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1 Pontifícia Universidade Católica do Estado de São Paulo PUC – SP Maria Aparecida dos Santos Autoria: as injunções do jogo significante Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem São Paulo 2015

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Pontifícia Universidade Católica do Estado de São Paulo

PUC – SP

Maria Aparecida dos Santos

Autoria: as injunções do jogo significante

Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem

São Paulo

2015

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Pontifícia Universidade Católica do Estado de São Paulo

PUC – SP

Maria Aparecida dos Santos

Autoria: as injunções do jogo significante

Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem

Texto apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Francisca de Andrade Ferreira Lier-Devitto.

São Paulo

2015

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

Dra. Maria Francisca de Andrade Ferreira Lier-Devitto

_____________________________________

Dra. Eliane Mara Silveira

_____________________________________

Dra. Lourdes Maria de Andrade Pereira

_____________________________________

Dra. Lúcia Maria Guimarães Arantes

_____________________________________

Dra. Sheila Dias Maciel

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

Assinatura:_______________________________________

Data: SP, 29 de setembro de 2015.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pelo conforto, acolhida e proteção.

À Professora Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto, pela orientação

paciente e atenta e pela exigência e rigor das leituras e comentários

feitos a este trabalho.

Às Professoras Lúcia Arantes, Suzana Fonseca, Eliane Silveira

pelas leituras e direcionamentos rigorosos da pesquisa durante os

exames de qualificação.

À secretária do LAEL/PUC-SP, Maria Lúcia dos Reis, pelo

profissionalismo, solidariedade e disponibilidade.

A todos os colegas do Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e

Clínica de Linguagem, pelas contribuições nas discussões no decorrer

de minha formação.

À Zélia, Albertina, Lourivaldo, Lourizelma, Anna, Miguel, Matheus

e Aurinandes, pela compreensão, incentivo, apoio e orações.

À amiga Rosiane Cristina Gonçalves Braga pelo carinho, amizade

e apoio de sempre.

À Kerly Grellmann pelo apoio e parceria no trabalho.

A Vera Pires, Julma Borelli, Sheila Maciel, Maraísa Arsénio e Ana

Vera Raposo pela amizade e apoio.

A todos os meus familiares e amigos.

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Subsiste, empero, un enigma. ¿Cómo puede el signo sostenerse unido en ausencia de toda relación interior, en ausencia de un mítico amo de las palabras, en ausencia de todo punto fijo externo? Aquí interviene uma de las innovaciones más importantes de la doctrina. Podemos resumirla así: si um signo dado se sostiene, es por los otros signos. (MILNER, 2002, p. 36).

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RESUMO Esta tese retoma a questão da autoria, abordada no texto de Michel Foucault ([1969] 2002): “O que é um autor?”. O objetivo é (re) colocar a problemática da autoria por outro ângulo, não determinado unicamente pelo vértice do imaginário, em que o autor se encontra situado como origem de seu ato. Foucault, ainda que de outra posição, ao discutir a noção de autor, abala a identificação/ligação estreita e tradicional entre autor e indivíduo, ao propor a função-autor para o exame das relações entre o autor e o texto. Para tanto, considerou que na indiferença do enunciado encontra-se uma regra imanente da escrita contemporânea. Uma escrita que, segundo Foucault, não se obriga com uma interioridade, já que é “jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante” (FOUCAULT, [1969]2002). Dois motivos explorados nesta tese circunscrevem o sentido de ‘indiferença” na obra de Foucault: (1) a escrita libertou-se da ligação a uma expressão subjetiva - ela só se refere a si própria; (2) a escrita tem parentesco com a morte. Para observar o funcionamento deste jogo de signos, quando se discute autoria, parte-se da leitura da língua enquanto sistema descrito por Saussure ([1916] 2006), buscando levantar: (1) como Foucault articula a relação com a exterioridade do discurso e a língua, que só conhece sua ordem própria (as leis de referência interna da linguagem)?; (2) De que modo relaciona jogo de signos e a natureza do significante? e (3) o conceito saussuriano de a língua, definida como “sistema de valores” está presente na discussão foucaultiana sobre a autoria? As respostas a esses questionamentos foram relacionados ao referencial teórico estabelecido pelo Grupo de Pesquisa Aquisição, patologias e clínica de linguagem (LAEL-Derdic/CNPq), de que a Profa. Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto e a Profa. Dra. Lúcia Arantes são coordenadoras. A importância ali atribuída à ordem própria da língua e ao significante permitiu uma leitura diferenciada em relação às discussões de Foucault, segunda uma visada outra do que representou o retorno a Saussure (MILNER, 2002) nos anos de 1980. A natureza do significante apontou para tensões constitutivas e para uma relação faltosa na articulação de uma obra ou texto a um sujeito – há não-coincidência do sujeito consigo mesmo, e também não-coincidência dele com sua escrita. A aposta no significante (e não no significado), em que há ênfase nas leis de referência interna da linguagem (e não na exterioridade discursiva), demandaram diferenças em relação à discussão da questão da autoria, indicando avanços e limitações em sua problematização pelo filósofo. Palavras-chave: autoria, língua, injunções significantes

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ABSTRACT This thesis retakes the issue of authorship, discussed in the text of Michel Foucault ([1969] 2002), "What is an author?" The aim is to (re)put the issue of authorship from another angle, not determined only by the imaginary vertex, where the author is situated as the origin of his act. Foucault, albeit in another position, discussing the author's notion undermines the identification/strict linkage and traditional between author and individual proposing the author-function for inspecting relationship between the author and the text. For that, it considered that the statement of indifference is an immanent rule of contemporary writing. A writing that, according to Foucault, is not obliged with an interiority, since it's "set of signs headed fewer by its content meaning that by nature itself of the signifier" (Foucault, [1969] 2002). Two reasons explored in this thesis delimit the meaning of "indifference" in Foucault's work: (1) the writing has freed up to connecting to a subjective expression - it only refers to itself; (2) the writing is related to the death. To observe the operation of this set of signs, when discussing authorship, parts it from the reading language while system described by Saussure ([1916] 2006), seeking to raise: (1) "as Foucault articulates the relation with the exterior of speech and language that only knows its own order (laws of internal reference of the language)" ?; (2) How relates set of signs and the nature of the signifier? and (3) "the Saussurian concept of the language, defined as" value system "is present in Foucault's discussion of the authorship?". The answers to these questions were related to the theoretical framework established by the Research Group Acquisition, disease and clinical language (LAEL-Derdic / CNPq), that Prof. Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto and Prof. Dra. Lucia Arantes are coordinators. The importance attributed to there to its own language and the significant allowed a differentiated reading with respect to Foucault's discussions, second a target other than represented a return to Saussure (MILNER, 2002) in the 1980s. The nature of significant pointed to constitutive tensions and to a faulty connection in the articulation of a work or a text to a subject - there is non-coincidence of the subject with himself, and also non-coincidence of him with his writing. The focus on significant (and not in the meaning), where there is an emphasis on laws of internal reference of language (and not in the discursive externality), demanded differences from the discussion of the issue of authorship, indicating advances and limitations in its questioning by the philosopher. Keywords: authorship, language, significant injunctions

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SUMÁRIO

1. Considerações iniciais 10

1.1. Preâmbulo 10

1.2. Um texto acadêmico: (re)colocando a problemática da

autoria

14

2. O ensaio “O que é um autor”, de Michel Foucault: algumas

anotações

24

2.1. Da descontinuidade como conceito operatório em Foucault 30

2.2. Fundação da ciência Linguística: a noção de sistema em

Saussure

38

2.3. “Que importa quem fala?” A escrita na contemporaneidade 49

2.3.1. O jogo de diferenças opositivo-negativas entre escritor,

autor e função autor: a língua enquanto sistema para

Foucault

55

2.3.2 O nome próprio e o nome do autor entre a designação e a

descrição: característica e função

63

2.4. Foucault: a paradoxal singularidade da função autor 72

3. A questão da autoria e a ordem própria da língua 82

4. Considerações finais 91

5. Referências Bibliográficas 94

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1. Considerações iniciais

1.1. Preâmbulo

Esta tese retoma e discute uma questão difícil: a circunscrição da noção

de autoria. Ela é abordada num texto fulgurante de Michel Foucault: “O que é

um autor?”. Ter como título uma pergunta indica que “autoria” é assunto aberto,

que pode ser trabalhado a partir de ângulos.

De fato, é autor aquele que assina um texto? É autor o estudante que

escreve um relato, que desenvolve uma narrativa? Quem escreve uma tese é

um autor? Uma criança que ganha certa autonomia na escrita é um “autor”?

Vemos que o termo se estende e, nesse movimento, sua precisão se dissolve.

Foucault enfrenta a questão e oferece uma direção que orienta este trabalho,

não para fazer eco com ela, embora reconheça a presença ímpar deste autor

no tratamento deste assunto, que admita sua consistênsia e consistência.

Adianto, com isso, que a parte 2 é dedicada à apresentação de “O que é um

autor”.

A escolha deste tema decorre, no meu caso, da minha dissertação de

mestrado. Nela, já partindo pretensamente da concepção de um sujeito cindido,

descentrado, atravessado pelo inconsciente e, considerando que no discurso

de um sujeito podiam ser observados rastros de ressonâncias de discursos

outros que nele se disseminavam, constituindo-o heterogeneamente quando de

sua produção, perguntava-me como era descrita a delimitação de fronteiras

discursivas. Se o sujeito era constituído por discurso, buscava analisar como se

poderia observar a recomposição da subjetividade se ela se esfacelava tanto,

em vista de tantas desterritorializações.

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Um dos autores que constituiu minha base teórica nesse momento foi

Michel Foucault, cuja análise dos fatos históricos por meio do conceito de

descontinuidade me chamava muito a atenção, especialmente sua fala sobre

as escansões, em que “quando se desce para bases mais profundas, as

escansões se tornam cada vez maiores”. ([1979]2000, p. 3.) – o que me levava

a questionar as fronteiras discursivas. A observação da descontinuidade em

relação aos discursos e, portanto, ao sentido, parecia contradizer a noção de

discurso e sua vinculação à posição ocupada pelo sujeito. Como falar em um

discurso, em uma posição, se o que há são descontinuidades? Dizer que,

“quando se desce para bases mais profundas, as escansões se tornam cada

vez maiores” equivale à observação de um número maior de escansões ou

junção das descontinuidades na formação de um todo? Nesse sentido, se a

busca era pelo recorte e limite – o que muito me interessava na época em

Foucault – a descontinuidade marcava a dispersão, mas também a lacuna

entre um e outro? A descontinuidade, enquanto acontecimento discursivo, era

o que se intercalava entre um e outro contínuo?

A passagem da consideração do autor enquanto origem do seu dizer

àquele que não controla seu dizer parece retomar este último posicionamento.

Do mesmo modo, a escrita portadora do sentido do sujeito e liberta de sua

expressão de interioridade – impossibilitando a amarração de um sujeito em

uma linguagem - parece também estar na mesma direção. Ou, por outro lado,

Foucault radicalizava: o que existiam eram apenas descontinuidades?

Aliados a esse conceito de Foucault, observei, incipientemente, os

termos territorializações, de Deleuze, e contra-identificação, de Pêcheux. O

pontapé inicial dessas questões foram as inquietações experimentadas durante

o curso de algumas disciplinas no mestrado, em que, para algumas, houve a

realização de trabalhos que envolviam uma descrição de relações simétricas

entre discurso e lugar ocupado pelo sujeito, analisando entrevistas feitas entre

informante e documentador para o Projeto NURC (Projeto da Norma Urbana

Culta do Estado de São Paulo), por meio da descrição de regularidades

discursivas como pertencentes a discursos de professor, de cientista, de

católico, entre outros sujeitos. Incomodava-me a marcação do par discurso-

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lugar ocupado pelo sujeito. Se o sujeito já não é a origem de seu dizer, como

ainda se podia falar de tal ou tal discurso em relação à posição ocupada?

Pensar na heterogeneidade discursiva, observando a complexa

intricação de vozes1 - termo tal como empregado por Bakhtin -, como passível

de ser percebida em um discurso, levou-me a uma reflexão sobre como era

pensado o estabelecimento de fronteiras que demarcava a diferença entre, por

exemplo, o discurso de um burguês capitalista e o de um letrado. Os dois

discursos pareciam manter uma relação de interdependência. O primeiro

dizendo da divisão entre trabalho braçal e trabalho intelectual; o segundo, de

certa forma, estabelecendo a mesma divisão por meio da escolaridade. Os dois

podiam estar tão relacionados, a ponto de, em certos trechos das entrevistas

observadas, não se poder dizer, a relação de pertença entre discurso e sujeito.

A esta altura, perguntava-me: se a heterogeneidade proporcionava ao

sujeito a possibilidade de ser constituído por uma quantidade ilimitada de

discursos, como se podia dizer que esses mesmos discursos, em algum

momento, possam ser delimitados, já que um passa a fazer parte do outro,

constituem-se como fios discursivos da trama? Assim, parecia não bastar dizer

que o sujeito se constituía heterogeneamente, mas que o próprio discurso era

já por si só uma heterogênese, termo tal como discutido por Deleuze e Guattari

(1996), não estando, portanto, imune ao movimento da constituição do sentido

e, por conseguinte, do sujeito. Restava saber como se dava esse movimento.

Essa reflexão, em se observando um discurso, estabelecia uma quase

não existência de zona fronteiriça entre os mesmos. No relacionar desse

discurso com o exterior, com a posição ocupada pelo sujeito, é que se podia

dizer da delimitação do discurso, assim como está pressuposto no referencial

teórico e metodológico da Análise do Discurso: para se encontrarem "as

regularidades da linguagem em sua produção, o analista do discurso relaciona

a linguagem à sua exterioridade" (ORLANDI, E. 1999:16.). Por que não se

consegue o intento a partir também da interioridade? Por que um polo ou

outro?

1 O termo vozes é percebido nas reflexões que Bakhtin faz sobre o mesmo, enquanto internalização da palavra alheia por que o sujeito é constituído, revelando no seu dizer o dizer do outro.

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No desenvolvimento da discussão, observava que a delimitação interna2

dos discursos já não podia ser tão facilmente percebida e remetia à discussão

do interno e externo para o texto “A ordem do discurso”, de Foucault. A

impossibilidade de observação interna dos discursos e a vinculação do sentido

ao exterior ainda me incomodavam.

Duas considerações ainda me chamam a atenção quando fiz a análise

de dois discursos e observei a questão de fronteiras discursivas em minha

dissertação:

a. O de número 1 apresentava um grau maior de despersonalização, de

desterritorializações várias, com um grau maior de distanciamento

entre os estratos que o constituíam. As conexões pareciam ser

estabelecidas com um grau maior de resistência.

b. O de número 2 parecia poder possibilitar a observação de um grau

maior de aproximação entre as linhas que o constituíam. Existiam

linhas de fuga. No entanto, estas pareciam poder ser retomadas por

meio de uma conexão com um grau muito mais favorável em relação

ao ponto a que se conectava.

Diante destas duas situações, perguntei-me se se poderia afirmar

preliminarmente que, em se tratando da existência de linhas de fuga que mais

se distanciavam do que se aproximavam, a presença do sujeito, com sua

projeção na produção de um discurso, seria maior no primeiro do que no

segundo discurso observado.

Minha consideração precariamente fundamentada a respeito disso

direcionava a discussão para um exercício de despersonalização, no primeiro

caso, o que tornaria um discurso singular. No segundo discurso, essa atividade

de despersonalização parecia não ser tão intenso, resultando em repetibilidade

e reprodução. Talvez aqui pudesse ter visto um movimento interno e tivesse

reconsiderado a relação discurso e exterioridade na constituição do sujeito.

Aqui, utilizava o termo despersonalização e o ligava à singularidade. Dois

conceitos que pareciam não poder se relacionados.

2 As discussões feitas envolvendo a problemática de delimitação interna e externa do discurso devem ser remetidas a FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 4ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

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Ainda no encalço destas questões, no doutorado, propus-me a discutir a

questão da autoria. No curso das disciplinas e na participação do Grupo de

Pesquisa Aquisição, patologias e clínica de linguagem (LAEL-Derdic/CNPq),

encontrei-me com uma nova leitura de Saussure e da questão do signo. Para

aquém disso, Foucault discutia o que era um autor a partir de determinada

concepção de escrita em que se podia analisar o jogo do significante. Aqui foi

possibilitada uma ponte entre Saussure e Foucault para discutir as minhas

questões anteriores.

Como disse antes, não poderia discutir autoria sem fazer referência ao

ensaio “O que é um autor”, de Michel Foucault. Na leitura do texto, deparei-me

com a pergunta retomada de Beckett: Que importa quem fala? Da mesma

forma, como se pode ver retornando sempre em meu texto, fixei os olhos na

concepção de escrita de Foucault, em que no jogo dos signos, importava

menos o significado do que o jogo significante. Isso parecia se relacionar com a

questão do interior que eu perseguia antes, ao mesmo tempo em que se

voltava para o exterior, visto que quem estabelecia as discussões era Foucault,

cuja mão sobre o sentido pesava sobre esse quesito – a relação sentido e

exterior. Foi para iniciar a discussão sobre autoria que observei os textos

acadêmicos, acompanhando as discussões do grupo de pesquisa e

relacionando-as com as leituras que fazia de Saussure e de Foucault.

Delineei, como se pode ver adiante, algumas questões que poderiam ser

desenvolvidas a partir do ensaio de Foucault.

1.2. Um texto acadêmico: (re)colocando a problemática da

autoria

Na observação de textos acadêmicos universitários, espera-se deles que:

a) tenham fecho, unidade, coerência, sendo, portanto, concretos,

tangíveis, acessíveis, discerníveis, interpretáveis;

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b) sejam bem organizados, logicamente encadeados (itens ou capítulos),

atendendo, assim, à demanda universitária de sempre explicitar conceitos,

antes de utilizá-los;

c) contenham paráfrases esclarecedoras;

d) apresentem boa estruturação da escrita, de forma que esta seja

compreensível até mesmo para não iniciados numa determinada linha teórica.

Espera-se, enfim, que tudo deva estar claro, bem desdobrado,

explicado, resumido; tentativa, a meu ver, vã de controle do jogo significante e

de seus efeitos de sentido, empenho de contornar o equívoco de forma a

deixar a impressão de que houve controle pelo escrevente sobre o objeto de

estudo e sobre texto.

Numa tese acadêmica, a insistência nessas exigências de tudo ser bem

definido, desdobrado, explicado, explicitado com clareza para sustentação do

trabalho e da linha teórica relaciona-se à sua avaliação posterior por figuras de

autoridade da banca examinadora, da instituição, do departamento a que se

está vinculado, dado que o texto é apresentado para defesa. Trata-se de

figuras revestidas de poder que são também constitutivas da posição de

sujeito-escrevente. Estas exigências constroem o imaginário de ser possível

garantir consistência para o trabalho e coincidência entre fala/escrita e sujeito.

Nesse sentido, um aspecto, que discussões voltadas para o tema da

autoria colocam, é o de que a pessoa “seja sujeito de/em sua escrita”, que

“garanta coesão e coerência”; enfim: que sustente a relação entre

responsabilidade e autoria. O autor seria, então, alguém “responsável pelo

texto?”. De fato, falamos em “responsabilidade” quando examinamos

diferenças entre intertextualidade3 e plágio; quando apreendemos os

mecanismos linguísticos de dissimulação do texto alheio ou quando

procuramos atribuir um termo ou expressão a uma pessoa, por exemplo. Trata-

se, sempre, de alguma forma, de reconhecer a “responsabilidade” por um texto.

Desse modo, discutir a questão da autoria faz emergir um dos atributos

do que constitui o imaginário do que é um autor, do que é autoria. Sim, porque

3 Na concepção de Koch, 2000, p. 46, intertextualidade diz respeito aos modos como a produção e a recepção de um texto dependendo conhecimento que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona.

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“responsabilidade” diz respeito à suposição de que aquele que tenta atingir

essa condição estaria situado como origem de seu ato. Um sujeito que, por

isso, seria dono do seu dizer, sujeito centrado, capaz de expressar o que o

constitui como autor.

Frente a isso, a proposta deste trabalho é (re) colocar a problemática da

autoria por outro ângulo, não determinado unicamente pelo vértice do

imaginário. Pretende-se uma reflexão sobre o gesto de escrita que relaciona

um texto a um sujeito, que pode ser dito seu autor. Importa dizer que, ao longo

da história, essa relação nem sempre foi requerida, mas se tornou

imprescindível quando foi necessário responsabilizar (e punir) juridicamente

aquele que escreveu o texto:

Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores (FOUCAULT [1969] 2002, p. 47).

Segundo o autor, a consideração dos textos enquanto propriedade,

produto ou bem ocorreu no fim do século XVIII e começo do século XIX. Até

então, eram considerados atos, cuja caracterização situava-se entre o sagrado

e o profano, o lícito e o ilícito, e poderiam repercutir na transgressão da ordem

religiosa ou política. Nesse sentido, surgiu a necessidade de identificação dos

transgressores, cujos atos poderiam atingir a estrutura da sociedade

estabelecida, abalando seus pilares. Importa também assinalar que a prática

da escrita é criminalizada concomitantemente ao nascimento do capitalismo.

Por outro lado, Foucault observava que nem sempre foram os mesmos textos a

pedir uma atribuição:

Houve um tempo em que textos que hoje chamaríamos “literários” (narrativas, contos, epopéias, tragédias, comédias) eram recebidos, postos em circulação e valorizados sem que se pusesse a questão da autoria. O seu anonimato não levantava dificuldades, a sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era uma garantia suficiente. Pelo contrário, os textos, que hoje chamaríamos “científicos”, versando a cosmologia e o céu, a medicina e as doenças, as ciências naturais ou a geografia, eram recebidos, na Idade Média, como portadores

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do valor de verdade, apenas na condição de serem assinalados com o nome do autor: “Hipócrates disse”. FOUCAULT ([1969]2002, p. 48). (Ênfase minha).

Considerando o período dos séculos XVIII e XIX, em que se dá a

passagem de um momento em que a atribuição autor-texto não é requerida,

para um momento seguinte em que se torna imprescindível a atribuição de

propriedade, Foucault ([1969]2002) apresenta, na discussão da autoria, um

contexto marcado, nesse sentido, pela individuação das ideias – que impõe

necessidade de atribuição da propriedade ao autor.

Em A ordem dos livros, de CHARTIER, vemos que a questão da

propriedade literária não se relaciona somente aos direitos individuais, mas

também às garantias dos direitos da livraria. Após discutir as colocações de

Foucault em O que é um autor, Chartier observa ser necessário reconsiderar o

próprio contexto da aparição da propriedade literária: a afirmação da

propriedade literária deriva diretamente da defesa da livraria, que garante um

direito exclusivo sobre um título ao livreiro que o obteve (CHARTIER, 1999, p.

38).

A discussão da propriedade literária, portanto, tem origem não apenas

na aplicação particular de um direito individual, mas também no direito dos

livreiros. Um exemplo disso, dado pelo autor, é a estratégia dos livreiros

londrinos em 1709, que limitavam a duração do copyright a catorze anos,

sendo concedidos mais catorze anos se o autor continuasse vivo. Para

Chartier, “quando os poderes reconhecem o direito dos autores sobre suas

obras, eles o fazem na lógica antiga do privilégio” (CHARTIER, 1999, p. 39).

Estes privilégios expiravam quando o autor e seus legatários faleciam. Frente a

isso, este estudioso afirma que, em nenhum momento, “a propriedade literária

é, portanto, identificada às propriedades imobiliárias, imprescritíveis e

livremente transmissíveis” (Ibidem, p.39).

Por outra via, relacionar um texto a seu autor tornou-se mais

problemático desde que a questão do sujeito restar abalada pela “descoberta

do inconsciente” por Freud. Essa descoberta “desresponsabiliza” a figura do

sujeito, colocando-o em oposição ao sujeito cartesiano, centrado, fonte de seu

dizer. Assim, desde a descoberta do inconsciente, o sujeito não é mais visto

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como uma instância única representada pelo “eu”4. Implicar esta outra visada

sobre o sujeito exige, portanto, interrogar o imaginário de autor como um

sujeito que seja senhor, proprietário e responsável único pelo texto que

escreve.

Representante de um momento de individualização das ideias, a

discussão sobre autoria dificilmente poderá ser entendida de forma diferente

daquela que estabelece uma relação especial entre um texto/obra a um sujeito:

o efeito dessa relação tem como consequência “o autor”. O problema é dizer

como interpretar esta relação, tendo em vista, inclusive, a questão da

necessidade jurídica do reconhecimento de um responsável pelo escrito. Aí já

se vislumbra a imagem de um sujeito não unificado, uniforme: ela se esgarça

em sujeito jurídico, moral, responsável e aquela que emerge com a hipótese do

inconsciente.

Nesta tese, pressupõe-se esse momento histórico de individualização

das ideias, que constitui a figura do autor; momento em que se considera o

laço que vincula texto a autor, ao nome do autor. Veremos que não é apenas a

assinatura que responde pela “responsabilidade” da obra/texto. O nome do

autor poderia indicar o “proprietário” do texto, mas ele (o texto) é, ao mesmo

tempo, um espaço de articulações significantes que se definem no “só depois”

da constituição do texto, lugar que não é livre de conflitos enunciativos. Uma

pergunta de interesse, que se discute aqui, é a de se a assinatura garante a

autoria de um texto. Aposta-se, aqui, na ideia de que a relação entre texto e

autor pode prescindir da assinatura do nome - o que levanta uma indagação

sobre a questão da propriedade e responsabilidade. Nesse sentido, muda o

valor ou o sentido de “assinatura”.

Para atestar a responsabilidade pela obra, pode-se realizar um trabalho

de definição (função indicadora) e descrição (possibilitando a reunião de séries

equivalentes de textos), que viabilize o estabelecimento de um estilo que

permita indicar uma relação entre nome e autor: o que promoveria uma

diferença entre o nome comum e o nome de autor. Podemos observar que sob

o nome do autor reúne-se certo número de textos, que mantêm uma relação

4 Basta, para iluminar esta afirmação lembrar as três faces que constituem o aparelho psíquico em Freud: EU / ISSO / SUPEREU.

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entre si. Desse modo, como discute Foucault, o nome do autor é um nome

próprio com o qual não é possível estabelecer uma referência pura e simples:

O nome próprio tem outras funções que as indicadoras. Isto porque ele é equivalente a uma descrição: Quando dizemos “Aristóteles”, empregamos uma palavra que é o equivalente a uma só ou a uma série de descrições definidas, do gênero: ‘o autor dos analíticos’, ou ‘o fundador da ontologia’. (FOUCAULT [1969]2002, p. 42).

A observação dessa problemática permite que a discussão da autoria de

um texto revele tensões constitutivas que participam da possibilidade de

atribuição de um texto a um autor. De outro modo, poder-se-ia, também,

discutir a relação entre um dito ou escrito e seu autor por meio da análise da

posição-autor, observando-a num livro (o narrador, o confidente, o

memorialista...); num discurso (o filosófico, o científico, o pedagógico...); ou

num campo discursivo (disciplina, ciência...).

Toda a complexidade da relação entre autor e texto é discutida por

Foucault em seu ensaio O que é um autor, apresentado em 1969 diante dos

membros da Sociedade Francesa de Filosofia, da qual faziam parte os

debatedores Jean Wahl, Jean d’Ormesson, Lucien Goldmann, Maurice de

Gandillac, Jean Ullmo e Jacques Lacan. Certamente, este texto de Foucault é

axial e indispensável num trabalho que reflita sobre autoria, especialmente se

considerarmos o avanço realizado por ele quanto à apresentação dessas

tensões problematizadas anteriormente em relação ao nome do autor e à

posição-autor, especialmente a lacuna entre texto e autor via escrita.

Interessa, ainda, para a reflexão que ora desenvolvo, lembrar que

Foucault participou das discussões teóricas mantidas, nos anos 60 e 70, sobre

o estruturalismo, movimento que foi tributário do pensamento de Saussure

([1916]2006) - este, um autor sem obra assinada e que foi “feito autor

retroativamente” (MILNER, 2002). A palavra “significante” presente no título

deste trabalho obriga considerar tal autoria, que revolucionou o pensamento

nas ciências humanas no século XX. A discussão nesse campo foi

profundamente afetada pela “visada sincrônica”, introduzida por Saussure,

sobre a linguagem: tratou-se de oferecer uma interpretação estrutural do

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mundo. Sabemos, também, que, nesse mesmo gesto, Saussure retira de cena

o sujeito psicológico, aquele que se apropria da linguagem e que, ao

internalizá-la, passa a ter posse e controle sobre ela:

Se, com relação à ideia que representa, o significante aparece como escolhido livremente, em compensação, com relação à comunidade linguística que o emprega, não é livre: é imposto (...). Esse fato, que parece encerrar uma contradição, poderia ser chamado familiarmente de “a carta forçada” (...). Diz-se à língua: “Escolhe!”; mas acrescenta-se: “O signo será este e não outro”. Um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a escolha feita [pela língua], como também a própria massa [falante] não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra: [ela] está atada à língua tal qual é. (SAUSSURE, [1916] 2002, p. 111)

Como se pode ver, Saussure suspende o “sujeito em controle” da ordem

própria da linguagem e retira, também, a língua do controle da sociedade. Para

ele, trata-se de “massa falante”. Uma língua “não é uma instituição social

semelhante às outras” (Idem, p. 41) porque abrange a todos e o tempo todo:

“Esse fato capital basta para demonstrar a impossibilidade de uma revolução:

de todas as instituições sociais, é a que oferece menos oportunidades às

iniciativas” (ibidem, 114). Também, acrescenta ele, sendo o signo

radicalmente arbitrário, o mesmo argumento se coloca para a esfera da massa

falante: “uma língua é incapaz de se defender dos fatores que deslocam,

minuto a minuto, a relação entre significante e significado. As outras

instituições - os costumes, as leis ... – estão baseadas (...) na relação natural

com as coisas (...). A língua, ao contrário, não está limitada por nada na

escolha de seus meios (...)”, (Ibidem, p. 117). Em outras palavras, ela só

obedece às leis de sua ordem própria. Note-se que nem o indivíduo nem a

sociedade (em sentido estrito) podem afetar os movimentos da língua (e de

uma língua) porque ambos são determinados por estes últimos.

Foucault ([1969]2002), ainda que de outra posição, ao discutir a noção

de autor, abala a identificação/ligação estreita e tradicional entre autor e

indivíduo (ser uno, indivisível e responsável), ao propor a função-autor para o

exame das relações entre o autor e o texto. A construção da figura do autor se

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elabora, em sua perspectiva, em formações discursivas particulares. Neste

sentido, Foucault afirma que, na indiferença do enunciado “que importa quem

fala?”, encontra-se o princípio ético fundamental da escrita contemporânea. Tal

“indiferença” seria uma espécie de regra imanente, que não marcaria a escrita

como um produto, já que, segundo ele, a “indiferença” domina a escrita como

prática.

Dois motivos explorados nesta tese circunscrevem o sentido de

‘indiferença” na obra de Foucault:

(1) a escrita libertou-se da ligação a uma expressão subjetiva - ela só se

refere a si própria: identifica-se com sua exterioridade (outros discursos).

(2) a escrita tem parentesco com a morte.

Neste ponto, podemos afirmar uma verdade sobre a autoria ela se

relaciona com a escrita. Uma escrita que, segundo Foucault, “não se obriga

com uma interioridade, já que é “jogo de signos comandado menos por seu

conteúdo significado do que pela própria natureza do significante”

(FOUCAULT, [1969]2002, p. 35). Escrita é linguagem. Pois bem, esta citação

de Foucault é mote para o estudo que desenvolvo, abordando criticamente “o

jogo de signos” na reflexão foucaultiana sobre autoria a partir de considerações

sobre a língua e o significante em Saussure.

A relação entre escrita e exterioridade, presente no artigo de Foucault,

está em sintonia com as discussões teóricas dos anos 60 e 70, que questiona a

confiança no eu, que interroga a interioridade como fonte do discurso. Com

isso, Foucault revoluciona: desloca a discussão sobre autoria. Convém dizer,

mais uma vez, que por outras vias, a concepção de sujeito, enquanto senhor

de si havia sido destituída, por Freud (1900). Foucault não passou incólume ao

impacto da obra freudiana. Com Freud, podemos dizer que falante e sujeito

não se coincidem – por certo, há algo disso, embora não dito, na discussão

foucaultiana sobre autoria: se o sentido era atributo da interioridade, ele migra

para a exterioridade, já que, no “jogo do signo”, o comando estaria mais do

lado da “natureza do significante” do que do significado:

... [a escrita] é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante; (...) a regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em

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vias de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer. (FOUCAULT, [1969]2002, p. 35).

A questão é dizer se Foucault está mais do lado da língua (sua ordem

própria) e do significante ou mais do lado do signo e do sentido. Para isso,

algumas questões de interesse podem ser levantadas: (1) “como Foucault

articula a relação com a exterioridade do discurso e a língua, que só conhece

sua ordem própria (as leis de referência interna da linguagem)”? (2) De que

modo relaciona jogo de signos e a natureza do significante?

Para Saussure ([1916] 2000), as discussões convergem para o objeto da

Linguística: la langue. Nesse sentido, perguntamo-nos: (3) “o conceito

saussuriano de a língua, definida como “sistema de valores” está presente na

discussão foucaultiana sobre a autoria?”. Considerando que a materialidade do

discurso é a língua (ORLANDI, 2001, P. 69) e considerando que a questão do

discurso interessou profundamente a Foucault, não seria de se esperar que o

cerne de sua reflexão estivesse pautada por uma interrogação sobre o

significado ou sobre o sentido (ainda que não pelo conteúdo interno de um

texto)?

Com estas questões, debruçamo-nos na leitura do ensaio “O que é um

autor”, tendo como fundo o referencial teórico estabelecido pelo Grupo de

Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (LAEL-Derdic/CNPq),

de que a Profa. Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto e a Profa. Dra. Lúcia Arantes.

Entende-se por que o título desta tese faz menção a “injunções do jogo

significante”: um deslocamento que, sublinho, não é qualquer. O caminho

proposto aqui, para a problematização do autor parte de artigos de Lier-DeVitto

(2008) e Lier-deVitto & Fonseca (2012), que abordam a relação de não-

coincidência entre falante e sujeito, falante e fala; discussão, esta, que decorre

de um enunciado de Milner, qual seja: “a única liberdade do sujeito é que ele

pode aparecer em qualquer ponto da cadeia” (MILNER [1978]1987, p. 64).

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A importância ali atribuída à ordem própria da língua e ao significante

permite prever uma leitura diferenciada em relação às discussões de Foucault.

A natureza do significante aponta para tensões constitutivas e para uma

relação faltosa na articulação de uma obra ou texto a um sujeito – há não-

coincidência do sujeito consigo mesmo, nem dele com sua escrita. Digamos

que a aposta no significante (e não no significado), em que a ênfase nas leis de

referência interna da linguagem (e não na exterioridade discursiva) demanda

que diferenças sejam estabelecidas.

Diferenciada é, também, a leitura deste Grupo de Pesquisa, que toma

partido daquela que representou, nos anos de 1980, um “retorno a Saussure”

(MILNER, 2002) e que recolheu a novidade saussuriana que revolucionou as

ciências humanas, mas não a Linguística, que permaneceu a uma leitura

filológica desse autor (LEMOS et alli, 2004). Dito de outro modo, ela ficou presa

a um já-sabido (gramatical e/ou filológico) sobre a linguagem.

No que concerne à escrita, parte-se da recusa de que a escrita seja

representação da fala. A escrita como representação “é bem ajustada à ideia

de que a linguagem é diretamente acessível/transmissível: um objeto que pode

(...) ser naturalmente apreendido/aprendido por um indivíduo devidamente

dotado de capacidades cognitivo-perceptuais” (ANDRADE, 2006, p. 349). A

concepção de escrita como representação da fala fica recuada, também neste

Grupo de Pesquisa, recuada enquanto “interioridade”, embora ligada à

“natureza do significante” e não a uma exterioridade discursiva. É com estas

inquietações que iniciamos a apresentação de O que é um autor.

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2. O ensaio “O que é um autor”, de Michel Foucault: algumas

anotações

[Lamento muito não ter podido trazer para o debate que agora vai se seguir nenhuma proposição positiva: no máximo, direções para um trabalho possível, caminhos de análise. Mas devo pelo menos dizer, em algumas palavras, para terminar, as razões pelas quais dou a isso uma certa importância.] (FOUCAULT[1969]2002).

Foucault traz como vantagem em seu ensaio O que é um autor o fato de

relacionar este sujeito à responsabilidade institucional e jurídica. O anonimato

em uma sociedade cujas propriedades e responsabilidades devam ser

consideradas parece insuportável. Mas Foucault já havia alertado que nem

sempre fora assim, como vimos anteriormente: as obras nem sempre

necessitaram ter a atribuição da propriedade a um autor. Isto se tornou

imprescindível após a consideração de textos transgressores, que poderiam

abalar a ordem social estabelecida; após a marcação da propriedade individual

e a marcação dos direitos dos livreiros. Todos estes fatos estão

concomitantemente relacionados ao nascimento do capitalismo.

Com a discussão da morte do autor, inevitavelmente, relações foram

estabelecidas entre a mortalidade existencial e a mortalidade institucional. Há

toda uma situação de direitos, políticas, ética, propriedades e legados autorais

a serem considerados. Nesse sentido, Buker (1998) analisa que as discussões

sobre a “morte do autor” atingiram um nível de pura incompreensibilidade,

ainda que tenha servido para sacudir as bases em que até então se encontrava

a questão da autoria, ao postular o sujeito originário e com controle do seu

dizer, pois já não se podia pensar em um sujeito estável de escrever em

qualquer contexto, seja ele transcendental ou empírico.

A impossibilidade de relacionar texto e autor a partir da escrita, “liberta

de sua expressão de interioridade” (FOUCAULT, 2002) – que retirava o sujeito

do controle e origem de seu dizer - e a continuidade de seu funcionamento

social - levou Foucault a reconsiderar a figura autoral. A lacuna gerada entre

autor e texto, demandando uma nova análise do posicionamento dessa figura,

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constitui para Foucault uma descontinuidade e é encarada como um

acontecimento histórico e discursivo. Este novo posicionamento vincula-se à

consideração da função-autor, o que pressupõe a retirada do sujeito enquanto

fundamento originário do enunciado e demarca uma posição em que um sujeito

pode se colocar para enunciá-lo.

A lacuna entre autor e texto a partir da consideração da escrita parte de

uma nova visada sobre o sujeito, que é possibilitada pela ciência linguística, tal

como postulada por Saussure ([1916]2002). No entanto, Foucault, em uma

entrevista publicada em 1967, é bastante explícito ao afirmar seu

distanciamento em relação a ela:

"(...) não estou tanto interessado nas possibilidades formais oferecidas por um sistema como a língua [langue]. Pessoalmente, sou mais obcecado pela existência dos discursos, pelo fato de que palavras ocorreram: estes eventos funcionaram em relação a sua situação original, deixaram traços atrás deles, eles subsistem e exercem, naquela substância mesma no interior da história, certo número de funções manifestas ou secretas5".

Neste estudo, investigamos esse distanciamento de Foucault em relação

à Linguística, analisando as visadas diferentes ou os possíveis avanços de

Foucault em relação a ela. Observamos que no ensaio “O que é um autor” o

filósofo se propõe a “examinar unicamente a relação do texto com o autor, a

maneira com que o texto aponta para essa figura que Ihe é exterior e anterior,

pelo menos aparentemente” (FOUCAULT, [1970]2002, p. 34), ainda que,

controversamente, a questão da língua seja o ponto crucial que envida o que

ele denominará de apagamento do autor e ainda que a língua constitua a

materialidade do discurso. Nesta sua fala, vemos o conceito de autoria, qual

seja, a possibilidade de articulação entre texto e autor.

O ponto de partida da discussão proposta em O que é um autor foram as

imprudências que Foucault teria cometido em As Palavras e as Coisas

([1966]2002), livro em que “tentara analisar as massas verbais, espécies de

planos discursivos, que não estavam bem acentuados pelas unidades habituais

do livro, da obra e do autor” (FOUCAULT [1969]2002, p. 31), buscando

observar as condições de funcionamento discursivo específico.

5 FOUCAULT, M. (1994) Ditos e escritos, I, p. 595.

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Segundo o autor, duas objeções foram bem formuladas em relação ao

seu trabalho em As palavras e as coisas ([1966]2002), mas não eram

justificáveis. A primeira dizia respeito ao modo como descrevia os autores:

“você não descreve Buffon convenientemente, e o que você diz sobre Marx é

ridiculamente insuficiente em relação ao pensamento de Marx” (Idem, p. 31). A

contra-argumentação de Foucault expõe uma diferença em relação ao que se

considera sujeito: a questão não era descrever Buffon ou Marx, mas “encontrar

as regras pelas quais eles tinham formado certo número de conceitos ou de

teorias que se podem encontrar nas suas obras” (Idem, p.32).

A mesma oposição pode ser lida em relação à segunda objeção, a de

ele formar famílias monstruosas, aproximando Buffon e Lineu, Cuvier e Darwin.

Respondendo, afirma não ter procurado “fazer um quadro genealógico das

individualidades espirituais, nunca pretendi constituir um daguerreótipo do

sábio ou do naturalista dos séculos XVII ou XVIII” (Ibidem, p.32).

Em Foucault, a consideração de boa formulação presente tanto na

primeira quanto na segunda objeção, embora não considere ambas

justificáveis, requer uma visão diferente de sujeito que não se relaciona com o

sujeito cartesiano. Suas colocações não deveriam se dirigir ao indivíduo – a

Marx, a Buffon nem pretendia estabelecer o quadro genealógico dessas

individualidades, reproduzindo o que disseram ou quiseram dizer, embora a

nomeação estabelecida pudesse se contrapor ao pretendido por Foucault,

como de fato objetou-se posteriormente. Segundo o autor, a proposta em As

palavras e as Coisas ([1966]2002) era observar as condições de

funcionamento de práticas discursivas específicas.

Numa terceira objeção ao seu trabalho, afirmava-se que era preciso não

utilizar nenhum nome de autor ou definir o modo como são utilizados.

Diferentemente das duas primeiras, esta objeção questiona o funcionamento

discursivo. Nesse quesito, ela se diferencia das duas anteriores e confronta

Foucault em seu terreno de estudo. Coloca-se, aqui, a questão do autor.

O estudo do que é um autor se justifica para Foucault na importância

que este tem no momento de individualização na história das ideias. A

literatura, a ciência, a filosofia constituem unidades que são sempre

secundárias e sobrepostas em relação à unidade primeira, sólida e

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fundamental, que é a do autor e da obra. A questão posta é como o texto

aponta para essa figura que lhe é anterior e exterior pelo menos em aparência.

Para iniciar a discussão, Foucault toma emprestada a Samuel Beckett a

pergunta “Que importa quem fala? Alguém diz que importa quem fala”. A

indiferença mencionada aqui se relaciona a uma noção contemporânea de

escrita e a domina como prática, por dois motivos: o primeiro deles diz respeito

ao fato de a escrita ter se libertado do tema da expressão – e nisso se pode

considerar a natureza do significante, o que coloca em questão o sujeito

enquanto fundamento originário. Por conseguinte, diz respeito ao parentesco

da mesma com a morte – o que pode ser notado no apagamento voluntário do

sujeito, no apagamento dos caracteres individuais de quem escreve.

A descrição da função-autor realizada por Foucault é delimitada a textos

e obras. Considerando os dois caracteres da escrita mencionados acima, a

análise dessa função é realizada do ponto de vista interno: a observação é

voltada para a escrita e isto especialmente em se considerando o cenário de

negação, de morte do sujeito, que se imporia a partir de certa concepção de

escrita. O fato de partir da escrita coloca em questão o sujeito originário e, por

esse motivo, não basta apenas afirmar o desaparecimento do autor.

Nesse sentido, Foucault observa que, embora haja essa indiferença, a

subsistência do autor se mantém, ainda que a noção de obra e a noção de

escrita o bloqueiem, fazendo esquecer o que devia ser evidenciado. A noção

de obra interfere na noção de autor na medida em que a palavra obra e a

unidade que ela designa são tão problemáticas como a individualidade do autor

– o que é uma obra? Uma obra não é o que escreveu aquele que se designa

por seu autor? Quanto à escrita, em sua indiferença – pela qual está fora de

cogitação o gesto de escrever, marca (sintoma ou signo) do que alguém terá

querido dizer -, deveria dispensar a referência ao autor, mas também dar

estatuto a sua ausência – o que não ocorre. A questão, aqui, é a de se esta

indiferença não transpõe para um anonimato transcendental os caracteres

empíricos do autor.

Para Foucault, pensar a escrita enquanto ausência arrisca manter os

privilégios do autor sob a salvaguarda do a priori. Deste modo, não basta

repetir que o autor desapareceu. É preciso localizar o espaço deixado vazio por

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seu desaparecimento, seguir a repartição das lacunas e das fissuras, dos

espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto.

No empreendimento deste estudo, Foucault analisa os problemas

decorrentes do funcionamento do nome do autor, que não pode ser designado

como nome próprio, nem como designação, nem como descrição. Ele se situa

entre o pólo da designação e da descrição e não é apenas um elemento do

discurso. Por meio dele, exerce-se uma função classificatória dos textos,

relacionando outros textos entre si e fazendo com que o texto deva ser

recebido de determinada maneira. Da mesma forma, o nome do autor não

transita do interior de um discurso para o indivíduo real e exterior, mas bordeja

os textos, recortando-os.

Por conta desse funcionamento, temos a função-autor. Para caracterizar

um discurso portador dessa função, podem ser observadas quatro

características. Na primeira delas, os textos são objetos de apropriação – é

necessário que os textos tenham autores. Na segunda, é preciso considerar

que a função autor não se exerce da mesma forma – os textos nem sempre

requisitaram a função autor: eram portadores de verdade. O mesmo não

acontecia com os textos literários, cujo responsável deveria se apresentar

como autor. Na terceira característica, vemos que a função autor não se forma

espontaneamente. É resultado da projeção do tratamento a que submetemos

os textos. Como último ponto, vemos que a função autor não reenvia para um

indivíduo real, pois dá lugar a vários eus. Isso porque os discursos que são

providos da função autor comportam uma pluralidade de eus: o eu que fala no

prefácio de um tratado de matemática, o eu que fala numa demonstração, o eu

que fala dos resultados obtidos. Há a dispersão simultânea desses vários eus

num texto. Não há, assim, o reenvio para um indivíduo real; dá-se, sim, lugar a

várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar.

Pode-se, também, ter o autor de um texto, de um livro, de uma obra,

teoria, tradição, disciplina. Nestas três últimas - teoria, tradição, disciplina – o

autor ocupa uma posição transdiscursiva, o que faz com que Foucault o

nomeie de fundador de discursividade – aquele que produziu a regra de

formação de outros discursos. Na movência por heterogeneidade e diferença,

para esse tipo de autor, há a exigência de um retorno – regressa-se ao que

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está no texto, mas, ao mesmo tempo, ao que está marcado em vazio,

ausência, lacuna. O retorno deve redescobrir uma falta. E isto pode ser

analisado a partir dos textos de Freud e Marx, em que as leituras realizadas por

outros vivificam, alargam os horizontes da disciplina, da teoria por eles

inicialmente sustentada.

Finalizando estas anotações, vemos Foucault afirmar que já se supôs

em questão o caráter absoluto e o papel fundador do sujeito, mas seria preciso

voltar a esse suspens não tanto para restaurar o tema de um sujeito originário,

mas para apreender os pontos de inserção, os modos de funcionamento e as

dependências do sujeito. “Trata-se de retirar do sujeito (ou ao seu substituto) o

papel de fundamento originário e de o analisar como uma função variável e

complexa do discurso”. (FOUCAULT [1970] 2002, p. 70).

Para inicializar estas problematizações descritas, o ponto de partida de

Foucault, como já fazia anteriormente na discussão de outros temas, foi a

utilização de uma posição teórica em que a descontinuidade é um conceito

operatório. Esta posição de análise o levou à observação de que, na escrita, há

a abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára de desaparecer.

É a descontinuidade entre a escrita e o sujeito que escreve o que

impossibilitaria amarrar um sujeito em uma linguagem.

É com vistas a essa primeira descontinuidade, ao buscar analisar o

funcionamento e a subsistência da figura do autor, que Foucault relaciona

escrita e exterioridade, já que, como dizia, a escrita contemporânea não estava

mais obrigada à forma de interioridade. É nesse sentido que retoma o

questionamento: que importa quem fala? Isso irá repercutir no avanço e nos

limites de suas discussões sobre a autoria, em cuja problematização a

utilização que faz do conceito operatório da descontinuidade traz uma

contribuição para os avanços, ao mesmo tempo em que impõe limites à sua

problematização.

Nesse sentido, os capítulos seguintes expõem, primeiramente, uma

leitura do que sejam as descontinuidades para Foucault, considerando que

este termo é um conceito operatório a partir do qual ele analisa os

acontecimentos históricos e discursivos, como por exemplo, na análise que

empreende do que é o autor.

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Igualmente, como veremos a seguir, Foucault afirma que a Linguística

lidou muito bem com as descontinuidades, ainda que o filósofo enfatize seu

distanciamento do objeto de estudo desta ciência. Por outro lado, o autor

discute a indiferença quanto ao autor a partir da escrita – considerando a

relevância, no jogo do signo, da natureza do significante em relação ao

significado. E essa indiferença somente pode ser analisada no terreno da

língua.

Após a discussão do que sejam estas descontinuidades, propomos uma

leitura do jogo do signo em Saussure, enfatizando a ordem própria da língua e

objetivando o estudo de aproximações e distanciamentos destes dois grandes

autores e suas possíveis contribuições para a análise do que seja autoria.

2.1. Da descontinuidade como conceito operatório em Foucault

A sistematização da obra de Michel Foucault – e mesmo a discussão do

simples termo obra, tal como veremos na análise de O que é um autor –

reproduz a complexidade do pensamente deste filósofo. NICOLAZZI (2001,

p.1) menciona alguns caminhos utilizados para essa sistematização: o primeiro

é o de agrupamento dos textos que coincidem com um tema comum:

Assim, classifica-se a obra da maneira costumeira: na década de 60, textos arqueológicos que têm por tema o saber; textos genealógicos nos anos 70, tematizando o poder; e, por fim, nos anos derradeiros de sua vida, textos arqueogenealógicos preocupados com a questão do sujeito6 (Op Cit p.1).

No segundo, o resumo feito pelo próprio Foucault em entrevistas do fim

dos anos 70 do seu projeto intelectual:

6 Segundo Nicolazzi: As coletâneas de artigos organizadas em livros dão mostras disto. Entre outros, ver Guilherme Castelo Branco e Luiz Felipe Baêta Neves (orgs.). Michel Foucault: da arqueologia do saber à estética da existência (1998), e Guilherme Castelo Branco e Vera Portocarrero (orgs.). Retratos de Foucault (2000).

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Segundo elas, todos os seus estudos têm como ponto de convergência uma preocupação com a verdade e, por conseguinte, com o sujeito: a dessubjetivação do louco, o assujeitamento nas prisões e a constituição do sujeito na Grécia Antiga (Op Cit, p.1).

E, por último, outras alternativas interessantes que rompem com as

posições anteriores, como dois livros publicados no Brasil Foucault, a filosofia e

a literatura, do filósofo Roberto Machado:

[...]neste estudo, estabelece certas balizas temporais localizadas, essencialmente, na primeira metade da década de 1960. Em tal período, além dos famosos livros sobre a loucura, o nascimento da medicina moderna e das ciências humanas, Foucault escreveu continuamente sobre uma de suas grandes paixões: a literatura (Op Cit, p.1).

E o texto de Francisco Ortega, Amizade e estética da existência em

Foucault:

Ortega parte de um importante deslocamento teórico do projeto foucaultiano ocorrido após a publicação do primeiro volume da história da sexualidade, em 1976, que levou o pensador francês a um estudo aprofundado dos clássicos gregos. Este deslocamento teórico centrava-se na amizade como prática política como relação de si para consigo e para com o outro, segundo preceitos éticos, tema que vem ocupando parte das discussões filosóficas da atualidade, com Blanchot e Derrida, por exemplo. (Op Cit, p.1)

Num outro posicionamento a respeito da sistematização da obra

foucaultiana, considero que o que a caracteriza é o posicionamento teórico:

são, de certa forma, uma apropriação da historiografia por parte de Michel Foucault: não são transformações dos métodos utilizados pelos historiadores, embora mantenham com eles um constante diálogo; são, antes de uma metodologia, posicionamentos teóricos diante da prática historiográfica, da pesquisa e escrita de histórias ((Op Cit, p.2).

Para empreender uma análise dos textos de Foucault, é preciso obervar

para onde ele direciona seu olhar: as problematizações do autor partem das

descontinuidades. Por meio delas, ele analisa o vazio, a curva e os limites do

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tema do que quer discutir em seu percurso histórico. E os temas frequentes

incluem o saber, o poder e a verdade, abordando-os enquanto acontecimentos

discursivos na constituição dos sujeitos.

A descontinuidade é objeto e instrumento de análise que constitui o

posicionamento teórico de Foucault, a partir do qual o autor realiza a

abordagem dos acontecimentos históricos. Nesse sentido, descontinuidade é

acontecimento. Um acontecimento que, para além do histórico, é também

discursivo. Por meio desse conceito, Foucault analisa os vazios, as curvas, as

rupturas, os limites dos temas que quer discutir, considerando o percurso

histórico, com, por exemplo, o saber, o poder e a verdade.

Desse modo, essa metodologia de análise das lacunas, fissuras,

espaços e funções constitui uma prática possível de ser visualizada em outros

estudos de Foucault. A prática da análise do descontínuo em Foucault

encontra-se já na sua tese de doutoramento. Nicolazzi (2001, p.4) descreve

que a palavra arqueologia – como arqueologia da alienação – aparece,

primeiro, em A História da Loucura, sua tese escrita durante a segunda metade

dos anos 50. Por meio das citações desta obra de Foucault, Nicolazzi afirma:

A arqueologia da alienação é o conceito que lhe permitiu tratar do “grau zero na história da loucura”7, ou seja, não daquilo que foi pensado sobre ela, mas daquelas que foram as condições de possibilidade para um pensamento sobre a loucura. Direcionando seu olhar a uma região de vazio, isto é, “uma região, sem dúvida, onde se trataria mais dos limites do que da identidade de uma cultura”, Foucault quer “interrogar uma cultura sobre suas experiências limites (o que significa) questioná-la, nos confins da história, sobre um dilaceramento que é como o nascimento mesmo de sua história” 8.

As citações foucaultianas trazidas por Nicolazzi expõem um

posicionamento teórico, cuja prática de análise interroga o vazio e os limites,

por meio dos quais a observação desse dilaceramento diria mais sobre limites

do que sobre identidade. Isto também pode ser observado no livro Arqueologia

do Saber, em que Foucault ([1969] 1997, p. 3) chama a atenção para os

7 Michel Foucault. Prefácio à primeira edição de História da loucura (1961). In: Ditos e escritos I, p. 140. (Cf. Nicolazzi (2001, p.4), 8 Ibid., p. 142. (Cf. NICOLAZZI (2001, p. 4)

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estudos dos historiadores, que há dezenas de anos voltavam sua atenção para

longos períodos – história dos caminhos marítimos, história do trigo e das

minas de ouro... – o que se denominava de grandes continuidades do

pensamento. Segundo Foucault, mais ou menos na mesma época, a atenção

se deslocou para fenômenos de ruptura (Idem, p.4). Sob essas grandes

continuidades, procura-se agora detectar a incidência das interrupções (Ibidem,

p.4). A análise histórica,

em suma, a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar todas as perturbações da continuidade, enquanto que a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos (Ibidem, p. 6).

Para Foucault (Ibidem), não devemos crer, com fé nas aparências, que

duas correntes que se entrecruzavam caminharam do contínuo para o

descontínuo ou do descontínuo para as grandes unidades ininterruptas, mas

imaginemos que, “na análise das ideias e do saber, prestamos uma atenção

cada vez maior aos jogos da diferença; não acreditamos que, ainda uma vez,

essas duas grandes formas de descrição se cruzaram sem se reconhecerem”.

Ao mesmo tempo, para a história clássica, o descontínuo era o dado e o

impensável, o “que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos

dispersos” (Foucault [1969] 1984, p. 9), devendo ser contornado, reduzido e

apagado.

Discutindo a história a partir das imagens do que considera documento

por oposição a monumento, Foucault observa que a história atual se volta para

a arqueologia, para a descrição intrínseca do monumento. Quando os

consideramos, buscamos as regras de formação, que tornaram possível a

própria existência do objeto. A análise dos acontecimentos históricos, feita

enquanto documentos ou monumentos, implica escolher entre a busca da

linearidade ou da descontinuidade, respectivamente.

A partir de sua crítica, a observação é a de que essas regras de

formação do objeto se encontram em processos de descontinuidade e

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dispersas no nível dos enunciados9. Na crítica do documento, observa-se que

esse tipo de tratamento de dados implica organizar e recortar a massa

documental, desprendendo a pesquisa de uma empiria dada a priori e

tornando a constituição do objeto uma parte importante da análise10:

[...] a história, em sua forma tradicional, se dispunha a "memorizar" os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifram rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico; pode-se dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento. (FOUCAULT [1969] 2002, p. 7 – grifos do autor).

A passagem da visada de documento a monumento impõe a

constatação de processos descontínuos e dispersos que impulsionam Foucault

para o entendimento de como os campos de conhecimento como a medicina, a

gramática e a própria ciência tomaram forma e existência. Assim, a

descontinuidade entre, por exemplo, gramática geral e filologia, entre história

natural e biologia, entre análise das riquezas e economia é que tornou

possíveis as ciências humanas (Cf. NICOLAZZI, 2001).

Na descrição do funcionamento histórico, a partir da noção do

descontínuo, Foucault ([1970]1997, p. 11) considera que o tema e a

possibilidade de uma história global apagando-se possibilita o esboçar do que

se pode chamar de uma história geral, em que o centro único cede espaço à

dispersão – “uma descrição global cinge significação, espírito, visão de mundo,

9 GIACOMONI, M. P. & VARGAS, A. Z. Foucault, a Arqueologia do Saber e a Formação Discursiva. VEREDAS ON LINE – ANÁLISE DO DISCURSO – 2/2010, P. 119-129. 10 COSTA, A. A crítica do documento de Michel Foucault: apontamentos sobre modalização empírica em análise do discurso. Revista Eletrônica Via Litterae – ISSN 2176-6800

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forma de conjunto; uma história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de

uma dispersão” (Idem, p.12).

Nesse posicionamento teórico, a descontinuidade, que era o “estigma da

dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história”

(FOUCAULT, [1969]1997, p. 10), torna-se um conceito operatório: paradoxal

noção de descontinuidade: “é ao mesmo tempo, instrumento e objeto de

pesquisa, delimita o campo de que é o efeito, permite individualizar os

domínios, mas só pode ser estabelecida através da comparação desses

domínios” (Idem, p. 10).

Mas a utilização desse método traz consequências. Em primeiro lugar, o

efeito de superfície: “a multiplicação das rupturas na história das ideias, a

exposição dos períodos longos na história propriamente dita” (Idem, p. 9).

Depois, a importância ganhada pela noção de descontinuidade, seguida pela

observação de que o tema e a possibilidade de uma história global começam a

se apagar (Ibidem, p. 9). Como última consequência, os problemas

metodológicos enfrentados, como, por exemplo, na constituição de um corpus

coerente e homogêneo de documentos.

Segundo Foucault ([1969]1997, p. 13), estes problemas fazem parte do

campo metodológico da história porque houve esse deslocamento, essa

libertação do que a constituía e também “porque coincide, em alguns de seus

pontos com problemas que se encontram em alguma outra parte – nos

domínios, por exemplo, da linguística, da etnologia, da economia, da análise

literária, da mitologia” (Ibidem, p. 13). Na Linguística, por exemplo, a dedicação

de Saussure ([1916]2000) ao terreno da língua possibilitou a discussão sobre

outro tipo de sujeito, como consequência para se pensar a ruptura entre língua

e o seu controle por um sujeito supostamente dono do seu dizer.

Para ele, essa mutação epistemológica da história está inacabada. Ela

não foi registrada nem refletida, enquanto que outras transformações, como as

da Linguística, sim:

Não foi transformada nem refletida, enquanto que outras transformações puderam sê-lo – as da linguística, por exemplo – como se fosse particularmente difícil, nesta história que os homens retraçam com suas próprias ideias e com seus próprios conhecimentos, formular uma teoria geral da

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descontinuidade, das séries, dos limites, das unidades, das ordens específicas, das autonomias e das dependências diferenciadas. É como se aí onde estivéramos habituados a procurar as origens, a percorrer de volta, indefinidamente a linha dos antecedentes, a reconstruir tradições, a seguir curvas evolutivas, a projetar teleologias, e a recorrer continuamente às metáforas da vida, experimentássemos uma repugnância singular em pensar a diferença, em descrever os afastamentos e as dispersões, em desintegrar a forma tranquilizadora do idêntico. (...) é como se tivéssemos medo de pensar o outro no tempo do nosso próprio pensamento. (Idem, p.14)

O estabelecimento feito por Foucault dessa ligação entre o

posicionamento teórico da história geral via observação do descontínuo e a

afirmação de que a Linguística conseguiu impingir essa visão da

descontinuidade, das séries, dos limites, das unidades, problematizando o

idêntico, parecem ser expressivos para a análise de como o jogo do signo na

escrita – “em que se deve menos ao seu conteúdo significativo do que à

própria natureza do significante” (FOUCAULT [1970] 2002, P.35) - é trazido

para a análise da questão da autoria. A Linguística de Saussure propiciaria

uma abordagem subjetiva que contemplaria o descontínuo, as rupturas, o

vazio. Enfim, contemplaria a ruptura entre língua e seu controle por um sujeito,

o que possibilitaria outra problematização do que seja autor, objeto de nosso

estudo.

A descontinuidade entre autor e texto, por exemplo, aponta para uma

lacuna e, ao mesmo tempo, algo que continua a funcionar a despeito dessa

descontinuidade, no lugar do autor. Há a subsistência do autor, ainda que as

noções de obra e especialmente a de escrita articulem o seu desaparecimento

(FOUCAULT ([1970] 2002). Assim, o conceito de descontinuidade é relevante,

porque Foucault ([1970]1997, p. 14) afirma que a Linguística fundada por

Ferdinand Saussure (1916) consegue lidar com a questão da descontinuidade,

possibilitando, principalmente, nova visada sobre o sujeito, ao expor a ruptura

entre a língua e o seu controle por um sujeito supostamente originário.

A análise desse descontínuo, desse vazio, entre essa função e o

apagar-se deste sujeito leva Foucault à observação do que se tem colocado

em seu lugar. Se não há mais o sujeito como origem de seu dizer e se mesmo

assim esta função se mantém, como está se processando a articulação entre o

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texto e autor? O que seria, então, o autor nesse dilaceramento de relações? Na

observação da descontinuidade utilizada como conceito operatório –

delimitando o campo de que é efeito -, lemos avanços e limites nas discussões

sobre o autor em Foucault. Importa, portanto, observar a caracterização que o

filósofo faz desse conceito. Nesse sentido, importa observar como nessa

ruptura funciona o conceito de descontinuidade.

Em resumo, ao desenvolver a sua discussão sobre a questão da autoria,

Foucault se utilizou da descontinuidade como conceito operatório. Esta

metodologia de análise o levou à observação de que, na escrita, há a abertura

de um espaço onde o sujeito que escreve não pára de desaparecer. É a

descontinuidade entre a escrita e o sujeito que escreve, considerando que não

se pode mais amarrar um sujeito em uma linguagem. É essa descontinuidade

que levou o autor a relacionar escrita e exterioridade, pois considera que ela

não está mais obrigada à forma de interioridade.

Para não repetir a “afirmação oca de que o autor desapareceu” – no

sentido da morte do sujeito consciente, centrado, senhor de si -, Foucault se

propõe a “localizar o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor,

seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e perscrutar os

espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto”

([FOUCAULT, [1969] 2002, p. 41). Entretanto, concomitantemente ao

desaparecimento do autor, duas noções, que deveriam substituir o seu

privilégio, acabam por bloqueá-lo: são as noções de obra e de escrita. Esse

bloqueio também poderá ser analisado sob a égide da descontinuidade, em se

observando a problemática do recorte e do limite quando a elas aplicados: a

descontinuidade desfaz qualquer possibilidade do contínuo, do reconhecimento

de si. O recorte e o limite são paradoxais: delimitam, embora se relacionem a

uma dispersão (FOUCAULT, [1969] 2002, p. 9.).

Ao realizar suas discussões por meio da observação das

descontinuidades, o filósofo aproximou autoria e escrita, ao mesmo tempo em

que possibilitou pensar a autoria a partir da consideração de que uma

discussão sobre a linguagem pode passar pelo terreno da língua, ao considerar

a escrita enquanto um jogo de signos. Observemos, a seguir, como isso se

apresenta em Saussure.

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2.2. Fundação da ciência linguística: a noção de sistema em

Saussure

Há um texto que considero fundamental para se compreender a

discussão atual sobre o que seja a noção de sistema em Saussure. A

importância que atribuo a ele se deve a uma apresentação histórica a respeito

do pensamento deste linguista: A teoria do valor no Curso de Linguística Geral,

de Eliane Mara Silveira (2009). Nele, podemos observar um percurso histórico

que conta a busca de uma resposta sobre a natureza da língua.

Neste texto, a discussão que a autora empreende de sistema possibilita

analisar o sujeito capturado pelo funcionamento da linguagem. E este é um

ponto que considero não contemplado na discussão de autoria realizada por

Foucault. Pensar um sujeito capturado pela ordem própria da língua implica

retirá-lo do controle do seu dizer, o que não equivale a negar esse sujeito,

transpondo o sentido apenas para uma exterioridade. Implica considerar que

algo está em funcionamento apesar e a despeito do sujeito. É precisamente

porque sofre essa injunção à ordem da língua e que desconhece que as

chamadas “lacunas” podem possibilitar um “retorno a”. Espero poder esclarecer

esse meu posicionamento no capítulo final, em que intento observar um avanço

na análise da autoria a partir de Foucault e da autora acima mencionada.

No artigo de Silveira (2009), apresenta-se o lugar da Teoria do Valor -

formulada por Ferdinand de Saussure (1857-1913) - e as buscas empreendidas

para responder qual a natureza da língua. Nesse percurso, apesar de não

poderem ser consideradas homólogas, as palavras organização, estrutura e

sistema foram utilizadas para discutir essa questão desde a antiguidade

clássica, com a grammatiké, posteriormente transformada em téchne, até o

estruturalismo, com Saussure.

A demanda de estudos pelo conhecimento da natureza da língua nos

permite afirmar a consideração de algo que se institui como a unidade da

linguagem, embora as respostas encontradas não se refiram ao mesmo objeto.

É neste sentido que vemos Silveira deter-se nas reflexões sobre a Teoria do

Valor, discussão que reorienta os estudos da linguagem. Segundo Silveira

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(2009), é a partir de Saussure que a pergunta sobre a natureza da língua passa

a implicar a consideração de língua enquanto sistema de signos, o que

“demanda a explicação do que é signo, seus componentes e seu

funcionamento e nos parece, ainda mais importante, exige a explicação do que

é sistema”. Deixemos o percurso histórico e nos centremos, então, no

funcionamento desse sistema.

O trabalho de Silveira ganha relevância ao discutir a Teoria do Valor

descrita no Curso de Linguística Geral, porque o faz não sem antes reler os

manuscritos saussurianos, cujo corpus faz parte de estudos anteriores da

autora. Cito, para conhecimento e exemplificação, o texto ”Um palimpsesto

entre o conserto e o Desconcerto, de 2007. Essa articulação entre os

manuscritos e o Cours possibilita a ponderação da discussão realizada a partir

de um texto, cuja autoria é reputada a Saussure, mas que na realidade é parte

de uma compilação elaborada por seus alunos Secheaye e Bally.

Na problematização empreendida pela autora sobre a Teoria do Valor,

ela informa o desconforto sofrido por Saussure com a terminologia recorrente

em relação à forma com que o objeto é abordado nas respostas sobre a

natureza da língua. Essas inquietações do linguista podem ser percebidas

quando analisa o fenômeno linguístico e o observa apresentando

perpetuamente duas faces. Para exemplificar, apresenta quatro situações:

1ª. As sílabas que se articulam são impressões acústicas percebidas pelo ouvido, mas os sons não existiriam sem os órgãos vocais; assim, um não existe somente pela correspondência desses dois aspectos. Não se pode reduzir então a língua ao som, nem separar o som da articulação vocal; reciprocamente, não se podem definir os movimentos dos órgãos vocais se se fizer a abstração da impressão acústica. 2ª. Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: é ele quem faz a linguagem? Não, não passa de instrumento do pensamento e não existe por si mesmo. Surge daí uma nova e temível correspondência: o som, unidade complexa, acústico-vocal, forma, por sua vez, com a ideia, uma unidade complexa, fisiológica e mental. E ainda mais: 3ª. A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro. Finalmente: 4ª. A cada instante, a linguagem implica um sistema estabelecido e uma evolução. A cada instante ela é uma instituição atual e um produto do passado. Parece fácil, à primeira vista, distinguir entre esses sistemas e sua história,

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entre aquilo que ele é e aquilo que ele foi; na realidade, a relação que une ambas as coisas é tão íntima que se faz difícil separá-las. Seria a questão mais simples se se considerasse o fenômeno linguístico em suas origens, se, por exemplo, começássemos por estudar a linguagem das crianças? Não, pois é uma ideia bastante falsa crer que em matéria de linguagem o problema das origens difira do das condições permanentes; não se sairá mais do círculo vicioso, então. SAUSSURE [1916] 2002, p. 15).

Para o autor, a escolha de qualquer um dos lados, em qualquer uma das

situações-exemplo acima, não possibilita a visão integral do objeto da

linguística. Assim, ou há a aplicação apenas a um dos lados e se deixa de

perceber as dualidades, ou se vê tudo como coisas heteróclitas, sem liame

entre si. Assim, escolhemos o som e deixamos a articulação vocal; ou se

estuda o som e se deixa a ideia (que se une ao som formando a unidade

complexa fisiológica e mental); ou se estuda o social e se deixa o individual; ou

se estuda o estado atual e deixa-se o passado. Com nenhuma destas escolhas

se poderia delimitar o objeto da Linguística, apreendendo-o integralmente. A

solução dada por Saussure é colocar-se no terreno da língua e tomá-la como

norma de todas as manifestações da linguagem. A língua constituiria esse todo

por si e princípio de classificação.

Estas inquietações de Saussure não permitem a afirmação de que o

linguista esqueceu a fala, ou a escrita, ou a diacronia, ou o social, ou o

individual. A questão a ser discutida é mais ampla e contempla todas as

manifestações da linguagem. É a língua que ele constitui como terreno para

essas manifestações. Os quatro itens expõe a necessidade de um

enfrentamento das questões que são relegadas quando se escolhe entre um

ou outro dos posicionamentos. A questão era como estabelecer um objeto em

que se pudessem observar as dualidades e, ao mesmo tempo, a integralidade,

posto que estas pareciam sem liames entre si.

Foi o desconforto frente a essas escolhas que eram realizadas dentro

dos estudos linguísticos e as suas consequências que levaram Saussure a

suspender os estudos realizados até então, dedicando-se às questões que o

angustiavam quando os observava. Segundo Silveira (2009), “essa suspensão

abriu a possibilidade de uma nova linguística a partir da qual o prazer histórico

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estava interditado visto que a estrutura (termo depreendido das elaborações de

Saussure) desde então lhe fez sombra.”

Diante da delimitação do objeto da nova ciência, a fundação da

Linguística moderna foi reputada, então, a Saussure. O desenvolvimento das

inquietações do linguista pode ser recolhido no texto Curso de Linguística

Geral. A nova abordagem do objeto linguístico inclui, segundo Silveira, uma

visada sobre a sincronia linguística para além da diacronia, a natureza das

unidades linguísticas e o valor linguístico, propiciando novo contorno para a

questão da natureza da língua.

Assim, passemos ao meu maior interesse – a questão do valor

linguístico – numa discussão do que seja sistema, ainda que sua formulação se

apresente de forma articulada em vários momentos do Cours. Em relação

especificamente ao capítulo Teoria do Valor, Silveira (2009) assim descreve a

sua organização:

[...] na primeira parte, é apresentada a teoria da língua enquanto sistema, na segunda parte a natureza do significado a partir da teoria do valor e, na terceira parte, temos a exposição do significante submetido ao sistema da língua e, na última parte, nos é apresentado o signo na sua totalidade funcionando a partir de relações puramente diferenciais constituindo o sistema da língua, para cernir a especificidade das propriedades do signo, significante e significado. (P. 48).

A discussão sobre o que seja sistema em Saussure é relevante neste

estudo porque permite tocar na questão da ordem própria da língua, cujo

princípio básico de funcionamento está, segundo Silveira (2009), no trecho em

que o mestre genebrino se dedica a tratar da língua como pensamento

organizado na matéria fônica:

O papel característico da língua frente ao pensamento não é criar um meio fônico material para a expressão das ideias, mas servir de intermediário entre o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza necessariamente à delimitação recíproca de unidades. O pensamento, caótico por natureza, é forçado a precisar-se, a se decompor. Não há pois nem materialização de pensamento, nem espiritualização de sons, trata-se antes, do fato, de certo modo misterioso, de o pensamento-som implicar divisões e de a língua elaborar as suas unidades constituindo-se entre as duas massas amorfas.

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(Saussure [1916]2002, p. 131, apud Silveira 2009, p. 49. Grifo da autora).

Para a autora, nessa passagem, tem-se uma ruptura com uma tradição,

bem colocada por Ducrot (1970, p. 27): ”Graças à linguagem, o pensamento se

oferece assim em espetáculo para si mesmo e para outrem”, em que se pode

entrever uma relação entre língua e pensamento: “Não há pois nem

materialização de pensamento, nem espiritualização de sons, trata-se antes, do

fato, de certo modo misterioso, de o pensamento-som implicar divisões e de

a língua elaborar as suas unidades constituindo-se entre as duas massas

amorfas.” Para Silveira, essa relação, a partir de Saussure, não foi negada,

mas, principalmente, modificada: o linguista “propôs uma teoria para a língua

que modificava a sua relação com o pensamento, permitindo outro lugar para

essa relação” (Op cit, p. 49).

Esse outro lugar implicava uma não correspondência entre pensamento

e som, o que suspende a língua enquanto representação do primeiro e o som

enquanto representação da língua. Não podendo se constituir enquanto

representação, pensamento e som são duas massas amorfas por entre as

quais a língua vai elaborar suas unidades. Essa consideração impõe nova

relação entre língua e pensamento, ao mesmo tempo em que permite a

observação da ordem própria da língua. A submissão ao sistema da língua e a

consequente não representação do pensamento retira o fundamento originário

do sujeito.

É a esse outro lugar que me refiro quando aposto que a retirada do

sujeito do controle do seu dizer não equivale a negar esse sujeito, não

necessitando tampouco permanecer na consideração de um sentido por meio

de oposições binárias: ou estaria no interior do texto ou no exterior do texto.

Esse outro lugar da relação entre linguagem e pensamento é explicitado na

definição de língua enquanto sistema, especificamente quando se observa o

caráter diferencial do signo, cuja propriedade não estaria em sua parte

conceitual:

Seu valor (da palavra) não estará então fixado, enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser trocada por este ou aquele conceito, isto é, tem esta ou aquela significação; falta

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ainda compará-la com os valores semelhantes, isto é, com as palavras que se lhe podem opor. Seu conteúdo só é verdadeiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, está revestida não só de uma significação como também, e sobretudo de um valor, e isso é coisa muito diferente. (Saussure [1916] 2002, p.134, apud Silveira, 2009, p. 49).

Da mesma forma, considerando o caráter da diferencialidade, a propriedade do

signo também não estaria em sua parte material:

Se a parte conceitual do valor é constituída unicamente por relações e diferenças com os outros termos da língua, pode-se dizer o mesmo da sua parte material. O que importa na palavra não é o som em si, mas as diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra de todas as outras, pois são elas que levam a significação. (op.cit., p.49).

Assim, não podemos afirmar uma propriedade positiva intrínseca em

relação às partes material e conceitual. Em relação à material, por exemplo,

não seriam os sons que delimitariam o significante, mas as diferenças fônicas

inscritas na língua. Igualmente, uma parte conceitual não teria positividade em

si mesma, a não ser quando posta numa relação diferencial opositivo-negativa.

Nesse sentido, Silveira (2009) afirma que o significante é “a-substancial e nada

se pode dizer dele a não ser pela relação estabelecida no sistema linguístico”

(Op cit., p. 50). Isso implica não submeter a língua à representação do

pensamento, pois encontra seu funcionamento específico nas relações

diferenciais negativas que não dependem de uma exterioridade que não seja a

própria língua. Essas relações exemplificam a questão do valor em relação à

da significação:

O valor é diferenciado da significação, no caso do primeiro temos uma presença desprovida de propriedades intrínsecas e para se dizer da presença - isto que comparece como positivo se faz necessário recorrer a uma ausência - ou ao negativo - que, contudo, opera na presença. É preciso notar que esse negativo não parece ser de outra ordem que a da própria língua. Quanto às propriedades de um termo da língua, é importante notar que: seu conteúdo só é verdadeiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela (op.cit., p.134). Importante sublinhar que o valor depende das relações existentes no sistema: Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-se que são puramente

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diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com outros termos do sistema.(op.cit.; p.136). (SILVEIRA, 2009, p. 50).

Esse funcionamento específico e autônomo da língua, em que cada um

dos seus elementos só pode ser considerado a partir do próprio sistema, impõe

analisar cada um destes elementos quando encontrado no social, no cultural ou

no ideológico, observando “se essas ‘instâncias’, ao se constituírem enquanto

discurso, têm alguma possibilidade de não serem produzidas como uma

linguagem e, assim, também estarem sujeitas a um mesmo funcionamento

estrutural”. (Op cit, p. 50). Esse posicionamento equivale a “colocar-se

primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras

manifestações” (SAUSSURE [1916] 2002, p. 16).

O funcionamento específico da língua possibilitará a sua delimitação

enquanto objeto da Linguística, de tal forma que a língua poderá ser estudada

por ela mesma – seria “um todo em si e um princípio de classificação” (Ibidem,

p. 17). A porção que coube à língua nesse aglomerado heteróclito da

linguagem (porque envolve dualidades como som, articulação vocal, ideia,

social, individual, presente, passado, fala, escrita...) foi a parte determinada,

essencial dela, capaz de apontar uma ordenação subjacente a estas

manifestações, ainda que sob a forma de uma cadeia de diferenças: produto

social da linguagem, adquirido e depositado passivamente na mente do falante,

“um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para

permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (Ibidem, p.17). É desta

forma que Saussure não considera ilusório dizer que a língua enquanto sistema

faz a unidade da linguagem, devendo todas as suas manifestações serem

colocadas no terreno da língua.

Da mesma forma, o seu estudo por ela mesma retira o sujeito do lugar

originário, do que controla o seu dizer, o que impede de tomar a língua

enquanto representação do pensamento ou expressão da unidade intelectual.

É esta noção de sistema que será tão cara à discussão de Foucault em O que

é um autor.

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Este sistema pode ser delimitado no conjunto da linguagem e, para

atingir o liame social que constitui a língua, seria preciso abarcar a totalidade

das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos:

Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum e só na massa ela existe de modo completo (Op cit, p.23).

Quando se separa a língua da fala, separa-se, ao mesmo tempo,

segundo Saussure, o social do individual; o essencial do que é acessório e

mais ou menos acidental. Esta possibilidade de separação aponta que a língua

não constitui função do falante, pois “é o produto que o indivíduo registra

passivamente; não supõe, jamais, premeditação, e a reflexão nela intervém

somente para a atividade de classificação” (Op Cit, p. 22). Afirmar que não é

função do falante é justamente retirá-lo do controle sobre a língua, sistema

registrado passivamente, o que não equivale a dizer que na fala – uma

manifestação da linguagem – não há língua. É preciso entender língua

enquanto sistema e unidade da linguagem.

Não sendo os termos definíveis e na exigência de um objeto autônomo

em meio aos fatos de linguagem, a arbitrariedade do signo surge como o que

possibilita que a língua possa ser delimitada intrinsecamente, pois apresenta

como princípio a negação de laço entre o signo e qualquer referente externo:

Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante; estes dois termos têm a vantagem de assinalar a oposição que os separa. (Idem, p. 81)

Essa oposição entre significante e significado é marcada pela

arbitrariedade do signo, pelo não haver laço entre um e outro, não podendo

nem mesmo eles serem considerados positivos em si mesmos. Esta ausência

“põe a língua ao abrigo de toda tentativa que vise a modificá-la” (Ibidem, p. 86),

constituindo-se a língua, neste sentido, numa carta forçada. Não há uma base

de relação racional entre significante e significado. Para Lemos (2013),

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[...] a maior contribuição da linguística de Saussure para o estruturalismo está relacionada ao nexo heurístico entre autonomia e arbitrariedade radicais e a consequência que se estende daí: a indeterminação positiva do signo. Uma vez que o princípio de arbritrariedade impede não apenas qualquer determinação natural do significado, mas, mais que isso, qualquer determinação semântica positiva, o próprio signo como objeto, como fato ou caso singular, se torna inabordável. Se definir o conteúdo semântico de um signo seria contornar a arbitrariedade entre significado e significante, então, tomado atomisticamente, o signo passa a ser uma estrutura indeterminada, já que não-referenciável. Talvez a intuição mais fundamental da linguística de Saussure decorra deste ponto: na medida em qua o princípio de arbritrariedade se instaura - e, assim, na medida em que o sentido não pára de deslizar sob o significante, escapando de toda determinação heterônoma - já não é mais possível compreender o signo como um elemento positivo.

Inexistindo o laço, o signo não possui sentido em si mesmo. No seu

caráter essencial, o signo escapa à vontade individual ou social e isso permite

a reconsideração do sujeito originário. Se o signo não pode ser considerado

positivo em si mesmo, ele terá que se suportar a partir de sua relação com

outros signos em cadeia ao seu redor, sendo determinado negativamente por

oposição a esses outros, inserido num sistema de diferenças: o valor de um

será definido por oposição ao outro, numa relação de pura diferença.

É a partir da teoria do valor encontrada em Saussure que as injunções

do significante pretendem ser aqui abordadas, posto que por meio dela dá-se

maior privilégio ao significante, apesar de não se abandonar a relação

significante/significado. Um significante que em sua essência “(...) não é de

modo algum fônico; é incorpóreo, constituído, não por sua substância material,

mas unicamente pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas

as outras” (SAUSSURE [1916] 2002 p. 138).

Nesse sentido, Saussure (Idem, p. 135) acrescenta que o valor de

qualquer termo que seja não está determinado em si, mas por aquilo que o

rodeia - nem sequer da palavra que significa “sol” se pode fixar imediatamente

o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor. Com isso, podemos dizer

que o valor só se constitui nas relações diferenciais negativas em que, segundo

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Saussure (Idem, p. 136), sua característica mais exata é ser o que os outros

não são:

Um sistema linguístico é uma série de diferenças de sons combinadas com uma série de diferenças de ideias; mas essa confrontação de um certo número de signos acústicos com outras tantas divisões feitas na massa do pensamento engendra um sistema de valores; e é tal sistema que constitui um vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada signo. Conquanto o significado e o significante sejam considerados, cada qual à parte, puramente diferenciais e negativos, sua combinação é um fato positivo; pois o próprio da instituição bilinguística é justamente manter o paralelismo entre essas duas ordens de diferenças (SAUSSURE [1916] 2002, p. 139-140).

Para descrever a língua enquanto um jogo de valor, Saussure discute o

funcionamento das ideias e dos sons neste jogo, afirmando que “não existem

ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua”

(2006, p. 130). Isto permite afirmar que na cadeia significante o signo é um

efeito de funcionamento, não um antes. Não é o sujeito que controla a língua,

posto que a recebe passivamente, como um tesouro: a língua se impõe.

Para Saussure, a Linguística trabalha num terreno limítrofe, “onde os

elementos das duas ordens se combinam; esta combinação produz uma forma,

não uma substância” (Idem, p.131). Para ele, é ilusório considerar um termo

como a união de certo som com certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do

sistema do qual faz parte. Seria acreditar que é possível começar pelos termos

e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, pelo contrário, cumpre

partir da totalidade solidária para obter por análise os elementos que encerra.

Esta descrição de um sistema constituído por meio da diferença, que

postula a identidade de uma coisa a partir do que ela não é, estabelece que o

vínculo entre os empregos não se realiza por identidade. Do mesmo modo,

preceptua que o sentido de uma coisa não se encontra nela, mas na diferença

relativo-negativa entre os elementos da cadeia sígnica, em que os termos são

solidários e o seu valor resulta da presença simultânea de outros. Neste

sentido, podem ser confundidos valor e significação:

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(...) Visto ser a língua um sistema em que todos os termos são solidários e o valor de um resulta tão somente da presença simultânea de outros, como acontece que o valor, assim definido, se confunda com a significação, vale dizer, com a contraparte da imagem auditiva? Como esse jogo de identidade, numa relação de diferença, possa ser confundido com significação?(SAUSSURE [1916] 2006, p.133).

Se a delimitação de uma forma é realizada pelas formas vizinhas, o valor

é estabelecido pela oposição: assim o valor de qualquer termo que seja está

determinado por aquilo que o rodeia. (Idem, p.135). As formas não

representam os conceitos de antemão. Novamente, o sentido não é

considerado anterior. Somente se pode afirmar que os valores correspondem a

conceitos – o que seria a afirmação de uma identidade do signo - em se

tratando das relações diferenciais. A afirmação da identidade é relativo-

negativa. “A característica mais exata dos termos é ser o que os outros não

são” (p.136) e isto não implica nenhuma representação. Os termos não podem

ser definidos “positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas

relações com outros termos do sistema”. (Idem, p.136). Para Saussure,

Na língua só existem diferenças. Uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças, sem termos positivos. A prova disso é que o valor de um termo pode modificar-se sem que se lhe toque quer no sentido, quer nos sons. (Ibidem, p.139).

Por outro lado, Saussure ([1916] 2006, p. 139) afirma que dizer que “na

língua tudo é negativo só é verdade em relação ao significante e ao significado

tomados separadamente; desde que consideremos o signo em sua totalidade,

achamo-nos perante uma coisa positiva em sua ordem”. Positiva, por ser

composta de suas partes diferentes e indissociáveis que se ligam ao

engendramento de um sistema:

Um sistema linguístico é uma série de diferenças de sons combinadas com uma série de diferença de ideias; mas essa confrontação de um certo número de signos acústicos com outras tantas divisões feitas na massa do pensamento engendra um sistema de valores. (Idem).

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Segundo Saussure, a língua é uma forma, não uma substância (Idem,

p.141). É esta forma a que talvez Milner (1987, p. 12) se reporta. A classe das

línguas é inconsistente do ponto de vista da substância, “uma vez que sempre

um de seus elementos é de tal ordem que ele não pode ser colocado sem

revelar-se incomensurável a todos os outros”.

Para Milner, não é seguro sustentar que há sempre sentido em dizer

uma língua, dizendo a pertença de um segmento qualquer a ela. Isto porque há

diferentes tipos de sintaxes, por exemplo, entre os quais um sujeito poderá

escolher, segundo seu humor e circunstância. O julgamento de dois sujeitos

sobre a gramaticalidade de uma língua pode divergir constantemente. Isso sem

pensar nos dialetos, nos níveis de língua. É preciso evitar que ao menor

episódio circunstancial venha escurecer o brilho dos idênticos.

Neste sentido, aceitando que se nomeie a língua a este núcleo, que em

cada uma das línguas suporta sua unicidade e sua distinção, a língua não

poderá ser nomeada do lado da substância, “mas somente como uma forma,

invariante através de suas atualizações, visto que ela é definida em termos de

relações”(Idem, p.12). Entre forma e substância, Saussure reafirma: definimos

termos, não coisas. “Os signos atuam não por seu valor intrínseco, mas por

sua posição relativa”. (Saussure, [1916]2006, p.137).

As relações de associação e coordenação realizadas na cadeia

significante são operadas por um sujeito. Neste sentido, esse reconhecimento

do jogo significante alinha-se a uma leitura de Saussure que traz à tona uma

reflexão sobre o sujeito, que, capturado pela cadeia de significantes, deixa o

seu lugar de origem, de controle. Deixar o lugar de origem não equivale à

negação desse sujeito e isso pode ser lido a partir de outro lugar de relação

entre língua e pensamento.

2.3. “Que importa quem fala?” – A escrita na contemporaneidade

Em seu ensaio O que é um autor, Foucault ([1970]2002) se propõe a

examinar a relação do texto com o autor, como aquele aponta para “essa figura

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que Ihe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente”. A consideração

dessa aparente anterioridade do autor antecipa que este não o é antes do vir

de um texto, expondo uma possibilidade de articulação entre texto e autor que

nada teria a ver com a amarração de um sujeito em uma linguagem. Isso

pressupõe uma concepção de língua que contemple a sua não transparência.

Desse modo, o autor observa a negação do sujeito cognoscente,

estendendo a ideia de um desaparecimento desse mesmo sujeito cognitivo,

consciente para as relações entre autor e texto. Essa negação do sujeito

aparece de início quando busca se reportar ao seu primeiro mestre, de quem

tinha necessidade que assistisse ao seu esboço, solicitando que “[...] apesar de

tudo, na medida em que a ausência é o lugar primeiro do discurso,

permitam que esta noite me dirija a ele em primeiro lugar” (FOUCAULT

[1969]2002, P.11). Assim, as problematizações estabelecidas por Foucault

giram em torno do lugar deixado vago com o desaparecimento do autor, em

cujo acontecimento está implicada, inicialmente, a noção de escrita

contemporânea, que, considerada liberta de seu tema da expressão,

impossibilitaria a amarração de um sujeito a um texto. Ou seja: autor e obra

não podem mais ter suas verdades trazidas à superfície do conhecimento; a

interpretação não acede mais ao seu sentido último. O ensaio ataca a questão

da origem a partir do mais significativo representante: a autoria.

Foucault afirma que “gostaria, para já, de debruçar-me tão somente

sobre a relação do texto com o autor, a maneira como o texto aponta para essa

figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos em aparência” (Idem, p. 34).

Nessa consideração, encontra-se pressuposta a problemática da questão da

autoria a partir da necessidade de análise de como se dava a articulação entre

autor e texto.

Se o autor fosse considerado fundamento original do seu dizer, a

discussão da autoria seria posta em nível diferente deste. Nesse sentido, a

relação não é mais de autor para texto (autor → texto: em que o autor é

privilegiado como a fonte do significado de uma obra, constituindo-se num

ponto central de interpretação). A abordagem de Foucault a respeito do que

seja um autor é diferenciada daquela em que o significado de uma produção de

determinado autor é correlacionável com suas características individuais.

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O sujeito centrado, fonte e origem do seu dizer já restava abalado desde

Freud, o que impossibilitava a busca pelo sentido de um texto a partir dos

caracteres individuais. A relação entre autor e texto que é, aqui, de

apropriação, passa a ser problematizada. Não é possível afirmar o autor

enquanto produtor nem inventor dos textos, posto que o seu lugar de

fundamento originário lhe fora retirado e junto com ele o controle que o autor

teria sobre o sentido que queria impingir a seu texto. Nesse sentido, a

interpretação de um texto feita a partir do indivíduo dá lugar à observação do

autor a partir da análise textual.

Se a relação de apropriação se apresenta como impossível de realizar a

articulação entre autor e texto via caracteres individuais, a afirmação de uma

autoria poderia se dar via atribuição a partir de análise textual, o que exigiria

operações críticas complexas e raramente justificáveis. Em ambas as situações

– de apropriação e de atribuição de autoria – a questão da busca incessante da

origem permaneceria ora no indivíduo, ora no texto.

Como vimos, a característica com que o filósofo analisa a questão da

escrita impossibilita a amarração de um sujeito ao texto a partir de sua

individualidade, pois a escrita está liberta de sua forma de expressão: não se

pode identificar o autor a partir do texto e vice versa. Como o sentido não

estaria na palavra, não se teria como garantir o sentido pretendido pelo

produtor do texto como permanente em sua obra e assim relacionar autor e

texto.

Pode-se afirmar que Foucault não recusa totalmente o autor, pois

considera que apesar da característica da escrita moderna, o nome do autor

continua funcionando, o que é ainda mais realçado quando ele o transforma em

uma função: função autor. Essa posição a ser ocupada pelo sujeito é

analisada no nível de uma impossibilidade e de uma necessidade ao mesmo

tempo, sendo indiferente (posto que é posição a ser ocupada por diferentes

sujeitos) e obrigatória (o anonimato é insuportável). Mas como se poderia

conciliar essa análise com a questão da escrita, que retira justamente o autor

do controle do texto?

Quando discute a questão da autoria, Foucault elabora a articulação

entre autor e texto reafirmando o princípio da indiferença em relação à

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pergunta que tomará de Beckett: “Que importa quem fala? Alguém disse que

importa quem fala". Nessa indiferença, o autor acredita que

é preciso reconhecer um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea. Digo "ético", porque essa indiferença não é tanto um traço caracterizando a maneira como se fala ou como se escreve; ela é antes uma espécie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais efetivamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática. (FOUCAULT [1970] 2002, p. 34.).

A indiferença em relação a quem fala, que domina a escrita

contemporânea enquanto prática, como regra imanente, impõe que se

considere a ausência do autor desde sempre e em qualquer escrita. Essa

característica não seria constitutiva apenas dos textos considerados portadores

de autor. Ao mesmo tempo, essa relação de indiferença relaciona dois

sistemas linguísticos – a fala e a escrita – e isto impõe algumas considerações.

Quando Foucault aponta que “essa indiferença não é tanto um traço

caracterizando a maneira como se fala ou como se escreve; ela é antes uma

espécie de regra imanente”, podemos, por um lado, entrever a possibilidade da

existência de um sistema enquanto unidade da linguagem, aquilo mesmo que

possibilitou a constituição da Linguística enquanto ciência para Saussure

([1916]2002). Essa regra “retomada incessantemente, jamais efetivamente

aplicada” parece referir a um sistema presente em todos os membros de uma

comunidade, mas não de forma completa: “pois a língua não está completa em

nenhum, e só na massa ela existe de modo completo” ([1916] 2002, p. 21). É

isto que permite considerar a diferença quando se quer discutir o individual e o

social da língua; a fala e a escrita; a sincronia e a diacronia. É isto que impõe a

necessidade de se colocar primeiramente

“no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as manifestações de linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito” (Idem, p. 16).

É neste sentido que a língua forma a unidade da linguagem: enquanto

possível de ser tomada como norma de todas as manifestações da linguagem.

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Por outro lado, é preciso analisar essa relação do sujeito falante e do

sujeito escrevente com o sujeito autor a partir da fala e da escrita, cuja

alternância de uso entre ambas poderia adiantar uma coincidência entre eles.

De início, a correlação estabelecida por Foucault baseada na coincidência

entre os dois sistemas – fala e escrita – poderia impor uma relação para além

de uma discussão sobre um sujeito - que, pressupostamente, não seria o

fundamento do seu dizer, considerando, inicialmente, a própria regra imanente

da escrita, ou seja, a não possibilidade do sentido na palavra, cuja

característica retira o sujeito do controle do seu dizer. É essa pressuposição

que permite a análise da descontinuidade entre autor e texto, repercutindo

numa nova visada sobre o autor. A consideração dessa característica é

fundamental na discussão de Foucault. Considerar os sistemas da fala e da

escrita como inter-relacionados pode abalar esse fundamento e beira à

referência ao indivíduo, deitando por terra a questão da indiferença na escrita.

Considerar o in-divíduo implica um sujeito centrado, fonte e origem do seu

dizer, o que desqualificaria a necessidade de nova discussão da autoria, posto

que retomaria a questão da representação. A concepção de sujeito assume,

aqui, uma importância capital.

A indiferença em relação a quem fala se origina, segundo Foucault, de

dois grandes temas:

(...) Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: ela se basta a si mesma, e, por consequência, não está obrigada à forma da interioridade; [...] O segundo tema é ainda mais familiar: é o parentesco da escrita com a morte. (FOUCAULT [1970] 2002, p. 35.).

No primeiro tema, num jogo em que a escrita encontra-se liberta de sua

forma de expressão e possibilita a problematização do sujeito originário – dado

que o sentido não é dado a priori e, portanto, não se encontra sob o controle

deste sujeito -, a ênfase na natureza do significante impõe uma concepção de

língua que se distancia da relação com o sujeito originário, o que, a meu ver,

constitui um dos avanços de Foucault na discussão do que é o autor. Essa

retirada do sujeito do lugar originário adianta que o sentido não estaria na

palavra. É precisamente isto que impõe a reconsideração da autoria. É nesse

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sentido que se pode entender a afirmação de que a escrita não está obrigada à

forma de interioridade, implicando dizer que “ela é um jogo de signos

comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza

do significante.” (Idem, p. 35.).

Esse jogo da escrita vai além de suas regras e passa assim para fora: “na

escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever;

não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da

abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer.”

(Ibidem, p. 35). Entendemos por aqui o segundo tema, do qual deriva a

indiferença em relação a quem fala – o parentesco da vida com a morte –

morte da identidade do corpo que escreve, morte do sujeito enquanto

fundamento da origem: o texto não reenvia simplesmente para um indivíduo

real, mas dá lugar a vários «eus» em simultâneo, a várias posições-sujeitos

que classes diferentes de indivíduos podem ocupar.

Esse parentesco com a morte subverte a busca pela imortalidade do

herói. O jogo da escrita

[...] subverte um tema milenar; a narrativa, ou a epopéia dos gregos, era destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e se o herói aceitava morrer jovem, era porque sua vida, assim consagrada e magnificada pela morte, passava à imortalidade; a narrativa recuperava essa morte aceita. De uma outra maneira, a narrativa árabe - eu penso em As mil e uma noites - também tinha, como motivação, tema e pretexto, não morrer: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador.

Atualmente, a escrita está ligada ao apagamento voluntário que não é

para ser representado nos livros, pois ele está consumado na própria

existência do escritor. Aqui, as noções de escrita e de sujeito se relacionam a

partir da ausência de identidade em si mesmos. Também se relacionam as

noções de língua e pensamento pelo mesmo motivo. Vemos em Foucault que

[...] essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é

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preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. Tudo isso é conhecido; faz bastante tempo que a critica e a filosofia constataram esse desaparecimento ou morte do autor.

Mas, se pressupormos uma coincidência entre fala e escrita, podemos

nos perguntar se a noção de signo de Foucault se coaduna com a noção de

signo em Saussure ([1916]2002), considerando que este último faz a divisão

em dois sistemas – fala e escrita -, ainda que ambos possam ser discutidos a

partir do terreno da língua, posto que são linguagens. Qual seria essa natureza

do significante? Como se relacionariam signo, significante e significado? Toca-

se, aqui, o terreno da língua, que constitui a materialidade do discurso, que, por

sua vez, constitui o sujeito. Prestemos um pouco mais de atenção nesta

coincidência.

Em Saussure ([1916]2006), no centro da discussão da língua enquanto

sistema, está o conceito de signo, o que também adquire relevância em

Foucault quando analisa o discurso. Resta considerar se o conceito de signo

para Foucault implica o conceito de signo para Saussure, considerando os

avanços notados pelo filósofo a respeito da Linguística. Como vimos

anteriormente, a Linguística possibilita um tratamento das descontinuidades

cujo grau de análise ainda não teria, à época, atingido as análises históricas,

filosóficas. Aliada a essa afirmação está o afastamento categórico do teórico

em relação aos avanços da Linguística.

A diferença entre a análise do filósofo e a Linguística de Saussure pode

estar na definição de língua enquanto sistema, que demanda, segundo Silveira

(2009, p.40), “a explicação do que é signo, seus componentes e seu

funcionamento e, nos parece, ainda mais importante, exige a definição do que

é sistema”. Vejamos como isso pode ser observado nas análises de Foucault.

2.3.1. O jogo da diferença opositivo-negativa entre escritor, autor e

função autor: a língua enquanto sistema para Foucault

Foucault ([1970] 2002, p. 35) acompanha a discussão de língua enquanto

uma organização em signos, cuja questão da representação não se encontra

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na palavra. Tanto é assim que se pode estabelecer a ruptura entre autor e

texto. A lacuna entre autor e texto seria, como já dito, decorrente da

impossibilidade de se amarrar um sujeito em uma linguagem, provocando uma

descontinuidade. A mesma função cumprida pela morte de Deus para o

pensamento corrente no final do século XIX pode ter a morte do autor. As duas

mortes atestam a problematização de crença na autoridade, a presença, a

intenção, onisciência e criatividade.

Ele credita à Linguística essa nova visada sobre o sujeito e o retira do

lugar originário de seu dizer, o que só poderia ser estabelecido a partir da

observação da ausência de laço entre significado e significante – partes

constituintes do signo, a partir do qual se organiza o sistema da língua que é

depositado passivamente na mente do indivíduo. Em Saussure, repito, para

que o verdadeiro objeto da linguística se apresente e sua diferença seja

delimitada entre outras abordagens da linguagem como fato social, "é preciso,

inicialmente, colocar-se sobre o terreno da língua [langue] e tomá-la como

norma de todas as outras manifestações da linguagem". Em seguida, ele

acrescenta a ruptura em sua definição da língua - esta é "um todo em si e um

princípio de classificação" (Saussure, [1916]2002, p. 45).

Esta caracterização afirma a autonomia do sistema da língua e se

desenvolveu a partir da ideia de arbitrariedade do signo linguístico. Para que

houvesse a delimitação da língua por ela mesma, negou-se o princípio formal

de correspondência entre o signo e referente externo, o que faz com que

as coisas referidas não entrem desse modo no campo linguístico. Isto postula

uma diferença em relação à produção de sentido e em relação ao sujeito como

já vimos.

A não possibilidade de uma relação a ser estabelecida internamente via

escrita entre texto e autor conduz Foucault à questão retomada de Beckett:

Que importa quem fala? A questão posta por ele parece poder ser traduzida

como: se não se pode ter a representação do pensamento ou expressão da

unidade intelectual, que importa quem fala?

Por outro lado, como consequência desta “ausência” de relação entre

texto e autor, via uma escrita comandada pelo significado contido na palavra,

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impõe-se, para Foucault, um segundo tema de que se origina a indiferença a

respeito de quem fala: o parentesco da escrita com a morte.

Enquanto na narrativa de Shehrazade o esforço de todas as noites era

para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência, na escrita

contemporânea, nossa cultura metamorfoseou este tema: “a escrita está

atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida; apagamento

voluntário que não é para ser representado nos livros, pois está consumado na

própria existência do escritor”. (Ibidem, p. 36.). Essa morte consumada na

própria existência do escritor também parece dizer respeito à mesma questão

da impossibilidade de o escritor representar o seu próprio pensamento,

expressando sua unidade intelectual, o que faz com que o papel do indivíduo

na produção do discurso seja insignificante, considerando as regras de

formação imanentes da escrita. Por outro lado, em decorrência, como tema de

seu conhecimento, de sua escrita, de suas ações e de sua história, o homem

se vê num processo de perecimento. A questão será com estas duas mortes -

a de autor e a de homem - buscando saber se elas são uma e a mesma morte.

Neste ponto, entre escritor e autor, está a impossibilidade da

representação de si próprio, do seu próprio pensamento e, consequentemente,

a sua “morte”, o que faz ressoar a afirmação de Descartes – Penso, logo,

existo: se não represento meu pensamento, não represento a mim próprio e

não existo. Talvez essa curiosa relação de morte entre escrevente e autor

permita entrever, ao mesmo tempo, uma necessária e impossível relação entre

os dois. É preciso que haja escrevente para que haja autor? A resposta

afirmativa aponta para o funcionamento de algo que obriga à substituição de

autor por função autor.

O parentesco da escrita com a morte relaciona-se, ainda, a um segundo

tema, que

se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita (FOUCAULT [1970] 2002, p. 36).

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As considerações do desaparecimento das características individuais do

sujeito que escreve, da capacidade de ele estabelecer chicanas, do despistar

dos signos de sua individualidade particular e de ele ter de fazer o papel do

morto no jogo da escrita parecem contrapor-se ao primeiro tema, em que pela

forma de interioridade nada se poderia falar sobre o autor, dado que a escrita

está desobrigada dessa forma; a escrita está liberta do tema da expressão.

Mas o autor/escritor então existe? E está ali a despistar seus rastros? Como

isto se resolve com a função autor? Como ficaria o “jogo de signos comandado

menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do

significante”? (Idem, p. 35).

As afirmações quanto ao desaparecimento dos aspectos individuais, à

capacidade de despistar, de precisar se fazer de morto, de apagamento

voluntário implicariam o controle de um sentido que não poderia ser afirmado a

partir das citadas características da escrita contemporânea envolvendo a

impossibilidade de representação. Seria preciso um reconhecimento de si,

possível apenas a partir da transparência da linguagem, cuja característica

imanente da indiferença já não poderia ser levada em consideração. Neste

sentido, a escrita não daria um novo estatuto ao autor, embora o bloqueie.

Mas é precisamente por conta da descontinuidade entre autor e texto

que Foucault se viu obrigado a reconsiderar e a propor o autor enquanto

função. Há uma mudança de foco aqui e, penso eu, que se deva ao fato de

Foucault considerar que a escrita não dá um ao autor um novo estatuto: deixa-

se de pensar o apagamento do sujeito enquanto não reconstituível a partir da

escrita. Foca-se na descontinuidade entre um modo de pensar e outro do

funcionamento do sujeito autor, deixando-se de considerar as conclusões

possíveis a respeito desse autor não passível de amarração em uma

linguagem. Assim, abandona-se a questão da interioridade e a questão se volta

para a exterioridade. A análise sobre o que é um autor, empreendida por

Foucault parte do vazio, delimitando o espaço de um pensar que passa a ser

de outro modo, o que altera a relação língua-pensamento que vinha delineando

desde o questionamento “Que importa quem fala?”

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Nesse sentido, a utilização do conceito operatório da descontinuidade,

apesar de assinalar a dispersão, torna-se um espaço limite em que estará

presente o pensado – tanto o estado anterior, quanto o pensado posterior: dois

estados estabelecidos – assim como o impensado entre o anterior e o

posterior. Assim, o descontínuo marca a dispersão da continuidade: “o que eu

quis estabelecer é justo o contrário de uma descontinuidade, já que evidenciei

a própria forma da passagem de um estado ao outro”. Esse vazio limítrofe que

relaciona pensado-impensado-pensado, marcando a dispersão dentro de uma

continuidade, é colocado como acontecimento discursivo. A consideração de

um sistema não permitiria a análise de um acontecimento? Talvez aqui

estejamos assistindo a uma cena que seria já de antemão conhecida pela

Linguística, mas ainda não apreendida pela história. Para Nicolazzi, “é a

consideração dessa descontinuidade que impediria a observação de um evento

atravessado por uma estrutura”:

Enquanto relacionada ao acontecimento discursivo, a descontinuidade permitiria o estudo do pensamento na ausência de quem o pensou, considerando que não é de origem que se está falando, pois é sempre sobre um fundo já começado que se estabelece o pensamento, possibilitando o estudo de um pensamento na ausência de quem o pensou.

O abandono da relação do par interioridade-exterioridade traz

consequências: o jogo de diferença opositivo-negativa que Foucault instaura

entre autor e função autor, na qual a segunda pode ser caracterizada por ser o

que o autor não é ou não pode ser, implica, ainda, a questão da representação:

ser o que o outro não é, como visto em Saussure ([1916]2002), não implica

nenhuma representação, ainda que seja uma representação de origem exterior.

A relação entre a autonomia da língua e a arbitrariedade radical impõe a

indeterminação positiva do signo, do próprio signo como objeto, tornando-se

inabordável quando tomado atomisticamente. O signo passa a ser uma

estrutura indeterminada, já que não é referenciável, posto que o sentido escapa

de qualquer representação. Ao tomarmos estes dois termos – autor e função

autor – como átomos isolados, como expõe De Mauro (apud Silveira, 2009, p.

44):

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De Mauro (1986:330) sustenta que o Mémoire11 marcou profundamente a formação de Saussure, que através dele entrou em contato com os problemas de reconstrução de um sistema lingüístico necessariamente a-substancial, já que sua realização em palavras não era conhecida. Assim, Saussure buscava considerar as unidades lingüísticas como puras entidades opositivas e relacionais na sua co-funcionalidade sistêmica e não como átomos isolados.

A nova visada sobre o sujeito propiciada pelos avanços da ciência

linguística relaciona-se à possibilidade de pensar o sistema da língua sem o

sujeito, o que retirava este último do fundamento originário, pois se considerava

a arbitrariedade do signo e a afirmação de que a língua é uma carta forçada, o

que não é equivalente a desconsiderar ou anular o sujeito.

Por outro lado, Foucault afirma que a escrita não se liga nem ao gesto

de escrever nem à marca do que o autor teria querido dizer, mas que

“esforçamos com uma notável profundidade para pensar a condição geral de

qualquer texto, a condição ao mesmo tempo do espaço em que ele se dispersa

e do tempo em que ele se desenvolve” (Ibidem, p. 39.). A escrita faz referência

à exterioridade, o que pode não implicar a ordem própria da língua.

Contrariamente, em Saussure, a linguística não pode partir, em sua

análise, dos signos em si mesmos, mas dos signos em relação uns aos outros,

ou seja, determinados negativamente: "na língua não existem senão

diferenças" ([1916]2002), o que assume aqui sua importância mais

fundamental. É preciso reinseri-la em um sistema de diferenças, cujas

estruturas arbitrárias determinam o signo não mais ontologicamente,

mas relacionalmente.

Assim, o sistema pode ser descrito como composto de funções ou

valores. Se o significado teima em deslizar por sob os signos é porque é

apenas na circulação, no espaço entre as unidades linguísticas que se põe em

funcionamento o mecanismo de identificação em jogo na semântica. O sistema

de Saussure, assim, é um sistema axiomático e não objetivo: "a língua [langue]

não pode ser senão um sistema de valores puros" (Saussure, [1916]2002, p.

155). Ele estabelece uma relação necessária entre diferencialidade sistemática

11 Mémoire sur le systeme primitif des voyelles dans les langues indo-européenes - trabalho escrito por Ferdinand de Saussure em 1879, em Leipzig na Alemanha.

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e valor, sem a qual se poderia excluir do horizonte da análise a dimensão

causal temporal, tornando a teoria totalmente incompatível com a história.

Entretanto, para Foucault, a escrita deveria não somente dispensar a

referência ao autor, mas dar estatuto a essa nova ausência. Uma ausência

provocada pela rejeição ao papel fundador do sujeito, já realizada desde a

linguística de Saussure. Em Foucault, o método permanece o significante de

um significado impossível de enunciar. Morre o sujeito. Mas as estruturas

permanecem de pé graças à sua racionalidade intrínseca (Cf. LEMOS, 2013).

Nesse sentido, o autor poderia ser considerado em termos transcendentais.

Pensar a escrita enquanto ausência poderia representar em o princípio

religioso do sentido oculto e o princípio crítico do comentar. Ainda aqui, “a

escrita arrisca-se a manter os privilégios do autor sob a salvaguarda do a priori”

(FOUCAULT [1970] 2002, p. 40.). Assim, para ele, esse uso da noção de

escrita “faz subsistir, na luz obscura da neutralização, o jogo das

representações que formaram uma certa imagem do autor” (Idem, p. 41.), o

que seria incoerente com aqueles que se esforçam para se libertar da tradição

histórico-transcendental, como é o seu caso.

Para Burke (1998), a causa do autor, juntamente com a do referente

extratextual em geral (história, a sociedade, o mundo) - foi marginalizado como

preliminar passo para evoluir para uma abordagem formal, interna e retórica do

texto. A exclusão do autor funcionava muito simplesmente como uma manobra

metodológica dentro de um sistema que não colocava as questões sobre as

origens e determinantes do texto. A morte ou o desaparecimento do autor não

estava em causa, mas sim o incompatibilidade de categorias autorais com

análises imanentes.

Dentro do discurso da morte do autor, no entanto, não é suficiente

excluir o autor, mas reconhecer que o autor sempre foi ausente, que nunca

poderia ser um autor, em primeiro lugar. O aparecimento de escrita é um

identificável priori, com o desaparecimento do autor: assim como um fato já não

é narrado com vistas a atuar diretamente sobre a realidade, mas

intransitivamente, isto é, finalmente, do lado de fora de qualquer outra função

além da próprio prática do símbolo em si, esta desconexão ocorre, a voz perde

a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa. O

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resultado disso é que o autor-questão tem sido em grande parte perdido na

perpetuação dessa divisão.

Foucault observa que algo ali funciona ligando texto e autor, mas a

escrita contemporânea não dá estatuto à ausência e, ainda, bloqueia a noção

corrente de autor. Ele se recusa a manter o transcendentalismo, em que o

autor seria a fonte originária do significado. Na descrição da escrita “enquanto

um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela

própria natureza do significante”, o foco do autor se volta para a questão do

significado, ainda que busque enfatizar a natureza do significante, enquanto

característica da escrita contemporânea: observa que algo ali funciona –

porque a escrita, repito, não dá, justamente, estatuto a esta nova ausência -, e

segue afirmando, concomitantemente, a desaparição do autor. A escrita, aqui,

teria um jogo duplo ao se libertar da expressão e, ao mesmo tempo, impedir o

estabelecimento de um novo estatuto à ausência do autor.

Deixando de lado os incômodos sofridos por perceber esse algo que ali

funciona entre texto e autor, Foucault passará a analisar as funções que essa

desaparição faz aparecer. Este é o ponto que penso ser a relevância deste

estudo, ao buscar observar melhor esse algo que ali funciona em se tratando

de autoria.

Se a escrita bloqueia a noção de autor, passemos, antes, a analisá-lo a

partir de sua obra, unidade que se sobrepõe à do autor, que será em seguida

analisada.

A definição de obra e a unidade que ela designa são tão problemáticas

quanto a individualidade do autor. A principal questão exposta por Foucault é a

de que

O próprio da crítica não é destacar as relações da obra com o autor, nem querer reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência; ela deve antes analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo de suas relações internas. (FOUCAULT [1970] 2002, p. 57.)

Essa principal característica da análise e da definição de uma obra a

partir de sua forma intrínseca e do jogo de suas relações internas implica a

consideração de que elementos considerar para sua composição, posto que é

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a análise de alguns elementos que a definem enquanto tal. Ainda assim, se

poderia perguntar se um indivíduo que não é autor pode possuir um conjunto

de escritos que possa ser considerado uma obra? Por outro lado, tudo o que

um autor produz deve fazer parte de sua obra? Inclusive rascunhos? Deve ser

publicado? Onde parar?

As questões colocadas por Foucault apontam para a insuficiência da

caracterização do autor a partir de sua obra, especialmente pela ausência de

definição do que seja uma. Consequentemente, ela, que poderia dar estatuto

ao autor, acaba por bloqueá-lo ou por escamotear o que deveria ser destacado.

Talvez o autor possa ser melhor detalhado. Vamos a ele.

2.3.2. O nome próprio e o nome do autor entre a designação e a

descrição: característica e função

Admitida a desaparição do autor por conta da característica da escrita

contemporânea, Foucault passa a localizar o espaço assim deixado vago,

seguindo a repartição das lacunas e das falhas e espreitando os locais, as

funções livres que essa desaparição faz aparecer, começando por evocar os

problemas suscitados pelo nome do autor.

Sua primeira consideração é de que o nome do autor é um nome próprio

e apresenta os mesmos problemas que este: “O nome próprio (e, da mesma

forma, o nome do autor) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais do

que uma indicação, um gesto, um dedo apontado para alguém; em uma certa

medida, é o equivalente a uma descrição” (FOUCAULT [1970] 2002, p. 42.),

mas não se pode ficar apenas nisso, pois o nome próprio não tem apenas uma

significação: o conhecimento que adquirimos acerca do autor não modifica o

sentido do nome próprio ou do nome do autor: “um nome próprio não tem pura

e simplesmente uma significação; quando se descobre que Rimbaud não

escreveu La chasse spirituelle, não se pode pretender que esse nome próprio

ou esse nome do autor tenha mudado de sentido.” (Idem, p 42.). Isto faz com

que o nome próprio e o nome do autor estejam situados entre os pólos da

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designação e da descrição, mantendo com o que eles nomeiam uma ligação

específica. Aqui está posta a característica da escrita contemporânea, liberta

da expressão, da relação com a interioridade, ainda que Foucault considere

uma ligação específica entre os termos, mas não a descreva. Uma ligação

específica que não pode ser definida a partir de sua interioridade e que não é

estabelecida da mesma forma para todos os pares envolvidos. Novamente, a

observação de algo que ali funciona.

Em contrapartida, nome próprio não passaria do interior de um discurso

ao indivíduo real e exterior que o produziu. A idéia é de que “ele corre, de

qualquer maneira, aos limites dos textos, que ele os recorta, segue suas

arestas, manifesta o modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza.”

(Ibidem, p. 45) O que se observa é que as relações do nome próprio com o

indivíduo que nomeia e do nome do autor em relação ao nomeado não

funcionam da mesma maneira:

Se eu me apercebo, por exemplo, de que Pierre Dupont não tem olhos azuis, ou não nasceu em Paris, ou não é medico etc., não é menos verdade que esse nome, Pierre Dupont, continuara sempre a se referir a mesma pessoa; a ligação de designação não será modificada da mesma maneira. Em compensação, os problemas colocados pelo nome do autor são bem mais complexos: se descubro que Shakespeare não nasceu na casa que hoje se visita, eis uma modificação que, evidentemente, não vai alterar o funcionamento do nome do autor. E se ficasse provado que Shakespeare não escreveu os Sonnets que são tidos como dele, eis uma mudança de um outro tipo: ela não deixa de atingir o funcionamento do nome do autor. E se ficasse provado que Shakespeare escreveu o Organon5 de Bacon simplesmente porque o mesmo autor escreveu as obras de Bacon e as de Shakespeare, eis um terceiro tipo de mudança que modifica inteiramente o funcionamento do nome do autor. O nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros. (Ibidem, p. 43).

O nome do autor assegura uma função classificatória: reagrupa,

delimita, exclui, opõe e relaciona textos entre si:

“indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que

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deve, em uma dada cultura, receber um certo status.(Ibidem, p. 45)

A ideia de o nome do autor exercer função classificatória correndo os

limites dos textos, recortando textos, seguindo suas arestas, manifestando o

modo de ser ou os caracterizando poderia contrariar a noção discutida da

escrita contemporânea, estabelecendo a significação na palavra. O mesmo se

poderia dizer sobre dever ser recebido de certa maneira, devendo receber

certo status em uma dada cultura, em suma: o nome do autor é, e disso advêm

todas as outras ações, pois “o nome do autor não está localizado no estado

civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que

instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser.” (Ibidem, p.

46). Entretanto, a escrita contemporânea está desobrigada de sua

interioridade: “a função autor é característica do modo de existência, de

circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma

sociedade.” (Ibidem, p. 46). Ou seja: cada cultura caracteriza a seu modo a

função autor. Essa caracterização marcaria o nome do autor a partir de uma

exterioridade: cada civilização elegeria um certo número de discursos providos

da função autor em detrimento de outros. A consideração de uma exterioridade

poderia se contrapor à definição de escrita enquanto um conjunto de signos em

que importa menos o significado do que a natureza do significante, posto que a

natureza do significante também se relaciona com a interioridade. O nome do

autor

seria, no indivíduo, uma instância "profunda", um poder "criador", um "projeto", o lugar originário da escrita. Mas, na verdade, o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz de um indivíduo um autor) é apenas a projeção, em termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos, das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se praticam. Todas essas operações variam de acordo com as épocas e os tipos de discurso. Não se constrói um "autor filosófico" como um "poeta"; e não se construía o autor de uma obra romanesca no século XVIII como atualmente. (FOUCAULT [1970] 2002, p. 51.)

Essa variação de acordo com as épocas e os tipos de discurso

relacionam–se ao sistema jurídico-institucional, sendo desde sempre exercidas.

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Neste sentido é que a função-autor é institucionalizada. A questão da

responsabilidade implica a questão da propriedade, posto que o anonimato não

é suportável. Entretanto, a atribuição de um discurso ao seu produtor é

estabelecida por meio de operações complexas e o discurso não remeteria

“pura e simplesmente a um indivíduo real, podendo dar lugar simultaneamente

a vários egos – o eu que fala em um prefácio não é o mesmo que fala em uma

demonstração; a várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos

podem vir a ocupar.” (Ibidem, p.56).

Observa-se que aqui a questão de atribuição de autoria seria realizada

do exterior, mesmo porque o discurso pode dar lugar a várias posições-sujeitos

que diferentes indivíduos poderiam ocupar. Há, assim, uma diferenciação entre

o indivíduo e o sujeito autor, particularmente pela especificidade das diferentes

posições e egos, o que leva a definição da significação para fora da palavra, e

pela variação que se pode ter quanto à construção da figura do autor, cujas

operações variam de acordo com as épocas e os tipos de discurso.

A constatação dessa pluralidade de eus, dessa pluralidade de posições

estabelece uma cisão entre indivíduo e autor, na cisão e na distância existente

entre o autor e o escritor e o locutor, não podendo o autor ser reenviado ao

indivíduo: “O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens,

não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo

grupo de discursos e seu modo singular de ser”(Ibidem, p.56).

A paradoxal noção de autor permite ultrapassar as contradições que

podem se manifestar numa série de textos ao mesmo tempo em que comporta

uma pluralidade de eus e posições. A noção de autor delimita, assim, o campo

de que é efeito; permite individualizar o domínio, mas apenas por meio da

comparação desses vários domínios. Neste sentido, para caracterizar a função

autor, Foucault assim a resume:

1) São objetos de apropriação, ligando-se ao sistema jurídico e

institucional;

2) não se exerce da mesma maneira universal e constante em todos os

discursos;

3) não se forma espontaneamente como a atribuição de um discurso a

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um indivíduo;

4) não reenvia pura e simplesmente a um indivíduo real, podendo dar

lugar a vários eus.

Em Foucault, o sujeito é constituído por linguagem, mas enquanto ordem

do discurso. É por meio da observação da discursividade que vemos a

instauração no sujeito de certo discurso que o constitui. O sujeito não

corresponde a um indivíduo, é uma posição no discurso. Enquanto posição,

esta poderá ser ocupada por diferentes indivíduos em diferentes épocas.

Nessa linha de raciocínio, vemos Foucault ([1970] 2002, p. 51) assim delimitar

o objeto de discurso: ele não preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo

aos primeiros contornos da luz, mas existe sob as condições positivas de um

feixe complexo de relações. Essas relações não definem a constituição interna

do objeto,

mas o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo de exterioridade. Para ele, as relações discursivas não são internas ao discurso; não ligam entre si os conceitos e as palavras; não estabelecem entre as frases ou as proposições uma arquileitura dedutiva ou retórica (Idem, p. 52).

Ao mesmo tempo, no entanto, Foucault afirma que “essas relações

caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que

ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática” (Idem, p. 52).

Foucault adverte: não é de língua que estamos falando. É de discurso. Esta

desvinculação entre língua e discurso parece ser ainda mais enfatizada quando

afirma:

Havíamos procurado a unidade do discurso junto aos próprios objetos, à sua distribuição, ao jogo de suas diferenças, de sua proximidade ou de seu afastamento – em resumo, junto ao que é dado ao sujeito falante e fomos mandados de volta, finalmente, para um relacionamento que caracteriza a própria prática discursiva; descobrimos, assim, não uma configuração ou forma, mas um conjunto de regras que

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são imanentes a uma prática e a definem em sua especificidade (Ibidem, p.53).

Embora o complexo feixe das relações que produzem o discurso não

defina a constituição interna do objeto, devendo este ser colocado em um

campo de exterioridade, no livro A ordem do discurso, apresentado inicialmente

como aula inaugural no Collége de France em 2 de dezembro de 1970,

Foucault ([1970]1998, p.8) se pergunta o que há de tão perigoso no fato de as

pessoas falarem e de seus discursos se proliferarem indefinidamente? Ele

observa que

[...] em toda a sociedade a produção do discurso será ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo numero de procedimentos que têm por função conjurar os seus poderes e perigos, dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade. (Idem, p. 8)

Em sua análise, existem procedimentos externos e internos de controle

e delimitação do discurso, bem como imposição de regras aos sujeitos do

discurso. Como procedimentos de controle externo, encontramos a exclusão

sob a forma de: a) interdição: segundo ela, não se pode dizer tudo, não se

pode dizer tudo em qualquer circunstância e não é qualquer um que pode falar

qualquer coisa (Ibidem, p.9); b) separação/rejeição: como acontece com o

discurso do louco que é proibido de circular pela sociedade; c) oposição, sob a

forma de verdadeiro ou falso, como o discurso da justiça, pronunciado por

quem de direito e sob determinado ritual – nesta última se ligam a vontade de

verdade, que iguala à vontade de saber e esta à vontade de poder (Ibidem,

p.16-17).

Quando ao segundo procedimento, o de controle interno, encontra-se o

autor:

O autor não entendido, é claro, como indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto (pessoa física), mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.” (Op Cit, p. 26).

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Em a ordem do discurso, para falar do autor, Foucault descreve diversos

procedimentos relacionados à rarefação ou ao controle dos discursos.

Enquanto elemento de controle da proliferação dos discursos, o autor é uma

função, cujo papel consiste em “reduzir, nos discursos, o que eles têm de

acaso, de acontecimento, de ficção” (MUCHAIL, 2002, p. 132):

Procedimentos internos, visto que são os discursos eles mesmos que exercem seu próprio controle; procedimentos que funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso (FOUCAULT ([1970]1998, p.21).

Nestes procedimentos, estão incluídos o comentário e o autor. O

primeiro poderá ser classificado como inicial ou final:

[...] há, muito regularmente nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se dizem” no decorrer dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que o pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer.” (Op cit, p. 22)

O que a necessidade desses procedimentos externos e internos de

controle e delimitação do discurso aponta é a descontinuidade, as séries, o que

propicia a problematização dos limites, das unidades e do idêntico. Fica

exposta a necessidade de controle, seleção, organização e redistribuição

diante do dilaceramento e da dispersão apresentada nos/pelos discursos. A

oposição entre comentário e autor, dentro dos procedimentos internos de

controle do discurso marca essa mesma necessidade relacionada à outra

dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso. Nesse sentido, no

desnível entre o texto primeiro e o texto segundo, o comentário aparece como

“aquilo que estava articulado silenciosamente no texto primeiro” (Op Cit, p. 25)

e esta caracterização limita o acontecimento e o aleatório:

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O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu (Op cit, p. 29).

O estabelecimento dos procedimentos internos e externos de controle do

discurso, como na oposição de comentário e autor, consequentemente entre

texto primeiro e texto segundo, expõe novamente o descontínuo, nessa ordem

do discurso:

Há [...] uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso (FOUCAULT ([1970] 1998, p. 50).

A questão posta pelo autor é: “eu me pergunto se certo número de

temas da filosofia não vieram responder a esses jogos de limitações e de

exclusões, e, talvez também, reforçá-los” (FOUCAULT [1970]1998.p. 45). Um

dos temas elencados por ele é justamente o do autor (cf, p.52). A

consequência desses jogos é o cuidado para que o discurso ocupasse o menor

espaço possível entre o pensamento e a palavra; que aparecesse apenas

como certo aporte entre pensar e falar. Um “discurso seria um pensamento

revestido de signos e tornado visível pelas palavras ou seriam as estruturas

mesmas da língua postas em jogo e produzindo um efeito de sentido” (Idem, p.

46). Esta sua visão do discurso antevê uma diferenciação entre língua e

discurso. Por ser considerado este aporte entre o pensar e o falar, estaria

ocorrendo a elisão da realidade do discurso, quer ele seja tratado na filosofia

do sujeito fundante, na filosofia da experiência originária ou em uma filosofia da

mediação universal (cf. FOUCAULT [1970]1998.p. 46-49). Para elas,

[...] o discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, no primeiro caso de leitura, no segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante (Idem, p. 49)

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Nessa elisão da realidade do discurso, “tudo se passa como se

interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido dispostos de modo a

dominar, ao menos em parte a grande proliferação do discurso” (Ibidem, p. 50),

e, novamente, o temor dos acontecimentos, do descontínuo, da desordem.

Este texto, A ordem do discurso, data de 02 de dezembro de 1970. Em nota de

rodapé da revista de psicanálise Littoral (n. 9, junho de 1983), ao final do

ensaio O que é um autor, datado de 22 de fevereiro de 1969, que alterou o

texto original, portanto anterior ao primeiro – A ordem do discurso -, esses

procedimentos de controle de proliferação encontra-se relacionado à figura do

autor:

o autor não é uma fonte infinita de significações que viriam preencher a obra, o autor não precede as obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção. Se temos o hábito de apresentar o autor como gênio, como emergência perpétua de novidade, é porque na realidade nós o fazemos funcionar de um modelo exatamente inverso. Diremos que o autor é uma produção ideológica na medida em que temos uma representação invertida de sua função histórica real. O autor é então a figura ideológica pela qual se afasta a proliferação do sentido (FOUCAULT ([1969] 1983, p. 40).

Nestas duas obras, vemos os procedimentos de controle sendo

exercidos ora para afastar a proliferação do discurso e/ou do sentido.

Três coisas são tidas como necessárias para analisar o discurso em

suas condições, em seu jogo e seus efeitos, sem que se faça a elisão de sua

realidade: “questionar nossa vontade de verdade, restituir ao discurso seus

caráter de acontecimento, suspender, enfim, a soberania do significante”

(FOUCAULT [1970]1998.p. 51).

Para esta tarefa, de que o autor gostaria de ocupar em seu trabalho nos

próximos anos, há algumas exigências:

a) o princípio de inversão – se reconhecemos o autor como aquele que

desempenha papel positivo, é preciso reconhecer o jogo negativo de um

recorte e de uma rarefação do discurso;

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b) o princípio de descontinuidade – os discursos devem ser tratados

como práticas descontínuas;

c) o princípio de especificidade – o discurso não é um jogo de

significações prévias; e

d) a regra da exterioridade – a partir do próprio discurso, de sua

aparição, “passar às condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à

série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras” (Ibidem, p. 51-53).

Interessante observar, aqui, que a soberania do significante parece se

coadunar com a elisão da realidade do discurso, o que parece estar

contemplado na quarta regra, marcando a passagem de uma interioridade a

uma exterioridade. Isto estabelece uma oposição entre língua e discurso e

pode trazer à tona uma visão diferenciada do jogo dos signos em Saussure e

em Foucault.

2.4. Foucault: a paradoxal singularidade da função autor

A ideia de apagamento, desaparecimento ou ausência do autor a partir

da escrita pode ser relacionada à ruptura instaurada por Saussure quando

delineia o objeto da ciência linguística. O registro do homem como o início e o

fim do conhecimento é visto como emanações fictícias de uma língua e uma

escrita que incessantemente subvertem todas as tentativas do indivíduo em

afirmar o domínio ou controle sobre seu funcionamento. Como afirma Costa

(2009, p. 9), “a oposição de uma história da continuidade a outra que trabalha

por rupturas, quebras, cortes e que, em certo sentido, é efeito de si mesma, é

também uma crítica da Razão”.

A impossibilidade de marcar o indivíduo como autor do texto via escrita e

a possibilidade de se considerar a autoria em termos de uma

transcendentalidade levam Foucault a empreender um trabalho realizado nos

limites de uma teoria linguística. A definição de discurso poderia romper com a

exigência de autonomia do sistema da língua erguida por Ferdinand de

Saussure. É nesse sentido que vejo a transmutação do autor enquanto

indivíduo para função autor. Essa transmutação retorna à questão da

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representação, cuja origem, agora, excede à palavra. A questão é que essa

descontinuidade entre autor e texto é considerado um acontecimento, um

acontecimento delineado entre, de início, dois estados que apresentam uma

regularidade em relação ao conhecimento.

Isto postula uma concepção de signo enquanto representação, pois é

possível inserir o descontínuo entre dois contínuos. Há a consideração do autor

nos dois polos. Entre um e outro, a escrita, que provocaria a ruptura e deveria

dar um novo status a esse sujeito. Podemos observar esse jogo, também,

quando elabora o conceito de autor entre designação e descrição, autor e

escrevente, a dispersão do sujeito pelo texto (o que fala no prefácio não é o

mesmo que fala nas demonstrações, por exemplo). Essas não coincidências

poderiam conduzir a uma elaboração do que é um autor a partir da língua

enquanto sistema.

Como vimos, as noções de obra e de escrita bloqueiam a noção de

autor. Em relação à obra, a análise que Foucault ([1969]2002) empreende do

que é um autor dá conta de que, em relação à autoria, a questão não mais é

destacar as relações da escrita com o autor, tampouco reconstituir por meio

dos textos um pensamento ou uma experiência, o que levaria as suas

discussões de volta à consideração do sujeito originário. Estabelecer o autor a

partir de sua obra apresenta, assim, as mesmas dificuldades em relação à

palavra "obra" e a unidade que ela designa quanto à descrição da

individualidade do autor.

Por outro lado, temos a noção de escrita contemporânea, que deveria

dar estatuto à ausência do autor, a partir do momento em que se liberta da

expressão de sua interioridade. Para Foucault, a escrita se “esforça com uma

notável profundidade para pensar a condição geral de qualquer texto, a

condição ao mesmo tempo do espaço em que ele se dispersa e do tempo em

que ele se desenvolve.” A questão para Foucault é se esse desaparecimento

do autor via escrita não transporia as características empíricas do autor para

um anonimato transcendental, de cuja tradição o esforço é por se libertar?

A desaparição do autor, que após Mallarmé é um acontecimento que não cessa, encontra-se submetida ao bloqueio transcendental. Não existe atualmente uma linha divisória importante entre os que acreditam poder ainda pensar

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as rupturas atuais na tradição histórico-transcendental do século XIX e os que se esforçam para se libertar dela definitivamente?

Para Foucault, o uso dessa noção de escrita “arrisca manter os

privilégios do autor sob a salvaguarda do a priori: ele faz subsistir, na luz

obscura da neutralização, o jogo das representações que formaram uma certa

imagem do autor.” Nesse sentido, o fundamento originário de autor se manteria

não a partir da escrita, que o bloqueia, assim como da a obra, mas nessa

possibilidade mesma de não dispor de nenhum novo estatuto para si,

conduzindo-o a um anonimato transcendental, cujas vias de fato seria o

centramento do sentido nesse autor ainda, ocasionando o seu privilégio sob a

guarda do a priori: que faz subsistir, na luz obscura da neutralização, o jogo

das representações que formaram uma certa imagem do autor. Nesse sentido,

a busca de Foucault é pela análise do autor enquanto função e não a sua

consideração a partir da língua. Isto pressupõe que o sistema linguístico não

daria conta, afinal, desse sujeito, cuja identidade não pode ser analisada a

partir de sua escrita. Ou, por outro lado, como afirma Milner (1996, p. 72),

É que a língua não interessa para Foucault, tampouco a linguagem, quer as consideremos em sua forma ou em sua substância. É verdade que a linguística lhe fornecera conceitos e apoios, mas podemos desconfiar que haja aí mais que analogias, autorizadas pelos anos 60. É também verdade que as palavras e as frases constituem a causa material dos discursos. Mas os discursos possuem lei própria, que nada devem às eventuais leis que governam as palavras e as frases. A lei dos discursos se resume numa só: existem ‘descontinuidades’, ou ‘devemos dizer não às sinonímias.”

A leitura de alguém que se interesse pelos discursos, mas não pela

linguagem ou língua, e, ainda, a afirmação de que os discursos possuem lei

própria pode ser lida com a observação de certa ironia por parte de Milner.

Em Foucault, na dedução deste posicionamento e nessa representação

de escrita, entrevê-se um jogo de representações vinculado a uma disposição

clássica de signo em Saussure, ou, na melhor das hipóteses a sua

restauração, ainda que se apoie em parte de suas discussões para descrever a

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noção de escrita contemporânea, que rejeita o sujeito como fundamento

originário.

Esse jogo das representações implica uma consideração de língua

diferente daquela sistematizada em Saussure. Foucault pode considerar que a

língua não escape aos cortes disjuntos e turbulentos e isso pode ser lido no

que considera como acontecimento histórico e discursivo em relação à figura

do autor. Entretanto, o que a descontinuidade entre autor e escrita apresenta é

justamente a passagem de um estado de conhecimento a outro. De um autor

localizado a partir de si e da obra a outro, a bem da verdade localizado num só

depois, mas que ainda concentraria a emanação das representações, de

sentidos e que não seria analisado a partir da língua, a partir de sua ordem

própria.

Nesse sentido, indiquei anteriormente que a noção de sistema é uma

noção cara a Foucault. O autor parte de uma sistematização linguística que

impossibilita a amarração de um sujeito a um texto, da descontinuidade entre

texto e autor para justificar a proposição da função autor. Contraditoriamente,

uma função que inevitavelmente participa da ordenação, orientação,

classificação, exclusão, controle da proliferação de sentidos em relação ao que

pode ser agrupado sob a autoria de um sujeito. Isto relaciona autoria e

representação.

São esses questionamentos em relação à individualidade do autor e em

relação à obra e escrita, assim como o esforço para se libertar da tradição

histórico-transcendental, que levam Foucault a observar o funcionamento do

nome do autor e a considerar que este funcionamento difere do funcionamento

do nome próprio em geral. Mas, o nome do autor

[...] exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si;

Nesse sentido, o nome do autor funciona para caracterizar certo modo

de ele ser no discurso: o fato de haver um nome de autor, de se poder dizer

"isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse

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discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, mas que se trata de uma

palavra que deve ser recebida de certa maneira e que deve, em uma dada

cultura, receber certo status. Podemos nos perguntar: qual a materialidade do

discurso? A língua. E a indiferença anteriormente anotada em relação a quem

fala? Há, aqui, uma possibilidade de contraposição entre língua e discurso de

tal modo que a noção de signo a ser considerada não releva as discussões

linguísticas de Saussure.

A ideia era a de que o nome do autor não reenviaria do interior de um

discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu, mas isso não pode ser

sustentado quando se fala em fundadores de discursividades, como Freud e

Marx. Em especial, nessa situação, a pergunta “Que importa quem fala”

importa e muito. Para melhor esclarecer e exemplificar a discussão sobre o que

é um autor para Foucault em relação aos fundadores de discursividades,

apoiarei minha exposição em Burke (1998). Para ele, considerar o

funcionamento do nome do autor e que haja fundadores de discursividades faz

com que possam ser observados discursos que são providos de função "autor",

enquanto outros são dela desprovidos, pois o nome do autor

manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser.

Esse modo de funcionamento é o que levou Foucault a substituir o autor

pela função-autor, “característica do modo de existência, de circulação e de

funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade.”

Para delimitar essa função, quatro características são levadas em

consideração:

1) os textos com função autor são objetos de apropriação, o que a liga

ao sistema jurídico-institucional;

2) a função autor não é exercida de uma maneira universal e constante

em todos os discursos, como nos textos literários (em que o anonimato é

insuportável) e os textos científicos (em que o nome do inventor serve, no

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máximo, para batizar um teorema, uma proposição um feito notável);

3) a função autor não se forma espontaneamente como a atribuição de

um discurso a um indivíduo (não há o lugar originário da escrita. o que no

indivíduo é designado como autor é apenas a projeção do tratamento que se

dá aos textos, das aproximações e dos traços que se estabelecem como

pertinentes, das continuidades e das exclusões que se praticam”); e

4) a função autor não reenvia a um indivíduo real, dá lugar a várias

posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar.

Em todas as quatro características elencadas, temos uma noção de

signo que refere à representação, com exceção, parece-me, da número 1,

para a qual a noção de escrita contemporânea é convocada. Nesse sentido, a

noção de signo saussureano embasaria as discussões sobre escrita, mas não

sobre autoria. Para essa, outra noção de signo é considerada. Na característica

2, pode-se batizar o teorema, delimitar um feito; na 3, podemos estabelecer

exclusões, selecionar traços, fazer aproximações; na 4, indivíduos (in-divíduos)

podem vir a ocupar a posição sujeito.

Acrescente-se que se pode ser o autor de bem mais que um livro - de

uma teoria, de uma tradição, de uma disciplina dentro das quais outros livros e

outros autores poderão, por sua vez, se colocar. São autores considerados em

posição "transdiscursiva" – os fundadores de discursividade (como Saussure,

Marx e Freud, por exemplo), que produziram a possibilidade e a regra de

formação de outros textos, cuja função autor excede a própria obra e impõe um

retorno à origem, que, como já dissemos responde afirmativamente à questão

“Que importa quem fala?”.

De todas as formas acima apresentadas, o que vemos em relação à

discussão estabelecida por Foucault é a utilização de um conceito operatório –

a descontinuidade – que se liga à presença de acontecimentos e,

paradoxalmente, delimita o espaço de sua aparição, estabelecendo o espaço

de uma regularidade. Estabelecer a regularidade em meio à dispersão é referir

a uma representação.

No mesmo sentido, se aplicarmos à questão do autor, observamos a

negação do fundamento de origem, mas a noção de ruptura restará abalada

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posto que na consideração de escrita contemporânea a negação total do

sujeito a partir dela estabelecerá uma contradição. Ruptura em relação a quê,

se o sujeito foi sempre ausente? Como caracterizar um sujeito disperso com

leis de repartição, que delimitam um espaçamento? Essa contradição é

exposta pelo próprio Foucault ao delimitar o conceito da descontinuidade: a

paradoxal noção delimita o campo de que é efeito. Nesse sentido, a noção de

função autor é paradoxal. O autor descreve dispersões por meio de leis de

repartição.

Nesse sentido, também, entendo a afirmação de Burke (1998): para

consolidar a tese da morte do autor, Foucault recorre, à transdiscursividade,

por meio de uma transepistêmica que fornece os mandados de morte do

homem, sem sacrificar a coerência e autonomia do conhecimento. A noção

de transdicursividade preservaria na noção de um autor transepistêmico a

propriedade peculiar da episteme enquanto licenciamento, partindo de suas

determinações:

Eu me limitei ao autor considerado como autor de um texto, de um livro ou de uma obra ao qual se pode legitimamente atribuir a produção. Ora, é fácil ver que, na ordem do discurso, pode-se ser o autor de bem mais que um livro - de uma teoria, de uma tradição, de uma disciplina dentro das quais outros livros e outros autores poderão, por sua vez, se colocar. Eu diria, finalmente, que esses autores se encontram em uma posição "transdiscursiva". (FOUCAULT [1969]2002, p. 57).

Para Foucault, durante o século XIX, na Europa, existiram tipos de

autores bastante singulares e que não poderiam ser confundidos nem com os

"grandes" autores literários, nem com os autores de textos religiosos

canônicos, nem com os fundadores das ciências: os "fundadores de

discursividade". Burke (1998) acredita que aqui se encontra sugerido que o

princípio da autoria excede os limites do corpo de textos que levam seu nome.

Assim, a ideia de um autor exercer uma jurisdição sobre seus próprios textos

não só foi aceita em princípio, mas é visto como ser demasiado estreito e

restritivo em casos particulares: Aristóteles é, em certo sentido, o autor do

Aristotelismo; Euclides, o autor de geometria. É fácil ver que muitos autores

poderia reivindicar um estatuto transdiscursivo. Pode-se questionar o que é

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verdade de Aristóteles neste contexto ser menos verdade de Platão, Tomás de

Aquino, Descartes, Ptolomeu. Todos parecem dar origem a espaços

ideacionais em que outros livros e autores em suas transformações encontram

um lugar:

na obra desses fundadores, não se reconhecem certas proposições como falsas; contenta-se, quando se tenta apreender esse ato de instauração, em afastar os enunciados que não seriam pertinentes, seja por considerá-los como não essenciais, seja por considerá-los como "pré-históricos" e provenientes de um outro tipo de discursividade Em outras palavras, diferentemente da fundação de uma ciência, a instauração discursiva não faz parte dessas transformações ulteriores, ela permanece necessariamente retirada e em desequilíbrio. A consequência e que se define a validade teórica de uma proposição em relação a obra de seus instauradores - ao passo que, no caso de Galileu e de Newton, e em relação ao que são, em sua estrutura e normatividade intrínsecas, a física ou a cosmologia, que se pode afirmar a validade de tal proposição que eles puderam avançar. Falando de uma maneira bastante esquemática: a obra desses instauradores não se situa em relação a ciência e no espaço que ela circunscreve; mas é a ciência ou a discursividade que se relaciona a sua obra como as coordenadas primeiras. (FOUCAULT [1969]2002, p. 63).

Foucault estabelece a relação do que seria um "ismo" com um nome

próprio, o que não equivale a dizer que algum grau de transdiscursividade

tenha surgido. Na expressão do "retorno à origem", para Burke (1998), a frase

tem suas surpresas também, e as aspas com que é cercado podem ser lidas

como precaução:

Compreende-se por ai que se encontre, como uma necessidade inevitável em tais discursividade, a exigência de um "retorno a origem". [Aqui, ainda, é preciso distinguir esses "retornos a..." dos fenômenos de "redescoberta" e de "ritualização" que se produzem frequentemente nas ciências. (FOUCAULT [1969]2002, p. 64).

Como direta consequência desses retornos, é preciso também enfatizar

que eles tendem a, segundo Burke (1998), reforçar a ligação enigmática entre

um autor e sua obra. Um texto tem uma valor inaugurativo precisamente

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porque é o trabalho de um autor particular, cujos retornos são condicionados

por esse conhecimento. Como no caso de Galileu, não existe nenhuma

possibilidade de que a redescoberta de um texto desconhecido por Newton

modificasse a cosmologia clássica ou teoria dos conjuntos como os

conhecemos (no melhor dos casos, tal exumação pode modificar nosso

conhecimento histórico da sua gênese).

Foucault começa o ensaio «O que é um autor?" com a pergunta "Que

importa quem fala?”e concluindo com a resposta que deveria realmente não

importar a todos, Foucault aqui fornece o exemplo mais extremo de por que

isso importa. A descoberta de um texto como "Projeto para uma Psicologia

Científica" de Freud modificarão a psicanálise se e somente se é um texto de

Freud. Para além do conteúdo do texto, o fato de atribuição de si mesmo é o

principal fator para estabelecer a sua significação para o campo psicanalítico.

Há uma disjunção entre as definições antitéticas presentes em O que é

um autor. Por um lado, Foucault está procurando as condições específicas em

que algo como um sujeito pode aparecer na ordem do discurso, enquanto, no

outro, ele está apresentando uma figura meta-autoral que funda e

interminavelmente circunscreve um discursividade (Cf Burke, 1998). Apesar de

tratar a questão do autor na esfera do descontínuo, da dispersão, a

desconsideração do jogo de diferença implica o não enfrentamento do estatuto

do autor.

Segundo Burke (1998), na ideia de Foucault do fundador da

discursividade, nenhum psicanalista pode afirmar que representa, no entanto,

em uma forma ligeira, um corpus de conhecimento absoluto. É por isso que,

em certo sentido, pode-se dizer que se houver alguém para quem se pode

aplicar, só pode haver uma dessas pessoas. Este era Freud. Ele não foi

apenas o sujeito que deveria saber. Ele sabia, e ele deu-nos este

conhecimento, em termos que podem ser dito para ser indestrutível, na medida

em que eles suportam um interrogatório que, até o presente dia, nunca foi

esgotado.

A análise sobre o que é um autor empreendida por Foucault a partir do

conceito da descontinuidade se dá a partir do vazio delimitando o espaço de

um pensar que passa a ser de outro modo. O espaço da descontinuidade vai

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ser um espaço limite em que estará presente o pensado – tanto o estado

anterior, quanto o pensado posterior: dois estados estabelecidos – assim como

o impensado entre o anterior e o posterior. O descontínuo marca a dispersão

da continuidade: “o que eu quis estabelecer é justo o contrário de uma

descontinuidade, já que evidenciei a própria forma da passagem de um estado

ao outro”.

Esse vazio limítrofe que relaciona pensado-impensado-pensado,

marcando a dispersão dentro de uma continuidade, é colocado como

acontecimento discursivo. É a consideração dessa descontinuidade que

impediria a observação de um evento atravessado por uma ordem própria da

língua. Enquanto relacionada ao acontecimento discursivo, a descontinuidade

permitiria o estudo do pensamento na ausência de quem o pensou,

considerando que “não é de origem que se está falando, pois é sempre sobre

um fundo já começado que se estabelece o pensamento, possibilitando o

estudo de um pensamento na ausência de quem o pensou”, como expõe

Nicolazzi (2001).

Eis aí o “golpe de misericórdia” na objetividade da arqueologia, tal como

é “sistematizada” por Foucault (Cf. COSTA, 2009): além de negar a

necessidade de ter de constituir também os sistemas de elementos que

correlaciona, Foucault ainda rejeita a relação de constituição recíproca entre a

estrutura “interior” e “exterior” dos enunciados e de seus elementos. Uma

opção surpreendente que o próprio autor explicita:

As relações discursivas, como se vê, não são internas ao discurso [...] mas não são relações externas ao discurso [...] Elas estão, de alguma maneira, no limite do discurso [...] determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou quais objetos, para poder abordá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los. Essas relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática. (FOUCAULT, apud COSTA, 2009.).

É pensando nessa rejeição que Foucault faz da relação de constituição

recíproca entre a estrutura “interior” e “exterior” dos enunciados e de seus

elementos por conta da consideração da noção de sistema de Saussure que a

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problemática da autoria, apesar dos avanços apresentados, ainda possui

limitações.

3. A questão da autoria e a ordem própria da língua

Foucault e Saussure rejeitam o sujeito como fundamento originário.

Segundo Lemos (2013),

“o Curso toca nela quase fortuitamente: seu procedimento analítico complementa a descritividade das estruturas deixando de fora, também, a categoria da intencionalidade na narrativa dos sistemas: neles, ‘a mudança se produz fora de toda intenção’ “(Saussure [1916], apud Lemos, 2013).

Na substituição do autor enquanto fundamento originário pela função

autor em Foucault em razão de uma escrita que subverte a manutenção do

primeiro, observamos como Michel de Certeau identificou a presença de

Saussure no texto de Foucault: "O método permanece o significante de um

significado impossível de enunciar" (Certeau, 2002, 153, apud Lemos, 2013).

Ao lermos o capítulo Retorno a Saussure, que inicia o texto El Periplo

Estructural, de Jean-Claude Milner (2003), observaremos que esta afirmação

implica considerar uma teoria do signo inexistente em Saussure. Qual o

conceito de signo? Qual a tipologia? O que é um elemento linguístico? A

ausência de respostas a questões como estas indicam que Saussure faz uma

diferença entre o signo em geral e o signo linguístico.

Nessa comparação, os signos podem ser compreendido por meio de

relações representacionais ou associativas. Numa relação representacional, a

assimetria existente postula que A represente a B, sem contudo haver

reciprocidade de B para com A. Em Saussure, a relação é associativa, o que

implica reciprocidade de A para B e de B para A, ao mesmo tempo em que a

relação do signo com a coisa significada não tem importância para o linguista.

As relações apresentadas por Milner (2003, p. 31) dão conta de que

considerar o signo em uma relação simétrica e recíproca torna inútil uma teoria

que se pretenda autônoma. É neste modelo da filosofia clássica sobre o signo

que Milner aponta a inclusão da teoria do signo de Saussure por Foucault e

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contra qual se opõe, considerando que o linguista, apesar de utilizar

formulações antigas, a articulação geral que desenvolve é diferente.

Diferentemente das relações representacionais, o significado saussureano

resulta inapreensível. Para essa conclusão, a discussão entre relações e

arbitrariedade devem ser revistas: é diferente afirmar que o arbitrário

caracteriza certo tipo de relação por oposição ao arbitrário que caracteriza a

ausência de toda relação.

A primeira caracterização entre relação e arbitrário se dá em termos

positivos: há relação. Nesse sentido, as palavras constituem-se em signos do

pensamento.

A segunda caracterização se dá pela negação da relação e se sustenta

pelos outros signos em associação. Dizer isto implica considerar que signo e

pensamento não preexistem ao encontro: “Um signo dado no existe sino por

los otros signos. Más exactamente, um signo dado no existe sino por aquello

que permite a los otros signos existir” (MILNER, 2003, p. 37).

Em Foucault, vemos que há um descontínuo entre autor e texto, em que

se tem a negação do sujeito como origem do seu dizer. Essa negação está

implicada na característica do que estabelece como escrita contemporânea,

mas não contempla a segunda caracterização da relação com o arbitrário sob a

forma de uma negação.

A escrita contemporânea de Foucault encontra-se liberta do tema da

expressão e se liga à sua exterioridade, o que impossibilita a amarração de um

sujeito a um texto dada a natureza do significante e aqui se pode pensar na

primeira caracterização entre relação e arbitrariedade em termos de uma

positividade.

Essa não possibilidade articulação entre autor e texto via escrita está

condicionada ao não estabelecimento de uma dependência do sujeito para com

o significante, o que acaba por promover a ilusão de unidade, seja em relação

ao autor, ao indivíduo, à obra, aos discursos particulares, às seleções que

efetuamos, às exclusões que elaboramos em proveito das formas próprias ao

discurso. Nesse apagamento voluntário das características individuais, a

função semântica estabelece a coincidência entre significante e significado.

Esta visão de signo não propicia uma nova abordagem do sujeito autor, que

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continua exercendo o controle sobre o seu dizer: ele consegue apagar suas

características individuais. Reconhece-as, portanto. Localiza-as.

Essa afirmação desconsidera todas as características atribuídas à

escrita contemporânea ao não permitir ao funcionamento do significante a

primazia no jogo da produção dos sentidos enquanto efeito da relação

significante em cadeia.

Foucault considera que haja uma realidade anterior que é possível

individualizar – dizer isso é caractere individual, deve ser apagado – é marcar

uma realidade pré-discursiva. Isto conflitua com um significante, marcando-o

enquanto origem, enquanto algo que faz laço com o significado, o que

implicaria na recusa do seu caráter de arbitrariedade. A marcação do caractere

individual, com a possibilidade de seu apagamento, confunde indivíduo, sujeito

e autor. Ao mesmo tempo, o laço estabelecido entre significante e significado

permite significar o sujeito. A concepção de língua, aqui, não contempla a

problemática do significante em Saussure e a razão pode estar na

dessubjetivação resultante da não consideração da língua enquanto sistema,

que, a meu ver, implica a retirada da soberania do sujeito, mas não a sua

negação.

Esta consideração pode ser lida nas observações que Lacan faz sobre o

texto de Foucault à época de sua conferência no Collège de France, em 1969,

transcrita ao final do ensaio O que é um autor:

Recebi o convite muito tarde. Lendo-o, notei, no último parágrafo, o "retorno a". Retorna-se talvez a muitas coisas, mas, enfim, o retorno a Freud é alguma coisa que eu tomei como uma espécie de bandeira, em um certo campo, e ai eu só posso Ihe agradecer; você correspondeu inteiramente a minha expectativa. A propósito de Freud, evocando especialmente o que significa o "retorno a", tudo o que você disse me parece, pelo menos do ponto de vista em que eu pude nele contribuir, perfeitamente pertinente. Em segundo lugar, gostaria de enfatizar que, estruturalismo ou não, não me parece de forma alguma que se trate, no campo vagamente determinado por essa etiqueta, da negação do sujeito. Trata-se da dependência do sujeito, o que é completamente diferente; e muito particularmente, no nível do retorno a Freud, da dependência do sujeito em relação a alguma coisa verdadeiramente elementar, e que tentamos isolar com o termo "significante".

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Em terceiro lugar - limitarei a isso minha intervenção -, não considero o que seja de forma alguma legitimo ter escrito que as estruturas não descem para a rua, porque se há alguma coisa que os acontecimentos de maio demonstram é precisamente a descida para a rua das estruturas. O fato de que ela seja escrita no próprio lugar em que se opera essa descida para a rua nada mais prova que, simplesmente, o que é muito frequente, e mesmo o mais frequente, dentro do que se chama de ato, e que ele se desconhece a si mesmo.

Na segunda observação, vemos a consideração de Lacan ao enfatizar a

dependência do sujeito e não a sua negação, em se tratando de estruturalismo

ou não. Essa sua última colocação – em se tratando de estruturalismo ou não –

faz referência à escrita moderna, que, segundo Foucault aponta para a

indiferença em relação a quem fala, o que se relaciona à negação do sujeito.

Essa indiferença relaciona-se à afirmação de que as estruturas não descem

para as ruas – terceira intervenção de Lacan. Este autor menciona os mesmos

acontecimentos de maio para argumentar que as estruturas descem à rua, sim,

ainda que o ato desconheça a si mesmo.

Lemos (2013) afirma que

“era de se esperar que a descritividade absoluta e dessubjetivação dos sistemas estivessem mutuamente implicadas, como em Saussure. No entanto, o preço a pagar pelo fim do positivismo pareceu alto demais a muitos dos que se diziam estruturalistas. A alternativa tentadora de um estruturalismo marxista parecia oferecer uma boa solução de compromisso: morre o sujeito, mas as estruturas permanecem de pé graças à sua racionalidade intrínseca.”

Foucault reclama a subjetividade na linguagem e isto pode ser, para

Lemos (2013), observado desde As palavras e as coisas, onde a própria

síntese é posta em questão, e, em 1969, quando Foucault identifica, por

exemplo, na História da loucura, o uso excessivo da noção de experiência, que

poderia reintroduzir, subrepticiamente, um fundamento subjetivo que a análise

do livro de 1966 se esforçou por conduzir ao solo arqueológico sem, no

entanto, sem satisfatória explicitação.

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Para Lemos (2013), às vésperas de 1968, decapitar o sujeito, desmontar

a razão, era calar a revolução. Aqui entram os acontecimentos de maio

enunciados por Lacan:

A revolta estudantil de maio de 1968 exigia um compromisso ideológico do estruturalismo que, por sua incontornável negatividade, ele não podia oferecer - o que o tornou insustentável. Para se afastar do "humanismo mole" de Sartre, para evitar a redução ao cogito da fenomenologia - objetivos comuns aos estruturalistas e a Foucault - era preciso sacrificar a racionalidade das estruturas em nome da radicalidade histórica. Nas ruas, entre os protestos estudantis, o estruturalismo e sua estrela principal haviam se tornado insustentáveis.

Considerar que o estruturalismo não desce às ruas e estabelecer um

paralelo com a noção de sistema em Saussure pode levar à crença de que os

cortes efetuados pelo linguista excluíam unidades transfrásticas, textos,

condições de produção, história, sujeito e sentido, por exemplo.

Para abordar as questões sobre a autoria apresentadas por Foucault, é

preciso, primeiramente, considerar que retirar o sujeito do controle nãoo

significa negar sua existência. Duas afirmações permanecem ao ler o ensaio. A

primeira delas é a já evidenciada no livro de Saussure, Curso de Linguística

Geral, e tão bem explicitado por Silveira (2009): a delimitação do objeto

linguístico pelo mestre genebrino impôs modificação da relação entre língua e

pensamento, considerando, como já afirmei, que, segundo Saussure, não há

correspondência entre pensamento e som, o que suspende a língua enquanto

representação do primeiro e o som enquanto representação da língua.

Essa não correspondência eleva pensamento e som à qualidade de

duas massas amorfas por entre as quais a língua vai elaborar suas unidades.

Dessas unidades, também a-substanciais, só se pode afirmar algo a partir do

sistema, por meio do qual podem ser discutidos valor e significação; portanto,

num só depois, pois essas unidades não têm positividade em si mesmas e por

si mesmas. Em Milner (2003, p. 41), vemos que este linguista se utiliza da

palavra signo para apartar-se dele, embora não possa abandoná-lo porque

este se encontra no seu ponto de partida. Não há uma teoria do signo, porque

embora utilize este termo, o que se marca é o arbitrário enquanto ausência de

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relação.

A leitura empreendida de Saussure no ensaio de Foucault parece

reportar-se à mesma leitura deste linguista na América Latina, em estudo

realizado por Lier-DeVitto et al (2014): há “a reprodução de uma leitura

específica do Cours, qual seja, aquela que apaga aquilo que, na reflexão

saussureana, tem efeito de “corte”, cuja definição de língua “incide

essencialmente sobre o cárater negativo da unidade linguística, fundada na

diferença pura e acarretando, portanto, a impossibilidade da descrição,

enquanto apreensão de unidades linguísticas em si”.

O retorno a Saussure empreendido pelas autoras buscam uma visão de

linguagem que atenda a questões epistemológicas e empíricas no campo da

aquisição da linguagem (podendo esta visão diferenciada ser lida em Lemos,

1992, 2000 entre outros; Lier-De Vitto, 1998) e das Patologias da Linguagem

(cf.Lier-De Vitto, 1999, entre outros; Andrade, 2002). Diferentemente da

insistência em reduzir as idéias de Saussure a instrumentos de descrição

(como encontrado nos autores discutidos), o investimento é “na possibilidade

de abordar la langue e seu funcionamento na fala, sem abordar a fala como

mera atualização da gramática ou, como se diz no campo, do conhecimento

linguístico.”

Nesse retorno a Saussure, as análises das falas de crianças apontam

resistência à busca de regularidades categoriais. Esses “erros”, conquanto

imprevisíveis,

“esses fenômenos deixam ver o funcionamento da língua como determinante do aparecimento de formas que, apesar de ‘estranhas’, são produtos efetivos de relações dinâmicas. No caso das patologias da linguagem, essas formas estranhas não podem ser sistematicamente associadas a um déficit orgânico particular, nem pode o ‘patológico’ ser referido a qualquer categoria patológica de fala (Lier-De Vitto, 1999, 2000).

Para as autoras, a natureza idiossincrática tanto da fala da criança,

quanto das falas patológicas, é um entre outros argumentos em favor da

implicação do conceito de la langue de Saussure, “conceito que permite

pensar o sujeito-falante como submetido ao funcionamento da linguagem,

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‘capturado’ por esse funcionamento” (De Lemos, 1992, entre outros).

Nesta abordagem, diferentemente da negação do sujeito em Foucault, o

sujeito faz presença singular na linguagem. Uma presença singular cuja

linguagem é confrontada no terreno da língua, com unidades que não são

delimitadas a priori, processando-se enquanto efeito de relações do jogo

significante. Neste jogo, se o signo tem propriedades é só pelas relacões de

diferença que o seu significante mantém com todos os outros significantes da

língua; e seu significado, com todos os outros significados da língua (Cf.

MILNER, 2003, P. 39).

Um dos pontos relevantes que considero no trabalho das pesquisadoras

Lier DeVitto & Andrade (2008) refere-se ao texto “Considerações sobre a

interpretação de escritas sintomáticas de crianças”. Nele, as autoras

problematizam a concepção de escrita como representação da fala, a partir da

consideração da articulação tensa do funcionamento da língua na fala/escrita e

que dá lugar a uma reflexão sobre o sujeito, implicando a noção do

inconsciente. O ponto nuclear destacado pelas autoras é o de que há

indeterminação na escrita de crianças. O ponto de partida para o

desenvolvimento do raciocínio é a análise do significante consoante leitura

diferenciada de Saussure: “se a transparência de unidades da matéria acústica

(que chega à criança como um fluxo contínuo) não é questionada, menos ainda

o é a transparência da matéria gráfica (que a criança recebe numa pauta

demarcada: com intervalos, segmentos e sinais estáveis). A escrita é erigida,

nesse contexto, como representação de segunda ordem, ou seja,

representação gráfica de uma representação sonora do mundo.”

Pelo viés saussureano, no entanto, as entidades concretas da língua

não se apresentam por si mesmas à observação, sendo delimitadas "pelo

aspecto do valor". Esta consideração inverte a consideração de signo que

acompanha as discussões de Foucault: não se tem mais um sistema de signos

– justamente porque Saussure não trata da teoria de signos. As unidades da

língua são inapreensíveis em si mesmas. Elas constituem um sistema de

valores puros.

Esta consideração contrapõe-se ao jogo dos signos presente na

discussão de Foucault: não é possível o estabelecimento de categorias

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estáveis pela via da determinação de semelhanças, de analogias. Nesse

sentido, a proposta não dá “lugar para um sujeito epistêmico e isso porque

operações da língua são implicadas na estruturação da linguagem e do

sujeito”, uma visão que se opõe à negação do sujeito em Foucault.

A concepção de escrita moderna que prega a indiferença em relação a

quem fala opõe-se à de Saussure, em que o interno está atravessado pelo

externo (Cf MILNER, 2003, p. 39). Ou, por outro lado, “Não se pode separar o

plano interno e o externo, o lugar onde se constrói o pensamento e do outro,

[externo] da linguagem” ou supor, ainda, que “em algum momento [essas

linhas] vão se cruzar” (LIER-DeVITTO,1998). Em Foucault, a escrita liberta de

sua expressão impossibilita a amarração de um sujeito na linguagem porque

não pressupõe esse atravessamento interno-externo. Como não se consideram

as operações da língua, também não se considera que elas possam estruturar

um sujeito.

O que vemos em Foucault é a presença de um sujeito, dotado de

vontade. A partir da consideração dessa vontade, pode-se afirmar que o sujeito

é quem estrutura a língua, que se apresenta de forma transparente a ele:

Esse tema da narrativa ou da escrita feitos para exorcizar a morte, nossa cultura o metamorfoseou; a escrita está atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida; apagamento voluntário que não é para ser representado nos livros, pois ele consumado na própria existência do escritor. (FOUCAULT [1969]2002).

O controle sobre o sentido do texto parece contraditório com o que o

autor afirma em relação à indiferença de quem fala:

O sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. (Op Cit, 2002).

Os signos se apresentam em Foucault com propriedades intrínsecas e

independentes, positivos em si mesmos. Quando se afirma que “Freud tornou

possível certo número de diferenças em relação aos seus textos, aos seus

conceitos, as suas hipóteses, que dizem todas respeito ao próprio discurso

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psicanalítico”, os signos representativos dos conceitos e das hipóteses estão ali

presentes e as diferenças a serem estabelecidas por outras leituras devem ser

por eles autorizadas.

A noção de signo representacional pode ser analisada quando se afirma

que a possibilidade de “afastar os enunciados que não seriam pertinentes, seja

por considerá-los como não essenciais, seja por considerá-los como "pré-

históricos" e provenientes de outro tipo de discursividade”. Essa demarcação

entre uma e outra coisa só pode ser estabelecida dentro de uma positividade.

Mas há ainda uns pontos que chamam a atenção na discussão de

Foucault. O primeiro deles é a tentativa frustrada de delimitar autor, nome

próprio e obra enquanto unidades isoladas.

O outro é o retorno a, que se faz na direção de uma espécie de costura

enigmática da obra e do autor, ainda que se considere o fato de que tem valor

porque o texto é de determinado autor, comportando o ponto de vista do seu

autor "fundamental". Um retorno em “que é preciso inicialmente que tenha

havido esquecimento, não esquecimento acidental, não encobrimento por

alguma incompreensão, mas esquecimento essencial e constitutivo; retorna-se

ao que está marcado pelo vazio, pela ausência, pela lacuna no texto. Retorna-

se a um certo vazio que o esquecimento evitou ou mascarou, que recobriu com

uma falsa ou má plenitude e o retorno deve redescobrir essa lacuna e essa

falta”.

Ainda que a consideração do retorno a… possibilite a consideração de

uma relação faltosa, o signo (e não o significante), aqui, não aponta para

tensões constitutivas na articulação de uma obra ou texto a um sujeito. O

esquecimento está no texto. O retorno deve redescobri-lo. Não se questiona a

não-coincidência do sujeito consigo mesmo, nem dele com sua escrita, um

caminho que poderia ser percorrido.

A lacuna, o vazio poderia ser interpretado como desconhecimento de si

perante a ordem da língua. Talvez, a possibilidade de formação de tantos

outros textos a partir de quaisquer tipos de textos resida justamente nesse

desconhecimento.

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Considerações finais

Para a problematização de o que é um autor, Foucault, no texto que

considera um ensaio e, portanto, ainda aberto e inconcluso, estabelece um

quadro em que se pode apontar um fator de representação que desconsidera o

funcionamento da ordem da língua ou da língua enquanto sistema. A afirmação

da relação do arbitrário impõe-se desde a questão da indiferença pressuposta

em relação a quem fala. A arbitrariedade impediria a amarração do sujeito a um

texto. Nesse ponto, falar de autor é falar de sentido. A indiferença em relação a

quem fala vincularia-se à ausência de sentido no texto, culminando com a

ausência de sujeito. A discussão do sentido passa, assim, do interior ao

exterior: é o modo como selecionamos, recortamos, escolhemos os textos que

levam à função autor. Diferentemente, no entanto, em Saussure, vemos que

dizer arbitrário significa que “é arbitrário em relação ao significado, com o qual

não apresenta, na realidade, qualquer ligação natural.” (SAUSSURE,

2002[1916]:126). A questão do sentido relaciona-se à ordem da língua assim

explicado por Milner:

Subsiste, empero, um enigma. Como puede el signos os tenerse unido em ausencia de toda relación interior. Em ausencia de um mítico amo de las palavras, em ausencia de todo punto fijo externo? Aqui interviene uma de las innovaciones más importantes de la doctrina. Podemos resumirla así: si um signo dado se sostiene, es por los otros signos.(MILNER, 2002, p. 36).

Essa relação ao arbitrário tem desdobramentos quando a referimos à

noção de sistema estabelecido por Saussure. É possível relacionar língua e

pensamento pela via de uma relação diferenciada em que língua e sujeito se

estruturam.

Se por um lado temos uma arbitrariedade que conduz à negação do

sujeito via uma concepção de escrita liberta de sua expressão de interioridade,

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por outro temos a marcação positiva da relação ao arbitrário – não há sujeito.

Essa marcação positiva isenta a análise tensa do sistema linguístico e inclui a

discussão do signo em Foucault como representação, como signo filosófico, o

que impõe o apagamento daquilo que tem efeito de corte em Saussure.

A desconsideração da língua enquanto terreno de quaisquer

manifestações de linguagem não é levado em consideração. Nesse sentido, a

língua é tomada como independente de conflitos, terreno em que a diacronia

não está presente, que é oposto à fala e à escrita.

Desse modo, não há uma articulação entre língua e discurso, no sentido

de que a língua é a materialidade do discurso e, consequentemente, sua ordem

tem desdobramentos junto a ele. O conjunto de signos de que a língua se

compõe mantém uma relação positiva ao arbitrário, cuja significação não se

processa na interioridade de cada unidade, tampouco entre suas unidades.

Resulta dessa relação positiva ao arbitrário uma significação estabelecida a

priori ainda que o sujeito autor não o seja assim construído: há aproximações,

exclusões, apagamentos sendo efetuados, escolhidos, voluntariados,

repartidos.

Sem a consideração de um sistema cujas unidades e relações não

sejam estabelecidas a priori resulta um signo arbitrário, mas positivo em si

mesmo, passível de ser recuperado em retornos - quando retorna a Marx, a

Freud, para fins de verificação se aquilo poderia ter sido dito por eles mesmos.

Eles precisam autorizar esse retorno. Assim, não há ordem própria da língua.

Os signos são representação. A discussão mantida em relação ao significante

o mantém abrigado junto a uma representação, em que há coincidência do

significado com o significado; do significante com o significante; e do

significado com o significante, ainda que realizada do exterior. A remissão do

significante não é inquestionável.

A busca pela significação e valor do signo fora de uma relação entre

suas unidades, em relação diferencial negativa e para fora da própria língua,

permite dizer que a Teoria do Valor de Saussure não está presente em

Foucault. É possível, esquecer, apagar, controlar a proliferação dos sentidos: o

sujeito do suposto saber. O apagamento voluntário impõe controle sobre a

escrita, o que conflitua com a natureza do significante em Saussure.

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O ensaio de Foucault produz avanços em relação à discussão da autoria

quando estabelece a crítica da autoria em relação à questão da

responsabilidade; quando redimensiona a questão da autoria partindo de um

certo funcionamento da escrita; quando possibilita o questionamento da

identidade do sujeito que escreve, dispersando-o pelo texto. Suas pontuações

abalam o imaginário do que seja um autor, que vai se constituir enquanto tal

num só depois.

A ancoragem de suas discussões em um sistema da língua permitiria

uma discussão da autoria a partir do estabelecimento de novas relações entre

língua e pensamento. É preciso diferenciar esse significante de que Foucault

fala, cuja forma encontra-se destacada do conteúdo. O significante em

Saussure não coincide consigo mesmo, tampouco com o significado. É efeito

de diferença. A questão de Foucault volta-se para a significação, para a

produção de sentidos. Assim, a alienação ao ideológico implica alienação ao

significado e não ao significante.

A consideração de uma escrita liberta de sua expressão de interioridade

promove uma referência da escrita a si própria como um jogo ordenado de

signos num espaço aberto onde o sujeito apaga os caracteres de sua

individualidade, identificando-a com sua exterioridade, em relação a outros

signos ou discursos.

A proposta com a discussão da autoria é atacar a questão do sujeito

fundador, a quimera da origem a partir de dois grandes pilares: autor e obra.

No entanto, a escrita permanece presa aos caracteres do autor, como se

fossem inseparáveis e referidos um ao outro. É possível controle e delimitação

do discurso. O sujeito não se coloca em relação de dependência com o

sistema. A ruptura estabelecida por Saussure entre sujeito e língua não se

apresenta aqui contemplada.

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