pontifícia universidade católica de são paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de...

136
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Tenório Nunes Telles de Menezes O sagrado na lírica de Murilo Mendes Mestrado em Literatura e Crítica Literária São Paulo 2018

Upload: others

Post on 07-Nov-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Tenório Nunes Telles de Menezes

O sagrado na lírica de Murilo Mendes

Mestrado em Literatura e Crítica Literária

São Paulo

2018

Page 2: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

Tenório Nunes Telles de Menezes

O sagrado na lírica de Murilo Mendes

Mestrado em Literatura e Crítica Literária Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira.

SÃO PAULO

2018

Page 3: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

Banca Examinadora

...........................................................................

...........................................................................

...........................................................................

Page 4: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

Agradeço, em especial, à Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino

Superior (CAPES), pela concessão da

bolsa de estudos Mestrado, sob o nº.

88887.177.915/2018-00.

Page 5: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

AGRADECIMENTOS

Ninguém é só no mundo. Por isso, sou todos os que chegaram ao meu porto, com

suas ofertas. Sobretudo, os que trouxeram vida, água, o encanto da poesia e o pão

do saber, e me ajudaram a saciar a fome de ser no mundo.

À minha mãe, dona Maria Celina por ter segurado a minha mão e me

ajudado a chegar até aqui. Também ao filho Aristides.

Àquela que me guiou nesta travessia do Mestrado, com suas orientações

seguras: Professora Maria Aparecida Junqueira.

Aos professores da Banca de Qualificação – pelas considerações que

enriqueceram o trabalho e contribuíram para sua realização: Maria Rosa Duarte

de Oliveira, João de Jesus Paes Loureiro.

Nesse navegar, cheguei às Perdizes, na PUC – onde fui recebido com

respeito e atenção pelas professoras Diana Navas, Maria Rosa Duarte de

Oliveira, Annita Costa Malufe, Elizabeth Cardoso, Beth Brait e minha orientadora

Maria Aparecida Junqueira, que me ensinaram novas artes de navegar.

Ao Programa de Literatura e Crítica por ser um espaço de compromisso

com o conhecimento, tolerância e aprendizagem. Ana Albertina, pela atenção e

boa vontade em ajudar.

Ao avô Francisco Telles de Menezes, de quem fui guia de cego e herdei o

sobrenome. E ao João Bosco Botelho, por ter me instigado a deixar o porto.

Aos mestres dos primeiros tempos de viagem e que me ensinaram

importantes lições de navegação. Professoras/professores: Teresa Koba,

Gerdião, Cristiano, Bernadete, Socorro Batista, Valadares, Marcos Frederico

Krüger, Artemis Veiga, Carlos Eduardo, Odenildo Sena, Neide Gondim, Valente,

Hidelvídia, Giralcina, Ribamar Bessa, Gabriel Albuquerque, Antonio Paulo Graça.

Aos amigos, pelo incentivo: Victor Gondim, Otávio Gomes, Ovídio Gomes,

Carlos Lima, Lauro Tavares, Célio Cruz, Carlos Cardoso, Luis Cláudio Chaves,

Sílvia Laureana, Heldemar Ferreira, Neiza Teixeira, Heitor Costa. Ademir de

Godoy Bueno – parceiro de navegação.

Thiago de Mello, Luiz Bacellar, Márcio Souza, Aldisio Filgueiras, Saturnino

Valladares. Margarida Campos, pela presença e cuidado.

Dori Carvalho e Isaac Maciel – que me ensinaram a força dos livros.

Para Dâmea, que me acompanhou nos momentos difíceis da travessia.

Sou essa viagem e esse mar, com seus portos e seus viajantes. Cumprido o

propósito – uma palavra: Gratidão. E lembrar Murilo Mendes, “Grafito na lápide duma

menina romana”, que esteve do meu lado nesta busca, guiando-me com seu canto:

“Borboleta que larga seu casulo. / Concluí o sonho. Comecei a vida”.

Page 6: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

As palavras que encarnam uma perfeição inimaginável para o

homem – “Deus”, “verdade”, “justiça” –, se pronunciadas

internamente com vontade... têm o poder de elevar a alma e

inundá-la de luz.

Simone Weil – Pela supressão dos partidos políticos

Page 7: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

MENEZES, Tenório Nunes Telles de. O sagrado na Lírica de Murilo Mendes.

Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e

Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2018,

136 p.

RESUMO

A presente pesquisa tem como foco o estudo e a análise da produção poética de

Murilo Mendes, referenciada na presença do sagrado como fundamento de sua

poesia. Busca-se compreender essa interlocução entre o divino e o humano como

uma experiência imanente, marcada por um processo constante de tensão que se

harmoniza no poético. O objeto desta reflexão são as obras produzidas no recorte

temporal compreendido entre os anos de 1935 a 1945, definidoras e evocativas

de seu discurso lírico. Esse conjunto de livros apresenta os fundamentos e as

vertentes que marcaram seu percurso poético – enunciadores das mudanças e do

amadurecimento do seu processo criativo que culminou em Convergência. O

corpus da investigação compreende os livros representativos do recorte temporal

definido: – Tempo e eternidade (1935); – O sinal de Deus (1936); – A poesia em

pânico (1937); – O visionário (1941); – As metamorfoses (1944); – Mundo enigma

(1945); – O discípulo de Emaús (1945) e Convergência (1970), pelo seu

significado no conjunto da lírica muriliana. Pretende-se apreender as formas de

expressão do sagrado na criação poética de Murilo Mendes e como são

apropriadas e tecidas na elaboração de seu discurso, bem como os efeitos de

sentido que revestem sua linguagem. A pesquisa se fundamenta nos estudos

teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-

Georg Gadamer e Benedito Nunes, tendo como ponto de ancoragem a obra do

poeta alemão Hölderlin e a poesia de viés metafísico. Este estudo da poesia de

Murilo Mendes é pautado em bibliografia e no método analítico interpretativo.

Palavras-chave: Murilo Mendes; Poesia modernista; Essencialismo; Lírica e

transcendência; Sagrado.

Page 8: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

MENEZES, Tenório Nunes Telles de. The sacred in the lyric of Murilo Mendes.

Master’s degree thesis. Program of Graduate Studies in Literature and Literary

Theory. Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo State, Brazil, 2018,

136 pages.

ABSTRACT

The purpose of the present research is to analyze the poetic production by Murilo

Mendes referenced in the presence of the Sacred as the basis of his poetry. It

seeks to understand that interlocution between divine and human as an immanent

experience, marked by a constant process of tense that tones with the poetic. The

subject of this reflection are the works produced by him in the temporal cut

between 1935 and 1945, defining and evocative of his lyrical discourse. This set of

textbooks presents the foundations and aspects that have marked his poetic

speech – enunciating changes and maturity of his creative process which

culminated in Convergência. The corpus of the investigation comprises the books

representative of the defined temporal cut: – Tempo e eternidade (1935); – O sinal

de Deus (1936); – A poesia em pânico (1937); – O visionário (1941); – As

metamorfoses (1944); – Mundo enigma (1945); – O discípulo de Emaús (1945)

and Convergência (1970), for its significance in the whole Murilian lyric poetry. It is

intended to apprehend the forms of how the sacred is expressed in the poetic

creation of Murilo Mendes and how they are appropriated and woven in the

elaboration of his discourse, as well as the effects of meaning that lodge his

language. The research is based on theoretical studies of interpretation

hermeneutic of the philosophers Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer and

Benedito Nunes, having as an anchorage the work of the German poet Hölderlin

and the poetry of metaphysical bias. This study of Murilo Mende's poetry is based

on bibliography on the broached theme and on the interpretative analytical

method.

Keywords: Murilo Mendes; Modernist poetry; Essentialism; Lyric poetry and

transcendence; Sacred.

Page 9: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

Sumário

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

CAPÍTULO I – A poesia e o sagrado ..................................................................... 21

1.1. A poesia, transcendência e a transfiguração da palavra .............................. 22

1.1.1. A criação poética como evocação tensiva do mundo ............................ 23

1.1.2. O diálogo entre Nietzsche e Murilo Mendes – o apolíneo e o

dionisíaco.................................................................................................... 27

1.2. A poesia como modo de ser e compreender o mundo ................................. 30

1.2.1. O sagrado na poesia – o divino como compreensão da existência ....... 32

1.2.2. O poético em Murilo Mendes e a tradição lírica espiritualista ................. 36

1.3. As origens da lírica e os cantos celebrativos sumerianos ............................ 40

1.3.1 A lírica grega e a precedência sumeriana ............................................... 42

1.4. Murilo Mendes e a palavra como evocação do ser ........................................ 44

1.5. A hermenêutica e o poético – compreensão e escuta do texto .................... 48

1.5.1. Um exercício de escuta e interpretação do texto poético ...................... 53

CAPÍTULO II – A presença do sagrado na poesia de Murilo Mendes ............... 63

2.1. “O reino de Deus está em nós” ..................................................................... 64

2.2. O sagrado na tradição lírica brasileira .......................................................... 67 2.3. O essencialismo como caminho para a transcendência ............................... 69

2.4. Linguagem, forma poética e o sagrado ......................................................... 73

2.4.1. O salmo bíblico e a lírica muriliana ........................................................ 80

2.4.2. Os hinos de louvor na tradição lírica ...................................................... 82

2.5. Despertar e conversão em Murilo Mendes ................................................... 86

2.5.1. A morte de Ismael Nery e a conversão de Murilo Mendes .................... 89

2.6. Itinerário de uma busca ou as estações de uma vida ................................... 93

2.6.1. Virada estética na poética de Murilo Mendes ........................................ 100

Page 10: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 107

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 113

ANEXO: POEMAS – MURILO MENDES & OUTROS TEXTOS ............................ 121

Page 11: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

11

INTRODUÇÃO

Céu e terra se tocaram Com grande aplauso do fogo, Ondas bravas se abraçavam No início do nosso idílio.

Murilo Mendes – “Tu”, As metamorfoses

Por acreditar que a poesia pode ser um caminho para a compreensão do

mundo e uma forma de autodescoberta e desvelamento de um sentido para o

existir – especialmente se considerarmos a perda do sentido do sagrado e o

esvaziamento do significado social e humano do tempo em que vivemos –, a obra

poética de Murilo Mendes se apresenta como um esforço no sentido de

estabelecer nexos menos superficiais e mais intensos entre o homem, sua

espiritualidade e a existência. O autor dedicou sua vida e seu trabalho criativo ao

propósito de elaborar poética e teoricamente possibilidades de compreensão e

ação em face da realidade.

Murilo Mendes, desde os primeiros passos da sua iniciação literária,

manifestou preocupações com o processo de construção do texto poético, bem

como seu comprometimento com a condição humana em meio aos limites e

injustiças sociais. Na “Nota liminar”, que abre sua Antologia poética (MENDES,

1964, p. 8), publicada em Portugal, em 1964, assinala esses aspectos marcantes

de sua percepção como artista e cidadão:

Quanto a esta antologia, penso ser lícito indicar que é o livro-resumo de alguém que desde adolescente crê na força da poesia como técnica social e individual de interpretação da rude matéria da vida; que, visto crer outrossim na convivência entre os homens, na metamorfose contínua das coisas, na possibilidade de se edificar um mundo mais civilizado, onde as ideias de paz e de justiça se respirem como um canto, um ritmo, condena o processo de desumanização extrema da arte, o qual se desenrola em nossos dias.

Considerando o momento histórico que atravessa a humanidade, marcado

por conflitos, intolerância e precarização do saber e da cultura, a fala do poeta

conserva a atualidade. Dois aspectos se destacam no posicionamento de

Mendes: o primeiro, a crença manifestada “na força da poesia como técnica social

e individual de interpretação da rude matéria da vida”. Para o poeta, o criador não

Page 12: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

12

é um mero observador ou imitador dos fatos sociais, mas um intérprete

interessado em ajudar, por meio de sua intuição e sensibilidade poética, bem

como de sua inventividade, no processo de compreensão “da vida”. Essa

perspectiva o aproxima das teses do pensamento hermenêutico. O filósofo Hans-

George Gadamer (2008, p. 572) manifestou ponto de vista semelhante ao refletir

sobre o caráter expressivo da palavra e seus nexos com o existente: “Não só o

mundo é mundo apenas quando vem à linguagem, como a própria linguagem só

tem sua verdadeira existência no fato de que representa o mundo”.

O segundo aspecto diz respeito ao componente ético que fundamenta a

interlocução de Murilo Mendes com o real e permeia o seu discurso poético.

Comprometido com a mudança social e com a liberdade, posiciona-se a favor da

“possibilidade de se edificar um mundo mais civilizado, onde as ideias de paz e de

justiça se respirem como um canto”. Esses elementos são delineadores de sua

práxis estético-política.

Observando-se o contexto em que o poeta elaborou sua obra – situado no

recorte temporal que vai da segunda década do século passado a 1975, quando

faleceu –, dominado pelos grandes discursos de cunho racionalista e ideológico, a

opção de Mendes por um ponto de vista fundado no diálogo entre o divino e o

humano, mediado pelo poético, foi um ato de ousadia. O escritor (MENDES,

2014a, p. 255) considerava o fenômeno poético como um caminho possível de

compreensão da condição do ser humano e suas relações com as contingências

da realidade sócio-histórica: “Desde muitos anos insisto em que a poesia é uma

chave do conhecimento, como a ciência, a arte ou a religião; sendo portanto óbvio

que lhe atribuo um significado muito superior ao de simples confidência ou de

jogo literário”.

A lírica muriliana se configura na interface do transcendente com o

imanente, expressa na convergência poética entre o divino e o humano,

entendidos como forças em estado de permanente tensionamento. A

espiritualidade é um tema fundamental da cultura e acompanha o percurso da

própria civilização, contribuindo no processo de compreensão de nosso estar no

mundo e de fundamento para o ser humano na sua busca de auto-entendimento e

de construção de sentidos para o seu existir.

Page 13: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

13

A percepção religiosa da realidade e do fenômeno humano é parte da

constituição subjetiva do homem e teve historicamente profunda influência sobre

as manifestações artísticas, particularmente sobre a poesia. A reflexão proposta,

a partir da temática desta dissertação, funda-se no propósito de identificar e

discutir no discurso de Murilo Mendes esses pressupostos, manifestos na sua

convicção de que a poesia, como expressão artística milenar, é uma forma de

entendimento e “uma chave do conhecimento do universo” (MENDES, 1996b, p.

260). O crítico José Guilherme Merquior (2013, p. 229), no livro Razão do poema,

refere-se a essa questão ao afirmar que

Se há um ponto em que decididamente concordam as mais opostas teorias estéticas de hoje (por exemplo, a estética de Heidegger com a de Lukács) é na aceitação comum da arte como forma de conhecimento. Seja uma revelação de caráter metafísico ou uma interpretação da história concreta, em ambas as posições a arte se considera como capaz de nos oferecer uma imagem do ser, cumprindo uma função de conhecimento da realidade.

O sagrado, portanto, é um referencial importante da cultura e das artes, e

pressupõe um modo de ser, de sentir e de representar a realidade. É uma forma

de compreensão perene, como esclarece/declara Mendes (1994, p. 890) ao

justificar sua opção pelo cristianismo: “Meu espírito jamais poderia aderir a uma

verdade provisória ou parcial, a um sistema dependente das flutuações de uma

época”.

Mendes, entretanto, considerava a criação poética como um diálogo

interlocutório entre o religioso e a vida e suas circunstâncias. Sob essa

perspectiva, o poeta elaborou sua fala incorporando temas e formas de expressão

da tradição lírica de viés espiritualista, com forte teor metafísico, o que o aproxima

dessa tradição que tem como destaque poetas como John Donne, William Blake,

Hölderlin, entre outros. Nesse sentido, vale destacar que a religiosidade de

confissão cristã será um elemento definidor e recorrente de seu discurso literário.

Esse aspecto conecta Murilo Mendes a uma linhagem antiga da poesia

brasileira, que surge com os poemas doutrinários de José de Anchieta,

especialmente os dedicados a Nossa Senhora, nos primórdios da colonização do

país, passando por Antônio Vieira e Gregório de Mato, no Barroco, Junqueira

Freire no Romantismo, culminando no Simbolismo, com a poesia expressiva de

Page 14: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

14

Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. No contexto do Modernismo, a

segunda geração, da qual fazem parte Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius

de Moraes e o próprio poeta, dará continuidade a essa vertente da lírica nacional

identificada com o tema da espiritualidade e comprometida com um discurso

poético reflexivo sobre a condição do ser humano num tempo dilacerado pela

guerra e dominado pelo materialismo.

A problematização desses fatores de natureza estético-filosófica desdobra-

se no estudo da poesia de Murilo Mendes com objetivos definidos visando

compreender o nexo que a liga à tradição espiritualista e, ao mesmo tempo,

refletir sobre como esses fatores se transfiguram na tessitura da linguagem de

seu canto e como se elaboram no plano da expressão. O reverso desse debate

se sustenta no reconhecimento do fenômeno religioso como uma experiência

social e humana. O poeta não a concebe, entretanto, como algo além-mundo,

mas parte de sua existencialidade.

A obra poética de Mendes evidencia as hipóteses formuladas e corrobora

os pontos de vista que sustentam a arquitetura de sua construção poética,

fundada na imanência de sua crença religiosa, seu vínculo com a tradição da

poesia espiritualista e, sobretudo, seu entendimento do poético como diálogo e

ponte para uma possível reconciliação do ser humano com o sentido primordial da

vida.

O exame das obras que compõem o recorte da produção poética de Murilo

Mendes, objeto deste estudo, compreende os livros publicados entre os anos de

1935 a 1945. Essa reunião de textos apresenta os pressupostos e caminhos que

definiram seu percurso poético, marcado por mudanças e amadurecimento de seu

processo criativo, que culminou em Convergência (1970), apontado pelos

estudiosos de sua poesia como seu livro mais expressivo pelo apuro na

construção dos poemas e acuidade no tratamento dos temas. O corpus da

investigação engloba Tempo e eternidade (1935), O sinal de Deus (1936), A

poesia em pânico (1937), O visionário (1941), As metamorfoses (1944), Mundo

enigma (1945), O discípulo de Emaús (1945) e Convergência, em diálogo com

outros escritos do autor. A análise incidirá sobre poemas que exprimem e se

Page 15: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

15

relacionam com os objetivos e hipóteses firmados nesta investigação e

selecionados dos livros referidos.

Esse conjunto de títulos de Murilo Mendes, que constituem o repertório

desta pesquisa, enunciam sua inquietude, seus questionamentos e buscas num

contexto histórico conturbado, de polarização político-ideológica entre os

defensores do liberalismo e do comunismo, no transcurso das décadas de 30 e 40

do século passado, e a afirmação do racionalismo e materialismo histórico como

construções hegemônicas de compreensão da realidade.

É nesse cenário que o sujeito lírico prefigura sua crença na transcendência,

suas dúvidas, seus temores e a via-crúcis de seu próprio percurso existencial,

manifestos nos títulos dos livros: Tempo e eternidade – concebido como uma

declaração poética e uma afirmação de seu compromisso de fazer uma poesia

identificada com a mensagem de Cristo; O sinal de Deus – experiência epifânica

de reconhecimento do divino como caminho possível para conceder aos seres

humanos um sentido novo para a existência; A poesia em pânico – em que

evidencia a situação de instabilidade da humanidade sob a ameaça de uma nova

guerra mundial e seus influxos sobre a sensibilidade do sujeito poético em estado

de pânico; O visionário – o eu lírico inquieto diante do caos gerado pela

precariedade do humano, “A alma insatisfeita” (MENDES, 1994, p. 231); As

metamorfoses – sob o impacto da guerra, com o mundo arruinado pela crueldade

das armas de destruição em massa e pela barbárie das ideologias em conflito, o

ser do poeta vive transformações profundas que se refletem na sua maneira de

ver, plasmada pela compaixão e certo arrefecimento de suas certezas religiosas e

de seu messianismo. Mundo enigma e O discípulo de Emaús, lançados em 1945,

expressam uma mudança no olhar do poeta, marcada pelo tom de

questionamento de seus valores e crenças e uma virada na sua percepção

estética, que, segundo Haroldo de Campos (2017, p. 68), “pode ser tomado como

uma pedra-de-toque da marcha de Murilo empós da crescente substantivação de

sua poesia”. Esse processo se desdobra no tempo e vai eclodir em Convergência,

obra emblemática de sua lírica.

Nos últimos trinta anos a fortuna crítica de Murilo Mendes só tem crescido.

O acervo sobre a sua produção literária, envolvendo sua poesia, a prosa, as

Page 16: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

16

correspondências, os artigos de jornais, seus textos críticos sobre artes e música,

reflexões culturais, é crescente e compreende dezenas de dissertações e teses

em diversas universidades brasileiras e estrangeiras. Mendes foi professor na

Itália e publicou ensaios, resenhas e poemas em italiano, gozando de

reconhecimento literário na Europa, sendo distinguido, em 1972, com o XI Premio

Internazionale di Poesia Etna-Taormina.

O referencial teórico desta pesquisa contempla um conjunto de estudos e

críticos que se tornaram incontornáveis na apreciação e análise da obra poética

de Murilo Mendes. Nesse sentido, a construção deste trabalho se realizou num

processo de interlocução com as reflexões de Laís Corrêa de Araújo, enfeixadas

no seu livro Murilo Mendes – ensaio crítico, antologia, correspondência (2000);

Haroldo de Campos, com o seu já célebre ensaio “Murilo e o mundo substantivo”

(Metalinguagem & outras metas – ensaios de teoria e crítica literária, 2017); João

Alexandre Barbosa, “Convergência poética de Murilo Mendes” (A metáfora crítica,

1974), uma das mais ricas reflexões sobre a lírica muriliana; José Guilherme

Merquior, grande leitor da poesia do autor mineiro, com análises reveladoras: “À

beira do antiuniverso debruçado ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes”

(Antologia poética, 1976) e “Murilo Mendes ou a poética do visionário” (Razão do

poema, 2013); Antonio Candido, com seu ensaio esclarecedor sobre o recorte

surrealista da poética de Mendes: “Pastor pianista/pianista pastor” (Na sala de

aula, 1986); Murilo Marcondes de Moura: “Os jasmins da palavra jamais” (Leitura

de poesia, 2001); Sebastião Uchoa Leite, com seu ensaio esclarecedor “A meta

múltipla de Murilo Mendes” (Crítica de ouvido, 2003); Ruggero Jacobbi, estudioso

e tradutor italiano da poesia do autor de O discípulo de Emaús: “Murilo Mendes e

o pão subversivo da paz” (Convergência, 2014); Edson Munck Junior, com sua

reflexão enriquecedora sobre o apolíneo e o dionisíaco na lírica muriliana: “A

heterodoxia muriliana na dança com o sagrado” (2012).

Alguns livros foram significativos para a permanência da poesia de Murilo

Mendes e, ao mesmo tempo, contribuíram para divulgá-la e incentivar novas

pesquisas: Presença da literatura brasileira – histórica e crítica, sobre o

modernismo brasileiro, de Antonio Candido e José Aderaldo Castelo (1997);

Murilo Mendes, de Júlio Castañon Guimarães (1986); Murilo Mendes – a poesia

Page 17: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

17

como totalidade, importante pesquisa acadêmica de Murilo Marcondes de Moura

(1995); A literatura brasileira – origens e unidade, do professor José Aderaldo

Castelo (1999); História da literatura brasileira, da professora italiana e

divulgadora na literatura nacional na Europa Luciana Stegagno-Picchio (2004); e

História concisa da literatura brasileira, do professor e ensaísta Alfredo Bosi

(2006).

A pesquisa foi elaborada a partir da análise interpretativa dos poemas

selecionados de Murilo Mendes com base no método analítico interpretativo,

referenciado na compreensão hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger,

Hans-Georg Gadamer e Benedito Nunes, observando-se o diálogo que

empreendem nas suas reflexões com a poesia. Essa interlocução incorporou

como ancoragem e comunicação com a tradição lírica espiritualista a obra do

poeta alemão Hölderlin.

Nesse sentido foram inspiradoras e exemplificativas desse método de

abordagem do fenômeno poético, as obras: Ser e tempo, Ensaios e conferências,

de Martin Heidegger, em especial o texto “...poeticamente o homem habita...” –

em que discute o poema “No azul sereno floresce...”, de Hölderlin; acrescendo-se

Explicações da poesia de Hölderlin, composto de diversos estudos sobre a lírica

do poeta, com destaque para o ensaio “Hölderlin e a essência da poesia”.

O livro Hermenêutica e poesia: o pensamento poético, do filósofo e

ensaísta Benedito Nunes, é um guia esclarecedor para o exame da poesia e seus

fundamentos filosóficos. São vários ensaios em que aborda questões relativas à

interpretação do escrito poético sob a perspectiva do método hermenêutico. O

ponto de vista de Nunes é de que a interlocução da Filosofia com a poesia é

enriquecedora e, ao mesmo tempo, iluminadora no embate do leitor ou do

intérprete com o poema.

Responsável pelo estabelecimento e fundamentação da hermenêutica

filosófica, como método de compreensão do texto, Gadamer discute e formaliza

seus pressupostos teóricos em duas obras que podem ser de grande utilidade

para os estudiosos da literatura: Verdade e método I – traços fundamentais de

uma hermenêutica filosófica, sua obra mais significativa, e Hermenêutica da obra

Page 18: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

18

de arte, reunião de ensaios em que exemplifica sua metodologia de interpretação.

Para o filósofo (2010, p. 484), a “Hermenêutica não designa tanto um

procedimento, mas antes o comportamento do homem que quer compreender um

outro ou que quer compreender como ouvinte ou leitor uma exteriorização

linguística”.

Estruturado segundo seus objetivos e hipóteses em relação ao tema

abordado sobre a poesia de Murilo Mendes, seus parâmetros teóricos e método

interpretativo, o trabalho foi dividido em dois capítulos: o primeiro, intitulado “A

poesia e o sagrado”, é uma apresentação sobre como esse assunto tem sido

evocado ao longo do tempo por poetas e estudiosos. O sagrado não é, como

comumente se pensa, um assunto de interesse das religiões. O sagrado é uma

dimensão da existência e uma forma possível de compreensão do mundo e do

humano. Isso ajuda a compreender a presença de uma importante linhagem

poética que dialoga com o divino, manifesta na criação de inúmeros poetas desde

os tempos mais remotos, na Suméria, consolidando-se a partir da lírica grega e

desdobrando-se até o presente. Murilo Mendes faz parte dessa tradição. O

capítulo se encerra com um breve relato sobre o método hermenêutico e sua

relação com a poesia como caminho para uma interlocução e compreensão do

discurso lírico.

Denominado “A presença do sagrado na poesia de Murilo Mendes”, o

segundo capítulo versa sobre os elementos que enformam a linguagem e a

concepção do autor sobre a poesia, bem como sua percepção do divino e seus

vínculos com seu universo vivencial. Esse segmento do estudo propõe-se a

refletir sobre aspectos do discurso poético de Mendes: as tensões pulsantes na

relação do humano com divino, do onírico com a razão, do apolíneo com o

dionisíaco, do ser humano com o mundo, capturadas nas malhas de sua tessitura

poética.

Discute-se igualmente os vínculos da poética de Mendes com a tradição

lírica espiritualista, a influência do essencialismo sobre sua produção, sua

conversão ao catolicismo e como esses fatos se desdobram na sua vida criativa.

A partir do exame de um conjunto de textos, conclui-se o capítulo com um breve

registro de seu itinerário poético, em que esse percurso é estabelecido por meio

Page 19: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

19

da indicação dos próprios poemas. Exemplo da presença desse traço biográfico

na poesia de Murilo Mendes (2014b, p. 22) é o “Grafito no pão de açúcar”, de

Convergência, em que rememora passagens, cenários e fatos de sua trajetória

poético-existencial:

No cume desta colina Nove bilhões de anos Contemplam-nos. Neste Rio descobri O Brasil / cruz e delícia Saudade minha amada. Neste Rio ásperofísico Nomeei-me poeta. Aqui conversei Ismael Nery Mestre / malungo máximo Entre canto gregoriano e jazz. (...)

Trata-se de um poema enunciativo em que o eu lírico recompõe

poeticamente acontecimentos que definiram-lhe o ser e foram determinantes no

seu percurso como artista e sujeito. O texto se estrutura como uma interlocução

entre esse eu que se anuncia e a memória fundadora de seu próprio existir.

A obra poética de Murilo Mendes propõe um debate importante em nossos

dias sobre o significado do sagrado e da própria poesia como um modo de ser e

compreender o real. A lírica muriliana pode ser interpretada como um

chamamento a um esforço de abertura e diálogo capaz de congeminar o ser

humano à sua dimensão sacra, por meio, como assinala o papa Bento XVI, em

debate com o filósofo Jürgen Habermas, da “correlacionalidade entre razão e fé,

entre razão e religião” (HABERMAS/RATZINGER, 2007, p. 89).

Por seu profundo conteúdo de humanidade, sua inventividade e

componente ético-estético, a poesia de Murilo Mendes, como experiência

mediadora da tensão entre a linguagem e a realidade, consubstancia-se como

uma reflexão, uma resposta e um caminho possíveis para a concepção de uma

maneira ser conectada à vida, inspiradora e capaz de ajudar o homem na sua

reconciliação e recuperação do sentido primordial de sua existência. Mendes

Page 20: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

20

(1964, p. 8), acreditava “na força da poesia como técnica social e individual de

interpretação da rude matéria da vida”.

O poeta acreditava numa espiritualidade a ser vivida como uma promessa

real, humana, imanente – capaz de ajudar a humanidade no anseio de construção

de um mundo de paz e acolhedor da diversidade – fundado na palavra que, sendo

“adâmica: / Nomeia o homem / Que nomeia a palavra” e, como verbo vivificado

pelos impulsos criativos, capaz de nos ajudar no nosso renascimento, como

registra Murilo Mendes (2014b, p. 213) em Convergência: “A palavra nasce-me /

fere-me / mata-me / coisa-me / ressuscita-me”.

Page 21: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

21

CAPÍTULO I – A poesia e o sagrado

Através dos séculos o poeta é encarregado, não só de revelar aos outros, mas de viver praticamente no seu espírito e no seu sangue, a vocação trans- cendente do homem.

Murilo Mendes, O discípulo de Emaús

Se é verdade que o pensamento se elabora e enforma nas nervuras da

realidade, que toda reflexão e criação se consubstanciam como interlocução do

sujeito pensante com o seu tempo e seu espaço de vivências, então, a poesia,

como construção singular de linguagem, é um discurso possível sobre a vida em

seu devir permanente – em que o criador busca apreender nas malhas de seu

canto a tensão e as experiências decorrentes do embate para compreender e

significar sua presença no mundo. Esse existir precário e paradoxal é expressivo

da condição do ser humano e de sua relação conflituosa com a existência e com

o seu próprio ser.

Essa percepção nos remete à compreensão de que a palavra é um registro

e uma evocação das vivências dos indivíduos. Desse modo, a linguagem, para

além de seus atributos gramaticais e estéticos, pode se configurar como um

testemunho, o que a torna portadora de uma história. Essa imbricação, entre a

concretude das coisas e sua manifestação linguística, permeia o processo da

comunicação, inclusive aquela que tem na expressão literária sua razão de ser.

Murilo Mendes (1994, p. 830), em O discípulo de Emaús, publicado em 1945,

retrata essa questão de forma sugestiva: “A poesia é a realidade; a imaginação,

seu vestíbulo”. A criação poética, segundo o ponto de vista do poeta, é uma

experiência profundamente humana, resultante de um processo em que se

mesclam e matizam opostos como o real e o imaginário, o transcendente e o

imanente, o lógico e o onírico.

A poesia é um dizer sobre o existente e nasceu do anseio humano de

expressar a si mesmo. O dizer da poesia, entretanto, não é uma fala comum, que

se basta na sua superficialidade. A criação poética é um processo de

Page 22: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

22

carnalização de sentimentos, memórias e vivências. Por isso, podemos

considerar que é a própria vida.

Essa potência – manifesta na possibilidade da palavra de traduzir o existir

humano e sua relação com a realidade e o transcendente, transfigurando-a em

imagens, sons, beleza e compreensão –, corporifica o fenômeno poético como

uma vivência profundamente humana e enunciadora de seus vínculos com a

existência. A poesia, a experiência de ser no mundo e a linguagem são aspectos

que fundamentam mais que nossa condição existencial – constituem nossa

humanidade. Os poetas são os guardiães e anunciadores desses valores que nos

mantêm vivos e dignificam a vida.

1.1. Poesia, transcendência e a transfiguração da palavra

O artista da palavra, valendo-se da linguagem e do anseio de evocar a face

do irrevelado e o sentido da existência, compromete-se com uma tarefa

prometeica: chegar ao ser das coisas e ao coração da vida. Embora seja um

intento inalcançável, ao fazê-lo suscita poeticamente vozes e verdades

silenciadas sob a superfície estilhaçada de seu modus vivendi. O sagrado é uma

dessas manifestações que ressurge do silêncio, de seu soterramento, pelo

trabalho de alquimia da linguagem que engendra o poeta ao tecer seu canto. É no

poema que esse dizer genuíno se manifesta e anuncia. O sagrado é parte dessa

dimensão que nos ultrapassa e nos ajuda na busca de redenção.

Essa percepção do divino como parte constitutiva da condição humana

está na origem da própria poesia. Os primeiros registros poéticos, nos momentos

iniciais da civilização, evidenciam essa relação. Na passagem do século VII para

o VI a.C., Safo (2017, p. 118) evocou, num de seus fragmentos, esse componente

sacro da criação poética: “venha lira divina e fale-me / pois só quero te dar à voz”.

A autora grega pede inspiração para conceber seu canto. Como porta-voz

de um atributo sagrado, cabe-lhe “dar à voz” o que a “lira divina” lhe revelará. O

eu lírico assume uma posição de passividade, de alguém que recebe a

Page 23: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

23

mensagem a ser transmitida, que a deseja, “quero”, por compreendê-la como

originária dos deuses. De onde viria esse sopro inspirador? Segundo a tradição

grega, foram as musas que legaram à humanidade a faculdade da criação

poética, concebida originalmente como uma emanação deífica.

Esse impulso que tudo move e que entranha a vida estaria na origem do

existir de todas as coisas: nas plantas, nos bichos, no movimento das águas, na

geração de todos os seres. Essa força absoluta e inapreensível está no ser

humano no que tem de mais profundo, singular e impessoal. Para a filósofa

Simone Weil (2016, p. 53), o divino é uma dimensão do humano: “Existe em cada

homem algo sagrado. Mas não é sua pessoa. Tampouco é a pessoa humana. É

ele, esse homem, pura e simplesmente”. O poético identifica-se com esse

fundamento vívido e pulsante que plasma o existente e pela palavra se revela.

1.1.1. A criação poética como evocação tensiva do mundo

O discípulo de Emaús é uma obra emblemática na produção literária de

Murilo Mendes. Além de ser um momento de redefinição de caminho na sua

trajetória poética, em que declara sua passagem “do mundo adjetivo para o

mundo substantivo” (MENDES, 1994, p. 851), é também um texto em que reflete

sobre os temas recorrentes em sua obra, sobressaindo-se: a fé, a arte, o ser

humano, a eternidade, o tempo, Cristo, a cultura e a poesia. A leitura de alguns

aforismos do livro evidencia a afirmação de um ponto de vista fundado sobre três

aspectos fundamentais: ênfase nos processos formais de construção do texto

poético, reconhecimento do caráter paradoxal da existência e seu empenho em

conciliar os opostos, e a reafirmação da religiosidade como uma experiência

imanente.

A tensão e a atitude questionadora diante da vida são traços definidores da

lírica e do modo de ser de Mendes face à complexidade das coisas. Essa

irresignação é explícita no processo de elaboração de seu discurso poético e no

seu posicionamento ético e político. Sua produção literária resulta desse diálogo

com os paradoxos que determinam sua percepção e a condição humana. Esses

Page 24: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

24

opostos são enfrentados, segundo os valores estéticos e religiosos do poeta, e

conciliados por meio do trabalho de transmutação da linguagem, como deixa

evidente no testemunho estético-filosófico “A poesia e o nosso tempo”, publicado

em 1959, no Jornal do Brasil:

Preocupei-me com a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, pelo que dispus muitas vezes o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da ideia e do objeto díspares, do raro e do cotidiano etc. (MENDES, 2014a, p. 251).

Murilo Mendes reiterou, ao longo do tempo, por meio de entrevistas,

correspondências, prólogos e poemas esse posicionamento artístico-existencial,

expresso no seu espírito inovador e atitude questionadora diante dos padrões

culturais estabelecidos. Numa das cartas recolhidas pela professora Laís Corrêa

de Araújo (2000, p. 171), datada de 9 de janeiro de 1969, o poeta refere-se a esse

fato como um elemento inerente à sua personalidade: “Eu tenho sido toda a vida

um franco-atirador. Procuro obedecer a uma espécie de lógica interna, de unidade

apesar dos contrastes, dilacerações e mudanças”. Esse posicionamento se

manteve até Convergência, seu último livro de poesia, de 1970, e considerado por

muitos estudiosos como obra-síntese de sua produção poética.

Esses marcos definidores da lírica muriliana foram ampliados e

enriquecidos no seu processo de forjamento, mas, como ressalta o ensaísta Júlio

Castañon Guimarães (1986, p. 40), no ensaio biográfico Murilo Mendes, já

estavam prefigurados no seu livro de estreia, Poemas, publicado oito anos após a

Semana de Arte Moderna: “já estão também presentes a dimensão erótica e a

inquietação espiritual, com o embate entre concreto e abstrato. Muitas vezes na

poesia muriliana posterior, o erótico e o espiritual chegarão ao entrelaçamento

superando esse embate”.

O poético para Mendes é o espaço no qual os contrastes se articulam para

formar um novo objeto comunicativo, em que a unidade é construída pela

harmonia dos opostos. Na obra inaugural do poeta, um texto, aparentemente

deslocado do conjunto, destaca-se exatamente por ser uma expressão atomizada

do fundamento artístico e metafísico de sua poesia. O poema “Os dois lados”

(MENDES, 2014c, p. 29), como sugere o título, é construído a partir dessa

Page 25: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

25

perspectiva ambivalente que define o existir de todas as coisas e, ao mesmo

tempo, é enunciativo do que será sua poesia no arco temporal de sua produção

literária – de 1925 a 1975 –, quando falece. O texto enuncia essa voz e esse olhar

sobre o mundo que se insinua no cerne da lírica muriliana:

Deste lado tem meu corpo tem o sonho tem a minha namorada na janela tem as ruas gritando de luzes e movimentos tem meu amor tão lento tem o mundo batendo na minha memória tem o caminho pro trabalho. Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão, tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.

O poema identifica-se com o tom predominante na lírica do segundo

momento modernista, dominado por uma percepção reflexiva da condição

humana. O caráter existencial do texto o aproxima de Carlos Drummond de

Andrade, seu parceiro de geração. Em “Os dois lados”, Murilo Mendes

problematiza as vivências imediatas e as que ainda estão no terreno do devir.

Ambas, entretanto, imbricam-se com as contingências que definem o humano e

suas circunstâncias.

O eu poético, na primeira estrofe, volta-se para o imediato, para a vida

presentificada numa sequência de fatos que constitui-lhe o viver. O verso inicial –

“Deste lado tem meu corpo” – situa e indica o lugar do sujeito na trama de seu

existir, sugerida poeticamente: o “lado” a que se refere é o da concretude,

metaforizado pelo “corpo”. Sendo o corpo uma representação do que é palpável,

é possível concluir que se refere ao real, ao aspecto imanente e substantivo do

viver expresso no texto. A posição do sujeito é determinada pela locução

adverbial “Deste lado”, que pode ser compreendida como o presente.

Após elucidar o plano inicial da trama poética, o eu lírico enumera um

conjunto de acontecimentos que marca-lhe a vivência. Por meio do verbo ter, na

terceira pessoa do singular, alude às coisas que acontecem no espaço (“lado”)

vivencial do “corpo”. A enumeração segue uma sequência que remete às

aspirações e propósitos humanos em geral: o ser poeticamente retratado “tem” –

Page 26: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

26

“sonho”, “namorada”, “ruas”, “amor”, “mundo”, “caminho pro trabalho”. Nessa

enunciação é a própria vida que se concretiza, com seus anseios, afetos, dramas

e luta pela sobrevivência. Observe-se que o tempo verbal situa-se no presente.

A esfera da presentificação das coisas se conecta a uma outra margem,

que o ser poético apresenta como “outro lado”, com “outras vidas vivendo da

minha vida”. Nesse espaço outro que põe à luz, as vidas referidas estão à espera

de seu acontecer, mas ligam-se à que está em curso. Nessa esfera, os

acontecimentos estão sob o império da possibilidade. São vidas em estado de

potência. A segunda estrofe se inicia igualmente com a definição da posição

referida pelo sujeito lírico. Reitera o uso da locução adverbial para explicitar o

lugar das “outras vidas”, que se situam “Do outro lado”, para além do presente

vivido.

Se na primeira estrofe é explícito o caráter de imanência dos fatos

retratados poeticamente, na segunda é evidente a alusão a coisas que estão para

acontecer, são possibilidades, por isso o uso do verbo esperar no gerúndio. O

sujeito poético afirma que as “vidas” e suas representações o estão “esperando”.

Utiliza-se do verbo ter no início dos versos, igualmente na terceira pessoa do

singular do presente, para afirmar a existência das mesmas – “pensamentos”, a

“noiva definitiva”, também a “morte” – mas estão todos “esperando” o momento de

ser. O uso dessa forma nominal do verbo esperar dá um tom de imprevisibilidade

aos fatos sugeridos pelo eu lírico: “tem minha noiva definitiva me esperando com

flores na mão, / tem a morte”. Essas projeções estão no plano do imponderável,

que, como afirmava o enigmático Parmênides (1999, p. 53), “têm o ímpeto a

tornar-se”. O sábio grego considerava que tudo que constitui o cosmos traz em si

a condição de possibilidade.

O universo temático do poema é tecido em consonância com o âmbito

formal. Estruturado em duas estrofes e vertido numa linguagem simples e direta,

o ritmo do texto se define pela presença de aliterações (“mundo batendo na minha

memória”), assonâncias (“Do outro lado tem outras vidas”) e a alternância de

versos curtos e longos, especialmente na estrofe inicial. Os efeitos de

expressividade são operados em nível sintático pelo uso de repetições e

Page 27: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

27

omissões. O primeiro caso diz respeito à utilização reiterada, no início dos versos,

à exceção dos que iniciam as estrofes, do verbo “tem”: a recorrência à anáfora

cria uma cadência nos versos, sugerindo o tom repetitivo da vida (“Deste lado /

tem a minha namorada / tem as ruas gritando / tem meu amor / tem o mundo /

tem o caminho”). O mesmo recurso é utilizado na estrofe final.

O recurso à elipse dá ao texto um efeito expressivo mais econômico aos

versos que se seguem ao primeiro: a omissão dos termos “Deste lado”, na

primeira estrofe, e “Do outro lado”, na segunda, contribui para criar uma cadência

rítmica mais intensa e tornar a linguagem mais enxuta. No último verso do poema,

percebe-se uma elipse no corpo do verso, na segunda sequência: “tem a morte,

as colunas” – em que o verbo tem está subentendido.

O verso final de “Os dois lados” (“tem a morte, as colunas da ordem e da

desordem”), especialmente o segundo segmento, prefigura aquele que será tema

e pressuposto da concepção de mundo de Murilo Mendes e que perpassará seu

discurso poético: a tensão entre os opostos – manifesta na percepção de que na

estruturação do nosso existir tem “as colunas da ordem e da desordem”. Tudo na

vida se elabora a partir da confluência desses elementos que se tensionam e

distendem – o finito e o infinito, o sacro e o profano, o lógico e o onírico. A

“ordem” e a “desordem”. Essa questão é recuperada por Mendes (2017, p. 10) em

muitas passagens de sua obra, a exemplo de “Microdefinição do autor (B)”,

datado de fevereiro de 1970, que abre o livro Poliedro: “Pertenço à categoria não

muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito”.

Esses elementos contraditórios e disruptivos que fundam o mundo e constituem a

tessitura da lírica muriliana são harmonizados por meio da poesia.

1.1.2. O diálogo entre Nietzsche e Murilo Mendes – o apolíneo e o dionisíaco

No segmento segundo de seu livro de poemas em prosa, Sinal de Deus, há

um texto intitulado “Nossa vida” em que Murilo Mendes (1994, p. 760) faz uma

síntese enumerativa dos paradoxos que fundam a existência e, ao mesmo tempo,

Page 28: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

28

seu olhar sobre esses opostos complementares que constituem a matéria da vida,

as angústias e desejos humanos que encarnam seu canto:

Vida infernal e divina do poeta – Corpos de mulheres descendo e subindo em torno da gente – Pensamentos para Deus, por Deus, contra Deus – Solidão – Ânsias de guerra – de paz – de morte – Nascer, viver, sofrer, morrer e ressuscitar com todos os entes (...) – O princípio, o fim – O céu, o inferno – Deus! – A poesia da eternidade esclarecendo, completando e ampliando a poesia do tempo.

O discurso poético de Mendes nasce e é construído na tensão, no conflito

entre os elementos antitéticos do existir humano e que encorpam a condição de

todos os seres: “A vida infernal e divina”, o desejo, a “Solidão”, a presença e

negação de Deus, o caráter irremediável da vida: “Nascer, viver” e a possibilidade

de ressurreição. Tudo principia e declina, mas, ultrapassando tudo, a “poesia da

eternidade” desvela e complementa a precária “poesia do tempo”. Pelo verbo, ou

melhor, pelo poético opera-se a síntese entre o efêmero e o eterno.

A poesia de Murilo Mendes (MENDES, 2017, p. 9) nasce desse fervilhar

interior que corporifica seu ser e seu cantar, como registra na “Microdefinição do

autor (A)”, em Poliedro: “porque dentro de mim discutem um mineiro, um grego,

um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador;

porque não separo Apolo de Dionísio”. É dessa natureza múltipla, conflituosa e

afluente que brota a criação artística e nasce a obra de arte como já advertira

Nietzsche (1999, p. 27), no ensaio sobre O nascimento da tragédia ou helenismo

e pessimismo:

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschaung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco (...). A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner], a apolínea, e a arte não-figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio: ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum ‘arte’ lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática.

Page 29: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

29

Leitor de Heráclito, Nietzsche percebeu na oposição entre os “impulsos” da

vida mais do que um fato da natureza. Para ele, o apolíneo e o dionisíaco são

forças conflagrantes, mas criativas que “caminham lado a lado, na maioria das

vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre

novas”. A arte nasce da convergência desses dois princípios que podem ser

compreendidos como chaves metonímicas do processo criativo e das expressões

artísticas, enunciadoras “do sonho e da embriaguez” (ibid, p. 28).

O professor Edson Munck Junior (2012, p. 6), no ensaio “A heterodoxia

muriliana na dança com o sagrado”, discute a presença de Nietzsche no discurso

poético do autor de Poesia em pânico, como um elemento distintivo não só de sua

poética, mas de sua fé e espírito agônico:

O cristianismo agônico, o poeta que quer boxear com a eternidade, a aproximação cheia de pessoalidade do sujeito do poema com Deus, dentre outros, são indícios de que há, em Murilo Mendes, marcas da filosofia de Nietzsche em operação com vistas ao desenvolvimento de valores novos. Na poética muriliana que lida com a religiosidade, o poeta oscila entre o apolíneo e o dionisíaco, fazendo questão de tirar o sagrado para dançar, explorando a parte de Dionísio que lhe cabe.

Murilo Mendes (MENDES, 1994, 1210) reconhece sua dívida com o filósofo

alemão. Na sua série de Retratos-relâmpado, dedica-lhe um pequeno retrato com

alguns senões:

Sou grato a Nietzsche por certas palavras: “o espírito que dança”; a criação de valores”; “tudo o que não me faz morrer torna-me mais forte”; “o poder oculto da alma”; “no homem acham-se reunidos a criatura e criador”. Sou in-grato a Nietzsche pelo seu culto extremo da força, do mandarinato; pela sua incompreensão do cristianismo. (...) Transcristão? Interpreta a disciplina do sofrimento. Cada cristão deveria explorar a parte de Dionísio que lhe toca.

O poeta admirava não só as ideias de Nietzsche, mas também sua escrita,

a força de suas palavras e a singularidade de suas metáforas e imagens

surpreendentes. Uma leitura atenta da tapeçaria poética de Murilo Mendes

evidencia os rastros do verbo borbulhante e sem meias palavras do poeta-filósofo

alemão. Nietzsche seria uma espécie de personificação do herético que há em

Murilo Mendes – esse visionário e perseguidor da eternidade que não temia beber

em outras fontes, mesmo naquelas não identificadas com suas crenças.

Page 30: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

30

1.2. A poesia como modo de ser e compreender o mundo

A poesia não é um discurso mudo, sem cor e inerme. É uma voz que se

reveste no tempo e na concretude das coisas, e, segundo Platão (2011, p. 39), é

um sopro, “uma concessão divina”, que se anuncia e enforma na linguagem. A

poesia fala, e saber ouvi-la é uma experiência fundamental pelo que apresenta de

singular e revelador sobre o nosso aprendizado do mundo e nossa condição

existencial.

O artista que se consagra ao ofício da palavra é alguém que, por esforço e

paciência, desenvolve a habilidade de ouvir. Ter ouvido fino é uma qualidade

imperativa a que deve aspirar o poeta, pois os versos, como fortalezas sitiadas,

precisam ser conquistados: ouvir o silêncio e fazê-lo soar e ser no poema são as

fortalezas a ser dominadas pelo artífice da palavra.

A poesia, portanto, é um discurso tecido com os fios do tempo, da memória

e da inventividade. É uma poíese: uma encantaria e uma tékhne, que, segundo a

fala das Musas a Hesíodo (2003, p. 107), diz “muitas falsidades, que se parecem

com a verdade”. A criação poética é um simulacro – um dizer indefinido sob o

qual a vida lateja como brasa recoberta pelas cinzas. Os criadores da palavra,

desde os tempos mais remotos, sabiam que o engenho poético é um ato de

invenção e de encantamento. E o artífice dessa arte encantatória é o poeta. Essa

compreensão se consolidou na tradição poética ocidental. No século XVIII, o

poeta alemão Novalis (2000, p. 15), num fragmento significativo, suscita essa

questão:

A linguagem (...) é verdadeiramente um pequeno mundo em sinais e sons. Assim como o Homem a domina, também quereria dominar o grande Mundo e nele livremente poder exprimir-se. E é exatamente nesta alegria de manifestar no Mundo o que lhe é exterior, o poder fazer isso, que é, no fundo, o impulso originário da nossa existência, que reside a origem da Poesia.

Novalis considera que o ato de apreender o “Mundo” é uma “alegria”e

identifica essa capacidade de fazê-lo com o “impulso originário da nossa

existência”. Para ele, o desvelar da realidade, como já dissera Platão, é um ato de

pensamento que se configura pela contemplação do existente. E dessa

Page 31: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

31

experiência, nasceram a filosofia e a arte. A “Poesia” origina-se igualmente desse

sopro vivificador que do barro elevou o ser humano. Há nas correntes

subterrâneas da linguagem uma compreensão do “existir” que é compartilhada

por todos aqueles que se consagram à magia de traduzir poeticamente o mundo.

A poesia de Murilo Mendes dialoga com essa tradição que concebe a

linguagem não como mero artifício linguístico ou meio de comunicação, mas um

dizer enunciador sobre a realidade. Um modo de ser e de compreendê-la. A

poesia é uma fala revestida de poderes e enfeites próprios, como registra

Aristóteles na Poética. Sob essa perspectiva, o fazer poético se constitui como um

processo que compreende, além do sujeito criador, o domínio por ele da

carpintaria poética. Esse agente criador não é outro senão o poeta – “o Mestre da

língua”, que infunde no poema os poderes mágicos de sua imaginação e trabalha

com as possibilidades expressivas da linguagem. Mendes (2014b, p. 212) evoca

essas questões de forma densa e precisa no livro Convergência, especialmente

no poema “Texto de consulta”, parte 4:

A palavra nasce-me fere-me mata-me coisa-me ressuscita-me

O que sobressai nesta estrofe, aparentemente desconexa e truncada, é

uma reflexão sobre os poderes germinadores da linguagem. Por conter o

existente e nosso ser, as palavras assemelham-se a pequenos átomos: densos e

concentrados, a ponto de explosão e, por isso, capazes de fazer nascer e

também morrer. A palavra, diz o poeta, tem um poder interior e invisível que se

assemelha à espada do anjo vingador: “fere”, “mata” e, o mais importante: essa

palavra, nascida do homem e que o faz viver, opera a grande transformação a ser

conquistada. A transformação do ser, convertida em verdade, na própria

concretude do mundo – ela “coisa-me”.

Para Mendes, entretanto, essa ressurreição não resulta de um deus ex-

machina, mas de uma potência divina germinada na palavra enraizada no ser do

homem e que é a fonte de sua redenção. É esse divino humano, manifesto no

Page 32: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

32

verbo, que faz de cada um de nós um deus capaz de engendrar a própria

ressurreição. Murilo Mendes apresenta poeticamente um discurso metafísico que

concebe o religioso como uma experiência imanente e profundamente humana.

Para ele, o céu é uma possibilidade existencial no plano de nossa humanidade –

é uma promessa de presença do divino na terra. Deus habita o mundo e, como

nos recorda William Blake (1995, p. 31-37), é preciso lembrar os homens “que

todas as deidades residem no coração humano” e que “Se as portas da

percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito”. O

poético não é só um discurso, é um olhar iluminador sobre as coisas e um modo

de desvelamento do real.

1.2.1. O sagrado na poesia – o divino como compreensão da existência

A poesia é retratada em certas tradições do pensamento como o canal

usado pelos deuses para se pronunciarem no mundo. Para gerá-lo e dar-lhe

forma. A primeira palavra teria sido uma emanação divina – que tudo engendrou e

tudo fez nascer. Encarnou-se nas águas, no ar, na terra e também no ser humano

pelo sopro daquele que vocalizou a fagulha originária permitindo que tudo fosse e

se iluminasse: Fiat lux (“Haja luz”). “E houve luz. Deus viu que a luz era boa, e

Deus separou a luz e as trevas” (Gn 1, 3-4). E como Verbo, com sua potência de

ser, a vida se carnalizou. Essa força inapreensível que habitaria as palavras, fala

e se diz silenciosamente na poesia. O poeta recolheria no seu canto essa voz

perdida, “fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que

quase não mais ressoa” (HEIDEGGER, 2008, p. 24).

Reavivar esse poema esmaecido seria a tarefa rediviva de todo aquele que

tem no poético a expressão de seu ser na existência e sabe que todo verso é um

eco desse “poema esquecido”, referido por Heidegger. É dentro da ordem do

mundo, entretanto, que a poesia se manifesta ao homem. Não é algo exterior ao

mundo, mas uma expressão do mundo – uma realidade prenhe de possibilidades

em termos de revelação e autodescoberta. María Zambrano (1995, p. 30), no livro

O homem e o divino, reputa o real como uma coisa sagrada: “A realidade é o

Page 33: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

33

sagrado e só o sagrado a tem e outorga. Tudo lhe pertence”. A filósofa corrobora

sua afirmativa lembrando o enunciado do poeta Teógnis de Mégara: “Somos

propriedade dos deuses”.

Essa compreensão permeia a concepção poética de Murilo Mendes.

Estudioso da história, da tradição poética e da filosofia, concebeu sua obra em

estreita ligação com esse entendimento que situa o homem como uma emanação

do divino e, portanto, uma síntese das forças vitais que habitam o existente – uma

reunião simbólica do Céu e da Terra.

Nas tradições antigas o ser humano era concebido como uma extensão da

força criadora do cosmos, da divindade que concedeu às coisas e a todos os

seres a possibilidade de existir. O que existe serie exatamente o que se elevou do

pó – avivados pelo “hálito” divino e pela luz que desvelou o que as trevas

escondiam. A poesia rememora esse ato criador, esse impulso que animou o

mundo e se expande no tempo como a luz das estrelas a percorrer distâncias

infinitas. Murilo Mendes (1994, p. 250) tinha profunda consciência dessa presença

do sagrado na existência e a incorporou como razão de ser de sua vida e

fundamento de sua poesia, como esclarece no poema “Filiação”, de Tempo e

eternidade:

Eu sou da raça do Eterno. Fui criado no princípio E desdobrado em muitas gerações Através do espaço e do tempo. Sinto-me acima das bandeiras, Tropeçando em cabeças de chefes. Caminho no mar, na terra e no ar. Eu sou da raça do Eterno, Do amor que unirá todos os homens: Vinde a mim, órfãos da poesia, Choremos sobre o mundo mutilado.

O título do texto sugere o tema que será glosado nos versos: seu vínculo a

uma origem que precede tudo (“Eu sou da raça do Eterno”), a uma linhagem que

se desdobrou de um tronco originário e que se ramificou “em muitas gerações /

Através do espaço e do tempo”. Nessa afirmativa há uma definição fundamental

da concepção existencial de Murilo Mendes que o vincula a uma metafísica

primeira, presente na origem e que antecede todas as concepções religiosas. É

Page 34: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

34

significativo o fato de se conceber como um ser libertário (“acima das bandeiras”)

e reafirmar que o que dá sentido ao seu existir é algo maior por se sentir parte de

uma genealogia que precede e funda o humano. Observe-se a força atribuída à

palavra “raça”. Ela pode ser lida na acepção de “feixe de luz”, sugerindo, assim,

que o eu poético tem sua origem no impulso de luz instituidor do mundo e do

“Eterno”.

A aderência a essa linhagem que se liga ao eterno não é destituída de

obstáculos e tensão, pois, como afirma, resulta de tropeços “em cabeças de

chefes”. Mais que o fundamento religioso, o amor e a poesia são forças capazes

de remir o destino humano de sua perda. O cristianismo do sujeito poético é mero

revestimento, forma como o divino se expressa no seu tempo e como o manifesta

subjetivamente, pois ele se assume como continuidade da estirpe do primeiro

homem, Adão: “Fui criado no princípio”.

O senso religioso que o anima precede todas as religiões, inclusive a

confissão cristã que professa. Já estaria prefigurada quando a primeira criatura

surgiu do barro. Perdeu-se na queda do paraíso, mas, acreditando-se parte “da

raça do Eterno”, vislumbra a reconquista da divindade perdida por meio “Do amor

que unirá todos os homens”. Considera a criação divina a expressão máxima do

ato poético e, por isso, afirma que todos somos órfãos “da poesia” e precisamos

carpir “sobre o mundo mutilado”.

A religiosidade é um sentir e uma experiência profundamente humana e

não um tema inerente à Teologia, à mística ou à poesia. É um assunto do homem

e, como tal, de todas as formas de pensar humanas, repercutindo inclusive no

pensamento científico, a despeito de sua resistência a tudo o que escape do crivo

da razão. A percepção religiosa é um modo de interlocução e compreensão do

real e, talvez por isso, como nos adverte o filósofo Vilém Flusser (2002, p. 16),

“Somos (...) remetidos à nossa vivência interna, à religiosidade. É ela, embora tão

variável e insegura, a nossa única avenida de acesso ao fenômeno religioso”.

Flusser (2002, p. 18) reflete sobre o tema e considera que, após

depreender “as formas inautênticas” e as “formas perversas, resta-nos a

capacidade genuína para captar a dimensão sacra do mundo. Essa capacidade

Page 35: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

35

revela o mundo e nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é, como

realidade que aponta para fora de si mesma”. É surpreendente como a percepção

de Flusser sobre o sagrado, como algo que é parte do real, o aproxima de

Heráclito e de toda a tradição que concebe o divino como uma dimensão

inescapável do humano. Desdobra sua reflexão sobre a presença da sacralidade

no plano das vivências humanas, denominando o “sacro” como o “significado que

o mundo e nossa vida dentro dele têm”.

Negar o pensamento religioso, como modo de compreensão do real, tem

sido o comportamento comum do racionalismo, sobretudo a partir do Iluminismo.

As pontes que ligaram no passado essas formas de pensar foram em parte

destruídas ou ignoradas pelos defensores da razão. Estabeleceu-se, assim, entre

o secular e o religioso uma oposição e um abismo quase instransponíveis.

O célebre diálogo, ocorrido em janeiro de 2004, entre o papa Bento XVI e o

filósofo Jürgen Habermas, sobre fé e razão, registrado no livro Dialética e

secularização – sobre razão e religião, foi uma iniciativa concebida com o intuito

de retomar uma interlocução há muito prejudicada por preconceitos e sectarismos

recíprocos. As ponderações dos pensadores deixa claro que esse é um debate

possível e necessário como forma de unir forças para vencer a violência reinante

em nosso tempo. Para Habermas (2007, p. 56), o encontro “entre fé e

conhecimento” só será “sensata” se “as convicções religiosas” ganharem “um

status epistêmico que não seja pura e simplesmente irracional”.

Bento XVI considera que fé e razão são complementares e podem se

enriquecer reciprocamente. Na sua argumentação, sustentou a “necessidade de

uma correlacionalidade entre razão e fé, entre razão e religião. Ambas são

chamadas a se purificarem e curarem mutuamente, e é necessário que

reconheçam o fato de que uma precisa da outra” (HABERMAS/RATZINGER,

2007, p. 89). O papa deu um caráter universal aos seus argumentos,

considerando a necessidade de incluir as demais culturas nessa

“correlacionalidade” como forma de superar barreiras que separam os povos.

Acrescenta:

Page 36: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

36

É importante incluí-las na tentativa de uma correlação polifônica na qual elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e fé, de modo que possa ter início um processo universal de purificação no qual possam ganhar, por fim, um novo brilho aqueles valores e normas que, de alguma forma, são conhecidos ou vislumbrados por todos os homens, para que possa ganhar nova força e eficácia na humanidade aquilo que mantém o mundo unido.

O debate entre Habermas e Bento XVI teve ampla repercussão nos meios

religioso e filosófico. Deixou evidente que fé e razão não são opostos

inconciliáveis e que o diálogo pode ser o caminho para um entendimento entre os

dois pontos de vista. O que os dois pensadores objetivavam realizar por meio da

reflexão teórica, Murilo Mendes e toda a tradição lírica de viés religioso e

metafísico o fizeram por meio da poesia.

1.2.2. O poético em Murilo Mendes e a tradição lírica espiritualista

O discurso poético de Murilo Mendes ecoa os mais antigos cânticos de que

se tem registro e que tiveram como espaço gerador a Mesopotâmia, há mais de

4000 anos. Nesse berço de todas as crenças e da poesia, o divino se anunciou e

enunciou a vida. E, como nas demais tradições, pela palavra tudo fez-se.

Estudioso das civilizações que se constituíram na região dos rios Tigre e Eufrates,

Samuel Noah Kramer (1972, p. 106) recuperou dos escombros do passado essa

memória primeira que por milênios ficou soterrada:

A criação não fora difícil nem laboriosa, pois as divindades, uma vez decidido por elas o que deviam fazer, tiveram apenas de enunciar o seu plano de ação e logo a coisa estava feita. Essa ideia transformou-se numa convicção que foi partilhada por todo o Oriente Próximo como um estabelecido artigo de fé: a Palavra de Deus – ou de vários deuses – tem por si mesma o poder de criar do nada todas as coisas.

No panteão dos deuses da antiga suméria, Enlil, o Senhor do Ar, “foi (...) a

força motora para efetuar a separação do Pai Céu da Mãe Terra, a qual não

tardaria a gerar a prole de Enlil” (KRAMER, 1972, 108). Daimon gerador de tudo,

Enlil legou às suas criaturas tudo que necessitariam para viver: fez brotar a

“semente da terra”, criou a “picareta-enxada e deu-a ao homem para facilitar seus

trabalhos agrícolas”. Por seus atributos de benfeitor dos humanos, os poetas da

Page 37: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

37

Babilônia, vozes de um tempo eternizado na memória, entoaram cantos

celebrativos ao Senhor do Ar que, com o sopro, gerou o mundo primevo de toda a

humanidade:

Enlil, cujas ordens, têm grande alcance, cuja palavra é sublime e sagrada, cujos pronunciamentos são imutáveis Enlil que traça os destinos no futuro distante, cujo olhar sobranceiro perscruta os campos, cujos alcandorados raios sondam o coração da terra... Quando o pai Enlil se instala solenemente sob o dossel sagrado, o sublime dossel, quando exerce o sumo comando e realeza, os deuses terrenos se curvam diante dele, os deuses celestiais o reverenciam com humildade.

A similitude entre esse canto originário e os poemas hierofânicos de outros

povos é mais que uma evidência. Sabe-se hoje que os cantares dos bardos

babilônicos influenciaram os epos das civilizações posteriores que se formaram

nas franjas do Mediterrâneo. É surpreendente a beleza, a força imagética, a

percepção da palavra como uma emanação divina, “cujos pronunciamentos são

imutáveis”. Esse sentido do sagrado que vibra nesses versos ecoa nos textos

épicos e na poesia de recorte metafísico. O tom e o caráter devocional desse

cantar manifestam-se no discurso poético de John Donne, William Blake,

Hölderlin, Murilo Mendes e em toda a tradição poética que se constrói a partir do

diálogo com o sagrado.

Laís Corrêa de Araújo (2000, p. 76-77), pioneira no estudo da lírica

muriliana, já havia identificado esse liame que liga a poesia de Mendes a um

corpus divino que transcende o seu tempo e o fundamento de seu catolicismo e

que, por isso, descobriu-se “integrado no Corpo Místico, pois este, mais do que a

totalidade da humanidade que se crê unida em Deus, é o conjunto de potências

espirituais esparsas ou esboçadas no mundo, mesmo se consideradas não-

cristãs”. Teilhard de Chardin (1994, p. 28), que exerceu forte influência sobre o

pensamento de Murilo Mendes, concebia o “fenômeno humano” nessa

perspectiva em que o cósmico, o divino e a racionalidade, abrangendo “tanto o

dentro quanto o fora das coisas”, não são excludentes independentemente de sua

configuração metodológica, mas podem contribuir para “um dia integrar o Homem

Page 38: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

38

total numa representação coerente do mundo” que, segundo ele, seria uma

experiência iluminadora do sentido profundo das coisas e o fundamento da

“consumação em nós da coragem e da alegria de agir”.

A poesia de Mendes é tributária dessa tradição que concebe o sagrado

como uma expressão do humano. Essa linhagem poética remonta aos primeiros

rapsodos da antiga Suméria e aos cantos de Hesíodo e Homero na Grécia

arcaica. Hölderlin encarnou em nosso tempo esse espírito que buscou no sagrado

não só consolo, mas uma forma de compreensão e resistência no mundo.

Acreditava num possível retorno dos deuses e, como nos primeiros tempos,

habitariam novamente o mundo e conviveriam com os seres humanos.

O poema “Pão e vinho” (HÖLDERLIN, 1991, p. 169-171) retrata esse

posicionamento poético em face da existência. Nele o poeta alemão lamenta o

banimento dos deuses da terra (que ainda vivem, “mas lá nas alturas, em outro

mundo”), a ausência do divino do convívio dos homens e faz uma intrigante e

dramática pergunta ao ser humano e à própria humanidade (“para que poetas

num tempo de indigência?”):

Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato, Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo. Infinita é sua ação ali, e aos celestes parece Importar pouco a nossa vida, pelo muito que nos poupam. Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil, e só De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino. (...) O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer? Não sei: e para que poetas num tempo de indigência? Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas Que, pela noite sagrada, iam de país em país.

Responder a essa questão é um problema colocado não só para quem se

dedica ao estudo da literatura, mas para o ser humano em geral, acossado pelas

circunstâncias de um tempo violento, alienante e dominado por mecanismos de

interdição do pensamento reflexivo. A poesia, nesse sentido, se apresenta como

um caminho para o estabelecimento de um diálogo esclarecedor e libertador do

homem em face da opressão de seu ser.

Page 39: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

39

O fenômeno poético é entendido, nesse sentido, como expressão de uma

experiência de transformação existencial e de reencontro do humano com a sua

força interior que o impulsiona para a vida e a realização do seu potencial de ser

no mundo. A espiritualidade é concebida, desse modo, como um aprendizado

social, palpável e profundamente humano, ao alcance de todos e, ao mesmo

tempo, um caminho para a reconciliação dos seres humanos. Uma redenção a

ser usufruída como um processo vivo e imanente. Murilo Mendes ancora sua

visão poética nessa compreensão de que a transcendência é uma experiência

profunda a ser vivida não num outro plano, mas na sua imanência, como explicita

Laís de Araújo (2000, p. 76-77):

a poesia não representaria para Murilo Mendes instrumentos de alienação, de fuga, de desvinculação ética do homem para com o homem, uma sublimação em que a religiosidade se tornasse forma apassivadora com que o eu do poeta se protegesse, se escudasse ante uma realidade que o rejeita ou não compreende (...). É bem diversa a posição de Murilo Mendes em relação à fé, ao cristianismo redescoberto, ao pretexto de uma poesia de impulsão religiosa. O seu messianismo é conturbado, caótico, pouco ortodoxo, angustiado e angustiante, vibrando nos sentidos, como parte indivisível de seu corpo.

A escrita de Murilo Mendes se elabora como um ato de consciência diante

da existência e suas contingências. Sua poesia é uma forma de leitura e

compreensão da realidade, em que propõe, como caminho para a superação das

angústias do presente e para a alienação reinante em nosso tempo, a reconexão

com o sagrado e a observância dos ensinamentos e exemplo de Jesus. Para o

poeta, Cristo é o símbolo da perfeição e caminho para a redenção do ser humano

e a conquista de um novo existir – prefigurada na eternidade. Mestre Eckhart

(2006, p. 93), no seu livro sobre a consolação divina, concebia esse processo de

elevação como um “despojar-se da imagem (humana) e no revestir a imagem da

eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida transitória e temporal

(...), pois o fim último do homem interior e do homem novo é: a vida eterna”.

O pensamento dos líderes religiosos, dos místicos e dos poetas

identificados com a espiritualidade, nesse aspecto, é convergente: inconformados

com a construção ilusória e precária do mundo, aspiram por um modo de vida

purificado e conectado ao divino. Alguns, como Murilo Mendes, acreditam ser

possível o sentimento do eterno no âmbito histórico e secular. Daí a sua

Page 40: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

40

perspectiva imanente da experiência religiosa e do sentido da eternidade. Outros

acreditam que a eternidade só poderá ser usufruída plenamente numa outra

esfera, após a morte e a ressurreição do ser humano, como um prêmio pelos

seus méritos e pela verdade com que viveram sua existência terrena.

1.3. As origens da lírica e os cantos celebrativos sumerianos

O cantar de Murilo Mendes emana a fala criadora que está na origem do

fenômeno poético e transcende todas as denominações religiosas. O que pulsa

no seu canto é a certeza que move o homo religiosus, segundo Mircea Eliade

(2001, p. 164) aquele que “acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o

sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e

tornando-o real”. Para esse homem, possuído pelo ânimo divino, “a vida tem uma

origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades

na medida em que é religiosa”.

Esse senso religiosus é presença recorrente na poesia. É uma forma de

olhar e compreender o mundo em sua complexidade e contradições, e que

excede o tempo e o espaço. Suas primeiras evocações estão presentes nos

versos dos poetas mesopotâmicos, especialmente na Epopeia de Gilgámesh, o

mais antigo registro literário conhecido, e nos poemas de Enheduana, filha do rei

acadiano Sargão e sacerdotisa da cidade sagrada de Ur, centro espiritual

consagrado a Nana, o deus da Lua. Num de seus cantos mais conhecidos, “Nin-

me-sara”, dirige-se à deusa Inana, padroeira e protetora de seu pai, que a

chamava de Ishtar. É surpreendente a força imagética do texto, a intensidade da

linguagem e a percepção do eu lírico da presença do impulso divino que anima o

seu cantar. Essa fé no supraterreno explica o fato de Enheduana (apud

KRIWACZEK, 2018, p. 162) se conceber como porta-voz da deusa (“Eu recitarei

teu canto sagrado!”):

Senhora suprema das terras estrangeiras, Quem pode tirar algo de teu território? ... Os grandes portais deles se incendeiam, O sangue jorra em seus rios, por tua causa.

Page 41: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

41

Neste canto consagrado a Inana, senhora do céu e da guerra, Enheduana

exalta seus poderes e a elogia pela sua força e autoridade. Um dos mais belos

textos já escritos, é uma longa prece dedicada à deusa e ficou conhecida pelas

palavras iniciais: “Nin-me-sara” (“Senhora de todo o Me”) – “nin”: “senhora”, “me”:

essa supremacia revestida por princípios civilizadores Inana usurpou de Enki,

deus da água e o mais sábio dos deuses sumerianos, que teria ajudado a criar a

civilização; e “sara”: o “todo”. Na sequência do poema, mantém o tom honroso,

mas se reporta à deusa numa atitude não mais de submissão: coloca-se à sua

disposição, ressaltando-lhe os atributos, mas desejando ser reconhecida e

celebrando suas funções como “suma sacerdotisa” nos aposentos sagrados

(Giparu), no Eana (“Casa do Céu”), templo consagrado a Inana (KRIWACZEK,

2018, p. 163):

Sábia e prudente senhora de todas as terras estrangeiras, Força vital do povo fervilhante: Eu recitarei teu canto sagrado!... Sincera e bondosa mulher de coração radiante, Eu enumerarei teus poderes divinos. Eu, En-hedu-ana, a suma sacerdotisa, Entrei em meu Giparu sagrado a teu serviço.

Os textos de Enheduana foram escritos durante o reinado de seu pai

Sargão, que estabeleceu o Império Acádio no século XXIII a.C. Por assinar seus

poemas, Enheduana é reconhecida como a primeira autora da história da

literatura universal. É significativo o fato de a poesia ter como patrona essa

mulher de excepcional talento literário e sacerdotisa iniciada nos mistérios do

divino. Seus hinos celebrativos influenciaram os salmos judaicos, a poesia grega,

estendendo-se aos cânticos cristãos primitivos.

As notícias de sua existência e de sua poesia vêm de longe. Chegam-nos

pela fala da memória. Das dobras do tempo, das planícies arenosas da antiga

Suméria; das águas sagradas dos velhos Tigre e Eufrates, ecoa essa voz e essa

mensagem sempre viva e sempre nova dos rapsodos que palmilharam os

desertos, as montanhas e planícies da Mesopotâmia – e à beira dos oásis, à

sombra das figueiras, teceram seus cantares celebrativos. Sobre todos, sopra a

voz de Enheduana (“Começo agora tua canção que determina o destino!”), Suma

Sacerdotisa Ornamento do Céu, que, na longínqua Ur, nos aposentos da casa

Page 42: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

42

celeste, teceu seus hinos aos lugares sagrados e seu cantar divino, consagrado à

Lua e à eternidade.

1.3.1. A lírica grega e a precedência sumeriana

Os estudos literários de um modo geral situam, como ponto de partida

dessa discussão sobre as origens da lírica, a Grécia, apontando Hesíodo (2003,

p. 107) e Homero como os precursores: o primeiro com a Teogonia e a célebre

passagem em que aprende com as Musas o “belo canto” e “dizer símeis aos

fatos”. A invocação inicial tanto na Ilíada como na Odisseia obedecem a um

mesmo padrão: na primeira, consagrada à conquista de Troia, o poeta refere-se à

“deusa” e pede-lhe que entoe o canto sobre a bravura de Aquiles – “Canta, ó

deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida / (mortífera! que tantas dores trouxe aos

Aqueus / e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades...)” (HOMERO, 2013,

p. 109); no canto celebrativo a Ulisses, o poeta clama à “Musa” pelos feitos do rei

de Ítaca – “Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, / depois que de

Troia destruiu a cidadela sagrada” (HOMERO, 2011, p. 119). Nos dois casos, o

sujeito poético recebe a dádiva de ouvir o canto revelado e o fixar poeticamente.

Esse padrão já havia sido estabelecido por Enheduana aproximadamente

dois mil anos antes no seu belo hino dedicado à “Senhora de todo o Me, que se

eleva em resplandecente luz” (Inana): “Eu recitarei teu canto sagrado”. Como

sacerdotisa, era iniciada nos mistérios do divino e conhecia previamente seus

hinos de louvação, não precisando clamar a nenhuma musa para que lhe

concedesse o canto – ela já o sabia, como se percebe no verso em que o anuncia

em tom imperativo: “recitarei teu canto”, que explica é “sagrado”. A maneira como

a sacerdotisa invoca a deusa é como se falasse a um ente próximo, que faz parte

do mesmo plano vivencial. Com ela argumenta “e tenta convencê-la a agir”, como

assinala o estudioso Paul Kriwaczek (2018, p. 163), no seu livro Babilônia: a

Mesopotâmia e o nascimento da civilização: “Sábia e prudente senhora de todas

as terras estrangeiras, / Sincera e bondosa mulher de coração radiante, / Eu

enumerarei teus poderes divinos. / Eu, En-hedu-ana, a suma sacerdotisa”.

Page 43: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

43

Se na lírica, a filha de Sargão definiu os marcos dessa fala poética, o

escriba Sin-léqi-unnínni, por volta do século XIII a.C., definiu os fundamentos da

épica, com a história de Gilgámesh, o quinto rei de Úruk após o dilúvio. As

narrativas heroicas desse rei lendário passaram a ser conhecidas a partir do

século XXII a.C.. A Epopeia de Gilgámesh, embora não registre a invocação

inicial dos poemas épicos posteriores, já estabelece o tom, o formato e o

encadeamento que definirão as grandes epopeias que serão escritas. O

“Proêmio” da grande saga do rei sumeriano: “Sá naqba imuru: Ele que o abismo

viu” (UNNÍNNI, 2017, p. 45) é de uma beleza e profundidade surpreendentes:

Ele que o abismo viu, o fundamento da terra, Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo, Gilgámesh que o abismo viu, o fundamento da terra, Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo. Explorou de todo os tronos, De todo o saber, tudo aprendeu, O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu, Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era. (...) Fez a muralha de Úruk, o redil, E o sagrado Eanna, tesouro purificado. (...) Toca a escadaria, que há ali desde o início, Aproxima-te do Eanna, residência de Ishtar, O qual nem rei futuro nem homem algum igualará.

Nos versos iniciais de Gilgámesh há uma antecipação dos resultados da

jornada do herói ao se aludir a tudo o que viu, os caminhos que conheceu, seu

aprendizado – “De todo o saber, tudo aprendeu”. Refere ainda ao tempo desses

acontecimentos: “o que antes do dilúvio era”. Como os textos épicos da tradição

ocidental, o poema celebra a bravura, a aventura do rei de Úruk, seus feitos e o

grande tesouro conquistado na sua odisseia: o entendimento – “ele sábio em

tudo”.

A leitura comparada dos textos originários sumerianos e gregos não deixa

dúvida quanto à influência da lírica e da épica dos poetas da Mesopotâmia sobre

a poesia que germinaria na Grécia aproximadamente dois mil anos depois. É

questão de justiça reconhecer essa precedência pelo seu significado e relevância

do ponto de vista histórico, particularmente pela situação singularíssima de

Page 44: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

44

termos a presença de uma poeta com o talento e sensibilidade de Enheduana na

origem da própria poesia.

As sementes lançadas há quase 50 séculos nas terras irrigadas pelos rios

Tigre e Eufrates germinaram e, entre elas, uma em especial teve grande impacto

na vida cultural da civilização: a poesia. Nascida do divino, entranhada nas

palavras, ela está na origem do pensamento, da filosofia e do esforço dos

místicos e poetas para manter esse sentido e essa verdade primeira que

engendrou o mundo, e deu significado à existência humana.

Contra o esquecimento e certo racionalismo que intentou despojar o mundo

de seu componente de eternidade, de transcendência e de força vivificante, o

poético firmou-se como a cidadela da verdade, o espaço em que o sagrado teve

liberdade para florescer livremente. Diante desse dilema de flertar com o

irrevelado – “nessa busca do inesperado que foge”, Greimas (2017, p. 99),

estudioso da mágica das palavras, questiona-se sobre o que fazer para deslocar-

se “da insignificância em direção ao sentido”. Segundo ele, o que nos restaria

seria “A inocência: o sonho de um retorno às nascentes quando o homem e o

mundo constituíam um só numa pancália original”.

1.4. Murilo Mendes e a percepção da palavra como evocação do ser

Os poetas, como pastores desses vales onde medra a flor secreta da

palavra, seriam os guardiães dessa linguagem que resguarda o impulso criador

que animou as coisas e o próprio homem. Essa voz presentifica “A dor de Deus”

(NIETZSCHE, 1996, p. 248), captura-a, macera e a converte em palavras e canto.

A eternidade, esse lugar para além de tudo que é aparente e precário, sem os

limites do tempo e do espaço, é o refúgio dos deuses caídos, onde ainda vibra e

ouve-se o mistério de seus cantos.

Em 1921, no Jornal A Tarde, de Juiz de Fora, Murilo Mendes (apud

PEREIRA, 2004, p. 180-181) publicou uma crônica em que afirmava que “Os

deuses não morreram: crepuscularam apenas” e ressaltava a capacidade de

Page 45: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

45

encantamento do ser humano, como ser capaz de criar a beleza: “Os olhos do

homem deslumbrado colorem a paisagem. Ele é o mágico das coisas: onde a

paisagem era feia e pobre acendem-se palácios, sangram pedrarias, ardem rosas

e açucenas)”.

O poeta completaria em alguns meses 20 anos de idade, mas suas

afirmações eram premonitórias do sentido e fundamento que teria sua obra

poética no futuro, como se percebe em “O poema visto por fora”, que faz parte de

A poesia em pânico (MENDES, 1994, p. 285):

O espírito da poesia me arrebata Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel Num silêncio de antes da criação das coisas. Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna: O esterco novo da volúpia aquece a terra, Os peixes sobem dos porões do oceano, As massas precipitam-se na praça pública. Os diversos personagens que encerrei Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade Que eu presido ora triste ora alegre. Não sou Deus porque parto para Ele, Sou um deus porque partem para mim. Somos todos deuses porque partimos para um fim único.

Os poemas de A poesia em pânico trazem as marcas de um período

dramático da história da humanidade. A referência a “pânico”, no título, aludiria ao

desespero do eu poético diante de uma época fraturada por disputas de poder.

Foram escritos entre os anos 1936-37, em meio às conturbações que

antecederam a Segunda Guerra Mundial: as consequências econômicas da

quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, o acirramento dos conflitos

ideológicos e de classe, a ascensão do nazismo na Alemanha, os expurgos e

assassinatos de adversários políticos na União Soviética, fascismo na Itália,

ditatura Vargas no país, entre outros.

Esses fatos ecoarão na poesia e na subjetividade de Murilo Mendes (1994,

p. 395), como transparece no poema “Nihil”, de Mundo enigma: “Nesta noite

maquinal, / Ouvinte apenas da guerra, / Sem passado nem futuro, / Odiando o

presente, / Me encontro face a face / Com a estátua do pó, À toa, esperando a

mão do Criador / Finalmente me abater”. O eu lírico vive a angústia do

Page 46: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

46

emparedamento e da impotência diante da guerra que ouve à distância. Acalenta

solitariamente uma manifestação, ainda que fatídica, do Criador.

Na contracorrente do debate de ideias na época, em que os defensores do

socialismo, do capitalismo e do nazismo se digladiavam, Mendes reafirmou seu

compromisso com o sagrado e elegeu a espiritualidade como um caminho

possível para a superação dos conflitos humanos, pois acreditava que “O reino de

Deus é suprapolítico, supra-econômico, supratrabalhista” (MENDES, 1994, p.

841) e está presente em todas as coisas.

Cultivar a fé ou defender valores religiosos nesse cenário não era

considerado só um anacronismo, era uma insanidade. Algo sem propósito e uma

atitude considerada alienante. Na crônica que abre o livro Recordações de Ismael

Nery (MENDES, 1996, p. 24), publicada em 1948, o poeta relembra os paradoxos

vividos por sua geração:

Porque Ismael conservou-se sempre cristão. A época em que ele viveu era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil. Os intelectuais eram, na grande maioria, agnósticos, comunistas ou comunizantes. Mesmo muitos com tendências espiritualistas disfarçavam-se, por respeito humano. A religião aparecia-nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente ultrapassada. O catolicismo era sinônimo de obscurantismo, servindo só para base de reação. Não era possível, sobretudo a uma pessoa de bom gosto, ser católica.

Para Mendes, esse impulso de vida e fascínio pelo divino, expressivo do

religare originário entre o homem e Deus, é algo vivo, passível de ser reavivado a

qualquer momento, como manifesta no “Poema visto por fora”: basta um aceno,

um gesto de querer (“estendo o braço direito e tudo se encarna”) – e tudo rebrota

(“O esterco novo da volúpia aquece a terra”), emerge dos lugares mais recônditos

onde o impulso vital pulsa (“peixes sobem dos porões do oceano”) e, sendo brasa

adormecida, incendeia-se, renovando-se em promessa e possibilidades.

O que é fascinante nessa ontologia poética de Murilo Mendes é a

centralidade do humano: o homem tem a possibilidade de ser por meio de sua

autodescoberta e reencontro com o sentido primordial que move tudo e que pode

ser acessado pelo estado de arrebatamento que a poesia permite. Esse processo

prenhe de simbolismo e revestido da força propiciadora do divino, possibilita ao

ser humano uma experiência de deificação, como se depreende da leitura dos

Page 47: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

47

versos finais do “Poema visto por fora”: “Não sou Deus porque parto para Ele, /

Sou um deus porque partem para mim. / Somos todos deuses porque partimos

para um fim único”.

Como ninhos, cada palavra é morada dos deuses – dos esquecidos e dos

que lutam para permanecer vivos. Deuses e homens estão sujeitos à instabilidade

do tempo e às injunções da história. Só o eterno permanece – expressão do

divino “que dá ao homem religioso a possibilidade de entrar em relação com a

fonte do sagrado, com o sagrado em sua dimensão absoluta, com a

transcendência, com Deus nas grandes religiões” (RIES, 2017, p. 83).

Novalis (2000, p. 41) compreendeu o sentido e a força que pulsam na

linguagem e, com isso, sua possibilidade representativa do mundo: “Cada palavra

é uma palavra de evocação. O espírito que ela chama – é o espírito que aparece”.

Por isso, em todas as tradições, a palavra é a semente germinadora de tudo. É a

fala – o comando – do deus instaurador das coisas, da vida e do que está além

dela. Maomé (1427: da Hégira, p. 31), no Alcorão (“o que deve ser lido”),

referindo-se a Allah, afirma na “Sura da Vaca”, que “Ele é O Criador Primordial

dos céus e da terra, e, quando decreta algo, apenas, diz-lhe: ‘Sê’, então, é”.

Murilo Mendes encontrou no divino o fundamento da sua criação poética.

Embora o revestimento de seu canto esteja identificado com o credo cristão, é

possível vinculá-lo à linhagem dos poetas transcendentes, que alguns estudiosos

denominam de metafísicos, embora Augusto de Campos (2009, 123), no ensaio

“A meta física dos ‘Metafísicos’”, considere “o batismo da escola, sob esse nome

discutido e discutível de ‘poetas metafísicos’”. De um modo geral, essa referência

à metafísica se justificaria pelo fato desses autores terem se dedicado à busca da

compreensão, por meio da poesia, de um sentido para a presença do homem no

cosmo, bem como sua relação com Deus e, por fim, a conquista da eternidade.

Para esses poetas, seria no reconhecimento, presença e acolhimento do sagrado

que o ser humano afirmaria a sua humanidade. Alguns, como o próprio John

Donne e William Blake, elegeram temas cristãos e o próprio Cristo como

referência e fundamento de parte significativa de seus escritos poéticos.

Page 48: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

48

1.5. A hermenêutica e o poético – compreensão e escuta do texto

Viver é dialogar com a realidade, com os outros e com o próprio ser.

Dialogamos para vencer a solidão, significar nossa presença e construir

possibilidades novas de vida. Segundo Heidegger, estamos lançados no mundo e

nada está pronto. Nosso existir é uma possibilidade que pode se cumprir ou não:

“O turbilhão (...) revela o caráter de mobilidade e de lance do estar-lançado que

se pode impor a si mesmo na disposição da presença. O estar-lançado não só

não é um ‘feito-pronto’ como também não é um fato acabado” (HEIDEGGER,

2009a, p. 244).

É no mundo que forjamos nosso ser, construímos nossa historicidade,

vivenciamos nossos afetos e atribuímos sentidos ao que fazemos e somos. E

todo esse corolário de vivências, aprendizados e realizações se expressa pela

nossa capacidade de dizer sobre nosso estar-aqui. Para Hans-Georg Gadamer

(2008, p. 571), “esse estar-aí do mundo é constituído pela linguagem”:

A linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se represente no mundo. Para o homem, o mundo está aí como mundo numa forma como não está para qualquer outro ser vivo que esteja no mundo.

O mundo assemelha-se a um caleidoscópio de palavras, imagens e

significados que são apreendidos pelo discurso. Lançado na cena da vida, o ser

humano está no mundo e é o mundo, num processo permanente de diálogo e

transformação. A palavra é a ponte que liga essas duas realidades e permite que

se avizinhem, que se visitem e se desencontrem. Essa interlocução é tão

significativa que permite a existência de tudo: “Não só o mundo é mundo apenas

quando vem à linguagem, como a própria linguagem só tem sua verdadeira

existência no fato de que representa o mundo” (GADAMER, 2008, 572).

Esse ser no mundo guarda na moldura de sua concretude as marcas de

nossa presença, as inscrições de nossas aspirações – sítios da memória com

suas camadas de histórias e escombros. Como uma semente, a linguagem brota

do mais recôndito de nosso ser – é uma experiência corpórea e incorpórea que

reaviva em nosso pensamento as imagens de nossas vivências, as vozes que se

Page 49: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

49

teceram ao que somos, e até mesmo o silêncio – essa outra voz que diz do que

está além da aparência e evoca as lembranças primevas.

A poesia é uma forma de registro sobre o mundo que se enuncia no

poema. Um fotograma esmaecido em que a vida se esboça e se move como

imagem difusa projetada num espelho. Para Valéry (1991, p. 210), o poeta “tem

de tomar emprestada a linguagem – a voz pública, esta coleção de termos e

regras tradicionais e irracionais” para tecer seu canto e compartilhar o seu dizer

sobre o que viu e viveu. Ao refletir sobre essa alquimia de materialização do ver, o

poeta francês concluiu que “a palavra é uma montagem instantânea de um som e

de um sentido”.

Esse entendimento do poético como uma operação que mobiliza os

sentidos e se consuma na destilação da linguagem, em que as convenções

estéticas se amalgamam com o irracional e a inventividade para engendrar novos

sentidos e uma rítmica própria, é expresso de maneira densa e simbólica por

Murilo Mendes (1994, p. 297) no texto “A um poeta”, de A poesia em pânico:

Eu te emprestarei minha musa: Estou ansioso por te ver alterado por ela. Quero que se transfira a ti um pouco do seu mistério, Quero que me procures para longas confidências, Quero espiar na tua fisionomia Um reflexo da minha angústia desdobrada. Quero te sentir meu irmão no sofrimento, Quero te abraçar com ela, misturando nossa respiração e tristeza. Também tu hás de esbarrar ante a muralha de pedra, Aprenderás o desconsolo, serás forte e ampliarás tua alma.

Leitor de Valéry e estudioso de suas concepções sobre a poesia, Mendes

concebeu seu poema como uma arquitetura que se eleva pelas suas colunas de

significados, sua massa sonora, os tijolos de palavras e os revestimentos de sons,

imagens, cores que vibram nos versos. E eclodindo de seus refolhos mais

profundos – os sentidos, o existente e seus mistérios atomizados no verbo que

brilham como uma corola solar em seu matizado metafórico. “A um poeta” é uma

crítica e uma descrição: o eu lírico se dispõe a compartilhar com outro poeta a sua

“musa”, para que ele possa olhar o mundo e seu próprio fazer poético de outra

forma: “Estou ansioso por te ver alterado por ela”.

Page 50: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

50

A partir disso vai enumerando os diversos efeitos que essa mudança possa

operar. O verbo “Quero”, usado repetidamente, é uma reiteração desse desejo de

mudança: “Quero que se transfira a ti um pouco do seu mistério”, da sua “angústia

desdobrada”, “irmão no sofrimento” e abraçados com a “musa” misturar

“respiração e tristeza”. Ao final do aprendizado, o “Poeta”, ao “esbarrar ante a

muralha de pedra”, colherá o prêmio de sua jornada: sentirá o desconsolo da

revelação das dores do mundo, mas, como esclarece o eu poético, “serás forte e

ampliarás tua alma”. O uso da apóstrofe (“serás forte”) ressalta o momento da

revelação e de autodescoberta do Poeta.

O poema de Mendes constrói-se como uma poética, em que vai pouco a

pouco desvelando a sua concepção sobre a poesia e o seu desejo de que isso

possa resultar numa mudança de atitude do “Poeta” diante da vida, no

aprimoramento de seu fazer poético e fundamentalmente na sua constituição

subjetiva: “ampliarás tua alma”.

Murilo Mendes discute no poema a possibilidade do autoconhecimento a

partir da interlocução com o texto escrito, concebido como um mundo a ser

revelado pelo diálogo, como explicita Paul Ricoeur (1989, p. 122), no livro Do

texto à ação: “O que se deve interpretar num texto é uma proposta de mundo, tal

que eu possa habitar nele e nele projetar um dos meus possíveis mais próprios. É

aquilo a que eu chamo o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único”.

Gadamer (1964, p. 9), numa passagem do ensaio “Estética e

hermenêutica”, resume com precisão os fundamentos que caracterizam a obra

artística e seus efeitos sobre os seus interlocutores:

a linguagem da obra de arte distingue-se pelo fato de a obra de arte singular reunir em si e trazer à aparência o caráter simbólico que, visto em termos hermenêuticos, advém a todo ente. Em comparação com todas as outras tradições linguísticas ou não, vale dizer sobre a obra de arte que ela se mostra para o presente respectivo como um presente absoluto, e, ao mesmo tempo, que ela mantém sua palavra à disposição de todo futuro. De uma maneira enigmática, a familiaridade com a qual a obra de arte nos toca é ao mesmo tempo abalo e derrocada do habitual. Não é apenas o “É isso que tu és!” que ela descobre em um espanto alegre e terrível – ela também nos diz: “Tu precisas mudar a tua vida”.

Page 51: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

51

A obra de arte, em especial o poema, seria um mundo em miniatura,

nascido do encontro do poeta com a realidade, que o intérprete – ou o seu leitor

ideal – tem a missão de evidenciar. De trazê-lo à luz com os seus segredos, seus

ensinamentos e sua voz, como assinala o professor Alfredo Bosi (2003, p. 478) no

ensaio “A interpretação da obra literária”: “Quanto mais denso e belo é o poema,

tanto mais entranhado estará em seu corpo formal o ‘mundo’ que se abriu no

evento e se fechou no claro-escuro dos signos”.

O crítico trabalha com a ideia de evento, considerado como “todo acontecer

vivido na existência que motiva as operações textuais, nelas penetrando como

temporalidade e subjetividade” (BOSI, 2003, p. 463). Explicita ainda o

acontecimento de um texto, ressaltando-lhe os atributos formais, a força subjetiva

que o move e a importância do hermeneuta na percepção e escuta desses

significados que ecoam na sua tessitura poética. Afirma que

O centro vivo do texto será sempre “um complexo de imagens e um sentimento que o anima” (...). O discurso do hermeneuta conserva o calor que as ondas da escrita lhe comunicaram, mas a mesma fidelidade ao texto leva-o a apartar-se do efeito imediato da leitura, e a fazer perguntas sobre o sentido daquelas figuras que não cessam de atraí-lo para o seu círculo mágico (BOSI, 2003, p. 468).

Todo escrito tem profundas imbricações com a sua historicidade e só se

anuncia pelo diálogo com um interlocutor preparado por meio de uma

conversação que compreende o texto e o intérprete, como precisa Gadamer

(2008, p. 502):

No caso de textos, trata-se de “manifestações da vida fixadas de modo permanente” e que devem ser entendidas, o que significa que um parceiro da conversação hermenêutica, o texto, só pode chegar a falar através do outro intérprete. Somente por ele os signos escritos se reconvertem novamente em sentido. Ao mesmo tempo, em virtude dessa recondução à compreensão, o próprio tema de que fala o texto vem à linguagem.

Todo processo de interpretação é uma escuta – em que texto e o intérprete

dialogam, divergem e se revelam nessa conversa registrada pela linguagem em

que o hermeneuta participa o resultado da sua audição e o compartilha

socialmente. Gadamer denomina essa experiência de conversação hermenêutica.

Page 52: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

52

É dessa maneira que um tema é trazido à fala, num processo de comunicação

que transcende a conversa usual e a mera adaptação discursiva:

isso implica que tanto a conversação hermenêutica quanto a real precisam elaborar uma linguagem comum, como na conversão, não representa a preparação de um aparato com vistas ao acordo, mas coincide com a própria realização do compreender e do acordo (GADAMER, 2008, p. 502).

O pensador alemão considera que a linguagem resulta de um processo

alquímico que se efetiva na escritura. Para ele, é dessa forma que a escrita, como

já afirmara Heidegger, “alcança sua verdadeira espiritualidade, pois, frente à

tradição escrita, a consciência compreensiva alcançou sua plena soberania. Em

seu ser, já não depende de nada. Assim, a consciência leitora se encontra na

posse potencial de sua história” (GADAMER, 2008, p. 506). Esse caráter de

transcendência que reveste a linguagem e envolve o processo criativo, mais

particularmente a poesia, ressalta sua natureza presciente.

Essa discussão suscitada por Gadamer sobre a suposta presciência do

poeta atravessa, desde a antiguidade, o debate sobre o fundamento divino do

fenômeno poético como sustentou Platão e, antes dele, os rapsodos da

Mesopotâmia e, de maneira mais incisiva, a poeta e sacerdotisa Enheduana, na

longínqua cidade sumeriana de Ur. Essa questão desaguou de forma profunda na

poesia e na compreensão de Rimbaud sobre o fundamento do ato criativo e o

modo de ser do poeta.

É evidente a natureza enunciativa da poesia. O poema é um artefato

falante e, como sustenta Gadamer (2008, p. 630), esse “vir-à-fala é como entrar

em relações de ordem, pelas quais se sustenta e avaliza a ‘verdade’ do que foi

dito. Todo vir-à-fala, e não só no caso da expressão poética, carrega em si algo

desse testemunho”. Disso tudo decorre a compreensão como um pressuposto

imperativo do processo de interpretação do texto.

O exercício de diálogo e aproximação com um escrito assemelha-se a um

jogo em que o intérprete penetra em suas camadas para desvelar-lhe os sentidos

e, nesse processo, encontra-se com o escritor e com o seu universo de crenças –

prefigurado no seu espaço cultural. Nessa experiência, o leitor vive igualmente

Page 53: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

53

seu processo de auto-entendimento. Esse movimento de compreensão se

desdobra a partir da interlocução com o texto e vai se realizando conforme a

dinâmica do círculo hermenêutico, em que as perguntas formuladas vão

ensejando respostas e, assim, nos constituímos como parte dessa busca de

entendimento do escrito.

1.5.1. Um exercício de escuta e interpretação do texto poético

No estudo da poesia, a conversação hermenêutica, como procedimento de

aproximação e interlocução com o texto, é de fundamental importância para a sua

escuta e a apreensão de sua fala – que não é só o dizer das palavras, mas

também do mundo tresmalhado na tessitura do poema. O diálogo com o texto é

uma experiência múltipla que extrapola o diálogo com as palavras. Nesse sentido,

a própria leitura é um processo de compreensão, como precisa Murilo Mendes

(1994, p. 862) no aforismo 463 de O discípulo de Emaús: “A leitura deve-nos ler,

tanto quanto ser lida”. Essa reflexão intui e antecipa muito do que Gadamer iria

desenvolver posteriormente em seus estudos de hermenêutica filosófica. Não é

demais lembrar que o livro do poeta é de 1945 e as formulações do filósofo

alemão sobre o tema se tornaram correntes a partir da década de 1960.

Esse tema coincide com a virada na lírica de Murilo Mendes, sua opção por

uma dicção poética substantiva, após o término da Segunda Guerra,

consolidando-se com sua mudança para a Itália em 1957. O professor Murilo

Marcondes (1995, p. 62) chama a atenção para os desdobramentos dessas

mudanças na trajetória artística de Mendes: “A mudança para Europa, com a

consequente exposição a uma vida cultural mais sistemática, parece ter exigido

do poeta uma disciplina de outra ordem, reforçada ainda pelas suas atividades de

professor e crítico de arte”.

Essa mudança definirá o percurso do poeta. O modo como Mendes

passará a conceber o processo construtivo da criação poética será

problematizado em vários poemas. Não é outro o tema que o autor discute em

“Texto de consulta”, que fecha seu livro Convergência (2014b, p. 212) –, senão o

Page 54: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

54

poético como expressão do ser do homem e sua presença no mundo,

instaurando-se, por meio da linguagem, uma comunicação que reporta à natureza

do texto e ao sentido primordial da própria existência:

1 A página branca indicará o discurso Ou a supressão do discurso? A página branca aumenta a coisa Ou ainda diminui o mínimo? O poema é o texto? O poeta? O poema é o texto + o poeta? O poema é o poeta – o texto? O texto é o contexto do poeta Ou o poeta o contexto do texto? O texto visível é o texto total O antetexto o antitexto Ou as ruínas do texto? O texto abole Cria Ou restaura?

2

O texto deriva do operador do texto Ou da coletividade – texto? O texto é manipulado Pelo operador (ótico) Pelo operador (cirurgião) Ou pelo ótico-cirurgião? O texto é dado Ou dador? O texto é objeto concreto Abstrato Ou concretoabstrato? O texto quando escreve Escreve Ou foi escrito Reescrito? O texto será reescrito Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico; Pela roda do tempo? Sofre o operador: O tipógrafo trunca o texto. Melhor mandar à oficina O texto já truncado. (...)

4 A palavra nasce-me fere-me

Page 55: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

55

mata-me coisa-me ressuscita-me (...)

6

A palavra cria o real? O real cria a palavra? Mais difícil de aferrar: Realidade ou alucinação? Ou será a realidade Um conjunto de alucinações? (...)

8 Morrer: perder o texto Perder a palavra / o discurso Morrer: perder o texto Ser metido numa caixa Com testo Sem texto.

9

Juízo final do texto: Serei julgado pela palavra Do dador da palavra / do sopro / da chama. O texto-coisa me espia Com o olho de outrem. Talvez me condene ao ergástulo. O juízo final Começa em mim Nos lindes da Minha palavra.

O poema de Mendes é uma profunda reflexão sobre o sentido e a eficácia

do fenômeno poético – sua concepção, seu fundamento e seus desdobramentos.

Nele se instaura mais que uma conversa e um dizer sobre o mundo. Na verdade,

o material escrito se constitui e se realiza, na sua estrutura formal e no seu plano

semântico, como uma hermenêutica, em que prefigura sua gênese, sua

conversão estética, uma reflexão de natureza metalinguística e suas

possibilidades como um discurso desvelador sobre o texto – sua escritura, o leitor,

seu intérprete, o mundo nele atomizado, bem como seu contexto cultural:

O poema é o texto? O poeta? O poema é o texto + o poeta? O poema é o poeta – o texto?

Page 56: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

56

O texto é o contexto do poeta Ou o poeta o contexto do texto?

O sujeito poético nos propõe um diálogo, pontuado de questionamentos,

sobre o ofício da criação poética e sobre a escritura do poema. Trata-se de uma

discussão aberta, em que pouco a pouco alguns lampejos de compreensão vão

se descortinando. E, então, percebe-se que a intenção é nos despertar para o

entendimento de que o texto resulta de um processo complexo que se define por

uma relação de alteridade entre o eu criador, o artefato estético concebido, o

mundo cultural circundante e as contingências de nosso existir. Incluindo-se

também o leitor. Tudo está imbricado – passado, presente e até o futuro – nessa

gestação da palavra, que se configura no poeta – no texto – no poema.

O tom interrogativo permeia a tessitura dos versos, induzindo o leitor a

pensar sobre as questões propostas e o próprio poema, como um objeto que se

dá, mas que questiona, cobra e provoca quem o recebe, que terá a tarefa, como

afirma Gadamer, de trazer para a luz o que está na obscuridade – que é a própria

poesia, essa fala silente tecida com os fios da memória, do sonho e da vida, e que

se enuncia nas malhas do poema.

“Texto de consulta”, pelo corolário de questões sugeridas sobre a

complexidade do fenômeno criativo e sua alquimia constitutiva, pode ser

concebido como um metapoema. O poético é sua própria matéria: “O texto

quando escreve / Escreve / Ou foi escrito / Reescrito?” Desde Platão essa

questão vem sendo discutida. E o próprio filósofo considerava que o criado já era

uma reescritura, uma imitação de uma imagem primeira. O sujeito poético,

envolvido nessa reflexão, sabe dessas implicações e antecipa uma possível

resposta: “O texto será reescrito / Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico”. O ponto de

vista de Benedito Nunes (2009, p. 130) sobre a ação desveladora de uma obra

lança luz sobre o ato compreensivo:

Interpretar uma obra é, portanto, desdobrar o mundo a que ela se refere, mas na modalidade do como se da ficção, que também se abre, através da linguagem, para as estruturas gerais da existência humana (...). São essas estruturas que possibilitam a mimese, garantindo o traspasse da vida cultural e histórica no processo formativo, e que, ativadas pela percepção estética, funcionam enquanto esquema do traspasse do mundo projetado na obra ao leitor, quando o sentido dela é

Page 57: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

57

compreendido, de cada vez, numa situação determinada. É interagindo com o leitor que o texto, afinal, se torna plenamente obra.

A hermenêutica, entendida como um procedimento de compreensão e

interlocução com o texto, sobretudo como um método de escuta que elege a

linguagem como sua fonte primordial, é um caminho profícuo para o estudo da

poesia, pois contempla não só o material escrito na sua consubstancialidade

subjetiva e histórica, mas objetiva estabelecer um diálogo com o pensamento e o

mundo que falam no texto. O intérprete é aquele que se dispõe a ouvir o que é

dito nas entrelinhas e sob as camadas de um escrito, seja ele poético ou não. Às

vezes, encontramos essa fala silenciada que almejamos ouvir sob “as ruínas do

texto”.

O ato da escrita é um chamado para um tipo particular de diálogo, em que

o escritor precisa do leitor para compartilhar suas apreensões e sonhos. Também

seu silêncio. Por isso, a linguagem é um código a espera de ser desvelado pelo

intérprete, o que evidencia seu caráter esfíngico. Desvelar esse enigma é

condição para “não perder o texto”. Do contrário, seria a morte da “palavra” e a

perda do “discurso”.

O exame do plano da expressão do texto de Mendes destaca seu apuro e

domínio não só da linguagem, mas da carpintaria poética. Sua capacidade

laborativa é surpreendente: opera sobre os versos com uma precisão incomum,

amalgamando as palavras e adensando-lhes os sentidos e a força expressiva ao

seu limite máximo. Para atingir esse objetivo, centra sua ação criativa nos verbos

que, como espelhos, refletem as possibilidades que decorrem da “palavra” que

tudo faz nascer. O núcleo desencadeador das diversas ações ensejadas pelos

verbos é o substantivo “palavra”, o nome – que diz o que cada coisa é.

A força determinante do poema está, entretanto, na forma como o verbo se

apresenta: na voz reflexiva, em que a ação se reverte no próprio agente: “A

palavra nasce-me / fere-me / coisa-me”. Ela não se transfere para outrem. O

sujeito é o centro de seu próprio agir – o verbo está nele, é ele – e dá causa à sua

transformação. Essa intransitividade que determina o poema é um traço distintivo

da poética e da concepção de mundo de Murilo Mendes (2014b, p. 215),

Page 58: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

58

sustentada na perspectiva de um posicionamento imanente em que o divino é

uma presença na realidade, como evidencia na última sequência, “9”, de “Texto

de consulta”:

O texto-coisa me espia Com o olho de outrem. Talvez me condene ao ergástulo. O juízo final Começa em mim Nos lindes da Minha palavra.

O texto tem vida e anseia pela atenção de seu interlocutor. Ele “espia /

Com o olho de outrem”. Como um artefato vivo, pode reagir contra o outro

envolvido na interlocução. Nessa configuração dialógica proposta no poema, o

processo de compreensão não uma via de mão única, do intérprete para o texto.

Ao contrário, texto e intérprete travam um embate pela possibilidade de

autodesvelamento recíproco.

“Texto de consulta” se configura como uma poética do autor. Ou ainda

como um metadiscurso sobre o processo criativo, concebido a partir do ponto de

vista de alguém que se interroga sobre a palavra, o texto (“O poema é o texto? O

poeta?), sua produção gráfica (“O tipógrafo trunca o texto. / Melhor mandar à

oficina / O texto já truncado”) e seu significado como um artefato humano que

traduz e testemunha seu existir concreto (“A palavra cria o real? / O real cria a

palavra?”) – com todo seu espanto, perplexidade e promessa de uma redenção

anunciada, que só será possível por meio da palavra, resgatada da banalidade da

comunicação pragmática numa sociedade estandardizada, na qual vivemos a

contingência de ser, e seremos ou não resgatados segundo a verdade do verbo

que nos revela:

Juízo final do texto: Serei julgado pela palavra Do dador da palavra / do sopro / da chama.

A mesma palavra que dá a vida, presidirá o julgamento no “Juízo final do

texto”, sob o olhar “Do dador” – o lampejo da chama originária: o sopro de Deus.

Numa linguagem lapidada esteticamente, o eu criador funde na sua fala o tema

de seu discurso e o enuncia por meio de palavras que funcionam como senhas a

Page 59: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

59

serem revelados no diálogo texto-leitor-autor. Na palavra está contigo o princípio

e o fim. E também a chave para o desvelamento da vida e do mundo que, como

sementes, germinam-lhe as entranhas.

Essa percepção, expressa no canto de Murilo Mendes, lembra uma

afirmação de Heráclito de Éfeso (1999, p. 51): “Eu trago à fala a ti todas as coisas

como o universo na incandescência do desvelamento”. A evocação poética, como

um dizer sobre a vida, é uma “incandescência” – um iluminar que tenciona por a

nu acontecimentos que se escondem sob as sombras do cotidiano e de nossa

existência aparente.

A poesia de Mendes ecoa essas questões suscitadas desde as primeiras

manifestações poéticas conhecidas. Sua obra está vinculada a essa linhagem de

poetas que procuraram estabelecer conexões entre a transcendência e o plano

das vivências humanas. Para ele, a poesia é um jeito de ser, uma atitude e não

uma mera extrapolação de sentimentos ou um posicionamento que se esgota no

formalismo. No célebre depoimento “A poesia e o nosso tempo”, escrito após a

entrevista concedida a Walmir Ayala, em 1959, Murilo Mendes (2014a, p. 251)

formaliza seu ponto de vista sobre o sentido da poesia, que, segundo ele, “deve

propor não só um conhecimento, mas ainda uma transfiguração da condição

humana, elevando-nos a um plano espiritual mais alto”. O poeta não via

incompatibilidade entre o mundo das contingências humanas e o sagrado,

concebido como uma dimensão enriquecedora da nossa existência:

Atraído simultaneamente pelo terrestre e o celeste, pelo animal e o espiritual, entendi que a linguagem poderia manifestar essa tendência, sob a forma de um encontro de palavras extraídas tanto da Bíblia como dos jornais; procurando mostrar que o “social” não se opõe ao “religioso”.

A força da poesia funda-se no reconhecimento de que a língua é o canal

que permite a manifestação e o registro do impulso vital que é o sangue e o sopro

por meio dos quais o poeta fala de sua condição existencial. Num poema do livro

Tempo e eternidade, escrito em parceria com Jorge de Lima, Murilo Mendes

(1994, p. 255) evidencia sua compreensão do existente e seu comprometimento

com os demais seres humanos. O título, “Eternidade do Homem”, é simbólico dos

temas e ideias recorrentes em sua obra. É possível afirmar que essas duas

Page 60: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

60

palavras: “Eternidade” e “Homem” se constituem no fundamento de seu pensar e

fazer poético:

Abandonarei as formas de expressões finitas, Abandonarei a música dos dias e das noites, (...) Serei a testemunha de um mundo que caiu, Até que te manifeste na tua Parusia. (...) Minha história se desdobrará em poemas: Assim outros homens compreenderão Que sou apenas um elo da universal corrente Começada em Adão e a terminar no último homem.

O sentido do texto já está prenunciado no título e se desdobrará nos

versos. “Eternidade do Homem” é um nome síntese em que os dois substantivos

remetem às duas margens do discurso poético de Murilo Mendes: o divino e o

humano. Sua poesia é uma ponte: constrói-se como uma metáfora a ligar essas

duas dimensões da existência humana, e sua própria vida é parte desse devir que

se projeta no tempo e no espaço para além do imediato: “Minha história se

desdobrará em poemas”. Isso porque compreende que o seu existir não se

inscreve nos limites do hoje, mas é uma projeção de uma experiência infinita que

se iniciou no momento em que Deus gerou o primeiro homem: “sou apenas um

elo da universal corrente / Começada em Adão e a terminar no último homem”. A

poesia é o veículo dessa mensagem que intenta unir o céu e a terra e que se

consubstancia na própria existência de um eu lírico que se concebe como

emanação e parte do divino: sua busca será inscrita “em poemas”.

Os dois substantivos, “Eternidade” e “Homem”, na primeira edição,

aparecem com as letras iniciais maiúsculas, a acentuar a força e o valor que o

autor pretendia atribuir a essas duas palavras. Em edições posteriores o segundo

nome é registrado em minúsculo, “Eternidade do homem”, o que contrasta com as

intenções e o projeto poético de Murilo Mendes que concebia o humano no

mesmo nível de importância que o divino – como duas naturezas que se

complementam.

Esse descuido dos editores, aparentemente sem consequências, gera um

desequilíbrio em termos interpretativos, até porque, para Mendes, o centro de

Page 61: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

61

toda projeção divina é o Homem: em que um se revela no outro. A Eternidade

seria a projeção de um existir infinito, sem limite e duração, como assinala o sábio

Boécio (1998, p. 150) na sua Consolação da Filosofia: “a eternidade é a posse

inteira e perfeita de uma vida ilimitada”. E o Homem, como síntese do mundo e

imagem de Deus, seria o objeto e o centro dessa possibilidade que transcende a

precariedade e impermanência do real.

O poema para ser percebido em sua complexidade deve ser lido no

espelho do tempo em que foi escrito. Os anos trinta, do século passado, foram

difíceis para a humanidade: foi um tempo de incerteza, de intensas disputas de

ideias e valores – materialismo x espiritualidade, razão x fé, revolução x

conservação, democracia x tirania – que repercutiram nas crenças e na

estabilidade política da Europa e suas regiões de influência. Essa atmosfera foi se

aprofundando ao longo dos anos e culminou numa das guerras mais violentas da

história.

Na sua profissão de fé, o eu poético deixa evidente que a condição para a

sua jornada de autoconstrução espiritual passa inevitavelmente pela renúncia da

realidade efêmera e repetitiva, e das ilusões cotidianas: “Abandonarei as formas

de expressões finitas, / Abandonarei a música dos dias e das noites”. Engajado

no propósito de ser e de transcender este plano, concebe-se como “a testemunha

de um mundo que caiu”. Essa alusão à queda de Adão e sua consequência: o

pecado original que privou a humanidade de um existir sem infortúnios, é

metafórica da perda, do fado e da finitude do ser humano. A desobediência deu

causa à perda da inocência e à morte, que só será vencida com o retorno de

Deus, anunciado pelos evangelhos e que o poeta relembra no verso: “Até que te

manifeste na tua Parusia”.

De origem grega, “parousía”, tem o sentido de “chegada”. Assim, todo o

suplício humano só cessará com a volta de Cristo: momento epifânico de

redenção da humanidade – a “Parusia”, que nos libertará da queda originária.

Nesse momento de pura claridade, em que as trevas serão vencidas, o poeta se

metamorfoseará em luz e deixará de ser “a testemunha de um mundo que caiu”

para viver na eternidade do sagrado, de um tempo sem começo e sem fim. Ou,

como nos lembra Santo Agostinho (2003, p. 367) nas Confissões, que Deus nos

Page 62: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

62

conceda o acolhimento na sua beatitude, ver o “tempo” e, assim, alcançarmos “o

nosso repouso, para além do tempo”, já que nossas realizações humanas,

precárias e insuficientes, não gozam de permanência e não nos asseguram o

eterno.

A poesia de Murilo Mendes dialoga com o pensamento dos grandes

místicos, teólogos e pensadores que se debruçaram sobre a problemática da

transcendência. Conhecedor da condição humana e de sua precariedade, sabia

não ser possível encontrar neste plano, marcado por guerras, incompreensão e

intolerância, o porto seguro e uma existência fundada na paz, no bem e na pureza

de propósitos. Por isso, considerava que a renúncia ao viver terreno e suas

“expressões finitas” era a condição para a conquista de uma outra vida que, como

afirmava Santo Agostinho (2003, p. 367), deveria “repousar” sob a proteção de

Deus, “na Vossa grande santificação”.

Page 63: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

63

CAPÍTULO II – A presença do sagrado na poesia de Murilo Mendes

O caos toma sentido visto da janela cosmorâmica onde ele se debruça para dentro para fora para o alto para o fundo para a organização do delírio em código de poesia. .

Carlos Drummond de Andrade, “Murilo Mendes: hoje/amanhã”

Ao considerar que “O verdadeiro poeta é conjuntamente um ser de

circunstância, e eterno”, Murilo Mendes (1994, p. 834) reconhece o caráter

humano e, ao mesmo tempo, divino do artífice da palavra. Essa compreensão

evidencia um sentido de religiosidade que afirma a presença do divino no humano

e um conúbio do humano com o divino – o que justifica o fato de o autor de

Mundo enigma considerar que “A poesia é uma transubstanciação do leigo no

sagrado, do particular no universal, do humano no divino” (MENDES, 1994, p.

834).

Estudioso da relação entre o fenômeno poético e o transcendente,

Cornford (1981, p. 123), no livro Principium Sapientiae, aponta a natureza singular

do poeta como aquele que fala “a linguagem da profecia”:

Como homem entre os outros homens, o poeta está dependente do que ouve; mas, uma vez inspirado pelos deuses, tem acesso ao conhecimento duma testemunha ocular, ‘assiste’ aos feitos que ilustra. Na verdade, atribui-se às Musas os mesmos poderes mânticos do vidente, poderes que transcendem as limitações do tempo. Em Delfos tinham elas o seu santuário, onde as exalações subiam da fonte junto do velho templo oracular da terra, como ‘assessoras da profecia’, já que os oráculos eram proferidos em verso. A poesia era a linguagem da profecia.

Iniciado nos mistérios da criação e da enunciação poética, Murilo Mendes

(1994, p. 845) sabia da natureza excelsa da palavra: “Deus sempre se manifestou

poeticamente”. A linguagem que funda o mundo e que o traz à luz é a da poesia.

Ela igualmente é a geratriz do humano e originalmente seu canal de comunicação

e expressão do imanente e do divino, como afirmara Heráclito (1999, p. 75):

“Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”. O poema, como todo artefato

Page 64: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

64

artístico, nasce como uma confidência seminal e intrínseca, ao mesmo tempo em

que é uma revelação sobre a natureza das coisas e o sentido da existência. A

arte nasce como uma resposta às perguntas que não conseguimos responder,

como um diálogo com esse discurso silencioso e inefável que conecta o humano

e o divino.

O poético como expressão do divino é concebido como uma ponte para a

conexão do ser humano com o “indizível pensamento de Deus” (BLANCHOT,

2013, p. 119) e com os mistérios e verdades da realidade, que jazem recobertos

pelas cinzas do esquecimento ou turvados pela alienação humana. Assim, o

divino não é só um olhar e uma forma de ser, mas também de descoberta do

mundo e afirmação de um novo sentido, como brada Murilo Mendes (2015, p.

126) no seu “Poema hostil”, do livro As metamorfoses: “E grito: / O mundo é muito

pouco, / Trazei-me os antigos segredos”.

2.1. “O reino de Deus está em nós”

O acontecer do mundo seria a expressão da presença do divino em todas

as coisas. Somos parte desse acontecimento. Deus é esse milagre que anima e

vivifica cada partícula do cosmos, os viventes, as plantas, as fontes que formam

os rios e seus estuários – tudo pronuncia e clarifica essa presença criadora,

inapreensível e sempre viva. Nascemos desse acontecimento originário e, por

meio dele, nos constituímos e nos afirmamos como indivíduos e coletividade.

Interessado em compreender esse processo, Durkheim (1978, p. 224)

concluiu que “Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é

porque a ideia da sociedade é a alma da religião”. O sagrado, portanto, é uma

experiência intrínseca, simbólica e social determinante na constituição subjetiva

do ser humano e sua autonomia.

Na trilha do pensador francês, María Zambrano (1995, p. 37) considera que

o “aparecimento dos deuses” faz parte da experiência de autoconstrução

existencial do ser humano e que, sem o sentido do divino, seu processo de

Page 65: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

65

autonomização como ser no mundo, constituindo-se histórica e subjetivamente,

poderia não ter se cumprido: “Sem a manifestação do divino em qualquer das

formas que se tenha produzido, o homem não teria conseguido, por estranho que

pareça, essa sua visível, embora precária, independência”.

Os estudos recentes sobre a religiosidade, sobretudo a partir das

pesquisas de Georges Dumézil e Mircea Eliade, permitiram uma melhor

compreensão das “articulações fundamentais do fenômeno religioso para

identificar o comportamento, estruturas de pensamento, lógica simbólica e

universo mental do homo religiosus, que descobre o sagrado como uma realidade

absoluta” (RIES, 2017, p. 12). Sabe-se hoje que o pensamento científico e a

poesia nasceram da religião. Num de seus aforismos, de O discípulo de Emaús,

Murilo Mendes (1994, p. 845) aponta para esse nexo intrínseco do divino com o

poético: “Deus sempre se manifestou poeticamente”.

O senso religioso transcende o tempo, os credos instituídos, as

convicções políticas e as certezas estabelecidas pela racionalidade instrumental.

O filósofo Frédéric Lenoir (2013, p. 14), no livro Deus: sua história na epopeia

humana, considera que “O sagrado é algo mais universal e arcaico que a busca

espiritual” e que essa experiência diz respeito às incertezas da condição humana

no mundo e, ao mesmo tempo, a um estado de deslumbramento: “Os homens

sentem um grande medo, porque o mundo que os cerca é imenso e os ultrapassa

por completo (...). Reconhecer a imensidão do cosmos e emocionar-se com ele é

uma experiência do sagrado”.

Segundo essa percepção, o divino é uma presença viva e renovada no

mundo independentemente de qualquer conotação religiosa ou perspectiva

ideológica. Mendes (1994, p. 819) exprime seu ponto de vista sobre esse

entendimento de maneira elucidativa, considerando a experiência do sagrado

para além de qualquer definição histórica ou enquadramento geográfico: “O reino

de Deus está em nós. Não está sujeito ao tempo nem ao espaço”. Avulta nesta

máxima a ideia de eternidade, compreendida como uma dimensão do humano.

Embora essa questão tenha se tornado emblemática em seu discurso poético,

particularmente após sua conversão ao catolicismo, com a morte de Ismael Nery,

Page 66: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

66

ela já estava enunciada no livro inaugural de Mendes (2014c, p. 48), Poemas, de

1930, como se depreende do texto “Alma numerosa”:

Para subir tenho que largar esta pele multicor, feiticeiro de mim mesmo, alma penada, presa das formas exteriores, do cheiro, do movimento. Me desdobrarei em planos infinitos, estarei nos olhos da criança

[nascendo, na cabeça dos amantes, nos degraus do espaço, na última luz dos velhos morrendo, no sonho do místico, e em todos os lugares onde existir alguém sofrendo e amando.

O título evidencia dois aspectos marcantes de seu discurso poético e seu

posicionamento diante do mundo. A palavra “Alma” alude à espiritualidade – e

como substantivo, tem caráter nominativo: refere-se a uma “substância”

mentalmente apreendida que remete ao sopro criador e ao princípio da vida, e

tem natureza transcendente, o que explica o anseio manifesto de desdobrar-se

“em planos infinitos”; enquanto “numerosa”, como elemento delimitador do

substantivo, exprime a inquietude humana do eu lírico, sua multiformidade e

desassossego: “feiticeiro de mim mesmo, alma penada”. O primeiro elemento do

título, “alma”, remete ao divino; o segundo, “numerosa”, ao profano. Note-se a

oposição das duas linhas de força da lírica muriliana: uma, identificada com a

busca do infinito, como expressão da eternidade, sem tempo e sem espaço,

portanto, imóvel – e um dos pressupostos do essencialismo, defendido por Murilo

Mendes e Ismael Nery.

A segunda linha de força da poesia de Mendes se relaciona à condição

humana, precária, informe e aparente, por isso “presa das formas exteriores, do

cheiro, do movimento”. É uma face da existência a ser superada, segundo o

poeta, por meio de sua ascensão do plano terreno: “Para subir tenho que largar

esta pele multicor”; desdobrando-se para além dos limites do humano e se

corporificando na experiência do nascimento: “nos olhos da criança nascendo”; na

busca de um estado de transcendência: presentificando-se “nos degraus do

espaço”, “no sonho do místico”.

Há um traço no espiritualismo do escritor que o distingue dos místicos em

geral: sua profunda identificação com o ser humano e seu compromisso com a

sua redenção. Concebe a experiência do divino como algo imanente, enraizada

Page 67: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

67

no mundo – que se inicia no imediato vivenciado e se projeta na eternidade, como

resultado de um processo de aprimoramento constante. Isso explica o fato de o

sujeito lírico afirmar-se presente em situações genéricas e abstratas, como as

enumeradas na leitura do poema, e, ao final, voltar-se para os seres humanos e

solidarizar-se com suas contingências: o sujeito poético far-se-á presente “em

todos os lugares onde existir alguém sofrendo e amando”.

Esse posicionamento sugere a alteridade que marca o discurso e a atitude

de Mendes diante do real. É afirmativo, portanto, da natureza ética de sua poesia

e dialoga com o pensamento de Emmanuel Lévinas (2010, p. 242) e seu conceito

de espiritualidade como “responsabilidade por outrem” que, segundo ele, “É na

relação pessoal, do eu ao outro, que o ‘acontecimento’ ético, caridade e

misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou eleva acima do ser”. O

divino é um impulso e uma forma de sentir e perceber o mundo que se faz

presente e se realiza no diálogo entre os seres humanos.

2.2. O sagrado na tradição lírica brasileira

A poesia no Brasil tem início com a ação dos jesuítas, no século XVI, sob o

contexto da colonização portuguesa. Os padres da Companhia de Jesus tinham a

missão de cuidar da formação religiosa dos colonos e, ao mesmo tempo, da

conversão dos indígenas. Dentre os primeiros registros literários, merece

destaque, segundo Alfredo Bosi (2006, p. 18), “pela relevância literária, o de José

de Anchieta”. Sobressaem nos seus poemas, os temas religiosos cristãos,

poetizados com o propósito de doutrinar e consolidar a fé católica, mas que, como

defende Bosi (p. 19), “valem em si mesmos como estruturas literárias”.

O discurso poético de Anchieta define-se pelo predomínio do recorte

místico e pela linguagem simples, mas bem elaborada, concebida com uma nítida

intenção pedagógica. A clareza era indispensável para a transmissão dos

ensinamentos cristãos. O poema do “Do Santíssimo Sacramento” (ANCHIETA

apud MOISÉS, 2012, p. 19-20) é elucidativo desse propósito educativo:

Page 68: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

68

Ó que pão, ó que comida, ó que divino manjar se nos dá no santo altar cada dia! Filho da Virgem Maria, que Deus-Padre cá mandou e por nós na cruz passou crua morte, e para que nos conforte se deixou no sacramento para dar-nos, com aumento, sua graça, (...)

O tema retratado por Anchieta no poema é a eucaristia, em que o corpo de

Cristo, servido “no santo altar”, é o “divino manjar” para propiciar conforto e “dar-

nos com aumento, sua graça” – expressa na dádiva sacra do perdão.

Coincidentemente, esse será o tema do “Salmo nº 3”, de Murilo Mendes, escrito

três séculos depois e incluso no livro mais doutrinário e messiânico do poeta

mineiro, Tempo e eternidade.

A poesia de Mendes é tributária dessa linhagem da tradição lírica brasileira,

que foi se desdobrando e assumindo novas configurações estéticas e novas

abordagens temáticas ao longo do tempo. Após o período jesuítico, foi no Barroco

que o discurso espiritualista alcançou significação relevante, nos sermões de

Antônio Vieira e, especialmente, nos poemas sacros de Gregório de Matos. Essa

tendência teve ressonância no Romantismo, em particular no canto angustiado de

Junqueira Freire, atordoado pelos dilemas da culpa de seus impulsos sensuais

contrapostos por sua religiosidade.

Um dos momentos ricos dessa vertente de nossa literatura ocorre no

Simbolismo, com a emergência de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. O

primeiro, considerado o mais talentoso de nossos simbolistas, realizou uma obra

de forte componente transcendental, em que buscava se conectar com o infinito,

superando os limites da vida material – com suas dores e incompreensões, como

se depreende do poema “Cárcere das almas” (SOUSA, 2006, p. 204), em que a

existência é retratada como uma prisão: “Ó almas presas, mudas e fechadas /

Nas prisões colossais e abandonadas // (...) Que chaveiro do Céu possui as

chaves / para abrir-vos as portas do Mistério?!”. Alphonsus de Guimaraens,

Page 69: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

69

atordoado pela morte, aprofunda-se na sua espiritualidade cristã como

contraponto aos desenganos do mundo e realiza uma poética de conteúdo

místico, projetada para além da realidade e, portanto, etérea.

No modernismo, com a geração de 1930, a lírica espiritualista se tornou

uma de suas vertentes mais expressivas, com alguns dos nomes mais

representativos da poesia brasileira, entre eles Jorge de Lima, Cecília Meireles,

Vinicius de Moraes e especialmente Murilo Mendes, que elegeu o cristianismo

como expressão de seu senso religioso e fundamento de sua concepção de vida,

e de sua criação artística. Ao reconhecer o valor e o significado da obra de

Mendes, nesse contexto, Merquior (2013, p. 75) sustenta que “É preciso

compreender a religiosidade muriliana em seu rosto ambivalente e em seu

coração dilacerado de contrários (...) – para atribuir, com certeira justiça, a

condição de grande poeta religioso a Murilo Mendes”. A partir desses escritores, a

lírica espiritualista firmou-se como uma margem representativa da tradição

poética brasileira.

2.3. O essencialismo como caminho para a transcendência

Em 1931, Ismael Nery concluiu um de seus quadros mais expressivos da

concepção de mundo do grupo artístico que se reunia em sua casa e era

frequentado, entre outros artistas e intelectuais, por Mário Pedrosa, Jorge

Burlamaqui, Murilo Mendes, Guignard e Adalgisa Nery. O título é autorreferencial:

“Essencialismo”. Na obra estão expressas as linhas gerais de sua concepção

estético-filosófica e o pressuposto teológico que fundam o seu pensamento: a

abstração do tempo e a diluição do espaço, emoldurados por uma realidade

reduzida aos seus elementos essenciais. O elemento humano é concebido como

um ser em gestação; talvez por isso, descrito ainda envolto por uma placenta – ou

seria o sopro, a alma geradora? –, nascendo de sua condição finita.

A morte prematura de Ismael em 1934 foi um golpe para o grupo e resultou

na descontinuidade do movimento essencialista e na dispersão de seus membros.

O sistema estético-filosófico que pretendiam construir não vingou como corrente

Page 70: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

70

teórica. Faltou-lhe fundamento e desenvolvimento, embora algumas ideias que

norteavam as posições dessa confraria de artistas tenham sobrevivido em suas

práticas de vida e realizações artísticas. O caso mais notório dessa sobrevida do

essencialismo é o de Murilo Mendes, que o incorporou à sua concepção religiosa,

identificando-o com o cristianismo, como registra em Discípulo de Emaús (1994,

p. 872): “A vida essencialista cristã, restringindo as necessidades materiais, dilata

o espírito”. No quinto artigo sobre o legado de Ismael, publicado em 1948 e

enfeixado no livro Recordações de Ismael Nery, Mendes (1996a, p. 47-52)

rememora os debates e ideias que animaram o grupo de estudo:

o sistema essencialista é baseado na abstração do tempo e do espaço (...). Segundo o próprio Ismael, o sistema essencialista era em última análise uma preparação ao catolicismo (...). O mal do homem moderno consiste em fazer uma construção de espírito dentro da ideia do tempo. Ora, o tempo traz no seu bojo a corrupção e a destruição. A doutrina essencialista combate a desproporção. Prefere-se a uma sabedoria desproporcionada uma ignorância harmônica, porém deseja-se uma sabedoria harmônica (...). Felicidade para o essencialista é o único estado em que o homem poderá começar a compreender as coisas transcendentes – embora saibamos que muitas vezes a sabedoria é conseguida pela infelicidade (...). Deve um essencialista procurar manter-se na vida sempre como se fosse o centro dela, para que possa ter sempre a perfeita relação das ideias e dos fatos.

Manuel Bandeira (1996, p. 123), na sua conhecida Antologia dos poetas

brasileiros, volume os “Bissextos contemporâneos”, comenta a produção poética

de Ismael e faz um comentário esclarecedor sobre seu sistema de ideias:

o homem deve sempre procurar eliminar os supérfluos que prejudicam a essência a conhecer: a essência do homem é das coisas que só podem ser atingidas mediante a abstração do espaço e do tempo, pois a localização num momento contraria uma das condições da vida, que é o movimento.

O essencialismo, como uma concepção de mundo, fundada num forte

argumento de cunho existencial e filosófico, poderia ter tido maiores

consequências no processo cultural brasileiro se não tivesse arrefecido com o

desaparecimento de Ismael Nery.

Page 71: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

71

Ismael Nery, Essencialismo, 1931

A pintura de Ismael Nery é uma evocação dessa experiência de redenção

do humano e sua libertação pela reconciliação com sua espiritualidade,

simbolizando um renascimento. Observe-se que na cena o céu (retratado num

azul vívido) e a terra (em tons de ocre, esbatido pela luz) convergem para

testemunhar o grande milagre de renascimento do ser humano, simbolizado na

imagem, com nítidos traços expressionistas, com o peito fundido pela luz que

irradia na grande cicatriz que lhe absorve o coração. A dor que a ferida sugere

nos remete à pergunta angustiada de Santo Agostinho (2003, p. 274) nas suas

Confissões: “Que luz é esta que me ilumina de quando em quando e me fere o

coração, sem o lesar? (...), inflamo-me enquanto sou semelhante a ela”.

A tela de Ismael diz-se pela harmonia das massas de cores chapadas que

compõem os planos – em que o azul, no fundo, e o ocre de tonalidade

avermelhada, no primeiro plano, são unificados pelo amarelo refletido pelo sol, na

linha do horizonte. A luz atinge a figura pelas costas, iluminando-lhe os passos e

o caminho que se projeta à sua frente. Isso explica a sombra no seu rosto. O

cenário é despojado, sem a presença de elementos humanos ou referência

Page 72: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

72

geográfica. As nuvens e a luminosidade criam uma dissonância nos tons de cores

predominantes. O conjunto da composição, na maneira como o artista combina as

formas, matizes e temas, remete ao trabalho dos pintores Marc Chagall e Giorgio

de Chirico, especialmente na mescla das cores primárias, com o predomínio do

azul e do amarelo, e o recurso a fundos e cenários chapados.

Além da força imagética, há uma fala que pulsa nas formas, no gesto, no

movimento da personagem. Ela se apresenta no silêncio, na ausência de

referências a tempo e espaço. No ser ambíguo que empreende a sua busca e

nela vive sua metamorfose, a meio caminho entre sua condição humana e a

transmutação do corpo físico. O quadro exprime o fundamento do essencialismo:

abstração do real e congeminação do humano com a possibilidade de sua

transcendência e encontro com o divino. A análise do crítico Bernardo Guadalupe

Brandão (2009, p. 44), ao refletir sobre os aspectos marcantes da obra pictórica e

das ideias de Ismael, ajuda-nos na compreensão da pintura do artista:

A aplicação imediata do essencialismo à arte foi feita através da pintura (...). Competia à pintura achar o seu campo exclusivo, se quisesse sobreviver. E, para Ismael, esse campo era a ‘representação das ideias permanentes’ realizadas pela abstração essencialista. É por isso que encontramos frequentemente, nos seus quadros e desenhos, figuras humanas reduzidas a seus traços essenciais.

A atmosfera surrealista de Essencialismo dá ao quadro um tom enigmático

e simbólico: que destino aguarda o ser que, como um peregrino, palmilha a

paisagem agreste que o envolve? O que vê com seu olhar azul, projetado para

algo que não nos é acessível? Projetado nessa paisagem desértica, esse ser

espera pelo momento de sua revelação, em que o divino e o humano se

amalgamarão? Ou, como vislumbrou Murilo Mendes (1994, p. 760) em O sinal de

Deus: “O céu, o inferno – Deus! – A poesia da eternidade esclarecendo,

completando e ampliando a poesia do tempo”. O quadro de Ismael Nery, ao

mesmo tempo em que suscita uma discussão sobre seus aspectos estéticos e

filosóficos, propõe uma reflexão sobre o poético e o sentido da existência, ao

mesmo tempo em que lança luzes sobre o universo poético muriliano.

Page 73: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

73

2.4. Linguagem, forma poética e o sagrado

A poesia de Murilo Mendes dialoga com a tradição poética em geral,

especialmente com a de recorte metafísico. Ecoam, na tessitura de seus versos

temas, num estado de tensionamento permanente, expressões poéticas,

linguagem e imagética que remetem aos textos bíblicos e à lírica de cunho

celebrativo. Em seu processo criativo, Mendes retoma e atualiza a vertente

espiritualista da poesia ocidental e busca nos escritos sagrados referências para a

elaboração de seu canto.

Em alguns poemas, incorpora ao seu fazer poético formas literárias

consagradas na Bíblia, especialmente nos livros sapienciais e poéticos. Vários

textos têm estrutura de sermões, salmos, orações, provérbios, cânticos e

parábolas. É evidente na poesia de Murilo o espelhamento de conteúdos,

linguagens e procedimentos elaborativos de componente sacro. Isso em paralelo

à tematização de temas da cultura clássica, de caráter profano.

Esse traço da poética muriliana se traduz na atmosfera, no tom, no

conteúdo e, especialmente, na tessitura imagética de seus poemas. Esses

elementos estão relacionados, segundo o professor José Aderaldo Castelo (1999,

p. 243), com a formação da subjetividade do poeta, com os livros que lhe

determinaram a sensibilidade e com a influência do meio familiar católico:

Naturalmente, as leituras da Bíblia, com destaque aos salmos, Cântico dos Cânticos, Apocalipse, aos Evangelhos e das agiologias e da história sagrada são fontes de inspiração do poeta. Mas tudo indica que a gênese do seu sentimento religioso e do seu cristianismo se enraíza na infância/adolescência no seio de família ligada à nossa tradição religiosa.

Um traço marcante do discurso poético de Mendes para o qual Aderaldo

Castelo (1999, p. 240) chama a atenção e que aflora em diversos poemas é o

biográfico. Segundo o crítico,

acentuando traços da trajetória biográfica, ou seja, a relação entre infância/adolescência e outros compromissos do poeta com o momento histórico e literário e com a religião, impõe-se, sobre toda a sua obra, frequentes autodefinições dele mesmo: o que ele é, ou pensa ser, como se sente e ao que aspira (...) a auto-impressão da multiplicação de si mesmo, fragmentado no tempo e no espaço, assim perene e onipresente; a presença da mulher e a de Deus, que é a Eternidade,

Page 74: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

74

sinônimo de Cristo, enquanto ele mesmo, poeta, é síntese do homem através do tempo, predestinado ao reconhecimento do bem e do mal a proceder a separação de ambos (‘Alpha e Omega’).

O referencial biográfico, com ênfase na infância/juventude, é recorrente

na produção literária do autor. Isso se torna ainda mais significativo se

observarmos que, conforme avançamos nos anos, é como se fôssemos pouco a

pouco voltando ao porto da infância. Nesse sentido, é revelador o fato de Murilo

Mendes, no livro que fecha, em vida, o ciclo de sua produção poética,

Convergência, dedicar dois grafitos a esses motivos familiares: o primeiro, ao pai;

o segundo, à mãe, intitulado “Grafito na pedra de minha mãe” (2014b, p. 17), em

que rememora Elisa Valentina, falecida quando era criança, que o lançou no

mundo:

Catapultou-me da esfera do teu ventre Para este território ásperoanguloso Onde soou no espaço A primeira ruptura: tempo subtraído-te, (...)

No grafito à mãe biológica, o poeta reconhece-lhe o significado como a

fonte geradora da vida que o anima. Do “ventre’ de Elisa, foi lançado no mundo –

esse lugar de solidão e indiferente, em tudo o oposto do útero onde se sentia

acolhido. Esse fora, que é o real, é um “território ásperoanguloso”, onde vivencia-

se dores, o desespero de ser e as perdas. E muito cedo, Murilo Mendes

experimentou sua “primeira ruptura”: o tempo foi “subtraído” de Elisa. Sua mãe

partiu e essa dor “soou no espaço”.

Esse aspecto biográfico define igualmente o “Grafito na pedra de meu pai”

(2014b, p. 15). No texto, o eu poético retrata o segundo momento de sua vida

familiar, ressaltando os atributos paternos e registrando a presença de sua mãe

de criação, Maria José. O poema é de uma intensidade e beleza comoventes:

Tu foste Casa feita / paz / ternura Aberta para o mundo. Santo-e-senha distribuías A pobre, amigo, ignoto. Irônico / repentista / malincônico Eis tua marca maior: hombridade. (...)

Page 75: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

75

Tu & Maria José Montanhosa generosa Repartiam entre os oito O coração em fatias.

* Teu filho pródigo Polêmico giróvago Giralivros Anárquico alicaído Insoferente do século Acolhes preparando Perdão vitualha & serenim.

* Sem ti & Elisa não seriam: O Brasil A Bíblia Betelgeuse Maria da Saudade Mozart Dante Paul Klee O amor da liberpaz A página branca A Espanha

* Trabalhador da vida. Homem de aço & seda, sinto ainda pulsar Teu coração ecumênico.

O texto se define pela densidade e precisão da linguagem. A primeira

parada na incursão pelos seus meandros é no título: “Grafito na pedra de meu

pai”. O autor faz uso de três substantivos: “Grafito”, “pedra” e “pai”. “Grafito” é a

inscrição da mensagem, o poema, feito pelo sujeito poético “na pedra de meu

pai”. A pedra simboliza duração, força, resistência ao tempo e coesão. É a

memória do pai, encarnada e substantiva. O eu lírico esculpe seus versos e suas

lembranças da casa paterna no corpo do pai/pedra. Sugere-se, na forma como o

texto é concebido, que se trata de um epitáfio, em que o filho dirige-se ao pai para

registrar suas qualidades e sua gratidão. Reporta-se ao pai por meio do pronome

pessoal “Tu”. O verbo ser, “foste”, é elemento de ligação entre o sujeito, pai/TU e

seus atributos: “Casa feita / paz / ternura / Aberta para o mundo”.

Page 76: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

76

Nesta primeira parte do poema, enfatiza-se as vivências relacionadas à

figura paterna: sua bondade (“Santo-e-senhas distribuías / A pobre, amigo,

ignoto”). Na última estrofe desse primeiro segmento, rememora a relação conjugal

do pai com Maria José, sua segunda mãe. Mendes diz ter riscado do vocabulário

a palavra madrasta, em razão do amor que dela recebera. O eu poético

rememora a generosidade e cuidados de seus pais com os oito filhos: “Tu & Maria

José / (...) Repartiram entre os oito / O coração em fatias”.

Na segunda parte, o ser poético lembra sua relação com o pai,

apresentando-se como “filho pródigo”: “Teu”: “Polêmico / Giralivos / Anárquico (...)

/ Insoferente do século”, mas que, apesar de todos os percalços e desencontros,

o pai o recebe com compaixão: “Acolhes preparando / Perdão”. Nos sete versos

que compõem essa sequência, que corresponde à quinta estrofe do poema, estão

resumidos os predicativos e modos de ser e pensar do sujeito poético (“pródigo”,

“Polêmico”, “Anárquico alicaído”). No terceiro movimento do texto, rememora

aquela que o gerou – Elisa Valentina, que lhe possibilitou vir a este mundo e ser

brasileiro, cristão, encontrar sua esposa, Maria da Saudade, conhecer a arte

(Mozart, Dante, Paul Klee), a liberdade, a escrita (expressa na “página branca”) e

sua segunda pátria, a Espanha.

O poema possui uma estrutura circular. Após a enumeração de seu breve

itinerário, o texto se encerra, retomando-se o diálogo com o pai – retratado de

maneira ambivalente: trabalhador, forte e delicado (“Homem de aço / & seda”).

Apesar do tempo e da ausência, sente o pai vivo, pulsante em sua vida: “sinto

pulsar / Teu coração”, presente no mundo, universal – e por isso o qualifica de

“ecumênico”, personificando todos os pais.

“Grafito na pedra de meu pai” é um poema em que se ressalta o apuro da

linguagem e o rigor da sua arquitetura, estruturada a partir da superposição de

palavras, colagens de imagens, cenas, lugares, recortes da história familiar do eu

poético, que, segundo Sebastião Uchoa Leite (2003, p. 70), “São profissões de fé

de uma visão plural (convergência + divergências), e às vezes a profissão radical

de um certo fundamentalismo estético estrutural, uma crítica antiestetização do

real”.

Page 77: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

77

O processo de criação poética de Murilo Mendes (2014a, p. 251) se

constrói no decurso de uma longa elaboração e experimentação formal, que aflui

para a atomização de sua poesia, em que o impulso vital se funde à linguagem e

se mineraliza. Essa questão será recorrente em suas falas sobre seu método

criativo e sua compreensão do fenômeno poético:

Em minha poesia procurei criar regras e leis próprias, um ritmo pessoal, operando desvios de ângulos, mas sem perder de vista a tradição. Restringi voluntariamente meu vocabulário, procurando atingir o núcleo da ideia essencial, a imagem mais direta possível, abolindo as passagens intermediárias. Certo da extraordinária riqueza da metáfora – que alguns querem até identificar com a própria linguagem – tratei de instalá-la no poema com toda a sua carga de força.

O universo poético de Mendes é embalado por uma musicalidade que

plasma-lhe o canto, o movimento rítmico dos versos e o conteúdo. Um dos

estudiosos mais argutos da lírica muriliana, Lauro Escorel (2015, p. 132-133)

escreveu um artigo esclarecedor nesse sentido quando da publicação de As

metamorfoses, em 1944. O texto recebeu o mesmo título do livro e foi incluído na

reedição da obra, lançada em 2015. O ponto de vista do crítico é elucidativo do

diálogo recorrente entre o onírico e a realidade, marcante na criação poética de

Murilo Mendes:

É a música, de fato, que alimenta a imaginação do poeta, abrindo-lhe perspectivas super-reais, enriquecendo-o de visões oníricas, tornando-o sensível às confidências do invisível e animando-o a lançar-se à livre aventura da recriação poética do mundo (...). Murilo Mendes convive com as ficções, com os sonhos, com as imagens, com as “correspondências”, com as alucinações subjetivas, com os mitos, que povoam seu espírito e que dão à sua poesia uma auréola de irrealidade, embora sejam na verdade essenciais para que ele tome posse plenamente do real.

Essa recorrência de Mendes a elementos e formas de origens tão

diversos faz parte, segundo Escorel, de sua poética, fundada no anseio de

apreender o real em toda sua complexidade, desvelando-lhe os mistérios. A

poesia, portanto, é o despertar desse fogo que crepita nas palavras e que, com

sua luz, desvela o real e o próprio ser do homem, como declara o poeta de As

metamorfoses em entrevista concedida ao jornalista Homero Senna (1996b, p.

260), em 1945, intitulada “Lição de poesia”: “Ora, a poesia é uma coisa muito alta,

profundamente ligada ao destino transcendente do homem, é uma chave do

Page 78: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

78

conhecimento do universo, como a religião e a ciência, e não pode, portanto, ser

relegada à condição de um passatempo frívolo”.

O reconhecimento e conexão com o sagrado afirma-se como uma postura

e um meio de compreensão e interlocução com o real. Talvez, por isso, Murilo

Mendes (1994, p. 884) tenha afirmado que “O Cristo é uma pessoa coletiva”. Para

ele, Cristo é o mundo e, como parte desse todo, trazemos no mais profundo de

nós mesmos essa semente à espera do florescimento. Logo, poderíamos nos

questionar: qual o sentido e por que negar essa condição? Tudo não poderia ser

diferente se encarnássemos essa verdade como uma chave para o desvelamento

do que é vital e singular em nós mesmos? Essa possibilidade não poderia nos

levar a um convívio mais humano e tolerante? O poema “Salmo nº 3”

(MENDES,1994, p. 251-252), evidencia essas questões recorrentes na lírica

muriliana e as presentifica na imagem simbólica de Cristo revivida na eucaristia:

Eu te proclamo grande, admirável, Não porque fizeste o sol para presidir o dia E as estrelas para presidirem a noite; Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela, Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas; Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele, Seus animais, suas plantas, seus submarinos, suas sereias: Eu te proclamo grande e admirável eternamente Porque te fazes minúsculo na eucaristia, Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

Incluído em Tempo e eternidade, o livro mais cristão de Mendes, o título do

poema é uma indicação importante para a sua compreensão. O autor recorre a

uma forma poética lírica que se tornou clássica na tradição religiosa, dando

inclusive nome a um dos livros sapienciais da Bíblia – Salmos. Essa coleção de

cantos líricos constitui um Saltério, denominação que remete a duas origens

diversas: uma grega – Psaltérion, referente ao instrumento de cordas para

acompanhamento dos cânticos; outra hebraica – Tehillim, “hinos”. Entre os três

gêneros predominantes de salmos (hinos, súplicas e ações de graça), destacam-

se os “hinos”, que seguem certo padrão formal: iniciam com uma exortação a

Deus, em seguida a enumeração das razões do louvor, sua obra criadora e a

bênção da salvação concedida aos homens, concluindo-se com a retomada da

declaração de abertura.

Page 79: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

79

Murilo Mendes concebeu o “Salmo nº 3” segundo o padrão bíblico. Seu

lirismo se reveste de um caráter devocional, de evidente conotação religiosa. Sem

mencionar o nome de Deus, inicia seu ato exortatório por meio de um epíteto –

“grande, admirável”. O tom nos remete ao hino celebrativo de Enheduana. Para

reforçar sua natureza majestosa faz uso de um advérbio de negação – “não” – e,

em seguida, enumera seu poder criador: “fizeste o sol para presidir o dia”, o

tempo. Faz uso de uma figura de linguagem, litote, que afirma algo grandioso por

meio da sua negação – contribuindo, assim, para adensar e ampliar a

expressividade do texto. Essa sequência, em que o tom negativo é reiterado,

desdobra-se na enumeração dos feitos do Criador e justificam o louvor do eu

lírico: “Não porque fizeste” – “as estrelas”, “a terra”, “Frutos do campo, flores,

cinemas e locomotivas”, “o mar e tudo que se contém nele”.

Após esse plano, em que são destacados os prodígios e criações divinas, o

poema sofre uma interrupção na estrutura rítmica, retomando-se a exortação

inicial: “Eu te proclamo grande e admirável eternamente”. Note-se a ampliação da

declaração de abertura (“Eu te proclamo grande, admirável”), com o emprego do

advérbio “eternamente” para afirmar a majestade do criador.

A conclusão é surpreendente e de uma beleza plástica ímpar, pois a

atmosfera solene que envolve a tessitura dos versos concorre para um fato

particular e humano, mas, ao mesmo tempo, carregado de profundo simbolismo:

a eucaristia – experiência transfiguradora da presença divina neste plano, no

corpo e na alma de “qualquer um”, que, “mesmo frágil”, despojado de riquezas ou

qualquer emblema de poder, tem a possibilidade de reviver a redenção do filho de

Deus e reforçar seu compromisso pessoal com a salvação (“qualquer um, mesmo

frágil, te contém”). Pai, Filho e Espírito Santo se declaram no pão, no vinho e na

promessa redentora de resgate da humanidade, simbolizada na Trindade – que é

oferecida a todos no ato rememorativo da ceia sagrada.

A força da mensagem manifestada no poema tem como núcleo

desencadeador o verbo “proclamar”, que, pelo seu caráter transitivo, abre-se para

que o maravilhamento e os prodígios criados por Deus sejam anunciados. A

repetição do enunciado verbal – “Eu te proclamo” –, no início e na conclusão, dá

ao texto um caráter circular, de atualização e renovação da promessa divina.

Page 80: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

80

2.4.1. O salmo bíblico e a lírica muriliana

O “Salmo nº 3” de Murilo Mendes é uma releitura do “Salmo 145”, do Velho

Testamento, em que Davi louva seu “Rei meu Deus”, bendizendo-o pelos seus

atributos e atos. O texto bíblico se constitui formalmente como um hino de louvor,

em que são exaltados os prodígios de Deus num gesto de gratidão pela criação,

pelo perdão, pelos benefícios da vida e pela promessa de redenção.

O salmo de louvor tem como objeto de celebração Deus – e o “145” é um

dos exemplos paradigmáticos, o que justifica o fato de Mendes usá-lo como mote

para a criação de seu próprio hino para celebrar sua fé e aquele que a

personifica: Jesus Cristo – consagrado no pão e no vinho que é servido em sua

memória e para relembrar o seu sacrifício a favor da salvação dos seres

humanos. O eu lírico manifesta sua reverência pela celebração ritualística da

vitória da vida sobre a morte, representada no ato de “ação de graças” do filho de

Deus: “Porque te fazes minúsculo na eucaristia” (MENDES, 1994, p. 252).

O procedimento estético utilizado por Mendes para conceber seu poema é

a alusão, em que claramente glosa o salmo davídico, incorporando o tom

celebrativo, a força imagética e espelhando a própria linguagem da escrita bíblica.

O cotejamento dos versos que abrem os dois cantos, e que se desdobram nos

demais, não deixa dúvida da relação e diálogo do autor de O discípulo de Emaús

com o “Salmo 145”, do rei Davi (BÍBLIA, 2006, p. 1014-1015). Estudioso da

tradição judaico-cristã, Murilo Mendes processa intencionalmente o hino de Davi e

o adapta ao credo cristão. É nítida a similaridade e a contiguidade temática e

linguística, bem como o tônus poético que os ligam:

Eu te exalto, ó Rei meu Deus, e bendigo teu nome para sempre e eternamente. Eu te bendirei todos os dias e louvarei teu nome para sempre e eternamente. Grande é Iaweh, e muito louvável, é incalculável a sua grandeza. Uma geração apregoa tuas obras a outra, proclamando as tuas façanhas. Tua fama é esplendor de glória: Cantarei o relato das tuas maravilhas. Falarão do poder dos teus terrores, e eu cantarei a tua grandeza.

Page 81: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

81

(...) Realiza o desejo dos que o temem, ouve seu grito e os salva. Iahweh guarda todos os que o amam, mas destruirá todos os ímpios. Que minha boca diga o louvor de Iahweh e toda carne bendiga seu nome santo, para sempre e eternamente!

O salmista entoa seu canto, obedecendo o que reza a tradição dos hinos

de louvor: inicia exortando Elohim por meio de um epíteto, denominando-o “ó Rei

meu Deus”; o corpo do salmo é recheado com os feitos e maravilhas divinos, bem

como os motivos que mobilizaram a energia e o encantamento do sujeito poético:

“é incalculável sua grandeza”, “as tuas façanhas”, o “poder dos teus terrores”, a

proteção para “os que o amam” e a punição para “todos os ímpios”. A conclusão

assume o caráter de uma pequena prece em que manifesta o compromisso de

dizer louvores a “Iahweh / e toda carne bendiga seu nome santo, / para sempre e

eternamente!”.

Mendes e Davi celebram o criador segundo a perspectiva religiosa que

cultivam: o primeiro – exalta a figura de Cristo: presentificado no pão e no vinho

da eucaristia; já o rei hebreu – exulta Deus: imagem mosaica do “Rei” capaz de

façanhas grandiosas, fiador da salvação, mas vingativo com os que o ofendem e

caem na iniquidade. Os dois convergem na promessa de redenção e na garantia

da “eternidade” como emblema de uma existência vivida com justiça, amor e

bondade.

A transcendência, portanto, é uma experiência que nasce no plano terreno,

como fruto do bom e do justo, e se projeta no infinito. Simone Weil (2016, p. 56),

percebendo esse liame do humano com o inefável, concluiu que “O bem é a única

fonte do sagrado. Só o bem e o que lhe é relativo são sagrados”. Desse modo, o

divino se manifesta ao/no homem como expressão de uma força numinosa, esse

impulso supra-humano que nos excita e invade, e que se pronuncia

misteriosamente no real.

Page 82: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

82

2.4.2. Os hinos de louvor na tradição lírica

A compreensão do divino como parte constitutiva da condição humana e

forma de compreensão do mundo está na origem da própria poesia. Os primeiros

registros poéticos, entoados nas praças e templos da antiga Suméria, eram

avivados pelo sopro divino e iluminados pela fagulha criadora que desencobriu o

existente e o trouxe para a presença do seu brilho. Essa voz originária e esse

luminescer embebiam e animavam os hinos devocionais da poeta e sacerdotisa

sumeriana Enheduana, consagrados à deusa reinante de Ur, Inana, guerreira e

“bondosa mulher de coração radiante”.

Seu cantar laudatório, sincopado por repetições reiterativas da grandeza e

beleza da deusa, os epítetos veneráveis, as metáforas arrebatadoras, o

reconhecimento e o temor do poder punitivo da “Senhora suprema” da cidade

sagrada de Ur e “de todas as terras”, ecoará, ainda que submersos sob as

camadas do tempo, na poesia ocidental: nos cantos dos líricos gregos e nos

hinos, salmos e cantares da tradição judaico-cristã.

Os rapsodos da antiga Grécia, os salmistas e poetas hebreus e cristãos

reverberam não só a voz de Enheduana, mas também os procedimentos formais

que fixou ao conceber seus poemas, como se depreende de algumas estrofes do

hino a Inana (BORGES, 2014, p. 25-28):

Eu também gostaria de celebrar Os desejos bons da rainha da batalha, (...) Senhora, és grande, és importante, Inana, tu és grande, tu és importante, Minha Senhora, tua grandeza é manifesta, Que teu coração por mim “volte a seu lugar!” (...) No Gipar que determina meu destino, eu entrei por ti. Eu, a en-sacerdotisa, eu, En-hedu-ana, Equanto levava a cesta, entoei uma canção de júbilo. (...) Minha rainha – tornou-te maior, Tu te tornaste a maior! Minha rainha, amada de Na, Eu anunciarei toda tua ira! (...)

Page 83: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

83

Começo agora tua canção que determina o destino! (...) En-hedu-ana sou eu, e direi uma prece a ti. A rainha, a forte, que rege sobre a assembleia de en, aceitou a prece o sacrifício. O coração de Inana, senhora do destino, voltou a seu lugar.

A poesia de Murilo Mendes manifesta um nexo profundo e inquestionável

com essa tradição. O exame comparativo dos dois salmos analisados com o hino

dedicado a Inana (“Nin-me-sara”) evidencia os liames que unem as primeiras

manifestações poéticas, configuradas pelos poetas sumerianos, com os

desdobramentos posteriores da lírica no Ocidente, ao mesmo tempo em que é

uma confirmação do vínculo de continuidade da tradição da poesia ao longo dos

últimos cinco milênios, como registra Adorno (2003, p. 77) na “Palestra sobre

lírica e sociedade”, ao identificar esse curso de águas que brota do ventre do

tempo: “Uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica (...), pois

somente ela faz da linguagem o meio em que o sujeito se torna mais do que

apenas sujeito”.

O cotejamento do “Salmo nº 3”, de Murilo Mendes, o “Salmo 145”, de Davi,

e o “Nin-me-sara”, de Enheduana, é um exercício que ilustra como a linguagem e

as expressões poéticas evoluíram e, ao mesmo tempo, conservaram um nexo de

continuidade, sendo possível perceber procedimentos linguísticos, recursos

imagéticos, o tom, o ritmo e a atmosfera da lírica sumeriana nas tradições

poéticas posteriores.

A partir da análise e identificação da estrutura formal e da maneira como os

temas eram e continuam sendo abordados nos hinos de louvor, é possível

estabelecer a similitude e, assim, constatar a precedência estética de Enheduana

na fixação desse gênero poético:

1. Exortação (Invocação de Deus/Deusa):

– “Nin-me-sara” (Enheduana):

Eu também gostaria de celebrar Os desejos bons da rainha da batalha;

Page 84: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

84

– “Salmo 145” (Davi):

Eu te exalto, ó Rei meu Deus, e bendigo teu nome para sempre e eternamente;

– “Salmo nº 3” (Murilo Mendes):

Eu te proclamo grande, admirável, Não porque fizeste o sol para presidir o dia.

Embora alguns milhares de anos separem os textos, seguem o padrão

estabelecido no “Nin-me-sara”, inscrito em argila aproximadamente no ano de

2300 a.C., por Enheduana. Para efeito de registro e comparação, observe-se que

o salmo de Davi foi concebido provavelmente entre 1010 a 970 a.C. e o de Murilo

Mendes, em 1934.

2. Corpo (Descrição dos motivos do louvor e os prodígios da divindade):

– “Nin-me-sara”:

Senhora, és grande, és importante, Inana, tu és grande, tu és importante, Minha Senhora, tua grandeza é manifesta, (...) Minha rainha, amada de An, Eu anunciarei toda tua ira!

– “Salmo 145”:

Uma geração apregoa tuas obras a outra, proclamando as tuas façanhas. Tua fama é esplendor de glória: Cantarei o relato das tuas maravilhas;

– “Salmo nº 3”:

Eu te proclamo... Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela, Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas; Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele.

3. Conclusão (Retoma o padrão inicial ou entoa uma breve prece de

encerramento, agradecendo pelos favores da divindade e reconhecendo sua

majestade):

Page 85: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

85

– “Nin-me-sara”:

A rainha, a forte, que rege sobre a assembleia de en, aceitou a prece e o sacrifício. O coração de Inana, senhora do destino, voltou a seu lugar;

–“Salmo 145”:

Que minha boca diga o louvor de Iahweh e toda carne bendiga seu nome santo, para sempre e eternamente!;

–“Salmo nº 3”:

Eu te proclamo grande e admirável eternamente Porque te fazes minúsculo na eucaristia, Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

“Salmo nº 3” é um poema prenhe de tempo, memória e rastros de uma

mística rediviva conectada à história e à tradição religiosa ocidental, que, por

esses vínculos, conteúdo e expressividade poética, é emblemático da lírica e do

sentido do sagrado que plasma a poesia de Murilo Mendes. Nos dez versos que o

compõem estão encerrados os valores e fundamentos do Cristianismo, o sentido

poético do autor, sua compreensão humana do divino, seu compromisso com a

redenção do mundo e sua confiança e reverência pelo “grande e admirável” –

expresso na mensagem do discípulo que se encontrou com a verdade revelada

em Emaús e, assim, descobriu que “Cristo fundiu os tempos e descerrou a

eternidade” (MENDES, 1994, p. 869).

As palavras possibilitaram o espelhamento do ser humano e do real na

linguagem e no pensamento. E, pela linguagem, pensamento, emoção,

inventividade e poder encantatório, a poesia, esse espelho estilhaçado em que se

prefiguram o tempo e a memória, faz-se veículo não só da presença do divino na

existência, mas também do humano e seus anseios, sonhos e desejo de

felicidade. Por isso, a escrita foi uma das conquistas mais expressivas da

civilização, pois permitiu a fixação e a preservação do passado, bem como o

enriquecimento do patrimônio cultural da humanidade. Nesse particular, os livros,

desde as primeiras páginas de argila, foram veículos e repositórios desses

Page 86: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

86

saberes milenares que chegaram até nosso tempo, apesar das guerras, incêndios

e destruições.

A poesia é um testemunho e uma representação de nossa historicidade, e

nosso espanto diante do real e sua aparência multifacetada, nosso desassossego

com o que somos e com nossa condição incerta e precária. Ao tecer seu canto, o

poeta busca instaurar uma outra compreensão sobre a realidade, uma outra fala –

dissonante, singular e distinta da fala cotidiana, desgastada e esvaziada de seu

sentido primordial. O poeta João de Jesus Paes Loureiro (2017, p. 255)

problematiza esse caráter restaurador da linguagem e sua consubstanciação

poética: “Poesia é palavra original e fundadora, não apenas de todos os povos,

como também das culturas e religiões. Devoradora do agora em sua forma de

eternidade, ela confere ao poeta (...) a dupla dimensão de memória viva dos

povos e do vidente entressonhado por Rimbaud”.

2.5. Despertar e conversão em Murilo Mendes

Para Nietzsche (1996, p. 211), a historicidade humana é travessia,

passagem. E do ponto de vista individual – é ultrapassar-se. Isso fica claro

quando o autor de Assim falou Zaratustra afirma que “O homem é uma corda

sobre o abismo”. E como “corda”, uma passagem arriscada, sendo, assim, sua

própria ponte – ninguém pode cumprir esse papel em seu lugar. Na condição de

ser “a-caminho”, o perigo é o emblema de sua travessia: e a mais dramática e

decisiva para sua autorrealização é a que terá de fazer entre o “animal e o além-

do-homem”. A leitura que o filósofo faz da expressão “além-do-homem” está

associada ao ser humano que consegue ultrapassar os limites de sua

humanidade, mesmo tendo de confrontar-se com seu deus. Para ele, esse

confrontar-se é um ato amoroso.

Pela força inebriadora do amor, o homem pode elevar-se à condição

anunciadora do “relâmpago”, que, pela sua força desmesurada de elemento da

natureza, revela o além-do-homem. O relâmpago, como fonte luminosa, também

desencobre o que está oculto pela obscuridade. Essa imagem prenuncia o

Page 87: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

87

sentido de liberdade a que todo homem deve aspirar. O ato de libertar-se não é

pacífico, é espantoso e violento.

A percepção de Murilo Mendes sobre o seu processo de busca interior e de

significação existencial não é menos dramática e nem destituída de simbolismo,

como se depreende de “Novíssimo Prometeu”, de O visionário, com poemas

escritos entre 1930-33, e publicado em 1941. O título do poema é sugestivo de

seus fundamentos e remete aos dois heróis retratados: Prometeu, personagem-

símbolo da humanidade, por seu gesto de se insurgir contra os deuses, roubando-

lhes o fogo e oferecendo-o aos humanos. Sua saga apresenta elementos épicos

(seu embate contra Zeus) e dramáticos (expressos na sua queda, perda da

liberdade e seus questionamentos subjetivos sobre sua condição). Gilgámesh,

Zaratustra e Prometeu são figuras arquetípicas que personificam a irresignação, a

paixão humana e a busca de um novo estado de ser. São personagens de

movimento e passagem. O Prometeu, concebido por Mendes (1994, p. 237),

expressa propósitos (“acender o espírito da vida”) e ações denegatórias (“Me

rebelei contra Deus, / o papa, os banqueiros”) que o levam ao aprisionamento:

Eu quis acender o espírito da vida, Quis refundir meu próprio molde, Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos; Me rebelei contra Deus, Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga, Contra minha família, contra meu amor, Depois contra o trabalho, Depois contra a preguiça, Depois contra mim mesmo, Contra minhas três dimensões: Então o ditador do mundo Mandou me prender no Pão de Açúcar:

“Novíssimo Prometeu” é apresentado como uma presentificação

contemporânea do mito grego, adaptada ao contexto e circunstâncias históricas

de seu autor e identificada com seus valores e temas. A primeira estrofe abre com

o pronome pessoal “Eu”, com o sujeito poético se revelando de modo explícito, e

se desdobra numa gradação de posturas manifestas em que ele exprime seus

propósitos. Nos três primeiros versos, destaca-se o plano subjetivo – com seu

pronunciamento de intenções existenciais e ontológicas, definida pelo verbo

“querer” no pretérito perfeito: “quis” – “acender o espírito da vida” / “refundir meu

Page 88: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

88

próprio molde” / “conhecer a verdade dos seres”. O auxiliar modal “querer”

combina-se aos verbos principais no infinitivo (“acender”, “refundir”, “conhecer”),

tornando mais rigoroso o desdobramento da ação verbal que, como forma infinita,

não se refere propriamente à pessoa do discurso, mas reporta-se a uma ação que

se enforma para além do sujeito do enunciado. A sequência de versos é uma

denegação do eu lírico, a exemplo de Zaratustra, “contra Deus (...) o papa, os

banqueiros, a escola antiga”, afluem para o seu círculo particular: “minha família,

contra meu amor”. “Depois”, volta-se contra as obrigações e contra si: “o trabalho”

e suas “três dimensões”.

Num mundo que se rege não mais pelo registro dos deuses, mas de um

agente político ordenador, no caso, “o ditador do mundo”, seu gesto insurgente é

punido com a prisão “no Pão de Açúcar”. A referência à figura do “ditador” é

alusiva ao contexto histórico da década de 1930, dominado pelo poder

hegemônico soviético e alemão, espelhando o Estado Novo no Brasil. Espírito

libertário, Murilo Mendes exercitou por meio da poesia e de ações políticas sua

indignação contra Hitler, Stalin, Mussolini, Franco, figuras que encarnaram em

sua época o pensamento autocrático que repugnava. Além dessas questões,

realça-se no poema um traço marcante do discurso de Mendes: o humor e sua

intenção dessacralizadora. Um detalhe que merece registro é o uso no título do

adjetivo “Novíssimo”, delimitando de modo elevado o substantivo, “Prometeu”.

Como um atributo superlativo absoluto, “Novíssimo” indica que a qualidade

do ser extrapola a perspectiva comum que se tem dele – ao mesmo tempo

singular por não guardar semelhança com nenhum outro ser. Esse novíssimo

Prometeu, como figura personalíssima, encontra em Murilo Mendes, pela sua

postura irresignada, anseios de mudança e convicções libertárias, personificação

exemplar. A comparação entre o prometeu grego e nosso prometeu poeta é

emblemática: o herói da mitologia grega se insurgiu contra seus deuses para

empoderar o homem, dando-lhe o esclarecimento, simbolizado no fogo. Já o

nosso prometeu poeta luta pela redenção espiritual da humanidade e a

reconciliação dos seres humanos com o deus reinante judaico-cristão.

Page 89: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

89

2.5.1. A morte de Ismael Nery e a conversão de Murilo Mendes

A morte de Ismael foi impactante na vida de Murilo Mendes. Foi um evento

arrebatador, desarmonizando e pondo por terra o que parecia seguro. O teólogo

alemão Rudolf Otto denominava este fenômeno de Mysterium tremendum, que,

na sua força terrível, manifesta o numinoso, descortinando o impulso que

desencadeia o espanto e o sentimento religioso. O poeta John Donne (2007, p.

11) referia-se a essa experiência como o despertar da “brasa, um breve brilho de

imortalidade dentro de nós”, colocada por Deus.

Estudioso das implicações do sagrado nas relações sociais e humanas,

René Girard considera que o fenômeno da conversão é uma maneira de romper

com a circularidade do desejo e, assim, sacrificiar a carne sempre sedenta de

prazer. Ao mesmo tempo, considera que essa vitória sobre o corpo só é possível

pela intervenção divina, como ilustra o arrebatamento do apóstolo Paulo na

estrada que o levava a Damasco. Para o pensador francês (GIRARD, 2011, p.

188),

é preciso vivenciar essa mudança radical que os crentes chamam de “conversão”. Segundo a concepção clássica, a conversão não é voluntária; ela assinala a intervenção de Deus em nossa vida. Tal é, para um cristão, a experiência mais marcante: tornar-se crente sob a ação de uma força irresistível, que não pode provir de si próprio, mas unicamente de Deus. O que torna a conversão fascinante para aqueles que a vivenciaram (...) é a impressão de uma raríssima proximidade de Deus, que transtorna nossa vida.

O processo de conversão de Murilo Mendes, testemunhado pelo cronista

Pedro Nava e descrito por ele em detalhes, apresenta nítida correspondência com

a análise de Girard. O relato do memorialista mineiro compreende uma sequência

de acontecimentos, tendo como fato desencadeador a morte de Ismael Nery.

Esse testemunho rico e minucioso só foi possível porque Nava (1983), médico e

amigo de Mendes, acompanhou os momentos finais do pintor, como registra no

sexto volume de suas memórias, O círio perfeito. Para efeito de acompanhamento

e compreensão, estabeleci uma sequência para os acontecimentos, a partir da

descrição do memorialista, e nominei cada uma das partes:

Descrição da morte e breve notícia de uma vida:

Page 90: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

90

Esta veio às oito horas e quarenta minutos da noite de 6 de abril de 1934. Nascido em 9 de outubro de 1900, ele tinha 33 anos, 5 meses e 28 dias de uma existência vivida com intensidade e a exaltação de um extraordinário artista e homem integral na grande acepção do termo. Foi absolutamente devotado à sua arte e a uma ânsia permanente de indagação filosófica da vida e do mundo (...). Era um mestre, principalmente das cores tristes como o roxo, o violeta da paixão e do livor, o amarelo do ouro desmaiando, do branco absoluto e dos azuis de todas as castas – do mais celeste ao mais profundo, ao mais noturno – quase nerprum (p. 313).

Do velório e suas impressões:

Do velório de Ismael (...) guardou três impressões indeléveis. Do desespero de sua mãe que lembrava o das heroínas do teatro antigo (...). Da atitude exemplar de Adalgisa cuja dor era mostrada apenas pelo silêncio, pela imobilidade, pelo decorum da atitude, pelo espanto e pela palidez que a cobria (p. 313). (...) O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Nery e que ficou para sempre gravado na memória (...) foi a conversão instantânea de Murilo Mendes. Devia ser meia noite, talvez meia noite e meia e tudo tinha entrado na quietude e no silêncio que caem como um sudário logo depois das manifestações de Dora, estardalhaço e surpresa que causam numa casa a entrada e a presença da Morte. Esta a razão porque são transcritas aqui e circunstanciadas as ocorrências daquela noite de 6 para 7 de abril de 1934 (p. 314).

Murilo Mendes: a perda do amigo e sua conversão:

Na frente, o portão pelo qual, até tarde, entraram e saíram as nossas maiores personalidades da pintura, escultura e na literatura. Outros tinham entrado mais para o fundo, até o terreiro, um pouco para além do corpo da casa. Eram seu tanto numerosos e tinham como figura central o Murilo Mendes (...). Todos como cochichavam – abafados pela solenidade do momento. De repente uma fala começou a ser percebida. Parecia no princípio uma lamentação, depois um encadeado de frase tumultuando na excitação de uma palestra, que depois se elevou como numa discussão, subiu, cresceu, tomou conta do pátio feito um atroado de altercação e disputa, clamores como num discurso e gritos. Era o Murilo bradando no escuro. Era uma espécie de arenga, com fluxos de onda (...). Os do portão foram se aproximando numa curiosidade da roda estupefacta e calada em cujo centro um Murilo, pálido de espanto ou como de um alumbramento, gesticulava e se debatia como se estivesse atacado por sombras invisíveis. Só ele as via e aos anjos e arcanjos que anunciava pelos nomes indesvendáveis que têm no Peito do Eterno ocultos para todos os mais (p. 318).

O êxtase do encontro com o divino: a presença do numinoso:

Seus olhos agora cintilavam e dele todo desprendia-se a luminosidade do raio que o tocara. E não parava a catadupa de suas palavras todas altas e augustas como se ele estivesse envultado pelos profetas e pelas

Page 91: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

91

sibilas que estão misturados nos firmamentos da capela Sistina. Ele disse primeiro, longamente, de como sentia-se penetrado pela essência do Ismael Nery e seu espírito religioso. Falava dos anjos que estavam ali com ele – já não mais como as imagens poéticas que habitavam seus versos, mas do que se incorporavam nele que recebia também na dele a alma do amigo morto. Finalmente clamou mais alto – DEUS! – e com a mão direita fechada castigou o próprio peito mais duramente o coração (...). O Murilo não está nervoso (...). O que ele está é sendo arrebatado num êxtase e o que estou vendo é o que viram os acompanhantes na estrada de Damasco quando Saulo rolou do cavalo e foi fulminado pela luz suprema. É isto. Exista ou não essa luz e esse fogo – neles ou na sua impressão o Murilo acabou de encadear-se. Está se queimando todo nas chamas que descem como lavas do Coração paramonte de Jesus Cristo Nosso Senhor (p. 319).

Transfiguração e batismo espiritual:

Quando subitamente calou-se, o poeta retomou o velório do amigo (...) e foi assim e sem dizer palavra mais que ele acompanhou o corpo ao cemitério. Deste saiu sozinho e foi direto procurar os monges nas catacumbas do Mosteiro de São Bento. Quando três dias depois ressurgiu para os homens, tinha deixado de ser o antigo iconoclasta, o homem desvairado, o poeta do poema piada e o sectário de Marx e Lenine. Estava transformado no ser ponderoso, cheio de uma seriedade de pedra e no católico apostólico romano que seria até ao fim de sua vida. Descrevera volta de cento e oitenta graus. Sua poesia tornara-se mais pura e trazia a mensagem secreta da face invisível dos satélites (p. 319).

A experiência religiosa vivida por Murilo Mendes não foi uma mera adesão,

mas uma experiência arrebatadora motivada, segundo a concepção de Girard

(2011, p. 188) para esse tipo de acontecimento, pela “ação de uma força

irresistível, que não pode provir de si próprio, mas unicamente de Deus”. Foi algo

de tamanha profundidade e alcance que, confessa o ser poético, “mudou a

direção do meu olhar”. Sintonizado com o divino, não teme a morte, mas espera

“a integração do próprio ser definitivo / Sob o olhar fixo e incompreensível de

Deus”. A eternidade era o destino de Murilo Mendes (2015, p. 101) como deixa

evidente no sugestivo poemeto “A chave”, do livro As metamorfoses:

Onde estás eternidade Nasci para te encontrar Habituei-me à minha forma Já estou cansado de me ver Estou cansado de me interrogar De decifrar as mesmas cores E de acolher os mesmos sons

Page 92: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

92

Quero os novos elementos. Onde estás eternidade.

Há uma nota dissonante no canto peregrino de Murilo Mendes. Essa nota

deixa claro seu inconformismo diante dos limites impostos pela rigidez das

convenções sociais, da monotonia alienante do cotidiano – expressa no

conformismo (“Habituei-me à minha forma”) e insatisfação do eu lírico com sua

condição narcísica (“Já estou cansado de me ver”). Esse estado de saturação se

estende às inquietações interiores: “Estou cansado de me interrogar”. Ao mesmo

tempo, as imagens e estímulos que o cercam perderam o sentido e se tornaram

cansativas: “decifrar as mesmas cores” / “acolher os mesmos sons”.

A tensão vivida pelo ser poético se projeta na tessitura do poema e se

manifesta na oposição entre o anseio pela eternidade, concebida como o espaço

da cura do sofrimento, e a vida comum – repetitiva e insuficiente. No centro desse

torvelinho existencial, o poeta vive seu drama e vislumbra, na superação dos

limites impostos pelo espaço e o tempo, a possibilidade de conquista de uma

forma de existir nova e harmônica. Subentende-se que sua jornada tem como

propósito alcançar a eternidade, pois, como assinala, foi para encontrá-la que veio

a este plano. O canto rememora a odisseia do sujeito poético em seu desejo de

encontrar-se e possui uma estrutura circular, encerrando-se com a repetição do

primeiro verso: “Onde estás eternidade”. O tom interrogativo apenas sugerido, já

que não faz uso do sinal de interrogação, dá ao texto uma modulação

ambivalente.

Contrapondo sua forma de vida convencional, revela a vontade de

conquistar novos referenciais capazes de atribuir um sentido novo à sua

existência: por isso enfático, ao deslocar o tempo verbal, antes usado no passado

(“Nasci”, “Habituei-me”), para o presente: “Quero os novos elementos”. A

utilização da palavra “elementos” tem um propósito já que tradicionalmente

remetem às quatro substâncias (água, ar, terra, fogo) formadoras do universo. No

poema, o sentido de “elementos” refere-se ao cósmico, associado às forças

criadoras do existente e, portanto, intrinsecamente vinculado ao divino. O uso do

adjetivo “novos” deixa evidente que os “elementos” desejados não são os da

Page 93: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

93

ciência antiga, mas os espirituais, capazes de remir o homem de sua humanidade

precária.

Cabe ainda uma reflexão sobre o título do poema: o substantivo “chave”

não é apenas o objeto a que se refere, mas um símbolo de algo a ser realizado e,

ao mesmo tempo, instrumento para sua execução. Representa igualmente posse

e autoridade, o segredo que abre a porta para o conhecimento e a revelação de

algo que se procura, no caso prefigurado no texto: a “eternidade” – que na

antiguidade clássica era simbolizada alegoricamente por uma mulher segurando o

sol e a lua, numa clara representação da ordem no mundo e o reinado do tempo

infinito. Embora manifestasse essa crença na abolição do sofrimento e incertezas

da existência, figurada na eternidade, isso não era algo pacífico para Murilo

Mendes (1994, p. 829), como deixa evidente no aforismo 144 de O discípulo de

Emaús: “A eternidade será um tempo infinito – ou antes, um estado infinito?”.

2.6. Itinerário de uma busca ou as estações de uma vida

Numa das passagens mais expressivas de O arco e a lira, Octavio Paz

(2012, p. 42) considera que o ser humano é uma criação de si mesmo e seu

nascimento tem um ponto de inflexão no momento em que exercita a habilidade

da linguagem: “O homem é um ser que criou a si mesmo ao criar uma linguagem.

Pela palavra, o homem é a constante produção de imagens e formas verbais

rítmicas, é uma prova do caráter simbolizador da fala, de sua natureza poética”.

Essa percepção sobre o caráter genésico da linguagem é definidora do ato

poético. Os grandes criadores da poesia são mestres na arte de minerar as

palavras para que revelem seu brilho e sua pureza. Sabem, entretanto, que esse

ofício carece de exercício constante e pesquisa de novas modalidades de

expressão. O poeta é um iniciado nos mistérios do verbo e um experimentador

em busca de uma imagem, de um efeito sonoro ou de um arranjo linguístico ainda

não tentado, capazes de revelar um olhar novo sobre tudo o que existe,

iluminador e singular. Isso pode se constituir no trabalho de uma vida – como foi

para Murilo Mendes. Sua trajetória poética, seus livros, cartas e entrevistas

Page 94: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

94

testemunham essa busca para “Conhecer os limites da linguagem” e “fundar o

ser, próprio à palavra”, como registra no “Murilograma a Ungaretti” (MENDES,

2014b, p. 127).

O itinerário poético-existencial de Murilo Mendes é exemplificativo dos

compromissos do poeta com seu aprendizado e autoconstrução, como apontou

Haroldo de Campos (2017, p. 65-66) no ensaio “Murilo e o mundo substantivo”, ao

refletir sobre o seu processo criativo, sobretudo a partir da publicação de O

discípulo de Emaús. Segundo o crítico, o livro ilustra a transição, do autor de A

poesia em pânico, de uma dicção qualificativa para um registro poético fundado

no apuro da linguagem:

Pode-se dizer que o itinerário do poeta, a culminar no Tempo espanhol, de 1959, tem sido um longo empenho no sentido de transfundir essa posição teórica na prática de sua poesia (...). O dado mais significativo da poética muriliana de então (e não apenas desse livro, onde ele se intensifica, mas já de muitos poemas de obras anteriores) é a introdução da dissonância no campo da imagem.

Incansável na sua busca de autoconhecimento, compreensão do mundo e

aprimoramento artístico, Mendes alimentou ao longo dos anos uma atitude de

irresignação e postura de vanguarda, ao incorporar à sua fala poética novos

procedimentos criativos e, sobretudo, ao dialogar com outras manifestações

artísticas: a pintura, a música, a dança e o cinema. Esse posicionamento

anticonvencional e inquieto tem relação com o espírito iconoclasta do surrealismo,

que plasmou sua poesia e sua percepção do processo criativo. A leitura dos

primeiros livros do poeta evidencia essa margem expressiva de seu discurso

lírico.

Há um nexo próprio na poesia de Murilo Mendes, que se distingue do

habitual das convenções semânticas. Esse aspecto tem relação com o

fundamento experimental de sua poética. Antonio Candido (1986, p. 88-89), ao

analisar o poema “O pastor pianista”, de As metamorfoses, destaca o paradoxo

das imagens, do cenário, das cenas e objetos descritos, ressaltando-lhes o

choque e o insólito das relações dos mesmos com a realidade convencional.

Afinal, é improvável contemplar pianos soltos, pastando “na planície deserta” ou,

sendo apascentados, ouvir-lhes o grito do “antigo clamor do homem”. Atento a

Page 95: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

95

esses elementos, associados de forma incomum no texto, Candido considera que

“este nexo próprio se manifesta na natureza surrealista do poema, caracterizada

pelos desvios da função habitual de seres e objetos”.

Mendes agiu poeticamente, ao longo de sua trajetória, como um alquimista

das palavras. Sempre atento ao novo, às novas experiências no campo da

linguagem e das artes em geral. Isso sem descurar do conhecimento e estudo da

tradição, como um referencial inarredável no processo de compreensão do

humano e na criação artística. Essa avidez contribuiu para o enriquecimento de

sua poesia e seu amadurecimento pessoal e criativo. Ser contemporâneo era a

norma que o guiava na sua jornada, como sugere em “Texto de informação”,

poema que abre a terceira parte de Convergência (MENDES, 2014b, p. 137),

denominada sugestivamente de “Sintaxe”:

1 Noitefazes Ou diafazes? Noite redonda Cararredonda Ar voando: Sono da palavra Coisa-feita. Dia quadrado Caraquadrada Ar parando: Insônia da palavra. Coisa-fazes. Diafazes.

2 Tiro do bolso examino Certas figuras de gramática

de retórica de poética

Considero-as na sua forma visual Fora de função / no seu peso específico

& som próprio de palavras isoladas:

Oxímoron; anáclase. sinérese Sinédoque. anacoluto. metáfora Hipérbato. hipérbole. hipálage Assíndeto

3 Ponga, s.f. (Bras. Norte) Espécie de jogo. Consiste num quadri- látero de madeira ou papel em que se traçam duas diagonais e duas perpendiculares que se cruzam e em que se jogam dados.

Page 96: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

96

4 Inserido numa paisagem quadrilíngue Tento operar com violência Essa coluna vertebral, a linguagem. Esquadrinho nas palavras Meu espaço e meu tempo justapostos. E dobro-me ao fascínio dos fatos Que investem a página branca: Perdoai-me Valéry Drummond.

5 ... as palavras / coisas / são belas No seu vestido justo Criado por alfaiates-óticos

6 Eu tenho a vista e a visão: Soldei o concreto e abstrato. Webernizei-me. Joãocabralizei-me. Francispongei-me. Mondrianizei-me.

“Texto de informação” é um poema que se define pelo rigor da linguagem,

pela sua natureza subliminar, seu caráter metalinguístico e pela riqueza imagética

e temática. A reflexão que o embasa é o processo criativo, com ênfase na

composição do texto, em que submete as palavras à sua forja, como explicita no

quarto segmento: “Tento operar com violência / Essa coluna vertebral, a

linguagem. // Esquadrinho nas palavras / Meu espaço e meu tempo justapostos. /

E dobro-me ao fascínio dos fatos / Que investem a página branca:”.

Como um fino cirurgião, o foco de sua ação é a “coluna vertebral, a

linguagem”. Sem referir, recorre ao tema marcante de seu discurso lírico desde as

obras iniciais: a eternidade, sob nova roupagem. O eu poético não o perscruta

fora, nas suas relações exteriores, mas nas palavras, na justaposição do “espaço”

e “tempo” pessoais. O visionário, dos primeiros tempos, afeito às imagens

hiperbólicas e abstrações de conotações religiosas, cede lugar a um criador

fascinado pelos “fatos”, que se substantivam na “página branca”. Fecha essa

declaraçãode fé, na quinta parte, ressaltando a beleza das “palavras” entranhadas

pelas “coisas”, com a precisão dos “alfaiates-óticos” (que permitem, pelo

conhecimento da luz e do olhar, uma visão mais precisa das “coisas”):

Page 97: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

97

... as palavras / coisas / são belas No seu vestido justo Criado por alfaiates-óticos

Esse processo de substantivação da palavra só se tornou possível, como

esclarece, porque conseguiu ver além do que é visto e, por isso, uniu o “concreto

e o abstrato”. Como artífice da língua, o poeta precisa fazer-se senhor do seu

ofício e dominar as ferramentas da criação – os recursos estético-linguísticos

disponíveis para dar cor e vivacidade à sua fala: “Tiro do bolso examino / Certas

figuras de gramática / de retórica / de poética / Considero-as na sua forma visual /

Fora de função / no seu peso específico”.

A sombra de Nietzsche paira sobre o texto. Nos versos de abertura, há

uma interrogação: “Noitefazes / Ou diafazes?”. Nota-se uma alusão velada a

Apolo (dia) e Dionísio (noite) como símbolos da criação. A noite é o espaço do

onírico, do sono e do sonho criador: “Sono da palavra / Coisa-feita”. O dia é o

rotineiro, “quadrado”: espaço das obrigações sufocantes, em que a palavra não

descansa, insone, ocupada com os seus afazeres: “Coisa-fazes”. O dia se perde,

extraviado na alienação do trabalho e das ocupações ordinárias. O embate entre

os dois impulsos criativos é metaforizado na “Noite redonda” (“Ar voando”), o

dionisíaco, e o “Dia quadrado” (“Ar parando”), o apolíneo como o configurador dos

fazeres diários. Poeticamente, o eu lírico resolve esse impasse fundindo os dois:

“Soldei concreto e abstrato”.

Mendes engendra sua estética fazendo uso de procedimentos típicos das

artes plásticas e do cinema para arquitetar seu canto: corte, superposição,

montagem, como explicita Uchoa Leite (2003, p. 64):

A ideia de montagem/desmontagem, que, além do caráter plástico, traz consigo as ideias de corte, movimento e ritmo, que são as mesmas das artes visuais, sobretudo as narrativas, como o cinema, que dão a essa poesia o aspecto intenso de modernidade.

Por fim, um breve exame do título: “Texto de informação” é elucidativo das

intenções do sujeito poético em relação ao seu processo criativo. “Texto” – um

escrito, o encadear das palavras, o dizer da “vista” e da “visão” do criador.

“Informação” – notícia, uma comunicação: sua intenção de dar ciência da

mudança operada no seu registro estético, em que “o poeta foi transformando a

Page 98: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

98

realidade da linguagem na própria poesia do real para o qual sempre teve olhos e

ouvidos atentos. Entre linguagem e realidade passa a não mais existir obstáculos

intransponíveis”, conforme juízo acurado de João Alexandre Barbosa (1974, p.

136).

Num jogo metonímico surpreendente, sob a forma de uma homenagem,

explicita o cerne da “informação”: “Webernizei-me. Joãocabralizei-me. /

Francispongei-me. Mondrianizei-me”. O poeta declara sua opção por um registro

poético substantivo, fundado no rigor da linguagem, elucidando assim a referência

a artistas que se destacaram exatamente pela precisão formal com que

conceberam suas obras. Para dar conta desse processo de mudança, faz uso de

um artifício metalinguístico e gramatical, transformando os substantivos em verbo

reflexivo para indicar o incidir da ação verbal sobre o sujeito poético: João Cabral

(substantivo): “Joãocabralizei-me” (verbo).

Para efeito de verificação da mudança na concepção poética e no apuro

construtivo do autor, basta cotejarmos “Texto de informação” com um poema da

primeira fase de Murilo Mendes. É reveladora a distância que separa o poeta da

maturidade do jovem autor em busca de um caminho e um sentido norteador para

sua poesia. Vejamos a estrofe final de “A testemunha”, de Tempo e eternidade

(MENDES, 1994, p. 261-262):

Poeta, cobre-te de cinzas, volta à inocência, Impede que se derrame o cálice da ira de Deus, Tu que és a testemunha sustenta o candelabro, Monta o cavalo branco e reconstrói o altar Onde se transforma pão e vinho, Indica à turba as profecias que se hão de cumprir, Revela aos presos olhando através das grades Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo, Descerra os véus da Criação, mostra a face do Cristo.

Do ponto de vista do tom e da maneira como a linguagem é abordada, tem-

se a impressão de que se trata de um outro escritor. A semelhança, entretanto,

persiste no plano do conteúdo, com a prevalência de símbolos e imagens que

remetem ao universo religioso judaico-cristão: “cinzas” (dissolução/purgação),

“cálice” (sua forma alusiva ao transcendente), “candelabro” (luz da salvação),

“cavalo branco” (cavalo: movimento/vida, inconsciente, força cósmica; branco:

síntese, libertação – no livro do Apocalipse: é a cor dos que saíram da tribulação),

Page 99: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

99

“altar” (espaço da celebração/conexão com o sagrado), “pão e vinho” (corpo e

sangue de Cristo).

O tom retórico, característico do discurso religioso, é predominante no

poema. O eu lírico encarna a personalidade de um pregador – assumindo a

posição de um profeta, “a testemunha (‘que’) sustenta o candelabro”, com a

missão de despertar os incautos, “turba”, para “as profecias que se hão de

cumprir”. Como pregador, deve anunciar a boa nova: “o mundo será mudado pelo

fogo do Espírito Santo” e deve abolir “os véus” para que “a face do Cristo” seja

mostrada a todos.

A força expressiva de “A testemunha” está concentrada no plano do

conteúdo. Percebe-se que o foco do sujeito poético é a divulgação da mensagem

redentora do cristianismo e não o processo de construção da linguagem, que é

tecida com frouxidão. Essa tonalidade bíblica de sua fala, sem a precisão

cirúrgica necessária no trato da “coluna vertebral, a linguagem”, suscitou críticas

ao poeta em razão do que Sebastião Uchoa Leite (2003, p. 63) nominou de

“excessos messiânicos”.

A comparação dos dois poemas lança luzes sobre uma questão

fundamental do processo poético: a poesia não é uma questão de boa vontade e

nem deve se sujeitar a missões ou compromissos que não aqueles que lhe são

característicos e que a definem, como veio a reconhecer posteriormente Murilo

Mendes. “Poema de informação” retrata essa mudança do ponto de vista do poeta

e, embora evoque temas frequentes da lírica muriliana, exprime-os num outro

registro estético-linguístico, como destacou Barbosa (1974, p. 133):

o real, mesmo o da experiência religiosa, é agora, para o poeta Murilo Mendes, instaurado no plano da linguagem de forma não mais evanescente, como ainda acontecia em obras anteriores, mas pela própria construção dependente do poema.

A obra poética de Murilo Mendes pode ser analisada como uma biografia

de sua própria construção poética – em que estão marcados os rastros de seu

itinerário poético, com seus impasses, escolhas, princípios, experimentações

verbais, mudanças de perspectivas, tudo isso convergindo para o momento de

Page 100: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

100

sua plenitude como criador, quando percebe que “as palavras / coisas / são

belas”.

2.6.1. Virada estética na poética de Murilo Mendes

As sementes do desassossego, da inventividade e do desejo do novo

renovaram-se permanentemente no ser de Murilo Mendes. Do primeiro ao último

livro é notória essa sede de conhecer, essa ânsia de desvelar o mundo e o

desespero de compreender os desígnios de Deus. Sua poesia é seu testemunho

estético-existencial e uma metáfora desse jogo de espelhos em que o divino e o

humano se refletem, se imbricam e se repelem – mas, como contrafaces do

próprio homem, convergentes no processo de transfiguração poética da

existência.

Contra os apelos da conformação aos fundamentos de sua religiosidade,

seu lado dionisíaco o instigou sempre a manter-se em movimento, em busca de

novas formas de compreensão e expressão do poético. Ruggero Jacobbi (2014b,

p. 217), estudioso e tradutor de sua obra para italiano, destacou essa tensão

entre o contingente humano e o eterno que pulsa na tessitura de seus versos:

A poesia de Murilo Mendes se exprime em um espaço existencial que constantemente alude ao eterno, segundo uma dimensão religiosa, mas na realidade cheio da sua angústia cotidiana, do seu sangue. É dessa contínua presença das coisas terrenas que nasce a relevância amarga e forte da sua palavra, o impulso a frear o canto e a submetê-lo a metálicas, atrozes definições.

Essa inquietude e compromisso com seu ofício irão movê-lo no embate

pessoal pela renovação de sua linguagem e dos procedimentos de composição.

Esse processo resultou de uma longa depuração em que os primeiros indícios já

eram perceptíveis em obras como Poesia e pânico e As metamorfoses, embora

os críticos apontem como marco dessa ruptura os livros publicados a partir de

1945, com destaque para O discípulo de Emaús (Haroldo de Campos) e Os

sonetos brancos (Alfredo Bosi).

Page 101: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

101

Escritos entre os anos de 1936 e 1937, os poemas de Poesia e pânico

apresentam um intenso conteúdo de humanidade permeado pela dúvida, e por

um tom interrogativo e certo desconsolo em relação ao divino. No texto “O

estrangeiro” (MENDES, 1994, p. 302), esses elementos estão evidenciados. O eu

lírico se apresenta como alguém à margem, um gauche que não consegue se

adequar e ser ouvido: “Quem recolherá meu clamor, que justificará minha

existência?”. O impulso erótico, representado na figura da mulher, o persegue,

pois ela está “Em toda parte”, “até nas nuvens”: em seu delírio o próprio céu

assume o formato de um corpo feminino. Ignorado pela mulher e por Deus, vive

um estado de desconsolo – “o céu não me ouve”:

Em toda parte vejo esta mulher, até nas nuvens: O céu é um grande corpo azul e branco de mulher. Esta mulher não me vê, e o céu não meu ouve. Quem recolherá meu clamor, que justificará minha existência? Os que esperam por mim nos degraus das igrejas, No campo, na prisão, no hospital, no deserto, Morrerão sem me ver. Como espalharei consolo Se entravam meu andar, se algemaram meus pulsos E meu olfato febril já pressente as violetas. Se a ideia de semear para outra vida Pesa mais sobre mim que uma cortina de chumbo.

Nota-se em “O estrangeiro”, enfeixado em A poesia em pânico, certo

arrefecimento no messianismo de Murilo Mendes. A solidão e a incerteza

assaltam o sujeito: quem se importará com o seu sofrimento? Desalentado, faltará

ao encontro com os que o esperavam. Surpreendentemente duvida da sua

própria fé e da “ideia de semear para outra vida”, que pesa-lhe como “uma cortina

de chumbo”. Sebastião Uchoa Leite (2003, p. 64) foi certeiro na sua análise sobre

esse momento de fermentação na lírica muriliana:

incorporam-se elementos de problematicidade ‘demoníaca’ em A poesia em pânico (“A fulguração que me cerca vem do demônio”) e expande-se a sensibilidade ‘herética’ (...). E mais: acentuam-se as dualidades e os contrastes através das imagens ‘barrocizantes’.

Há uma mudança igualmente na tonalidade da linguagem. “O estrangeiro”

é vertido num registro menos dramático, sem o tom profético marcante em Tempo

e eternidade.

Page 102: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

102

As metamorfoses (1944), embora faça parte do recorte inicial da produção

poética de Murilo Mendes, identifica-se em muitos aspectos com traços que serão

marcantes nas obras publicadas depois de 1945. O cuidado com a linguagem é

um aspecto marcante desse livro. O sujeito lírico problematiza essa questão em

alguns poemas, em especial em “A criação e o criador” (MENDES, 2015, p. 61):

O poema obscuro dorme na pedra: “Levanta-te, toma essência, corpo”. Imediatamente o poema corre na areia, Sacode os pés onde já nascem asas, Volta coberto com a espuma do oceano. O poema entrando na cidade É tentado e socorrido por um demônio, Abraça-se ao busto de Altair, Recebe contrastes do mundo inteiro, Ouve a secreta sinfonia Em combinação com o céu e os peixes. E agora é ele quem me persegue Ora branco, ora azul, ora negro, É ele quem empunha o chicote Até que o verbo da noite O faça voltar domado Ao pó de onde proveio.

O poema sugere uma mudança de abordagem tanto do plano

composicional como no enfoque do tema. Superpõe-se um novo olhar que

procura equilibrar esses dois planos do texto. O livro tem um caráter enunciativo,

pois prefigura caminhos e conquistas que definirão os trabalhos futuros do poeta.

São tão evidentes esses atributos estéticos e a maneira singular de expressá-los,

que o professor Murilo Marcondes de Moura (2015, p. 140) considera ser As

metamorfoses “o primeiro grande livro da maturidade artística de Murilo Mendes,

sobrevindo mais de dez anos após uma trajetória bastante conturbada”.

“A criação e o criador” é uma reflexão sobre o processo criativo. A exemplo

da concepção do homem, elevado da terra, o poema adormecido “na pedra”,

levanta-se e toma “corpo” pela ação do poeta, assemelhando-se assim a Deus,

com poderes de criador. Revestido de vida, o poema lança-se na vida: toma

banho de mar, visita a “cidade”, como Jesus Cristo “É tentado e socorrido por um

demônio”. Abraça-se a Altair (aquele que voa/estrela guia) e vive a experiência

Page 103: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

103

miraculosa de ouvir “a secreta sinfonia”. Por fim, insurge-se contra seu criador,

enquanto espera “o verbo da noite” que o fará voltar “Ao pó de onde proveio”.

O texto é de uma sobriedade incomum, expresso numa linguagem

equilibrada e sem excessos. Esses atributos de apuro na arquitetura

composicional do poema guarda um nexo evidente com as grandes obras que

virão depois, especialmente com Convergência.

O “Murilograma a Nanni Balestrini”, destacado poeta experimental italiano,

um dos vários textos em Convergência sobre o ato criativo, é uma densa reflexão

sobre a palavra poética, o poema e o poeta. De forma ambígua, sem fechar

questão, num tom interrogativo, como se inquirisse o leitor, o eu lírico expõe seus

questionamentos e pontos de vista sobre a luta do criador com a linguagem para

trazer sua criação à luz. Murilo Mendes (2014b, p. 128) concebe seu murilograma

como uma poética:

Truncar a palavra / coisa Podá-la nas patas Estilhaçá-la consciente. A um engenho eletrônico Entregar o osso de um texto Que resultará noutro texto Cifrado: O do engenho eletrônico? (...) * Que é finalmente o poema: Palavra ou frase? Sem frase levanta-se palavra? * O poeta planifica O texto de linhas retas Não o que o texto quer. O texto não-total Será mesmo divisão: (...)

A discussão sobre a linguagem está no centro do poema. E o ato criativo é

retratado como um processo consciente em que o criador deve ter uma profunda

compreensão dos mecanismos da criação poética, evocada como um trabalho de

artesania, meticuloso e cirúrgico, em que “a palavra / coisa” deve ser podada “nas

Page 104: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

104

patas”, para que não se disperse. Forjar as palavras é ato de perícia, que exige

domínio dessa arte. E um texto, com sua ossatura, sempre enseja outros textos,

mesmo que por meios técnicos: “engenho eletrônico”.

A criação do poema é fruto desse embate complexo, tenso e paradoxal que

exige atitude, habilidade e sensibilidade por parte do poeta, pois a ele cabe

planificar o escrito, mantê-lo na rédea, podando-lhe as vontades e os excessos. O

que deve prevalecer não é a vontade do texto, mas o projeto definido no momento

da forja e “Não o que o texto quer”. Poeta e poema vivem uma confrontação

penosa e esquiva, mas inevitável para que se opere o milagre da poesia, que é

um processo de desencobrimento da verdade que liberta, mas sonegada ao

homem. Ou como diz João Alexandre Barbosa (1974, p. 126): “O exercício do

poema, do texto, é também necessariamente o exercício de uma leitura pelo

poeta dos objetos que se oferecem à sua circunstância”.

O viés biográfico, evidenciado na poética muriliana, constrói-se como uma

reflexão recorrente de sua vida, seus valores e seu processo criativo, em que os

fatos, as leituras, seu amadurecimento, as relações, viagens e descobertas vão

se articulando, formando um caleidoscópio matizado de formas, cores e sentidos

que compõem sua constituição existencial e subjetiva. Percebe-se, no percurso

de sua criação poética, sua atitude reflexiva, auto-avaliativa e de revisão de seus

conceitos e, sobretudo, de suas concepções estéticas. O poema “Grafito no pão

de açúcar” (MENDES, 2014b, p. 22-23) é uma síntese de seu percurso vivencial e

literário. O texto se configura a partir do registro dos acontecimentos e temas que

marcaram-lhe o ser e a sensibilidade:

No cume desta colina Nove bilhões de anos Contemplam-nos. Neste Rio descobri O Brasil / cruz e delícia Saudade minha amada. Neste Rio ásperofísico Nomeei-me poeta. Aqui conversei Ismael Nery Mestre / malungo máximo Entre canto gregoriano e jazz.

Page 105: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

105

(...) Daqui pude aferrar Picasso / Mallarmé / Strawinski Lutei com o Verbo encarnado. Matéria fui / para forma. (...)

* Senti crescer-me Comunicante O duplo fogo eternofísico Pai de todos e meu. (...).

* Do cume desta colina Contorno o BR acelerado retardado extrovertido coisificado Meu olho circular navega o mundo

Que aceito Malgrado mil ____________

O poema se estrutura como um testemunho autobiográfico em que pontua

passagens marcantes de seu itinerário. Imagético, o texto vai se descortinando, a

partir da indicação do lugar onde o sujeito poético se encontra: “No cume desta

colina”, o pão de açúcar, que o observa a partir de sua memória geológica de

“Nove bilhões de anos”. Composto em planos, como um filme, o cenário vai se

ampliando e se volta para o espaço urbano, o Rio de Janeiro, lugar vital de sua

trajetória pessoal, onde viveu fatos emblemáticos de seu existir: o despertar de

sua consciência histórica sobre o Brasil; sua fé, prefigurada na “cruz”, como

símbolo do cristianismo, e também o encontro da amada “Saudade”, ou melhor, a

escritora Maria da Saudade Cortesão, sua esposa. Fato significativo é que foi

neste “Rio ásperofísico” que se firmou como artista e, como afirma: “Nomeei-me

poeta”.

Nesse grafito autobiográfico, distingue aqueles que acresceram

significados e conhecimentos à sua formação: Ismael Nery, “Mestre / malungo

máximo”; os artistas aos quais se prendeu pelos valores estéticos e afinidade

criativa: “Picasso / Mallarmé / Strawinski” – mestres da inventividade. A referência

a eles denota sua perspectiva experimental do fazer artístico, que, como registra,

Page 106: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

106

nasceu de sua luta com o “Verbo encarnado”. Concebe-se como fundamento de

sua própria criação: “Matéria fui / para forma”.

Essa busca como criador e ser em desassossego, comprometido com o

sentido do sagrado no mundo, transfigurou-se no fortalecimento de sua fé,

crescendo como “O duplo fogo eternofísico”, retratado como o pai gerador de

todas as coisas, numa clara referência ao filósofo Heráclito, que acreditava no

fogo como elemento transformador, de onde tudo nasce. O fogo é fonte de luz,

associado ao divino, ao que reluz, que vence as trevas e simboliza, pelo seu

poder revelador, a transcendência da condição humana. O eu lírico retrata o fogo

como uma metáfora de Deus, de forma ambivalente e afirmativa do paradoxo de

tudo o que existe, mesmo o transcendente: é “eterno/físico”. O poeta reforça, a

todo momento, sua perspectiva imanente da espiritualidade. Sua crença no

divino/humano.

O poema foi concebido de forma circular. Na penúltima estrofe, retoma o

foco inicial: volta para o cume da colina, de onde contempla o Brasil/BR, conforme

certos atributos que o expressariam: “acelerado / retardado / extrovertido /

coisificado”. Nos versos finais, o eu lírico desloca seu “olho circular” e “navega o

mundo” – que aceita com desagrado, mas com energia: “Malgrado mil”. Sabe-se

limitado diante do mundo grande, “mil”, indeterminado. Pequena nau singrando o

oceano cósmico. Examina tudo com seu olhar esférico, abrangente – que, como

uma representação do círculo solar, simboliza o celeste, a perfeição e a

eternidade. Elementos definidores da poética muriliana.

A jornada de Murilo Mendes e sua conquista poética, como um dos

grandes intérpretes de nosso tempo, une três caminhos que se bifurcam: o da sua

busca pessoal por um sentido para o seu existir no mundo; a conexão com o

divino como porto e ancoragem face à precariedade da condição humana; e a

poesia como experiência demiúrgica de criação da beleza, de conexão com o

transcendente e, como professa em O discípulo de Emaús (MENDES, 1994, p.

833), “confere a investidura na universalidade, uma participação da linhagem

divina”.

Page 107: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

107

Considerações finais

Pois a mensagem sintética de Murilo é esta: a de

que a significação do mundo reside essencialmente

em seu dinamismo, e de que esse dinamismo, esse

movimento, consiste em nosso poder de alterá-lo,

ao arbítrio da nossa vontade criadora.

José Guilherme Merquior – “Murilo Mendes ou a poética do visionário”

A trajetória literária de Murilo Mendes compõe um traçado complexo de seu

processo de autoconstrução existencial e poética. Esse percurso foi construído

em consonância com seu compromisso social de trabalhar para construir um

mundo novo sob o signo de uma espiritualidade renovada e enraizada na vida.

Esse aspecto ético-político de sua práxis humana conecta-se a um

posicionamento inovador do ponto de vista criativo, sempre aberto às

transformações da realidade cultural e identificado com uma perspectiva

experimental de seu fazer poético, sem subestimar a contribuição da tradição. A

palavra é a sua ferramenta de trabalho e o instrumento de que faz uso para

dialogar e se esgrimir com a realidade, elaborando e compartilhando sua

mensagem.

O poeta, entretanto, sabia dos riscos que envolvem a experiência de

concepção da linguagem e que enseja a criação poética. Murilo Mendes tinha a

compreensão desses limites da comunicação, especialmente pelo excesso e

banalização da palavra em nossos dias. Cioso de seu propósito de chegar ao

sentido das coisas e expressá-lo de forma vívida e singular, apurou seu olhar e

sentidos para perceber o que estava submerso sob a superfície do aparente, pois

como assinala no “Murilograma a Ungaretti” (MENDES, 2014b, p. 127) é

imperativo afrontar “as palavras travestidas”. E “Assumir a palavra refratária /

Nossa única herança e território // Frioviolento, já extrair a coisa / Sinônimo de

palavras, revelando-a”.

O eu lírico compromete-se em não se contaminar pelo verbo fofo e

superficial e manter uma atitude insubmissa, protegendo-se sob o manto da

palavra que questiona, que se nega a ser apropriada pelo discurso dominante que

Page 108: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

108

a aliena e a esvazia de seu componente mágico e transfigurador. Assegurar-se de

que sua linguagem está protegida dos refolhos vazios e enganosos dos discursos

rotinizados é a condição para a concepção de um canto substantivo e revelador.

A palavra que não entrega seus segredos nos abre a porta da nossa “herança”

cultural e nos possibilita habitar o mundo e fundar um “território”, que é a própria

“palavra”.

Murilo Mendes (2014a, p. 255) compreendia a linguagem como

fundamento da “operação poética, afetividade e engenho construtivo”, e

considerava que “A missão particular do poeta consiste em desvendar o território

da poesia, nomeando as coisas criadas e imaginadas, instalando-as no espaço da

linguagem , conferindo-lhes uma dimensão nova”.

O estudo da lírica muriliana é uma confirmação desse compromisso

manifestado pelo poeta, ao longo de sua trajetória, de conceber uma obra capaz

de conservar sua singularidade, seu pressuposto ético-estético e uma

interlocução com o sagrado, entendida como uma experiência humana, possível

de ser vivida pelos homens no plano de suas vivências. Mendes concebia a

espiritualidade, conforme manifesta em seus poemas, aforismos, entrevistas e

artigos, como um acontecimento imanente capaz de contribuir para o

aprimoramento subjetivo dos seres humanos e ajudar na construção de um

convívio social baseado na tolerância e no respeito pelo outro.

A poesia de Mendes não é mero artifício poético ou um ato criativo que se

esgota em si mesmo, mas uma forma de expressão e diálogo com o mundo que

se traduz por meio de uma fala que se nega a capitular diante da banalização da

vida e busca no divino a investidura necessária para sua afirmação. O humano e

o divino, numa relação interlocutória ambígua e tensa, se amalgamam no discurso

poético do autor de O discípulo de Emaús, desdobrando-se num processo de

revelação de sua presença neste plano e de um aprendizado necessário para sua

elevação espiritual. O sujeito poético, segundo Mendes (2014a, p. 255), ao

conceber sua obra “escreverá, portanto, para manifestar suas constelações

próprias”.

Page 109: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

109

A concepção poético-filosófica do escritor funda-se num ponto de vista

religioso cristão, de componente católico. Mas, como é característico de seu

posicionamento estético, congemina os opostos em seu discurso poético. Por

isso, não soa contraditório quando afirma que sua “vocação é de universalismo, é

de pertencer ao mundo; ao Brasil, e ao mundo ao mesmo tempo; foi por desejo de

universalismo que eu me tornei católico” (MENDES, 2018, p. 186).

As considerações decorrentes deste estudo nos sugerem que o fenômeno

poético, como um processo de diálogo e apreensão do mundo, ao mesmo tempo

em que pressupõe uma “operação poética”, é também uma experiência de

compreensão capaz de oferecer elementos aos leitores e impulsioná-los em

direção a uma postura questionadora e de auto-entendimento diante da realidade.

Para Mendes, a poesia é uma importante forma de conhecimento e um caminho

possível de conexão do homem com o transcendente.

O poeta não estava só ao defender esse posicionamento. Ao refletir sobre

o tema, Gadamer (2010, p. 429) o apresenta de maneira significativa e considera

que o poeta tem um importante papel a cumprir na busca e revelação da verdade:

A tarefa do poeta consiste justamente em aspirar pela palavra verdadeira, que não é o teto protetor usual, como por sua verdadeira terra natal e, por isso, precisa destruir sílaba por sílaba a armação dos termos cotidianos. Ele precisa lutar contra a função desgastada, usual e encobridora da linguagem, uma função que a tudo nivela, a fim de liberar o olhar para o brilho lá em cima. Isso é que poesia.

Essa percepção aponta para a natureza do ofício do poeta, que não é outro

senão o de desvestir a linguagem de suas roupagens falseadoras. Nesse sentido,

a hermenêutica, como método de compreensão do texto, entendido como um

objeto inerente ao domínio da cultura e por ela determinado, cumpre um papel

auxiliar na construção de um entendimento e interpretação possíveis. A poética

de Murilo Mendes é construída sob essa perspectiva.

O discurso lírico muriliano alcançou esse nível de apuro e exigência em

razão da opção do poeta por uma relação com o texto e suas formas expressivas,

fundada na alteridade, em que criador e escrito se imbricam, questionam-se,

leem-se e se enunciam em sua tessitura verbal.

Page 110: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

110

Outro desdobramento significativo do exame das obras que compõem o

corpus desta pesquisa, reporta-se ao fato de que a religiosidade não é um fator

impeditivo de compreensão da condição humana e sua interlocução com o real,

mas se constitui numa maneira igualmente válida de reflexão, pois, ao ser

articulada e posta em ação, os mecanismos do pensamento se mobilizam como

ocorre nos demais procedimentos reflexivos. Assim, a suposta incompatibilidade e

superioridade da razão em relação à religião não teria sentido, como assinalou o

papa Bento XVI (HABERMAS/RATZINGER, 2007, p. 89) ao considerar a

possibilidade de uma “correlação polifônica na qual elas próprias possam abrir-se

à complementaridade essencial de razão e fé, de modo que possa ter início um

processo universal de purificação”.

Outra evidência é quanto ao fato de que a lírica de conteúdo espiritualista

se constitui numa das linhagens mais importantes e antigas da poesia. Há fortes

evidências de que o fenômeno poético se originou dos cantos celebrativos que

remontam à antiga Suméria, em que sobressaíram os poemas exaltativos de

Enheduana e a Epopeia de Gilgámesh, desdobrando-se séculos depois na lírica

grega e influenciando a poesia de diversas tradições, especialmente a hebraica e

os hinos bíblicos.

Embora o discurso lírico de Murilo Mendes apresente um arcabouço

cristão, seu conteúdo e fundamento expressivo, comprometido com a

compreensão do sagrado e o sentido primordial da vida, conecta-o a essa

linhagem milenar da poesia que busca estabelecer, por meio da linguagem

poética, um diálogo com o transcendente. Sua lírica apresenta, portanto, um

caráter espiritual e cósmico, que o poeta acreditava ser o futuro da arte da

palavra: “Podemos entretanto arriscar uma profecia: provavelmente se voltará a

acentuar o caráter ‘cósmico’ da poesia” (MENDES, 2014a, p. 248).

É possível igualmente identificar, no âmbito da literatura brasileira, vínculos

entre a poesia de Murilo Mendes e a vertente religiosa de nosso discurso lírico.

Muitos estudiosos têm apontado como momento inicial desse segmento poético a

obra de José de Anchieta, ainda que marcada por evidente conteúdo doutrinário

católico. Essa tendência desdobrou-se e teve prosseguimento na poesia sacra de

Gregório de Matos, na lírica de conteúdo reflexivo sobre o sentido da existência

Page 111: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

111

de Junqueira Freire e especialmente na obra dos simbolistas, com destaque para

Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. No contexto do modernismo,

sobressaem os autores da segunda geração, identificados com um discurso lírico

de componente existencial, espiritualista e tom questionador sobre a condição do

ser humano: Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e o próprio

Murilo Mendes. Contemporaneamente, Adélia Prado é a representante mais

destacada dessa tradição poética.

O cotejamento dos livros e a análise do processo criativo de Murilo Mendes

evidenciam uma mudança na sua construção poética, marcada por um rigor

crescente no tratamento da linguagem e na forma de estruturar o texto poético.

Essa alteração no curso de seu processo criativo foi notada inicialmente pelo

crítico Haroldo de Campos que apontou para uma crescente substantivação de

seu discurso poético. Ponto de vista reiterado igualmente pelo professor Alfredo

Bosi. O ensaísta José Guilherme Merquior (1976, p. xvii), no ensaio “À beira do

antiuniverso debruçado ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes”, ressalta

que “O estilo muriliano assume depois da Guerra uma direção classicizante,

análoga à que conheceram o Jorge de Lima de Invenção de Orfeu e o Drummond

de Claro enigma”.

Esse processo marca o distanciamento de Mendes do messianismo que

caracterizou sua poesia nos anos de 1930, especialmente no livro Tempo e

eternidade. Percebe-se, a partir das obras Poesia em pânico, As metamorfoses e

Mundo enigma, uma mudança não só no tom de seu discurso lírico, mas uma

atenção maior com a linguagem de sua escritura poética, que se torna menos

dramática e menos retórica. Os estudiosos de sua poesia apontam que, depois de

O discípulo de Emaús, sua produção literária assume novo feitio, com um registro

estético mais rigoroso.

A culminação dessa nova experiência criativa de Murilo Mendes atingirá

seu ápice com o livro Convergência, publicado em 1970, e apontado pelos críticos

como sua obra mais significativa em termos de reflexão e elaboração poética. O

livro, como destaca Sebastião Uchoa Leite, é de uma precisão e densidade

incomuns. A professora e crítica italiana Luciana Stegagno-Picchio (2004, p. 547)

avalia esse processo vivido pelo poeta e considera que

Page 112: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

112

nesse sentido, rigorosamente epistemológico, a poesia de Murilo, às vezes, se faz metapoesia: mas não há jamais a torre de marfim, o poeta cinzelador, hedonisticamente satisfeito com seu artesanato. Se o texto a interpretar é o mundo e o meio cognoscitivo a linguagem, o ofício do poeta é fazer-se contemporâneo de todo acontecimento, sofrer e gozar, em primeira pessoa, as dores e as alegrias da humanidade, permanecer sempre de vigia entre as intempéries.

Considera-se, por fim, que o processo de busca de Murilo Mendes não se

limitava ao plano de sua religiosidade, mas encontrava expressão pungente na

construção de seu discurso poético e na maneira como foi substantivando sua

linguagem. Nesse percurso, a palavra passa a ser o espaço de representação do

existente e das preocupações existenciais do autor. Nesse amalgamento as

palavras dialogam com o mundo e o contêm, como declara João Alexandre

Barbosa (1974, p. 136): “o poeta foi transformando a realidade da linguagem na

própria poesia do real para o qual sempre teve olhos e ouvidos atentos. Entre

linguagem e realidade passa a não mais existir obstáculos intransponíveis”.

Murilo Mendes é o criador de uma poesia vívida, aberta para a vida e

receptiva às novas experiências no âmbito da linguagem e sua construção. Por

isso é considerado um poeta experimental e inovador, ou, como preferia, um

contemporâneo de si mesmo. Sua mensagem de humanidade e reconciliação,

sua confiança no divino como caminho e possibilidade de um reencontro do ser

humano com sua essência, bem como a espiritualidade como um modo de ser no

mundo, capaz de nos ajudar a compreender a complexidade de nosso existir, são

pressupostos que podem contribuir para uma convivência humana baseada na

compaixão e no acolhimento e reconhecimento do outro.

Essa compreensão do poeta baseava-se no entendimento de que a palavra

é portadora de uma potência adormecida que pode ser despertada pela força

evocativa e transfiguradora do verbo, como comenta em carta recolhida por Laís

Corrêa de Araújo (2000, p. 191), datada de 9 de abril de 1969: Qual será o futuro

da poesia, não sei; espero que não seja o da ecolalia e do monossilabismo (...)

mas creio ainda na tentativa de se combinar humanidade, experimentalismo e

concisão”.

Page 113: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

113

Referências

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo:

Duas Cidades & Ed. 34, 2003.

ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES; HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad.

Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. 3 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.

ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia,

correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.

BANDEIRA, Manuel (Org.). Antologia dos poetas bissextos contemporâneos. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica. São Paulo: Editora Perspectiva,

1974.

BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2010.

BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho, Ivo Storniolo et alii.

São Paulo: Paulus, 2006.

BÍBLIA. Novo Testamento: Apóstolos, Epístolas, Apocalipse. Trad. Frederico

Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

BLAKE, William. O Matrimônio do Céu e do Inferno & O Livro de Thel. Trad. José

Marcos Macedo. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 2. ed. São

Paulo: Editora Martins Fontes, 2013.

BOÉCIO. Consolação da Filosofia. Trad. Willian Li. São Paulo: Martins Fontes,

1998.

Page 114: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

114

BORGES, Márcio. Cartas da humanidade: civilização escrita à mão. Cinco mil

anos de história em 141 cartas imemoriais. Trad. Márcio Borges. São Paulo:

Geração Editorial, 2014.

BOSI, Alfredo. Céu, inferno – ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo:

Editora Ática, 1988.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 45. ed. São Paulo: Cultrix,

2006.

BRANDÃO, Bernardo Guadalupe S. L. “Essencialismo de Ismael Nery”. In: Ismael

Nery e Murilo Mendes. Org. Leila Maria Fonseca; RODRIGUES, Marisa Timponi

Pereira. Juiz de Fora/MG: UFJF/MAMM, 2009.

CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, contraverso. 2. ed. São Paulo:

Perspectiva, 2009.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas – ensaios de teoria e

crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.

CANDIDO, Antonio. Na sala de aula – caderno de análise literária. 2. ed. São

Paulo: Ed. Ática, 1986.

CANDIDO, Antonio; CASTELO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira –

história e crítica. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

CASTELO, José Aderaldo. A literatura brasileira – origens e unidade. São Paulo:

Edusp, 1999.

CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. Trad. José Luiz Archanjo.

São Paulo: Cultrix, 1994.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. Trad. Ruben Eduardo Ferreira

Frias. São Paulo: Ed. Moraes, 1984.

CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico

grego. Trad. Maria Manuela Rocheta dos Santos. 2. ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1981.

Page 115: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

115

DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas ciência humanas. São

Paulo: Editora Unesp, 2010.

DONNE, John. Meditações. Trad. Fabio Cyrino. São Paulo: Editora Landmark,

2007.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Carlos Alberto

Ribeiro de Moura. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério

Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ESCOREL, Lauro. “As metamorfoses”. In: MENDES, Murilo. As metamorfoses. 2.

ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

FLUSSER, Vilém. Da religiosidade – a literatura e o senso de realidade. São

Paulo: Escrituras Editora, 2002.

FOUILLOUX, Danielle et alii. Dicionário cultural da Bíblia. Trad. Marcos Bagno.

São Paulo: Edições Loyola, 1998.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma

hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008.

GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Trad. Marco Antônio

Casanova. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

GIRARD, René. A conversão da arte. Trad. Lília Ledon da Silva. São Paulo: É

Realizações, 2011.

GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. Trad. Ana Claudia de Oliveira. 2. ed.

São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.

GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1963.

GUIMARÃES, Júlio Castañon. Murilo Mendes. São Paulo: Editora Brasiliense,

1986.

Page 116: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

116

HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph. Dialética da secularização – sobre

razão e religião. Trad. Alfred J. Keller. São Paulo: Ideias e Letras, 2007.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão;

Gilvan Fogel; Marcia Sá Cavalcante Schuback. 2. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante

Schuback. 4 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 4. ed.

Petrópolis: Vozes, 2009a.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. 3 ed.

Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2009b.

HEIDEGGER, Martin. Explicações da poesia de Hölderlin. Trad. Claudia Pellegrini

Drucker. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013.

HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. 5. ed. São Pulo: Editora Iluminuras,

2003.

HÖLDERLIN. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das

Letras, 1991.

HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics

Companhia das Letras, 2003.

HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics

Companhia das Letras, 2011.

JACOBBI, Ruggero. “Murilo Mendes e o pão subversivo da paz”. In: MENDES,

Murilo. Convergência. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2014b.

JUNQUEIRA, Maria Aparecida et alii. “‘Gosto do seu silêncio, da sua maneira de

não dizer’: a poesia do entre-lugar”. In: Poesia: entre-lugares. São Paulo:

Dobradura Editorial, 2016.

Page 117: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

117

KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia: o berço da civilização. Trad. Genolino

Amado. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.

KRIWACZEK, Paul. Babiblônia:a Mesopotâmia e o nascimento da civilização.

Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2018.

LEITE, Sebastião Uchoa. Crítica de ouvido. São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2003.

LENOIR, Frédéric. Deus: sua história na epopeia humana. Trad. Véra Lucia dos

Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

LÉVINAS, Emmanuel. Ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Pivatto et al.

5. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Encantarias da palavra. Belém: Ed. Ufpa, 2017.

MAOMÉ. Nobre Alcorão. Trad. Helmi Nasr. Al-Madinah Al-Munauarah/Arábia

Saudita: Complexo de Impressão do Rei Fahd, 2014

MENDES, Murilo. Antologia poética. Lisboa: Livraria Morais & Círculo de Poesia,

1964.

MENDES, Murilo. Antologia poética. Org. João Cabral de Melo Neto. Rio de

Janeiro: Editora Fontana, 1976.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. 2. ed. São Paulo: Edusp; Ed.

Giordano, 1996a.

MENDES, Murilo. Lição de poesia. In: SENNA, Homero. República das letras –

entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira; Universidade do Vale do Paraíba, 1996b.

MENDES, Murilo. Antologia poética. Org. Júlio Castañon Guimarães e Murilo

Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2014a.

Page 118: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

118

MENDES, Murilo. Convergência. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014b.

MENDES, Murilo. Poemas. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014c.

MENDES, Murilo. As metamorfoses. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

MENDES, Murilo. Poliedro. 2. ed. São Paulo: Editora Companhia das Letras,

2017.

MENDES, Murilo. A idade do serrote. São Paulo: Editora Companhia das Letras,

2018.

MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antiuniverso ou introdução livre à

poesia de Murilo Mendes”. In: Antologia poética. MENDES, Murilo. Rio de Janeiro:

Fontana, 1976.

MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. 3. ed. São Paulo: É Realizações,

2013.

MESTRE ECKHART. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Trad.

Fr. Raimundo Vier et alii. 6. ed. Bragança Paulista/SP. Ed. Universitária São

Francisco, 2006.

MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 29 ed. rev. e ampl.

São Paulo: Cultrix, 2012.

MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: a poesia como totalidade. São

Paulo: Edusp, 1995.

MOURA, Murilo Marcondes de. “Os jasmins da palavra jamais”. In: Leitura de

poesia. Org. BOSI, Alfredo. São Paulo: Ática, 2001.

MOURA, Murilo Marcondes de. “Posfácio”. In: MENDES, Murilo. As

metamorfoses. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

MUNCK JUNIOR, Edson. “A heterodoxia muriliana na dança com o sagrado”. III

Jornada Interna PPG Letras – Estudos Literários UFJF. Juiz de Fora/MG: UFJF,

2012. Acessada em 2 de julho de 2018.

Page 119: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

119

NAVA, Pedro. O círio perfeito – memórias VI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1983.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.

São Paulo: Nova Cultural, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2.

ed. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

NOVALIS. Fragmentos de Novalis. Trad. Rui Chafes. 2. ed. Lisboa: Assírio &

Alvim, 2000.

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2007.

NUNES, Benedito. A clave do poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua

relação com o racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis/RJ: Vozes; São

Leopoldo/RS: Sinodal/EST, 2007.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman; Paulina Wacht. São Paulo:

Cosac Naify, 2012.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Hélade: Antologia da cultura grega. Trad.

Maria Helena da Rocha Pereira. 2. ed. Porto: Asa Editores, 2005.

PEREIRA, Maria Luiza Scher & SILVA, Teresinha Vânia Zimbrão (Orgs.).

Imaginação de uma biografia literária: os acervos de Murilo Mendes / Chronicas

Mundanas e outras crônicas: as crônicas de Murilo Mendes. Juiz de Fora: Editora

UFJF, 2004.

PLATÃO. Íon. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: O discurso e o excesso de significação.

Trad. Artur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987.

Page 120: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

120

RICOEUR, Paul. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Trad. Alcino

Cartaxo; Maria José Sarabando. Porto, Portugal: Rés-Editora, 1989.

RYKEN, Leland. Formas literárias da Bíblia. Trad. Sandra Salum Marra. São

Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017.

SAFO. Fragmentos completos. Trad. Guilherme Gontijo Flores. São Paulo: Ed.

34, 2017.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos; A. Ambrósio de Pina.

20. ed. Bragança Paulista/SP: Ed. Universitária São Francisco, 2003.

SENNA, Homero. República das letras. Entrevistas com 20 grandes escritores

brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

SOUSA, Cruz e. Antologia poética. São Paulo: Ática, 2006.

STEGAGNO-PICCHIO. Luciana. História da literatura brasileira. 2. ed. rev. e

atualizada. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004.

TSVETÁEVA, Marina. O poeta e o tempo. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. Belo

Horizonte: Editora Âyiné, 2017.

VIEIRA, Trajano. Lírica grega, hoje. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed.

Perspectiva, 2017.

UNNÍNNI, Sin-léqi-. Epopeia de Gilgámesh – Ele que o abismo viu. Trad.

Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.

VIEIRA, Trajano. Lírica grega, hoje. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed.

Perspectiva, 2017.

WEIL, Simone. Pela supressão dos partidos políticos. Trad. Lucas Neves. Belo

Horizonte: Ed. Âyiné, 2016.

ZAMBRANO, María. O homem e o divino. Trad. Cristina Rodriguez; Artur Guerra.

Lisboa: 1995.

Page 121: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

121

ANEXO: POEMAS – MURILO MENDES & OUTROS TEXTOS

POEMAS – MURILO MENDES

Os poemas citados parcialmente no corpo do trabalho são transcritos

integralmente neste anexo para efeito de apreciação na sua totalidade. Os que

não constam desta seleção estão citados na íntegra no transcurso da

argumentação. A organização desta seleta seguiu a sequência cronológica de

publicação dos livros:

– Poemas (1930)

Alma numerosa Nascerei em outras terras, com olhos novos. Deixarei minhas partes inferiores, a parte do diabo. Não me perseguirão mais visões complicadas, nem eu serei a luta entre as construções do meu espírito. Para subir tenho que largar esta pele multicor, feiticeiro de mim mesmo, alma penada, presa das formas exteriores, do cheiro, do movimento. Me desdobrarei em planos infinitos, estarei nos olhos da criança nascendo, na cabeça dos amantes, nos degraus do espaço, na última luz dos velhos morrendo, no sonho do místico, e em todos os lugares onde existir alguém sofrendo e amando. Aqui não posso fazer o que penso. Me livrarei de mim mesmo quando a luz enorme se anunciar pelos círios vacilantes e a minha alma penetrar nos espaços futuros.

– Tempo e eternidade (1935)

Eternidade do Homem Abandonarei as formas de expressões finitas, Abandonarei a música dos dias e das noites, Abandonarei os amores improvisados e fáceis, Abandonarei a procura da ciência imediata Serei a testemunha de um mundo que caiu, Até que te manifeste na tua Parusia. Aceitarei a pobreza para que me dês a plenitude, Aceitarei a simplicidade para que me dês a multiplicidade, Descerei até o fundo da mina do sofrimento Para que um dia me apontes o céu da paz. Minha história se desdobrará em poemas: Assim outros homens compreenderão Que sou apenas um elo da universal corrente Começada em Adão e a terminar no último homem.

Page 122: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

122

A testemunha O céu se retira como um livro que se enrola. Um anjo blindado solta os sete pecados mortais. Mulheres-cavalos galopam furiosamente nas ruas, Homens ajoelham-se diante do sexo duma fêmea, Outros diante dum ídolo de ouro e prata. Poderosos refletores iluminam milhares de sovacos. Quem passeia no mar, quem sonha no mar Se o mar está tinto do sangue derramado das virgens. Mil fanáticos fuzilam o coração de Jesus. Chacais hienas e urtigas invadem a alma dos ditadores. Crianças nascem nos tanks ao som de um clarim As cidades transbordam de famintos, Famintos de comida e da palavra de consolo. Poeta, cobre-te de cinzas, volta à inocência, Impede que se derrame o cálice da ira de Deus, Tu que és a testemunha sustenta o candelabro, Monta o cavalo branco e reconstrói o altar Onde se transforma pão e vinho, Indica à turba as profecias que se hão de cumprir, Revela aos presos olhando através das grades Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo, Descerra os véus da Criação, mostra a face do Cristo.

– O sinal de Deus (1936)

Nossa vida Vida infernal e divina do poeta – Corpos de mulheres descendo e subindo em torno da gente – Pensamentos para Deus, por Deus, contra Deus – Solidão – Ânsias de guerra – de paz – de morte – Nascer, viver, sofrer, morrer e ressuscitar com todos os entes – Não ser amado – Insultar a lei, o mundo – Tragédia do amor à mulher objetiva – Viver segundo o espírito, mas ter nascido do sangue e da vontade da carne – Dar-se a todos, ao mesmo tempo rejeitar-se – A humildade – a majestade – o poder – a conversação dos antipoetas – A população e o vazio – O real com mais força que o ideal – O NÃO a Jesus Cristo – a volúpia – o veneno – a música – a dança – os perfumes – a embriaguez sem álcool – O orgulho da vida – O princípio, o fim – O céu, o inferno – Deus! – A poesia da eternidade esclarecendo, completando e ampliando a poesia do tempo. O bem e o mal não são a mesma coisa. Os poetas reconduzirão o homem a Deus. E submeterão os chefes temporais à ordem da caridade.

– A poesia em pânico (1937)

Poema visto por fora O espírito da poesia me arrebata Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel Num silêncio de antes da criação das coisas. Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna: O esterco novo da volúpia aquece a terra, Os peixes sobem dos porões do oceano, As massas precipitam-se na praça pública.

Page 123: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

123

Os diversos personagens que encerrei Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade Que eu presido ora triste ora alegre. Não sou Deus porque parto para Ele, Sou um deus porque partem para mim. Somos todos deuses porque partimos para um fim único.

– O visionário (1941)

Novíssimo Prometeu

Eu quis acender o espírito da vida, Quis refundir meu próprio molde, Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos; Me rebelei contra Deus, Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga, Contra minha família, contra meu amor, Depois contra o trabalho, Depois contra a preguiça, Depois contra mim mesmo, Contra minhas três dimensões: Então o ditador do mundo Mandou me prender no Pão de Açúcar: Vêm esquadrilhas de aviões Bicar o meu pobre fígado. Vomito bílis em quantidade, Contemplo lá embaixo as filhas do mar Vestidas de maiô, cantando sambas, Vejo madrugadas e tardes nascerem -– Pureza e simplicidade da vida! – Mas não posso pedir perdão.

– As metamorfoses (1944)

Poema hostil Os pés do deserto me alcançam, Trazem recados das rosas migradoras. À beira da sombra vigio a matéria, Trago lendas negras para o meu amor. Esqueceram as constelações em cima dos cadernos de música. Subo pelas cariátides Para derrubar o manequim de Eva E grito: O mundo é muito pouco, Trazei-me os antigos segredos. Daqui vejo os netos dos que ainda não nasceram. Quem me tocar perderá a memória.

Page 124: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

124

– Mundo enigma (1945)

Nihil Profundo penoso Das nuvens do inferno Surgiu meu destino. Grandeza não tive, Nem jeito pra vida. Nesta noite maquinal, Ouvinte apenas da guerra, Sem passado nem futuro, Odiando o presente, Me encontro face a face Com a estátua do pó, À toa, esperando A mão do Criador Finalmente me abater.

– O discípulo de Emaús (1945)

33 O reino de Deus está em nós. Não está sujeito ao tempo nem ao espaço. 144 A eternidade será um tempo infinito – ou antes, um estado infinito? 159 A poesia é a realidade; a imaginação, seu vestíbulo. 192 A poesia confere a investidura na universalidade, uma participação da linhagem divina. 195 A poesia é uma transubstanciação do leigo no sagrado, do particular no universal, do humano no divino. 200 O verdadeiro poeta é conjuntamente um ser de circunstância, e eterno. 263 O reino de Deus é suprapolítico, supra-econômico, supratrabalhista. 310 Deus sempre se manifestou poeticamente. 371 Passaremos do mundo adjetivo para o mundo substantivo. 463 A leitura deve-nos ler, tanto quanto ser lida. 536 Cristo fundiu os tempos e descerrou a eternidade.

Page 125: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

125

563 Através dos séculos o poeta é encarregado, não só de revelar aos outros, mas de viver praticamente no seu espírito e no seu sangue, a vocação transcendente do homem. 573 A vida essencialista cristã, restringindo as necessidades materiais, dilata o espírito. 686 O Cristo é uma pessoa coletiva.

– Convergência (1970)

Grafito na pedra de meu pai

Tu foste Casa feita / paz / ternura Aberta para o mundo. Santo-e-senha distribuías A pobre, amigo, ignoto. Irônico / repentista / malincônico Eis tua marca maior: hombridade. Essa cabeça ovalbranca De mineiro gentilhomem (Belo) Sinais emitia de célere De soaveforte comando À tribo de songamongas. Tu & Maria José Montanhosa generosa Repartiam entre os oito O coração em fatias.

* Teu filho pródigo Polêmico giróvago Giralivros Anárquico alicaído Insoferente do século Acolhes preparando Perdão vitualha & serenim.

* Sem ti & Elisa não seriam: O Brasil A Bíblia Betelgeuse Maria da Saudade Mozart Dante Paul Klee

Page 126: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

126

O amor da liberpaz A página branca A Espanha * Trabalhador da vida. Homem de aço & seda, sinto ainda pulsar Teu coração ecumênico.

Grafito na pedra de minha mãe A pedra abre os olhos mansos de colomba. Morte polêmica Morte que separa homem & sombra rosa & espinho Catapultou-me da esfera do teu ventre Para este território ásperoanguloso Onde soou no espaço A primeira ruptura: tempo subtraído-te, História em mito permutada Eletronicamente. Bela / jovem / magnética Talhada para canto & clavicímbalo Te eclipsas no limiar do século Que cedo iria me absorver No seu contexto polêmico. Extraindo-te de mim Fechando-te magnólia móbile selenocêntrica Elisa Valentina minha filha unigênita Tornaste-me Espiritado esdrúxulo; Geraste Minha cosmogonia.

Murilograma a Ungaretti

Conhecer os limites da linguagem Afrontando as palavras travestidas. “Uomo ferito” ir, prestes arando Para fundar o ser, próprio à palavra. Recompor o espaço ocupado por outrem Com inútil ornato. Refazer a base. Assumir a palavra refratária Nossa única herança e território. Frioviolento, já extrair a coisa Sinônimo de palavras, revelando-a.

Page 127: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

127

* Álacre. Fogo interno, não fogo-fátuo Elétrico, nutre-lhe o silêncio-grito. A natureza, didascália informe, Exaure-se, frente ao diagrama abstrato.

Murilograma a Nani Balestrini

Truncar a palavra / coisa Podá-la nas patas Estilhaçá-la consciente. A um engenho eletrônico Entregar o osso de um texto Que resultará noutro texto Cifrado: O do engenho eletrônico? FORSE GLI AUTOMI HANNO RAGIONE Montale. Começo: sem fim. Começo: sem intermédio Nem começo.

* Que é finalmente o poema: Palavra ou frase? Sem frase levanta-se palavra?

* O poeta planifica O texto de linhas retas Não o que o texto quer. O texto não-total Será mesmo divisão: Unidade aristotélica Só funciona no tratado, Na matéria do homem não. Dante / Petrarca / Leopardi Operaram quando ainda Subsistia O homem-metáfora. O homem Hoje Não --------------------------

Page 128: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

128

Texto de consulta

1 A página branca indicará o discurso Ou a supressão do discurso? A página branca aumenta a coisa Ou ainda diminui o mínimo? O poema é o texto? O poeta? O poema é o texto + o poeta? O poema é o poeta – o texto? O texto é o contexto do poeta Ou o poeta o contexto do texto? O texto visível é o texto total O antetexto o antitexto Ou as ruínas do texto? O texto abole Cria Ou restaura?

2 O texto deriva do operador do texto Ou da coletividade – texto? O texto é manipulado Pelo operador (ótico) Pelo operador (cirurgião) Ou pelo ótico-cirurgião? O texto é dado Ou dador? O texto é objeto concreto Abstrato Ou concretoabstrato? O texto quando escreve Escreve Ou foi escrito Reescrito? O texto será reescrito Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico; Pela roda do tempo? Sofre o operador: O tipógrafo trunca o texto. Melhor mandar à oficina O texto já truncado.

3 O texto é o micromenabó do poeta Ou o poeta o macromenabó do texto?

4 A palavra nasce-me fere-me mata-me

Page 129: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

129

coisa-me ressuscita-me

5 Serviremos a metáfora? Arquivaremos a? Metáfora:instrumento máximo; CASSIRER A própria linguagem do homem ORTEGA Y GASSET Invenção / translação.

6 A palavra cria o real? O real cria a palavra? Mais difícil de aferrar: Realidade ou alucinação? Ou será a realidade Um conjunto de alucinações?

7 Existe um texto regional / nacional Ou todo texto é universal? Que relação do texto Com os dedos? Com os textos alheios? Giro NÉ POUR D’ETERNELS Com o texto a tiracolo PARCHEMINS Sem o texto (MALLARMÉ) Não decifro o itinerário. Toda palavra é adâmica: Nomeia o homem Que nomeia a palavra. Querendo situar objetos Construímos um elenco vertical. Enumeração caótica? Antes definição. Catalogar, próprio do homem.

8 Morrer: perder o texto Perder a palavra / o discurso Morrer: perder o texto Ser metido numa caixa Com testo Sem texto.

9 Juízo final do texto: Serei julgado pela palavra Do dador da palavra / do sopro / da chama.

Page 130: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

130

O texto-coisa me espia Com o olho de outrem. Talvez me condene ao ergástulo. O juízo final Começa em mim Nos lindes da Minha palavra.

Grafito no pão de açúcar

No cume desta colina Nove bilhões de anos Contemplam-nos. Neste Rio descobri O Brasil / cruz e delícia Saudade minha amada. Neste Rio ásperofísico Nomeei-me poeta. Aqui conversei Ismael Nery Mestre / malungo máximo Entre canto gregoriano e jazz. Aqui aprendi Presto a ser Espiritualmente semita Alimentei-me de Índia. Daqui vi crescer A novíssima Israel: Karl Marx / Freud / Einstein. Daqui pude aferrar Picasso / Mallarmé / Strawinski Lutei com o Verbo encarnado. Matéria fui / para forma. Aqui toquei imediato Ou por tangência & contaminação Múltiplas coisas grandes Visíveis invisíveis.

* À beira desta baía Largoespacial Desamei / amei Deslouvei / louvei Cedo desarmei-me. Senti crescer-me

Page 131: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

131

Comunicante O duplo fogo eternofísico Pai de todos e meu.

* Nesta baía cabem todas as esquadras Não cabe nenhuma bomba.

* Do cume desta colina Contorno o BR acelerado retardado extrovertido coisificado Meu olho circular navega o mundo

Que aceito Malgrado mil ____________

– Retratos-relâmpago, 1ª série (1973)

Nietzsche Sou grato a Nietzsche por certas palavras: “o espírito que dança”; a criação de valores”; “tudo o que não me faz morrer torna-me mais forte”; “o poder oculto da alma”; “no homem acham-se reunidos a criatura e criador”. Sou in-grato a Nietzsche pelo seu culto extremo da força, do mandarinato; pela sua incompreensão do cristianismo. Renovar sua didascália sobre o espírito grego como ponto de partida da cultura, e sobre o espírito israelita como organizador da ação. Desnazificar Nietzsche. Desprussianizá-lo. Transcristão? Interpreta a disciplina do sofrimento. Cada cristão deveria explorar a parte de Dionísio que lhe toca. ... Levantar uma Alemanha onde figure entre os elementos da composição o melhor de Nietzsche lúcido sem espada: na claridade mediterrânea. “A palavra do passado é sempre palavra de oráculo: só a compreendereis se fordes os construtores do futuro e os visionários do presente”

Page 132: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

132

OUTROS TEXTOS

Os textos mencionados parcialmente no corpo do trabalho, em conexão com os poemas de Murilo Mendes, são reproduzidos para efeito de reflexão e cotejamento com as interpretações elaboradas no corpo deste estudo. Servem igualmente para verificação da similitude e continuidade do discurso e formas literárias surgidas na Suméria e que dialogaram com a poesia de outras tradições, inclusive com a lírica muriliana:

– Canto sumeriano à “Senhora de todo o Me” – Enheduana (cerca 2300 a.C)

Nin-me-sara (Canto à Deusa Inana)

Eu também gostaria de celebrar os desejos bons da rainha da batalha, a filha primogênita de Sini. Já que (Ebih) não beijou o chão diante de mim, Nem varreu o pó perante mim com sua barba, Porei minha mão neste país instigante: E o ensinarei a me temer! Trarei guerra (para Ebih), instigarei o combate, Atirarei setas de meu tremor, Lançarei as pedras de minha funda em longa saudação, Eu o empalarei (Ebih) com minha espada. Ergui também um templo, Onde inaugurei eventos importantes: Montei um trono inexpugnável! Desembainhei punhal e espada para... (...) Pandeiro e tambor para os dançarinos (...) Transmutei homens em mulheres! “A rainha executando grandes ações, que junta para si o eu do céu e da terra, rivaliza com o grande An (...) Construir uma casa, construir uma alcova de mulher, ter instrumentos, beijar lábios puros são teus, Inana, Dar a coroa, o trono, e o cetro de realeza é teu, Inana. An e Enlil no universo inteiro determinaram para ti um grande destino, Eles te deram a Soberania sobre o gu’enna, Tu determinas o destino das Senhoras magníficas. Senhora, és grande, és importante, Inana, tu és grande, tu és importante, Minha Senhora, tua grandeza é manifesta, Que teu coração por mim “volte a seu lugar!” No Gipar que determina meu destino, eu entrei por ti. Eu, a en-sacerdotisa, eu, En-hedu-ana, Equanto levava a cesta, entoei uma canção de júbilo.

Page 133: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

133

Como se eu não houvesse vivido lá, eles me ofereceram o sacrifício da morte. Inin-me-sar-ra, ou “a Senhora de todos os eus”. Meu destino com Suen e Lugal-Ane, informai a An! Na resolverá isso por mim. Informai a An imediatamente. An resolverá isso por todos nós! Eu – meu Nana não cuidou de mim. Na terra rebelde, eles me destruíram completa e totalmente Ele falou isto – significa alguma coisa? Depois, lá se levantou em triunfo, expulsou-me do templo. Fez-me voar como uma andorinha da janela – minha vida foi consumida. Isto será conhecido, será conhecido: Nana não proclamou nenhum decreto, “É teu”, foi o que ele disse! Que és tão alta quanto o céu, será conhecido! Que és tão vasta quanto a terra, será conhecido! Que aniquilas territórios rebeldes, será conhecido! Que Nana não proclamou, que ele disse, “é teu”, Minha rainha – tornou-te maior, Tu te tornaste a maior! Minha rainha, amada de An, Eu anunciarei toda tua ira! Por causa de teu cônjuge cativo, por causa de teu protegido cativo, Tua ira tornou-se grande, teu coração não se tranquilizou. Minha guia, selvagem vaca divina, expulsai esse “alguém”, Capturai esse “alguém!”. Mulher, guia de todos, vestida em brilho amedrontador, amada por An e Uras, Nugig de An, estás acima de todos os grandes. Tu, que amas a coroa de aga certa, que estás vestida para o en-sacerdócio. Ele me rasgou a legítima coroa de aga de en, Minha doce boca ficou venenosa. Que com ela dei delícias, agora virou pó. A luz era doce para ela, delícia se esparramou sobre ela, Cheia de abundante beleza era ela. Como a luz da lua nascente (Nana), ela também se vestia de encantos. Meu próprio julgamento ainda não terminou, mas uma estranha sentença me cerca como se fosse a minha sentença. À cama brilhante não estirei minha mão. Nem revelei as palavras de Ningal àquele “alguém”

Page 134: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

134

A brilhante en-sacerdotisa de Nana sou eu! Minha rainha, amada de An, possa teu coração ser acalmado por mim. És maior até que tua própria mãe, cheia de sabedoria e prudência, rainha de todas as terras, que permite existência para muitos. Começo agora tua canção que determina o destino! Divindade todo-poderosa, a mim adequada, Pois o que magnificamente me disseste é o mais poderoso! De coração insondável, oh mulher de tão altos desígnios de coração brilhante, teu EU agora o listarei para ti. En-hedu-ana sou eu, e direi agora uma prece a ti. Minhas lágrimas, como doce cerveja, Derramei agora livremente para ti, Inana Senhora do Destino, Teu julgamento! Eu o direi a ti. Amontoei o carvão, preparei os ritos de purificação, Os postos de Esdam-ku estão prontos para ti – não vai teu coração se tranquilizar por mim? Já que o coração estava cheio, muito cheio, grande rainha, eu o pari para ti. O que foi dito a ti nesta meia-noite, o cantor do culto o repetirá a ti ao meio-dia. A rainha, a forte, que rege sobre a assembleia de en, aceitou a prece o sacrifício. O coração de Inana, Senhora do Destino, voltou a seu lugar.

Salmo 145: Bíblia – Davi (cerca de 1010 a 970 a.C)

Eu te exalto, ó Rei meu Deus, e bendigo teu nome para sempre e eternamente. Eu te bendirei todos os dias e louvarei teu nome para sempre e eternamente. Grande é Iaweh, e muito louvável, é incalculável a sua grandeza. Uma geração apregoa tuas obras a outra, proclamando as tuas façanhas. Tua fama é esplendor de glória: Cantarei o relato das tuas maravilhas. Falarão do poder dos teus terrores, e eu cantarei a tua grandeza. Difundirão a lembrança da tua bondade imensa e aclamarão a tua justiça. Iahweh é piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de amor; Iahweh é bom para todos, compassivo com todas as suas obras. Que tuas obras todas te celebrem, Iahweh, e teus fiéis te bendigam; digam da glória do teu reino e falem das tuas façanhas,

Page 135: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

135

para anunciar tuas façanhas aos filhos de Adão, e a majestade gloriosa do teu reino. Teu reino é reino para os séculos todos, e teu governo para gerações e gerações. Iahweh é verdade em suas palavras todas, amor em todas as suas obras; Iahweh ampara todos os que caem e endireita todos os curvados. Em ti esperam os olhos de todos e no tempo certo tu lhes dás o alimento: abres a tua mão e sacias todo ser vivo à vontade Iahweh é justo em seus caminhos todos, e fiel em todas as suas obras; está perto de todos os que o invocam, de todos os que o invocam sinceramente. Realiza o desejo dos que o temem, ouve seu grito e os salva. Iahweh guarda todos os que o amam, mas destruirá todos os ímpios. Que minha boca diga o louvor de Iahweh e toda carne bendiga seu nome santo, para sempre e eternamente!

– Teogonia – Hesíodo (no transcurso do século VIII a.C)

Proêmio: hino às Musas

Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar. Elas têm grande e divino o monte Hélicon, em volta da fonte violácea com pés suaves dançam e do altar do bem forte filho de Crono. Banharam a tenra pele no Permesso ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino e irrompendo com os pés fizeram coros belos ardentes no ápice do Hélicon. Daí precipitando-se ocultas por muita névoa vão em renques noturnos lançando belíssima voz, hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera (...) Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide: “Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”. Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas, por cetro deram-me um ramos, a um loureiro viçoso colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado,

Page 136: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo³rio... · 2019. 2. 14. · teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Benedito

136

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos E a elas primeiro e por último sempre cantar. Mas por que me vêm isto de carvalho e de pedra?

– Ilíada – Homero (entre o final do século VIII a.C e início do século VII a.C.)

Canto I

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida (mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades, ficando seus corpos como presa para cães e aves de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus), desde o momento em que primeiro se desentenderam o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles. Entre eles qual dos deuses provocou o conflito? Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus contra o rei e por isso espalhara entre o exército uma doença terrível de que morriam as hostes, porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote. Ora este tinha vindo até as naus velozes dos Aqueus para resgatar a filha, trazendo incontáveis riquezas. (...)

– Odisseia – Homero (entre o final do século VIII a.C e início do século VII a.C.)

Canto I

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. Muitos foram os povos cujas cidades observou, cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar os sofrimentos por que passou para salvar a vida, para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas. Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar. Não, pereceram devido à sua loucura, Insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion, O Sol – e assim lhes negou o deus o dia do retorno. Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus. Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada se encontravam em casa, salvos da guerra e do mar. Só àquele, que tanto desejava regressar à mulher, Calipso, ninfa divina entre as deusas, retinha em côncavas grutas, ansiosa que se tornasse seu marido. Mas quando chegou o ano (depois de passados muitos outros) no qual decretaram os deuses que ele a Ítaca regressasse, nem aí, mesmo entre o seu povo, afastou as provações. E todos os deuses se compadeceram dele, todos menos Posêidon: e até que sua terra alcançasse, o deus não domou a ira contra o divino Ulisses. (...)