens estão presentes e

participaram ativamente de todas as etapas do ressurgimento étnico dos povos do

Sertão de Alagoas, com ações determinantes no cenário local e na produção das

práticas discursivas religiosas e políticas com os interlocutores indígenas e

representantes de organismos da sociedade nacional.

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Para as demais entrevistas foi considerado o critério estrito de

representatividade institucional, política e religiosa das respectivas comunidades

ressurgidas, agindo internamente como interlocutores do seu povo, com as

lideranças da tradição cultural Pankararu e Geripankó e com a sociedade não

indígena.

Em nível de estrutura textual e analítica, o trabalho tem sequência com a

análise das entrevistas, primeiro a do cacique Genésio Miranda e do pajé Elias

Bernardo Ferreira; os rituais Kalankó; o pajé Karuazu, Antônio dos Santos; cacique

Maria das Graças e a presidente da Associação Katökinn Roseli Ferreira da Silva; e,

por fim, o cacique Zezinho do povo Koiupanká.

Portanto, neste terceiro capítulo é analisado e identificado o histórico, em

particular, dos povos Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká, no

contexto das relações sociais estabelecidas no contato com os agentes da

colonização europeia e o aldeamento Pankararu, as motivações migratórias das

famílias Pankararu, a ocupação territorial e desterritorialziação na região sertaneja

de Alagoas, como também as adaptações e mudanças culturais e religiosas.

Diante disso, procuro demonstrar como cada povo, através de suas

lideranças, em contextos e com motivações diferenciadas, construiu discursivamente

suas formas e conteúdos linguísticos de representações simbólicas com os

interlocutores indígenas e com os da sociedade nacional, mantendo a cultura

indígena, a afirmação de identidade étnica, o pocesso de ressurgimento e a

organização política.

3.1Geripankó: cacique Genésio Miranda

3.1.1 Situação ambiente da entrevista

A entrevista foi realizada na área da casa do cacique Genésio, na aldeia

Ouricuri, onde se encontrava sentado em uma rede, conversando com estudantes

do curso de Direito do CESMAC e uma família de Água Branca, cidade vizinha.

Ambiente descontraído, até por que, para a maioria dos presentes, a visita

a uma aldeia e o encontro com um cacique indígena acontecia pela primeira vez,

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além do que o próprio anfitrião deixou as pessoas à vontade com suas histórias

pessoais e da comunidade, recheadas de piadas e brincadeiras.

Naquele dia iniciava mais um ritual do calendário anual do povo Geripankó.

Ao mesmo tempo em que a atenção estava voltada para as conversas de “Seu”

Genésio, observa-se também os indígenas passando à frente da casa em direção ao

terreiro onde estava o ritual. Entre conversas, perguntas e curiosidades, o cacique

era interrompido pelos filhos e netos pedindo a benção, costume tradicional da

religiosidade católica praticada pelas famílias da região, em respeito aos pais, avós,

padrinhos e madrinhas.

Neste contexto, com a sua permissão, gravei a entrevista, com o diálogo

fluindo, intercalado com as interrupções dos presentes, de sua esposa, Dona Maria,

de filhos e netos, além dos transeuntes.

3.1.2 Personagem: Genésio Miranda

Genésio da Silva Miranda, nascido em 6 de março de 1930, reside no sítio

Piancó, distante 3 km da aldeia Ouricuri, ali vive com a esposa, trabalha na

agricultura, pecuária e ovinocultura. De lá só sai ou nos dias de feira livre na cidade

de Pariconha ou para receber os proventos da aposentadoria; durante os rituais no

Ouricuri e, ocasionalmente, para atender convite especial da comunidade,

representantes de órgãos públicos e/ou de organizações não governamentais

(ONG), por ocasião de palestra, lançamento de livro ou para relatar a história do seu

povo.

Uma trajetória de 84 anos de vida construída por acontecimentos de ordem

pessoal, familiar, social e política, em um contexto econômico, político, religioso e

étnico adverso à visão indígena. A construção da identidade étnica do cacique

Genésio Miranda dá-se no cenário de uma sociedade em disputa e em conflito e, em

nível pessoal, de sobrevivência física, além dos aspectos cultural, religioso e

ideológico.

Para obter dados para o desenvolvimento da pesquisa, para compreender

e analisar o seu papel político e religioso no processo de organização, formação e

afirmação da identidade étnica do povo Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e

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Koiupanká, foi necessário entrevistar o próprio personagem, numa condição que o

deixasse o mais natural possível, no ambiente da comunidade indígena e familiar. O

trabalho ocorreu no sábado pela manhã do segundo final de semana do Ritual

Flechada do Imbu, da liturgia Pankararu.

O pesquisador e os acadêmicos do curso de Direito, além da referida

família39, foram acolhidos por “Seu” Genésio que se encontrava deitado na rede, no

aldeamento Ouricuri. Com a sua costumeira espontaneidade e atenção, levantou-se

e cumprimentou-nos, voltando-se para a sua rede. No ambiente descontraído e o

mais natural possível, pedi licença para gravar a conversa. Com o consentimento,

pedi para colocar o gravador no bolso da camisa. O conteúdo da gravação é o

objeto da análise do presente texto.

No contexto do diálogo-entrevista, dentre os variados assuntos tratados,

analisei a história pessoal, familiar e a da comunidade indígena, destacando a matriz

cultural e a chegada das primeiras famílias Geripankó na região, o processo de

indicação para o cargo de cacique, o engajamento na defesa dos direitos do povo e

dos outros grupos indígenas, as viagens aos centros administrativos e os contatos

com as autoridades políticas e governamentais, e, principalmente, a participação na

luta pelo reconhecimento étnico e a demarcação da terra.

Durante a entrevista, os estudantes e José Silva – funcionário público,

professor de geografia e militante do PT – interagiram na conversação. Em

determinado momento, perguntei ao cacique Genésio Miranda sobre a sua história

de vida. O cacique, diante da minha pergunta, ao invés de respondê-la, abriu o

diálogo e perguntou para o José Silva, com claro objetivo de obter a confirmação do

seu discurso sobre fatos relatados, principalmente sobre a terra, a violência, a

realidade social da região, os autoridades políticas e coronéis. E pede a

confirmação: “Lula Cabelereira40, quem vendeu pá, pá Lula Cabeleira foi Antônio

Carlos, que era dono da, era chefe da fábrica, num era Zé?”. (P. 3). Continuando o

relato expõe os acontecimentos envolvendo as autoridades locais e estaduais:

O delegado de Água Branca, sob as ordens de Arnon de Melo41, já tinha mandado desarmar Zé Torres várias vezes, e todas às vezes

39 É prática comum na região, amigos, estudantes, pesquisadores e curiosos visitarem as aldeias no período dos rituais. 40 Prefeito e grande empresário no município Delmiro Gouveia/AL. 41 Governador e senador pelo Estado de Alagoas.

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ele devolvia; a última vez, Alfrânio Poeta, meu tio - quem me conto essa história, né, que era o chefe dos capangas dele, né. Então, meu tio Alfredo falou várias coisas, que havia executado. E aí, disse que o Zé Torres, né, e o Luís só foi morto porque várias vezes o delegado de Água Branca, que era Batistino, tentou amigavelmente desarmá-lo, pedir pra ele entregar as armas, porque ele tinha um grupo armado forte, né; e aí, outro recado que o Zé Torres mandou, foi que se ele quisesse, se o delegado e o governador quisesse tirar, tomar as armas dele, primeiro mandasse uma filha ou uma sobrinha pra tirar as calça, uns cabra bom tirava as calça, como o tio Alfredo, né, que era pra puder ter cabra bom no meio e ter coragem, que, por enquanto, esses aí não desarmava ele não. Aí então o Arnon de Melo mandou reforço, segundo tio Alfredo, o Arnon de Melo, o Batistino pediu reforço, e foi aí quando o governador mandou os atiradores dele... (2013, p. 4).

Visto que a condição social do interlocutor de “seu” Genésio, o José Silva,

representa uma autoridade social e política local, depreende-se que a abertura

desse diálogo significa a busca pelo respaldo e apoio para o seu discurso, mas

também para não se expor, por tratar-se de assuntos delicados na região.

Esta ação indica ser uma estratégia sempre presente no discurso

produzido pelas populações indígenas com o objetivo de dissimular, usando um

interlocutor para falar sobre a realidade que envolve personagens do poder

econômico e político local, considerando ser de uma sociedade que promove o

medo entre as pessoas, e, consequentemente, a resistência por parte daqueles que

são vítimas da opressão. Ou, diria Orlandi: ”A formação discursiva se define como

aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada

em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”.

(Op. cit., p. 43).

Em várias falas das entrevistas, observo que, do ponto de vista da Análise

do Discurso, Genésio Miranda usa a tática de colocar sob a responsabilidade de

outro sujeito o conteúdo que permanentemente se recusa a tratar ou, quando trata, o

faz de forma enigmática ou transversal e, até, chega a demonstrar desconhecer os

fatos e o assunto.

Foi, tava por aqui não, eu ouvi falar, mas não tenho muito conhecimento, não, rapaz eu não me aprofundei a isso, não, eu sei que é o seguinte, ói, quando veio esses camarada praqui, chegaram ali, tinha uma casa ali desocupada, tava em construção a casa, aí eu morava lá perto, aí quando chegou esses camarada, junto com esses Correia mermo, aí pronto, chegaram, aí colocaram aí uma escola. Aí eu oiei assim, eu veio dessa idade nunca estudei, era pra estudar

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adulto, e eu corri lá pra roça arrumei lá com a muié, quando foi na boquinha da noite que nos cheguemo ela disse vou ajeitar o café pra nós, eu disse tá, aí entrei, não sei se eu tava trocando de roupa, com pouco escutei falar na porta, oh de casa, eu digo oh de fora, faz favor vir aqui, que é a policia, e eu ia dizer bem assim, e eu devo a peste de policia, quase que eu dizia, mas no mermo tempo veio, não, num pode ser assim não, eu digo é já, aguardo aí um poquinho, mas ainda vim no pensamento e eu devo a peste de policia, aí quando eu saí na porta o cabra veio assim, um cabo de Pariconha, e o quebra pau, eu cheguei boa noite, ele boa noite, aí disse o senhor sabe me dizer quem é o pessoal que tá aí nessa casa, eu digo sei não senhor, que cheguei nestante da roça, que eu saio segunda-feira só chego essa hora, esse pessoal dai num conheço, não, aí tinha uns cabra lá juntado eu fui danado corri, deve ter sido esses comunista, aí quando eles foram lá pegaram tinham um monte de papel, lama, tudo coisa difícil, aí eles ajuntaram aí levaram, os cabra correram, né, aí foram e montaram uma frontera lá em cima da serra acolá, de pedra assim da artura mais ou menos... (MIRANDA, 2012, p. 21).

O diálogo acima apresenta a experiência do cacique com os membros do

Partido Comunista do Brasil (PC do B), durante o período da Ditadura Militar no

Brasil a partir de 31 de março de 1964, na comunidade Geripankó, quando militantes

comunistas montaram um núcleo de formação política dentro da aldeia. O discurso é

construído entre a negação e a afirmação sobre o conhecimento dos fatos. E

desdenha, deixando entender que sabia do objetivo dos militantes comunistas com a

escola: “aí eu, oiei assim, eu veio dessa idade nunca estudei, era pra estudar

adulto?!” (MIRANDA, p. 20).

E adiante, no mesmo contexto, Genésio relata que, certo dia, encontrava-

se em casa no início da noite, e chegaram alguns militares em busca de informações

sobre os militantes comunistas. Diz que foi interrogado se os conhecia. “Eu digo, sei

não senhor, que cheguei nestante da roça, que eu saio segunda-feira só chego essa

hora, esse pessoal daí num conheço, não” (MIRANDA, p. 20). A construção do

discurso indica o desconhecimento do fato, descartando totalmente o contato com

os mesmos e, até mesmo, negando qualquer referência ou contato com o lugar onde

poderiam ser encontrados.

Compreendo que esta construção faz parte do imaginário produzido em um

cenário composto pela violência e perseguição, tratando-se principalmente de

militares no período da Ditadura Militar. “Toda e qualquer enunciação é resultado

das relações sociais que o sujeito estabelece”. (2009, p. 22).

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No caso de Lampião42, o mesmo afirma não saber da participação de

indígenas no bando de cangaceiros43. Entretanto, tanto em um caso como no outro,

ao longo do discurso, detecto o seu conhecimento sobre os indivíduos envolvidos, o

cenário e os lugares da ação. A seguir, o cacique Genésio Miranda demonstra o seu

conhecimento sobre casos que envolvem conflito, perseguição, violência, relação

com as autoridades, coronéis e questões políticas.

Tava por aqui, não; eu ouvi falar, mas não tenho muito conhecimento, não; rapaz, eu não me aprofundei a isso, não; eu sei que é o seguinte: ói, quando veio esses camarada44 praqui, chegaram ali, tinha uma casa ali desocupada, tava em construção a casa; aí eu morava lá perto; aí, quando chegou esses camarada, junto com esses Correia mermo, aí pronto, chegaram, aí colocaram aí uma escola, aí eu oiei assim - eu veio dessa idade nunca estudei -, era pra estudar adulto; e eu corri lá pra roça, arrumei lá com a muié; quando foi na boquinha da noite que nos cheguemo, ela disse: ou ajeitar o café pra nós; eu disse tá; aí entrei, não sei se eu tava trocando de roupa, com pouco escutei falar na porta, oh de casa; eu digo: oh de fora; faz favor vir aqui, que é a polícia -- e eu ia dizer bem assim, e eu devo a peste de policia; quase que eu dizia, mas no mermo tempo veio, não, num pode ser assim não; eu digo, é já; aguardo aí um poquinho. Mas ainda vim no pensamento, e eu devo a peste de polícia. Aí, quando eu saí na porta: o cabra veio assim, um cabo de Pariconha, e o quebra pau. Eu cheguei, boa noite; ele, boa noite. Aí, aí disse, o senhor sabe me dizer quem é o pessoal que tá aí nessa casa? Eu digo, sei não senhor, que cheguei nestante da roça, que eu saio segunda-feira só chego essa hora; esse pessoal dai num conheço, não. Aí tinha uns cabra lá juntado, eu fui danado corri, deve ter sido esses comunista. Aí, quando eles foram lá,

42 Virgolino Ferreira da Silva, segundo o Batistério nasceu em 04 de junho de 1898, mas pelo Registro Civil foi no dia 07 de julho de 1897. (Apud FERREIRA e AMAURY, 1999, p. 53). A presença de Lampião na região do Sertão de Alagoas remete a presença da família Ferreira no município de Água Branca e região – seus pais foram sepultados no Cemitério de Santa Cruz do Deserto, município de Mata Grande, localidade vizinha às comunidades Kalankó -, e também pela presença e convivência do bando com os moradores, inclusive indígenas. Em 26 de junho de 1922, Lampião atacou a cidade e saqueou o palacete da baronesa de Água Branca, dona Joana Siqueira Torres. (Op, cit., 1999 p. 86-97). 43

Grupo liderado por Lampião, formado por homens e mulheres do sertão nordestino, que

percorria vários estados dessa região. Para alguns, bandidos; enquanto que para outros,

justiceiros. Vera Ferreira e Antonio Amaury afirmam: “As causas do surgimento do cangaço

foram de natureza variada. A injustiça, a falta de esperança e a revolta não foram as únicas.

Isso é mais que certo. Mas foram as circunstâncias as mais importantes para que

começasse (sic) a surgir os cangaceiros”. (1999, p. 28). 44 A utilização do termo camarada é encontrada entre os militantes da esquerda comunista e também no meio popular na região do sertão de Alagoas. Em vista disso, não foi possível precisar a origem do uso entre os indígenas. Entretanto, é possível que o cacique tenha recebido influência do contato com os sertanejos, com os militantes comunistas e durante as viagens que realizou por outras regiões do país.

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pegaram, tinham um monte de papel, lama, tudo coisa difícil; aí eles ajuntaram, aí levaram; os cabra correram, né, aí foram e montaram uma frontera lá em cima da serra acolá, de pedra assim da artura mais ou menos... (MIRANDA, 2012, p. 19).

Identifico na fala do cacique, que diante da pergunta sobre os militantes

comunistas na comunidade indígena, responde inicialmente que “eu não me

aprofundei a isso, não em primeiro lugar”. Como demonstrado ao longo do texto,

compreendo a sua resposta como uma forma estratégica de desconversar sobre o

assunto, fato que se repete sobre vários personagens que representam poder

político, econômico e que sejam ligados à violência, como é o caso de Lampião, dos

Coronéis, militares, fazendeiros. Isto se explica no contexto tanto na história do seu

grupo quanto pessoal, onde foram obrigados a construir uma linguagem própria no

contexto de uma região marcada pela perseguição e pela violência.

Em nível de construção da linguagem, o processo se dá de acordo com a

realidade sócio-histórica. A língua não é algo abstrato:

A verdadeira substância da língua não é construída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da integração verbal, realizada através da enunciação. (...) As leis da evolução linguística não são leis da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis da evolução linguística são essencialmente leis sociológicas. (BAKHTIN apud FLORENCIO, 2009, p. 30).

No contexto de medo e ameaça, o cacique diz aos militares não saber da

presença dos militantes comunistas na comunidade, ao mesmo tempo em que o

preserva da perseguição dos militares, mantém a relação amigável com os

militantes. As duas situações demonstram a busca pela convivência diplomática com

todos os atores da região. “Eu digo, sei não senhor, que cheguei nestante da roça.” -

, mas depois indicar que conhecia detalhes – “uns cabra, esses comunistas...”. E

completa as informações com detalhes e precisão, ao mesmo tempo em que

demonstra a capacidade de identificar o discurso de cada ator e a situação de perigo

da região e, no caso, do país, como prova também a construção da transversalidade

do discurso:

Perigoso45 era lá no Engenho. Aí montaram lá, dessa vez foi pego Zé Correa, Josué Correa, Zé Novaes e Joaquim de Paciência, uma

45 Refere-se a serra que ficou conhecida depois desses fatos por Serra do Perigoso.

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coisa assim; sei que foi pegado uns seis cabra, esses foram comer até jornal, não sei na onde, né. Aí Josué, pela história que eu ouvi dizer, Josué levaram ele pra banda de, pra fora, né, e ele pra escapá, se jogou no rio, o rio com uns dois mil metro ele trevessou no braço - assim essa história que eu, ele mermo disse, foi como ele fugiu de lá... (...) Zé Correia foi preso, Joaquim da Paciência desapareceu, Zé Novaes também desapareceu, tudo foram pra lá, não sei que fim levaram, não... (MIRANDA, p. 22-23).

O motivo da negação, elaboração e reconstrução dos fatos com uma

linguagem subliminar, encontra-se demonstrado pelo poder da força militar e o viés

ideológico, expressos, a seguir, no discurso:

Rapaz, ele mandou uma lei, que eu não sei que lei era aquela, não, era dizendo assim, uma lei comunista, agora o que era, né... (...) Eles não diziam o que era, não... Não, aí eu escapei dessa vez porque me convidaram, eu, o que? Quero saber disso, não... (2012, p. 22-23).

A propaganda da ditadura militar contra comunistas, tratando-os como

perigosos e comedores de fígado de criancinhas e terroristas, espalhou-se por todos

os lugares, solidificando-se especialmente entre a população mais pobre e

analfabeta. Ele chama de “uma lei comunista”, que com um semblante de vitória,

afirma que conseguiu se livrar: “Não, aí eu escapei dessa vez”.

No caso de Lampião, a construção retórica se repete. De início, nega a

participação sua ou de qualquer indígena no bando. Com um jeito pensativo,

responde: “não”. Logo em seguida, começa a lembrar de nomes de Pankararu

envolvidos com atos de violência, considerado por ele como “cabra bandido”. E

continua destacando inclusive a forma heroica desses feitos, habilidades mágicas,

esperteza, capacidade e coragem demonstradas pelos parentes indígenas:

No Pankararú, era uns lá que vivia no mato mermo, fazendo e acontecendo. Pegaram Zé Machado e Zé Capucho, e levaram em detenção na penitenciária do Recife pra morrer de veio, né. E João Machado nunca puderam pegar; ele era um cabra meio, né, tinha suas defesa, porque duas vez a polícia pegou ele assim na mão, fecharam ele na mão pra algemar, caçava ele num achava, aí se assombrava. O cabra pegar na mão de um cabra assim e ele desaparecer assim, né! João Machado era desse jeito, conheci todos eles; o Antônio Sirvino era, disse que morria, mas não se entregava. Aí, chegaram ali na Serra do Agreste, se entregue Antônio Sirvino; disse, me entrego não; aí se obrigou a morrer mas não se entregou; aí a polícia foi matou ele... (2012, p. 10).

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Nesta parte da análise, a fala mantém a estratégia de ocultação dos

personagens, com a linha de não delatar pessoas que conhece, mas, quando

afirma, o faz genericamente: “era uns lá que vivia no mato mermo, fazendo e

acontecendo”; e, também, quando cita alguns nomes é como se os mesmos não

tivessem ligação com o fato em discussão. “Pegaram Zé Machado e Zé Capucho, e

levaram em detenção na penitenciária do Recife pra morrer de veio, né”.

Observam-se nesses relatos a continuidade de uma história de violência

em que os grupos indígenas foram envolvidos, como vítimas e sujeitos de defesa e

perseguição. Esses fatos se encontram armazenados no subconsciente e na

memória e são expressos e utilizados no presente pelos novos atores e

protagonistas da saga pela sobrevivência, pelo reconhecimento da identidade étnica

e pela garantia e conquista dos direitos indígenas na legislação brasileira.

Memória não pode ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos, cujo conteúdo seria um sentido homogêneo acumulado a um modo de reservatório. Ela é muito mais complexa; é um espaço móvel de divisões, injunções, deslocamentos, retomadas, conflitos e regularizações; um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas, contradições. E as palavras e imagens têm um papel essencial nesse jogo do discurso, de suas materialidades (GREGOLIN, p. 99).

Na linha traçada sobre a memória, observo a continuidade dos

acontecimentos ocorridos no passado e o medo de se repetirem no presente,

representando na tensão permanente entre os agentes da política indigenista

colonial e os indígenas, provocando medo e apreensão no período em que ainda se

encontravam no aldeamente Pankararu:

Nesse tempo ainda morava tudo lá, aí quando Mané Correa chegou aqui, em Tacaratu, a aldeia era na Foia Branca lá em cima. Aí avisaram, Mané Correa tem o revortoso aí que ta acabando com tudo, ta matando os homi e aproveitando as muié. Aí, foi o Mané Cavarcante chamou o policial dele, disse, ói, tou sendo avisado aqui que tem um revortoso aqui na rua de Tacaratu. (...). Aí, quando ficou assim, os índio foram e desceram pro Brejo, aí ficaram por lá, daqui a pouco tavam criando bandido, pistoleiro, maconheiro, homi, o diabo a quatro. Ai pediram socorro ao Rio de Janeiro; aí veio Castelo Branco, Castelo Branco que morreu na, num foi, aí Castelo Branco veio, quando chegou aqui disse, os índio aqui é brabo, assim, é? (2012, p. 21-23).

O texto acima identifica e representa, em primeiro lugar, o resgate da

memória do cacique Genésio Miranda sobre a política indigenista imperial e

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republicana, as disputas políticas e fundiárias e, também, as forças violentas que

comandam a região. Neste contexto, os indígenas estão inseridos e marcados pela

tensão entre essas forças, que interferem diretamente sobre a população e os

aldeamentos, como também buscam a proteção das autoridades. O medo instalado

dentro das aldeias – “os índio foram e desceram pro Brejo, aí ficaram por lá, daqui a

pouco tavam criando bandido, pistoleiro, maconheiro, homi, o diabo a quatro” – e,

diante dos conflitos, buscam a proteção das autoridades: “Aí avisaram, Mané Correa

tem o revortoso aí que ta acabando com tudo, ta matando os homi e aproveitando as

muié”.

Vê-se nos fatos descritos acima o impacto das ações promovidas pelas

forças agrárias locais – coronéis e barões -, policiais e governamentais, provocando

o medo, o terror e a submissão da população indígena.

Em nível da Análise de Discurso, principalmente do ponto de vista das

ações da política indigenista executadas pelos órgãos oficiais, identifica-se uma

memória vivenciada e armazenada da história dos antepassados na relação com os

agentes da colonização, e que, nos tempos atuais, é reconstruída para responder

aos novos interlocutores, no caso, a academia. Aparecem permanentemente no

discurso os personagens representados por policial, coronel e barão – Barão da

cidade de Água Branca e o Major Marco. José Horta Nunes, citando Achard sobre a

memória, afirma: “Pierre Achard mostra que a memória não pode ser provada, não

pode ser deduzida de um corpus, mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por

formulações no discurso concreto em que nos encontramos”. (Apud ACHARD, 1999,

p. 8).

No imaginário construído, os agentes e os indígenas compõem cenário de

disputa e trama, que em determinados momentos aparecem e representam, por um

lado, o conflito, demonstrando o medo e a temeridade; por outro lado, expressam a

intermediação e, até, a dependência em relação aos representantes da sociedade

não indígena. “Eu digo seu Luís é um seguinte, eu fui criado dentro daquela fazenda,

junto com meu avô que meu avô era engenheiro de fazer alimentação, ajeitamento

da cerca, meu avô era quem fazia aquilo, e eu ajudava ele, acompanhava...”

(MIRANDA, p. 2).

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Utilizando o estatuto dos implícitos com instrumento de análise do texto

acima, Achard indica que:

Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalho então sobre a base de um imaginário que representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a sua (re)construção, sob a restrição „no vazio‟ de que eles respeitem as formas que permeiam sua inserção por paráfrase. Mas jamais podemos provar ou supor que esse implícito tenha existido em algum lugar como discurso autônomo. (1999, p. 13).

Por outro lado, em nível antropológico, a relação com o povo Pankararu

reflete diretamente na construção da identidade do cacique Genésio Miranda, e, ao

mesmo tempo, do povo Geripankó. É na fonte cultural, na relação de parentesco e

nas práticas religiosas que se firma a reprodução étnica:

Morando aqui, que, nunca morei no Brejo, só ia lá, só a passeio, que foi na época de festa, que não tinha essas festa aqui, lá eu participava, só eu participava. Antônio, meu avô, que me fazia ir também lá, mas esses outro daí não saiba nem por onde, onde ficava isso... (MIRANDA, p.13).

Desde a infância, essas práticas se repetem, através dos avós participava

e aprendia os costumes do seu povo. “Eu já tava com uns dezesseis ano, aí

comecei caminhar pro Brejo”. (MIRANDA, p. 14).

Identifico no discurso do personagem Genésio Miranda, detalhado desde a

infância, passando pela adolescência e a fase adulta, aspectos de uma trajetória

mesclada por perdas, marcas de heroísmo, comportamento místico, liderança

política e religiosa, articulação interna e habilidade política com outros povos e

autoridades. Nesse conjunto de relação, enfatiza e demonstra que, em todos os

acontecimentos e atos, destaca o poder e a personalidade de um herói vencedor. O

que deixa entender nos seus discursos é que a escolha para o cargo de cacique não

foi por opção, mas indicação da comunidade, por ser considerado pelos outros o

mais preparado e o mais capacitado.

Segundo dados colhidos nas informações dos relatos, que o mesmo faz

questão de contar, toda vez em que se encontra com pesquisadores – produção do

discurso construído e direcionado para o interlocutor, no caso, membros da

academia -, sua vida é narrada por dramas, mistérios, misticismo e esperteza. Nos

relatos das atitudes, ações e atividades demonstra que é analfabeto, que não

entende o mundo dos brancos, mas é vitorioso.

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Na busca pelo reconhecimento, o sujeito constrói argumentos direcionados

a convencer o interlocutor:

Trata-se, aqui, de um processo de identificação que exige do sujeito falante a construção, por si próprio, de uma imagem que tenha um certo poder de atração sobre o auditório, de uma forma que este conceda ao locutor a sua adesão de maneira quase irracional. (CHARAUDEAU, 2007).

A trajetória começa quando criança com a morte do pai e o abandono pela

mãe. Seu pai, vaqueiro, perdeu aos três anos, morto em acidente de trabalho na

caatinga, correndo a cavalo em pega de boi; aos cinco anos, a mãe foge com outro

homem, deixando-o com os avós, com quem foi criado:

Ói quando minha mãe tava com quatro ano de casada com meu pai, meu pai desses cara meio destruído, eu acho que doido, né. Trabaiava de vaqueiro, morreu arrebentado de vara de pau, a vara de pau tirou ele da sela quando ele caiu quebrou três costela; quando espera monto no cavalo, derrubou o boi, quebrou os quarto do boi e ficou lá todos dois; ele acabou de morrer, e os outro vaquero46 pegaro o boi, e quando acabaro trouxero carne no final - morreu desse jeito; é desse pessoal de opinião, né. Aí minha avó disse é, agora se o senhor não me quiser, mas já que ela me dexou, eu quero ficar com o senhor. Aí ele disse: é, você que sabe; aí ele me levou lá praqueles Aconã - por isso eu tenho amizade lá47. (MIRANDA, p. 16).

O fato de viver com os avós, permitiu-lhe participar dos rituais Pankararu,

ao ponto de ser registrado pelo órgão indigenista como membro daquele povo, na

época do SPI. “Não, morando aqui; que nunca morei no Brejo, só ia lá, só a passeio,

que foi na época de festa, que não tinha essas festa48 aqui; lá eu participava, só eu

participava. Antônio, meu avô que me fazia ir também lá”. (MIRANDA, p.15).

Além de participar da vida cultural e religiosa Pankararu, consta nos relatos

que foi um jovem muito relacionado com a vida da comunidade e dos outros jovens,

participando de festas, bebedeiras e jogos de futebol.

Quando conseguiu ser registrado civilmente e ter carteira de identidade,

depois dos 18 anos resolveu partir para conhecer outras realidades, deixando a

46 Presença do vaqueiro no Sertão entre os indígenas in LINDOSO, Dirceu. O Grande Sertão – Os currais de boi e os índios de corso. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2011. 47 Grupo Aconã, atualmente localizado no município de Traipu, Estado de Alagoas. 48 Festas: devido a perseguição de missionários e os membros da sociedade nacional, utilizaram termos da língua portuguesa para dissuadir e poder praticar os rituais religiosos.

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namorada de 13 anos e a avó. O que é comum para os sertanejos, inclusive entre os

indígenas, região castigada pela seca e ausência de políticas públicas, e sem

perspectiva econômica, o objetivo principal foi partir em busca de trabalho em outros

estados, a exemplo de São Paulo, Paraná e no atual Mato Grosso do Sul, chegando

até ultrapassar as fronteiras do Paraguai e da Bolívia.

Foi, que é frontera lá do Paraguai, eu atrevessava que só, era uma graça, sabia como que é? Quando eu cheguei na frontera, duas hora da madrugada, eu e meus companheiro, lá na firma que eu trabaiava era uma firma de ferro, por nome Siderurgia, num é? E, um dia eu ia lá pro movimento lá, eu encontrei uns cadáver lá, eu digo, oxe, o que é isso? Axei dois cadáver assim, um aqui outro acolá, tava só o cangaço, eu notei assim, que lá num é esse negoço de... Aí, quando foi de tarde chegou o fiscal, aí “Seu” Miranda, eu digo pronto, dá pro senhor arrumar essa mercadoria pra nos fazer um abate, porque se não o carro fica parado; eu digo, dá; aí juntei a mercadoria, aí disse, vou medir, aí... (P.17).

As viagens e deslocamentos entre os lugares de trabalho e a aldeia foram

frequentes. O fato é que, nas idas e vindas, enfrentou adversidades durante as

viagens, ao mesmo tempo em que construiu amizades, fez armações e articulações,

conseguindo sempre ser bem sucedido e obter vantagens com os contatos, segundo

o mesmo.

O sujeito, ao retomar a discursos pertencentes a outra(s) formação(ões) discursiva(s), sempre realiza escolhas relevantes ao seu discurso, ao tempo em que se marca pela alteridade, pela historicidade, apesar da constante busca de unicidade. (CHARAUDEAU, 2007, p. 79).

Na mesma direção, continua a trajetória discursiva. Uma das vezes teve de

voltar à aldeia porque a avó que o criou encontrava-se doente, chegando a falecer

três dias após a sua chegada em casa. “Recebi uma carta dizendo que meu avô

tinha morrido, e que minha avó tava prostada numa cama chorando, imaginando

morrer e não me via, eu disse vixi, me arrumei cheguei, aí com três dia ela morreu...”

(P. 16).

Entretanto, devido à pressa que o fez viajar, retorna a São Paulo para

acertar as pendências trabalhistas no emprego, visto que o desejo era voltar

definitivamente para a comunidade, casar e constituir família. De volta para a

comunidade, quando casou fez a sua própria residência, visto que a casa em que a

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avó morava cedeu para que a tia continuasse residindo, demonstrando assim a sua

atitude benevolente para com a tia e o seu papel de liderança familiar.

Dexei morando na casa e fui me embora, quando foi em cinquenta e cinco que eu cheguei aí num tirei minha tia da casa não, ela mas meu fio você quer casar, eu digo não, eu tenho condições de arranjar outro rancho, e a senhora mora nessa casa aí enquanto for viva, enquanto tiver vida a casa é sua, e de fato ela só saiu da casa quando ela morreu. Aí fiz uma casa ali, quando já tinha seis bugelo aí eu vi a situação que não tinha nada que preste, né... (MIRANDA, p.17).

Há um longo vazio de informações quanto ao período em que voltou para a

aldeia, constituiu família e voltou a trabalhar na agricultura, por cerca de 30 anos. No

início da década de 1980, encontrando-se em casa, foi convidado para ir a uma

reunião na comunidade com a presença do cacique Manoel Celestino Xucuru-Kariri.

O convite foi justificado especialmente por ser considerado um homem viajado e

conhecedor do mundo, e com capacidade de se organizar e defender os direitos

indígenas e do grupo, iniciado pelo reconhecimento étnico e a demarcação da terra.

Segundo Genésio, a irmã dele, Maria Berta, falou para o cacique Xucuru-Kariri: “Eu

tenho um irmão que ele é muito andero, já andou muito pelo mundo e ele conhece,

mais ele num mora lá não, ele mora num sítio, mas se você se comprometer você

mande chamar ele, que ele tem conhecimento” (MIRANDA, p. 23).

Mais adiante, quando é convidado para ir a Brasília para tratar do

reconhecimento e a demarcação da terra, escusa-se, mas se compromete em

conseguir um representante; mas caso não conseguisse, comprometeu-se em ir. “Eu

digo é Mané isso é importante, mas eu num tenho essa necessidade não que eu já

sou beneficiado por Pankararu, meu nome tá lá no cadastramento, né, e toda vez

que chega os benefício eu recebo”. (MIRANDA, p. 23). E logo após, completa: “Aí

eu, quando foi na sexta-feira e no sábado, eu vi que não tinha saída, tive que

assumir meu lugar, aí depois escoi uma pessoa, isso foi em 1982”. (MIRANDA, p.

23).

Observa-se que, ao mesmo tempo em que recebeu o convite para viajar

para Brasília representando o seu grupo, estava implícito aceitar assumir o cargo de

cacique. De imediato não aceitou, justificando que não teria condições – sempre

ressalta que é analfabeto e, por isso, não compreende a fala das autoridades e as

coisas da sociedade -, mas que, caso não encontrasse alguém da comunidade,

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podia deixar que, quando fizesse a ligação telefônica49, ele mesmo iria. E assim

aconteceu. A partir daí assumiu o cargo de cacique até a sua renúncia em 2002.

Entretanto, mesmo não estando à frente das decisões da comunidade e não

participando das reuniões, permanece como referência interna, inclusive para o

respaldo dos caciques eleitos, como também, externamente, como base da memória

da história e do apoio político ao povo.

Do ponto de vista analítico, o cargo de cacique, caracterizado

principalmente pelo papel político, acabou ofuscando a relevância religiosa que o

“Seu” Genésio cumpre dentro do povo, como também junto às outras lideranças e

comunidades indígenas de origem Pankararu, sem deixar de destacar e reconhecer

o respeito que lhe é prestado pelas lideranças das outras etnias do Estado de

Alagoas, autoridades constituídas da sociedade nacional e pelos representantes de

entidades não governamentais.

3.1.3 Análise do personagem Genésio Miranda: indígena, camponês, operário, patriarca, cacique e líder religioso.

A partir do sujeito Genésio Miranda, ator de uma história entrelaçada de

dramas e relações familiares e étnicas - o camponês, o operário, o jogador de

futebol, o cacique e a liderança religiosa -, a análise identifica no discurso a

construção da identidade étnica do herói místico, líder político e religioso frente aos

seus interlocutores indígenas e não indígenas, na relação étnica e interétnica, no

contato e negociação com autoridades do judiciário, executivo, legislativo e militar, e

com agentes de pastoral e dos movimentos sociais.

Inicialmente, tomo como referência para a análise o cenário em que se

desenrola e se movimenta o sujeito de uma história construída e relatada pelo

próprio ator da ação. Considero que, para além do seu imaginário, existe uma base

histórica, social, econômica e geográfica formada e construída na própria realidade,

a região sertaneja dos estados de Pernambuco e Alagoas, onde estão localizados o

povo Pankararu e descendentes. Para Orlandi:

O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não „brota‟ do nada: assenta-se no modo

49 As lideranças indígenas deviam se encontrar no Recife para, de lá, seguir viagem para Brasília.

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como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. (1988, p. 42).

O Nordeste, que compreende nove estados50 da Federação, teve

destacada importância no processo de colonização das diversas populações desta

região51.

Os primeiros contatos dos europeus ocorreram com essas populações

indígenas, provocando conflitos, guerras e alianças, construídos de acordo com os

interesses econômicos, políticos e étnicos. Dependendo do contexto, de um lado, os

agentes do império civil e religioso; e, do outro, os grupos indígenas. Com o contato

entre os grupos europeus, indígenas e africanos, conflitos e alianças se formaram ou

se acirraram - conflitos anteriormente existentes entre os grupos étnicos nativos e

entre os europeus52.

O povo Pankararu vivenciou dramas, conflitos e negociações com os

europeus e com os grupos étnicos com o contato, o confinamento e a catequização

no aldeamento, como também a diáspora. Nesse cenário, o processo de migração

Pankararu se acirrou com a falta de terra e também com o crescimento populacional,

demarcado principalmente depois do loteamento da terra, e, consequentemente,

com mais fome e mais violência.

Seguindo a mesma linha analítica, identifico que a base documental e os

textos históricos, do ponto de vista da problemática social, econômica e religiosa,

coincidem com a releitura posta no discurso do cacique Genésio Miranda. Observo

que ele reconstrói e ressignifica a história numa perspectiva interpretativa que

possibilita dar resposta à realidade, que, por um lado, nega a existência dos grupos

étnicos, e, por outro, fundamenta a afirmação da identidade étnica, indicando a

motivação da migração Pankararu.

Não, morava lá, que um veio aqui, o primeiro habitante aqui foi na época do Cavarcante em 1600, entendeu? Em 1600 quando o Cavarcante entrou com uma raça negra, e a raça, é, popular, popular

50 Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. 51 POMPA, Cristina. Religião como Tradição – missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru/SP: EDUSC, 2003. 52 OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença Indígena no Nordeste – processo de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2011.

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é o português né, e a raça negra é o africano, né, aí entraram em Pankararú. (MIRANDA, p. 13).

Do ponto de vista cronológico, a data citada acima não corresponde à visão

positivista da história, e, ao contrário, relaciona-se ao campo do imaginário

vivenciado na história dos antepassados indígenas e ressignificado pelos desdentes.

“A história que eu sei é essa que foi bem contada”, segundo Genésio Miranda.

(2012, p. 8). Nesse sentido, a história encontra-se armazenada na memória e nos

elementos necessários que reproduzem os fatos vivenciados na história.

Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então sobre a base de um imaginário que representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a sua (re) construção, sob a restrição „no vazio‟ de que eles respeitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. (ACHARD, 1999, 13).

Ainda reportando à citação anterior do cacique Miranda, identifico a lógica

factual e positivista, assimilada pelos indígenas. Para além do factual, busco

identificar na memória a construção e o sentido que se encontra de forma explicita

ou subliminar nas palavras e no discurso do cacique:

Lá no Ouricuri, você não conhece? Ele disse conheço, ali tudo é índio e ali tudo é minha famia, tenho um irmão que mora lá, e o resto tudo é tio, é primo, tudo parente, às veze cinco famia se resulta numa só, que é a maioria tudo irmão, aí ele disse, então eu vou lá, disse vá, ói Mané eu lhe digo logo a realidade, quando você chegar lá eles tudo se esconde, eles corre tudinho, mas é tudo assim mermo, tou dizendo que era um pessoal inocente aqui, aí vou ajeitando de um em um, até que você vai preparando e convida eles pra fazer esse

reconhecimento, pra ser representado (MIRANDA, 2012, p. 22).

Observo que no primeiro texto se encontra, de forma subjacente, o invasor

e impositor de um modelo de sociedade mercantilista, exploratória, autoritária e de

afirmação eurocêntrica; e, no outro, a busca e esforço incessante do sujeito em

construir e afirmar a alteridade e a identidade étnica.

Esta última, no caso em análise, recai sobre ela um dado mais complexo e

uma busca de sentido. O indígena do Nordeste, não somente busca a afirmação da

identidade, mas, também, organiza o sentido de uma identidade dentro do conflito

de negação e de sua exclusão do estereótipo construído pelos atores da civilização

ocidental e reproduzido pelos indígenas em estágio de pouco contato com a

sociedade nacional. ”A”presença do outro no entrelaçamento de vários discursos

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(interdiscursos) provindos de outro lugar é que abre possibilidades para novos

efeitos de sentido que se concretizam nos discurso. (FLORÊNCIO, 2009, p. 79).

Em primeiro lugar, observa-se que a história Pankararu ficou marcada com

a presença do homem não indígena, o português e o africano, no aldeamento,

resultado da organização missionária.

Nas palavras de Genésio Miranda, observa-se que a sua memória

armazena e resgata a história de violência orquestrada e executada pelos agentes

da colonização - Estado e Igreja - contra o povo Pankararu e seus descendentes,

destacando o período principalmente que compreende a presença dos não

indígenas e suas políticas indigenistas53.

(...) Eu to lhe dizendo que foi na revorta do Cavarcante, Mané Cavarcante começo lá a destruir lá (...) Matando os índio e destruindo as índia, aí num foi isso que criou a mundiça, criou africano, gerou África, pronto foi isso, a África hoje num tem mais, a gente não tem mais nação indígena não é tudo raça negra, alguns que tem ainda a, aquela luzinha do índio mas, não é muito mais. (MIRANDA, 2012, p. 13).

E completou ainda com os relatos das ações executadas pelos atores

dessa política, lembrando inclusive como ocorreu a mistura cultural dos indígenas

com a cultura europeia e a africana, denominada por ele de mundiça, termo típico da

região sertaneja. No seu dizer, destruir as índia, significa usar e abusar sexualmente

das mulheres indígenas. No caso de Juruna Xavante, na década de 1980, lamenta a

mistura do indígena com a mulher branca, que deixou a aldeia, candidatou-se para o

cargo de deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro e casou-se com uma

mulher não indígena.

O interessante é notar que, inicialmente, foi o invasor branco que usou a

mulher indígena, de forma violenta; no caso do Xavante Juruna, inverte-se o contato,

pelo status de deputado, o homem indígena utiliza a mulher branca. Mas fica a

questão, no que se refere à relação de poder, visto que o personagem era um

indígena que foi eleito deputado, que implica do ponto de vista social e econômico

uma nova condição na esfera da sociedade nacional; entretanto, nesta perspectiva,

analisa-se que o indígena, também pode ter sido usado devida a sua nova condição

53 LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs.). Estado e Povos Indígenas – base para uma nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.

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social. Nesse caso, a condição econômica determinou a relação dos respectivos

sujeitos na cultura indígena e na cultura nacional. A título da análise social e

econômica, a relação de poder político e econômico está presente nas duas

condições. No primeiro caso, foi a dominação europeia sobre as indígenas;

enquanto que, no segundo caso, o indígena Xavante, deputado federal, saiu da

comunidade, e, com o status social de parlamentar, contraiu relação matrimonial

com uma não indígena.

Na perspectiva da memória, na observação de Genésio Miranda, mantém-

se a mesma linha de análise crítica sobre o contato indígena com membros da

sociedade não indígena. Nas duas situações, considera prejudicial para as

respectivas culturas e identidades indígenas – Pankararu e Xavante. É importante

notar também que, nos dois casos, as mulheres surgem na relação entre as

sociedades em disputa no papel de submissão e enfraquecimento do mundo

indígena. Para os indígenas, a relação com o branco não é desejável, com afirma o

cacique Genésio: “Mas Juruna já tinha sujado, já tinha casado com uma branca”.

(2012, p.13).

Retomando o texto sobre a reconstrução da trajetória Pankararu, identifico

nas ações dos atores europeu, indígena e africano, as causas que motivaram a

diáspora dos grupos familiares.

Os primeiros Pankararu a chegarem ao sertão de Alagoas foram Zé

Carapina e Izabel, sua esposa. A data de 1600, segundo relato acima, da saída dos

aldeamentos Folha Grande e Brejo dos Padres, surge na memória como um

referencial relevante, indicando o drama do contato, confinamento, miséria, mistura,

desterritorialização e reterritorializaçao ao longo dos mais de 500 anos, como data

do imaginário construído no subconsciente.

Foi quando meu bisavô pulou pra qui, o Zé Carapina pulou pra qui. Rapaz, com dez oito ano, na hora que ele vinha correndo encontra aqui uma prima por nome Isabel, fia de um tio dele, aí disse prima, vamo correr que o revortoso lá tá acabando com tudo, e você como fio de Cido, vamo correr; aí correram. Quando chegaram aqui no Olho D‟Água de Baixo, que era do Major Marco, aí encontraram a fazenda de Major Marco; aí foram pedir água. Aí disse Major... „vocês parecem que são irmão‟; ele disse, não somo irmão, mas somo primo, de dois irmão. Aí disse, qual é o destino de vocês? Tamo correndo aqui pro mode o revortoso que tá lá no, nesse tempo não era no Brejo era na Foia Grande... (2013, p. 10).

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O Zé Carapina consegue se fixar na terra, trabalhar e criar as condições de

formar uma família, na localidade denominada de Ouricuri. O discurso revela a

constante instabilidade vivida pelos indígenas, com uma composição de

insegurança, ameaça de despejo e de violência praticada pelos coronéis – “vamo

correr que o revortoso54 lá tá acabando com tudo” e, ao mesmo tempo, da parte

indígena, a busca pela estabilidade e pela segurança. Por outro lado, ao mesmo

tempo em que utilizada a caracterização étnica da sociedade nacional, o caboclo,

contraria a lógica etnocêntrica do indígena preguiçoso, onde o mesmo aparece no

enredo estruturado em uma família e trabalhador.

Fica perto dumas grotas acolá, entre uma serra e outra... aí eles vinheram praqui escoieram aí e ficou morando, um bocado de seis meis apareceu dois buguelo, Francilino e Maria, aí ficaram morando, ele era caboclo trabaiador com uma roça bem organizada. (2012, p. 11).

Por trás do discurso, considerando a trajetória política e étnica de Genésio

Miranda, delimitada na recuperação da terra e da afirmação da identidade étnica,

identifica-se como objetivo a localização e indicação dos primeiros habitantes

Geripancó, morando e trabalhando a terra. Para além dos indígenas, no cenário

aparecem dois personagens representando o poder político, econômico e social da

sociedade nacional, o Barão e o Major. Os atores da sociedade nacional e os da

sociedade indígena representam e disputam os interesses dos respectivos

segmentos sociais.

Nesse contexto, a reconstrução da realidade emerge na construção do

discurso com o objetivo de defender o direito a terra, com base no dado histórico e

no reconhecimento da identidade étnica do povo Geripankó. Na trama dialógica,

entre o indígena, o Barão e o Major, identifico, na ação do indígena, o discurso da

alteridade e altivez, não mais como aquele que pede favor ou licença para ficar na

terra, mas o que trabalhou, produziu e se organizou na terra.

A posse da terra tem uma significação importante, principalmente no que

se refere ao fator de autonomia. A ocupação torna o sujeito ativo, dominado as

relações sociais, defendendo e argumentando a negociação em novo patamar de

relação.

54 O termo refere-se a uma pessoa que provoca revolta.

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Enquanto base histórica, o relato reproduz uma realidade encontrada e

expressa na relação entre as duas classes sociais na região sertaneja, o dominador

e dominado. Até os dias atuais, em geral, os coronéis de antigamente e os

latifundiários de hoje, cedem a terra para os trabalhadores fazerem roças, com base

no sistema de meeiros ou arrendatários, com prazo delimitado. Antes mesmo de

chegar o prazo marcado, os denominados proprietários põem suas rezes nas roças

dos meeiros e arrendatários, e destrói as plantações, restando aos trabalhadores o

prejuízo e a lamentação.

No caso em estudo, observa-se a habilidade indígena na negociação,

usando o argumento do compadrio e o da autoridade. Primeiro, mesmo que o Major

desejasse despejá-los, observa-se no discurso que o indígena conhece bem as

relações constituídas da região, sabe se movimentar politicamente, e a usa com

muita sabedoria, além de argumentar e utilizar a sensibilidade humana. Lê-se no

texto:

E no tempo do Barão, e o Major Marco era cumpadre do Barão. Major Marco vinha aqui reparar a roça, era fio de criador esse Major Marco, a fazenda era lá no Olho D‟água de Baixo. Aí vinha aqui. Quando chegou aqui viu a roça do índio toda preparada, de feijão de corda, fava, mio maduro, aí disse ei rapaz eu mandei você fazer isso aqui? Era naquele tempo, né, eu num mandei você juntar aqui e fazer tudo isso não, você chegou aqui escondido, mas chegar e fazer uma benfeitoria dessa eu não aceito não. E ele disse: é Major, mas eu só fiz isso, oi, eu tenho essas duas criança pra dá de comer. E ele disse: eu não mandei você vir criar criança aqui; derruba a cerca pro gado comer a lavoura. Ele disse: ah, faço isso não que é crime; ele disse, apois, é crime! Vou lhe entregar pro compadre Barão. Aí entregou, e o Barão disse, mandou chamar ele e ele foi, quando chegou lá ele contou a história, é ele me deu apoio pra eu me aguardar lá e aquilo lá tava parado, cerquei a casinha de rama de madeira, ramado, e ao redor da casa a muié fez um plantiozinho, agora que a lavoura tava bem prosperada ele manda derrubar a cerca pro gado comer; eu achei que meus fio ia morrer de fome, que já tinha abobra pra cozinhar pra eles comer, já tinha um miinho pra eles; aí eu disse que, aí ela falou é verdade, ele falou ói compadre, se ele fizesse isso era crime mermo... (p. 11).

Observa-se que é extremamente significativo o deslocamento das posições

iniciais entre os indígenas e o Major, entre o primeiro contato e o encontro posterior.

No primeiro momento, a conversa foi marcada pela tolerância; no segundo contato,

com a terra cultivada, a atitude foi de violência da parte do coronel contra os

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indígenas; e, posteriomente, surge o Barão, como interlocutor de proteção do

indígena.

A relação saiu do campo de dependência e submissão para o patamar da

negociação com o proprietário da terra. No contexto regional e de negociação, logo

de início, surge um dado muito significativo: a relação de compadrio entre o Barão e

o Major; por outro lado, e o mais importante na escala de obediência, a hierarquia de

poder, o argumento utilizado de autoridade pelo indígena, o Major se submete ao

poder do Barão. Entra em cena o Barão reconhecendo que se o indígena se

submetesse ao Major estaria cometendo um crime e, mais, o Barão reconhece o

direito indígena à posse da terra. Genésio Miranda colocou o discurso do

reconhecimento nas palavras do Barão no diálogo com o Major. Observo que o

cacique Genésio permanentemente coloca na fala do opositor o reconhecimemento

da origem indígena, o direito à terra e o respeito ao despossuído, no caso, os

indígenas.

Falou, sabe o que ocê pode fazer agora? Ocê sabe endireitamente quem é afinal a nação brasileira? Major Marco é, oi, o índio é nação brasileira, que nasceram no Brasil e nasceram da terra do Brasil; que diz que o índio não nasceu de gente, não, nasceu da terra, que nem sapo, disse que índio é raça de sapo. Será que, é? (risos) Justamente, pois é isso, né, o índio é dono do Brasil, é a nação brasileira, é o índio, e o português já sabe como é, é popular... (MIRANDA, p. 11-12).

O relato acima tem como intencionalidade demonstrar a base geográfica e

histórica da identidade indígena e, por isso, o direito ao território reivindicado pelo

povo Geripankó, delimitando objetivamente a fronteira com os portugueses, que é

“popular”, ou seja, o outro que não é originário deste território. E, no plano

ontológico, o indígena e a terra têm a mesma raiz e identidade. Em consequência

dessa identidade, mais uma vez utliza as categorias e ordenamento institucional da

sociedade não indígena, para afirmar a tranquilidade quanto ao direito à terra, em

vista da mesma ter sido registrada documentalmente55.

Portanto, em nível da produção do discurso, assegura o reconhecimento da

terra e, quanto ao procedimento da demarcação, é uma questão adminsitrativa. Com

isso, indica a demarcação da mesma.

55 Relatório FUNAI: Identificação e Delimitação Geripancó, município de Pariconha/AL. Maceió, 1993.

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É, vem de Portugal, né, e sabe como é que você pode fazer? Fazer uma limitação, que venha que eu passo os documento. Aí, ele quando ele chegou fez uma limitação, tem os documento, tem lá nos livro histórico; tô com todo documento aí, dos ponto sagrado, né. Por isso que tô bem sossegado, num tô nem esquentando a cabeça... (MIRANDA, 2012, p. 12).

Do ponto da análise da construção do discurso posto pelo sujeito, constato

a condução lógica e precisão dos objetivos traçados para a recuperação do território.

Em nível da oralidade registrada na memória, recupera o processo histórico da

dispersão Pankararu e a chegada da primeira família Geripankó à região do sertão

de Alagoas. Neste momento, identifica um dos atores que domina aquele espaço, o

personagem “Major Marco”, posseiro da terra, que inicialmente deixa trabalhar a

terra, mas, em seguida, tenta expulsá-la; em segundo plano, o “Barão de Água

Branca”, como intermediador do conflito.

Em vista desse contexto, primeiro sustenta a sua luta pela recuperação da

terra. No segundo momento descreve a trajetória do reconhecimento do grupo ao

direito à demarcação da terra, detalhada através de contatos com outras lideranças

indígenas e com as autoridades políticas e governamentais. E, por fim, a garantia da

demarcação obedece a procedimentos estritamente legais e adminsitrativos.

Conclui-se que, toda a história Geripankó de luta pela recuperação da terra ocorre

pelos meios da negociação, conciliação e dentro do ordenamento institucional

definido pelo Estado brasileiro.

Por isso é recorrente o argumento da ancestralidade, parentesco e do

conhecimento sobre essa realidade. O reconhecimento se dá pela relação cultural e

pelo reconhecimento externa, demonstrado permanentemente no seu conhecimento

e habilidade política em saber fazer o resgate histórico.

Bom, aí conseguimos, trouxemos de Geripankó. Quando eu cheguei fui direto pro prédio lá, pro Congresso; lá, com os chefe de posto, com as liderança; lá, eles disse, não, tudo bem, agora não houve nenhuma obrigação da gente ir lá fazendo política, lá não. Aí eu fui, que eu sabia que eles lá iam pra ter conhecimento, né? (grifo meu). Que eu posso dizer que me nasci aqui, nasci aqui, mas me criei lá; a minha mãe morava lá - só que eu não morava mais ela. Quando cheguei lá, que viu a causa, o cabra sartou fora. Disse, pera aí, nós não tamo aqui precisando do que é seu; queremos só sua ajuda, que nós já têm, eu não quero lá o que não pertence; eu fiquei, eu uso, quero aquilo que me pertence; pra isso nós já temos nossos antepassados, nossos avô, nosso bisavô até, meus filhos, meus pais, tudo é natural daqui. Foi quando o cara, se eu não vou, ele não tinha

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aceitado. Mas fico agora a pouco mês de janeiro, as duas semanas de janeiro, ele lá pra fechar o contrato pra resolver. (MIRANDA, 2012, p.1).

Seguindo a coerência discursiva da defesa do cacique Genésio quanto ao

direito à terra do povo Geripankó e do direito do posseiro, destaco a fala do relato

acima citado e a sua intencionalidade em demarcar a linha fronteiriça entre o seu

direito ao território e o direito do outro: “Nós não tamo aqui precisando do que é seu;

queremos só sua ajuda, que nós já têm, eu não quero lá o que não pertence”.

E demonstra que, caso o sujeito não tenha o conhecimento de sua história,

das tradições culturais e religiosas, não tem poder. E considera que esses

elementos são critérios importantes para o reconhecimento externo.

Por isso que eu digo, se a pessoa não tiver conhecimento, perde isso, que nem hoje tem diversas liderança aqui, se apresentando como cacique, pajé, sem tem um reconhecimento no Distrito Federal, você acha que vai ser aprovado? (MIRANDA, p.1).

E logo em seguida demonstra o conhecimento diante do interlocutor, o

fazendeiro, sobre a realidade que está reivindicando, da relação de parentesco e

histórica:

Eu digo seu Luís é um seguinte, eu fui criado dentro daquela fazenda, junto com meu avô, que meu avô era engenheiro de fazer alimentação, ajeitamento da cerca, meu avô era quem fazia aquilo, e eu ajudava ele, acompanhava... é, trabalhava, eu digo na verdade...Quintino José Miranda, eu digo e na verdade meu avô mediu e cubou, e a fazenda da cinco mil seiscentas e pouca tarefas. (MIRANDA, p. 2).

Na luta pela conquista da terra, deixa claro o conceito, a utilização e a

destinação. Para o indígena, a terra é considera mãe e, portanto, não deve servir

para negócio, mas é para ser o espaço de reprodução física e cultural. Essa

concepção entra em confronto direto com o modo capitalista de uso da terra como

mercadoria, ou seja, “a terra não é pra venda (...) e se o vendedor vendeu, vai pra

processo, que é um roubo criminal”, e define o uso da terra: “pra mode trabalhar”.

A terra não é pra venda, a terra o governo comprou e a doou pra mode trabalhar, mas pra vender não, eu digo se você comprar você perde, e se o vendedor vendeu, vai pra processo, que é um roubo criminal, eu acho que eu não entendo bem, mas eu acho que você tá provando o que eu tô dizendo que isso é verdade... (MIRANDA, p.1)

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E completou, indicando os pontos que identificam os delimitam os limites

da terra:

Aí foram feito limite assim das, Cadeia do João Curto, Serra da Chapada, Cabeça da Grota D‟água, Bem Dizer, Serra do Simão, descendo Pedra Letrero, Lagoa do Croatá, subindo a Serra do Lunguinha pega a Serra do Cardoso, a Lagoa da Samambaia, lá vortando direto à Lagoa do Ripelo, e lá vortando vem direto embugando a ferrada que é aquele Oraticum, e sobe a Cadeia de João Curto, e eu tenho todo os documento, e tá no cartório de Doutor Inácio de Melo, lá em Água Branca. (MIRANDA, p. 11).

Entretanto, mesmo considerada essencial para a reprodução física e

cultural das populações indígenas e garantida pela Constituição Federal, a

demarcação do território Geripankó continua atrelada à lentidão administrativa.

3.2 Pajé Elias e cacique Genésio: religioso e político no processo de ressurgimento Geripankó

A entrevista com o pajé Geripankó Elias Bernardo, 67 anos, casado, pai de

7 filhos, foi gravada em sua residência, localizada na comunidade Figueiredo,

iniciando ao entardecer e culminando no início da noite, período em que se

encontrava em casa somente a sua esposa. Era um sábado do primeiro final de

semana do início das corridas do ritual da Flechada do Imbu.

Ao redor da casa encontram-se um dos terreiros do grupo indígena e a

casa dos rituais, reservados, respectivamente, para realizar os trabalhos religiosos e

para guardar os objetos e ornamentos, como as roupas dos praiás, maracá,

cachimbo, fumo, relíquias de promessa, fitas, entre outros objetos religiosos.

Diferentemente do cacique Genésio Miranda, o ambiente foi escolhido pelo

pajé, que me levou para a sala reservada, sem movimentação e sem barulho de

pessoas. Em algum momento, percebia-se que sua esposa, silenciosamente,

transitava entre a cozinha da casa – no quintal tem uma cozinha tradicional, com

fogão à lenha -, e a despensa, com aparência de procurar algum objeto. Ela

desapareceu depois completamente, ao ponto de “seu” Elias justificar-se por não

poder oferecer café, por encontrar-se sozinho em casa – ofereceu água.

A entrevista ocorreu em clima de completa cumplicidade e confiança,

respeitando-se o papel de cada um, o entrevistador e o entrevistado. Faz-se

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168

necessário destacar esta condição, visto que em nenhum momento os dois

desrepeitaram o papel do outro. Ou seja, o entrevistador respeitou os limites e

fronteiras éticas das informações repassadas, como também o entrevistado falou na

linguagem própria do grupo no que se refere ao conhecimento e a ciência religiosa,

omitindo explicações próprias aos membros da comunidade iniciados na cosmologia

religiosa.

3.2.1 A etnia Geripankó: origem, articulação interétnica e formação do pajé

A origem da identidade étnica Geripankó encontra-se na raiz Pankararu.

Todos os registros e documentos encontrados, além dos relatos transmitidos

oralmente a partir da memória dos mais velhos e das lideranças, apontam as razões

da diáspora e a fonte cultural e religiosa dos descendentes Pankararu, ou, como é

denominado por eles próprios, ponta de rama – denominação dos grupos originários

e praticantes das tradições Pankararu.

Encontra-se nos relatos os critérios de pertencimento ao grupo Pankararu:

a relação de parentesco, o conhecimento e a prática dos rituais. “A minha origem é

Pankararu, porque a minha família toda é Pankararu. A minha família, minha família

toda éééé família Cristovão, é toda Pankararu”. (ELIAS, p.2, 2013). Outro elemento

importante para certificar o conhecimento sobre a cultura Pankararu é o processo de

formação, inicialmente através da mãe e da tia, Maria Chulé, desde criança, quando

a família leva o filho para observar e participar dos rituais:

A finada Maria Chulé, ela foi quem no tempo deu moleque, deu pequeno, eu até me lembro pra cuidar de oito home de 9 anos a 10 anos por aí, assim eu nem conhecia nem o que era essas coisas; aí, eu fui lá, mais uma irmã minha e a minha mãe também (ELIAS, 2012, p. 2).

No caso do pajé Elias, surgem alguns elementos diferenciados

relacionados à maioria das crianças indígenas Geripankó, visto que para ele é

entregue a ciência da semente, como garantia da continuidade da tradição: “minha

tia foi que me levou e me levou agente lá, achou que eu tinha condições de, de, de

continuar o meu trabalho e o trabalho dela também; achou que eu tinha condições

porque era da família, achou que eu tinha condições” (ELIAS, 2012, p. 2).

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169

No processo de formação do pajé se identificam as várias etapas,

delimitadas pela faixa etária. Ainda criança, como está escrito no relato, não tem

conhecimento de nada do conteúdo religioso, que se inicia na faixa dos 10 anos,

quando é conduzido pela família até a casa da tia, Maria Chulé, para receber a

semente da ciência.

Aí eu cheguei lá, Aí, me levou lá no cantinho da casa dela de palha e foi e me entregou lá umas encomenda e me botou lá; aí, eu não queria, sabia nem o que era que era. Aí, depois, ela falou pra mim que, quando eu tivesse na meia idade, eu ia saber o que era e de fato aconteceu isso ai mesmo. (P. 2).

As informações que são repassadas desde cedo pela mãe para a formação

da criança, são confirmadas com argumentos discursivos da verdade histórica. Para

não deixar dúvidas no que está dizendo, afirma: “Isso aí é, é, é, uma história que eu

tô contando de realidade e aconteceu e então até na verdade eu quando muito

pequeno, muito muleque, minha mãe falava essas coisas”. (ELIAS, p. 2).

À medida que crescia e amadurecia a personalidadde, compreendia e tinha

possibilidade de formar a própria opinião, tanto com a informação que aprendeu na

família e, também, na participação dos rituais Pankararu. Em nível da observação

dos rituais, ainda jovem: “participava de festa de solteiro, de festa de 15 anos,

sempre eu participava por lá e via tudo de lá como era, que era, mas, só que eu não

trabalhava com eles. Então, eu, mas eu sempre vinha avisando, eles então eram,

mas só que eu não trabalhava com eles”. (ELIAS, p. 4).

Percebe-se que a formação religiosa acontece introduzindo na cosmologia,

na compreensão da mitologia e das entidades espirituais dos antepassados,

inicialmente com a informação e prática dos ritos sagrados no âmbito familiar, depois

com as lideranças femininas, iniciado e acompanhado pelas mulheres e na

observação dos rituais Pankararu.

Identifico, então, que a formação de pajé é lenta e dolorosa, tanto durante o

processo quanto em nível do cargo de pajé no exercíicio das atividades e

responsabilidades. Neste contexto, faz-se necessário retomar o discurso do cacique

Genésio Miranda, quando da escolha de Elias para o cargo de pajé, considerando

que o mesmo não tinha nascido na comunidade do Ouricuri, e que por isso precisou

do reconhecimento do cacique.

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170

Observo um conflito entre as duas perspectivas a partir das explicações

dadas pelo pajé Elias e pelo cacique Genésio para a escolha do cargo de pajé. O

pajé Elias, admite o fato de não ter nascido na comunidade Geripankó, mas explica

o processo de formação que recebeu e, por isso, considera-se preparado para o

exercício do cargo. Entretanto, o cacique Genésio reconhece que o pajé Elias tinha

conhecimento para assumir o cargo, mas foi ele quem deu o respaldo político.

Mesmo relutando e batalhando contra as entidades espirituais, e tendo

obedecido as etapas etárias, cumprido a formação religiosa e a organização social

do povo, com a maturidade, assume:

Como se diz desse tempo pra cá, as coisas se passaram, mas a coisa ia ficando dura pra danado; aí, no final, que eu me casei e sempre eu vendo essas visão, sempre eu vendo, acompanhando essa visão, eu sempre reclamava que eu não queria que saísse de fora de mim, que eu não queria, mas não teve jeito de maneira nenhuma; até que chegou ao ponto, de eu já com 40 anos de idade, é, aí me apertou mesmo, foi o jeito que teve de eu consegui entrar na batalha, de entrar no trabalho pra esse povo. (ELIAS, p. 2).

O pajé Elias, emocionado e vivenciando o processo de formação de

pajelança que tinha passado, expressou a batalha que travou e os seus momentos

de relutância e agonia para não assumir a responsabilidade de trabalhar com as

entidades – “eu sempre reclamava que eu não queria que saísse de fora de mim,

que eu não queria, mas não teve jeito de maneira nenhuma” -, de exercer o cargo e

assumir o papel de cuidar da proteção e da vida religiosa dos membros da

comunidade.

Nesse processo, identifica-se como acontece a escolha do líder religioso,

que passa pela vivência mística e religiosa no contexto familiar, comunitário e

pessoal. Percebe-se que não há uma escolha estritamente pessoal, visto que são as

entidades religiosas que arrebatam a pessoa e se impõem sobre ela, determinando

como a mesma deve agir. A cosmologia Geripankó, na perspectiva da antropóloga

Aracy Lopes, expressa uma intrínseca e complexa relação entre a vida social,

religiosa, os Encantados, as famílias, os membros da comunidade e o indivíduo. O

individuo é escolhido pelas forças vivas dos Encantados, que conduzem as famílias

e a comunidade. Como relata o pajé Elias:

Mas só que teve uma coisa comigo no meu trabalho, foi obrigado a mandar muitas cartas, muitos rezador, mas não teve rezador nenhum que desse corda a ele, aí foi o jeito ou eu entrava no trabalho ou se

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não por outro o Zé Campo me levava, tava morrendo; morrendo mesmo, se acabando tinha dia que passava 15 a 22 dias em cima de uma cama sem poder me levantar, sem poder eu todo duro; passou o ponto deu ver ele na vista dos meus olhos conversando comigo; se eu não continuasse o trabalho, ele iria me levar de qualquer maneira. Aí, então, entrei. O pessoal começaram a me dar muito conselhos, os irmãos, éééé, a mulher também me dava muitos conselhos que eu posso sim. Mode conseguir um trabalho, aí eu fui falei pra ele, ele disse que eu dei um sim pra ele; na hora que eu dei um sim pra ele, eles fizeram uma gaitada e fizeram uma roda, me cruzaram, quando me cruzaram e me levantei me sentindo mal, me levantei e fiquei bom na mesma hora. E desse dia pra cá, quando cheguei na época de trabalho com eles mesmo, eles mesmo chegaram e me indicaram tudinho o que era assim eu deitado na cama e conversando com eles como eu to conversando aqui. E falando com eles, conversando com eles o que era que eu poderia fazer na mesa, puxar por eles, quando eles chegaram que baixaram na mesa e eles iam fazer o que eles criam fazer na mesa se precisasse de alguma coisa procurasse eles que eles podiam fazer. Foi assim que eu consegui o meu trabalho com eles. E hoje em dia, graças a Deus, eu só tenho gripe, tenho uma gripe muito forte que vem assim pelo vento, né, tirando isso, outras coisas para mim, eu tenho também problema de coluna porque eu trabalho demais, né, mas sentado também trabalhando de enxada deu, deu problema de coluna. Mas, graças a Deus, me tratei e estou bem. Graças a Deus! (ELIAS, p. 2-3).

Outro ponto importante a ser observado na formação de pajé é o papel da

mulher no mundo religioso Geripankó, destacando-se como guardiã das tradições

religiosas e culturais, na educação e iniciação, que implica na indicação, na entrega,

na proteção e no acompanhamento da criança, do adolescente e da juventude.

Depois da escolha, o indivíduo é apresentado à comunidade e entregue ao

Encantado, e em seguida é convocado para participar dos rituais religiosos

realizados pelo povo Pankararu - raiz e o tronco cultural -, até ser considerado

pronto e se considerar preparado.

Do ponto de vista da religião, tem como referência a volta aos terreiros

Pankararu, no Brejo dos Padres, durante as Corridas do Imbu, Menino do Rancho e

participação nas Mesas, que implica em uma relação de volta às fontes culturais e

religiosas. Socialmente, observa-se como critério determinante, a relação de

parentesco, onde o sujeito fica livre para participar e obedecer aos rituais religiosos,

reservando a penalidade pela não obediência das regras religiosas e o castigo

imposto pelas entidades espirituais.

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A partir das observações de campo e da análise expressa nas entrevistas

com as lideranças religiosas e políticas, numa escala estritamente metodológica,

identifico as seguintes etapas e critérios para se tornar pajé: a relação de

parentesco, que o identifica enquanto membro e define o pertencimento ao grupo

social – mesmo, como é o caso, não tendo sido criado na comunidade; a indicação,

convocação e entrega aos Encantados; conhecimento da vida social e da ciência

sagrada – semente do Encantado; participar e formar-se na vida social e religiosa

Panakraru; e, finalmente, entrar na fase da maturidade pessoal, social e religiosa.

Aplicando as categorias de análise, escreve Gennep, “como acontece entre os

Bantos e os ameríndios, sobretudo os Pueblo e os ameríndios centrais, a vida social

e a vida cósmica são consideradas intimamente ligadas, é normal que existam ritos

de agregação do recém-nascido ao mundo cósmico, quero dizer, a seus principais

elementos”. (1997, p. 70).

Todo o processo de iniciação é assumido pelas mulheres, desde o

chamado, preparação e acompanhamento religioso, cabendo ao pai acompanhar a

criança como membro da família. No caso do pajé Elias, ele é enfático e direto ao

falar do pai: “eu não tenho nem lembrança dele; eu tenho lembrança de minha mãe”.

(ELIAS, 2012, p. 2). E, ao contrário, quando falava da tia Maria Chulé, que o pegou,

passou a semente do Encantado e o preparou para dar continuidade às tradições

culturais e aos trabalhos religiosos, ficou emocionado:

É, é, é justamente, você me falou a respeito aí se me bateu um, um batido no meu coração, quando você falou no nome de minha tia Maria Chulé, que eu falei pra você que todo esse conhecimento eu consegui com minha tia Maria Chulé. Jorge, a minha história é muito longa, mais eu quero chegar até o final, é, é sobre as minha obrigação, minha história é muito longa. (ELIAS, p. 10).

Mesmo depois de assumir o cargo, as atividades e a responsabilidade de

pajé na comunidade, a autonomia não é absoluta frente ao conjunto de obrigações,

celebrações, rituais e costumes Pankararu. A referência é a volta e a obediência às

regras, tradições e calendário religioso dos Pankararu. A trajetória Brejo dos Padres,

rio Moxotó e Ouricuri é permanentemente percorrida, independe do período do ano,

mas intensificando-se no início da Corrida do Imbu. Inclusive, na abertura e

fechamento dos rituais, é costume que os grupos Pankararu residentes fora da área

participem das celebrações, como é o caso dos Karuazu, Katökinn e Kalankó –

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Koiupanká, como já demonstrado e analisado, existem questões étnicas

diferenciadas, ligadas as novas interpretações e ressignificações religiosas e

políticas -, para consultas aos mais velhos, caracterizada pela volta aos troncos da

comunidade.

O processo de identificação, formação, conhecimento dos ritos e mistérios

religiosos, como analisado anteriormente, ocorre nos limites da vida e estrutura

social do grupo étnico ao qual pertencem os membros, seja em nível interno ou de

onde se originou, no caso, o povo Pankararu. O cacique Genésio Miranda mostra o

pertencimento

Lá a gente era beneficiado, diziam que a gente lá conseguia os costume, as tradição, a cultura, e o benefício sempre vinha, né, mas não dava o segmento aqui o que era lá não, né, isso aí eu num tinha conhecimento não, sabia que eu tinha assistência lá... (MIRANDA, 2012, p. 23).

A formação do pajé, além dos ritos de iniciação, passagem e preparação,

que ocorrem dentro da mesma lógica dos outros membros da comunidade, requer

também o reconhecimento da comunidade e das lideranças políticas e religiosas.

Ademais, pelas informações que se encontram no relato do pajé Elias, a

comunidade reconheceu o seu trabalho e a sua capacidade para exercer o cargo e

representá-la, diz:

Bom, foi assim na minha época aqui de meu trabalho, a comunidade acharam que eu tinha condições de representar, porque só que na época, só quem trabalhava com essas coisas de, de, trabalho para defender a comunidade aqui só era eu; outras pessoas aqui não trabalhava e eu consegui é ser o um único, ser o pajé por causa da comunidade porque acharam que só quem tinha condições era eu mesmo, mesmo, dali acharam que só quem tinha condições era eu; dos filhos da vizinhança não tinha, não tinha, então - a minha família toda é Geripankó; mas eu morava afastado. (ELIAS, 2012, p. 1).

Nota-se que, semelhante à afirmação do que foi também afirmado pelo

cacique Genésio, e registrado ao longo deste trabalho, referente à relação com o

conhecimento e com as práticas tradicionais Pankararu, o pajé Elias faz a ressalva

também de que somente ele da comunidade tinha conhecimento e praticava a

religião, e por isso sabia defender a população indígena - “só quem trabalhava com

essas coisas de..., de..., trabalho56 para defender a comunidade aqui só era eu”-,

56

O trabalho ao qual se refere o pajé trata-se das práticas religiosas e do domínio da ciência

indígena.

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mesmo não tendo sido criado na comunidade. Em vista do reconhecimento do

trabalho e de sua capacidade foi convocado pela comunidade.

Este dado indicado pelo cacique e pelo pajé, considerados as duas

principais lideranças políticas e religiosas do povo, expressa a afirmação religiosa e

política deles para dentro da organização social da comunidade e, também, para os

interlecutores da sociedade não indígena. Portanto, é um discurso construído de

representação e afirmação identitário na correlação de forças e de poder frente ao

outro e diante da sociedade nacional.

Eu nasci e não me criei dentro da área, mas minha família é daqui toda de dentro da área; mas, aí, depois que eu me casei, eu vim morar aqui no Figueiredo, e uma cidade que ficou pertinho do Ouricuri e do meu povo. Então, eu fiquei trabalhando, ahh, já tava com quarenta e poucos anos de trabalho; aí, então, a comunidade acharam que só quem tinha condições de ser pajé era eu, porque eu tenho muito respeito com a comunidade, muito respeito com o grande e o pequeno e o sobre ahh oooo ooo dereito do índio, só quem sabia era eu por causa das minhas obrigações que eu tinha e meus trabalhos; e, então, a comunidade acharam que só eu tinha condições e foram e me chamaram e modo eu ir lá no Ouricuri, lá, lá na reunião da com o povo, lá então eu não sabia o que era, então eu cheguei lá e tava o Zé Nezi, tava o a comunidade a raiz tudo com os tronco mais veio - Deus já levou quase tudo, mas ainda tem ainda aí. Então eles acharam que ai lançaram a conversa pra mim; aí, eu fui e abri a boca, que eu poderia até acompanhar o Zé Nezi sobre a comunidade e o povo. É, eu dei meu sim de pajé, mas se eu soubesse que o peso era tão grande assim para um pajé dentro de uma área, eu nunca tinha aceitado, mas, como eu já dei minha palavra; e segurei minha palavra até hoje. (ELIAS, p.1-2).

Charaudeau coloca:

A questão como impor sua pessoa de sujeito falante ao outro responde à necessidade que o sujeito falante possui de fazer como que seja reconhecido como uma pessoa digna de ser ouvida, seja porque a consideramos credível, seja porque podemos lhe atribuir confiança, seja porque ela representa um modelo carismático. (Apud LARA; MACHADO; EMEDIATO, 2007).

Seguindo a mesma lógica, o cacique Genésio Miranda confirma o chamado

da comunidade, mas traz para si o poder de confirmação em razão de atestar a sua

pertença no povo Pankararu, como o conhecimento cultural e religioso, lembrando

as consequências da decisão de assumir o cargo de líder religioso – o próprio Elias

também compreende a responsabilidade:

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Aí chamaro Elia (...) Pankararú, aí mas chame ele, aí chamaro. Ele disse, ah vô; eu disse, ói Elia, você vai, mas você vai torcer a oreia - isso é bicho de sete cabeça e cada cabeça tem sete ponta, mas você se confia e comigo vamo. (MIRANDA, 2012, P.25).

Nas palavras do cacique, o chamamento da comunidade para Elias

assumir o cargo foi posterior à consulta a ele, Genésio:

É Elia, eu conheço da cultura dele, mas tem uma coisa, ele num tem descendência aqui, não, ainda mais que outra que ele é casado com uma branca, né, casado com índia, não. Agora, tem descendência indígena, que a mãe dele também num era índia não, agora o pai dele era índio legitimo... (MIRANDA, 2012, p. 25).

Como se pode ver no texto acima expresso pelo cacique, é questionada de

forma subliminar sobre a origem e a descendência genealógica Pankararu, visto

que, do ponto de vista estritamente biológico ele carrega somente a metade da

consanguinidade.

Mas, considerando que não existe raça pura na humanidade, e muito

menos existiria nos grupos indígenas do Nordete em contato com a sociedade

nacional há mais de 500 anos, compreende-se que a definição se pauta pela

recriação, construção e ressignnificação cultural, tendo como ênfase os critérios de

conhecimento, da prática e do domínio do mundo religioso Pankararu, mas também,

o domínio do mundo do branco. Exemplo do que foi afirmado pela indígena Maria do

Carmo, irmã do cacique Genésio:

Mané eu lhe digo logo a realidade, quando você chegar lá eles tudo se esconde, eles corre tudinho, mas é tudo assim mermo, tou dizendo que era um pessoal inocente aqui, aí vou ajeitando de um em um, até que você vai preparando e convida eles pra fazer esse reconhecimento, pra ser representado, agora eu tenho um irmão que ele é muito andero, já andou muito pelo mundo e ele conhece. (MIRANDA, 2012, p. 24).

Fato semelhante ao pajé Elias ocorreu com o cacique Genésio quanto ao

processo de ser convocado para assumir o cargo de cacique na comunidade, cargo

que não queria inicialmente, mas, pela convocação da comunidade, acabou

aceitando:

Tive que assumir meu lugar, aí depois escoi uma pessoa, isso foi em 1982, aí convidei um cara, ele disse „num vou não‟, que além dele num saber de nada, ele tinha dois fio; então, queria não ele de companhia, não (MIRANDA, p. 25).

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176

O assumir os respectivos cargos, analisa-se que a construção discursiva e

antropológica indica duas interpretações: primeiro nega a capacidade do outro – no

caso, os membros da comunidade – quanto às condições de assumir o cargo, por

não ter o conhecimento da cultura e da religião; mas, ao mesmo tempo, o poder é da

comunidade que o chama. “Isso é importante, mas eu num tenho essa necessidade

não que eu já sou beneficiado por Pankararú, meu nome tá lá no cadastramento, né,

e toda vez que chega os benefício eu recebo, agora os daqui precisa, ói vocês

merece rapaz, ah mais num sabe” (MIRANDA, 2012, p. 24-25). Por outro lado,

observa-se o poder religioso e político do cacique, quando traz para si o poder de

reconhecer o seu conhecimento sobre a cultura e a religião indígena, como também

sobre o seu trabalho. Segundo Genésio, os outros membros da comunidade não

tinham o conhecimento e nem o praticavam:

É, essa otra famia aí nunca praticaram, nunca viram nada disso, só quando eu me pus de gente, já foi na, na possibilidade do meu avô, que meu pai morreu nasci em trinta, meu pai morreu em trinta e dois, minha mãe em trinta e seis me abandono, e eu fiquei mais meu avô e minha mãe, quando foi em trinta e... (MIRANDA, 2012, p. 15).

Quanto ao processo de reconhecimento étnico do grupo Geripankó, ele se

deu exatamente sob a sua orientação, acompanhamento e decisão. Diz

taxativamente: É isso que percebemos no discurso seguinte, cujas asserções

fundamentais ao processo estão centradas no próprio sujeito – fui quem fiz; eu fiz o

relatório do assentamento – mesmo quando existe uma necessidade de socialização

– a gente usava a cultura -, há uma retomada pelo próprio sujeito – fazia as

obrigação lá, pelo meno eu.

Eu, fui quem fiz. (...) Eu fiz o relatório do assentamento aqui, do primero chegante aqui, como foi começado aqui, como foi o, ao, aqui não tinha cultura, mas a gente usava a cultura e fazia lá em Pankararú, fazia as obrigação lá, pelo menos eu, minha famia, meus avô, meus tio, aí quando bateu, foi o finado João Valença, e o finado João Tomás, que era muito amigo da gente, parente... (MIRANDA, p. 25).

O cacique Genésio, em rememorização da história Geripankó, procura

demonstrar amplo conhecimento sobre a origem do grupo, a chegada dos primeiros

habitantes, a pertença à etnia Pankararu, e, por isso, o qualifica a ter feito o

processo de reconhecimento. Ele busca o etinônimo do povo:

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Era, que nos até num se gostava, porque um dia queria me prender lá no posto, mas eu de besta não tinha nada, né, ele, sim dexa eu terminar, aí, ele disse Genésio, qual é, que nome é que você vai botar na aldeia? Aqui era conhecido por Ouricuri, mas o Ouricuri se chama no particular57(grifo do pesquisador), nas aldeia Ouricuri, e lá no Uruguguai é Ouricuri mas tem que ter o nome da, do particular, aí disse, e aí rapaz e agora? Ele disse, mas tem jeito, Pankararu tem cinco nome, aí você escolhe um dos nome, só não pode nem Pankararu, nem Brejo dos Padres, aí tá bom, né... (MIRANDA, p. 25-26).

O texto mostra a preocupação de uma recuperação fiel às origens, na

busca pela denominação autêntica. Observa-se que, por trás das palavras, há uma

convicção sobre a pertença étnica, conhecimento cultural, religiosos e relação de

parentesco. Observa-se que os elementos fundantes e de pertencimento ao grupo

como membro, encontram respaldo legal no texto constitucional, artigo 231,

CF/1988: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,

crenças e tradições...”. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho

(OIT), de 07 de junho de 1989, define: “as aspirações desses povos ao assumir o

controle de suas próprias instituições e formas de vida e de seu desenvolvimento

econômico, e manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões, dentro do

âmbito dos Estados onde mora”. No Iº Encontro Nacional dos Povos Indígenas em

Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial, Olinda, Pernambuco, realizado entre

os dias 15 a 20 de maio de 2003, com a participação de 47 povos indígenas do

Brasil, entidades não governamentais, órgãos federais, membros do Ministério

Público Federal, indigenistas, historiadores, teólogos e antropólogos, o antropólogo

José Augusto Laranjeiras, afirmou:

Quem tem a competência para afirmar a identidade étnica de uma comunidade são os próprios membros. Então, não faz sentido que se façam puramente laudos de identificação étnica que apenas venham a confirmar o que já se sabe. Deve-se partir logo para os laudos de identificação territorial. Ou seja, em termos antropológicos, os únicos sujeitos capazes de definir a etnicidade de um grupo são os próprios membros do grupo. (LARANJEIRAS, 2003, p, 2).

57 O termo é usado por algumas populações indígenas do Nordeste para designar o ritual religioso e o lugar sagrado onde o mesmo é realizado.

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Seguindo a mesma linha de compreensão, o representante da Associação

Brasileira dos Antropólogos (ABA)58, Henyo Trindade, completa: “(...) a entrada em

vigor da Convenção 169 da OIT torna desnecessários os laudos de identificação

étnica, permitindo que avance diretamente na consecução dos laudos de

identificação territorial” (TRINDADE, 2003, p.14).

Portanto, o cacique Genésio Miranda traz para si a responsabilidade do

reconhecimento étnico, tanto do primeiro grupo a ter o reconhecimento diferenciado

étnico e culturalmente, como, posteriormente, o apoio que dá aos grupos Kalankó,

Karuazu, Katökinn e Koiupanká.

A partir da pesquisa documental e de campo e da leitura das entrevistas

concedidas pelas lideranças, cabe identificar, por um lado, a existência dos grupos

étnicos Pankararu e os ponta de rama – forma com que se autodenominam os

descendentes espalhados pelo Brasil -, com suas culturas, tradições, práticas

religiosas e rituais - realidade que se encontra presente por toda a região semiárida

dos estados de Alagoas, Pernambuco e Bahia. Por outro lado, fica claro também

que o reconhecimento étnico nasce da necessidade, em primeiro lugar, da

sociedade nacional, dos órgãos governamentais, da própria legislação brasileira,

para dizer quem é o indígena, para poder reconhecer os seus direitos, delegando

aos grupos indígenas o ônus da prova do ser e pertencer a um grupo indígena

etnicamente diferenciado.

Constata-se, portanto, que, para o grupo indígena, a sua existência étnica

independe do reconhecimento público, para ele uma realidade historicamente

comprovada ao longo dos períodos de perseguição e negação da identidade étnica.

Mas, a partir da necessidade da sociedade, visto que a identidade étnica de um

grupo se expressa na relação com outro e com o diferente de si, os grupos

indígenas do Nordeste percebem a necessidade do reconhecimento e de adquirir os

direitos, e por isso procuram demarcar e expressar as fronteiras étnicas.

Por isso que eu digo, se a pessoa não tiver conhecimento, perde isso, que nem hoje tem diversas liderança aqui, se apresentando como cacique, pajé, sem tem um reconhecimento no Distrito Federal, você acha que vai ser aprovado? (MIRANDA, 2013, p. 10).

58 Entidade científica de antropólogos que trabalham com questões indígenas, gênero, negros, trabalhadores, populações urbanas, entre outros.

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O cacique Genésio, mesmo tendo renunciado ao exercício administrativo

do cargo, questiona a postura dos seus sucessores por não terem a credibilidade

necessária para a representatividade da comunidade e nem o reconhecimento das

autoridades constituídas do Estado nacional.

Neste terreno movediço pela construção, conflito, criação e ressiginificação

dos signos e significados conduzidos pelas populações, identifica-se trajetória de

afirmação da etnicidade.

A análise ora em curso busca identificar estritamente o processo de

afirmação política desses grupos étnicos diante da sociedade e do Estado nacional,

seus órgãos e instituições de assistência. Observo que, nesse processo, as

populações foram, ao longo do tempo, obrigadas a negarem a identidade étnica e a

negociarem a convivência com a população e agentes da cultura que se encontra ao

entorno das comunidades. No confronto, acomodação e negociação, foram postos

no anonimato ou na descaracterização de caboclo, uma espécie de não membro da

sociedade nacional e também da sociedade indígena – um sujeito sem identidade,

do ponto de vista estabelecido pelos critérios da sociedade hegemônica do domínio

político, econômico e cultural.

E, portanto, o longo período de anonimato dessas culturas indígenas,

demonstraram a capacidade de sustentar, ressignificar e engendrar suas tradições

culturais, religiosas, organizações e práticas rituais, mesmo submetidas sócio,

cultural, religiosa, econômico e politicamente ao poder da sociedade dominante.

Nesta perspectiva, o estudo sobre o reconhecimento étnico Geripankó,

representa as várias dimensões desse processo de reconhecimento étnico, posto

não pela necessidade interna dos grupos indígenas, mas pela sociedade e estado

nacional. Em si, antropologicamente, e isso é válido para qualquer sociedade, a

necessidade da diferenciação e do reconhecimento étnico ocorre sempre pela

demanda posta pelo outro. Em geral, os povos indígenas do Nordeste, secularmente

relegados ao esquecimento, na década de 1970, impulsionados pelo processo de

democratização do Brasil, reivindicam o reconhecimento étnico no contexto da luta

pelos direitos sociais e políticos, como o direito à assistência de educação, saúde,

projetos de desenvolvimento econômico e, principalmente, a demarcação dos

territórios tradicionais.

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O silenciamento imposto em determinadas situações não se sustenta, em virtude do constante movimento do sujeito que, em sua dispersão constitutiva, ultrapassa os limites do dizível, para produzir sentidos outros que lhes são proibidos, mostrando, então, o movimento constituvo entre tênues fronteiras de formação discursivas. (FORÊNCIO; MAGALHÃES; SOBRINHO; CAVALCANTE, 2009, p. 83).

Especificamente no que se refere ao processo de reconhecimento do grupo

Geripankó, fica claro que a iniciativa partiu de indígena pertencente a outro grupo

étnico, com larga trajetória de participação de seus antepassados nas lutas políticas

em busca do reconhecimento étnico e de reivindicação dos direitos à assistência de

educação, saúde, projetos de agricultura e de terra. Foi o caso com o cacique

Manoel Celestino, filho do cacique Alfredo Celestino e sobrinho do pajé Miguel

Celestino do grupo Xucuru-Kariri, lideranças que percorreram longos caminhos

acompanhados das lideranças do grupo Kariri-Xokó, o pajé Francisquinho, Cícero

Daruanda e outros, no contato com autoridades governamentais e religiosas59,

desde a década de 1940.

No final da década de 1970, a população brasileira dava sinais de

mobilização contra a Ditadura Militar e os governos militares. Os movimentos

sociais, sindicais e religiosos participavam de articulações e reivindicações políticas

e sociais. Enquanto a população brasileira se organizava para ter os seus direitos

reconhecidos, os povos sofriam com os ataques das políticas governamentais, com

a construção de rodovias, hidrovias, ampliação das fronteiras agrícolas sobre os

territórios e as populações indígenas localizadas na Amazônia legal brasileira. Os

grupos do Nordeste encontravam-se mantidos no anonimato, tanto em nível étnico

quanto para as políticas públicas, restritos a seis grupos considerados

remanescentes – Fulni-ô e Pankararu, em Pernambuco; Xucuru-Kariri e Kariri-Xokó,

em Alagoas; Pataxó Hã Hã Hãe, na Bahia; Potiguara, na Paraíba.

A movimentação que começou na sociedade nacional repercute no

movimento indígena e indigenista, com as denúncias de violação e desrespeito aos

direitos humanos sobre as populações indígenas e seus territórios. No Nordeste,

destacam-se os trabalhos e as ações realizados pelo CIMI, entidades não

governamentais e pela academia. Uma das primeiras comunidades a ser visitadas

59 VIEIRA, Jorge Luiz Gonzaga. Padre Alfredo Dâmaso: apóstolo do indigenismo moderno, 2014.

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por missionários do CIMI, vindos do Secretariado localizado em Brasília, foi o povo

Xucuru-Kariri, em Palmeira dos Índios. Depois dos primeiros contatos, a pastoral

indigenista constituiu equipes missionárias nos estados da Paraíba, Sergipe, Bahia e

Pernambuco.

Os agentes de pastoral tiveram contato com as comunidades em busca de

informação sobre a realidade indígena, a localização e a identificação dos grupos

étnicos; ao mesmo tempo, os missionários mantinham contato com bispos, padres e

religiosas com o intuito obter apoio para a organização e logística da equipe, como

também para a divulgação da realidade indígena no Estado.

No campo da academia destacam-se os trabalhos sobre o povo Xucuru-

Kariri, “Os Índios Xucuru e Kariri em Palmeira dos Índios” e “A Terra Tilixi Txiliá -

Palmeira dos Índios nos Séculos XVIII e XIX”, escritos por Luiz de Barros Torres, de

Palmeira dos Índios; os trabalhos Wakona – Kariri- Xucuru e o Documentário: Índios

de Alagoas, do professor e antropólogo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL),

Clóvis Antunes Carneiro de Albuquerque.

Nesse contexto, os povos indígenas do Nordeste se mobilizam pela

retomada da terra. Em Alagoas, 1979, liderados pelo cacique Manoel Celestino e o

pajé Miguel Celestino, os Xucuru-Kariri retomam a área Mata da Cafurna, ao mesmo

tempo em que o povo Kariri-Xokó, Porto Real do Colégio, liderado pelo cacique

Cícero Daruanda e o pajé Júlio Queiroz, retomavam a Fazenda Modelo. Esta

movimentação é apropriada pelo cacique Manoel Celestino, que se notabiliza nas

articulações políticas junto aos grupos indígenas e aos órgãos governamentais no

Estado e em nível nacional, a ponto de se autoproclamar “Cacique do Nordeste”. No

final da década de 70 e início da década de 80, como resultado da mobilização

emergem os povos Wassu-Cocal, Tingui-Botó e Karapotó, reivindicando o

reconhecimento étnico, a assistência e demarcação dos territórios.

Como o cacique Manoel Celestino Xucuru é casado com uma indígena da

etnia Pankararu, buscou apoio para as suas pretensões políticas, articulando

lideranças e viabilizando novos grupos indígenas. Segue o discurso de Manoel

Celestino construído pelo cacique Genésio:

Só é reconhecido Pankararu e Pankararé, mas aqui em Alagoas Kariri-Xocó, Palmera dos Índio, era umas aldeia morta, sem conhecimento, né, aí a gente tem que fazer uma comissão de umas quatro ou cinco aldeia pra levar o conhecimento à Justiça Federal, e

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lá no Brejo. Ela disse, não, mas lá no Brejo eles já são reconhecido, são tutelado, mas rapaz e agora, aí ela disse, não Mané é o seguinte, lá no Ouricuri, você não conhece? Ele disse conheço, ali tudo é índio e ali tudo é minha famia, tenho um irmão que mora lá, e o resto tudo é tio, é primo, tudo parente, às veze cinco famia se resulta numa só, que é a maioria tudo irmão, aí ele disse, então eu vou lá, disse vá, oi. (MIRANDA, 2013, p. 23-24).

Coerente com linha analítica que tenho demonstrado ao longo do trabalho,

assumido pela antropologia e pela Análise de Discurso sobre a ressignificação e a

discursividade no processo de reconhecimento da identidade étnica dos povos

indígenas no Nordeste, destaco do texto acima um trecho da fala do cacique

Celestino, onde o mesmo indica com muita clareza a forma utilizada pelos indígenas

para o reconhecimento de seus direitos e de como devem agir politicamente: “aí a

gente tem que fazer uma comissão de umas quatro ou cinco aldeias pra levar o

conhecimento à Justiça Federal e lá no Brejo”. Ou seja, seguem as etapas para o

reconhecimento: visita a comunidade, reune os indígenas, forma comissão, vai à

aldeia de origem para a garantia do pertencimento étnico e dá conhecimento da

existência do grupo indígena às autoridades governamentais.

Em contato com as lideranças Geripankó, articula o reconhecimento étnico,

demonstrando a necessidade de lutar pelos direitos, justificando que os indígenas de

Alagoas encontravam-se esquecidos e vivendo em situação precária. Diz o cacique

Genésio Miranda:

Quando eu tava fora daqui, diz que ele passava por aqui pegando, tirando retrato pra reproduzir, fazer aqueles quadro, né, diz que ele passo muitas vezes por aqui, mas eu num tava aqui, depois ele se encontro com a minha irmã que já faleceu a Ana (Maria Berta), lá no Recife, aí e ele dizendo, mas e Dona Maria, estamo fazendo aí uma comissão da gente fazer uma marcha pra Brasília pra gente termo direito. (MIRANDA, 2013, p. 23).

Entre idas e vindas às comunidades e órgãos públicos, contatos e

articulações, orientado pela liderança feminina, busca a comunidade Geripankó e,

em seguida, Genésio Miranda. E, assim, continua o processo de articulação política

em apoio ao reconhecimento:

Fez o convite, aí disse não rapaz é que, ele disse oi, nóis têm que marchar pra Brasília pra ser reconhecido, pra ser beneficiado, pra ter suas terra demarcada, pra ver sua necessidade mais carente que é saúde, a educação. (MIRANDA, 2013, p. 24).

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Portanto, o reconhecimento étnico depende da iniciativa do próprio sujeito,

do respaldo dos anciãos e das lideranças indígenas e da demonstração da

exsitência pelas autoridades constituídas, que implica não somente o fato de saber

se é indigena ou não, mas a garantia dos direitos. Ou seja, o ser etnicamente

reconhecido pelos órgãos governamentais não se limita ao fato de dizer que é

indígena, mas implica na materialização das políticas públicas, como a demarcação

da terra, assistência em educação saudade, projetos de desenvolvimento.

Ainda, segundo Miranda:

Ele disse, rapaz, tou precisando de duas pessoa de cada comunidade, pra gente se reconhecer que a gente tá tudo aqui desprezado, abandonado, sem direito, ao direito que a gente tem, sem alimentação, sem educação, sem saúde, e a gente vai a procura disso, se não for reconhecer nunca vem. (2013, p. 24).

Ao longo da análise dos dados venho constatando que a questão do

reconhecimento étnico não está posto como necessidade interna dos membros das

comunidades indígenas. E, quando as lideranças indicam a busca de apoio junto

aos anciãos e das lideranças tradicionais, não o fazem para atender a demanda

interna, mas para se garantir diante do interlocutor externo, representante de órgãos

públicos, autoridades governamentais e da sociedade nacional.

Apesar da insistência e argumentação do cacique Manoel Celestino,

Genésio Miranda reluta em assumir a responsabilidade de liderança da luta,

justificando que não precisava por já ser reconhecido e receber a assistência e

benefícios através do povo Pankararu:

Aí eu digo, é Mané, isso é importante, mas eu num tenho essa necessidade não, que eu já sou beneficiado por Pankararú, meu nome tá lá no cadastramento, né, e toda vez que chega os benefício eu recebo, agora os daqui precisa, oi, vocês merece rapaz, ah mais num sabe (...). (2013, p. 24-25).

Percebe-se que, no discurso reconstruído no relato, observa-se a

intencionalidade colocada na voz do interlocutor – Manoel Celestino -, direcionar

para que ele, Genésio Miranda, assumisse a liderança e a condução do processo e

do povo. Diante da relutância, propõe Manoel Celestino:

Então Genésio bora fazer assim, eu tou vendo que o você é um cara mais experiente, já ando mais ou menos nas quebrada do mundo, você me prometa de arrumar essas duas pessoas, eu digo eu

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arranjo, garanto de arrumar duas pessoas, mas pra quando, ele disse ói, hoje é quinta-feira... (MIRANDA, 2013, p. 25).

E, diante de não ter encontrado alguém na comunidade que tivesse

condições, finalmente assume e acaba indicando o próprio pajé:

Quando foi na sexta-feira e no sábado, eu vi que não tinha saída, tive que assumir meu lugar, aí depois escoi uma pessoa, isso foi em 1982, aí convidei um cara, ele disse „num vou não‟, que além dele num saber de nada, ele tinha dois fio; então, queria não ele de companhia, não, aí chamaro Elia, é Elia, eu conheço da cultura dele, mas tem uma coisa, ele num tem descendência aqui, não, ainda mais que outra que ele é casado com um branca, né, casado com índia, não, agora tem descendência indígena, que a mãe dele também num era índia não, agora o pai dele era índio legitimo... (MIRANDA, 2013, p.25).

Analisando o discurso, identifica-se uma construção linguística que encobre

e expressa ao mesmo tempo uma intencionalidade subjacente, a de manter-se no

centro das decisões, aparentemente contraditória na condição da formalidade da

fala - você me prometa de arrumar essas duas pessoas. Como entender que, não

tendo interesse em ser a liderança do povo, mas conduz todo o processo de escolha

do pretenso indicado para o cargo, conhece e reconhece a capacidade e a

experiência no campo cultural e religioso do pajé Elias? Nesse ponto, identifica-se o

jogo do discurso entre o não querer e ser escolhido, como também entre o campo

religioso e político. Percebe-se que os papeis se intercruzam permanentemente o

ser cacique e ser pajé, ao mesmo tempo em que a indicação praticamente foi uma

indicação da irmã, justificado pelo conhecimento e habilidade no relacionamento

com a sociedade nacional, com a insistência do cacique Manoel Celestino.

Concomitantemente, vê-se que, o não interesse pelo cargo de liderança de

cacique, para ele, Genésio Miranda, representa um peso e responsabilidade, visto

que não traria qualquer benefício pessoal, visto que já estava registrado e os direitos

garantidos em Pankararu, como se encontra confirmado em sua fala direcionada ao

pajé Elias:

Ele disse, ah vô. Eu disse, ói Elia, você vai, mas você vai torcer a oreia - isso é bicho de sete cabeça e cada cabeça tem sete ponta, mas você se confia e comigo vamo; os cabra disse ah, não, vocês quem sabe: se quiserem ir comigo vamo, mas nenhum de vocês num sabe, num conhece nada, num sabe nenhum passo, num tem costume, tradição nenhuma, né (MIRANDA, 2013, p. 25).

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De outro ponto de vista interpretativo, levanta-se ainda a possibilidade de,

também, os papéis entre o religioso e o político se inverterem, ou até perder poder

dentro do grupo ou do clã. Entretanto, identifica-se a importância religiosa e política

tanto no processo de reconhecimento e garantia dos direitos do povo Geripankó,

como também dos grupos emergentes no Sertão de Alagoas, demonstrado em suas

ações internas e no apoio ao reconhecimento dos povos Kalankó, Karuazu, Katökinn

e Koiupanká.

Quanto ao povo Geripankó, o cacique Genésio Miranda destaca-se com o

conhecimento que adquiriu sobre a história, a origem do grupo e os pontos físicos do

território, como também o domínio sobre os rituais e envolvimento com os

Encantados.

Sobre o primeiro Geripankó, Genésio Miranda reconstrói a trajetória,

descrevendo com precisão e detalhes da sua chegada à região, defendendo a sua

compreensão “a história que eu sei é essa que foi bem contada”, (2013, p. 8),

afirma:

Zé Carapina, aí pediu água deram água eles beberam, aí o Zé Carapina pediu um apoio pra mode ele esconder ele, que isso aqui tudo era deserto era mata bruta, tinha onça, tinha tudo, aí ele disse é caboclo se você tiver coragem, vá lá pra aquelas duas serras, lá tem água, num é muito boa não, tem outra aguada, não é grande, não é muito boa também, só é pesada, mas da pra levar... (MIRANDA, 2013, p. 11).

E completa a informação delineando a formação do grupo Geripankó e sua

linhagem de parentesco no início e como se encontra atualmente:

Ói, famia do Zé Carapina era Miranda e Gomes, tinha Monteiro e Francilino mas morava mas pra lá, esse Francilino morreu no Ceará, e Zé Monteiro morreu aqui em trinta e dois, aí só tinha da famia do Zé Carapina Ana e Maria, essa era a famia Miranda, que a minha descendência, e então meus componente, que era Caipira, Mané Caipira, Francisco Peba, Vicente Gabão, e João Puscena né (...). Tem, tem a famia Puscena, tem a famia Peba, tem a famia Gabão e a famia Caipira, que a minha muié aí é da famia Caipira, do avô dela, aí fiquemo morando aqui, quando foi em sessenta e seis... (MIRANDA 2013, p. 20).

Na mesma linha de construção do imaginário, aponta a localização: “Pajeú

e a do Ouricuri, aqui batizaram por Ouricuri porque era coberto de ouricurizeira, aí

chamava a fonte de Ouricuri e lá fonte do Pajaú porque so tinha um pé de Pajaú era

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na cabeceira da fonte, aí botaram o nome da fonte de Pajaú”. (2013, p. 11). E dá o

limite do território Geripankó:

Qual o limite da terra da aldeia aqui? Cabeça da Grota D‟água, até perto do Letrero que tem uma pedra daqueles índio que desceram do Ceará, como é que eles chamavam, os Aconã, né, você deve sabe, né, os Aconã quando desceram do Ceará pra praia, que acolá eles faziam um ponto, escreveram nessa pedra aí que é a pedra do Letrero, e lá onde numa Água Menor, você já foi lá? Que tem lá uns letreiro lá em Água Menor... aí foram feito limite assim das, Cadeia do João Curto, Serra da Chapada, Cabeça da Grota D‟água, Bem Dizer, Serra do Simão, descendo Pedra Letrero, Lagoa do Croatá, subindo a Serra do Lunguinha pega a Serra do Cardoso, a Lagoa da Samombaia, lá vortando direto a Lagoa do Ripelo, e lá vortando vem direto embugando a ferrada que é aquele Oraticum, e sobe a Cadeia de João Curto, e eu tenho todo os documento, e tá no cartório de Doutor Inácio de Melo, lá em Água Branca. (MIRANDA, 2103, p.12).

Do ponto de vista do povo Geripankó, sua ação política foi determinante

para o reconhecimento étnico e a garantia dos direitos, a exemplo da educação,

saúde, projetos agrícolas e a terra. De acordo com a pesquisa de campo, o cacique

Genésio Miranda expressa a realidade em que se encontrava o grupo Geripankó, do

ponto de vista social, econômico, político e religioso. Em primeiro lugar, a fala que é

colocada como a voz do cacique Manoel Celestino sobre como se encontravam os

grupos indígenas em Alagoas, em situação de esquecimento e abandono por parte

dos órgãos públicos. E naquela situação, era necessário se organizar e chegar até

Brasília para reivindicar os direitos.

Na fala do cacique Genésio, relata como foram os primeiros contatos do

cacique Manoel Celestino com a irmã Dona Maria Berta, recurso constantemente

usado para apresentar-se no processo de afirmação política e étnica, na fala do

interlocutor:

Ele se encontrou com a minha irmã que já faleceu a Ana (Maria Berta), lá no Recife, aí e ele dizendo, mas e Dona Maria, estamo fazendo aí uma comissão da gente fazer uma marcha pra Brasília pra gente termo direito, que só é reconhecido Pankararú e Pankararé, mas aqui em Alagoas Kariri-Xocó, Palmera dos Índio, era umas aldeia morta, sem conhecimento, né, aí a gente tem que fazer uma comissão de umas quatro ou cinco aldeia pra levar o conhecimento à Justiça Federal, e lá no Brejo. (MIRANDA, 2013, 23-24).

E depois de alguns contatos e reuniões, fez o convite para a comunidade

com a justificativa para a organização e defesa dos direitos:

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Fez o convite, aí disse não rapaz é que, ele disse ói nos tem que marchar pra Brasília pra ser reconhecido, pra ser beneficiado, pra ter suas terra demarcada, pra ver sua necessidade mais carente que é saúde, a educação, que naquele tempo compromisso era verdade, né, vai vir educação que aqui ninguém sabia ler de jeito nenhum... (MIRANDA, 2013, P.24).

Isso motivou a organização do grupo em liderança de pajé e cacique,

conselho comunitário, mobilização e articulação política. Por outro lado, a indígena

Maria Berta, na descrição de Genésio, confirma o estado de desinformação e

distanciamento da sociedade nacional.

Mané eu lhe digo logo a realidade, quando você chegar lá eles tudo se esconde, eles corre tudinho, mas é tudo assim mermo, tou dizendo que era um pessoal inocente aqui, aí vou ajeitando de um em um, até que você vai preparando e convida eles pra fazer esse reconhecimento, pra ser representado. (MIRANDA, 24).

O processo de afirmação política passa pelo pela apropriação da direção

dos rituais religiosos, nega o outro como praticante e se autoafirma como

conhecedor dos mistérios, práticas e ritos. A fala do pajé Elias sobre a realidade

religiosa Geripankó é confirmada também na fala do cacique Genésio Miranda:

É, essa otra famia aí nunca praticaram, nunca viram nada disso, só quando eu me pus de gente, já foi na, na possibilidade do meu avô, que meu pai morreu nasci em trinta, meu pai morreu em trinta e dois, minha mãe em trinta e seis me abandono, e eu fiquei mais meu avô e minha mãe, quando foi em trinta e... (MIRANDA, 2013p. 15).

E continua afirmando que não era praticado o ritual no Ouricuri, mas

somente no Brejo dos Padres: “Aqui só quem praticava era eu lá no Brejo...”. Mas,

depois, corrige:

Iam, iam participar da festa, mas não praticava. Né. Acho que quando eu me entendi de gente meu avô, meu avô era do cordão lá aí ele me levou, me levou e me entregou ao gerente de lá, eles me arreceberam, me formei rapaz foi que eu comecei a fazer parte... (MIRANDA, 2013, p. 20).

E apresenta como aconteceu o contato pessoal e a retomada com os

costumes do Pankararu: “ói, quando eu vortei, eu vortei, em 1950, quarenta e nove,

foi, quando eu cheguei aqui, aí fui pro Brejo, quando cheguei lá aí, fui preservar, os

costume, as tradição, né, e por aí comecei...” (MIRANDA, 2013, p.15).

Na celebração dos vintes anos de luta do povo e do período em que esteve

à frente da representatividade do grupo Geripankó, aproveitou para entregar o cargo

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de cacique à comunidade. Em artigo publicado, com o título Gerinpankó: “Vinte anos

de luta!”, assim foi registrado:

Durante os últimos dias 5 e 6 de abril de 2002, no município de Pariconha, alto sertão alagoano, o povo Geripankó comemorou 20 anos de luta de seu reconhecimento e conquistas. Participaram da celebração, representantes indígenas dos Xokó (SE), Pankararu (PE), Tuxá (BA); Koiupanká, Karuazu, Kalankó, Katókinn, Xucuru-Kariri, Karapotó de Terra Nova, todos do estado de Alagoas. Estiveram também presentes, entidades não governamentais, autoridades de órgãos públicos e a população em geral. Com um mês de antecedência, a comunidade já se preparava para a festa. Para conseguir os recursos fez bingos e ainda arrecadou alimentos de suas roças. Preparou o ambiente para receber os convidados, construiu uma belíssima cabana de palha de coqueiro no centro da aldeia. Três dias antes, os praiás se recolheram no poro - lugar sagrado reservado aos homens - para a purificação, tomando banhos de água com ervas, abstenção alcoólica e sexual. Na manhã do primeiro dia começou com a dança dos praiás, encerrando com o almoço. Seguindo a programação, à tarde, os povos presentes foram convidados para apresentar suas danças e rituais. Depois da janta, todas as pessoas, inclusive os „brancos‟, participaram até o amanhecer do toré. No ultimo dia, às 11 horas, Genésio Miranda, 72 anos, cacique Geripankó, retomou as atividades festivas fazendo um resgate histórico de seu povo e de sua participação. Ele contou que em 1852, o índio José Carapina fugiu da perseguição dos colonizadores ao povo Pankararu, atravessou o rio Moxotó e se fixou em uma terra que tinha mata, caça e pesca. Mas, segundo ele, tinha muito mais a paz. Ali, com sua prima, com quem se casara, começaram a criação do povo. Aos poucos, em consequência da violência, outros parentes foram chegando e se juntando. Hoje, já são quase duas mil pessoas, entre 380 famílias. A paz demorou pouco. Logo, coronéis e grandes fazendeiros da região foram apertando o cerco. Aos poucos foram invadindo a terra e roubando os animais. Em consequência das pressões, foram obrigados a negar a identidade e perderam a terra. Como alternativa, foram trabalhar com peões de fazendas e boias-frias na zona canavieira, enquanto outros foram trabalhar de arrendatários ou meeiros em suas próprias terras. Há vinte anos, com a ajuda de lideranças de outros povos, procurou a Funai para obter o apoio e o reconhecimento da comunidade. Segundo relatou o pajé Elias, para praticar o ritual tinha que se filiar a Federação Espírita e pagar mensalmente uma taxa. Depois de muitas viagens, somente em Brasília já foram 36 vezes, conseguiram ser reconhecidos em 1984. Em consequência da luta conquistaram 200 hectares de parte do território tradicional, a construção de casas, posto de saúde equipado, escola padronizada água e luz. O cacique, com o peso da idade e cansado de promessas, está preparando os jovens para assumir a luta política do povo. Na ocasião encerrou a falação dizendo que daquele momento em diante

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entregava as obrigações para a comunidade e que ele iria ficar no apoio. Atualmente, o grande desafio para o povo é conquista do território tradicional e garantia de uma assistência de saúde especificada. (VIEIRA, 2002).

Observa-se que, o processo político realizado pelas lideranças Geripankó,

o pajé Elias e o cacique Genésio, os mesmos não só conduzem o reconhecimento

étnico do grupo e conquistas de direitos constitucionais, mas, à medida que

conduzem o fortalecimento da organização e das lutas do seu povo, tornam-se

referência para a sociedade, órgãos públicos e etnias indígenas, que reconhecem a

necessidade de fortalecer a reivindicação de reconhecimento étnico e direitos dos

grupos emergente que solicitaram o apoio.

3.2.2 Indígena: sujeito político da identidade étnica

A partir da pesquisa de campo e dos dados coletados nas entrevistas

realizadas com o pajé Elias Bernardo e o cacique Genésio Miranda, compreende-se

que a fundamentação do processo de conquista dos direitos políticos depende de

decisão autônoma exclusivamente do grupo ou do indivíduo. Na mesma lógica de

condução do processo, a busca pelo reconhecimento étnico é uma decisão do

sujeito ou do grupo, condicionado aos critérios, primeiro, da relação de parentesco e,

depois, ao reconhecimento pelo grupo indígena.

O texto constitucional de 1988, no artigo 231, reconhece para os povos

indígenas o direito à organização social, política, cultural e religiosa: “São

reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e

tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,

competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E,

em seguida, no artigo 232, reconhece-se o direito de ingressar em juízo em defesa

dos direitos: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para

ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses (...)”.

Os artigos supracitados, consagradas na Constituição Federal do Brasil

pelos constituintes, não criam nada de novo, a não ser e tão somente reconhecer,

confirmar e registrar o que já é identificado no modus vivendi e aplicado pelas

populações indígenas na relação interna como grupo e entre os seus membros.

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No transcorrer do processo de reconhecimento, observa-se a relutância do

cacique Genésio Miranda assumir a dianteira da representatividade política, visto

que tinha o seu reconhecimento étnico e garantia dos direitos políticos. Considera a

realidade Geripankó e as condições sociais e a necessidade de reconhecimento dos

direitos, mas transfere para a comunidade a decisão de se organizar e lutar pelos

direitos. Elias Bernardo descreve o processo de reconhecimento:

É o seguinte: é, é, não é todas vezes que o ritual são iguais, não é se ele tem as sua suas, seu jeito de outra vez é de outro jeito, a não ser que seja um da aldeia anterior, entendeu? Mas antes da pessoa, queria te falar, assim, para que a pessoa der aqui mais ou menos aqui, é, é, deixe eu botar um lugar longe, vamos supor você é, de, da Serra de Arapuá, sua família é de lá, aí, então, você saiu de lá pequeno, não conhece a descendência, depois você pega, vai nas aldeia, você, tem estudo, estudou e tudo pega lá nas aldeia para ter aquele trabalho do, sim, vai naquela papelada para ter conhecimento, aí quando é amanhã você. Mas rapaz, será que eu não sou índio também? Pra você ser o índio é obrigado que você vá atrás de seus direitos lá no seu lugar, que tenha uma pessoa lá que conheça o que é índio, diz: „não, você é índio, você é índio‟, indicando fulano, você pra ser índio, você trás uma autorização desse povo para mostrar para o, a qualquer aldeia aqui como Jeripankó, Pankararus, qualquer aldeia, aí, para poder ter até uma prova, para provar como o senhor é índio é beneficiado, ao invés de ser Pankararus ou qualquer que seja a aldeia pela reincidência de seu lugar. (ELIAS, p.15).

Deve-se entender na fala do pajé que o “ser índio” mudou no contexto de

as comunidades não viverem mais isoladas, mas inseridas secularmente no

contexto da sociedade nacional, que implica na busca dos direitos e conquistar o

seu espaço na sociedade. Há toda uma luta pela busca dos direitos que lhe

conferem essa identidade na sociedade, conforme expressa Elias Bernardo: “Pra

você ser o índio é obrigado que você vá atrás de seus direitos lá no seu lugar, que

tenha uma pessoa lá que conheça o que é índio”60.

Delegada a decisão para os membros da comunidade, somente depois de

os reconhecerem aptos, é que assumem a tarefa da representatividade. Observa-se

que, nos dois casos, os cargos de cacique e pajé, é uma decisão política,

respaldado logicamente pelo poder dos clãs, traduzidos como tronco, e expresso

60 LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (Orgs.). Além da Tutela – base para uma nova política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.

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pelos anciãos pertencentes à linhagem das famílias que deram origem ao grupo,

criteriosamente determinado pelo pertencimento, sabedoria, habilidade política na

relação com a sociedade nacional. No caso do pajé, além de obediência aos

critérios anteriormente postos, implica no conhecimento e no domínio da cosmologia

do grupo, permeado pelas entidades espirituais; enquanto que para o cacique,

requer também a habilidade política no trato com as instituições e órgãos da

sociedade não indígena.

Estabelecidos nos postos, os personagens tornam-se atores e sujeitos

políticos em nível interno e na relação com ou outros grupos indígenas, como

também na relação com as autoridades e órgãos da sociedade brasileira.

Nas falas do pajé Elias e do cacique Genésio sobre o reconhecimento

étnico pelos órgãos governamentais e na conquista dos direitos, como atores do

mesmo processo, sem uma análise adequada, aparecem como se fossem

contraditórias e em disputa pelo poder religioso e político na relação com a

comunidade. A razão dessa percepção, ainda superficial, seria identificada no relato

dos dois, já que foram eles, individualmente, que deram o reconhecimento ao grupo,

visto que os mesmos não conheciam e nem praticavam religião e “eram inocentes”.

Entretanto, aprofundando a análise da fala desses sujeitos, o discurso

torna-se coerente e é confirmado pelos dados da realidade. Referindo-se a

participação Geripankó na religião Pankararu antes do reconhecimento, afirma o

cacique Genésio: “É, essa otra famia aí nunca praticaram, nunca viram nada disso”.

E completa o pajé Elias: “Bom, foi assim na minha época aqui de meu trabalho, a

comunidade acharam que eu tinha condições de representar, porque só que na

época, só quem trabalhava com essas coisas de, de, trabalho para defender a

comunidade aqui só era eu”.

Uma série de argumentos respalda esta constatação. Como visto

anteriormente, o reconhecimento étnico não é uma preocupação interna ao grupo

indígena, mas é posto pela sociedade nacional61. No caso Geripankó, a organização

para o reconhecimento emergiu no contexto de abertura política do Brasil, articulada

por lideranças indígenas membros de outros grupos. Por essa razão, visto que o

referencial é o início dos contatos para o reconhecimento político, os dois atores

61 LAPLANTINE, François. Je, nous et les autres. Paris: Editions Le Pommier, 2010.

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fazem a sua leitura do processo a partir de sua participação direta com a sociedade

não indígena.

É importante ressaltar que, primeiro, para eles, o reconhecimento étnico do

grupo não está em questão, confirmado e reafirmado em suas falas. O pajé Elias

Bernardo, por exemplo, diz: “no Ouricuri, lá, lá na reunião da com o povo, lá tão eu

não sabia o que era então eu cheguei lá e tava o Zé Nezi, tava a comunidade, a raiz

tudo com os tronco mais veio”. (2013, p. 1). E o cacique Genésio Miranda,

completa, relatando a conversa entre o cacique Manoel Celestino e a indígena Maria

Berta, diz o diálogo:

Aí, ela disse, não Mané, é o seguinte: lá no Ouricuri, você não conhece? Ele disse, conheço. Ali, tudo é índio e ali tudo é minha famia, tenho um irmão que mora lá, e o resto tudo é tio, é primo, tudo parente, às veze cinco famia se resulta numa só, que é a maioria

tudo irmão. (MIRANDA, 2013, p.24).

Então, há uma profunda coerência e consonância entre os dois discursos,

onde cada um expressa a realidade a partir do período e do ponto de vista e do

papel que assumiu na comunidade, o religioso e o político, respectivamente. Por

outro lado, este elemento está plenamente delimitado, a busca pelo reconhecimento

étnico do indivíduo ou do grupo é uma ação deliberada que deve ser assumida pelos

interessados, ou seja, o sujeito histórico do reconhecimento.

Na etapa seguinte, são observados pelo grupo os critérios de pertença

étnica, considerando a relação de parentesco, o conhecimento religioso e a

obediência às estruturas organizativas do povo. O pajé Elias lembra o caso de Dona

Maria do Carmo, indígena Pankararu, que participava dos rituais no Ouricuri:

Você bem conhece a família de bichinha, de dona Maria62 ali de Água Branca, como é, é? (...). É que eu esqueço o nome dela, eu esqueci o nome dela. Aí, entonce, essa família Celina a mãe de Celina é índia legítima, é índia legítima, a finada Maria, agora que ela

nunca foi procurar o direito delas. (MIRANDA 2013, p.14).

O reconhecimento não pode, pois, ser pensado em termos de um direito

adquirido por outro – “a mãe de Celina é índia legítima, é índia legítima” -, mas de

62 Trata-se da indígena Maria dos Santos Santana – falecida -, residia na cidade de Água Branca, mas participava dos rituais das Corridas do Imbu, Menino do Rancho e Mesa, e não reivindicou o reconhecimento étnico e os direitos constitucionais como indígena.

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algo que precisa ser conquistado – “ela nunca foi procurar o direito delas” – que

precisa ser buscado nas condições impostas pela sociedade brasileira e o Estado.

Os dois elementos, isto é, a pertença ao grupo e o direito advindo do ser

reconhecido oficialmente indígena pelos órgãos governamentais, são diferentes: são

duas realidades distintas, marcando as relações entre os mesmos sujeitos. Assim, o

reconhecimento do ser indígena não é, como visto, uma necessidade interna - o

vivenciar os mistérios, os Encantados, mitos e praticar os ritos -, mas uma demanda

da sociedade nacional e das instituições públicas e governamentais. Os indígenas

se submetem em razão de poder conquistar a visibilidade e os direitos

constitucionais.

Abre-se aqui um capítulo à parte nesta reflexão e análise sobre a relação

entre as populações indígenas e os agentes da sociedade nacional. Primeiro, do

ponto de vista do indígena, constata-se a profunda coerência e lógica quanto à sua

identidade étnica, o viver e pertencer religioso e o seu modus vivendi, caracterizados

pela autonomia e independência de ser e existir para si e para os membros do seu

grupo. A contradição se caracteriza por parte dos agentes da sociedade nacional,

iniciada no período da colonização e reproduzida historicamente por ela como

propulsora do imperialismo monocultural e ideologia dominante.

Inicialmente, produziu o discurso sobre as populações de cultura superior

sobre a selvageria nativa, seguido da imposição do aprendizado cultural, religioso,

valores e costumes. Os indígenas, submetidos ao confronto e aos conflitos entre as

duas organizações de mundo, foram se apropriando das estruturas externas na

perspectiva de outra/nova forma de sobrevivência, de convivência e até de barganha

de produtos, benesses e status na sociedade colonial e nacional. À medida que os

indígenas compreenderam e entraram compulsoriamente na sociedade do outro,

este mesmo, o outro, não o reconhece mais como tal, e acaba transformando-o em

objeto e depositário de suas categorias sociais.

Ao contrário do exposto acima sobre a sociedade não indígena, o pajé

Elias e o cacique Genésio agem coerentemente na mesma lógica e linha de ação

política referente ao apoio e reconhecimento interno e em relação aos grupos

étnicos não reconhecidos etnicamente.

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Na lógica indígena, do ponto de vista da autonomia63, tanto internamente,

quanto na relação com as instituições e com os agentes públicos, se compreende

como sujeito histórico dos seus próprios interesses, de iniciativa pessoal ou do grupo

ao qual pertence. E, na relação com a sociedade, o indígena procura responder à

expectativa e demandas postas por ela, mas com o objetivo de alcançar os seus

interesses, os direitos garantidos na Constituição Federal e benefícios dos agentes

sociais64.

3.2.3 Religião indígena e cristianismo – católicos e protestantes – convivência possível.

Desde os primeiros contatos entre os europeus e as populações nativas,

ocorreu a aproximação entre religião católica e as religiões indígenas. Inicialmente,

tanto da parte nativa quanto dos colonizadores, houve o confronto e tentativa de

convivência entre os diversos mundos. Do lado dos invasores, a aproximação

tornava-se necessária, primeiro como forma de sobrevivência, mas, depois, muito

mais como estratégia de criação de condições para conhecer e entrar nas

cosmologias dos grupos nativos com objetivo de infiltrar a religião cristã. Método que

foi implantado, demonstrando logo cedo o real interesse dos colonizadores, com a

imposição dos novos ritos, valores, liturgia e divindade.

Os meios utilizados foram através do processo de confinamento indígena

nas aldeias, com a implantação da catequese, celebrações dos sacramentos,

trabalho, disciplina e militarização. O processo ocorreu com a imposição e

substituição dos pajés e curandeiros, acompanhado de cooptação dos líderes

religiosos e políticos e perseguição dos insubordinados e fugitivos.

Os grupos descendentes de Pankararu tiveram a experiência do

confinamento no aldeamento e a diáspora, acompanhada da submissão, imposição

e perseguição pelos atores da colonização - militares, civis, religiosos. Nesse

ambiente, aprenderam a conviver com os costumes e ritos, assumindo o catolicismo

63 LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é Incapacidade – o mito da tutela indígena. São Paulo, 2009. 64 LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (Orgs.). Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas – base para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.

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como religião oficial, levando-a para os lugares e espaços onde estabeleciam suas

moradias.

Atualmente, como resultado desse processo, tanto o grupo Pankakaru que

permaneceu no Brejo dos Padres, como também os outros grupos que foram

expulsos ou migraram em busca de terra, apropriaram-se e ressignificaram as

formas, ao ponto de aceitarem a religião católica como a religião oficial. Como o

processo de acomodação e de hegemonia oficial da Religião Católica, tantos os

agentes católicos como os indígenas passaram a conviver com os ritos.

Com o advento do Protestantismo no Nordeste, as comunidades indígenas

não aceitaram inicialmente, passando a admiti-lo posteriormente. O pajé Elias

declarou não ver problema com as duas denominações, visto que, para ele, as duas

fazem parte de Deus. “É o seguinte, é, é, é porque o, o Encantado, ele é do, do pé

de Deus, sabe? É dos pé de nosso Pai Tupã e de nossa Mãe Tupã. Daí, as parte de

igreja, as parte de cura, de rezar, são coisas assim”. (ELIAS, p. 6). E completa, em

relação aos evangélicos: “a mesma coisa também, a mesma coisa também. Os

evangélicos é o seguinte: eles não rezam e não fazem as suas obrigações, as partes

dele, no nome de Jesus? Então, pronto, não tem problema”. (ELIAS, p. 6).

Os indígenas se apropriaram do poder religioso católico, assumido o poder

dentro da cosmologia Geripankó, utilizando como força e poder religioso,

demonstrando a capacidade de diálogo com o mundo não indígena. O outro é

assumido dentro de sua lógica.

3.2.4 Cacique e pajé: agentes da afirmação política e étnica

A partir das observações de campo, do levantamento de dados e da

análise realizada sobre as entrevistas do pajé Elias Bernardo e do cacique Genésio

Miranda encontram-se nos dois personagens uma ativa participação no processo de

reconhecimento étnico, garantia, organização e mobilização e conquista dos direitos

constitucionais junto ao povo Geripankó e na articulação interétnica com lideranças

de outros povos de Alagoas, como também do Nordeste e do Brasil. Observa-se

também que à medida que as conquistas foram se consolidando e a população foi

crescendo, famílias indígenas incluídas no cadastro e participantes dos rituais no

Ouricuri se mobilizaram para ter suas organizações e direitos reconhecidos.

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Além do crescimento numérico da população, identifica-se, também, no

contexto da década de 1990, uma significativa mobilização das comunidades

indígenas no estado e no Nordeste, capitaneada pelas lideranças da Articulação dos

Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME),

especialmente a Micro Região Alagoas/Sergipe, na reivindicação pelos direitos de

assistência especifica à saúde, educação, projetos de apoio à agricultura e,

especialmente, a luta pela demarcação dos territórios. Nessa linha de ação, um eixo

importante para a mobilização indígena foi a retomada de terra, instrumento

organizativo criado pelas populações com o objetivo de agilizar o processo

administrativo de demarcação dos territórios indígenas (VIEIRA, 2013) reconhecidos

na Constituição Federal (Art. 231; Art. 67, ADCT65). Ainda em nível conjuntural, era

um período em que antecedeu as celebrações oficiais dos 500 anos da chegada dos

europeus ao Brasil.

Contrapondo-se à lógica governamental e a sociedade em geral,

especialmente os movimentos sociais, eclesiais, afrodescendentes e indígenas se

levantaram contra a celebração oficial, organizaram mobilizações, caravanas,

atividades e atos reivindicativos pelos direitos das populações excluídas e

marginalizadas.

No Sertão de Alagoas, com o aumento populacional e a conjuntura

favorável, grupos indígenas reivindicaram o reconhecimento de suas organizações

enquanto grupos independentes. É o caso do grupo Katökinn, no ano 2000, que

anteriormente pertencia ao grupo Geripankó, e decidiu se organizar na própria

localidade. Antes, no entanto, em 1978, o grupo Kalankó, já havia iniciado o

processo de reconhecimento étnico, buscou o apoio das lideranças Geripankó para

a sua organização política, seguido pelos grupos Karuazu e Koiupanká.

No campo analítico, destaco a coerência das lideranças Geripankó na

condução do processo de reconhecimento étnico e apoio à organização dos grupos,

obedecendo ao critério da autonomia, reconhecem o direito deles se organizarem de

forma independente, visto que são membros do povo Pankararu. Do ponto de vista

político, além do apoio ao reconhecimento dos direitos dos parentes, participam

ativamente dos encontros e reuniões no processo organizativo e reivindicativo.

65 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

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Destaca-se ainda a capacidade de leitura da conjuntura da realidade, à medida que

compreendem a importância para o fortalecimento interno do grupo e das lutas

indígenas na região.

Eu, mais Genésio, cacique Genésio, demos apoio em primeiro lugar, demos apoio aos Kalankó, porque a gente conhecemos que família Kalankó tudo é Pankararus, e daí por diante o, o, o Kalankó a gente ficou sempre participando ajudando eles, eles foram acharam que tinham condições de abrir terreiro, levantar foguedo, levantar os praiá, os Encantados deles, tudo era parte de Pankararus, né? E, entonce, hoje estão firmados por causa da força de Jeripankó, que deu todo apoio, deu todo apoio. (ELIAS, p.13).

E, completa:

Depois veio o Karuazu, a gente deu a maior força a eles lá dar para o Jeripankó, aqui dar a nossa força de cacique e pajé, Genésio Miranda foi meu cacique aqui deu apoio “seu” Antônio Gliedo e, entonce, a partir daí por diante, eles conseguiram as obrigações deles e, entonce, o segundo foi o Katökinn, que é tudo família Pankararus, é tudo família, tem muita família grande, a família Pankararus é muito grande e, entonce, hoje em dia a gente ver as famílias Pankararus faz apoia em todo canto, aí vai surgindo famílias, aí não volta mais pra lá porque encontra um pedacinho de terra aqui, aí as famílias vão encontrando um pedacinhos e vão ficando por aqui, aí, dali pronto, não volta mais pro Brejo Pankararu e, entonce, vai crescendo a família, aí, entonce, quando eles se revolta, aí, diz, não, nós somos os índios reconhecidos e vamos trabalhar no ponto produzido pelo órgão Federal e, entonce, aí, é a questão e, entonce, onde tem em comparação eles procura onde têm Jeripankó, foi a primeiro aldeia onde foi Jeripankó, foi Pankararus, tudo são famílias de Pankararus e, entonce, Jeirpankó tem que dar o apoio a essas famílias. (ELIAS, p.14).

Diante do exposto, destaco a capacidade de articulação interna das

comunidades e da solidariedade interétnica, laços marcadamente fortalecidos

durante os rituais, fatores fundamentais no processo de reconstrução da própria

identidade e da sobrevivência social, econômica e religiosa.

Observo que, o pajé e o cacique levantaram o grupo Geripankó,

mobilizando, organizando, defendendo os direitos, reconstruindo a história – como

afirma o cacique Genésio: “a história que eu sei é essa que foi bem contada” (P. 8) -,

tornam-se sujeitos políticos também enquanto agentes no apoio aos parentes no

processo de reconhecimento étnico e conquista dos direitos.

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3.3 Kalankó: ritual dos Praiás e a Páscoa Cristã

O presente texto tem como objetivo analisar o ritual dos Praiás e sua

relação com calendário litúrgico cristão, tendo como referência de análise o Povo

Kalankó. Os outros povos do Sertão de Alagoas, inclusive Pankararu, celebram seus

rituais, o da Fechada do Imbu e as Corridas do Imbu, no final do mês de dezembro

de cada ano e recomeçam no ano seguinte, exatamente no período que antecede a

Quaresma. Nesse período, o povo Kalankó participa das celebrações dos rituais

com os parentes, mas só realizam os seus rituais em dois momentos específicos: a

data do reconhecimento étnico e durante o Sábado e Domingo de Aleluia.

3.3.1 Organização social e política

Na sequência do aparecimento ético na região do Sertão de Alagoas, o

povo Kalankó veio depois de Geripankó, em 1978. Atualmente tem uma população

aproximada a 400 pessoas entre as 80 famílias, localizadas nas comunidades

Januária, Quixabeira, Lajero do Coro, Gregório, Quixabeira, no município de Água

Branca, e em Santa Cruz do Deserto66, município de Mata Grande.

Um grupo de 16 famílias Kalankó da comunidade Santa Cruz do Deserto,

todos os anos reaiiza, no dia primeiro de maio, o ritual da Santa Cruz, enquanto que

o povo Kalankó, uma vez por ano, festeja o dia 25 de julho, data do reconhecimento

da identidade indígena, com a dança dos Praiás e do tore; e no Sàbado e Domingo

de Aleluia – Páscoa67 -, ritual do calendário litúrgico tradicional, com os praiás e o

toré. Todos os rituais são abertos à participação de indígenas de outras etnias,

membros da sociedade local e de entidades indigenistas.

Dentre as atividades religiosas e políticas realizadas para garantir os

direitos, as comunidades retomaram uma fazenda em 12 de junho de 2008. O pajé

Antônio Kalankó justifica: “Faz mais de uma década que caminhamos para todo

canto do Brasil cobrando dos órgãos federais a demarcação da terra. Cansados de 66 Localidade onde foram sepultados os pais de Lampião. 67 Escreve Gennep: “A páscoa judia (a própria palavra significa passagem) é uma das cerimônias de agregação que, devido a um processo de convergência, ligou-se em seguida, por um lado, às cerimônias da passagem de uma estação à outra...” (GENNEPE, 1977, p. 52).

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esperar, decidimos retomar essa área, colocando em arrisco a nossa própria vida”. E

completou, “essa data não é festa, mas, junto com os parentes e os nossos aliados,

é a celebração da luta pelas conquistas e dificuldades que encontramos durante

esse tempo”.

A comunidade da Januária é considerada pelos indígenas o centro do

território ocupado pelos antepassados, no século XIX. Com o tempo, as terras da

região foram desapropriadas pelos coronéis e, posteriormente, os sertanejos, e os

indígenas foram transformados em mão de obra escrava no trabalho das fazendas

de gado.

O cacique Paulo Kalankó destaca que aquele espaço é um lugar sagrado,

visto que foi onde viveram os primeiros parentes. E desabafou:

Tudo isso não foi fácil: sofremos até hoje discriminação dos representantes dos órgãos públicos, dizendo que nós não somos índios. Mas com a força dos Encantados, vamos vencer e conquistar os nossos direitos, principalmente com a conquista do nosso território. (ENTREVISTA, 2013).

Observa-se que o conteúdo discursivo do cacique apresenta elementos

relacionados ao mundo religioso e à experiência política, apropriada do movimento

indígena regional e nacional, das entidades indigenistas e dos órgãos

governamentais.

3.3.2 Rituais indígenas: Páscoa, Festa da Santa Cruz e Praiá

A Páscoa é uma das celebrações mais importantes do calendário litúrgico

das religiões judaica e cristã. No cristianismo, o ritual da Paixão, Morte e

Ressurreição de Jesus Cristo é celebrado no período a Quaresma68 - 40 dias depois

do Carnaval -, teve sua origem na páscoa judaica. Os judeus celebram no dia 14 do

mês de Nizan, enquanto que os cristãos celebram no primeiro domingo seguinte à

lua cheia do equinócio da primavera, normatizado pelo Concílio de Nicéia, em 325.

Philippe Walter, em seu livro Mitologia Cristã – Festas, ritos e mitos da Idade Média -

, especialista na literatura medieval, relaciona a páscoa judaica com a páscoa cristã

comparando com o período primaveral. Afirma:

68 Segundo a tradição bíblica, a quaresma tem origem no judaísmo – os 40 anos do deserto -, assumido pelo cristianismo nos 40 dias que antecedem a Páscoa.

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A ressurreição do Cristo não se comemora por acaso no retorno da primavera. Ela encontra mesmo, neste instante de renovação, um caráter de necessidade cósmica. A ressurreição da natureza encontra sua justificativa sagrada naquela do Cristo. (WALTER, 2012, p. 115).

Na geografia europeia, no inverno ocorre o fenômeno de intensa baixa de

temperaturas, colocando a natureza em estado de desaparecimento do verde,

expressando um cenário de morte e de soterramento da vida. Com a chegada da

primavera, a natureza ressurge verdejante, com seus campos e árvores floridas.

Na região Nordeste do Brasil, ao contrário, as estações basicamente se

limitam ao inverno e ao verão. Diferentemente da Europa, o inverno, período que

sucede o verão marcadamente estorricado e seco, é festejado com chuvas e onde a

natureza renasce verdejante, propiciando o cultivo de plantas agricultáveis e

produção de alimentos para humanos e animais. “A festa da Páscoa comenta

simbolicamente uma „passagem‟. Essa festa marca a transição de uma estação à

outra, a passagem da morte invernal à vida primaveril”. (WALTER, 2012, p. 121).

Com esses elementos geográficos, culturais e simbólicos envolvidos,

procurei identificar e compreender as raízes, considerando as diferenças e as

semelhanças entre o calendário litúrgico cristão e o dos povos indígenas do Sertão

de Alagoas, particularmente os rituais da Igreja Católica, o Advento, a Quaresma e a

Páscoa.

A propriação pelos indígenas do calendário litúrgico católico e dos ritos é

resultado do ensinamento missionário no período de catequização. Segundo Walter,

“a festa móvel da Páscoa é a chave de todo o calendário medieval”. (2011, p. 113).

O conteúdo catequético medieval foi implantado nos povos conquistados.

Os dois calendários religiosos realizam-se intercalados e até

simultaneamente, há momentos em que as datas e os rituais coincidem e, às vezes,

se diferenciam somente na forma e no conteúdo.

Na linha de investigação da pesquisa, busco identificar as razões

cósmicas, históricas, religiosas e antropológicas que motivaram e mantém a

coincidência entre os dois calendários, os rituais, a apropriação e ressignificação dos

símbolos.

Em uma perspectiva étnica e histórica, a matriz étnica dos povos do sertão

encontra-se no tronco Pankararu, de onde buscam e reproduzem os seus

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calendários e seus ritos religiosos. Os respectivos calendários e rituais só começam

depois do início de Pankararu, em obediência e respeito à programação dos rituais e

conteúdo, vivenciado no aldeamento Brejo dos Padres: confinamento, catequização

missionária, trabalho servil, perda do território e diáspora. Não seria possível

compreender a presente realidade desses povos de Alagoas sem se remeter a esse

passado pankararu e suas relações com os agentes da colonização europeia, a

sociedade nacional e o entorno dos aldeamentos.

O calendário Pankararu inicia com a Flechada do Imbu que ocorre, em

geral, na segunda semana de dezembro, em pleno verão, período em que a região

sertaneja encontra-se assolada por seca e chão esturricado, castigando a população

e deixando a vegetação praticamente inexistente, sobrevivendo imbuzeiro,

catingueira e o angico - madeira utilizada para a construção das moradias e cercas

para a criação de animais; o cacto, o babão e o imbuzeiro, frutos e raiz utilizados

para o alimento de amimais e humanos.

Na vida e no ritual indígena, destaca-se o imbuzeiro69, árvore frondosa do

semiárido, que mesmo em período de baixa umidade, permanece com a sua

folhagem verde e alta produtividade de frutos e raiz. Para os povos indígenas

localizados na região do sertão, a árvore e os seus frutos têm significado sagrado e

de resistência. Desde o período colonial é conhecida com a árvore que dá água e

dela são utilizados os frutos e a raiz; são extraídas a água e a massa para a

produção de alimentos, a exemplo de doces e da imbuzada70.

O ritual da Flechada do Imbu é marcado quando é encontrado o primeiro

fruto do umbu. Naquela data, em um final de semana, o pajé organiza e programa o

ritual dos praiás. O ritual da Flechada do Imbu prolonga-se até a última Corrida do

Imbu, interrompido durante as celebrações natalinas e carnavalescas e retomado no

período da Quaresma, durante quatro finais de semana.

No mesmo período em que se inicia o ritual da Flechada do Imbu, no

calendário cristão, a liturgia católica celebra o Advento, período dedicado à

preparação do nascimento de Jesus. O Advento cristão coincide com o ritual da

Flechada do Imbu, paralelamente significando a esperança do nascimento do

69 Palavra de origem tupi-guarani (y-ub-u) ou kariri (obbo e obo). 70 Caldo grosso preparado com o fruto do umbu verde, cozido com água ou com o caldo de coco ralado.

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Salvador para os cristãos e, para os povos indígenas, a celebração do alimento dos

Encantados – entidades espirituais e religiosas que dão sentido, identidade e

dirigem a vida Pankararu e, consequentemente, a dos povos do sertão de Alagoas.

Os povos Geripankó e Karuazu programam os rituais para depois do início

do ritual Pankararu; começam, e ocorrem paralelamente, coincidindo as datas dos

dois povos. Ao final da realização dos rituais, que se realizam em quatro finais de

semanas seguidos, encerram as atividades nos terreiros e, depois, os trabalhos

religiosos limitam-se aos rituais particulares de mesas e curas.

Os rituais Geripankó, Karuazu e Katökinn recomeçam coincidentemente no

período da Quaresma. O ritual Geripankó inicia-se com a reclusão exclusiva dos

moços – homens que participam dos praiás – no Poró – lugar de preparação

espiritualmente, com banhos de alecrim de cheiro71, fumo, abstinência sexual e

alcoólica -, obrigações que duram todo o período das atividades religiosas.

A cada final de semana, os praiás saem do Poró e entram no terreiro por

cerca das 19 horas do sábado. Conduzidos silenciosamente pelos toantes – pajé,

cacique e lideranças religiosas masculinas-, dirigem-se ao centro para dar início aos

três blocos de danças, cruzando o terreiro, intercalado com concentração de todos

os praiás em torno do toante, ladeados por duas jovens mulheres – segundo os

informantes, as mesmas devem encontrar-se preparadas espiritualmente e fora do

período de menstruação.

A escolha das mulheres para o terreiro, como muitas outras informações e

significados, mantém-se em segredo para os não indígenas e, até, para membros do

povo não iniciados na ciência religiosa do grupo étnico. Observo, entretanto, que,

em geral, as mulheres têm relação direta de parentesco com as lideranças religiosas

e políticas, especialmente pajé e cacique.

No sábado, o ritual com os praiás prolonga-se até a meia noite, com

paradas e saídas de alguns praiás que ficam de cócoras ao redor do terreiro ou se

dirigem ao Poró para descansar e fumar. Depois do recolhimento dos praiás,

começa a dança do toré com a participação dos membros da comunidade e até de

não indígenas. Há uma parada para o descanso dos indígenas e dos convidados.

71 Conhecido também por rosmaninho, comumente utilizado para banho, purificação e atividades terapêuticas.

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203

Por cerca das 7 horas da manhã do domingo as cozinheiras põem a alimentação em

pratos de barros, e os praiás, conduzidos pelas lideranças religiosas, dirigem-se até

a cozinha para pegá-los, cruzam por três vezes o terreiro e voltam para comer no

Poró. Depois dos praiás, todos os indígenas e visitantes têm a possibilidade de

pegar seu prato para se alimentar - a alimentação dos praiás e convidados é servida

em pratos de barros: pirão, arroz, carne de carneiro ou, na falta deste, de bovino.

Na páscoa judaica, a consumação ritual do cordeiro e do pão ázimo já constituía o principal rito da festa. Para o cristianismo, é a instauração da Eucaristia pelo Cristo, na véspera de sua Paixão que serve de resposta cristã ao rito hebraico do cordeiro pascal. (WALTER, 2012, p. 116).

Os praiás retomam o ritual no terreiro, intercalados por toantes, até o meio

dia, repetindo-se as práticas ritualísticas da noite anterior. No almoço, a cerimônia

da alimentação na cozinha, no terreiro e no Poró, com os praiás, indígenas e

visitantes obedece às mesmas obrigações da manhã.

Por volta das 14 horas, os indígenas iniciam a preparação para a retomada

do ritual. Somente nesse primeiro final de semana, acontece o ritual da Puxada do

Cipó – o maior cipó encontrado na mata ao redor da aldeia –, que é puxado pelos

indígenas. Os praiás abrem o ritual com três rodadas de toré, pegam o cipó e voltam

para o terreiro. Diferentemente da Puxada do Cipó, ocorre durante os dois primeiros

finais de semana o ritual Queimada do Cansanção - indígenas, homens e mulheres,

com os corpos pintados com argila branca e com cruzes desenhadas, carregam na

mão direita feixes de galhos de cansanção, compenetrados piedosamente.

Os praiás enfileirados seguram o cipó e o grupo pintado carrega o

cansanção ao redor do terreiro, sob o canto dos toantes, acompanhado pela

sonoridade da flauta e do rabo do tatu. Ao concluir as três rodadas, todos se dirigem

ao terreiro localizado ao pé do cruzeiro, onde repetem três rodadas da dança dos

praiás, seguido dos rituais Puxada do Cipó e o da Queimada do Cansanção.

No terreiro, os praiás e os outros indígenas, se postam na direção leste-

oeste - posição que para os indígenas têm o sentido norte-sul-, para a realização do

ritual Puxada do Cipó. Quanto à significação do ritual, são dadas duas explicações e

significados diferentes.

Primeiramente, vale a consideração de que, do ponto de vista ético, em

respeito ao segredo indígena, a análise da presente pesquisa sobre os rituais limita-

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204

se à observação e constatação dos fatos ou às informações passadas pelos

entrevistados possíveis de serem explicitados. E, por isto, em geral, as informações

e os significados passados pelos informantes indígenas aos visitantes e

pesquisadores sobre os rituais têm o caráter de dissuadir a curiosidade,

caracterizando-os como brincadeiras ou folguedos – o cacique Genésio Miranda

designa de forguedo. Perguntei em relação ao ritual Flechada do Imbu: “Porque

imbu e não caju?” O pajé Elias: é, é, o caju é o seguinte: é porque o caju, ele tem o

sabor de leite, de uma coisa que não pertence, é a pra esse fim de trabalho”.

Esta informação tem como objetivo a não revelação do segredo religioso,

reservado somente à sabedoria e aos iniciados na ciência indígena – conhecimento

secreto. Dado este que está inserido no contexto da colonização e no processo de

catequização missionária. Os indígenas foram levados a ocultar ou dissimular o

significado dos rituais do olhar exógeno, visto que os mesmos eram negados e

demonizados.

A partir da observação de campo, identificada através das falas e dos gritos

emitidos durante o ritual da Puxada do Cipó, percebi que a organização dos grupos

obedece à estrutura dos clãs representativos das entidades religiosas Encantadas.

As forças físicas e espirituais dos dois grupos determinam o grupo vencedor, e,

consequentemente, a orientação das forças encantadas representando a chuva e a

seca. Uma das explicações é quanto à abundância da chuva e ao período de

plantação. A região leste do estado de Alagoas – para o sertanejo, “sul” -, onde se

localiza a Zona da Mata, é uma região chuvosa e propícia para a plantação e

produção de alimentos. E, portanto, se o grupo vencedor for o do “sul”, o inverno na

região sertaneja será de grande abundância e fartura em alimentos, especialmente

para o grupo vencedor e seus familiares. Caso o cipó se quebre sem que haja um

vencedor, a realidade será ruim para todos da comunidade.

Quanto ao ritual Queimada do Cansanção, enfileirados e intercalados entre

praiás e indígenas pintados carregando os pés de cansanção, realizam a dança dos

praiás, todos concentrados e cabisbaixos. Ao término de três rodadas da dança, os

praiás formam um círculo e, ao centro, os indígenas pintados e segurando o

cansanção à mão, dançam se defendendo do toque da erva, culminando com os

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galhos empilhados ao centro e pisados furiosamente pelos participantes até ser

extermínado.

Seguindo a mesma linha de observação e análise, o significado do Ritual

do Cansação segue duas perspectivas interpretativas. A primeira, por se encontrar

no período quaresmal cristão por sua característica penitencial, concentração e

contrição expressas no olhar e na face dos participantes, observa-se que o ritual

demonstra sofrimento e expiação. Por outro lado, essa situação coaduna-se com o

Ritual dos Penitentes, realizado durante a celebração da Semana Santa, quando um

grupo de homens, praticante do flagelo sobre seus corpos, vai até o cruzeiro e, à

meia noite da Sexta-feira da Paixão, encapuzados chegam à Igreja – o ritual não

pode ser visto por mulheres.

Considerando o contexto acima, observo que há uma linha de encontro e

de entrelaçamento entre os ritos cristãos e os ritos celebrados pelo povo Geripankó.

Os ritos cristãos foram transportados pelos missionários europeus e ensinados aos

povos indígenas, que, por sua vez, apropriaram-se e ressignificaram a partir da

cosmovisão e da realidade social e histórica por eles vivenciadas. Walter afirma:

“Ademais, na mitologia, não é raro ver os mitos e os ritos dialogarem de uma

civilização a outra”. (2012, p. 115).

E completa:

Era necessário que a Igreja mantivesse uma parte das práticas pagãs para ser alçada da inanidade, mas também para que o próprio sentido do cristianismo fosse mais bem assimilado. Os ritos da mesa estão no centro desse dispositivo. (WALTER, 2012, p. 116).

Identifica-se nessas práticas litúrgicas uma clara relação entre os rituais

cristãos e indígenas, combinando o período e o conteúdo. Desse ponto de vista, os

ritos medievais foram mantidos no ritual católico, enquanto que os indígenas

conseguiram manter através da prática dos seus ritos, os mitos, as indumentárias,

as danças, costumes, valores e organização social. As práticas e manifestações

religiosas mantiveram a identidade indígena, diferenciando-se da população do

entorno e das práticas religiosas católicas e evangélicas.

Durante a realização do ritual, na noite do sábado e no domingo, é servida

a imbusada ou umbusada para todos os presentes; e, ao final da tarde do domingo,

são feitas oferendas dos frutos, dentro de um balaio de cipó, aos ancestrais,

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contendo gêneros alimentícios e outros produtos. No último final de semana, o ritual

dos praiás se repete, com as obrigações da preparação, dança e oferendas, exceto

a queimada do cansanção.

Os rituais do povo Karuazu obedecem às mesmas regras e tradições

encontradas em Pankararu e Geripankó, a entrada dos homens ou moços no Poró,

a preparação, o período, a duração, o início até o encerramento das atividades do

calendário litúrgico; entretanto, o povo Karuazu não realiza o Ritual da Puxada do

Cipó.

Concluído o período da Corrida do Imbu, nos finais de semana seguidos,

os rituais se limitam às praticas de curas e mesa, exceto o dos Penitentes. Nina

Katökinn explica o significado da paralisação dos rituais em determinado período da

Quaresma: “a Coresma (sic) é como se ele tivesse (umbu) se recolhido. Mas durante

esse período aconteceu o ritual dos penitentes: a trajetória dos penitentes”.

(ENTREVISTA, 5 de abril de 2013). Nessa perspectiva, a parada das práticas dos

rituais do Umbu é porque o Encantado se recolheu – em respeito aos ritos católicos?

-, período que, coincidentemente, é o da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus

Cristo.

3.3.3 Rituais dos Praiás Kalankó: Sábado e Domingo de Aleluia

No Sábado de Aleluia e Domingo de Aleluia, enquanto os cristãos celebram

a vigília de Páscoa, os indígenas realizam o ritual dos praiás, particularmente os

povos indígenas Katökinn, Kalankó e Kouipanká. É importante destacar que o povo

Koiupanká participa do ritual Kalankó, deslocando-se com os seus praiás e membros

da comunidade.

No povo Katökinn, alguns dos seus membros declaram-se cristãos,

católicos ou evangélicos. Roseli Ferreira, 44 anos, presidente da Associação

Indígena Katökin: “Então, dezesseis anos atrás daqui mais ou menos pra essa

idade, quarenta e quatro, essa data mais ou menos que eu tenho de evangelho, são

dezesseis anos”.

Na tradição da região, as pessoas obedecem e seguem a orientação de

abstinência, jejuar e não comer carne nas sextas-feiras e, principalmente, quarta-

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feira que antecede a Sexta-feira da Paixão, regras praticadas e seguida pelos

indígenas, principalmente os anciãos que se declaram católicos. E, por isso,

participam das celebrações realizadas pela Igreja Católica, inclusive com o

pertencimento a algumas das organizações internas, a exemplo Legião de Maria,

Apostolado da Oração, Renovação Carismática, às vezes louvando, tocando violão

e cantando nas celebrações, além de participar das celebrações eucarísticas,

procissões e cultos.

Para Nina Katökinn, esse é o período em que os trabalhos das atividades

da tradição religiosa indígena são paralisados em respeito às tradições cristãs,

especialmente católicas, quando os praiás se recolhem e o grupo dos homens

Penitentes assumem os rituais religiosos. E, somente, no Sábado de Aleluia é que

os praiás retomam os trabalhos dos Encantados.

No Sábado de Aleluia os praiás vão para o terreiro, das 19 horas até a

meia noite, encerrando o ritual ao amanhecer do Domingo de Aleluia com a

participação dos membros da comunidade dançando toré. Para Nina, a partir do

ritual, os indígenas retomam recomeçam todas as atividades religiosas do terreiro,

da mesa e da cura.

No povo Kalankó, os rituais ocorrem na comunidade da Januária72, lugar da

chegada dos primeiros ancestrais, onde está localizado o poró, o terreiro e as

residências do cacique e do pajé.

Os rituais obedecem às mesmas obrigações do povo Pankararu, com os

resguardo e abstinência sexual e alcoólica, banho e fumo durante três dias. No início

da noite do Sábado de Aleluia os praias Kalankó e Koiupanká, enfileirados, seguindo

o toante Kalankó, o pajé Antônio Preto, ladeado pelas lideranças religiosas Kalankó

e Koiupanká fazem a entrada no terreiro caminhando a passos lentos, para cruzar

por três vezes, tocando o maracá com o canto puxado pelo toante. Depois das nove

voltas de dança, os toantes se revezam, entre os Kalankó e Koiupanká. À meia noite

os praiás se recolhem no poró, ficando por algum tempo tocando, pisando forte no

chão, dançando e fumando. Logo depois os toantes voltam para o terreiro e

72 Nome da primeira ancestral do povo. Ainda não comprovado, mas há indícios de que Januária seja uma ancestral cultuada pelas mulheres kalankó, em razão da forte presença religiosa feminina na comunidade.

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começam a tocar e cantar com os maracás; a comunidade, aos poucos, vai se

juntando e, freneticamente, embalam no toré até o amanhecer do dia seguinte.

No início da manhã, é servido pirão com carne de cordeiro e arroz.

Primeiro, é servido aos praiás; e, depois de cruzarem o terreiro, os pratos são

entregues aos presentes. Encontra-se a tradição de alimentar-se, durante os rituais

dos praiás, com carne de cordeiro, sacrificado no sábado, à noite. É uma prática do

ritual que tem origem no povo Pankararu, podendo ser complementada com carnes

de boi e de frango. É também uma tradição encontrada em outros povos, dentre eles

o judaico e escandinavo.

O festim carnavalesco ou o festim de Jol (Natal) nos antigos escandinavos corresponde à mesma religiosidade animal sagrado do clã (javali ou porco dos alemães, boi e porco dos celtas), como se este rito permitisse realizar e renovar o tempo sagrado que dá sentido a toda a sociedade. (WALTER, 2012, p. 115).

Há uma semelhança com o cordeiro da Páscoa judaica e, no cristianismo,

com o Cordeiro imolado, Jesus Cristo, celebrado pelos católicos. Tanto nas práticas

de povos de culturas cristãs e no judaísmo, é uma tradição recorrente. Entretanto, o

mais provável é encontrar a origem no processo de apropriação das tradições

litúrgicas medievais dos missionários europeus que chegaram para a catequização

dos indígenas. E, no caso, considerando que o aldeamento Brejo dos Padres serviu

como centro de catequese e de formação de mão de obra indígena para os currais e

fazendas, ressignificaram os rituais no contexto da cosmologia indígena.

Ao mesmo tempo em que obedeciam as regras impostas, ensinadas e

ritualizadas pela liturgia dos missionários católicos, mantiveram os compromissos e

a obediência religiosa e ritualística para com os ancestrais e entidades dos

Encantados. À medida que migraram para o sertão de Alagoas, conseguiram se

adaptar aos costumes locais, inclusive religiosos, mantendo os cultos aos

antepassados, mesmo que ocultos por longos tempos.

O povo Koiupanká, tradicionalmente, depois do reconhecimento, no final de

semana seguinte do ritual Kalankó, inicia-se o ritual Koiupanká, que tem a

participação obrigatória do povo Kalankó, como também do outros povos do sertão

de Alagoas, pelos menos em um final de semana.

Em entrevista com Nina Katökinn, ela afirma que “eles (os Katökinn) tinham

rompido Aleluia”. Para ela, “o Sábado de Aleluia é a volta das atividades deles (os

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indígenas). Quando termina o ritual da Paixão de Cristo, os trabalhos recomeçam”.

Observo que, ao mesmo tempo em que coincidem as atividades do período

quaresmal e o dos rituais indígenas, há também um respeito ou distanciamento no

período da Paixão de Jesus Cristo. Para os povos indígenas, o ritual que pode ser

realizado nesse período é o dos Penitentes.

3.3.4 Ritual da Santa Cruz

A comunidade indígena da Santa Cruz do Deserto73, com 16 famílias,

município de Mata Grande, encontra-se a cerca de 3 km das outras comunidades

Kalankó, em Água Branca. Durante os rituais do reconhecimento e o da Páscoa, as

famílias se deslocam a pé ou em animais para participar do ritual, o mesmo

acontece na festa da Santa Cruz, no dia primeiro de maio.

Na Januária e em Santa Cruz, o grupo Kalankó se prepara para realizar os

rituais e receber os visitantes, indígenas e convidados. Entretanto, nota-se que no

ritual Praiás, exceto os próprios praiás, os membros da comunidade não se pintam e

não usam indumentária diferenciada do restante da população. No ritual da Santa

Cruz, todos os participantes vestem saias confeccionadas de palha de ouricuri e

pintam o corpo com a tinta da argila, sem a participação dos praiás.

Do ponto de vista cultural e da identidade étnica, os rituais dos Praiás e a

celebração do reconhecimento, ocorrem no espaço da própria comunidade e é

dirigida pelo cacique e pajé, enquanto que o ritual da Santa Cruz é realizado dentro

da Igreja Católica, com uma celebração da missa, onde os indígenas participam com

dança e soltando fogos de artifícios. O uso de vestimentas e da pintura corporal que

ocorre no povoado e dentro da capela Igreja Católica demarca a fronteira cultural e a

identidade étnica em relação a população local.

O ritual Santa Cruz, realizado em 1º de maio, encontra sua referência na

festa da Santa Cruz na Roma antiga:

O mês de maio era, na Roma antiga, consagrado aos ancestrais (majores). Nele acontecia a incursão dos fantasmas entre os vivos. De fato, a data chave do 1º de maio permite uma nova efração do mundo sobrenatural no mundo humano. (...) Coincidindo com a antiga festa celta (irlandesa) de Beltane, a festa do 1º de maio

73 Povoado habitado por cerca de cinco mil pessoas.

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lembra os grandes temas que acompanham a alternância das estações. (WALTER, 2013, p.133).

Há profundas semelhanças entre os dois rituais. Maio, na região do sertão

é o mês que marca o período das chuvas, das plantações e abundância, e onde são

celebrados, na cosmologia indígena, os antepassados. Não é de se estranhar que

os indígenas se apropriaram muito bem dos rituais cristãos e ressignificaram no

mundo dos encantados. Pajé Elias: “Olha, é o seguinte, é, é, é porque o, o

Encantado, ele é do, do pé de Deus, sabe? É dos pé de nosso Pai Tupan e de

nossa Mãe Tupan. Daí, as parte de igreja, as parte de cura, de rezar, são coisas

assim”. (2012, p. 6).

Roseli, como evangélica, explica o ensinamento do avô sobre o lugar dos

mortos:

Como indígena, eu acho que a partir do momento que morre, respondendo como um indígena, eu acho que justamente eles, vão para esses lugares, pra esses comandos, onde, continuo dizendo, onde meu avô está, não sei se realmente ele está no fundo do mar, como ele disse que ia pra lá, mas eu acredito que tem lugar determinado de ficar, que é estes lugares, foram mandados a eles... (ROSELI, 2013, p. 3).

E completa o professor Walter:

O rito de maio é exatamente simétrico ao natal e constitui muito certamente a réplica primaveril. Uma vez mais o rito remete ao mito. Por trás da profusão de folhagens ou de árvores verdes, esconde-se, efetivamente, o que se designou algumas vezes o „espírito da vegetação‟, que não é outra senão o Selvagem. (WALTER, 2012, p. 134).

Além da demarcação étnica, os indígenas se vestem com a palha do

ouricuri para celebrar o bom tempo advindo da natureza. “O Selvagem da

Candelária reaparece nessa data sob os traços do folhado, isto é, de uma criatura

inteiramente vestida de folhas e ramos (...), As festas de maio permitiam aquela que

encarnavam a renovação primaveril e a natureza redescoberta” (Ibidem, p. 135).

E que, provavelmente, encontra a sua origem na mitologia grega. “Esse

mito grego está provavelmente destinada a explicar a alternância das estações:

sucessão cíclica do verão e do inverno, da estação clara e da estação sombria”. (P.

136).

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No ato do ritual da Santa Cruz, combina-se, então, o rito indígena e o rito

eucarístico, originado de duas vertentes diferentes, assumidos e realizados de forma

intrinsecamente indissociáveis advindo de um processo de transmissão do conteúdo

pelos missionários católicos e de apropriação pelos indígenas.

3.4 Karuazu: religião, terra e identidade étnica

A presente etapa do trabalho analisa o processo de afirmação da

identidade étnica e garantia dos direitos indígenas à assistência em educação,

saúde, projeto de desenvolvimento agrícola e demarcação da terra. Para isso, foram

considerados documentos históricos, trabalhos acadêmicos – monografias,

dissertação e tese -, e, principalmente, a observação de campo na convivência com

o cotidiano dos membros da comunidade, as celebrações religiosas74 e duas

entrevistas com a liderança e pajé do povo Karuazu, Antônio José da Silva, 60 anos,

casado com Galega e pai de sete filhos.

Para a realização das entrevistas, procurei deixar o entrevistado em seu

ambiente social e com a sua espontaneidade habitual, como também obedecendo à

determinação do local pelo pajé. Por esta razão, as entrevistas foram realizadas em

momentos distintos. Na primeira, em dezembro de 2012, o personagem encontrava-

se na cozinha de sua residência, com a presença constante de pessoas que

transitavam de um lado para outro da casa, especialmente de sua esposa, a Galega

– por essa razão, o conteúdo teve a interferência na formulação das perguntas do

entrevistador e na resposta do entrevistado. Para segunda entrevista, ocorrida em

janeiro de 2013, o pajé convidou o entrevistador para a Casa de Reza ou Casinha,

como é chamada carinhosamente por eles, lugar sagrado onde ficam guardadas as

roupas dos praiás, campiô, maracás e onde se realiza o ritual da Mesa. A entrevista

ocorreu em um clima de profundo silêncio e ambiente místico.

Tendo os dados coletados e transcritos, a partir da análise identifiquei dois

grandes eixos que se intercruzam e, ao mesmo tempo, se põem em destaque

quanto ao nível de importância e relevância social para a sustentação e definição da

identidade étnica: a religião e a terra.

74 Treze anos do ressurgimento étnico Karuazu para a sociedade nacional.

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212

Do ponto de vista desta análise, foi utilizado o critério estritamente de

ordem metodológica. Iniciou-se a presente análise a partir dos elementos

identificados no fenômeno religioso, originário da raiz cultural Pankararu,

transportado, vivenciado e ressignificado pelos membros das comunidades Karuazu,

histórica e socialmente.

Observo que, mesmo a terra encontrando-se interligada na forma do ser

social do grupo aos elementos da cultura e do religioso, estes se sobressaem na

manutenção e resistência presentes no imaginário do grupo, como eixo fundador e

mantenedor da identidade étnica diferenciada da sociedade nacional. Enquanto que

a terra, como espaço vital para o modus vivendi, ocorre a mutação no processo de

ressignificação com a desterritorialização; mas conseguiram reterritorializar, tendo

como eixos o religioso e político.

3.4.1 Organização social

O grupo indígena de etinônimo Karuazu é composto por cerca de 250

famílias, localizado nos povoados Campinhos e Tanque, município de Pariconha,

estado de Alagoas.

A região daqui era região boa, a nossa região... Muitos vieram de lá pra cá, outros vieram de Pankararu e casaram aqui. Zé do Carmo, tinha Cícero Caboclo, Pankararu também, tinha o Véio Dão, o Zezinho, Jé tia Dola, que é o tio da minha mulé... tudo descendo de lá pra cá. Quando chegaram aí, casaram tudo aqui, uns casaram com índias mesmo e nisso só vivendo aqui mesmo. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.4).

A organização está estruturada em torno do pajé, cacique e conselho da

comunidade. Para o pajé, o grupo é composto por um só povo: “Só por Karuazu,

somo um povo unido, tudo unido, somo uma famía só. Tenho orgulho, que tem muita

gente que... ah mas é porque somo uma famía só. E o índio, pode catar a raiz, é

uma famía só. (2012, p. 3).

Na estrutura organizativa, o pajé e o cacique são eleitos pelo povo, através

de votação direta. Entretanto, em razão da presença e convivência com a população

do entorno, políticos locais e órgãos governamentais, acabam interfererindo no

processo eleitoral. “Bom, com a votação, a gente fez a pesquisa e já foi ele, mas a

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FUNAI alega que tem que fazer outra eleição de novo, com esse povo todinho, aí a

gente vai...” (ANTÔNIO KARUAZU 2012, p. 3).

Durante a pesquisa de campo não foi possível identificar objetivamente as

razões que justificaram a mudança do cacique e a manutenção do pajé pela

comunidade, visto que os dois estão com o mesmo tempo no cargo. Aparecem duas

questões em torno das funções de cacique e do pajé. Em relação ao cacique, a

mudança foi justificada pelo pajé devido ao tempo em que está no poder e, portanto,

segundo ele, a comunidade apresentou a necessidade de renovação em função de

novas demandas. Enquanto que em relação ao pajé, a mudança não é apresentada,

mas aponta critérios para o exercício do cargo. Seguem as duas posições,

respectivamente:

Mudando de cacique Jorge, porque o tempo também, né? O tempo o cacique já tá com treze ano, já tá veio de luta, não tá trabaiando ao bem da comunidade, porque hoje o cacique tem que lutar, tem que arrumar para o povo indígena e não tá... O pessoal agora quer mudar para um cacique mais novo, para lutar, pra trazer as coisa pro povo indígena. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 3).

O pajé tem que ser um cabra muito ligado nesses homi, né? Não pode ser uma pessoa farrista, mulerengo também, não pode. Pajé tem que ter o maior respeito com seu povo, né? É um respeito com seu povo. E religião que nós têm com eles também. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 15).

O cargo de cacique limita-se às atividades de cunho organizativo e de

representatividade política da comunidade e na relação com autoridades,

organizações não governamentais e governamentais – “porque hoje o cacique tem

que lutar, tem que arrumar para o povo indígena e não tá”. Portanto, à medida que

as forças políticas internas pressionam ou entram em conflito com os interesses dos

grupos, o cargo é posto em discussão. No caso do pajé, segundo Antônio, é

diferente – “Não pode ser uma pessoa farrista, mulerengo também, não pode. Pajé

tem que ter o maior respeito com seu povo”. Além de o mesmo ser escolhido pela

comunidade, é preciso reunir qualidades morais que o façam diferente para exercer

a função. Anteriormente já foi indicado pelas entidades religiosas e submeteu-se ao

processo de iniciação e formação. Por isso, a mudança de pajé no mesmo grupo

dificilmente ocorre em comunidade indígena.

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214

À semelhança dos outros povos do Sertão de Alagoas, Karuazu é originário

da etnia Pankararu, estado de Pernambuco, e migrou no século XIX impulsionado

pelas mesmas motivações já expostas no trabalho, como os conflitos internos, a

violência dos fazendeiros e a busca por terra para trabalhar e viver em paz.

É, o povo Karuazu é a origem do povo Pankararu. Ele é etnia da Pankararu... Esse pessoal hoje... porque o pessoal naquela época, Jorge, era um povo todo isolado, ninguém não queria saber de índio, etnia nem nada. Quando vieram descobrir... aí, agora, vieram descobrir que tudo é descendência do Pankararu. Na história tá todo mundo descendendo do Pankararu. Essa é a história de quando a gente chegou... Eu mesmo tenho muita história que contava, se eu contar a histora que minha mãe contava... (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 4).

Identifico que, pelos dados coletados, é indiscutível a origem e a relação de

parentesco do grupo Karuazu com a etnia Pankararu. A história do grupo com os

parentes Pankakaru, sua religião, seus ritos e a sua cultura estão diretamente

vinculados ao aldeamento Brejo dos Padres, inclusive submetido e obediente às

lideranças e ao calendário religioso. Em vista disso, não cabe a discussão aqui

sobre a sua identidade étnica, mas como historicamente foi transformado em

caboclo e em sertanejo, e como se deu o processo de desterritorialização e

reterritorialização e a ressignificação étnica e religiosa.

3.4.2 Religião Karuazu: a semente dos Encantados

O eixo fundamente da religião Karuazu é originada na tradição Pankararu.

Ao longo do ano ocorrem visitas constantes entre os dois grupos, oportunidades em

que selam compromissos e assumem responsabilidades, identificados

principalmente na relação de parentesco e expressos através do tratamento de

compadrio, entre homens e mulheres.

No calendário religioso Pankararu, a Puxada do Imbum, as lideranças

Karauzu se deslocam até o aldeamento Brejo dos Padres para participar do ritual,

para depois dar início ao seu ritual. Durante a realização das Corridas no terreiro

Karuazu, observa-se a participação ativa de Pankararu, principalmente exercendo a

função de toantes.

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215

Mas a participação recíproca na se limita ao período das Corridas, visto

que durante o ano ocorrem os rituais dos penitentes, do Menino do Rancho e da

Mesa. São momentos de cumprimento de obrigações entre as partes envolvidas.

Em todos os rituais observo a importância fundamental dos Encantados,

que, à semelhança dos outros povos de origem Pankararu, orientam e dão sentido a

vida da comunidade, das famílias e dos indivíduos.

Como espíritos dos antepassados, são identificados através da semente,

que segundo os indígenas é uma ciência – o sentido dado é o segredo que só os

membros das comunidades indígenas conseguem entender e, no caso, são

encontrados pelas mulheres.

Aí já não pode achar a semente assim, não. Já teve uma história de um Encantado, já ter acontecido, que quando você está dormindo, e quando acorda ela já estava na sua mão fechada. Para o Encantado mesmo ela é tão... se for uma semente verdadeira mesmo, você pode perder, jogar fora... oxe! Com três dias ela tá aqui de novo. Quer dizer que aquela ali é a semente verdadeira que tava precurando, né?(ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.13).

Durante toda a pesquisa, observei que a semente é uma pedrinha

encontrada ou entregue a uma mulher, geralmente com maturidade suficiente para

respeitar e cuidar. Destaca-se aí importância da mulher no imaginário religioso

desses povos indígenas, tendo em vista o siginificado de que a semente é um

Encantado – o Espírito do antepassado -, que somente algumas pessoas têm a

possibilitado de encontrá-la.

E por isso que é guardada e protegida, como grifado no relato:

A gente tem, derna de que eu tou aqui...sobre a gente, sobre a semente assim... quiném eu tava falando que cada Encantado desse tem que ter aquela semente, né?! Cada encantado, agora que a gente trabalha zelando aquela semente, que aquela semente você tem que ter ela zelada, oi então fica uma coisa que se num tiver zelo, ela vai embora, né! Vai procurar uma pessoa que zele, né!? Quem manda é o zelo, né! E... hoje e a gente só tem força, o índio assim só tem força se a gente tiver zelo com as coisas. Com as principal, com as sementes que vem praquelas pessoas que eu tava até aqui, eu tava aqui... e... chega uma pessoas, uma índia, né! Você sabe quem é essa índia. Ela chegou assim pra eu e disse: - „Tonho, eu tenho um presente pra lhe dá na sua mão, agora entrego a você! Nem meus fios num sabe, nem meus fio num sabe, porque essas aí eu... só tenho confiança de entregar a você!‟ Eu disse, pronto! Você tem em mim confiança, né?! Aí me entregou. Dois sementes, veio só trazer aqui pra eu. E com pouco dias num foi

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muito tempo não, poucos dias ela...ela morreu! E foi a finada Maria Berta. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p.1).

E completa afirmando a confirmação sobre a mulher, que tem o segredo e

depois entrega a quem é da confiança dela, diferentemente do que foi relegado à

mulher no contexto da sociedade nacional e patriarcal.

Pelo que se observa no relato do pajé, o segredo pode ser mantido até

mesmo em relação àqueles que têm estreita relação de parentesco, Como é o caso

dos filhos e familiares da indígena Maria Berto, ou seja, a semente é entregue a

algum indígena escolhido pela detentora do conhecimento. E o escolhido que recebe

a semente, assume o compromisso de cuidar e zelar.

Foi com poucos dias! Ela veio entregar aqui em casa a eu, aqui! Agora ela pediu preu num dizer pros fio dela, nem... a família dela num saber de nada. Que a família mesmo não sabia que ela tinha, num sabia num sabia não! E ela disse que veio num agrado dela só...repare que ela deixou de dá a um fio, um neto, uma coisa... um sobrinho, mas veio entregar a eu, eu aqui. Com poucos dias Jorge ela faleceu. Eu disse: mas rapaz só sendo uma coisa mesmo, né?! (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 1).

O compromisso da pessoa que recebeu a semente é de zelar, que significa

cuidar da roupa – renovar a cada ano o croá – e, religiosamente, realizar as

obrigações, como as oferendas, os rituais e obedecer às regras e se comportar

adequadamente, fazendo a limpeza do corpo, do fumo e da abstinência sexual e

alimentar. Por isso, nem todos são capazes de assumir tal responsabilidade:

“Repare que ela deixou de dá a um fio, um neto, uma coisa... um sobrinho, mas veio

entregar a eu”. Só alguns são escolhidos para cuidar do praiá. Como disse o pajé

Antônio Karuazu: “É o merecedor! Num é pra todo mundo (...). Todo mundo ser

dono, não! Tem, tem aquelas pessoas escolhido por eles! Que tem esse poder, esse

poder, né! pra receber eles”. (2013, p.3).

Na mesma linha de compreensão, o pajé falou da relação com a roupa do

praiá, a forma pessoal, expressando como deve ser a atitude do responsável para

com as vestes do Encantado, o que ele representa e as condições sociais em que

vivem os indígenas.

Eu acho que... um homi desses entre todo ano a gente tem que zelar dele. Oi e num é porque tá novo não, uma roupa veia é igualmente uma pessoa, né! Caba vai pruma festa e ver todo mundo com uma ropinha limpa, né! Com uma roupinha limpa e em posta, né! E eu com uma roupinha chuja, Ô rapaz! Tenho até vergonha de eu chegar

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no meio daquele pessoal limpo, né! Quere ser quiném eles, é que o Encantado ele é vivo, né! (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p.2-3).

O cuidado e zelo com as coisas sagradas estão muito bem representados

pela linguagem cotidiana do pajé: “Com uma roupinha limpa e em posta, né! E eu

com uma roupinha chuja, Ô rapaz! Tenho até vergonha de eu chegar no meio

daquele pessoal limpo, né”.

Outra forma de identificar a pedrinha da semente e se comunicar com o

Encantado é através de sonho, meio corrente e encontrado entre os grupos

descendentes de Pankararu. Os indígenas se comunicam com os Encantandos

como personagens vivas, mantendo uma relação permanente no cotidiano e, com

maior intensidade, nas celebrações religiosas. Portanto, encontra-se na cosmologia

Karuazu uma profunda imbricação e interligação entre o mundo dos Encantados e o

mundo dos terrestres, excluindo o dualismo entre os dois mundos.

Vivo! Ele num é morto, é vivo! Eu tenho na minha mente assim, no meu vê eles têm o prazer muito grande de ver tudo novo, tudo cheiroso, aquele, aquele cheiro, né! Aquele sabor, tudo dançando mais os irmãos, tudo novo, tudo bonito...é muito...é muito importante! (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 3).

No cenário onde se encontram e se movimentam os personagens, espíritos

encantados – humanos espiritualizados - e humanos materializados – terrestres -,

desenrola-se as orientações, as obrigações e os castigos daqueles sobre estes. A

população indígena se submete aos espíritos dos antepassados, à medida que as

obrigações são executadas e cumpridas os Encantados sentem-se também com o

dever de protejer as pessoas e a comunidade.

3.4.3 Religião Karuazu e os rituais dos povos do Sertão

A religião Karuazu, como as religiões dos outros povos do sertão de

Alagoas, tem a sua origem afirmada e confirmada na etnia Pankararu, exceto

algumas variantes, como é o caso do grupo Koiupanká, possivelmente devido a sua

relação mitológica também com o grupo Pankararé, estado da Bahia, ou por opção

política. Na pesquisa de campo e acompanhamento aos referenciais de ligação de

parentesco e religioso e fontes bibliográficas, confirma-se sua relação com a

mitologia, os rituais e o parentesco. Diz a indígena Pankararu cacique Hilda Bezerra

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Barros de Entre Serras, Pernambuco: “Através de nossos Encantados são curadas

as crianças, os adultos, nós temos a nossa medicina e não precisa ir a médico. Com

nossa medicina que nossos Encantados ensina para nós são curados nossos

doentes”. (Apud PORANTIM, 2012, p. 15).

Entretanto, há uma clara delimitação no campo de cada grupo, inclusive na

relação com a origem Pankararu, especialmente o que é relacionado ao respeito e

ao papel das lideranças, as diferenças religiosas e políticas.

Seja pela necessidade política da afirmação da identidade étnica e/ou pelo

pertencimento afetivo, cultural e religioso, há uma clara determinação em defender

oficialmente a ligação do grupo com a origem Pankararu. Por isso participam

permanentemente dos rituais Pankararu, em Brejo dos Padres.

Entretanto, existem críticas e reticências de algumas lideranças referentes

ao ritual realizado atualmente em Pankararu e os descendentes, apontamos falta de

respeito de alguns membros da comunidade nos dias que antecedem e durante a

realização dos rituais. O que mais é apontado como desrespeito é a presença e

ingestão de bebidas alcoólicas durante as atividades religiosas.

Esta realidade demonstra três perspectivas analíticas: a primeira, da parte

da liderança religiosa, expressa a afirmação da identidade de seu grupo e de si

próprio na busca de determinar o conhecimento e colocar-se como fiel depositário

da tradição religiosa Pankararu como verdadeiro seguidor dos princípios religiosos;

por outra, como depositário da tradição, adquire o reconhecimento e respeito dos

anciãos Pankararu e, portanto, a autonomia como grupo étnico; por fim, demonstra o

respeito construído nas relações interétnicas, com as outras lideranças e povos, e o

reconhecimento de que cada povo tenha os seus líderes, sua organização religiosa

e social.

Sobre o assunto, o pajé Antônio Karuazu afirmou admitir a falta de respeito,

mas defende a não interferência em assuntos de outro grupo indígena: “sobre os

outros povos eu não posso nem te dizer, porque cada um tem seu, né?” Diante da

pergunta se participa dos rituais realizados pelos outros parentes, respondeu:

Não. Às vezes faço parte, assim tem o compadre Zezinho, eu vou lá. Gosto muito dele, o povo acompanha. Mas tem muitos cantos aí que eu não gosto não, porque tem que dá valor, respeito, né, Jorge? A gente tem que ter respeito, posso ir até pro terreiro, mas sair daqui e ir pra lá, só pro do Zezinho. Pois tem que ter respeito. No pode andar

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por todo canto, não, tem que ter o maior respeito. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p.16).

E em relação aos rituais dos parentes, que guardam semelhanças, ao

mesmo tempo em que afirma, nega quanto ao cumprimento das obrigações: “É a

mesma coisa. Todo ritual é a mesma coisa. Um ritual só. Agora, na parte de

respeito, a gente não sabe, né? Eu não vou dizer que é igual, né? Pois cada um tem

seu jeito”. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 16).

E afirma a sinceridade quando diz respeito ao ritual que não pratica e não

tem conhecimento, como é o caso do ritual dos Pássaros – ritual Pankararu

realizado em Geripankó, que era dirigido pela indígena Maria Berta, mas não teve a

continuidade depois do seu falecimento. No caso Karuazu, o pajé explica as razões

pelas quais não é realizado pelo seu grupo: “Fiz não, sabe por que Jorge, nunca

passaram pra mim. Sempre fui pro Brejo, converso com os mais veio, mas nunca

passaram pra mim o significado. Eu também não gosto de fazer as coisa sem

saber”. (2013, p. 16).

3.4.4 A mulher na cosmologia Karuazu: papel político, guardiã dos Encantados e da história.

No cotidiano das comunidades indígenas descendentes de Pankararu

percebe-se que a presença do homem é muito marcante, destacando-se nas

atividades agropastoris, na direção da organização da comunidade, nas articulações

e decisões políticas e na condução dos rituais. O homem é o chefe da família, o

organizador da roça, é quem pode vestir a roupa fabricada de croá e tornar-se praiá.

À mulher cabe o papel de zeladora da casa e dos filhos, obediente ao marido e

observadora dos rituais religiosos conduzidos pelos homens. Nas reuniões da

comunidade e durante os rituais, em geral, encontramos as mulheres sentadas ao

redor do terreiro ou nos lugares mais afastados do grupo, observando

silenciosamente o desenrolar das atividades. A voz que abre a reunião e os rituais é

a do homem, no caso, o cacique ou o pajé. A mulher aparece em alguns momentos,

seja nas reuniões ou durante os rituais, fazendo alguma consideração ou puxando o

canto do ritual, como toante. A mulher participa como noiva e madrinha -

denominações originárias da tradição católica, no ritual do Batismo cristão - no

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Menino do Rancho ou ladeando as extremidades em determinado momento durante

a dança dos praiás e conduzindo o ritual dos Pássaros.

Contrariando a lógica da sociedade ocidental e nacional, dentro da

comunidade, o papel da mulher se inverte. Em todas as observações coletadas

durante a pesquisa de campo, nos relatos informais e nas entrevistas dirigidas,

demonstram que a mulher exerce papel fundamental, destacando-se no domínio

religioso, sobretudo como curandeira, rezadeira e guardiã dos mistérios da semente

dos Encantados e da luta política. A indígena Hilda Bezerra Barros, 74 anos, cacique

da comunidade Entre Serras Pankararu, lidera a luta em defesa da demarcação

terra a mais de 40 anos; embora discriminada, ameaçada de morte, não desiste. Ela

diz de onde vem a sua força: “A gente tem aquela fé que sai da terra e dos espíritos

da mata”. (Apud PORANTIM, 2012, p. 14). E conta que entrou na luta depois que

lideranças indígenas Pankararu negociaram com a FUNAI a exclusão de 8.100

hectares do território tradicional, exatamente a terra de sua comunidade. E diz: “Meu

povo confiou em mim e se eles achassem que era melhor um cacique homem,

teriam escolhido um cacique, mas eles confiaram em mim”. (Op. cit., 2012, p. 15).

O domínio da mulher nas comunidades Pankararu não se restringe ao

mundo religioso, mas é também marcante e decisiva na organização da

comunidade, na luta política e no processo de reconhecimento e demarcação da

terra. A cacique Hilda, um dos troncos do seu povo, define o conceito de terra

tradicional para os Pankararu:

Chama de terra tradicional indígena porque era dos índios de antigamente, já era terra indígena de verdade. Nós temos a nossa tradição, nós temos o nosso território sagrado e é uma terra indígena de verdade. É terra indígena que foi demarcada e homologada porque é terra indígena desde 500 anos para trás. Não é aquela terra que a gente vai chegar aqui e fazer uma área indígena sem ser porque nem o índio tem direito de fazer uma aldeia dentro de uma terra que não é indígena, tem que fazer dentro da terra indígena.

(Apud Porantim, 2012, p. 14).

No seu relato, como se vê, destaca-se o conceito de „”terra indígena de

verdade”, aquela que é “sagrada” e que foi “demarcada e homologada”, mas não

uma terra qualquer que pudesse ser apropriada pelo indígena.

No caso do processo de reconhecimento da identidade Geripankó, toda a

articulação inicial e até a indicação da liderança, foram iniciadas e conduzidas por

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uma mulher, a indígena Maria Berta, irmã do cacique Genésio. O mesmo ocorre com

o povo Katökinn, liderado pela Maria das Graças, a cacica Nina, que recebeu por

sonho o etinônimo do grupo. Com o povo Karuazu, os fatos se repetem tanto no que

se refere à condução política, como ao domínio religioso.

No relato do pajé Antônio, as mulheres - a avó, a mãe, a esposa – surgem

como guardiãs da cultura, dos ritos religiosos e da ciência dos Encantados. Parece

que se pode apontar aqui, nesse imaginário de funcionamento do universo indígena,

a existência de uma formação discursiva que teria o teor fundamental de

centralidade da mulher e de seu reconhecimento como uma instância fundamental

na condução das coisas dos indígenas. Assim, destaca-se nessa centralidade a avó:

Elieta. Aí ela chegou e... a minha avó naquele tempo vive de Lampião, mamãe era pequenininha, e naquela época, Lampião... e minha avó morava no Tanque, numa casinha de paia, pequenininha, veio de lá de Pankararu e... aí ela vem de lá do Pankararu, no Tanque em casinha de paia, aí chegava aqueles pessoal, aqueles cara de Lampião, quando chegava... mas eles chegavam como retirantes, nera? Ela que contava, que era como retirante pediam apoio e ninguém dava apoio, aí minha avó pegou, „não venham dormir aqui comigo‟ numa casinha de paia. Foi naquela época que Lampião vinha direto pra lá e pra cá e eles diziam: „mexam não com essa veinha, pois ela dá apoio a nós nessa casinha‟. Era a minha avó. Foi naquela época ela tinha apoio. Aí mamãe era pequena e contava esta histora, disse que viviam lá no Brejo, tempo ruim, não tinha ganho não tinham nada, aí vieram tudo pra aqui pro Tanque tudinho. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 4).

Essa centralidade, vivida no imaginário – “contava esta histora‟ -, é

admitida na fala do indígena pelo respeito que lhe conferia Lampião “aí chegava

aqueles pessoal, aqueles cara de Lampião, quando chegava... mas eles chegavam

como retirantes” e pelo fato de não se intimidar com a sua presença “„mexam não

com essa veinha, pois ela dá apoio a nós nessa casinha”.

Em seguida, confere essa centralidade à sua mãe, guardiã e, também,

iniciadora do processo de identificação ética do grupo Karuazu. Declara, certificando

o processo histórico da mãe, como educadora e transmissora do conhecimento: “A

histora que minha mãe contava...” (2013, p. 4). E completa:

Aí foi uma dia, mamãe disse: „Seu Genésio, tem como a gente ir pra Jeripankó, pois já tem muita gente...‟ Seu Genésio, que já tinha muitas famías em Jeripankó, aí ele disse:: „rapaz, vamos fazer assim, lá em Pariconha tem aquela famía de Adélia e de João Tomás, lá já tem dois povo. Tem também no Tanque, a famía de Zezinho, a famía de Dão, da Tia Dora, famía da tia Amélia, tudo famía grande lá, dá

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pra vocês se ajuntarem lá e, dá pra formar um povo lá‟. Aí a gente formou esse povo com o apoio de seu Genésio. Porque naquela época da abertura aqui tava seu Genésio, seu Elias, nem tinha Kalankó e nem Koiupanká, quem fez tudo foi ele. Aí começamo tudo... tudo com apoio de seu Genésio. Naquela época foi quando começamo andar mais com seu Genésio, e ele foi mostrando tudo. Até que um dia ele disse: - „pronto, agora cada uma tem seu canto, seu povo já podem viver‟. (ANTÔNIO KARUAZU 2012, p. 16).

E, por último, a esposa do pajé, a Galega. Ela tem uma presença muito

discreta durante as reuniõeas na comunidade, destacando-se socialmente no

acolhimento dos visitantes e na preparação da alimentação. Diferentemente do que

aparece nos momentos dos rituais e na relação com as visitas, a partir de uma

análise mais detalhada, observa-se a cumplicidade dela para com as atividades do

esposo, os rituais e viagens para realizar as obrigações em outras comunidades. O

que foi comprovado nos relatos do pajé, que demonstrou a sua importância dentro

do mundo religioso Karuazu. A relação do nome dos Encantados foi feito por sonho

à Galega. “Chegou e disse o nome dele à Galega!” (2013, p. 4). E completou:

Esse dono do terreiro daqui faz parte daquela família que foi o pai dela que deu a semente à Galega, aí a gente respeita ela é prima da gente, quer dizer a gente respeita também eles são parte por foi ele quem deu a ela. Aí ontem ela chegou aqui e disse que tem um bode e é do dono do terreiro daqui. Aí ela veio acertando mais eu pra ver quando é o dia que nós vamo comer lá no Tainque, na casa dela! No terreiro da casa dela! (ANTÔNIO KARUAZU 2013, p. 8).

A partir da análise do texto acima, destacam-se dois papéis desenvolvido

pela Galega: social e religioso. No campo social, a ação dela limita-se ao

acolhimento, enquanto que no religioso ela tem um papel determinante, guardião e

zeladora da semente do Encantado.

Com maior firmeza e clareza, pode-se ver o papel da mulher como guardiã

da ciência e da sabedoria religiosa. Neste campo, o próprio homem confia e se

comporta obedecendo ao que é determinado pela mulher. É ela que tem a

experiência, que recebe por sonho o nome do Encantado e revela, enquanto que o

homem executa:

“Foi ticido a roupa dele e eu fui pro Brejo da Maquiaminha que ela tem muita experiência, aí levei a semente pra ela, quando ela pegou que dixi: - é meu fio! Pra ela dizer o nome dele que eu não sabia o nome dele. Que vamos batizar ele”. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 4).

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E continua:

Aí ela dixi: - Meu fio! Foi um dia de domingo. Meu fio, vá pra casa. Ela quem disse, vá pra casa quando chegar lá ele vai dizer o nome, ou a você, ou a Galega, agora você a partir de hoje você separe da sua muié, separe! Galega durma prun canto e você durma pra outro. Separa que ele vem dizer o nome dele! Ai nisso foi o que aconteceu, quando foi num dia de quinta-feira, separei do domingo Galega dormindo prun canto e eu dormindo pra outro. Quando foi domingo, vôte! Quando foi quinta-feira, aí ele chegou e disse o nome dele. A Galega! (...) Que é dela, né! Foi dada a ela, que.faz premero ela contano. Primeiro veio o dono que deu a ela. Que o dono que deu essa semente a ela, foi, foi... chamar era, era...Antão. era que dava. Aí primeiramente ele tava nos traje que ele usava, ele já faleceu, mas num foi nos traje de falecido, foi nos traje de vivo. (ANTÔNIO KARUAZU 2013, p. 4).

Para os indígenas, o Encantado é um ser vivo. E como ser vivo, o sonho

expressa a realidade vivenciada no cotidiano, a exemplo do meio ambiente e as

pessoas envolvidas. Como identificado anteriormente, o mundo terrestre e o

espiritual são vivenciados e construídos ontologicamente no imaginário indígena.

O pajé Antônio Karuazu dá testemunho de como os nomes de dois

Encantados Karuaru foram revelados:

Com um chapéu de laço ou roça na cabeça, e... camisinha eita! Era preta que ela disse, cacinha branca e o chapéu de marca. Ela dixi que quando chegou ela tava só esperando, quando tava em pé ali, aí... eu foi mais ela aí perto daquele jardim, né! Que é tanta flor, aquelas rosas mais linda do mundo! Que ela só dá rosa, aí levou ela naquele jardim, aí eu fui mais ela, quando chegou...aí tava o... tava em pé, aí tava aquele parzinho do lado dele. Aí ele dixi: - Ói, o meu nome chama KANKARAREZINHO! Dixi três vezes a ela. E tinha o outro que ela não sabia o nome que era finado Zé do Carmo, aquele veio. E... ai ele dixe: - e o nome do meu irmão é KATRIAZINHO. Foi dois a vontade que... foi os dois. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 4).

Observa-se no relato acima um profundo entrelaçamento e transposição do

mundo terrestre para o mundo espiritual, e vice-versa.

Apesar de todo o repeito que existe pelas mulheres, o reconhecimento de

seu papel dentro da cosmologia indígena e do respeito à autonomia de cada

comunidade, observa-se questionamentos quando às regras da religião Pankararu

quando não são observadas por algum membro. O pajé Karuazu, respeitando o

grupo Katokinn, questiona subliminarmente a indicação da cacica Nina Katökinn pela

indicação de uma sobrinha, Roseli, membro da denominação evangélica Assembleia

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de Deus, para o cargo de presidente da Associação Indígena Katokinn. “Ela botou

aquela sobrinha dela, aquela sobrinha dela rapaz, logo uma quela... pra luta ela num

dá porque ela tava em São Paulo. Num sabe a história como foi fundado. E outra

coisa eu não sabia, ela num é... católica”. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 5).

O relato do pajé em relação à atitude da liderança Katökinn ao indicar

alguém para um cargo na comunidade, mesmo sendo indígena, embora também

membro de uma denominação que combate a religião indígena, indica a fragilização

da religião, da cura e da luta política. “Você chega num momento... num terreiro ela

num vai, que diz que num vai ver fumaça de campiô. O índio hoje com que é que se

cura? Pega o campió se cruza pede a sorte a Deus e a eles pra dá saúde, né! E ter

força e coragem pra gente lutar...” (2013, p. 5). E logo adiante condena a não

observância, falta de respeito e desobediência para com os Encantados: “Um tempo

desse Jaime me contou, eu num sabia, Seu Jaime disse que Nina foi lá e mandou

tirar os homens tudinho da casinha. (2013, p. 5).

Como se vê pelos relatos, a mulher exerce papel fundamental na vida das

comunidades indígenas Pankararu e seus descendentes, mas quando não cumpre

com as regras é também questionada e criticada. A sua força, a centralidade de sua

figura é objeto de estreita observância, reconhecidamente pontuada na fala

daqueles que ocupam uma função de destaque nas comunidades.

O que se destaca como fundamental é a religião, sua força e seus ritos. O

poder religioso é determinante em todos os momentos da vida da comunidade:

nascimento, saúde, roça, animais, viagens e possíveis resultados conquistados pela

população indígena “A gente tem que... ói quando eu saio daqui, se eu faço uma

viage eu primeiramente faço logo meus pedidos, minhas obrigação pra poder pedir

sorte a Deus e a eles. Pra defender nós hoje do mal, que o que tem muito! (2013, p.

5).

Além da insatisfação estritamente religiosa, observa-se que, cada vez

mais, o processo de ressurgimento da identidade é mais perceptível o impacto da

sociedade envolvente e suas instituições civis, militares e religiosas sobre as

comunidades indígenas, o que tem gerado conflitos e divergências internas e

interétnicas. “Agora eu não entendo porque essa tanta divisão, não sei por que os

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índios querem se dividir tanto. Prejudicado é o povo, né?” (ANTÔNIO KARUAZU,

2012, p.17).

Como pode ser observado no imaginário cosmológico indígena Pankararu

e de seus descendentes, a mulher indígena tem papel fundamental em toda a vida

das comunidades. Além do seu papel social, facilmente identificável no cotidiano, em

vistas das semelhanças com a sociedade ocidental, destaca-se também no

processo de formação social do ser indígena junto às crianças e aos jovens, na

autoridade de receber a Semente dos Encantados e passagem destes para os

responsáveis e zeladores.

3.4.5 Terra: base da tradição cultural e do discurso político

A tradição, base religiosa e cultural do grupo étnico Karuazu vivenciada em

sua trajetória histórica, desde quando foi possível ser identificado, é uma rica fonte

de sabedoria e de resistência. Com a chegada do homem europeu, houve um

abrupto corte, quando lhe fora imposto o confinamento em aldeamento e a inserção

no mundo ocidental, em nível social, religioso e econômico, provocando um

profundo processo de desterritorialização, transformações, adaptações e

ressignificações. Na mesma lógica colonial, o governo do Império impulsionou a

mercantilização, expropriando e loteando a terra e escravizando a mão de obra

indígena, provocando a diáspora da maioria da população indígena e uma nova

etapa de desterritorialização, período em que se encontra o grupo Karuazu.

Vieram de Pankararu. Tempo ruim, fome, seca e aqui tinha mais conhecimento, vieram a trabaiá em casa de farinha, né? Porque lá não tinha. É por isso que digo, os índios foram deixando um monte de defeitos de lá pra cá, por causa disso... (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 4).

Devido à falta de espaço de um lado e das possibilidades de outro para a

manutenção da população, somado ao trabalho forçado, a violência praticada pelos

coronéis e agentes governamentais, a proliferação de doenças, a falta de

assistência em saúde e educação e, consequentemente, o acirramento dos conflitos

internos, as famílias Karuazu tiveram mais uma vez que fugir em busca de terra e

paz para sobreviver e se reproduzir físico e culturalmente.

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Ao contrário do que viviam em Brejo dos Padres, encontraram outra

realidade na região do sertão no atual estado de Alagoas:

A região daqui era região boa, a nossa região... Muitos vieram de lá pra cá, outros vieram de Pankararu e casaram aqui. Zé do Carmo, tinha Cícero Caboclo, Pankararu também, tinha o veio Dão, o Zezinho, Já tinha Dola, que é o tio da minha mulé... tudo descendo de lá pra cá. Quando chegaram aí, casaram tudo aqui, uns casaram com índias mesmo e nisso só vivendo aqui mesmo. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 4).

Na concepção Karuazu, diferentemente do modo da sociedade ocidental e

do sistema capitalista, a terra é o espaço de realização cultural, religioso e do modus

vivendi. A terra e o ser Karuazu se confundem e se imbricam. “A terra o nosso

natural de sustentação, que com a terra tem a saúde, tem tudo pra nosso povo”.

(ANTÔNIO, 2013, p. 2). Na mesma lógica, a cacica Hilda define a terra: “Aqui é uma

terra sagrada, mantemos a nossa tradição, nossos terreiros sagrados. Terra

indígena é aquela terra onde nós nascemos e se criamos; era de nossos

antepassados, bisavós, avós, pais e até hoje é”. (BARROS, 2012, p. 14).

A família Kazumba se acomoda na localidade, junta-se aos

afrodescendentes que já se encontravam na região, constituindo-se um grupo étnico

na região. Define a origem do etinônimo Karuazu: “O que significa Karuazu porque

tem um terreno ali que se chamava okazumba, né? Okazumba, esse terreno era do

meu avô, do meu bisavô, bisavô! Araújo, aí pegou uma palavra do Okazumba e

botou Karuazu”. (2012, p. 4). Segundo Ida Lucia: “Todo sujeito que se comunica e

que interpreta um ato de linguagem precisa estar apto a utilizar/reconhecer a forma

dos signos, suas regras de combinação e seu sentido em determinado contexto”.

(MACHADO, 2008, p.189).

É nesse contexto que os indígenas interpretam os signos da culltura

nacional e reinterpretam de acordo às demandas e interesses da conjuntura. No

caso do etinômio, é difícil de ser provada a sua origem, mas, para responder ao que

está sendo posto, a significação foi reconstruída.

À medida que o processo de colonização avançou do litoral ao sertão, as

populações indígenas foram acossadas e empurradas para lugares de difícil acesso,

a exemplo de grotas, serras e periferias de núcleos urbanos em formação, como

também inseridos no processo de produção.

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Com o impacto, o grupo indígena vivenciou um dos maiores e mais

rápidos processos de mudanças sociais, levado a negociar a convivência com a

população do entorno, com a aprendizagem de novas formas de atividades e a se

submeter às condições e formas de ocupação da terra.

O pajé Antônio Karuazu identifica as condições em que o grupo se

encontra atualmente, como também a perspectiva com a não conquista da terra,

definindo como encurralado e sem visualizar o futuro para os seus descendentes. A

terra como o espaço fundamental para a realização da integralidade do ser indígena,

com o espaço liitado, foram obrigados a se deslocar em busca de alternativas

econômicas fora da aldeia, retornando religiosamente para a comunidade no período

dos rituais.

Aí ficamos o pessoal encorralado, aí o pessoal ficamos encorralado e ficamos em situação muito difícil e, né? E que a nós, nascido e criados no nosso torrão aqui. Um povo indígena, né? Com nosso povo... a história do meu avô, da minha avó e ficamo o pessoal aqui encurralado, sem poder ir pra canto nenhum aqui. E esses, essas criança que a gente tem, né? Criança nova também... eu já tô velho, não posso trabalhar muito, mas tenho o quê? Tenho mãe e filho, tenho meu neto, já tenho bisneto... E os outros, criança, vão ficar na onde? Vão ficar um pessoal preso. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p. 1).

E mais adiante, de forma precisa, demonstra como o seu povo encontra-se

encurralado, trabalhando no sistema de meia e arrendamento e ameaçado em nível

social, cultural, político, religioso e econômico, impossibilitado de se movimentar,

produzir e celebrar os rituais sem que a sociedade não indígena o perceba.

Nós mermo aqui, nós que mora aqui na Karuazu. Até o motor das nossas casa é o branco ao redor, o motor da nossa casa..., não plantemo um pé de árvore. E com a medicina, se você precisa de ter uma medicina, não tem nem onde é que se planta. Não tem onde você exerce a medicina, não tem onde plantar pra medicina... que o

índio hoje, é por isso que o índio vevi sofrendo hoje muito, sendo

cativo a esses outros órgão que tão entrando aí. (ANTÔNIO KARUAZU, 2013, p.1).

É surpreendente constatar que, mesmos com os dados apresentado pelo

pajé Antônio Karuazu, sobre a situação social em que se encontra o grupo,

considera que viver onde está apresenta melhores condições do que na aldeia

Pankararu. Em vista da intrínseca relação com a terra, mesmo confinados em

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pequenas glebas, é melhor viver nela do que sair, pois é nela que cultivam as

plantas medicinais, realizam os rituais e onde estão os Encantados.

Porque lá em Pankararu, até hoje, hoje é mais melhor porque tem um aposento do pessoal, aquela barragem está para cair, colocou muita gente pra fora, firmou muita gente lá em Pankararu, mas tá ruim lá em Pankararu. Aqui, é mais melhor de se viver aqui, os povos pra viver aqui vevi mais sossegado do que em Pankararu. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 4).

Encontra-se no imaginário indígena a terra, como um espaço de

pertencimento, permanência e de reprodução dos meios identitários do ser étnico

indígena, um meio essencial para a reprodução cultural e religiosa, mas também de

paz e de integração interna.

Hoje o índio perde a terra, a sua cultura. O índio só perde a sua cultura, porque não tem a terra para plantar sua medicina, né? Não tem sua terra para sua medicina aí só fica em negócio de polo75. Isso aí não pode! Isso, quer que queira, tem que ter seu terreno para você plantar sua cultura medicinal, para fazer o remédio, né? (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.1).

E exemplifica, demonstrando a preocupação com a manutenção das

tradições, a falta dos elementos necessários para produzir e colher o material, como

são os casos das ervas medicinais – “Não tem sua terra para sua medicina” - hábito

que, além do valor cultural, reflete todo um conhecimento ancestral sobre o teor

protêico, curativo de espécies naturais -; da construção da oca e o croá que produz

a fibra para a confecção das roupas dos praiás. A falta da terra é o ponto central das

discussões indígenas, mas também não se resume a isso, visto que não são

compreendidos pelos órgãos públicos em suas práticas de extração do material e

preparação das roças. Enquanto os latifundiários desmatam e queimam a vegetação

nativa, inclusive da terra reivindicada pelos povos indígenas, em tom de denúncia,

compara e analisa politicamente a ação dos órgãos fiscalizadores em relação à

população pobre e os latifundiários da região.

Rapaz, um índio ou qualquer pessoa hoje pra fazer uma casinha de carvão pau, o IBAMA76 já bate em cima, e Lula Cabeleira desabou foi

75 Polo – refere-se ao setor da Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI -, instalado próximo ou na comunidade indígenas para prestar atendimento em saúde à população indígena. 76 IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – órgão do Ministério do Meio Ambiente.

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léguas de terra, pegou os trator desmatou todinho, quer dizer, que aquele feito de monte de madeira ele largou foi fogo, largou fogo, quer dizer que aquilo ali já perde muitas coisa pra, até pra nós mesmo, que era madeira no terreno de Lula Cabeleira tudo ali. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.2).

Os dados coletados a partir dos seus relatos sobre a realidade da terra

demonstram um exato conhecimento do território, localização geográfica, riachos,

vegetação e caminhos por onde andava e caçava quando criança com os seus

antepassados77. Concomitantemente, a identificação e descrição do território no

passado expõe a situação em que se encontra no presente, transformado e

devastado para fins industrial e agropastoril.

Ali eu só sei que era mata bruta. Nós indo para Delmiro Gouveia, já tinha o caminhozinho certo para ir pra lá, ali tem aquela barragem, até a barragem que é o riacho que passa aqui perto da Karuazu. E o riacho lá, que tem a barragem, e lá a gente pegava um peixinho, uma coisa pra gente, né? Pra refeição de seus filhos. Hoje a terra da barragem que tem a garoba, e ele mandou desmatar tudo ali, limpar de modo que onde tiver uma pessoa não pode chegar nem perto da barragem, desmatou tudo. Aí eu acho que é uma injustiça, quando era a barragem de Lula Cabeleira a gente caçava, né? Caçava, pescava, tudo isso. Hoje tá tudo limpo, tá tudo desmatado, por isso que eu digo, que hoje a luta da terra é, nossa, só tem valor quando tiver terra nossa mesmo. (ANTÔNIO, 2013, p. 2).

Analisando as considerações do pajé sobre a terra, observa-se que até o

ano de 2000, marco do aparecimento político da população Karuazu reivindicando o

reconhecimento étnico e os diretos constitucionais, os indígenas conviviam

submetidos às relações impostas pelo sistema do latifúndio e do coronelismo

marcante na região. Com o avanço da exploração agropastoril e industrial na região;

a terra, pouco explorada à época, foi devastada para a implantação de projetos

desenvolvimentistas –“Hoje tá tudo limpo, tá tudo desmatado”.

Aos poucos os indígenas viram seus meios de sobrevivência desaparecer,

como a caça, a pesca e as várias formas de utilização do solo – “quando era a

barragem de Lula Cabeleira a gente caçava, né? Caçava, pescava, tudo isso” –

arrendamento, meeiro, plantação de pasto. Com a implantação do novo sistema, os

indígenas não tiveram mais espaço e foram jogados ao sistema de bóia-fria nas

usinas de cana de açúcar, trabalho de diarista na lavoura dos agricultores da região

77 “O sertão nunca foi um espaço deserto”. (SILVA, 2007, p.29).

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e, em sua grande maioria, inseridos no processo de proletarização nos grandes

centros urbanos, como pedreiro, carpinteiro e pintor para os homens e empregadas

domésticas para as mulheres.

Depois do aparecimento político para a sociedade, os mais velhos -

lideranças religiosas e políticas -, assumiram e organizaram a luta pela demarcação

do território, tornando-se a principalmente bandeira política da população indígena.

Essa luta aparece refletida nos discursos de seus representantes, muitas vezes, em

padrões de narrativas fatuais que expressam formas de vida, ações que

experienciam no cotidiano, lembranças impressas no seu imaginário. Todas elas,

entretanto, constituem um posicionamento efetivo sobre o processo político-social de

desmonte das comunidades indigenas.

3.4.6 Demarcação do território Karuazu

Desde a celebração do reconhecimento étnico, realizada em 19 de Abril de

2000 – data comemorativa ao Dia do Índio, instituído pelo presidente da República

do Brasil, Getúlio Vargas, através do decreto-lei 5540 de 1943 -, as lideranças

indígenas Karuazu deram início ao processo reivindicativo pela demarcação do

território, direcionados ao órgão governamental responsável pela demarcação,

FUNAI, através de documentos e pessoalmente em sua sede Regional, Maceió, e

em Brasília, na administração central.

Em nível local, buscaram o apoio das lideranças Geripankó,

particularmente do cacique Genésio Miranda e do pajé Elias Bernardo, com o

objetivo de juntos fortalecerem a luta política em defesa dos direitos indígenas. Com

o avanço da articulação entre as lideranças indígenas, novos grupos assumiram a

identidade étnica, além de Kalankó, surgiram Katökinn e Koiupanká, ampliando e

formando a organização interétnica dos cinco povos no Sertão de Alagoas.

O processo de demarcação saiu fortalecido, obrigando a FUNAI a

determinar a realização do Relatório Circunstancial dos povos do Sertão em

processo de reconhecimento social e identificação dos respectivos territórios, a partir

da organização política, participação em reuniões, encontros de formação e

mobilizações em nível regional e nacional tiveram o reconhecimento étnico e o

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acolhimento dos direitos constitucionais pelos órgãos governamentais e pela

sociedade em geral. Com o reconhecimento e a contuidade da mobilização, os

indígenas conseguiram a assistência em saúde, alimentação, casas de alvenaria,

redes de esgoto e elétrica, dentro outras conquistas.

Tratando-se da demarcação do território Karuazu, ao longo de 14 anos, o

processo avançou, apesar de permanente cobrança das lideranças, das articulações

e mobilizações em torno da temática. O pajé reconhece o apoio de alguns atores e

organizações não governamentais da sociedade – cita como principal aliado o

Conselho Indigenista Missionário/CIMI -, mas identifica que os órgãos

governamentais responsáveis constitucional e administrativamente só têm ficado em

promessa. De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e do

decreto 1.775/96, cabe ao poder Executivo determinar à FUNAI a constituição do

Grupo Técnico (GT) para a realização da identificação do território tradicional, como

primeira fase técnica para a efetivação da demarcação da terra.

Porque temo apoio de Jorge, o Jursso Cabral78, o deputado, mas só chega lá, só é, acontecendo isso, isso, só premessa e a gente fica cansando de tanto ir atraize e as coisa não funciona. O antropólogo Tomé nunca apareceu pra fazer o estudo da gente, o GT da terra. O principal é o GT da terra, (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 1).

Em toda a trajetória de contato dos indígenas com a sociedade nacional,

observa-se a capacidade de apropriação indígena da cultura, valores, mecanismos

legais e institucionais, crenças e costumes transmitidos ou impostos pela

representação social colonizadora e nacional. Neste aspecto, constato que são

exímios captadores e tradutores desses códigos, transformando-os em ferramentas

de organização e luta na defesa dos interesses e direitos.

A atitude política dos órgãos governamentais em relação aos direitos

indígenas é caracterizada pela omissão, desrespeito e morosidade por parte de seus

representantes. Como exemplo, cita o caso do Canal do Sertão, projeto

governamental para a transposição de água do rio São Francisco para as regiões do

Sertão e Agreste, construído sobre o território reivindicado pelos povos Katökinn e

Karuazu. O objetivo das lideranças é de denunciar o desrespeito dos órgãos aos

direitos indígenas – “ele disse que não conhece esses povo indígena aqui do sertão

78 Refere-se ao deputado estadual Judson Cabral (PT/AL).

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daqui de Alagoas” - e cobrar a imediata formação do Grupo Técnico para efetivação

da demarcação dos territórios indígenas, o que nem sempre tem mostrado

compreensão das autoridades – “nunca apareceu ninguém para dar essa posição a

nós”.

Canal do Sertão, né? Esse Canal do Sertão já tá aí trabaiando, já tá aí uma parte pronta, e até aqui já cobremo, onde esse Canal vai passar, qual é a serventia desse Canal do Sertão, né? Qual é serventia, se é pros índios, ou pra quem é? Mas isso aí eu acho que pros índios não vai ter não porque..., marquemos uma reunião lá em Delmiro Golveia para nós saber a posição deles sobre esse Canal do Sertão e nunca apareceu ninguém para dar essa posição a nós. Nós como povo indígena, que mora aqui... Eu que vejo falar sobre o Canal do Sertão, que ele disse que não conhece esses povo indígena aqui do sertão daqui de Alagoas, o pessoal daqui, os índios de Pariconha, eles dizem que não conhecem por área indígena aqui. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 1).

Com isso, à medida que o estudo técnico do território está paralisado, a

população indígena é penalizada duplamente, em nível social e constitucional. Os

direitos garantidos constitucionalmente e com prazos determinados a serem

cumpridos segundo o artigo 67 dos Atos das Disposições Transitórias

Constitucionais (ADTC), não são efetivados. Em consequência disso, a população

Karuazu é desrespeitada e penalizada por não ter a terra para viver e trabalhar e,

consequentemente, se reproduzir física e culturalmente.

A questão nossa aqui está parada, a demarcação da nossa terra está parada porque tem umas terra aqui que eram do nosso avôs aí e tamo arrodeado dos povo. Você ver aí, até aqui arredor de Karuazu os povo vendendo os terreno aí, os lote de terra , né? Para construir casas, pra mim vai ficar mais difícil pra noise porque está chegando mais gente pra perto de nós. Até o local que a gente tava querendo tá chegando gente. Acho muito complicado. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012).

A constatação do pajé abre uma crítica à forma pela qual são tratados

pelas autoridades – “a demarcação da nossa terra está parada” -, diante de uma

situação que tende a agravar-se continuamente – “pra mim vai ficar mais difícil pra

nóis porque está chegando mais gente pra perto de nóis”. Diante dessa realidade, o

pajé lembra que os povos indígenas do Sertão têm feito para organizar a luta política

para demarcar a terra. Destaca a articulação interétnica entre os grupos indígenas

descendentes de Pankararu, o apoio das entidades não governamentais, a

reivindicação junto às autoridades locais e federais.

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Comecemo os cinco povo unido, né? Aquelas informação, adiantou muita coisa né? A luta indígena sobre a terra. Fomo a Brasília com apoio do Jorge, do CIMI, do deputado Judson, né? Que deu resultado no nosso GT, mas é que a FUNAI é devagar, fomo atrás do GT. Isso Jorge, sem recurso e apoio não tem como. Nem recurso da FUNAI nós tem, diz, eles né, que nem pra eles têm, pro mais pro povo indígena. Eu mesmo fui pra Maceió resolver uma coisa lá e chegou lá, nem um cafezinho tem pro cabra beber, a ação da comunidade indígena de Maceió nem oferecer um apoio a nós, um órgão daquele, só pro índio mesmo não dá um passo, porque desse jeito o índio não dá mesmo, nem um almoço, nada. (ANTONIO KARUAZU, 2012, p. 17).

Se a terra constitui o elemento essencial para o indígena, pois é a partir

dela que constroi sua sobrevivência, sua forma de ser no mundo, nada mais natural

do que a “luta indígena sobre a terra”, mesmo que isso implique, pelas

circunstâncias políticas do momento, buscar acordos legais – “Fomo a Brasília...”;

“Eu mesmo fui pra Maceió resolver uma coisa.”, embora reconhecendo, de antemão,

que - “a FUNAI é devagar” -, que em Maceió - “nem oferecer apoio a nóis”.

A luta nós se uniu os cinco povo pra ir à luta mesmo. Vamos pedir apoio a deputado e apoio ao CIMI, porque o CIMI é um órgão, que graças a Deus, temo apoio e ajuda muita na luta indígena. Ajuda muito, porque você ver que a FUNAI alega que não tem nada, mas ele também não sai de lá de dentro. Alega que não vem porque não tem comitiva, pode?! (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 17-18).

Apesar do cetismo pelo trabalho das instituições oficiais – “a FUNAI alega

que não tem nada”, há reconhecimento da importância de outros órgãos – “porque o

CIMI é um órgão, que graças a Deus, temo apoio e ajuda muita na luta indígena.”

A falta de credibilidade dos órgãos governamentais no cumprimento dos

princípios constitucionais e legais é um dado presente em toda a relação com as

comunidades indígenas do Brasil. As lideranças indígenas compreendem e apostam

na organização interna e com os outros grupos étnicos, com o objetivo de pressionar

e fazer avançar o processo de demarcação da terra e a garantia dos direitos.

Tem se tornado uma prática comum entre os povos indígenas do Brasil,

diante da omissão governamental em paralisar a demarcação dos territórios, as

próprias comunidades e grupos têm construído a autonomia e assumiram a iniciativa

de retomar a terra e expulsar os invasores. A cacica Hilda Pankararu, diante do

desrespeito governamental e conivência das próprias lideranças do povo Pankararu,

assumiu a liderança do grupo de Entre Serras e fez a demarcação da terra. “O que

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nós fazemos foi abrir a picada pelos limites da terra. Pode se dizer que foi uma

retomada porque nós abrimos as picadas sem autorização de ninguém. Se a gente

fosse esperar para a FUNAI abrir estas picadas nunca que ia sair”. (Apud

PORANTIM, 2012, p.14).

Esta é a forma adotada pelos povos indígenas do Brasil, em particular do

Nordeste, para exercer a autonomia e afirmar a identidade étnica, garantido os

direitos históricos e constitucionais.

3.4.7 Trabalho: dependência da economia de mercado

As primeiras famílias Karuazu viviam da agricultura e da produção de

pequenos animais domésticos, basicamente cultivando a terra. A terra, espaço

essencial da existência do ser indígena, é o espaço fundamental para o seu

desenvolvimento social, econômico e cultural. Com o aumento da população

sertaneja e a formação dos núcleos urbanos os espaços foram reduzidos e os

indígenas foram inseridos nas formas locais de produção e transformados em mão

de obra.

À medida que o espaço é invadido e reduzido, a população indígena saiu

em busca de novos espaços e novas formas de sobrevivência. “É trabaiam na terra

dos outros, trabaia arrendados, né? Outros dá arrendados, outros dá só por pasto,

quando antes de termina aquela lavoura já colocam os bichos dentro, outros

trabaiam de meia... a vida é essa”. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).

Historicamente, a perda da terra sempre provocou permanente

deslocamento de famílias e mudanças nas formas de organização. Mesmo

ocupando novos espaços e obrigados a reconstruírem o modus vivendi, mantiveram

os elementos centrais das formas tradicionais de convivência social. Os diversos

grupos que saíram de Pankararu, Pernambuco, e que se encontram nos estados de

São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Alagoas, têm como fonte e referência à

organização social em Brejo dos Padres. E, com isso, as comunidades indígenas

mantêm características fundamentais do modo de vida Pankararu.

O sistema de vida indígena da economia de partilha e distribuição entre os

seus membros, a alimentação que é proporcionada pelas famílias ou comunidade

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responsáveis pelo ato religioso, o transporte para participar de rituais em outras

comunidades e no apoio aos necessitados no cotidiano são organizados

coletivamente.

Ao longo dos séculos, de Pankararu a Karuazu, com a falta da terra e a

penetração da economia de mercado no entorno dos aldeamentos, parcelas

significativas dos indígenas foram paulatinamente transformados em mão de obra

para o trabalho na agricultura e na pecuária. Adaptados às formas de trabalho da

economia de mercado, de onde tiravam o sustento das famílias e com a

mecanização do campo, a mão de obra indígena tornou-se dispensável, obrigando-

os a descobrirem novas formas de trabalho.

Tratando-se das possibilidades de trabalho da economia de mercado, o

pajé Antônio compara a situação do indígena em Pankararu e em Pariconha,

demonstrando a dependência dos indígenas em vender a mão de obra no mercado.

Porque aqui tem ganho, Jorge. Tem ganho. Da pra ganhar, o pessoal aqui aposentado, se tem um serviço, se tem um profissional, um pedreiro já manda trabaiá, tem uma rocinha já coloca um para cuidar, não come só, né? Lá em Pankararu quer nem saber, só quer saber de quê? Uns já estão firme lá, e lá vão se interessar em colocar alguém pra trabaiá? Claro que não! Aqui não! Aqui não falta ganho pra cabra trabaiá. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).

Com a escassez da terra, até mesmo para o sistema de arrendamento e de

meia, os indígenas tornaram-se dependentes da economia de mercado. O adulto e o

idoso de alguma forma mantêm-se na terra ou assistidos pelos programas sociais, a

previdência social e o Programa Bolsa Família. A alternativa para o jovem foi

desenvolver novas formas de trabalho – “Todos tem uma profissão. Eu mermo

trabalho de pedreiro”, buscando a formação profissional disponíveis no mercado –

“Cada um tem que ter uma profissão”.

Trabaiam na roça. Sobre a profissão, tem esses cabra novo, né? Todos tem uma profissão. Eu mermo trabalho de pedreiro. Cada um dos meus irmãos tem uma profissão, de carpinteiro, outro é pedreiro... meus fios também hoje são profissional, são mais carpinteiro, só não é pedreiro. Cada um tem que ter uma profissão, pois hoje se não tiver sua profissãozinha num arruma coisa não. Tem que ter uma profissão, né? (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).

Para as mulheres, sem perspectiva imediata – “a mulé não tem profissão

de jeito nenhum -”, a condição é manterem-se em casa cuidando dos afazeres

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domésticos e filhos, enquanto que para as jovens é vender a mão de obra como

empregadas domésticas na região ou em grandes centros urbanos do país,

especialmente no estado de São Paulo.

Agora, a mulé não tem profissão de jeito nenhum. A mulé aqui sempre trabaiam na roça, fazem um servicinho, um e outro. Porque não tem ajuda, porque aqui devia ter uma ajuda da FUNAI, mermo. Ela devia fazer as coisas, um projeto pra mulé aprender que nem a minha fia e minha netas que fizeram... tem até aí um projeto com a FUNAI, que a minha fia pediu e eles foi feito e até aqui nunca foi aprovado. Que ela queria umas máquina, ela queria costurar, né? Aprender a costurar a bordar, pro pessoal num ficar parado. Um local, de manhã cuidam da casa e de tarde iam aprender qualquer coisa, para viver. Mas, até aqui nunca chegou, já está com um ano e tal, mais de ano. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).

Assim, a expropriação da terra e os constantes deslocamentos à procura

de espaço e de trabalho, provocaram uma profunda e drástica dependência da

população Karuazu da economia de mercado e das políticas públicas,

particularmente de assistência. “Agora sim, nordestinos e indígenas são a mesma

coisa, escravos. Só existem agora dois referenciais a serem sonhados: patrão, que

domina o tempo e espaço, e o escravo dominado em seu tempo e seu espaço”.

(Apud PORANTIM, 2012, p.3).

Além da realidade econômica, duas questões se destacam em nível social,

cultura e religioso. A primeira, em razão da falta de terra, os indígenas não têm onde

trabalhar, de onde tirar o croá para tecer as roupas dos praiás, construir as ocas e

colher as plantas medicinais. Por outro lado, à medida que mantêm contatos com

outros grupos sociais, acabam transportando costumes e valores para dentro da

comunidade até então desconhecidos da população nativa, provocando assim

conflitos morais, culturais e religiosos.

Até o motor das nossas casa é o branco ao redor, o motor da nossa casa..., não plantemo um pé de árvore. E com a medicina, se você precisa de ter uma medicina, não tem nem onde é que se planta. Não tem onde você exerce a medicina, não tem onde plantar pra medicina... que o índio hoje, é por isso que o índio vevi sofrendo hoje muito, sendo cativo a esses outros órgão que tão entrando aí. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.1).

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E o pajé afirma: “Isso aí não pode! Isso, quer que queira, tem que ter seu

terreno para você plantar sua cultura medicinal, para fazer o remédio, né? Isso que é

muito importante a gente ter aqui, ter a terra”. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.1).

3.4.8 Karuazu e o não indígena: conflito e negociação

A relação dos indígenas com a população não indígena, em todas as

regiões do Brasil, da colonização aos dias atuais, dependendo do período de

contato, das condições políticas e dos interesses recíprocos, é marcada por uma

convivência de conquista, conflito, compadrio e desconfiança.

Durante a colonização o povo Pankararu foi aldeado e catequizado pelos

missionários católicos e, posteriormente, inseridos no mercado de trabalho. Como já

analisado durante o trabalho, a relação foi marcada pela imposição do modelo

eurocêntrico sobre a população nativa, em nível social, cultural, econômico e

religioso, resultando na perda da terra e geração da perseguição, discriminação,

violência e a apropriação de costumes, valores religiosos e meios de produção

econômica.

Ao longo do contato com a população denominada pelos indígenas de

brancos - não indígena -, é identificada pela perda do patrimônio material; por outro,

nas condições impostas dadas, pela busca por uma convivência negociada dos

indígenas com não indígenas. Na lógica das minorias étnicas, as consequências são

sempre negativas para a população indígena.

O povo Karuazu, em Campinhos e Tanque, sente-se encurralado por todos

os lados pela presença da população não indígena. Mesmo assim, observa-se a

tentativa diplomática de dissimulação. “O pessoal, o branco sempre respeita nós

também, mas não é que nem o índio, né?” (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p.5). Mas

logo adiante, o pajé Karuazu admite que a convivência com os brancos é conflituosa

– “Índio contra índio vevi mais melhor do que com branco.” e que preferia estar

vivendo somente com os parentes indígenas, ter escola para as crianças dentro da

comunidade e a professora indígena – “precisa fazer uma escola pra nossas

crianças num ficar estudando no meio dos branco”. Jean-Louis explica: “A partir do

momento em que olhamos não mais as categorias de percepção da realidade, mas

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238

o sistema de valores éeticos, em resumo, valores políticos e sociais, nos quais nos

situamos, as coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece”

(DURAND, 1999, p. 41).

A reivindicação do pajé tem um objetivo específico, o da manutenção dos

costumes e reprodução da cultura – “você perde muito coisa da sua cultura

indígena”.

Porque índio pra índio sempre se dá bem. É que lá, eles respeitam nós, nós respeita o branco também, mas não é que nem índio contra índio. Índio contra índio vevi mais melhor do que com branco. Com branco sempre tem uma piada, né? „Ah aqueles índios querem terra. Vão comprar terra pra ter terra‟. Sempre eles alegam isso, né? „Vão comprar terra!‟ Aqui mermo tem um vizinho aqui, que tem um monte de terra, tem essa terra aqui cheia de casa, beirando o terreiro... Nós até falemo com o prefeito aqui pra comprar, esse terreno aqui pra fazer uma escola, precisa fazer uma escola pra nossas crianças num ficar estudando no meio dos branco. Porque o índio no meio dos branco num é que nem você está na sua cultura, você perde muito coisa da sua cultura indígena, porque no seu povo, você vai ter uma professora índia, de manhã você tem que dá função a eles, sua cultura de manhã na escola, meio-dia, a tarde, tudo se cria, para não perder sua cultura. E nós falemo com o prefeito Fabiano – „vamo lá comprar um terreno para vocês fazerem qualquer coisa para vocês‟. O cara só porque soube que o prefeito pensava em comprar um pedaço de terra de lá dele, o cara, ave Maria! Endoideceu. Mandaram chamar lá que disse que queríamo tomar a terra dele... – não, não vamo tomar a terra dele, foi o prefeito que mandou saber se ele vendia pra fazer uma benfeituria pra nosso povo, porque hoje o índio sempre não há sentimento de fraco não. Porque de qualquer maneira nunca dá certo. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 5).

Tendo em vista o contexto dos povos indígenas do sertão de Alagoas,

inseridos com a sociedade nacional ao longo de mais de 500 anos, a questão

integração foi colocada desde o primeiro momento do contato pelos agentes da

colonização até a promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi desenvolvida

uma política indigenista integracionista, inclusive na legislação no período

republicano79. Entretanto, na perspectiva indígena, esse processo nunca foi

assimilado, e, ao contrário, sofreu com a perseguição, a discriminação ou a

negociação para manter a identidade frente à fronteira da sociedade brasileira.

Mesmo depois de mais de 500 anos de contato com a sociedade do

entorno, a chamada sociedade nacional, os indígenas procuram uma convivência

79 Artigo 1º da Lei 6.001/73

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239

negociada, mas se organizando e lutando para manter o espaço e o tempo indígena

separados do restante da sociedade não indígena. Esse é um dado fundamental,

que contrataria toda a perspectiva imposta pela sociedade nacional, que tenta

descaracterizar o indígena como caboclo: “... Nem índio e nem „branco‟. O que era

deixou de ser e o que não era veio a ser. Um ser sem identidade e sem história,

fruto exclusivo da vontade do poder em dominar e subjulgar”. (PORANTIM, 2012, p.

3).

3.4.9 Identidade étnica: decisão política e mudança social

A análise dos dados coletados sobre o povo Karuazu aponta para a

compreensão de que este grupo étnico existe com a sua identidade diferenciada

anteriormente delimitada entre os seus membros e na relação com os outros

indígenas. Isto demonstra e explicita por que a afirmação da identidade étnica é um

ato político diante do outro, o diferente de si. (FERREIRA, 2002).

O assumir a identidade étnica para o povo Karuazu frente aos povos

indígenas e à sociedade nacional, foi uma atitude de afirmação política, para adquirir

o reconhecimento dos direitos constitucionais e garantia a melhoria da qualidade de

vida da população.

O posicionamento da comunidade, primeiramente, produziu imediata

satisfação e autoestima nos membros, no sentido de poderem expressar o que era

vivenciado internamente. O pajé Antônio expressa:

Fico muito feliz, né? Fico muito feliz aqui na minha oca, na minha rede. Fico muito feliz aqui. Não tem nada a ver eu ir pra lá no meio dos branco, fico feliz deitado na minha rede. Ir pra Pankararu é um dia feliz, onde vou visitar meus parente... fico muito feliz. (ANTÔNIO KARUAZU 2012, p. 17).

O assumir identitário também implicou em mudanças sociais e de respeito

na relação com os parentes indígenas de outros povos. O primeiro passo, assumir o

ser indígena Karuazu:

Ser Karuazu é um respeito pra nós, porque o Karuazu valorizou nosso Encantados, né? Já fazem parte dos Encantado porque é da Karuazu e tem que ter respeito. Respeitando os Karuazu estão respeitando ele também, pois são Karuazu, né? (ANTÔNIO, 2012, p.17).

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240

Primeiro, obter o reconhecido dos outros povos e, depois, poder se

apresentar na sociedade nacional com a própria identidade.

Primeiro foi o conhecimento de outros povos, pois antes a gente só sabia andar por aqui mesmo, pelo Brejo, no meio do mato. Hoje, já temo conhecimento, fomo pra Maceió, pra Brasília. Agora o povo já trata a gente indígena com respeito, né? Pra gente é uma coisa muito importante. (ANTÔNIO KARUAZU, 2012, p. 17).

E conclui dizendo que a cultura Karuazu, além de todos os elementos que

a compõe, afirma: “é o Toré, né? Que já faz parte do Karuazu”. (2012, p.17). A

cultura Karuazu é o que identifica o ser indígena Karuazu: a religião, os ritos, as

danças, os costumes e os valores vivenciados pelos membros do grupo. Ou seja, o

que veio da origem Pankararu, o que foi apropriado de outros povos indígenas e da

sociedade nacional e ressignificado ao longo de sua história de contato, conflito,

êxodo, convivência com o outro e formação da identidade foi ressignificado como

identidade Karuazu.

3.5 Katökinn: o sonho do etinônimo Katökinn e o Rei dos Peixes

A presente etapa do trabalho é uma análise do sonho revelado pela

indígena Maria das Graças, cacique Nina, do etinônimo katökinn e do ritual Rei dos

Peixes. Para a fundamentação científica foram utilizadas as contribuições do

psicanalista Jung na análise do sonho e a do antropólogo Claude Lévi-Strauss na

análise do ritual Rei dos Peixes a partir do relato de Alfred Métraux sobre o mito da

serpente Lik.

Nesta perspectiva, o sonho é a revelação da realidade cotidiana,

armazenada no inconsciente, vivenciado, celebrado e atualizado na prática dos

rituais, os Encantados. E, no contexto de perseguição das práticas religiosas

indígenas e da negação da identidade étnica, o sonho e o ritual revelaram a garantia

da origem e a continuidade do tronco Pankararu e a afirmação da identidade

Katökinn.

A análise do sonho que revelou o etinônimo katökinn, tem como objetivo

identificar o processo de afirmação da identidade étnica no contexto de

ressurgimento dos povos indígenas do Nordeste a partir da década de 1990,

particularmente em Alagoas.

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241

No final do século XIX, atravessando o rio Moxotó, chegaram à região

sertaneja grupos indígenas oriundos do sertão pernambucano, mais especificamente

do aldeamente Brejo dos Padres, localizado nos atuais municípios de Petrolândia,

Tacaratu e Jatobá, fugindo da violência e da fome, na busca de terra para trabalhar

e se reproduzirem física e culturalmente.

As primeiras famílias foram ocupando as serras de Água Branca, Inhapi e

Mata Grande e as regiões férteis da planície sertaneja. A cada família que se

localizava, mais parentes iam se juntando. Com o tempo, os coronéis – senhores

proprietários de grandes extensões de terra e de grande poder político – começaram

a expulsar e perseguir os indígenas, obrigando-os a se transformarem em mão de

obra nos currais e nas áreas agricultáveis. Aos poucos as terras foram reduzidas

dando lugar às fazendas de gado e povoamentos urbanos.

Os rituais indígenas foram perseguidos e demonizados, ficando reduzidos

a práticas familiares escondidas. Em alguns lugares, a exemplo do atual povo

Katökinn, para continuar praticando os rituais, o pajé foi obrigado a pagar taxa a

policiais militares e se inscrever em associações umbandista e espírita.

Mais de século, os grupos indígenas do sertão de Alagoas foram

considerados extintos, reservando-se ao anonimato ou agrupados à etnia

Pankararu. Depois do reconhecimento étnico Geripankó, em 1980, a organização

dos núcleos familiares e as lideranças mais antigas foram orientando os seus

parentes a se organizarem como povo, criando suas próprias estruturas

organizativas e seus rituais. Em 2001, o grupo liderado pelo pajé Arvilino e sua filha

Maria das Graças se organizou e começou o processo de reivindicação do

reconhecimento da identidade étnica.

O sonho de Nina de revelação do etinônimo Katökinn resgata a história do

seu povo, confirma a origem e a pertença ao grupo Pankararu, como também dá a

garantia de grupo etnicamente diferenciado dos demais existentes na região, na

ritualização do segredo do Encantado Rei dos Peixes. Utilizando também a Análise

do Discurso, coloco como base o conceito de Orlandi: “Está aí a possibilidade de o

sujeito transitar por diferentes formações discursivas, a de ser habitado por

diferentes discursos, pois isto é o resultado de um sujeito histórico que é afetado

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242

pela memória”. (Op, cit., p. 80). O sonho é resgatado como memória histórica

discursiva e utlizado politicamente na perspectiva da afirmação étnica.

3.5.1 Nina Katökinn: a história da personagem A indígena Maria das Graças, conhecida na comunidade por Nina, assumiu

o posto de Cacique do povo Katökinn, desde que o grupo resolveu assumir perante

a sociedade nacional a identidade étnica, em 26 de setembro de 2001. Desde

quando seu pai, Sr. Arvilino80, era o pajé, Nina assumiu a tarefa de representar as

reivindicações do povo, participar de encontros com órgãos governamentais e

entidades não governamentais, além das atividades religiosas e políticas com os

povos indígenas do estado de Alagoas e do Brasil.

Antes de tornar-se cacique, Maria das Graças viveu por muitos anos fora

da convivência com a comunidade indígena, envolvida com as atividades de

comerciante, motorista e cobradora de ônibus coletivo em cidades da Zona

Canavieira e na capital de Alagoas, Maceió. De volta para a comunidade, organizou

um mercadinho com gêneros alimentícios e bebidas, na periferia da cidade de

Pariconha. Além das atividades comerciárias, Nina trabalha com construção de casa

de alvenaria, pintura, criação de animais, agricultura e casa alugada.

Na convivência com os pais aprendeu as tradições religiosas e a realização

dos trabalhos de Mesa e dos Encantados. Desde o início, com o seu pai, conduzia

os rituais religiosos. Com o falecimento do pai, a comunidade indicou como pajé

Adelino Aprígio dos Santos, 68 anos, que agora conduz as celebrações, os rituais

dos praiás, o toré e o Rei dos Peixes, em conjunto com Nina.

Segundo relato dos mais velhos, as famílias indígenas chegaram à região

por volta do século XVIII oriundas de grupo Pankararu, do Brejo dos Padres, estado

de Pernambuco, municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. A convivência com

aos senhores proprietários das terras – a posse era feita por doação da Coroa - se

deu nas formas de posseiro, arrendatário e, posteriormente, de trabalhadores

subjugados.

80 Juvino Henrique da Silva.

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À medida que foram perdendo as terras, tornaram-se moradores da

periferia ou migraram em busca de terra e de emprego, transformando-se em

meeiros, arrendatários, bóia-frias, empregados domésticos e peões nas fazendas.

Na condição de caboclo, classificação dada pelas autoridades e população

do entorno das aldeias, passaram à condição de não indígena. Roberto Cardoso de

Oliveira, em uma perspectiva dos grupos étnicos amazônicos, define:

Porquanto se constitui para o branco numa população indígena pacífica, „desmoralizada‟, atada às formas de trabalho impostas pela civilização, e extremamente dependente do comércio regional. Em suma, é o índio integrado (a seu modo) na periferia da sociedade nacional, oposto ao „índio selvagem‟, nu ou semivestido, hostil e arredio. (OLIVEIRA, 1963, p.117).

Oliveira, analisando o censo realizado pelo governo brasileiro em 1940,

afirma:

A inclusão e contagem dos índios como „caboclos‟ nos censos do século passado e sua substituição por „pardos‟ neste século viria tão somente a confirmar os pressupostos quanto à sua desapropriação e insignificância no presente (OLIVEIRA, 1999, p.130).

Na mesma perspectiva de compreensão do fenômeno caboclo, Lindoso

demonstra que era dada como uma denominação preconceituosa e injuriosa.

Sabemos que o apelativo cabloco ou cabocolos era o apelativo injurioso dado aos colonos casados com índia. Tanto que, no alvará de lei, datado de 5 de abril de 1755, o rei proibia o injurioso apelativo. O alvará diz: „E outro sim prohibo que os meos vassalos casados com Índias, ou descendentes, sejam tratados com o nome de Caboucolos, ou outro semelhante, que possa ser injurioso‟. (LINDOSO, 2011, p. 50-51).

Nessa condição, os povos indígenas do Nordeste foram destituídos da

definição de indígena e, portanto, recaiu sobre eles mais uma carga de preconceito

e perseguição. Na história dos 500 anos de colonização os indígenas foram

definidos como selvagens e primitivos e, nessa condição, foram tratados

oficialmente como animais.

Depois da presença dos europeus, a desintegração social, política,

econômica, cultural e religiosa, correlata com os valores morais, éticos e simbólicos,

produziu traumas profundos no seio da cosmologia indígena. Frente aos novos

espaços, entre desterritorialização e reterritorialização, as práticas religiosas

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culturais, econômicas e políticas foram reconstruídas e ressignificadas

traumaticamente.

Confinados geográfica e culturalmente, a reconstrução religiosa dos mitos

e ritos dá-se no cativeiro, visto que não era mais possível celebrar e cultuar suas

entidades de forma espontânea e aberta, muito menos o ensinamento das tradições

aos filhos e netos. Na condição de opressão, o conflito operou decisivamente em

todos os níveis, seja na disputa pela terra ou pela sobrevivência, mas também no

campo simbólico. No campo religioso, as entidades indígenas se confrontavam e se

conflitavam entre os grupos étnicos internos, as entidades católicas, e,

posteriormente, as de origem africana.

A convivência com os elementos étnicos das mais diversas culturas,

considerando principalmente a imposição católica, visto que renegava os valores

indígenas e impunha os seus valores, a cosmologia indígena foi obrigada a

reestruturar-se na condição de negação da identidade e submissão ao modelo

imposto.

No contexto de abertura política às questões étnicas e sociais

impulsionadas pelas comemorações oficiais do governo brasileiro no período dos

500 anos, secularmente relegados à condição de caboclo e sertanejo ou

simplesmente de não identidade, os povos indígenas dos Nordeste foram buscar

nas entidades espirituais dos antepassados a memória para se afirmar como grupo

diferenciado da população regional.

A condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente. Constituem e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimento. Essa incompletude atesta a abertura do simbólico, pois a falta é também um lugar possível. (ORLANDI, 1988, p. 52).

No contexto reivindicatório de grupos étnicos considerados extintos e/ou

inexistentes até então no Nordeste brasileiro e, particularmente, em Alagoas, como

grupo com etinônimo próprio, lideranças de famílias indígenas consultaram seus

líderes antigos e foram orientados a se organizar como grupo diferenciado em nível

social, político e religioso.

As famílias indígenas residentes no bairro Alto de Pariconha, até então

organizadas com o povo Geripankó e sob as lideranças do pajé Elias e do cacique

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Genésio, foram orientados também a se juntarem ao povo Karuazu de Campinhos e

Tanque.

Segundo Nina, o seu pai não aceitou a se juntar aos Karuazu, por se

considerar diferente etnicamente, e resolveu apresentar o seu pajé, cacique e

conselho indígena. Ainda sem um nome de identificação, consultaram a memória

dos antepassados e Encantados. O etinônimo Katökinn apareceu através de sonhos

transmitidos pelos Encantados, ocorridos mediante várias etapas. Encontram-se

duas versões que foram registradas pelos relatos da indígena Nina.

O antropólogo Siloé Amorim, em sua dissertação Índios Ressurgidos: A

Construção da Auto-Imagem – Os Tumbalalá, Os Kalankó, Os Karuazu, Os Catókinn

e os Koiupanká, relata:

Na primeira apareceu parte do nome em tábua pintada de branco; na segunda, pedindo orientação aos seus Encantados, Nina solicita confirmação do nome da aldeia que aparece completo noutro sonho; nos sonhos seguintes, recebe a aprovação do „rei‟ dos índios como a cacica e recebe orientação para fazer seu arco e flecha. Índio que é índio carrega seu arco. (AMORIM, 2003, p. 55-56).

O outro registro foi coletado por mim em 2000, ano do ressurgimento do

grupo, descreve o sonho que da origem ao nome katökinn:

Na primeira etapa, apareceu parte do nome, KATO, escrito numa tábua branca. Na segunda etapa, pedi orientação aos Encantados, solicitei a confirmação do nome da aldeia que apareceu completo em outro sonho. Nos sonhos seguintes recebi KATÖKINN (grafia registrada por Nina em um caderno) a aprovação do Rei dos Índios. Recebi a orientação para fazer o arco e fecha. Índio que é índio carrega seu arco. (VIEIRA, 2000).

Os Encantados, para os indígenas do tronco Pankararu, são definidos

como “as forças da natureza” ou, ainda, como sendo os espíritos dos antepassados,

que vivem em torno do que chamam o “Grande Deus Tupã”.

A perseguição, imposição monocultural e a escravização da mão de obra,

levaram as culturas indígenas à submersão e invisibilidade cultural. Com o

ressurgimento, apropriam-se e reconstroem palavras e adereços de povos diversos,

ressignificando-os de acordo com as demandas postas pela sociedade envolvente,

como também internamente enquanto afirmação da identidade étnica.

Segundo Lindoso, o padre-missionário Luis Vincencio Mamiane della

Rovere, membro da Companhia de Jesus, foi enviado ao Brasil junto a missões dos

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indígenas kiriri, na segunda metade do século XVII. Entre outras obras, escreveu o

Catecismo Kiriri, com o objetivo de formar “o ser catecúmeno do sertão” (2011, p.

60). E ainda, como objetivo:

Enquadrar o sistema de parentesco tapuia-kiriri, acima esboçado pelo padre Mamiane, a um sistema de parentesco único que fosse um sistema de parentesco tapuia-cristão, representava uma grande dificuldade. A própria ideia de Deus que aparece no sistema de parentesco tapuia-cristão, o padre Mamiane expressa com o vocábulo tupã, tirado da língua guarani, e que significa um fenômeno natural - o raio, o relâmpago. Os índios do sertão, que fosse tapuia-kiriri, não tinham a palavra Tupã, que significa raio, não existe no kariri, para expressar a ideia de deus dos cristãos (LINDOSO, 2011, p.68).

E completa o referido autor: “Esta foi uma invenção jesuítica dos padres-

linguístas, como padre Montoya, dos Sete Povos das Missões Orientais, e do padre

José de Anchieta, em sua catequização dos índios tupi-guarani da costa do mar que

vai da Cananeia às praias do sul do Espírito Santo”. (Idem).

Outro fato que serve também de sustentação para a afirmação acima,

ocorreu em período recente quando dos encontros dos povos indígenas de Alagoas,

organizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e

Espírito Santo (APOINME). Naquela ocasião, o indígena Cícero Santana, membro

do povo Xucuru-Kariri, diante da evocação das forças de tupã por alguns indígenas,

comentou espontaneamente o termo tupã de forma jocosa: “tupã é nome dos

cachorros dados pelos sertanejos”81.

O resgate e a análise histórica do termo no contexto catequético do padre-

linguista e do comentário do Xucuru-Kariri confirmam a não presença de tupã

enquanto designativo de uma entidade divina dentro da cosmologia kariri, visto que,

as expressões religiosas estão inseridas na totalidade da vida indígena. E, por isso,

só é possível compreender a utilização no contexto da catequese jesuítica e na

apropriação dos indígenas como forma de afirmação política na diferenciação étnica.

Na pesrpectiva da AD: “O sujeito, ao retornar a discursos pertencentes a outra(s)

formação(s) discursivas, sempre realiza escolhas relevantes ao seu discurso, ao

tempo em que se marca pela alteridade, pela historicidade, apesar da constante

81 O sertanejo denomina prioritariamente seus cães e candelas com nomes de peixes – surubim e piaba - e por fenômenos da natureza, o caso tupã – sem nenhuma referência a qualquer divindade.

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busca pela unicidade”.(FLORÊNCIO; MAGALHÃES; SOBRINHO; CAVALCANTE,

2009, p. 79).

3.5.2 Análise do sonho Katökinn

Analisando os elementos componentes no sonho relatado por Nina,

identifica-se que, subliminarmente, a personagem carrega em sua trajetória histórica

a opressão política, religiosa, de gênero e social vivenciada ao longo dos séculos

por seu grupo étnico desde os primeiro contatos com a colonização. O impacto do

confronto suscitou a ansiedade de reconstruir-se como povo etnicamente

diferenciado dos demais povos da região.

Didaticamente, em cada etapa do sonho, identifica-se no radical kato a

relação com o etinônimo Pankararu, como também a semelhança com os

etinônimos de outros povos originários do tronco Pankararu. A sílaba ka é um

elemento constitutivo do vocábulo Pankararu, que demonstra o pertencimento à raiz

indígena e a ancestralidade Pankararu.

E a revelação, segundo a cacica Nina, é registrada em uma tábua branca.

Esse fato faz lembrar na história da filosofia o pensador grego Aristóteles que

acreditava que o conhecimento se desenvolvia através do contato do homem com o

mundo sensível; antes disso, o homem era tábula rasa, expressão que foi

disseminada pelo empirismo, afirmando que a mente humana seria preenchida

paulatinamente através do contato com o mundo sensível. Esse argumento foi

aplicado pelos missionários no trabalho catequético com as populações nativas

brasileiras. Escreve Lindoso: “a filosofia que orientava o modelo catequético das

missões volantes se resume, de um modo preciso, no postulado anchietano de que

os índios „são tanquam tabula rasa‟ para imprimir-lhes todo o bem” (2005, p. 127). E

completa: “O que queria com a catequese-doutrina era encher com a cristianização

apenas teológica a tabula rasa da indianidade da precedência indígena” (2005,

p.128).

No caso do sonho indígena, expresssão mítica da revelação de algo, Nina

carrega-o na memória oculta e submersa de seu grupo.

O silenciamento imposto em determinadas situações não se sustenta, em virtude do constante movimento do sujeito que, em sua

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dispersão constitutiva, ultrapassa os limites do dizível, para produzir sentidos outros que lhes são proibidos, mostrando, então, o movimento constitutivo entre as tênues fronteiras das formações discursivas. (YUNG, 1987, p. 83).

E, ao contrário do que estava contido no conteúdo doutrinário dos

missionários, lê-se uma ressignificação do conteúdo catequético, onde a tábua

branca é preenchida com o resgate da memória histórica da matriz étnica, enraizada

na tradição dos antepassados.

A memória indígena não se encontra escrita pela grafia, mas encontra-se

armazenada no subconsciente coletivo do grupo social, atualizada pelos mitos,

conservada na prática cotidiana das celebrações e dos rituais e transmitida através

da oralidade consciente e na produção do imaginário inconsciente e onírico.

Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento passado para se obter uma lembrança. É preciso que essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que se encontram tanto em nosso espírito quanto nos dos outros, porque eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente, o que só é possível se eles fazem e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempore „conhecida e reconstruída‟. (HALBWACHS apud ACHARD, 1999, p. 35).

Na história das sociedades indígenas, o arco e a flecha são ferramentas de

caça e pesca e instrumentos de guerra contra os inimigos; nos dias atuais, foram

substituídos por instrumentos industrializados, subsistindo no imaginário como

instrumento de luta pela identidade étnica e de guerra em defesa dos direitos

indígenas.

3.5.2.1 O sonho Katökinn analisado

A partir de 2001, objetivamente, o sonho do etinônimo Katökinn significou a

apresentação e afirmação da identidade do grupo, o fortalecimento da formação

social, política e religiosa e a retomada da luta do povo pelo reconhecimento étnico e

do direito à terra, educação, saúde e assistência social.

Como entender, então, o seu significado do ponto de vista analítico?

Segundo Jung, “o sonho retrata a situação interna do sonhador, cuja verdade e

realidade o consciente relata em aceitar ou não aceitar de todo”. (1987, p. 14).

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Nesta perspectiva, observa-se que no inconsciente das famílias em estudo

encontram-se a história da colonização, o confinamento no aldeamento Brejo dos

Padres, o conteúdo catequético missionário, o trabalho servil e a escravização, a

dispersão e retomada de reagrupamento étnico das famílias. Os grupos foram

arrancados do habitat e levados para um local comum, obrigados a conviverem com

grupos de troncos linguísticos e culturais os mais diversos, e, até, possivelmente

inimigos. A catequese dos missionários católicos, como parte do empreendimento

da Empresa Colonial, caminhava junto com a imposição do modelo de sociedade,

imposição do Deus cristão, dos santos católicos, dos ritos e do projeto de

expropriação das terras e preparação de mão de obra indígena, com o objetivo de

atender as demandas do sistema Colonial.

Os sonhos podem exprimir verdades implacáveis, sentenças filosóficas, ilusões, desenfreadas fantasias, recordações, planos, antecipações, e até visões telepáticas, experiências irracionais e sabe Deus o que mais. (...) O modo específico de o inconsciente se comunicar coma consciência é o sonho. (YUNG, 1987, p. 19).

No sonho, ao mesmo tempo em que se encontra a história passada

carregada pelos traumas provocados pelos conflitos impostos pelo imperialismo

colonial e as consequências advindas da reterritorialização geográfica e

ressignificação cultural, religiosa e simbólica, carrega também o anseio, primeiro de

uma identidade perdida, depois da autonomia como grupo social.

Considerando essa análise como sustentação da reconstrução da

identidade do povo Katökinn, expressa no dizer de Jung:

Não hesito em afirmar que um sonho, sem tomar o conhecimento da situação consciente, nunca poderá ser interpretação com um mínimo de segurança. É só a partir do conhecimento da situação consciente, que se pode descobrir que sinal dar aos conteúdos inconscientes. E o sonho não é acontecimento isolado, inteiramente dissociado do cotidiano e do caráter do mesmo. Se ele nos aparecer assim, será unicamente por causa da nossa não-compreensão, da nossa ilusão subjetiva. Na realidade, há entre o consciente e o sonho a mais rigorosa causalidade e uma relação precisa em seus mínimos detalhes (YUNG, 1987, p. 25).

Ao contrário do que possa parecer no texto, não pode e não se quer com

isso analisar o sonho de forma simplista e mecânica. O sonho representa uma

complexidade de fatores de uma determinada realidade histórica, social, religiosa,

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cultural e ideológica absolvida pelo inconsciente e expressa subliminarmente por

caminhos que nem sempre conduzidos pela lógica da racionalidade cartesiana.

A visão meramente causalista é demasiada acanhada e não leva em conta a essência do sonho, nem a da neurose. Ver no sonho unicamente uma possibilidade de descobrir o fator etiológico é colocar a questão de forma preconceituosa, e esquecer o principal da função do sonho. (YUNG, 1987, p.15).

Em conformidade com a fundamentação da análise teórica jungniana, a

realidade vivenciada historicamente pelo grupo indígena Katökinn, carrega e

expressa através do sonho os traumas criados pelo processo de confrontação dos

projetos cosmológicos e políticos; por outro lado, o sonho indica a nova realidade

social e política vivenciada pelos grupos indígenas emergentes. A revelação do

etinônimo Katökinn revelou a afirmação da identidade étnica e da autoafirmação,

enquanto grupo social, e como também a possibilidade de construção de um projeto

político.

3.5.2.2 Ritual do Rei dos Peixes

A identificação e definição do etinônimo Katökinn deram ao grupo uma

identidade étnica assegurada na raiz Pankararu e passada oralmente pelos espíritos

dos antepassados. A relação com os antepassados garante a continuidade com o

presente. O Rei dos Peixes é a atualização através dos Encantados da cosmologia

mítica e ritualística. O „moço‟ do Rei dos Peixes é identificado no praiá traseiro ou

coice do cordão, como uma espécie de manto azul nas costas com o desenho do

peixe. Ele é o dono do terreiro.

Geograficamente, o povo Katökinn está localizado na região do semiárido

nordestino, com extensos períodos de seca e com temperaturas médias elevadas

entre 28ºC a 45ºC. O período chuvoso concentra-se entre três a quatro meses do

ano, obrigando-os a deslocarem-se por quilômetros em busca de água potável para

o consumo humano e animal. A caatingueira é a vegetação adaptada às condições

naturais do semiárido.

De início, surpreendeu-me a presença constante da relação dos indígenas

do sertão de Alagoas com a mitologia marítima, com a água e com o peixe.

Entretanto, na história mais recente desses grupos identifico o permanente

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deslocamento pora regiões férteis, várzeas e margens dos rios São Francisco e

Moxotó. Lindoso retrata o indígena do sertão, da seguinte maneira:

Os índios do corso, aqui considerados, eram os índios que faziam o sertão. Mas estimavam-se, com essa designação, os índios do nomadismo sertanejo, que descendo da Gurgueia para o sul, encontram a frente pioneira de conquista e colonização na margem esquerda do rio São Francisco, a famosa frente dos currais de boi e vaqueiros-tangerinos (...) Eram os índios que, no século XVII, tinham feito uma guerra em defesa de seus campos de coleta e caça, nas manchas de savanas herbáceas do Grande Sertão. (LINDOSO, 2011, p. 47).

Outra informação de caráter geográfico aponta que o Sertão, em épocas

passadas, foi mar. Como afirma o autor acima citado, “O Grande Sertão, pois,

encerra em sua paisagem uma geografia do imaginário”. (Op. cit., p. 13).

E continua:

Tudo o que a geologia lembra é que o Grande Sertão já foi fundo de imenso oceano. E, hoje, no sertão, o mar é apenas o mar de um imaginário geológico. Só a geologia mostra este mar incógnito nos arquivos das camadas disparatadas das ruínas geológicas. O mar que a geologia criou conservando os testemunhos das vidas que esse mar, mais que antigo, por sua vez criou. Pois o mar do sertão é, agora, um mar geológico. Um mar que apenas a geologia sertaneja revela. E que se nota quando cuidadosamente se observa, como fez o geólogo baiano Teodoro Sampaio, que cada serra de sertão, cada planície semiárida se estende como uma imensa cobra mansa, e adormecida, ao sol cálido e no chão seco. (LINDOSO, 2011, p.13).

O imaginário da mitologia indígena, armazenado no inconsciente produzido

na referência das entidades que se alojam nas profundezas do fundo do mar, das

lagoas e dos rios, os indígenas descendentes do povo Pankararu afirmam encontrá-

los e celebrar seus rituais.

É nesse contexto que se encontra o ritual do Rei dos Peixes. O ritual teve

sua origem em uma pedra encontrada dentro de um peixe. Segundo o relato do pajé

Adelino dos Santos, dono do Encantado, encontrou uma pedrinha dentro da barriga

de um peixe na grande lagoa que fica em torno da comunidade, que para os

indígenas era a semente do Encantado.

A explicação do pajé é a resposta oficial. Entretanto, considerando a

história do povo Katökinn e o contexto de negação da identidade, observa-se no

discurso uma construção discursiva como resultado da relação discursiva constituída

entre o indígena e o outro, o branco. Na relação com o diferente de si, o indígena

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cria o discurso que atende a curiosidade do outro, sem revelar o real sentido da

ciência, a semente. Para Orlandi: “o discurso é efeito de sentidos entre locutores”.

(Op. cit., p.21).

A semente do Encantado – ou o espírito do antepassado - aparece aos

indígenas através do sonho ou por algum elemento da natureza, a exemplo da

pedra. Para os indígenas o dono e fundador do Terreiro Katökinn é o espírito do pajé

Juvino Henrique da Silva, transformado espiritualmente no ritual Rei dos Peixes.

Esta interpreção pode ser confirmada com a informação dada por sua neta

Roseli Ferreira da Silva, quando falou do papel dos Encantados:

Diz que ajudam e até então na época que eu tava ali junto com meu avô, muitas vezes eu até interrogava e eu falava assim: vô, o senhor recebe eles e no dia que o senhor morrer, o senhor vai pra onde? Ele falava, minha filha, eu vou pro fundo do mar. (ENTREVISTA, 2013, p. 2).

E, continua:

Olha, como meu avô falou que iria morar no fundo do mar, eu acredito que eles estão neste local, eles estão em algumas pedras, não sei se vocês já ouviram falar de locas, então eu acho que eles habitam nesses lugares, matas fechadas, também tem, eu sei que tem, porque inclusive muitas das vezes a gente tinha o acompanhamento deles quando nois ia pra roça, fazer o plantio, depois roça longe que a gente tinha que passar por dentro da mata fechada, eles acompanhavam a gente, a gente não via, mas ouvia eles assoviar, muitas das vezes falava alguma coisa que a gente depois mesmo se sentia até agredido, entendeu? Com pedras, essas coisas assim, falar algo que desagrade a eles, então eu acredito que são vigários, matas fechadas, locas e águas, como nesse açude que nós temos ali, ali tem batalhão ali dentro, tem pessoas que já morreram ali, talvez por desobediência. (ENTREVISTA, 2013, p. 3).

A Semente do Rei dos Peixes foi encontrada na lagoa localizada próximo à

aldeia. A partir daí, todos os anos, durante a noite de sábado da segunda semana

de fevereiro, os homens - homens que usam roupas fabricadas do cipó do crauá e

encarnam o espírito do Encantado – se preparam para a realização do ritual. Ficam

reclusos no Poró, onde fazem a purificação e são proibidos de ingestão de bebidas

alcoólicas e relação sexual, são lavados com água preparada com ervas sagradas e

o uso do campiô - cachimbo usado durante os rituais e em momentos de

concentração espiritual, fabricado da madeira do angico ou jurema; todos que

fumam com o campiô, antes de colocar na boca fazem o sinal da cruz.

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A cerimônia externa começa por volta das 20 horas com a saída dos praiás

enfileirados puxadas pelos toantes – cantadores -, conduzidos obrigatoriamente

pelas lideranças, o pajé Adelino dos Santos e a cacica Maria das Graças, Nina.

Todos compenetrados, tocam o maracá e cantam a música do Rei dos Peixes:

“Chega, chega, chega Rei dos Peixes, no terreiro para trabalhar. Rei do peixe é do

homem é do fundo do mar e do crauá”.

Depois de realizarem a dança com os praiás no terreiro, com nove rodas

ao todo, divididas em três partes, chega o momento de servirem a alimentação para

todos os membros da comunidade: pirão feito com caldo de peixe, postas de peixe e

arroz. Primeiro a alimentação é abençoada por todos os praiás, um após outro, com

o balanço do maracá em cruz sobre os pratos já postos com o alimento. É entregue

para cada praiá o seu prato, sendo que o maior fica com o pajé que voltam para o

terreiro, em fila, e fazem novamente três rodas e entram para comer no Poró. Ao

final da entrada do último praiá, o pajé inicia a distribuição dos pratos para toda a

comunidade; a sobra da alimentação que foi preparada é partilhada com as famílias

indígenas que não estiverem presentes.

A revelação do significado do mito é sempre um segredo para os

indígenas. No período dos primeiros contatos, os padres-missionários entrevam nas

culturas dessas populações e conheciam os mitos e ritos. Com o passar do tempo,

em consequência da perseguição e demonização dos mitos e ritos, as populações

indígenas do Nordeste foram tornando as celebrações secretas ou seu sigiificado.

Diz Lindoso:

O catecismo não é uma técnica ingênua, mas uma brutal técnica de desmerecimento da cultura do outro: das formas de representação da religiosidade nativa que encerra a cultura tapuia-kariri, do ritual das formas religiosas indígenas, da criação dos costumes religiosos dos índios. E por isso, ao perceberem que a missão religiosa cristã era uma técnica de desrespeito e de destruição de seu sentimento de religiosidade nativa, foi que os índios tapuia-kariri passaram a ocultar, dos olhos dos missionários, os seus Aricuri ou Ouricuri, como hoje chamam o seu ritual religioso coletivo anual. (LINDOSO, 2011, p. 56).

Diferentemente dos Kariri, os povos originários da etnia Pankararu realizam

os rituais publicamente, mas mantendo o segredo quanto à explicação do significado

do ritual, das entidades religiosas e ornamentos, conhecimento denominado de

ciência. O poró é restrito aos homens, exceto para as mulheres que têm

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responsabilidade religiosa e que não estejam no período de menstruação. O

significado dos rituais mantém-se secreto para a população não iniciada, inclusive

indígena.

Em vista disso, muitas informações continuarão ocultas. Lévi-Straus, em

sua obra Anthropologie Structurale, no capítulo XIV, com o título Le Serpent au

corps Rempli de Poissons, utiliza o relato de Alferd Métraux e o seu comentário

sobre os temas mitológicos das tradições orais Toba e Pilagá:

J‟ai obtenu les informations suivantes sur le mythique Lik. Lik est um animal surnaturel, um enorme serpent qui porte des poissons à l‟intérieur de sa queue, Des personnes spécialement favorisées du sort peuvent rencontrer Lik échoué sur la terre ferme, em hiver, quand l‟eau quitte la plupart des lagunes et des cañadas. Lik les prie de ramener à une lagune rempli d‟eau. Ceux que la vue du serpent ne suffit pas à épouvanter répondent généralement qu‟il est trop lourd pour qu‟on le porte, mais, chaque fois, et grâce à sa magie, Lik se rend léger. Quand il nage à nouveau en eau profonde, il promet à ceux qui l‟ont aidé de leur donner autant de poissons qu‟ils désirent, chaque fois qu‟ils en demandent, mais à une condition: ne jamais révéler comment le poisson a été obtenu... (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 322).

À semelhança da narrativa do mito da serpente Lik, considerando

contextos e realidades diferentes, o Rei dos Peixes é um mito do povo Katökinn, que

celebra a memória de antepassado, durante o ritual dos Encantados. Segundo a

indígena Cidinha Katökinn, “o ritual do Rei dos Peixes é realizado para pagar uma

promessa. Ele é um „moço‟. Foi feito uma vez e agora o dono viu que é bom fazer

todos os anos – têm uns dois anos que ele é realizado”. (ENTREVISTA, 30 de

março de 2013). De forma diferente, Nina revela que o ritual acontece desde 2000,

data de reconhecimento do povo como grupo indígena etnicamente diferenciado.

E quando a pergunta é sobre quem o Rei dos Peixes e o significado do

ritual, o máximo que é dito é que se trata do Rei dos Índios. Para os Katökinn, o Rei

dos Índios mora no fundo da lagoa. As duas indígenas dizem não saber informar

detalhes do ritual e recomendam consultar o pajé Adelino que é quem conversa com

o „moço‟.

Diante do segredo, a exemplo do que é encontrado no mito da Serpente Lik

– “ne jamais révéler comment le poisson a été obtenu” -, identifiquei que o Rei dos

Peixes é o Rei dos Encantados, o Mestre Guia, entidade do Croá, que só aparece

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uma vez por ano; mas quando o seu povo não faz o que ele quer, não aparece. A

última aparição aconteceu depois das Corridas do Umbu, no mês de fevereiro, às 3

horas da manhã, na localidade chamada Serrinha, Pernambuco, na presença de

mais de 5 mil pessoas. E sobre o espírito do antigo pajé Arvilino, falecido em 2006,

Nina diz que vai conversar com o pajé Geripankó Elias para que ele consulte os

astros para saber como está a vida dele do outro lado.

O segredo dos povos indígenas de não revelar seus mitos e significados

dos símbolos é a garantia de manutenção de suas práticas religiosas e

fortalecimento da identidade étnica diante da sociedade nacional.

A análise jungniana do sonho do etinônimo Katökinn e a análise

antropológica de Lévi-Strauss aplicada ao ritual do Rei dos Peixes demonstram a

profunda ligação étnica do grupo com o tronco pankararu, com seus ancestrais e

rituais religiosos, como também a garantia dos rituais e da mitologia na manutenção

do segredo. O sonho revela a profundidade do trauma histórico vivenciado pelos

grupos indígenas do sertão de Alagoas, desde o confinamento no aldeamento Brejo

dos Padres, a convivência com os missionários católicos, seus códigos e suas

entidades religiosas e míticas; a relação e conflitos com culturas africanas e

indígenas; os conflitos, as doenças e a fome; a dispersão e reterritorialização; a

servidão e proletarização; e a retomada da afirmação étnica frente à sociedade

nacional.

O ritual do Rei dos Peixes é a expressão da afirmação da identidade étnica

no contexto da sociedade envolvente, mesmo exposto às suas interferências. E,

portanto, o etinônimo Katökinn e o ritual do Rei dos Peixes simbolizam o resgate da

história negada e a continuidade do povo Katökinn, atualizada nos rituais e não

revelada aos não indígenas.

3.6 Kouipanká: análise do discurso do cacique Zezinho no processo de afirmação da identidade étnica Koiupanká

A presente análise sobre o discurso produzido pelo indígena José João da

Silva, pedreiro, caçador, líder religioso e político no processo de afirmação da

identidade étnica e garantia dos direitos indígenas. Como instrumento teórico, utilizei

os conceitos de linguagem como uma construção social e histórica e a Análise do

Discurso, com objetivo de desconstruir a imagem estereotipada do indígena,

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particularmente o do Nordeste brasileiro, apresentado pela literatura, como também

demonstrar a capacidade de produção intelectual, política e social sobre sua história

e defesa de seus direitos. Assim, as condições materiais e históricas da produção do

discurso indígena na reconstrução e ressignificação de sua história a serviço da

afirmação étnica e ideológica.

O objetivo é analisar o discurso construído pelo indígena José João da

Silva, 56 anos, considerando algumas etapas de sua história de vida, com destaque

para o período de retomada da organização do grupo e o reconhecimento étnico,

entre 2001 e 2003, e, no exercício da função social como líder religioso, cacique

Koiupanká, presidente do Conselho do Distrito Sanitário Especial Indígena (DISEI) -

representando os povos indígenas dos estados de Alagoas e Sergipe - e assessor

da Secretaria Especial de Saúde Indígena (CISE).

Originário da etnia Pankararu, segundo relatos dos anciãos e do próprio

Zezinho, como é conhecido, Koiupanká funda-se na tradição Pankararu e Pankararé

e, ao mesmo tempo, reconstrói a própria identidade, ressignificando as danças,

cantos, costumes, valores, rituais e mitos.

No processo de afirmação da identidade étnica, Zezinho tornou-se um

personagem importante dentro das comunidades indígenas Roçado, Baixa do Galo

e Baixa Fresca. Com sua personalidade e discurso firme na sociedade nacional e

frente aos órgãos públicos, paulatinamente assume funções importantes dentro do

grupo e na representação dos interesses dos povos indígenas, consolidando o

reconhecimento étnico do grupo e a sua liderança.

Considerando o contexto histórico, social, cultural, religioso e político, tendo

com base entrevista concedida pelo cacique Zezinho Koiupanká, em janeiro de

2013, na aldeia Roçado, o seu discurso é fundamentalmente uma construção

política e social, delimitado no processo de afirmação da identidade étnica do povo,

produzido e verbalizado enquanto representação religiosa e política.

3.6.1 Origem e histórico Koiupanká

O povo Koiupanká está localizado no município de Inhapi, região do alto

sertão de Alagoas. É formado por 186 famílias organizadas nas comunidades Baixa

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Fresca, Baixa do Galo e Aldeia Roçado, sendo que esta última é também o local

onde fica o terreiro religioso, o centro comunitário, a escola Anselmo Bispo – o

centro das decisões políticas. Outras famílias se encontram espalhadas pelas serras

e periferias das cidades próximas.

As relações de parentescos e a matriz cultural e religiosa estão ligadas ao

povo Pankararu, aldeia Brejo dos Padres. Como afirma o cacique Zezinho: “as

danças, os ritmos, a minha é de Pankararu que somos descendentes, só que nós

temos canto próprio, nós temos uma organização própria, nós temos um costume

não próprio, mas, mas ele tem algumas diferenças, né?” (ENTREVISTA, 2013, p.

17).

Por outro lado, levanta-se que a identidade cosmológica Koiupanká, em

que se identifica o Dono do Terreiro - como os indígenas referem-se ao seu

fundador - ou Encantado82, a possibilidade de ter relação com o povo Pankararé, do

município de Nova Glória, sertão da Bahia.

No período da colonização e das missões católicas, a área dos Pankararu

foi utilizada como espaço de confinamento de indígenas de várias etnias para a

catequização e preparação de mão de obra para o trabalho agropastoril ao longo

das margens do rio São Francisco e de seus afluentes. Esse trabalho procurava

abastecer a metrópole de couro e carne, enquanto que as missões tinham o objetivo

de tornar católicos os indígenas e ampliar o número de fiéis sob seu domínio. Muitos

povos com tradições culturais, línguas, costumes e valores diferentes foram

obrigados a conviverem numa mesma aldeia.

3.6.2 Reconhecimento da identidade étnica

Os primeiros grupos familiares que chegaram a Alagoas vieram através do

rio Moxotó – divisa dos estados de Alagoas e Pernambuco -, espalharam-se pelas

serras e caatingas, até então pouco habitadas, ou foram morar com outros povos da

região, possibilitando o casamento e a participação nos rituais religiosos.

Entre os descendentes dos Pankararu, o primeiro a se identificar como

indígena foi o povo Geripankó. Depois, em 1998, foi Kalankó, em Água Branca. Em

82 Espírito dos antepassados.

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2000 e 2001, foram os povos Karuazu e Katökinn, respectivamente. No ano de

2001, o povo Koiupanká assumiu sua identidade e iniciou a luta pela demarcação de

seu território tradicional. Afirma Zezinho: “É. Por que quem tem que auto se

reconhecer é os próprios indígenas e reconhecer é, é... é os próprios índios”.

(ENTREVISTA, 2013, p. 18).

Segundo relatos dos anciãos, os membros da família Bispo foram os

primeiros a chegarem à região e encontraram no sertão uma pedra que juntava água

(daí a palavra inhapi) e começaram o trabalho de roça no seu entorno. Aos poucos

chegaram outros parentes, e a população foi aumentando. Com a chegada dos

coronéis83 e, posteriormente, o surgimento de núcleos urbanos, os Koiupanká foram

expulsos da terra e forçados a trabalhar nas fazendas e usinas. O mesmo ocorreu

com a maioria dos indígenas, isso é atestado pelo Zezinho Koiupanká:

É. Tempo de novo trabalhei, no sul de Alagoas, trabalhei em São Paulo, trabalhei em Mato Grosso, trabalhei em vários lugar, no Maranhão, né? No... Mato Grosso mesmo não foi em construção, foi cortando cana por que minha vinda era assim no tempo novo... (ENTREVISTA, 2013, p. 2).

E, completa:

No Sul cortei cana e trabalhei em construção também, né! E depois eu... meus filhos pegou a mesma vidinha assim deles e... e hoje às vezes as pessoa admira, a mãe mesmo admira que num sabe como é que ele aprendeu sem ninguém ensinar, sem nem se quer trabalhar de servente, sabe? Hoje trabalha em construção, tem um sobrado aí que ele tá construindo, construiu um sobrado em Maceió, né?! (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p. 2).

Essa realidade afeta diretamente a organização social dos grupos. Como

consequência, os rituais que eram praticados regularmente e abertos começaram a

sofrer perseguição e, em vista disso, tornaram-se ocultos. Segundo o cacique

Zezinho Koiupanká, o instrumento utilizado no ritual, muitas vezes, era uma caixa de

fósforos, para substituir o maracá, cujo som identificaria o ritual.

83 Denominação dada a senhores detentores de grandes extensões de terra, que lhes dava prestígio e poder sobre o restante da população.

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3.6.3 Crenças e ritos Koiupanká

Koiupanká tem o ritual da cura, onde a Mesa é dirigida por dona Iracema,

matriarca e uma das principais lideranças da comunidade, realizado durante o ano.

Além disso, existem mais dois rituais: a dança do toré e a dos praiás. O toré pode

ser dançado em alguns momentos por todos, inclusive por não indígena convidado.

É uma dança tipicamente religiosa, que tem muitas finalidades, dentre elas, o

agradecimento, a festa, o louvor, a penitência e para selar amizades.

Os praiás são entidades religiosas, assumidas exclusivamente por homens,

chamados de Encantados ou o Homem. Cada um tem o seu dono, cuja

responsabilidade é de zelar pelas vestes e de determinar a participação, ou não, nos

momentos do ritual. Os praiás se apresentam totalmente cobertos, dos pés à

cabeça, com um maracá segurado na mão direita. As roupas são confeccionadas de

cipó colhido na região, chamado crauá ou croá, que fornecem longas fibras, de

grande resistência e durabilidade.

Um dos rituais mais importantes é Queimada do Murici (O Jornal, 2008)

que é realizado em três finais desemana consecutivos, iniciado longo após a Páscoa

Cristã, quando é celebrada a criação do povo, com os rituais do milho, da mandioca

e do murici. O ritual é iniciado, oficialmente, às 19 horas do sábado e prolonga-se,

intercalado por vários atos religiosos, até o nascer do sol, no domingo. Às oito horas

é reiniciado, parando para o almoço, e retornando às 14 horas até o final da tarde.

Segundo os relatos colhidos junto aos membros da comunidade, o milho

celebra a criação do homem; a mandioca84, a da mulher; e o murici, a criação do

povo, alimento do dono do terreiro85. Os homens que se vestem de Encantados –

espíritos dos antepassados -, nos três dias que antecedem o ritual e durante as três

semanas em que é realizado, se abstêm de sexo, bebida alcoólica, tomam banho de

ervas e ficam reclusos no Poró – lugar onde só é permitida a entrada de homens; lá

dentro eles fumam, rezam e dançam.

84 Mito encontrado entre os povos da região amazônica, registrado no texto de Couto de Magalhães (1837-1898), em O Selvagem, com o nome de Mani-Oca – Casa de Mani – sobre o nascimemnto da mandioca. (Op. cit., p. 126). 85 O Encantado é o tronco espiritual, fundador e celebrado pelos membros da comunidade indígena.

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A cada entrada dos praiás no terreiro, é feita uma abertura oficial: o pajé

conduz os praiás, tocando o maracá e fumando, cruza e dar três voltas pelo terreiro.

Quando a dança está em ritmo frenético, os pés dos praiás parecem flutuar. Em

alguns momentos da dança, entram duas mulheres protegendo os praiás postos nas

extremidades – as mesmas têm de estar rigorosamente dentro das regras de

abstinência e não menstruadas.

Nos dias dos rituais, toda a dieta é preparada com o alimento que está

sendo celebrado. O ritual começa com a colheita feita pelos homens, e depois o

alimento é preparado por mulheres, numa casa da comunidade. A alimentação é

abençoada pelos praiás para ser servida, primeiramente para os Homens

(Encantados) e depois para os presentes.

No último final de semana do ritual Queimada do Murici, os homens e

mulheres se penitenciam, enquanto circulam nove vezes o terreiro, carregando

sobre as costas um feixe de cansanção (urtiga). Ao término, colocam-no no centro

do terreiro e dançam sobre os galhos até exterminá-los.

3.6.4 Cacique Zezinho Koiupanká: caçador, pedreiro e líder comunitário

Cacique Zezinho Koiupanká, como se tornou conhecido no meio dos povos

indígenas, na sociedade e junto às instituições e órgãos governamentais. Na

comunidade, é tratado de Zezinho, nome originário do batismo católico e registrado

civilmente com o nome de José João da Silva, nascido em 1957, no município de

Inhapi, casado e pai de 11 filhos.

Na vida cotidiana da aldeia, Zezinho é uma pessoa introvertida e centrada

nas atividades de chefe da família. Diante da solicitação de ser entrevistado, buscou

sempre se esquivar, construindo um discurso transversal e uma linguagem recheada

de desvios, justificativas e formas linguísticas que ajudam a dissimular respostas,

principalmente quando se refere a assuntos da organização e religião indígena. E

justifica: “eu não sou culpado de ser assim com toda minha ignorância, cara feia,

ruim, bruto, ignorante... mas eu não tou roubando, eu tou herdando dos meus

antepassados. Meus antepassados era desse jeito”. (ENTREVISTA, 2013, p. 20).

Uma das práticas que mais gosta de fazer desde criança é caçar e pescar.

Como atesta:

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Na época, eu com idade de dois três anos, eu fui repreendido pelo meu pai quando ele matava às vezes umas caças, perdiz e quando ele chegada eu num conhecia, ele falava que tinha matado umas galinha e aí ele me repreendeu por conta que podia os vizinhos ouvir e dizer que ele tá matando as galinhas. Então, na verdade de galinha mesmo eu comia só o fígado. Mas, caça era o que eu mais comia. Eu me criei desse jeito, é, é... hoje vivo o meu, o meu esporte, minha tradição e, festa essas coisas eu não tenho. A minha tradição é pescar, caçar... (ENTREVISTA, 2013, p. 1).

Prática comum no cotidiano das comunidades indígenas, crianças e jovens

são socializados nas atividades desenvolvidas pela população adulta: todos

aprendem a descobrir o seu papel no grupo, obedecendo às regras e costumes da

sociedade. O que não foi diferente do que aconteceu com Zezinho:

Nunca precisei de ninguém me ensinar nada. Eu aprendi sentar um tijolo olhando pro meu pai que era pedreiro, construí casa, eu aprendi caçar, eu aprendi pescar, eu aprendi tecer uma rede de pesca, eu enfim... eu, eu às vezes, eu era muito repreendido, passava as vezes de pai me bater, porque toda vida fui curioso; eu não sei chegar em algum lugar e chegar e entrar fazer as coisas sem premero não olhar como é que se faz. Também não vou perguntar, eu fico olhando porque quando eu vou fazer, já vou fazendo, já pra não prejudicar ninguém e nem se prejudicar. (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p. 1).

O aprendizado adquirido na comunidade se deu na observação das ações

dos mais velhos. Vendo o trabalho do pai, Zezinho tornou-se profissional da

construção civil, com a profissão de pedreiro. Quando fala da profissão,

desconversa: “É... a profissão, a profissão, é, é... eu acho que desde de quando eu

sou um guerreiro, sou um indígena, tem muitas profissão, né? Eu sou profissional

desde que nasci”. (Ibidem, p. 2).

Diante da falta de terra e perspectiva de sustentabilidade local, que ocorre

com a maioria dos indígenas do Nordeste, procura trabalho fora da aldeia, seja

como diarista em fazenda, empregado doméstico, bóia-fria na zona canavieira ou

nas metrópoles do país. Com Zezinho não foi diferente, inclusive com os seus filhos:

É. Tempo de novo trabalhei no sul de Alagoas, trabalhei em São Paulo, trabalhei em Mato Grosso, trabalhei em vários lugar, no Maranhão, né? No... Mato Grosso mesmo não foi em construção foi cortando cana por que minha vinda era assim no tempo novo... No Sul86 cortei cana e trabalhei em construção também, né! E depois

86 Sul, no sentido dado pelos indígenas do sertão de Alagoas, significa o Leste, região litorânea onde é desenvolvida a agricultura da cana de açúcar desde o período colonial.

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eu... meus filhos pegou a mesma vidinha assim deles e... e hoje às vezes as pessoa admira, a mãe mesmo admira que num sabe como é que ele aprendeu sem ninguém ensinar, sem nem se quer trabalhar de servente, sabe? Hoje trabalha em construção, tem um sobrado aí que ele tá construindo, construiu um sobrado em Maceió, né?! (ENTREVISTA, 2013, p. 2).

Depois de ter vivido e trabalhado em outros estados do Brasil, Zezinho

volta para a comunidade e começa participar do processo de organização e

articulação interétnica, buscando o reconhecimento da identidade étnica do seu

grupo familiar, os direitos tradicionais e constitucionais.

No contexto das comemorações oficiais dos 500 anos do Brasil, observa as

mobilizações do movimento indígena, a formação e articulação dos povos originários

dos Pankararu, na região do sertão de Alagoas. Zezinho relata como se deu o

processo que possibilitou o reconhecimento Koiupanká:

Os Kalankó, na pessoa de Antônio Preto, e que vive muito isso aí, lhe agradeço muito. Eu fui convidado lá pra um ritual, e após o ritual ele me convidou pra eu participar de uma reunião junto com CIMI na pessoa do assessor jurídica do Sandro, é... a Léo, a Maria do Céu, acho que era Maria do céu uma baixinha, e... o Jorge Viera, da sua pessoa. Então, é muito curioso eu fiz questão de saí, andar de bicicleta, vim de lá pra cá em 2001, isso foi em 2001, acho que foi em setembro em outubro, não sei. Eu vim de lá pra cá na sexta feira e tava, tava domingo, no domingo, no sábado, vim no sábado de manhã pra voltar no domingo pra lá, eu ansioso, voltei logo no sábado amanheci o dia lá. Chegando essas pessoas, eu comecei a ouvir e comecei a curiar como é como num era, né?! E comecei abrir a mente, minha mentalidade e achei que era mais fácil não pra conseguir a terra, mas pra se identificar como povo, eu achei mais fácil do que o que eu pensava, né? Eu achava que tinha que ser malocado, quinem eu falei. Mas ai só pode ser malocado se tiver a terra demarcada que faz, que gera as malocas. E eu perguntando, disse não, não tem nada haver! Desde quando seja família, é, juntasse e se identificasse pra sociedade e depois ser reconhecido pelo governo. Mas aí, aí eu comecei buscando apoio, né? Primeiro com Kalankó, Geripankó, Katökin, Karuazú, na época e o CIMI. E... comecei correr atrás, né? De lá eu fui convidado pra um encontro lá em Geripankó, aonde chegamos lá pra pesquisar, ou pra curiar, já fui convidado pra coordenar uma mesa e eu toda vida fui conversador quando tem precisão, e, nunca fiquei cá muito é... é de ficar parado, só que naquilo que eu domino e eu fiquei perdido porque coordenar de que jeito que eu não sabia nem o que era coordenar. Eu tava lá pra entender o que era... (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p. 8-9).

Em 2001, realiza a primeira reunião pública, com a presença de lideranças

da comunidade e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Em dezembro do

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mesmo ano, o grupo indígena assumiu para a sociedade local e nacional a

identidade étnica. Antes, mesmo praticando os rituais e vivendo em grupo familiar, o

grupo não era reconhecido como indígena. Como explica Zezinho:

É... na verdade, é...eu nasci índio e vou morrer índio! Ou seja, indígena porque na linguagem branca, é índio, né? Mas eu sempre falo que sou indígena. E na época deu mais novo eu num tinha muita infância, eu... eu além de não entender, tinha muito medo principal...inclusive meus avós, os antepassados falava que índio só tinha no Sul, né? Ou seja, lá pra Amazonas, lá pra dentro das mata! E... e eles só conhecia, só se reconhecia como caboco, né? É outro apelido... pra você ter ideia esse morro aí é...tem registrado no museu por Serra dos Caboco. Porque na época o exército bateu pra comprar essa serra aí, andou pesquisando e num sei o que, que encontrou e Zeca a irmã, o meu bisavô, os outros disse que não vendia não. Que era caboco e caboco não vendia terra. (ENTREVISTA ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p.3).

A partir da denominada data de reconhecimento, inicia o processo de

formação sobre os direitos constitucionais e reivindicação pela assistência à saúde,

educação, projetos e desenvolvimento e demarcação da terra.

3.6.5 Liderança religiosa e política

A liderança religiosa e política de Zezinho Koiupanká, como o mesmo faz

questão de apresentar, nasceu com o aprendizado na comunidade, destacando-se

pela sua esperteza e curiosidade na participação nos rituais Pankararu, com os

anciãos e, principalmente, na convivência com a mãe, Dona Iracema Maria da Silva,

a matriarca da comunidade. Ela é considerada uma das mais importantes lideranças

da comunidade, visto que é a guardiã dos costumes e tradições religiosas do grupo,

com sua experiência e atividades de cura e mesa. Diz: “A gente num... A gente sabe

que a gente não aprende. A gente daquilo que a pessoa nasce com o dom já traz

né, né assim? Já se vem pelo..., pelo entendimento que Deus dá, né? Né, o que a

gente aprende. Cura, às vezes eu curo, mas não foi aprendido...” (ZEZINHO

KOIUPANKÁ, 2013, p.1).

E Zezinho completa:

É... é, com certeza, premera, premera, primeiro que devo de tá vivo de tá é... utilizando esse espaço tão maravilhoso, a Deus! Segundo a minha mamãe, né? Porque, não só por ser o que sou mas, por ter é, é... firmeza e coragem de...de fortalecer e resistir com a cultura, a

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nossa cultura, dos nossos Pankararu, nossos Pankararus. Mesmo com todo massacre, perseguição, discriminação, mas ela nunca abriu mão do que é. Então isso me orgulha muito da minha mãe. (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013).

Segundo relatos colhidos, dona Iracema sempre passou a experiência para

os seus filhos, tanto para os homens como para as mulheres. O aprendizado de

Zezinho com a mãe o preparou para assumir a liderança e a responsabilidade com

os trabalhos do terreiro e com os praiás.

Sempre praticou o ritual. Pra você ter uma ideia, praticava o ritual tanto com alguns parente pouco que vinham com medo, quanto sozinha. Então praticava o ritual é... conforme o momento é, é... e a vontade e o momento e a necessidade, eu não precisa de tanta gente pra praticar meu ritual. Que aonde eu tô eu, eu... tô mais muita gente. Agora, não posso dizer quem, nem mais quem não posso garantir, porque você num... num vai acreditar. Então... você num tem ideia, não é todo momento que a gente se domina, se me domina... o que eu quero dizer eu não vou te explicar o porquê? É

pelo momento que a gente se passa, né. Pronto! (ZEZINHO

KOIUPANKÁ, 2013).

A experiência religiosa, vivência com a sociedade brasileira e a

desenvoltura profissional de Zezinho o credenciou para assumir a responsabilidade

de organizar o grupo internamente e representá-lo na defesa dos direitos, tornando-

se cacique do povo Koiupanká, presidente do Conselho de Saúde dos Povos

Indígenas de Alagoas e Sergipe e assessor da CISE.

A articulação entre o mundo indígena – formação; convivência com as

práticas religiosas, rituais e danças; caça, pesca – e o mundo da sociedade nacional

– idioma, economia, profissão, tecnologias -, possibilitou a construção de abertura

de espaços na sociedade local e nacional. O conhecimento e a relação com os dois

mundos, permeados por conflitos, divergências, preconceitos e discriminação, deu a

Zezinho as condições para descobrir os caminhos para a intervenção política,

criando espaços, linguagens e articulações interétnicas frente à sociedade nacional

no processo de ressignificação da identidade étnica e na garantia dos direitos do

povo Koiupanká.

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3.6.6 Discurso: construção política e ideológica

O conteúdo do discurso analisado está contextualizado e condicionado por

uma realidade produzida historicamente, intermediada por dois interlocutores: o

entrevistado e entrevistador. O cacique Zezinho, afirma: “não é todo momento que

eu estou disponível pra conversar”. (ENTREVISTA, 2013, p. 23).

Em nível da linguagem, comparando os cenários de 2001 e o de 2013,

tendo em vista que os interlocutores são os mesmos, observa-se mudança de

contextos e de perspectivas. Em 2001, o grupo liderado por Zezinho buscava o

reconhecimento étnico, e, portanto, a relação se pautava pela abertura, diálogo e

desejo de interagir. Até então, o conceito de ser e pertencer a um grupo étnico era

condicionado pelo estereótipo do silvícola, diferente da realidade vivenciada pelos

povos indígenas da Nordeste.

Ai resolvi a mudar o rumo da minha vida. Com muita, muito apoio, muito, muitas... pedidos de algumas pessoas dos meus parentes Pankararu, é... mas, eu num aceitava, eu num aceitava porque não entendia. Eu achava que pra mi se identificar como povo tinha que morar tudo malocado, tudo junto, né? Pá, pá se dizer uma aldeia indígena. Mas, na verdade não tem como porque é, é...num tenho terra demarcada, como se vai se malocado num local só?! (ZEZINHO, 2013, p. 4).

Em 2013, em vista do reconhecimento étnico já ter ocorrido, o discurso é

condicionado pelas novas representações simbólicas e pela autonomia adquirida

como a afirmação da identidade.

Que aonde eu tô eu, eu... tô mais muita gente. Agora, não posso dizer quem, nem mais quem não posso garantir, porque você num...num vai acreditar. Então...você num tem ideia, não é todo momento que a gente se domina se me domina...o que eu quero dizer eu não vou te explicar o porquê? É pelo momento que a gente se passa, né. Pronto! Eu não posso falar mais. (ZEZINHO, 2013, p. 6 e 7).

Referindo-se a Saussure, sobre a língua, Barbi comenta: “tem sido

concebida como um sistema de signos, em que cada signo é constituído de um

significante e de um significado e da relação arbitrária entre esses dois elementos”.

(ORLANDI, 1999, p. 15).

A língua, portanto, como sistema de comunicação, é um instrumento

condicionado a interesse e é construída historicamente de acordo com a situação

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social, econômica, política, religiosa, cultural e étnica dos indivíduos e do grupo

envolvido entre si e com o outro. Através da linguagem, inicialmente simbólica, e,

posteriormente, escrita, e sempre contextualizada, o grupo autodenominado

Kouipanká se afirmou e foi reconhecido por outros grupos indígenas, firmou-se

enquanto grupo étnico diferenciado.

Segundo a mesma autora:

Todas as categorias que constituem a gramática geral das línguas ou as particulares (o francês, o alemão etc.) são explicadas pelo princípio segundo o qual a linguagem é a representação do pensamento, princípio que vinha sustentando toda a tradição gramatical desde os gregos, passando para os latinos e os medievais. Essa tradição pode-se dizer lexiológica, porque sempre privilegiou as „partes do discurso‟. (ORLANDI, 1999, p. 16).

Podes-se aferir nas afirmações do cacique Zezinho, reivindicando a

tradição como critério necessário para o reconhecimento enquanto grupo

diferenciado:

É, porque o indígena ele só é, ele só prova que é o indígena se ele tiver tradição, tiver cultural, tiver praticar seus rituais. E é como eu falei, agradeço a Deus a minha mãe que foi quem trouxe o berço do Brejo e foi quem teve a firmeza de, de, de, de permanecer até os dia de hoje, e ai os filhos, é... acompanhou é a tradição, os costumes.(ZEZINHO, p. 10).

Considerando a argumentação acima, o texto de Barbi, referindo-se aos

estudiosos do Círculo Linguístico de Praga, o texto de Barbi corrobora com a sua

sustentação:

A significação, na perspectiva desses estudiosos, se desloca à medida que já não vai mais ser buscada nas propriedades formais das expressões linguísticas, mas nas necessidades, funções e condições da comunicação, ou seja, da linguagem em uso, em condições adequadas, que envolve contextos e enunciadores interagindo entre si, com o mundo e com a cultura. (ORLANDI, 1999, p. 19).

O cacique Zezinho, em sua trajetória de organização do povo e de

conquista de espaço na sociedade e, particularmente, nos órgãos de Estado,

constrói o discurso adequado ao interlocutor e à situação. No início do processo de

reconhecimento, os interlocutores limitavam-se às entidades não governamentais;

com o tempo, ampliaram-se e as lideranças foram adequando o discurso e as suas

formulações. A linguagem tem por função a representação, expressão e apelo.

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Observa-se que as funções fazem-se presentes no processo de construção política

da identidade.

As três funções da linguagem, tal como primeiramente Bühler as concebe, de representação (ou de símbolo), expressão (ou de sintoma) e apelo (ou de sinal), são noções semânticas. No ato do discurso, o enunciado desempenha as três funções à medida quês e relaciona com o estado de coisas de que se fala (representação), com aquele que fala (expressão) e aquele a quem se fala (apelo). (BÜHLER apud BARBI, 1999, p. 19).

Como afirma Barbi, “a grande novidade está na função textual, que tem a

ver com o estabelecimento de vínculos da linguagem com ela própria e com as

características da situação em que é usada. Essa função permite ao falante e ao

ouvinte construir „textos‟”. (1999, p. 20).

Como poder ser observado na fala de Zezinho, o texto – no sentido de

discurso – é construído para dar respostas ao interlocutor:

E ai através dá, dá, dá minha luta, da minha fé, da minha confiança que tenho em Deus me deram o nome de Koiupanká, é... mas, me foi pedido, foi encomendado preu não traduzir o que quer dizer o nome Koiupanká. E, às vezes, quando vem uns antropogo, você, algumas pessoa pergunta o quer dizer Koiupanká? Ai eu traduzo, é... Comunidade Indígena Pankararu, porque é descendente, então KOIUPANKÁ – Comunidade Indígena União Pankararu. KOIUPANKÁ! Mas, não é bem. .não se dá bem assim, não. Então, esse nome vai fica pra quem deu traduzir, pra quem ele pode traduzir, eu não posso traduzir. Porque pediram pra eu não traduzir! Até porque esse nome de Koiupanká ele, envolve a minha mãe, envolve meus tios, envolve meu bisavô, envolve tio, envolve muitas coisas que eu não posso traduzir. (ZEZINHO, 2013, p. 12).

Observa-se, então, que o discurso é construído social, política e

ideologicamente: “O discurso é, pois, um lugar de investimentos sociais, históricos,

ideológicos, psíquicos, por meio de sujeitos interagindo em situações concretas”.

(BARBI, 1999, p. 21). E completa: “a língua se transforma em discurso, que é o

fenômeno temporal da troca, do estabelecimento de diálogo, é a manifestação

interindividual da enunciação, é seu produto”. (Op cit., 22).

Enquanto língua, a fala de representação da identidade étnica é colocada

no espaço do segredo, utilizada e ressignificada de forma que o interlocutor é

informado que a realidade existe, mas que não é acessível aos não iniciados,

inclusive indígenas. Identifica-se, assim, que o discurso não é um produto subjetivo

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de um indivíduo, até porque não se sustentaria enquanto ato secreto, mas uma

produção do grupo social, expressão da história e das contradições e acomodações

sociais, políticas e ideológicas.

Sobre a religião eu me recuso de falar porque tem muito, muito respeito a quem me deu o nome de Koiupanká. A origem de Koiupanká e pediu pra não falar sobre a religião porque a religião dos povos indígenas é... é uma coisa interna não todos, mas é uma coisa interna. É... num é... eu falo uma coisa no modo de falar, mas é... é... uma, uma... uma ciência que é só pra o povo indígena. (ZEZINHO, 2013, 12).

Ou seja, a religião é algo para ser vivenciado pelo próprio grupo social. A

religião, diz Zezinho:

Não. Imitação não! Imitação é... nem a imitação nem apresentação (...). É. Religião se vive, num se usar, né! É... sabemos que a religião é a nossa origem é a nossa... nossa identidade. (...) Pratica! Religião não imita, a religião se pratica. A religião não é teoria é prática! Tem que praticar. Quando você pratica religião, então você não tá

imitando. (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p. 11, 15 e 16).

E justifica o estado de contato dos povos indígenas, particularmente do

Nordeste, com a sociedade nacional:

É... o índio, o índio ele tem duas, três lados. E esse dois lados de vida, de, de... vida, não é por culpa dos indígenas hoje, foi culpa dos não indígenas, dos invasores. Porque quando misturou negro com indígena, negro com Portugal, com não indígena, então os filhos que nasce, ele nasce um puxa um lado o outro poxa o outro, então por isso é isso que às vezes é... é...traz dificuldades pra comunidades

indígenas principalmente do Nordeste, né?! (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p. 16).

Com o objetivo de firmar a diferença étnica, política e religiosa, continua:

Então eu sou, eu num sou contra, mas eu fico achando estranho um povo porque é descendente de Pankararu é... querer praticar, é... coisas que Pankararu de origem de Pankararu aonde ele não tem domínio daquilo lá, porque se não ele vai fazer imitado, e a coisa imitado, não pode. Eu não vou fal...cantar um toré, nem dançar um toré, imitando o outro, não. Pra você ter uma idéia a coisa mais difícil que tem é eu cantar um toré de Pankararu de, de... um outro povo. Canto as vezes porque vem assim na hora e eu vou canto pra é...é...não pra usar, mas com todo respeito o outro, pra valorizar o outro. Mas os toré de Koiupanká é tudo de Koiupanká. Cantar vinte,

trinta, quarenta, cinquenta toré... (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, p.16).

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Mas ao mesmo tempo recorre à memória para fundamentar e defender da

identidade do ser indígena:

O critério é... é origem, tradição, cultura, né? E a prova da origem. Porque se eu falar que sou descendente da Pankararu por que eu de qualquer maneira... pode morrer quem morrer, mas eu tenho família lá. Então essa é que é a prova. Esse é que é o critério. Eu falar que sou de origem Pankararu, e qual a família mais próximo? Fulano de tal. Então, você vai lá e pergunta aqui tem família tal? Tem. Fulano de tal, pai de fulano, mãe de fulano, a tia, ou parente, ou tio, ou avô é

daqui? (ZEZINHO KOIUPANKÁ, 2013, P. 18).

O discurso produzido por Zezinho se encaixa na concepção teórica de

construção histórica e social. Segundo Barbi,

Foucault (1971) concebe ainda o discurso como um jogo estratégico de ação e reação, de pergunta e resposta, de dominação e esquiva, e também de luta; „os espaço em que o saber e o poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente‟. (BARBI, 1999, 22).

E afirma: “A geração desse discurso gerador de poder é controlada,

selecionada, organizada e distribuída por certos procedimentos que têm por função

eliminar toda e qualquer ameaça à permanência desse poder”. (Op cit., 22).

Na mesma direção, cita:

Para Bakthin, o que de fato existe é o processo linguístico, sendo a enunciação o motor da língua: „a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes‟. (BAKTHIN apud BARBI, 1999, p. 24-25).

E, por fim, Zezinho contesta e recoloca a linguagem referente ao processo

de identificação étnica do seu povo:

Essa palavra de ressurgido, isso eu penso três vezes pra falar. Não seio ler, nem sou letrado, mas eu na minha, no meu, na minha consciência só da entender que povo ressurgido, ressurgiu do nada ai, ressurgiu! Somos povo resistente, então isso nós quebramos colocamos no documento, a gente não aceitamos essa palavra de ressurgido mais. (ZEZINHO, 2013, p.18).

“A palavra é ideológica, ou seja, a enunciação é ideológica. (...) A palavra é

a revelação de um espaço no qual os valores fundamentais de uma sociedade se

explicitam e se confrontam”. (BARBI, 1999, p. 25).

Diante da necessidade de se diferenciar do restante da população

sertaneja e brasileira, a palavra torna-se um instrumento ideológico e político de

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afirmação da identidade étnica. Com o discurso construído pela diferença, o cacique

Zezinho consegue marcar e delimitar, através da atitude e da linguagem oral e

simbólica, garantir o poder religioso e político, como também a diferença étnica.

Em nível da organização e da luta pela demarcação da terra, o discurso do

cacique Zezinho Koiupanka sobre a temática é produzido e reelaborado de forma

extremamente competente e hábil politicamente:

Muitos latifundiários temiha o Paulo Malta, e... admirei muito, ele que comprou essa terras aí, e ele falou pra gente num falar pra todo mundo. Diz: - Ói, num dia em que esses índio se identificar eu só recebo, só benfeitoria porque desde que eu cheguei aqui que eu sei que isso aqui é terra indígena. (ZEZINHO, 2013, p. 6).

Observa-se que ele coloca na fala do interlocutor – no caso, posseiro do

território reivindicado pelo povo Koiupanká - o reconhecimento da tradicionalidade

da terra e, portanto, o direito à sua demarcação, homologação e posse.

A reconstrução da trajetória pessoal, do papel social, religioso e político do

cacique Zezinho Koiupanká, dimensões intrínsecas do contexto histórico Pankararu

e da colonização, da diáspora dos grupos familiares no século XIX e o processo de

reterritorialização, identifica-se como base política, cultural e ideológica para a

sustentação, a afirmação da identidade étnica reivindicada no discurso através dos

anciãos e lideranças Koiupanká.

Um dos eixos fundamentais utilizados para a sustentação da trajetória

étnica foram os elementos da tradição armazenados na memória dos antepassados.

O fio condutor do reconhecimento étnico fundou-se na tradição e na prática religiosa,

na relação de parentesco e na história oral.

O discurso produzido ao longo do processo de reconhecimento étnico e de

militância indígena, seja por parte da comunidade ou pelas lideranças, foi e está

sendo atualizado e ressignificado em nível histórico, social, cultural, religioso e

ideológico. “Não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo

é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido”.

(PÊCHEUX apud ORLANDI, p. 17).

Diante da análise e observação dos dados, pode-se afirmar que o discurso

da origem e descendência étnica, do ser indígena e da garantia dos direitos é uma

produção histórica e social, e também, político e ideológico, indissociável em nível

pessoal e coletivo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa sobre as práticas de representação identitária e ressignificação

do imaginário dos povos indígenas do sertão de Alagoas suscitou, em primeiro lugar,

a reflexão e discussão histórica sobre a colonização portuguesa, as presenças

holandesa e francesa no contato com as populações nativas do território brasileiro,

na perspectiva de um novo olhar histórico, revisando o pensamento filosófico e

antropológico ocidental, identificando suas contribuições e limites quanto à

compreensão e conhecimento sobre o fenômeno denominado ressurgimento dos

povos indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupanká.

A revisão teórica do presente trabalho contribuiu para identificar que,

diferentemente de outros estudos de caráter dualista e mecanicista, a relação

política e cultural entre colonizadores e populações indígenas teve como base a

imposição de mecanismos de exploração da riqueza natural e da mão-de-obra

indígena e a introdução de um modelo de cultura e de sociedade, constituída por

relações complexas, talhadas entre cooptação, confronto, dispersão e negociação

entre atores envolvidos no cenário. O contato ocorreu de fora para dentro das

comunidades indígenas, provocando a expropriação dos territórios, a

desestruturação das organizações sociais, diáspora e extermínio da maioria das

etnias.

Entretanto, em todo o processo, identifica-se que o sujeito indígena

movimentou-se como agente ativo de sua própria história, negando, com isso, a

imagem do indígena selvagem, passivo, indolente e subserviente aos agentes da

colonização, como foi retratado no imaginário documental e literário de viajantes e

missionários. Esses comportamentos aparecem nas teses da aculturação e do

evolucionismo cultural, ao contrário da realidade, onde aparece a habilidade política

do indígena em avaliar a correlação de forças e postar-se no confronto, na retirada

ou na negociação.

A matriz teórica greco-romana cristã que sustenta o projeto da colonização

fundamenta-se na superioridade da sociedade européia e, consequentemente, na

ação civilizatória sobre as populações nativas. Esta já é uma compreensão

praticamente consolidada no campo científico, a exemplo da História, Sociologia e

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da Antropologia. Na mesma linha, como investigado e identificado na presente

pesquisa, constata a existência e reivindicação do reconhecimento étnico das

populações indígenas consideradas historicamente extintas, vai ao encontro da

ciência produzida com os fundamentos e modelos ocidentais que produziu o

arcabouço teórico para respaldar e justificar a sua extinção.

Com isso, a análise da pesquisa pautou-se em identificar e questionar a

produção teórica ocidental, produzindo nova base epistemológica, com princípios

dialógico interdisciplinar, mediada por uma metodologia onde o objeto da pesquisa é

o sujeito histórico que produz o seu pensar e falar dialéticos, na relação eu-eu –

indígena e indígena - e na relação eu e o outro - o não indígena -, para dar

sustentação à sua identidade étnica.

A pesquisa identificou ainda que, frente à negação do eu indígena imposto

pelo não indígena – colonizador, sociedade brasileira e ciência antropológica -, o

indígena se colocou como sujeito na condição política de silêncio étnico ou de

negociação. Com o despertar da conjuntura política nacional, as lideranças

indígenas enveredaram pelo caminho da denúncia, da organização interétnica e das

reivindicações de assistência do Estado.

Neste aspecto, a presença do Estado moderno nas comunidades indígenas

teve duplo sentido: por uma parte, produziu uma legislação integracionista e uma

política indigenista de negação da identidade étnica das populações não

caracterizadas como silvícola; por outro lado, os indígenas apropriam-se do espaço

oficial, o Posto do SPI e, posteriormente, da FUNAI, para aglutinar as forças políticas

indígenas em prol da prática e manutenção das tradições culturais e religiosas.

O surgimento dos grupos étnicos reivindicando o reconhecimento étnico e

os direitos indígenas criaram problemas políticos para os grupos já reconhecidos

pelo Estado, para a legislação vigente e para a ciência. Os povos em estágio de

pouco contato com a sociedade brasileira, localizados geograficamente nas regiões

Norte e Centro Oeste do Brasil, não os reconheceram e até conflitaram etnicamente,

com a justificativa de diminuição de recursos e de assistência para as suas

comunidades. Os povos emergentes não encontraram respaldo para suas

reivindicações na Legislação vigente – Código Civil, Constituição militar e Estatuto

do Índio, a Lei 6.001/73 -, fundamentada em concepção e arcabouço legal

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direcionada por política indigenista integracionista, direcionada exatamente em

sentido contrário ao surgimento de novos grupos indígenas, principalmente para

aqueles considerados descaracterizados culturalmente, segundo os critérios

normativos legais.

Os cientistas brasileiros, principalmente no campo da História e da

Antropologia, foram tragados pela concepção da história positivista e da antropologia

tradicional, apontando o seu foco acadêmico para as populações localizadas nas

regiões de pouco contato com a cultura nacional, excluindo, assim, as populações

indígenas do litoral e interior do Sertão Nordeste. Ao mesmo tempo em que os

principais teóricos brasileiros realizavam os estudos e produziam suas teses,

sustentavam o poder político, criando critérios de delimitação de indianidade

correspondente ao grau de contato e ao biologismo.

Com a força ressurgente do movimento dos grupos étnicos do Nordeste no

final da década de 1970, indigenistas, missionários e intelectuais tornam-se canais

de apoio político, financeiro e produção teórica de explicação do fenômeno. A

pesquisa identificou que, neste contexto, os atores considerados pelos indígenas

como aliados, tornaram-se instrumentos de apoio a esses grupos, como também

canais de articulação com os órgãos governamentais e divulgação na sociedade

nacional.

Para atender a expectativa do outro - o indígena e o não indígena -, com o

estereótipo impregnado na sociedade nacional, os grupos indígenas fazem a leitura

da realidade social e apropriam-se de elementos culturais de outros povos para se

afirmarem etnicamente, com o apoio e compreensão política dos segmentos aliados.

Do ponto de vista político, essa movimentação cultural foi indiscutivelmente

importante para ser reconhecido etnicamente diferenciado. Entretanto,

metodologicamente pelo critério estritamente epistemológico, o deslocamento

antropológico para a descrição dos elementos diacríticos em parâmetros do

establisment cultural e étnico, o conhecimento antropológico deixou de identificar e

produzir a partir do próprio ser indígena, social, cultural e histórica.

A partir da memória e das falas indígenas, condicionadas pelas

contradições sociais e econômicas e pelos conflitos culturais e étnicos, utilizando

bases teóricas da Análise do Discurso e do Imaginário, identifico que os membros

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dos povos indígenas Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e Koiupaná,

construíram habilmente as relações discursivas em cada contexto e com cada

interlocutor, objetivando garantir a permanência das tradições culturais, religiosas e

étnicas, e, quando identificaram a possibilidade, reivindicaram o reconhecimento da

identidade étnica e os direitos a isso atrelado.

Na pesquisa foi identificado que, para os indígenas, o ser indígena e o

estar indígena, são duas faces de um mesmo personagem histórico, mas com

perspectivas e respostas diferenciadas. O ser indígena é o modus vivendi na

comunidade e no cotidiano, nas celebrações, nos ritos religiosos, nas danças, nos

seres mitológicos. Este conhecimento, de certa forma, acontece à margem da

sociedade nacional, ignora o saber, o conhecer, o aceitar ou não do não indígena.

Enquanto que o estar indígena, é uma produção social e política para dar resposta

ao imaginário construído pelo não indígena, o outro – o branco. Constatei também

que o imaginário do ser indígena, para si – o indígena -, também foi construído, em

movimento duplo, mas unificado em um mesmo sujeito, à medida que manteve a

raiz e o eixo condutor da tradição Pankararu, apropriando-se dos elementos dos

outros – o indígena, o branco, o afrodescendente -, a cultura, a religião, as crenças,

os ritos, a ética, a moral. O imaginário do ser indígena para o Geripankó, Kalankó,

Karuazu, Katökinn e Koiupanká é o que é vivenciado em todas as suas dimensões,

subjetivas, psicossomáticas, culturais, religiosas e políticas.

O ser indígena para o outro e revindicar o reconhecimento da identidade

étnica, é uma opção e decisão política do sujeito. É garantido pelas lideranças,

mesmo sabendo da pertença pela relação de parentesco, conhecendo e praticando

os ritos religiosos e a cosmogonia, cabe ao sujeito procurar o direito de ser

reconhecido e ter acesso às garantias legais.

Com isso, pode-se afirmar que as práticas de representação identitárias e

ressignificação do imaginário foram sustentadas e recriadas no imaginário indígena

para sustentar-se enquanto pessoa, mas também para firmar-se enquanto sujeito

diferenciado diante do outro, o indígena e o não indígena.

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