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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Régis Willyan da Silva Andrade A inderrogabilidade de direitos na ordem constitucional à luz do sistema jurídico multinível São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Régis Willyan da Silva Andrade

A inderrogabilidade de direitos na ordem constitucional

à luz do sistema jurídico multinível

São Paulo

2016

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Régis Willyan da Silva Andrade

A inderrogabilidade de direitos na ordem constitucional

à luz do sistema jurídico multinível

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Direito, na linha de

pesquisa Efetividade do Direito, Direito

Constitucional, sob a orientação da

Professora Doutora Flávia Cristina Piovesan.

São Paulo

2016

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Régis Willyan da Silva Andrade

A inderrogabilidade de direitos na ordem constitucional

à luz do sistema jurídico multinível

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Direito, na linha de

pesquisa Efetividade do Direito, Direito

Constitucional, sob a orientação da

Professora Doutora Flávia Cristina Piovesan.

Aprovado em: ____/___/___.

Banca examinadora

Professora Doutora Flávia Cristina Piovesan (Orientadora)

Instituição: PUC-SP

Julgamento:______________________________________________________________

Assinatura: ______________________________________________________________

Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________________

Julgamento:______________________________________________________________

Instituição: _______________________Assinatura______________________________

Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________________

Julgamento:______________________________________________________________

Instituição: _______________________Assinatura______________________________

Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________________

Julgamento:______________________________________________________________

Instituição: _______________________Assinatura______________________________

Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________________

Julgamento:______________________________________________________________

Instituição: _______________________Assinatura______________________________

Aos meus pais, Sonia e José, que me

ensinaram os valores essenciais da vida e

à Gilmara, noiva, amiga e companheira,

por tudo o que representam e por terem

feito parte da motivação para concluir

essa jornada.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelos dons, especialmente o da perseverança, com que me presenteou.

A meus pais, Sonia Adair e José Andrade, pelo apoio constante nessa caminhada.

Aos meus antigos e atuais colegas da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

da Faculdade de Direito do Sul de Minas pela compreensão e constante apoio,

fortalecendo o significado de companheirismo e confiança.

Aos amigos e companheiros de vida acadêmica, Hamilton da Cunha Júnior, João Emílio

de Assis Reis, Rafael Além Mello Ferreira e Luiz Carlos de Souza Auricchio, pela

constante troca de ideias, algumas das quais se materializaram neste trabalho.

A minha amiga, companheira e noiva Gilmara, por toda paciência e estímulo durante

todo o árduo e contínuo processo de aprendizagem e pesquisa.

À professora Doutora Flávia Piovesan pela honra que me concedeu em ser minha

orientadora, pelo zelo, disponibilidade e paciência, que viabilizaram a construção desse

trabalho.

A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Arte não tem pensa

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.

(Manoel de Barros. In: Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.75)

RESUMO

A presente tese aborda a inderrogabilidade de direitos na ordem constitucional à luz do

sistema jurídico multinível de proteção dos Direitos Humanos Fundamentais. Para tanto,

a partir de uma evolução histórica, traça a distinção entre Direitos Humanos e Direitos

Fundamentais, tendo como corte histórico a Magna Carta de 1215 até o

neoconstitucionalismo através do sistema jurídico multinível. Apresenta, ainda, como a

inderrogabilidade de direitos é tratada nos sistemas de proteção internacional e regional

dos Direitos Humanos, desde a sua proteção através do sistema global, passando pelos

sistemas interamericano, europeu, africano e asiático de proteção. Ademais, traz a

evolução do sistema constitucional na América Latina, em especial as transformações

ocorridas no Chile, na Colômbia, na Argentina e na Bolívia, para, então, analisar a

inderrogabilidade de direitos na história constitucional brasileira até a Constituição da

República de 1988. Analisa, por fim a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos

casos envolvendo o conflito de normas infraconstitucionais com as normas internacionais

de Direitos Humanos, propondo a criação de uma Constituição Internacional com um

Tribunal Constitucional Internacional visando à efetividade desses direitos bem como

uma proposta de solução para esses conflitos.

Palavras-chave: Inderrogabilidade. Direitos Humanos. Direitos Fundamentais. Sistema

Multinível. Constitucionalismo.

ABSTRACT

This thesis deals with the non-derogable rights in the constitutional order in the light of

the multi-level legal system of protection of fundamental human rights. For both from a

historical evolution, draws the distinction between Human Rights and Fundamental

Rights, and as a historical cut the Magna Carta of 1215 to the neoconstitutionalism

through multi-level legal system. It also presents, as the non-derogable rights is treated in

international and regional protection of human rights system since its protection through

the global system, through the inter-American system, European, African and Asian

protection. Furthermore, it does the evolution of the constitutional system in Latin

America, especially the changes occurred in Chile, Colombia, Argentina and Bolivia. To

then analyze the non-derogable rights in the constitutional history of Brazil to the

Constitution of 1988 finally analyzing the jurisprudence of the Supreme Court in cases

involving conflict of infra-constitutional norms with international human rights

standards, proposing the creation of a International constitution with a respective

International Constitutional Court seeking the effectiveness of these rights as well as a

proposed solution to these conflicts.

Keywords: Non-derogable. Human Rights. Fundamental Rights. Multilevel System.

Constitutionalism.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMANOS:

UM ESCLARECIMENTO CONCEITUAL PRELIMINAR 15

2.1 Direitos Fundamentais versus Direitos Humanos à luz da

evolução histórico conceitual 15

2.2 Desenvolvimento histórico dos Direitos Fundamentais 27

2.3 Da Magna Carta de 1215 à Declaração de Independência e a

Carta Política dos Estados Unidos da América 32

2.3.1 Modernas declarações de direitos: francesa e americana 45

2.3.2 Movimento do constitucionalismo 54

2.3.3 Constitucionalismo liberal, social e pós-social 61

2.4 Desenvolvimento histórico dos direitos humanos 69

2.4.1 Pós guerra e o processo de internacionalização dos direitos humanos 76

2.4.2 Precedentes históricos – direito humanitário, OIT

e Convenção de Genebra 87

2.4.3 A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 94

2.5 Do necessário diálogo entre os direitos fundamentais

e os direitos humanos: do sistema jurídico multinível 104

2.6 Das similitudes e diferenças entre revogação, ab-rogação e derrogação 112

2.7 Conclusões parciais 115

3 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NA HISTÓRIA

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA 118

3.1 Os Direitos Fundamentais na história constitucional brasileira 118

3.2 Da Carta Imperial de 1824 à Constituição de 1891 125

3.2.1 Da Constituição de 1934 à Constituição de 1937 136

3.2.2 Da Constituição de 1946 e o pós-guerra 144

3.2.3 Da Constituição de 1967 à Emenda Constitucional n°01/69 153

3.2.4 Da Constituição de 1988 e seu núcleo inderrogável 161

3.3 Conclusões parciais 171

4 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NO

DIREITO COMPARADO LATINO-AMERICANO 173

4.1 A evolução da inderrogabilidade no direito comparado

latino-americano 173

4.2 A inderrogabilidade de direitos na Constituição chilena 184

4.3 A inderrogabilidade de direitos na Constituição colombiana 188

4.4 A inderrogabilidade de direitos na Constituição argentina 191

4.5 A inderrogabilidade de direitos na Constituição boliviana 194

4.6 Conclusões parciais 198

5 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NOS SISTEMAS

DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL E REGIONAL DOS DIREITOS

HUMANOS 200

5.1 A internacionalização da proteção dos direitos humanos pós

Segunda Guerra Mundial 200

5.2 A inderrogabilidade no sistema global de proteção internacional

dos direitos humanos 208

5.3 A inderrogabilidade nos sistemas regionais de proteção

dos direitos humanos 222

5.4 A inderrogabilidade nos sistemas europeu e interamericano de proteção

dos direitos humanos 229

5.5 A inderrogabilidade nos sistemas africano e asiático de proteção

dos direitos humanos 246

5.6 Conclusões parciais 260

6 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NA CONSTITUIÇÃO

DA REPÚBLICA DE 1988, A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL, E O DIÁLOGO COM OS SISTEMAS

DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS 262

6.1 A Constituição da República de 1988 e sua recepção dos

Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos 262

6.2 A inderrogabilidade de direitos na jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal 282

6.3 O diálogo necessário entre a jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal e os sistemas de proteção dos

Direitos Humanos Fundamentais 289

6.4 O Tribunal Constitucional Internacional como aplicador

do sistema jurídico multinível 301

6.5 Conclusões parciais 306

7 CONCLUSÕES 308

REFERÊNCIAS 314

11

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa está fundamentada na necessidade da criação de um sistema

multinível de proteção para que os Direitos Humanos Fundamentais sejam efetivos. Nesse

ínterim, adota a metodologia analítica documental, analisando a viabilidade de se

estabelecer parâmetros jurídicos que assegurem a sua caracterização e um sistema

multinível de direito, ou seja, baseado em garantias infra e supranacionais, num sólido

pavimento de garantias fundamentais aptas a promover sua efetividade numa determinada

ordem jurídica.

A problemática parte da base dos Direitos Fundamentais, qual seja, a dignidade da

pessoa humana, fundamento que orienta uma pluralidade de elementos essenciais e

inderrogáveis, suporte para concepção de tais direitos e, ainda, princípio no qual se pautam

os principais sistemas constitucionais modernos.

Percebe-se, desta forma, que tudo gira em torno da pessoa humana, das lutas e

conquistas não só para assegurar, mas também para efetivar estes preceitos entendidos

como fundamentais, além da evolução destes direitos como ocorreu tanto na religião,

quanto na filosofia e na ciência. Para haver um reconhecimento universal, em razão da

necessidade de se estabelecer uma radical igualdade seja ela material ou formal, ninguém,

indivíduo ou coletividade, com base em gênero, etnia, classe social, religiosidade ou nação

poderá afirmar-se superior aos demais.

O Estado deve respeitar e fomentar a existência digna do ser humano, valorizando-

o tanto em sua dimensão individual quanto num contexto de justiça. A ideia de que os

indivíduos e grupos humanos podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a

todos engloba, é de elaboração recente na História. Aos povos que vivem à margem do que

se convencionou chamar de civilização, não existe palavra que exprima o conceito de ser

humano, onde os integrantes desses grupos são chamados tão somente de “homens”.

A vida em sociedade exige um sacrifício, a limitação do exercício dos direitos

naturais. Isto significa que presume uma coordenação do exercício por parte de cada um de

seus direitos naturais, dos quais ninguém abre mão, exceto na exata e restrita medida

imprescindível para a vida em comum.

Parte-se da premissa de que os Direitos Humanos Fundamentais foram criados e

estendidos progressivamente, a todas às nações da Terra, assim como a criação de

12

instituições jurídicas que visam à defesa da dignidade humana contra a violência, o

aviltamento, a exploração e a miséria.

Destaca-se que a tensão existente na efetivação dos Direitos Fundamentais consiste

no equilíbrio entre liberdade e igualdade, na qual a primeira sofre limitações por parte do

Estado à luz de teorias como a da reserva do possível e a segunda sustenta que deve haver

não apenas uma igualdade formal, mas também material para que possamos falar em um

verdadeiro sistema de direitos.

A proteção e a efetivação do Direito Internacional dos Direitos Humanos erguem-

se no sentido de resguardar o valor da dignidade humana, concebida como fundamento dos

direitos humanos, e que é fruto de precedentes históricos da moderna sistemática de

proteção internacional, o que exige uma análise acerca desses marcos que sustentam a sua

evolução.

Através de uma análise da história evolutiva constitucional do Brasil, da

promulgação da Carta Política de 1824 à Constituição da República de 1988, é possível

constatar a criação de um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais e suas

alterações que propiciaram a recepção de tratados internacionais como emendas

constitucionais. Além disso, relevante analisar a forma como o Supremo Tribunal Federal

tem julgado as lides envolvendo o conflito de normas infraconstitucionais com as normas

de Direito Internacional dos Direitos Humanos, utilizando o diálogo com Cortes

Constitucionais estrangeiras para fundamentar suas decisões.

Nesse sentido, ressaltam-se as transformações e a evolução do sistema jurídico

multinível de proteção na América Latina, destacando-se a criação de um núcleo

inderrogável de direitos nas Cartas Políticas chilena, colombiana, argentina e boliviana,

além de verificar como o Brasil analisa a jurisdição constitucional de tribunais

internacionais na proteção dos Direitos Humanos Fundamentais.

Na sequência, será analisada a evolução dos direitos e garantias fundamentais,

decorrentes de uma mudança de paradigma. Uma série de lutas, avanços e retrocessos

influenciaram diretamente na formação do constitucionalismo global e regional, bem como

na consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, símbolo do século XX e

do final da Segunda Guerra Mundial.

Ao analisar todo o período de evolução da proteção dos direitos e garantias

fundamentais, percebe-se que a internacionalização dos direitos humanos é fruto de um

13

movimento recente na história, decorrente da Segunda Guerra Mundial, em resposta às

atrocidades cometidas contra a pessoa humana durante o nazismo.

A internacionalização dos Direitos Humanos surge como o novo paradigma ético

no intuito de restaurar a lógica do razoável, rompendo com o totalitarismo, que negava que

a pessoa humana pudesse ser a fonte do direito, emergindo a necessidade de reconstruir os

Direitos Humanos, aproximando o direito da moral.

O desafio nesse contexto é reestabelecer a ordem internacional com parâmetros que

busquem um núcleo inderrogável de direitos, em observância à dignidade da pessoa

humana, e que possa apresentar instrumentos capazes de garantir a eficácia destes direitos,

por meio da introdução da ética e da moral ao se estabelecer normas tanto globais quanto

domésticas que estimulem o diálogo interestatal a fim de se criar uma Constituição

Internacional e um Tribunal Constitucional capaz de aplicar sanções aos indivíduos e aos

Estados.

No entanto, este conceito de intervenção tem sido um tema relevante no debate do

Direito Internacional, haja vista uma confusão sobre a esfera de atuação. Alguns sustentam

consistir apenas em assuntos internos, como na mudança forçada da forma de governo;

outros questionam se também abrange os problemas de natureza externa, como a

imposição de certas normas em relação à política exterior.

Percebe-se que para se estabelecer um núcleo inderrogável de direitos na esfera

global, são necessários sacrifícios, na ordem da delimitação da soberania estatal,

submetendo-se a órgãos ou comissões internacionais que podem aplicar sanções em caso

de descumprimento ou violação a direitos e garantias voltados à proteção da pessoa

humana.

A atuação e aplicabilidade desses ideais apresentam enormes dificuldades no que

tange ao reconhecimento dessa situação jurídica, como a eficácia das normas de direito

internacional humanitário, a atuação somente nas situações de emergência humanitária

advinda de conflitos armados e a aspiração de garantir juridicamente o livre acesso das

vítimas de catástrofes humanitárias.

Acerca dos desafios de se estabelecer um núcleo inderrogável de direitos em

âmbito global, há que se considerar as diferenças sociais, culturais e econômicas de cada

região, percebendo-se que a proteção dos direitos humanos através de instituições de

âmbito regional se revela mais positiva, na medida em que os Estados situados num

14

mesmo contexto geográfico, histórico e cultural têm maior probabilidade de transpor os

obstáculos apresentados em âmbito mundial.

A partir destas premissas é possível analisar a evolução do constitucionalismo na

América Latina, destacando como cada Estado trata a questão da inderrogabilidade de seus

direitos, criando assim um núcleo duro, capaz de orientar não apenas a legislação

infraconstitucional, mas de servir de quadro para emoldurar um Direito Constitucional,

capaz ao mesmo tempo de respeitar a diversidade e de servir como uma base

supranacional.

O desenvolvimento dessa nova modalidade de constitucionalismo coaduna com as

perspectivas de um movimento dinâmico, capaz de atender às necessidades de uma

sociedade cada vez mais complexa, e que exige dos operadores do direito o discernimento

para ultrapassar velhos conceitos ligados à soberania, capaz de auxiliar na solução de

conflitos com diferentes estratégias por dois ou mais sistemas jurídicos constitucionais.

Desta forma, surgem algumas teorias que visam fundamentar essas relações

interestatais, aproveitando a legislação estrangeira, dentro de suas Cartas Constitucionais e

promovendo o intercâmbio de elementos constitucionais entre agentes supostamente

autossuficientes.

Deve-se observar que o uso da jurisprudência estrangeira pelos tribunais

constitucionais parte da premissa de precedentes, assim como o modelo norte-americano

parte de decisões pretéritas que servirão de modelo para decisões mais recentes (através

das lições do passado é possível aplicar conceitos visando a resolução de casos concretos

no futuro).

Eis o grande desafio dos Direitos Humanos Fundamentais numa perspectiva

multinível: criar a ponte capaz de realizar o diálogo entre as cortes constitucionais como

uma via de mão dupla, e não apenas impor o sistema de países desenvolvidos face os

países em desenvolvimento, que serviram de fundamento para efetivar esses direitos em

âmbito infra e supranacional, buscando dar efetividade aos direitos consagrados nas Cartas

Constitucionais.

15

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMANOS: UM

ESCLARECIMENTO CONCEITUAL PRELIMINAR

2.1 Direitos Fundamentais versus Direitos Humanos à luz da evolução histórico

conceitual

A evolução da sociedade bem como de seus agentes nos revela que, apesar das

inúmeras diferenças biológicas e culturais que distinguem os seres humanos, todos

merecem e deveriam ser tratados em condições de igualdade, seja ela formal, por

disposições legais, ou material, através da implementação de condições que possam

equilibrar a balança.

Verifica-se ainda que o reconhecimento universal, em razão deste preceito de

igualdade, como dito, seja material ou formal, ninguém, indivíduo ou coletividade, com

base em gênero, etnia, classe social, religiosidade ou nação pode afirmar-se superior aos

demais.

Ao passo que, para falar em inderrogabilidade de direitos, mister ressaltar alguns

pontos conceituais, no que tange à formação deste núcleo duro, assim como estabelecer as

congruências e as divergências existentes entre a teoria dos Direitos Fundamentais e a

teoria dos Direitos Humanos.

Os Direitos Fundamentais foram criados e estendidos progressivamente, a todas às

nações da Terra, com a criação de instituições jurídicas que visavam à defesa da dignidade

humana contra a violência, o aviltamento, a exploração e a miséria.

Destaca-se que tudo gira em torno da pessoa humana e das lutas e conquistas não

só para assegurar, mas também para efetivar direitos entendidos como fundamentais, haja

vista a multidisciplinaridade da evolução destes direitos, percorrendo não só a seara

jurídica, mas incluindo a religião, a filosofia e a ciência, dentre outros.

A justificativa religiosa da preeminência do ser humano no mundo, como descreve

Comparato (2013, p. 13), “surgiu com a afirmação da fé monoteísta. A grande contribuição

do povo da Bíblia à humanidade, uma das maiores, aliás, de toda a História, foi a ideia da

criação do mundo por um Deus único e transcendente”.

A criatura humana ocupa uma posição eminente na ordem da criação, onde Deus

lhe deu poder, segundo a Bíblia (2008, p. 49), no livro de Gênesis (1, 26) sobre “os peixes

do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que

16

rastejam sobre a terra. A cada um deles o homem deu um nome”. Desta forma, entende-se

segundo a crença1, submeter o nomeado ao poder do nomeante.

Corroborando com a evolução destes preceitos, a filosofia assumiu a afirmação da

natureza essencialmente racional do ser humano, dando, assim, uma nova justificativa para

a sua eminente posição no mundo, com a sabedoria grega expressa com vigor, pela voz dos

poetas e dos filósofos.

Tal evolução pode ser notada na obra de Ésquilo (2005, p. 55), numa passagem de

Prometeu Acorrentado2, que marca a transição da explicação religiosa para a filosófica,

demonstrando-se assim a capacidade reflexiva da pessoa humana de se colocar como

objeto a ser analisado.

Com o desenvolvimento da teoria da evolução dos seres vivos, surgiu a terceira

justificativa da dignidade humana, qual seja, a científica, que abriu no mundo a convicção

de que não é por acaso que o ser humano representa o ápice de toda a cadeia evolutiva das

espécies vivas.

Nesse sentido, ao tratar da evolução da humanidade, Comparato (2013, p. 16) alude

que “o encadeamento sucessivo das etapas evolutivas obedece, objetivamente, a uma

orientação finalística, inscrita na própria lógica do processo, e sem a qual a evolução seria

racionalmente incompreensível”.

A ideia de que os indivíduos e grupos humanos podem ser reduzidos a um conceito

ou categoria geral, que a todos engloba, ao contrário do que possa parecer é de elaboração

recente na História, haja vista que os povos que vivem à margem do que se convencionou

chamar de civilização, não podem se adequar ao conceito de seres humanos, mas tão

somente como integrantes do grupo, denominados desta forma de “homens”.

1 Para os antigos, com efeito, o nome exprime a essência do ser. Um homem sem nome é insignificante, em todos os

sentidos da palavra (Jó 30, 8); é como se não existisse (Eclesiastes 6, 10). O nome de Iashweh, pronunciado pelo

sacerdote sobre o povo, protege-o (Números 6, 27). Daí a razão do 2° mandamento do decálogo mosaico: “Não

pronunciarás em vão o nome de Iahweh teu Deus, pois Iahweh não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu

nome” (Deuteronômio 5, 11). 2 ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Tradução de J.B. de Mello e Souza. [s. 1.]: e-Books Brasil, 2005. Disponível em

http://www.ebookbrasil.org/eLibris/prometeu.html Acesso em: 05 out. 2016. “Ouça agora as misérias mortais e perceba

como, de crianças que eram, eu os fiz seres da razão, capazes de pensar. Quero dizê-lo aqui, não para denegrir os

homens, mas para lhe mostrar minha bondade para com eles. No início eles enxergavam sem ver, ouviam sem

compreender, e, semelhantes às formas oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles

desconheciam as casas ensolaradas de tijolo, ignoravam os trabalhos de carpintaria; viviam debaixo da terra, como ágeis

formigas, no fundo de grotas sem sol. Para eles, não havia sinais seguros nem do inverno nem da primavera florida nem

do verão fértil. Faziam tudo sem recorrer à razão, até o momento em que eu lhes ensinei a árdua ciência dos números, a

primeira de todas, que inventei para eles, assim como a das letras combinadas, memória de todas as coisas, labor que

engendra as artes. Fui também o primeiro a subjugar os animais, submetendo-os aos arreios ou a um cavaleiro, de modo a

substituir os homens nos grandes trabalhos agrícolas, e atrelei às carruagens os grandes trabalhos agrícolas, e atrelei às

carruagens os cavalos dóceis com que se ornamenta o fasto opulento. Fui o único a inventar os veículos com asa de

tecido, os quais permitem aos marinhos correr os mares”.

17

No que tange à formação desta civilização, bem como dos grupos sociais, Ferreira

Filho (2012, p. 4) elucida: “o pacto social para estabelecer a vida em sociedade de seres

humanos naturalmente livres e dotados de direitos, há de definir os limites que os

pactuantes consentem em aceitar para esses direitos”.

A formação destes grupos sociais, bem como da vida em sociedade exige um

sacrifício, qual seja, a limitação do exercício dos direitos naturais, como preleciona a

doutrina religiosa, dos direitos concedidos por Deus, ou seja, esta vida em sociedade

presume uma coordenação do exercício por parte de cada um de seus direitos naturais, dos

quais ninguém pode abrir mão, exceto na exata e restrita medida imprescindível para a

vida em comum.

Entretanto, para que possa haver a renúncia ou restrição de tais direitos, em favor

da coletividade, deve-se destacar a necessidade de estabelecer um conceito de igualdade.

As primeiras referências a esta ideia de igualdade essencial entre todos os homens surgiu

entre os séculos VIII e II a.C., denominado de período axial3 da História, através do qual

foram instituídos os grande princípios e diretrizes fundamentais para a convivência em

sociedade.

No período axial destaca-se o desabrochar do homem, enquanto ser sujeito de

direitos e deveres. Conforme destaca Libânio (2002, p. 163),

(foi) o ponto de nascimento espiritual do homem, onde se realizou de maneira

convincente, tanto para o Ocidente como para a Ásia e para toda a humanidade

em geral, para além dos diversos credos particulares, o mais rico desabrochar do

ser humano; estaria onde esse desabrochar da qualidade humana, sem se impor

como uma evidência empírica; seria, não obstante, admitido de acordo com um

exame dos dados concretos; ter-se-ia encontrado para todos os povos um quadro

comum, permitindo a cada um melhor compreender sua realidade histórica.

Para que os direitos pudessem se tornar universais e igualmente respeitados, pelo

simples fato de serem seres humanos, dois fatores surgem a corroborar para dar-lhes

efetividade: a lei não escrita (denominada de costumes) e a lei escrita. O desenvolvimento

destes conceitos em relação à pessoa, ainda que medievais, iniciou a elaboração do

3 Vom Ursprung und Ziel der Geschichte. Munique:Verlag, 1983, p. 19-42. “No centro do período axial existiram, sem

se comunicarem entre si, alguns dos maiores doutrinadores de todos os tempos: Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Lao-

Tsé e Confúcio na China, Pitagorás na Grécia e o Dêutero-Isaías em Israel. Todos eles, cada um a seu modo, foram

autores de visões do mundo, a partir das quais estabeleceu-se a grande linha divisória histórica: as explicações

mitológicas anteriores e abandonadas, e o curso posterior da História passa a constituir um longo desdobramento das

ideias e princípios expostos durante esse período” (COMPARATO, 2013, p. 20).

18

princípio da igualdade, essencial de todo ser humano, não obstante a ocorrência de todas as

diferenças individuais ou coletivas, de ordem biológica ou cultural.

Acerca da concepção do conceito de pessoa e quanto à formação de um núcleo

inderrogável de direitos, ensina Comparato (2013, p.32):

é essa igualdade de essência da pessoa que forma o núcleo do conceito universal

de direitos humanos. A expressão não é pleonástica, pois que se trata de direitos

comuns a toda espécie humana, a todo homem enquanto homem, os quais,

portanto, resultam da sua própria natureza, não sendo meras criações políticas.

Importante frisar que nos primórdios da evolução deste conceito universal de

Direitos Humanos não há que se falar em internacionalização destes direitos, mas tão

somente pelo fato de pertencerem a mesma espécie, a humana, e consequentemente, para

se viver em sociedade, estabelecer critérios para que os referidos direitos naturais possam

ser restringidos em favor da coletividade.

Desta feita, após analisar as esferas de evolução da pessoa humana, desde a sua

concepção jusnatural até o início da formação das sociedades, bem como dos preceitos

fundamentais, deve-se destacar as diferenças entre os Direitos do Homem, os Direitos

Fundamentais e os Direitos Humanos.

O tema da dignidade humana encontra no pensamento e na doutrina cristã um

marco fundamental, entendido por alguns autores como um verdadeiro “divisor de águas”,

posto que, como observa Francisco Alves (2001, p. 15),

a contribuição para o desenvolvimento de um efetivo humanismo se apresenta

desde a Idade Antiga até se manifestar de forma contundente no contexto

contemporâneo com a edição de inúmeros documentos pontifícios da Encíclica

Rerum Novarum, de Leão XIII, datada de 1891.

A primeira nomenclatura utilizada, no que tange à proteção e efetividade destes

direitos, foi a dos Direitos do Homem, remontando à época do jusnaturalismo, quando

bastava ser homem para possuir direitos e usufruí-los, e que foi objeto de crítica devido à

expressão “homem” fazer referência somente às pessoas do sexo masculino, e não a

qualquer pessoa.

No que tange aos termos Direitos do Homem ou Direito Natural, Martinez (1999,

p. 25) leciona:

está identificada com o jusnaturalismo, como se tais direitos fossem fruto de

uma revelação, não levando em conta a sua construção histórica. Essa expressão

19

está situada em momentos históricos anteriores, as primeiras Declarações do

Século XVIII utilizavam-se para identificar os direitos essenciais à pessoa

humana.

Inicialmente, os Direitos do Homem passaram a ser chamados de Direitos

Fundamentais, ainda que com as devidas objeções, pelo fato de não constituírem uma

universalidade, mas tão somente dirigido às pessoas do sexo masculino, ocupando-se do

plano constitucional e visando assegurar os direitos inerentes a cada homem, não

abrangendo aqueles que não pertenciam à “sociedade”, como mulheres, crianças e

escravos, dentre outros.

Contudo, a evolução dos conceitos de Direitos Fundamentais e Direitos Humanos

apresenta não apenas similitudes e complementariedade entre eles, mas também

divergências, que englobam mais que sua abrangência geográfica. Segundo Pérez Luño

(1998, p. 46-47),

Pero también por el grado de realización que tienen positivamente, es decir, el

grado de reglas de realización. Los derechos fundamentales son positivizada por

partida doble, ya que actúan interna y externamente, que tiene un mayor grado

de logro positivo, mientras que los derechos humanos son positivizada sólo en el

entorno externo, con un menor nivel de logro positivo.

Nesta visão, destaca-se que as diferenças podem ser observadas através do grau de

concretização no âmbito normativo, ou seja, os Direitos Fundamentais estão duplamente

positivados, atuando tanto no âmbito interno quanto no externo, demonstrando uma maior

concretização positiva, enquanto os Direitos Humanos estão positivados apenas no âmbito

externo, demonstrando um menor grau de concretização positiva.

Desta forma, entende-se que os Direitos Humanos adotam uma vertente vinculada

ao âmbito externo, de abrangência universal e que tem por escopo proporcionar uma

humanização dos direitos a fim de evitar que os solipsismos jurídicos possam causar

atrocidades calcadas tão somente no texto da lei, como as que ocorreram na Segunda

Guerra Mundial.

Por outra via, os Direitos Fundamentais são normas intimamente ligadas à

dignidade da pessoa humana e à limitação de poder, positivadas na Constituição. Esta

ideia, como destaca Marmelstein (2014, p. 23), “não afasta a possibilidade de existência de

valores importantes que ainda não foram positivados por algum motivo, mas que também

são ligados à dignidade e à limitação do poder”.

20

Nestes casos, alguns juristas não chamam esses valores de Direitos Fundamentais,

mas sim de direitos da pessoa humana, esclarecendo a distinção entre os conceitos e

delimitando que existe uma esfera de direitos além do que está normatizado e que também

merece ser resguardada, tendo em vista seu caráter fundamental.

A partir desta concepção de valorização da humanidade, face a positividade dos

direitos, Bobbio (1992, p. 30), observa que “os direitos humanos nascem como direitos

naturais universais, desenvolvendo-se como direitos positivos particulares (quando cada

Constituição incorpora Declarações de Direitos) para finalmente encontrar a plena

realização como direitos positivos universais”.

Observa-se, neste ponto do desenvolvimento conceitual, que uma vez superado o

ideal jusnaturalista dos Direitos do Homem – embora visasse estabelecer um núcleo

inderrogável de direitos – restringe-os a um determinado sexo, sem abarcar as demais

camadas da sociedade. Entretanto, a partir do movimento constitucional de positivação das

Cartas Constitucionais, é possível delimitar e estabelecer os Direitos Fundamentais em seu

texto, em âmbito doméstico.

Nesse sentido, os direitos da pessoa humana seriam, como ensina Pérez Luño

(1987, p. 52), “los valores ético-políticas no han positivizada. Se encontraban en una etapa

de pre-positivo, que corresponde a las instancias o valores éticos anteriores a la ley

positivo”. Estes valores ético-políticos são encontrados em fase de prepositivação,

correspondendo aos valores éticos anteriores ao direito positivo, pautados na moral e nos

costumes que cada época entendia aceitáveis e corretos. Como poderá ser verificado ao

longo da história, em determinados casos, como no Tribunal de Nuremberg, estes valores

ficaram acima do direito positivo.

Percebe-se, assim, que os direitos da pessoa humana possuem em seu conteúdo

certa semelhança com o direito natural, ao passo que dependem de tratativas

internacionais, como convenções ou tratados para serem reconhecidos propriamente como

direitos, haja vista não estarem positivados, servindo como fundamentos e matéria-prima

para positivação dos Direitos Fundamentais.

Como explica Robles (2005, p.6), enquanto não houver a ratificação dos Estados,

por meio de convenções ou tratados internacionais, “não se trata de direitos, ainda que

assim chamados, porque, como ainda não integram o ordenamento jurídico, ninguém pode

exigir processualmente que tenham a validade dos verdadeiros direitos subjetivos de

caráter positivo”.

21

Ademais, as pesquisas acerca da historicidade dos Direitos Humanos, no pós-

guerra concentram-se em verificar não apenas a sua positivação, mas também centrar na

efetivação destes direitos positivados, haja vista que estes não são um dado, mas uma

invenção humana decorrente de um constante processo de construção e reconstrução4.

No que tange ao processo de criação e positivação dos direitos, para Comparato

(2013, p. 60),

Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o

criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem,

considerado em sua dignidade substancial de pessoa, diante da qual as

especificações individuais e grupais são sempre secundárias.

A tensão existente na efetivação dos Direitos Fundamentais consiste no equilíbrio

entre liberdade e igualdade. A primeira sofre limitações por parte do Estado à luz de

teorias como a da reserva do possível e mínimo existencial; a segunda sustenta que deve

haver não apenas uma igualdade formal, mas também material para que possamos falar em

um verdadeiro sistema de direitos.

Ao tratar sobre o tema, vários autores tentam estabelecer um conceito para a teoria

dos Direitos Fundamentais, desta forma, destacando-se Marmelstein (2014, p. 18) para

quem estes são formados por “cinco elementos básicos: norma jurídica, dignidade da

pessoa humana, limitação de poder, Constituição e democracia. Esses cinco elementos

conjugados fornecem o conceito de direitos fundamentais”.

Dentre as teorias que tentam construir um conceito para os Direitos Fundamentais,

enfatiza-se a que entende que estes direitos são enunciados protegidos por normas

constitucionais, com supremacia formal e material, ao mesmo tempo em que, dada sua

importância axiológica fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico,

representando um verdadeiro “sistema de valores”.

Por outro lado, vinculado à ideia de Estado Democrático de Direito, deve-se

respeitar a diversidade ideológica, de modo que os interesses de todos os grupos sociais,

inclusive as minorias, possam ser respeitados e tratados com igual consideração, além de

se analisar tais direitos sob a ótica da dignidade da pessoa humana, a fim de que os

4 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Documentário, 1979.

A respeito, ver também LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de

Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.134. No mesmo sentido, afirma Ignazy Sachs: “Não se

insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às

vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações

se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos” (SACHS, Ignacy.

Desenvolvimento, direitos humanos e cidadania. In: Direitos humanos no século XXI. Instituto de Pesquisas de

Relações Internacionais e Fundação Alexandre de Gusmão, 1998, p.156).

22

Direitos Fundamentais não sejam invocados para justificar a violação da dignidade de

outros seres humanos.

Desta forma, busca-se equacionar a relação entre liberdade e igualdade, através da

criação de teorias, denominadas por alguns autores de modernas teorias sobre os

fundamentos e a natureza dos Direitos Humanos, como afirma Shestack (1984, p. 85-98):

Modern theories of rights have many features in common. First, they are

eclectic, benefit each other, which makes it inaccurate to characterize such

theories as purely utilitarian, natural law, intuitive, behavioral, etc. Second,

modern theories recognize and try to solve using different concepts, the tension

between liberty and equality. Some theories construct arguments to prove that

these goals are reconcilable and achievable in a single social order. Other

theories hold that tension is irreconcilable and seek to resolve the dilemmas

hierarchically elencando these goals. Still others elaborated sophisticated

arguments to accept the relationship between liberty and equality, as

characterized in dynamic interaction. Third, many theorists emphasize the need

to create a genuine system of rights. Highlighting the most important theories in

contemporary societies: a) theories based on natural rights, fundamental rights;

b) theories based on the utility value; c) theories based on justice; d) theories

based on the state's review of the nature and the minimal state; e) theories based

on dignity; and f) theories based on equal respect and consideration.

Na visão do autor, as modernas teorias sobre direitos apresentam muitas

características comuns, haja vista, serem ecléticas, dando sentido de complementariedade

umas às outras, tornando, desta forma, impreciso defini-las como puramente utilitaristas,

de direito natural, intuitivas ou comportamentais. Ademais, o escopo dessas teorias é

solucionar, usando de diversas concepções, a tensão entre liberdade e igualdade.

A proteção e a efetivação do Direito Internacional dos Direitos Humanos erguem-

se no sentido de resguardar o valor da dignidade humana, concebida como fundamento dos

Direitos Humanos, e que é fruto de precedentes históricos da moderna sistemática de

proteção internacional, o que exige uma análise acerca desses marcos que sustentam a sua

evolução.

Importante destacar que a distinção entre Direitos Humanos e Direitos

Fundamentais é plenamente compatível com o texto constitucional. Toda vez que a

Constituição da República de 1988 se refere ao âmbito internacional, menciona a

expressão direitos humanos5, e quando tratou dos direitos que ela própria reconhece,

5 Ao longo de toda a Constituição da República de 1988, podemos encontrar a utilização dessa expressão, como no art.

4°, II, “A República Federativa do Brasil rege-se nas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] II –

prevalência dos direitos humanos”. Ou ainda o art. 5°, §3°: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos

humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos

respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

23

chamou de Direitos Fundamentais, tanto que o Título II é intitulado “Dos Direitos e

Garantias Fundamentais”.

O tema tem suscitado muitas dúvidas e confusões para os estudiosos, que por vezes

associam os Direitos Fundamentais às Liberdades Públicas e aos Direitos Humanos, não

estabelecendo distinção entre as matérias, conforme se manifesta Torres (1999, p. 254):

“Os direitos fundamentais ou direitos humanos, direitos civis, direitos da liberdade,

direitos individuais, liberdades públicas, formas diferentes de expressar a mesma

realidade”.

Apesar de expressar a mesma realidade, no que tange à limitação do poder do

Estado, bem como da efetivação destes direitos consagrados na Carta Magna, o uso destas

expressões como sinônimas é incorreto. Para Nogueira (1997, p.11), “as expressões

Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas têm sido,

equivocadamente, usadas indistintamente como sinônimos. Em verdade, guardam, entre si,

de rigor, apenas um núcleo comum, a liberdade”.

Segundo essa corrente, os Direitos Humanos são aqueles positivados em âmbito

internacional, com exigências básicas relacionadas à liberdade e igualdade, contudo sem

um estatuto jurídico positivo, enquanto os Direitos Fundamentais são aqueles em âmbito

doméstico, garantidos pelos ordenamentos jurídico-positivos através de suas Constituições.

Existem ainda aqueles que afirmam que liberdades públicas, Direitos Humanos ou

individuais são prerrogativas do indivíduo em face do Estado e destacam que as liberdades

públicas serão componentes mínimos do Estado Constitucional ou do Estado de Direito,

como no magistério de Bastos (1995, p. 139):

O exercício dos seus poderes soberanos não vai ao ponto de ignorar que há

limites para a sua atividade além dos quais invade-se a esfera jurídica do

cidadão. Há como que uma repartição da tutela que a ordem jurídica oferece: de

um lado ela guarnece o Estado com instrumentos necessários à sua ação, e de

outro protege uma área de interesses do indivíduo contra qualquer intromissão

ou aparato oficial.

Desta forma, ainda que se fale em restrição de direitos em favor da coletividade, há

uma linha muito tênue entre os instrumentos necessários para a atuação do Estado e os

interesses do indivíduo, caracterizando-se como antagônicos, haja vista a restrição das

liberdades consagradas na Constituição, através da imposição da soberania estatal.

24

De fato, o conceito de liberdades públicas gera muita polêmica e inúmeros debates.

São várias as teorias para tentar explicá-lo, conforme ensina Afonso da Silva (2014, p.

226):

Trata-se de uma concepção de liberdade no sentido negativo, porque se opõe,

nega, à autoridade. Outra teoria, no entanto, procura dar-lhe sentido positivo: é

livre quem participa da autoridade ou do poder. Ambas têm o defeito de definir a

liberdade em função da autoridade; não, porém, à autoridade legítima.

As liberdades públicas podem ser entendidas como os direitos e garantias

fundamentais da pessoa humana com o objetivo de resguardar a dignidade e estabelecer

um núcleo inderrogável, no sentido de proibir os excessos que porventura possam ser

cometidos pelo Estado, além de propiciar melhores condições no desenvolvimento da

personalidade humana no contexto social.

Nesse sentido, entende-se que todas as liberdades são públicas porque a obrigação

de respeitá-las é imposta pelo Estado e pressupõe sua intervenção, como na visão de

Grinover (1982, p. 7):

O que torna pública uma liberdade (qualquer que seja o seu objeto) é a

intervenção do poder, através da consagração do direito positivo; estabelecendo,

assegurando e regulamentando as liberdades, o Estado as transforma em poderes

de autodeterminação, consagrados pelo direito positivo.

Mesmo sustentada a tese da separação dos conceitos entre Direitos Humanos e

Direitos Fundamentais, existe certa dificuldade em estabelecer uma sistematização capaz

de atender à complexidade do tema e a sua estruturação, apresentando diversas

conceituações nas quais os autores examinam a questão sob aspectos variados, adotando

cada um, em seu contexto, o que lhe apetece.

Os Direitos Fundamentais, conforme ensina Freire (2001, p. 109), “são aqueles que

aplicados diretamente gozam de uma proteção especial nas Constituições dos Estados de

Direito; são provenientes de um amadurecimento da própria sociedade no que se refere à

proteção dos referidos direitos”.

A origem do termo Direito Fundamental surgiu na França no século XVIII

proveniente do processo de revolução política e cultural, que culminou com a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e logo se expandiu, conquistando adeptos

na Alemanha que estabeleceram um sistema de relação entre o indivíduo e o Estado,

enquanto fundamento de toda a ordem jurídico-política.

25

Desta forma, os Direitos Fundamentais, como conceitua Perez Luño (1995, p. 30-

31), são

un conjunto de facultades y instituciones que, en cada momento histórico,

concretan las exigencias de la dignidade, la libertad y la igualdad humanas, las

cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a

nivel nacional e internacional.

Dentre as vertentes apresentadas, para a elaboração do conceito de Direitos

Fundamentais, na visão deste autor, tais direitos devem ser considerados um conjunto de

poderes e instituições, que evoluíram ao longo da história, em razão das exigências de

concretização de preceitos como dignidade, liberdade e igualdade humanas, que devem ser

reconhecidas e positivadas pelos ordenamentos jurídicos tanto no âmbito doméstico quanto

internacional.

A expressão mais adequada, segundo o entendimento de Afonso da Silva (2014, p.

176) seria Direitos Fundamentais do homem porque,

Além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam

a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no

nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza

em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No

qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações

jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes,

nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por

igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e

materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no

sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos

fundamentais da pessoa humana ou direitos humanos fundamentais. É com esse

conteúdo que a expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da

Constituição, que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana,

expressamente no art. 17.

Partindo da premissa que os direitos fundamentais individualizam a pessoa em si,

projetando-a na sociedade em que vive, é necessário proteger tais direitos, a fim de

preservar as pessoas em suas interações no mundo social, protegendo-as diante do poder

do Estado.

Por outro lado, a terminologia Direitos Humanos é empregada para denominar os

direitos positivados através dos Tratados, Pactos e Convenções Internacionais, como

também as exigências essenciais relacionadas à dignidade, à liberdade e à igualdade, mas

que não possuem um estatuto jurídico positivo.

Os Direitos Humanos podem ser entendidos como,

26

Les droits et facultes assurant la liberté et la dignité de la personne humaine et

bénéficiant de guaranties institutionelles, n’ont été introduits que récemment

dans le corpus international. Ce n’est qu’après la Seconde Guerre mondiale et

ses atrocités qu’érmerge le Droit international des droits de l’homme avec la

multiplication d’instruments internationaux énoncant les droits garantis.

(SUDRE, 2006, p. 13).

O conceito de Direitos Humanos, universal e visando a proteção da dignidade da

pessoa humana em âmbito internacional, sem distinções de raça, credo ou nacionalidade,

são recentes no referencial teórico, pois foram introduzidos nos ordenamentos domésticos

e internacionais, somente após a Segunda Guerra Mundial, criando mecanismos e

instrumentos de proteção, tanto em âmbito global quanto regional.

Corroborando para a formação do conceito de Direitos Humanos, conforme explica

Pérez Luño (1998, p. 46-47), estes são

Un conjunto de universidades e instituciones en cada momento histórico,

encarnan las exigencias de la dignidad, la libertad, la igualdad humana, las

cuales deben ser reconocidas positivamente por las leyes a nivel nacional e

internacional. Por lo tanto tener un carácter descriptivo (los derechos y libertades

reconocidos en las declaraciones y convenciones internacionales), sino también

prescriptivos (llegar a los más vinculados a las necesidades humanas y los

requisitos del sistema que deben ser objeto positivación, sin embargo, no fueron

corroboradas).

Mais do que positivar as normas de proteção dos Direitos Humanos tanto no

âmbito interno quanto internacional, é preciso estabelecer que não há um fundamento

absoluto e irresistível na conceituação dos Direitos da pessoa humana, à medida que para

efetivar esses estatutos internacionais não pode o seu conteúdo estar sujeito a termos

avaliativos cuja interpretação é diversificada.

Entretanto, os direitos da pessoa humana, segundo Bobbio (1992, p. 23-24),

Não atingiram níveis mais elevados de eficácia, enquanto a argumentação girou

em torno de um fundamento absoluto irresistível. Para ele, a questão do

fundamento absoluto dos direitos do homem perdeu parte de sua relevância

porque, apesar da crise do fundamento, ainda assim foi possível construir a

Declaração Universal dos Direitos do Homem, como um documento que conta

com uma legitimidade praticamente mundial, apesar de não haver consenso

quanto ao que poderia ser considerado fundamento absoluto de tais direitos.

A abordagem terminológica acerca dos Direitos Fundamentais, como sustentam

várias teorias, não pode se confundir com os Direitos Humanos, muito embora a presente

pesquisa parta da concepção de complementariedade, assumindo assim uma terminologia

27

adotada inclusive por Alexandre de Moraes e José Afonso da Silva, qual seja a de Direitos

Humanos Fundamentais, ao passo que ao considerarmos a evolução das duas

terminologias, mesmo apresentando sustentações diferentes no ordenamento, vinculam-se

umas às outras, no sentido de que a primeira não pode existir sem a segunda e vice-versa.

A própria Constituição da República de 1988 também recorre a expressões

semanticamente diversificadas para fazer alusão a estes direitos, tais como: direitos

humanos (art. 4°, II); direitos e garantias fundamentais (Título II e art. 5°, §1°); direitos e

liberdades constitucionais (art. 5°, LXXI); e direitos e garantias individuais (art. 60, §4º,

IV).

Independentemente da expressão utilizada, todas remetem à necessária proteção à

dignidade da pessoa humana, como caráter essencial do sistema jurídico político do Estado

de Direito. Passamos, então, à análise do desenvolvimento histórico dos Direitos

Fundamentais, suas aspirações, lutas e conquistas que formaram o arcabouço jurídico que

serviu de legitimação e estruturação do Estado Democrático de Direito.

2.2 Desenvolvimento histórico dos Direitos Fundamentais

Os povos da Antiguidade foram descobrindo com suas próprias luzes e razão a lei

que o ser humano tem gravada em sua natureza, organizando-a de diversas maneiras em

códigos ou referências nas quais descobrimos os primeiros esforços em favor da pessoa

humana, desde a racionalidade natural.

De toda sorte, as leis gregas, a partir do século VI a.C., mais precisamente as de

Atenas, como observa Gusmão (1998, p. 284), “diferenciavam-se das demais leis da

Antiguidade por serem democraticamente estabelecidas. Assim, elas não eram decretadas

pelos governantes, mas estabelecidas livremente pelo povo na Assembleia; resultavam da

vontade popular”.

Entretanto, a concepção filosófica grega não concebeu um sistema de garantia dos

indivíduos contra o Estado ou governantes, porque a violação da personalidade do cidadão

estava sujeita à reprovação da “pólis”, por força de um julgamento ético e político, e não

juridicamente institucionalizado, derivando de uma vaga noção de justiça difusa na

consciência coletiva.

Enquanto os gregos pensavam de forma filosófica, os romanos pensavam na

formalização jurídica, tornando-se os grandes juristas da Antiguidade e reconhecendo a

28

possibilidade de divergência entre o justo e o lícito, conforme aponta Greco Filho (1989, p.

25):

Conceberam três estratos de ordem jurídica: o direito natural, racional e

perpétuo; o jus gentium, posteriormente identificado como elemento comum aos

diversos direitos positivos; e o direito civil, reservado aos cidadãos como

regulador das relações individuais. A superioridade e a racionalidade do jus

naturale, que não admitia, por exemplo, a escravidão, não tinham a força de

retirar a validade do jus gentium que a admitia. A preocupação romana, contudo,

foi o relacionamento interindividual, alcançando o processo romano alto grau de

evolução. Em suas três fases (das ações da lei, o período formulário e o da

cognitio extra ordinem), foi aprimorando a aplicação do direito, mas em nenhum

momento o mecanismo judicial se estruturou no sentido de garantir a pessoa

contra a vontade do imperador.

Destaca-se, ainda, outro marco importante na formação dos Direitos Fundamentais,

qual seja, a Lei das XII tábuas que pode ser considerada a origem dos textos escritos que

consagram a liberdade, a propriedade e a proteção aos direitos da pessoa humana.

Por esta razão, e já sob a égide do cristianismo, partindo-se de uma concepção

jusnaturalista de que “o homem foi criado à imagem de Deus”, é que se deflagra a

compreensão dos direitos da pessoa humana na organização política, conforme elucida

Sidney Guerra (2014, p. 6-7), “estabelecendo-se um vínculo entre o indivíduo e a

divindade e superando-se a concepção do Estado como única unidade perfeita, de forma

que o homem cidadão foi substituído pelo homem pessoa”.

Segundo esta visão, os direitos do homem deixam de pertencer a uma base

jusfilosófica, para consagrar que, não apenas aqueles considerados “cidadãos” teriam

direitos, mas os homens, de maneira geral, seriam sujeitos detentores destas prerrogativas,

ainda que, no início, esta proteção não fosse estendida a mulheres, crianças e escravos.

Na antiguidade greco-romana, o conceito de homem enquanto indivíduo, natureza e

dignidade não estava presente, o que somente foi revelado após a doutrina cristã

revolucionar e revelar a pessoa humana, pautada em dois valores, conforme explica

Conceição (1990, p. 19), “a dignidade da pessoa humana e a fraternidade universal, muito

embora sem ter instrumentalizado ou criado mecanismos concretos de proteção desses

direitos”.

Contudo, a par de visões diversas, e com o escopo de delimitar o corte histórico da

presente pesquisa, parte-se da concepção de que o início do movimento para

institucionalizar limites ao poder dos governantes ocorreu apenas no final do século XII,

muito embora não se tratasse de uma afirmação dos direitos inerentes à condição humana,

29

mas uma forma de proteção à propriedade privada e o estabelecimento de privilégios a

uma determinada classe, representando o fim de um período de soberania do monarca.

Nesse sentido, a proto-história desses direitos tem raízes, na visão de Sampaio

(2010, p. 141),

nos pactos medievais mediante os quais os senhores feudais retiravam dos reis

certas concessões e privilégios, apelando para um repositório imemorial de

princípios vagos, mas suficientes para sustentar suas leituras e interpretações

garantistas, the Common Law, como sucedeu com a Magna Carta de 1215.

O símbolo desse período foi marcado pela Magna Carta de 1215 que colocou fim

ao arbítrio real e representou a nova era das garantias individuais. É considerada por

alguns autores6 de importância mais histórica do que como um documento consagrador de

princípios modernos de proteção dos Direitos Fundamentais.

O surgimento dos Direitos Fundamentais, nesse momento histórico, desafia três

modelos distintos, que são por iguais formas de interpretação, orientados pelas

especificidades históricas de surgimento ou afirmação de três Estados-Nações: Inglaterra,

Estados Unidos e França. A história dos direitos humanos, de forma embrionária, deve ser

estudada sob o enfoque desses três modelos.

O primeiro, na Inglaterra, é marcado pelo pragmatismo, particularidades e evolução

gradual decorrente das lutas políticas travadas, inicialmente entre o rei e a nobreza, a

seguir entre a burguesia e a realeza com modulações para o conflito entre o Parlamento e o

Rei, encaminhando-se no decorrer dos séculos para um sistema parlamentarista com uma

série de direitos proclamados em documentos e resguardados pelo common law7.

A concepção de direitos individuais ainda não havia sido estruturada como no

sentido atual de direitos iguais para todos e que a todos podem ser contrapostos. Esta ideia

de obediência à legalidade, da existência de direitos da comunidade que restringia

inclusive os poderes do monarca, perdurou por toda a Idade Média.

Após esse período, como observa Sidney Guerra (2014, p. 9-10),

O velho continente conheceu uma verdadeira ‘crise de consciência’, ressurgindo

assim um grande sentimento de liberdade. O campo estava preparado para o

surgimento da Reforma, cujo princípio fundamental foi a liberdade de

consciência, de Rousseau, do enciclopedismo e da Revolução Francesa.

6 No magistério de Greco Filho (1989, p. 29), “os barões obrigaram João Sem-Terra, em 1215, a firmar a carta, as

modernas ideias de liberdade nem sequer tinham sido formuladas. ‘Liberdades’ significam privilégios para os barões, tais

como o de não pagarem ao rei taxas extraordinárias sem votação prévia deles próprios, o de escolherem os próprios

oficiais ou o de manterem uma corte de justiça”. 7 Sobre a história do common law, Plucknett (1956) e de Caenegem (1988), bem como os estudos de Baker (2000).

30

Em decorrência destes acontecimentos, que contribuíram para a maturação da

sociedade e para a ruptura de paradigma do feudalismo, deu-se ensejo ao desenvolvimento

social e histórico, com a promulgação de outras declarações como a Petição de Direitos, de

1629; a Lei de Habeas Corpus, de 1679 e o Bill of Rights, de 1689.

Na América, até o final do século XVII, poucos foram os incidentes ocorridos, até

pelo modelo colonial inglês, caracterizando-se por uma limitada ingerência nos assuntos

da colônia, o que permitiu seu desenvolvimento econômico e a formação de um

sentimento de autonomia, que se afirmou no decorrer dos anos e em especial com a crise

econômica que abateu a Inglaterra.

Quanto ao constitucionalismo americano e sua história de direitos, conforme Pound

(1957, p. 102-103),

Nourished by three types of ideas: one, pursued policies in the Puritan

Revolution, with emphasis on the primacy of the individual; others,

philosophical developed in the eighteenth century, and finally the arising legal or

ideas developed in disputes between the English courts and the Crown,

especially in the seventeenth century.

Este constitucionalismo é composto por três ideias fundamentais: a primeira,

política, pautada na Revolução Puritana, destacando-se o primado do indivíduo; a segunda,

filosófica, com origem no final do século XVIII, e por fim, as ideias jurídicas construídas

através das controvérsias entre tribunais ingleses e a Coroa, no século XVII.

A Declaração de Independência norte-americana deu início a uma nova era de

proteção do indivíduo, na medida em que trata do primeiro documento a afirmar princípios

democráticos na história da política moderna, destacando o povo como o grande

responsável e detentor do poder político, sem qualquer distinção de sexo, cor ou qualquer

outra manifestação social.

A instituição de governos entre os homens para garantir seus direitos naturais, no

entendimento de Comparato (2013, p. 89),

surgem de tal forma que seus poderes legítimos derivam do consentimento dos

governados, e toda vez que alguma Forma de Governo torna-se destrutiva (dos

fins naturais da vida em sociedade), é Direito do Povo alterá-la ou aboli-la, e

instituir uma nova Forma de Governo.

Na França, até fins da Idade Média, prevalece um sistema de normas familiares e

tradições, sem qualquer segurança do indivíduo relativamente aos fatos considerados

31

criminosos ou à pena imputável, com uma sociedade marcadamente estamental e o

catolicismo, a fé de ofício.

Os fundamentos que levaram à Revolução Francesa pautaram-se em três fatores,

que levariam a uma radical alteração desse quadro, conforme explica Sampaio (2010, p.

172-174):

O primeiro era religioso. [...] A divisão do catolicismo, com o surgimento dos

huguenotes, protestantes que seguiam as lições de Calvino, abriu um longo

período de conflitos e de guerras religiosas. [...] Um ganho de complexidade

social na França, merecendo o exame de possíveis alterações que se operavam

naquele tempo. [...] Os elementos econômicos que geraram o segundo fator de

transformação. [...] O terceiro fator era político. Havia uma comoção social

quase generalizada contra os desmandos da realeza.

A Revolução Francesa desencadeou a supressão das desigualdades entre os

indivíduos e grupos sociais, pautados na igualdade, dando fim às concepções de classes

sociais ou corporações de ofício, além de consagrar a fraternidade, como virtude cívica,

capaz de abolir todos os privilégios.

Foi assim que a consagração normativa dos Direitos Fundamentais da pessoa

humana coube à França, como explicita Sidney Guerra (2014, p. 11-12):

em 26/8/1789, a Assembleia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, prevendo, como por exemplo: o princípio da igualdade,

da liberdade, da legalidade, presunção de inocência, livre manifestação de

pensamento, entre outras.

Desta forma, percebe-se que o modelo francês tem ponto comum com os outros

dois modelos e divergências marcantes, ao passo que em todos eles há o processo de

afirmação do paradigma liberal de Estado, todavia com histórias bem distintas.

Na Inglaterra, essa afirmação se operou por um sistema de reformas ou de

acomodações sociais e políticas, enquanto na França se deu por meio de um processo

revolucionário que colocou abaixo o Estado absolutista e, nos Estados Unidos, coincidiu

com o movimento de independência e nascimento de um novo Estado.

A proteção humanitária, associada, sobretudo à ação da Cruz Vermelha, conforme

ensina Miranda (2000, p. 192-193)

É instituto destinado a proteger, em caso de guerra, militares postos fora de

combate (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e populações civis.

Remontando à Convenção de 1864, tem como fontes principais as quatro

Convenções de Genebra de 1949 e os seus princípios devem aplicar-se hoje quer

às guerras internacionais, quer às guerras civis e a outros conflitos armados. A

32

proteção humanitária refere-se a situações de extrema necessidade, integráveis

no chamado Direito internacional da guerra, e em que avulta o confronto com

um poder exterior. [...] Sob este aspecto, aproxima-se da proteção internacional

dos direitos do homem [...].

Nesse sentido, o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano

internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de

conflito armado, culminando com a criação da Liga das Nações cujo escopo era relativizar

a soberania dos Estados, pós primeira Guerra Mundial, promover a cooperação, a paz e a

segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade territorial e a

independência política de seus membros8.

As Declarações de Direitos consagradas ao longo da formação histórica dos

Direitos Fundamentais têm força na medida em que os movimentos constitucionais

sobrepujam seus ditames como princípios informadores e de validade de toda ordem

jurídica doméstica, e tornam-se válidas na medida em que esta mesma ordem jurídica está

preparada para torná-las efetivas.

Para analisar a evolução dos Direitos Fundamentais é necessário partir de um

aporte teórico por meio de um recorte na história avaliando os aspectos determinantes e

que representam avanços e retrocessos na busca pela efetividade dos Direitos

Fundamentais. Desta forma, será analisado a partir da Magna Carta de 1215 até a

internacionalização da proteção dos Direitos Humanos.

2.3 Da Magna Carta de 1215 à Declaração de Independência e a Carta Política

dos Estados Unidos da América

O marco teórico na presente pesquisa é a Magna Carta de 1215, também

denominada “Grande Carta”, pois representa a influência inicial mais significativa no

amplo processo histórico que culminou com o movimento constitucional da forma como o

concebemos na atualidade.

8 Nesse sentido, o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações consagrava: “As partes contratantes, no sentido de

promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais, com a aceitação da obrigação de não

recorrer à guerra, com o propósito de estabelecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e com o

extremo respeito para com todas as obrigações decorrentes dos tratados, no que tange à relação entre povos organizados

uns com os outros, concordam em firmar este convênio da Liga das Nações”.

33

A publicação original da Magna Carta foi redigida em latim bárbaro9,

sedimentando o acordo celebrado entre o rei João e os barões para a outorga das liberdades

da igreja e do reino inglês, representado por uma declaração solene que o rei João da

Inglaterra (também conhecido como João Sem-Terra), assinou, em junho de 1215, perante

o alto clero e os barões do reino.

Esta é a peça básica da Constituição inglesa, na visão de Ferreira Filho (2012, p.

11),

portanto de todo o constitucionalismo. Apesar de formalmente outorgada por

João Sem-Terra, é ela um dos muitos pactos da história constitucional da

Inglaterra, pois efetivamente consiste no resultado de um acordo entre esse rei e

os barões revoltados apoiados pelos burgueses.

Para compreender o cenário e o contexto histórico que levaram o rei João a assinar

esta Carta, é necessário analisar os precedentes históricos, a partir do século XI,

delineando, segundo Comparato (2013, p. 83), “uma clara tendência, em toda a Europa

Ocidental, no sentido da centralização do poder, tanto na sociedade civil quanto na

eclesiástica”.

A península itálica foi a região da Europa onde o feudalismo começou a extinguir-

se. A partir do final do século XI foram instituídas formas de limitar o poder político, no

quadro de uma organização republicana das comunas. Fato é que, na Europa feudal,

aprimorou a predominância de um dos suseranos sobre os outros, ou seja, o movimento

que culminou com a supremacia do rei.

Nessa esteira, a Igreja, através do movimento de reforço da autoridade espiritual e

do poder secular do papado, como observa Berman (1983, p. 38),

It was vigorously accelerated with the rise to the papal throne in 1073, the

Hildebrando monk, who took the name of Gregory VII. The reform or the

Gregorian revolution began a long feud between the emperor and the Pope as the

universal supremacy.

A ascensão da Igreja bem como das suas ambições quanto ao controle e poder,

colocaram em conflito as posições entre o imperador e o papa em relação à supremacia

universal, haja vista que, neste período feudal, difundiu-se a concepção de que o rei,

9 O vocábulo, oriundo da língua grega, era grafado no latim clássico com ch, mas foi usado, durante toda a Idade Média,

sem h. Embora o texto tenha sido redigido sem divisões nem parágrafos, ele é comumente apresentado como composto

de um preâmbulo e de sessenta e três cláusulas.

34

escolhido por Deus, é quem teria a legitimidade para decidir tanto sobre questões do reino

quanto sobre questões espirituais.

A resistência à centralização do poder, na sociedade civil, surgiu no final do século

XII e foi interrompida com o Renascimento e com a afirmação da monarquia absoluta de

direito divino e só voltaria a ser questionada no final do século XVII, na Inglaterra.

Conquanto, na Igreja, o poder papal, enfraquecido pelo rompimento do século XIV e o

movimento do Concílio de Constança10

, conduziu-se a partir da Reforma protestante e do

Concílio de Trento (1545-1563), em direção à monarquia absoluta.

O pano de fundo responsável pela insatisfação dos barões face o reinado de João,

da Inglaterra, foi decorrente da abertura de uma disputa com um rival pelo trono e o ataque

vitorioso das forças do rei francês, Filipe Augusto, contra o ducado da Normandia,

pertencente ao monarca inglês por herança dinástica, decorrente da família Plantagenet,

que fez com que o Lorde Inglês aumentasse a carga tributária a fim de financiar suas

campanhas bélicas.

Concomitantemente, segundo Comparato (2013, p. 85), “João Sem-Terra entrou

em colisão com o papado, ao apoiar contra este as pretensões territoriais do Imperador

Óton IV, seu sobrinho, em conflito declarado com o rei da França”. Além disso, o rei

inglês recusou-se a aceitar a designação de Stephen Langton11

como cardeal de

Canterbury, sendo por isso excomungado pelo Papa Inocêncio III.

Menos de dois anos depois, o rei João da Inglaterra enfrenta a revolta armada dos

barões, que chegaram a ocupar Londres, obrigando o rei a assinar a Magna Carta, como

condição para cessar as hostilidades, determinando já na primeira cláusula a liberdade

eclesiástica, apresentada pelo próprio cardeal Stephen Langton, cuja nomeação havia sido

recusada.

É no contexto dessa evolução histórica que deve ser apreciada a importância da

Magna Carta. Como salientou James Clarke Holt (2015, p.1),

10 Sob a pressão do Imperador Sigismundo, o Concílio de Constança (1414-1418) determinou pelo decreto Sacrosancta,

que o Papa deve submeter-se às decisões de um concílio ecumênico. 11 A disputa chamada “querela das investiduras” surgiu em meados do século XI, entre o Imperador e o Papa, a respeito

do poder, que os poderes laicos se arrogaram, de confirmar a nomeação de bispos em suas terras. Em 1059, o Papa

Nicolau II, desejoso de eliminar as práticas generalizadas de simonia (tráfico de sacramentos e benefícios eclesiásticos) e

de concubinato de padres, promulgou um primeiro decreto, recusando a investidura de bispos e abades pelo poder laico.

A proibição pontifícia foi reafirmada por sucessivos papas, notadamente por Gregório VII, o grande reformador da Igreja

na Idade Média. Para os imperadores, o poder de investidura dos bispos era de grande importância política, pois

implicava a vassalagem episcopal ao imperador; portanto, a supremacia do imperador sobre o papa, no governo local.

35

When published in 1215, it was a complete failure. Their goal was to secure

peace, and it caused the war. It aimed to consolidate in law customary law, and

ended up raising social dissent. I had a predetermined duration of three months,

and even within this limited period of time many of its provisions have not come

to be performed. However, the Charter was solemnly reaffirmed in 1216, 1217

and 1225, becoming, from that date, permanent right. Three of its provisions -

the numbers 1, 9 (14 in version 1225) and 29 (39 and 40 in version 1225) - are

still part of English law.

Ao contrário das previsões e objetivos da Magna Carta, quando editada em 1215,

ao invés de proporcionar a paz e consolidar em lei o direito costumeiro, trouxe guerra e

dissenso social, e muito embora sua vigência tenha sido predeterminada para apenas três

meses, foi reafirmada solenemente em 1216, 1217 e 1225, tornando-se assim, direito

permanente.

Com isso verifica-se que o cenário político apresentava uma volatilidade muito

acentuada, e com as constantes mudanças no cenário político-representativo, foram criadas

as normas que serviram de base para controlar o poder do soberano, face os comandados,

exigindo-se uma contrapartida do Estado para o pagamento de impostos.

As disposições da Magna Carta regularam várias matérias, observadas por

Comparato (2013, p. 93) “e nem todas elas podem ser tidas como importantes, na evolução

histórica tendente à progressiva afirmação dos direitos humanos e à instituição do regime

democrático”.

Desta forma, o texto da Magna Carta apresenta disposições de sentido puramente

provinciano, ao lado de outras que influenciaram as primeiras fundações da civilização

moderna, como exemplo a já destacada cláusula primeira que reconheceu as liberdades

eclesiásticas apontando para a futura separação entre Estado e Igreja.

É necessário destacar que a Magna Carta não é um documento precursor das

constituições modernas, ao contrário, é uma carta de compromisso, um contrato celebrado

entre rei e barões, na mais estrita tradição feudal, em que às partes, reciprocamente,

impõem-se direitos e obrigações. Contudo, não há como negar o caráter inovador da Carta,

como ensina Paixão (2011, p. 37): “Ela significa, claramente, a imposição de limites ao

poder real, com destaque para a tributação e o julgamento de indivíduos pelos tribunais

reais”.

Não se buscava através desta Carta proteger o indivíduo nem a coletividade, muito

menos reconhecer direitos de minorias exploradas, mas era tão somente um contrato

36

celebrado entre duas classes conflitantes, através do qual foram impostos limites à atuação

do monarca, dando assim, maior liberdade à classe em ascensão dos burgueses.

Se essa Carta, por um lado, não se preocupava com os direitos da pessoa humana,

como assevera Ferreira Filho (2012, p. 11), “mas sim com os direitos dos ingleses,

decorrentes da imemorial law of the land, por outro, ela consistia na enumeração de

prerrogativas garantidas a todos os súditos da monarquia”.

No tocante ao sistema tributário, elencou-se o princípio básico de que o poder

tributário para ser exercido deveria ser consentido pelos súditos, anunciando o brocardo de

que não haverá tributação sem que os contribuintes deem o consentimento, por meio de

representantes, disposto entre as cláusulas 12 e 14 do diploma, apresentando assim a

origem do moderno sistema parlamentar de governo.

Destaca-se, ainda o caráter material das proteções estabelecidas na Magna Carta,

como discorre Soares (1986, p. 37), “dando assim um caráter diferenciado ao

constitucionalismo antigo, ao pressupor, como regra uma ordenação material que é

fundamento e limite do poder, devendo a Carta ser interpretada ao tempo de sua emissão”.

Outro avanço significativo diz respeito à superação do estado servil, preparando a

substituição da vontade arbitrária do senhor, pela norma geral e objetiva da lei, ao estatuir

que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei,

assim disposto na Magna Carta através das cláusulas 16 e 23.

Como reflexo da ruptura de paradigma, o texto apresenta ainda em suas cláusulas

17 e 40 que o monarca não é dono da justiça, mas que esta constitui, em sua essência, uma

função de interesse público, e, portanto caberia ao rei o poder-dever de fazer justiça, assim

que solicitado por seus súditos.

A Magna Carta aponta a judicialidade como um dos princípios do Estado de

Direito, exigindo o crivo do juiz relativamente à prisão do homem livre, assim Ferreira

Filho (2012, p, 12), “conforme dispõe o ítem 39 “sem julgamento leal dos seus pares, de

conformidade com a lei da terra (law of the land)”, nenhum homem será detido ou preso,

ou despojado de seus bens, exilado ou prejudicado de qualquer maneira que seja”.

Nesse sentido está o coração da Magna Carta, como aponta Comparato (2013, p.

94) ao dispor que a cláusula 39

desvincula da pessoa do monarca tanto a lei quanto a jurisdição. Os homens

livres devem ser julgados pelos seus pares e de acordo com a lei da terra. Eis aí,

já em sua essência, o princípio do devido processo jurídico (dues process of

37

law), expresso na 14ª Emenda à Constituição norte-americana e adotada na

Constituição Federal brasileira de 1988 (art. 5°, LIV: “ninguém será privado da

liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”).

Outras disposições12

de avanço e proteção das garantias fundamentais estão

presentes nas cláusulas 20 e 21 que lançam as bases do tribunal do júri, começando o lento

processo de abolição das penas criminais arbitrárias e desproporcionais além de cláusulas

que visavam a proteção à propriedade privada contra os confiscos ou requisições

decretados abusivamente, através do enunciado das cláusulas 30 e 3113

.

E, por fim, a criação de um sistema embrionário de uma administração pública

autônoma e regular, através da cláusula 45 assim como a extensão a todos os senhores

feudais, em relação a seus dependentes e agregados, às mesmas limitações de poder que o

rei reconheceu para si, relativamente a seus súditos, conforme disciplinado na cláusula 60.

A Carta foi celebrada para resolver uma crise política. Num primeiro momento não

foi bem-sucedida, conforme observado por James Clarke Holt (2015, p.1), “In 1215 the

Constitution was a failure. It was meant to promote peace and triggered the war. She meant

to say customary law and promoted discord and strife”.

A Carta teve vigência abreviada, devido ao apoio do papa Inocêncio III, quando o

rei João decidiu, em 1216, não cumprir os termos ali especificados e a guerra civil

reiniciou. No mesmo ano ocorreu o falecimento do rei e houve sua sucessão por Henrique

III, que posteriormente entrou em acordo com os barões. A Magna Carta é reeditada em

1216, 1217 e 1225.

Durante aproximadamente seis séculos esse foi um dos maiores avanços na

proteção dos direitos e garantias fundamentais, contudo ainda limitado e provinciano, até

que durante o século XVII, a Inglaterra foi atingida por rebeliões e guerras civis,

alimentadas por querelas religiosas.

Promulgado exatamente um século antes da Revolução Francesa, o Bill of Rights

como ensina Comparato (2013, p. 105), “colocou fim, pela primeira vez, desde o seu

surgimento na Europa renascentista, ao regime de monarquia absoluta, no qual todo poder

emana do rei e em seu nome é exercido”.

12 Entre outras garantias, previa: a liberdade da Igreja da Inglaterra, restrições tributárias, proporcionalidade entre direito

e sanção, previsão do devido processo legal, livre acesso à Justiça, liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país

(MORAES, 2011, p. 7). 13 Isto não só provocou mais tarde a institucionalização do Parlamento, como lhe serviu de arma para assumir o papel de

legislador e de controlador da atividade governamental (FERREIRA FILHO, 2012, p. 12).

38

Em decorrência destas mudanças, a partir de 1689, na Inglaterra, os poderes de

legislar e criar tributos já não são prerrogativas do monarca, mas entram na esfera da

competência do Parlamento14

. Por essa razão, as eleições e o exercício das funções

parlamentares são cercados de garantias especiais, de modo a preservar a liberdade desse

órgão jurídico diante do chefe de Estado.

Muito embora não seja uma declaração de direitos humanos, da maneira como

viriam a ser aprovadas cem anos depois nos Estados Unidos e na França, com a divisão de

poderes, o Bill of Rights criou o que a doutrina alemã do século XX denominaria de

garantia institucional, como uma forma de organização do Estado cuja função, em última

análise, é proteger os direitos fundamentais da pessoa humana15

.

Importante destacar o contexto histórico e político da Inglaterra durante o período

analisado, culminando com a crise da forma de organização da sociedade (a Constituição

mista) que redefiniu o sentido do common law e lançou uma luz historicamente improvável

sobre aquele documento que será tomado como seu referencial, a Magna Carta.

Em síntese, como forma de evidenciar a modificação no regime político da

Inglaterra, destaca Asa Briggs (1999, p. 169-170):

Guilherme and Mary would govern under the invitation of the Parliament and

the people, and not by divine right. In fact, the presentation of the Bill of Rights

was before they accept the crown. That was the essence of the "Glorious

Revolution" of 1688. The real powers now limited, they had never been

explicitly defined, but the Bill of Rights, even stating declare ancient rights -

rather than creating new or abstract rights - established between other things, the

unlawfulness of fixing taxes without the consent of Parliament [...] and explicitly

stipulated that Parliament must approve any standing army in peacetime.

Guilherme e Maria passariam a governar não mais por vontade divina, mas por

força do convite formulado pelo Parlamento e pelo povo, uma vez que a Declaração de

Direitos ocorreu antes que aceitassem a coroa, tornando-se esta, a essência da Revolução

Gloriosa de 1688, limitando os poderes reais. Foi estabelecido, entre outras coisas, a

ilegalidade da fixação de tributos sem a anuência do Parlamento e estipulado que este

14 No que diz respeito ao regime político, como destaca Paixão (2011, p. 40), “a contar do século XIV, ficou

definitivamente implantada a instituição do Parlamento bicameral – Casa dos Lordes e Câmara dos Comuns –, que se

separa gradativamente do Conselho Privado do rei e passa a coexistir com a administração real e os tribunais do common

law (que se tornam cada vez mais autônomos em relação à pessoa do rei, diante da vinculação aos precedentes)”. 15 A história completa do conceito de garantia institucional, na Alemanha, encontra-se em Klaus Stern (STERN, Klaus.

Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lenren der Grundrechte. t.III/1, Munique: C.H. Beck,

2006 ,§68).

39

precisa aprovar qualquer exército permanente, em tempos de paz, demonstrando a efetiva

interferência do parlamento nas decisões que envolviam a coletividade.

Para estabelecer uma distinção nesse processo de mudança de paradigmas,

importante destacar a teoria da diferenciação social construída por Niklas Luhmann, a

partir da constatação alusiva à complexidade das possibilidades de ação e de sentido que o

mundo propicia à observação. Nessa ótica, prescreve Luhmann (1973, p. 100),

la perspectiva de una complejidad que va más allá de las condiciones de acceso

sensualmente estableció el observador trae una tarea fundamental: reducir esta

complejidad y la búsqueda de una descripción coherente de los contratos

sociales comprobado largo de la historia.

Numa sociologia complexa que ultrapassa as condições de acesso sensorialmente

estabelecidas, espera-se que as múltiplas estruturas presentes na dinâmica social como

“complexos sistemas de ação” relacionem essas estruturas, como por exemplo, famílias,

associações, estados, economias, igrejas, sociedades, para que possam ser compreendidas

através de uma descrição coerente dos contratos sociais verificados ao longo da história.

O aumento da complexidade e das possibilidades de sentido leva ao esgotamento

da forma segmentária e à construção de novas organizações sociais, pautadas no princípio

estruturante dessa forma de diferenciação, qual seja, a distribuição desigual do poder e de

riqueza, a partir da divisão hierárquica dos papéis sociais em camadas.

Com o declínio da hegemonia feudal e a liberação do potencial de complexidade

produzida e estruturada com o Renascimento da Idade Média, houve uma flexibilização na

descrição da sociedade, mantendo-se o núcleo essencial da diferenciação por estratos.

Uma convenção parlamentar reuniu-se e apresentou, em fevereiro de 1689, a

Declaração de Direitos, em que ficavam claramente definidos os poderes do rei e as

prerrogativas do parlamento. Como ensina Comparato (2013, p. 106),

O parlamento inglês, à época, era composto, em sua maior parte, de

representantes da nobreza e do alto clero (Lords Spiritual and Temporal). Mas a

instituição em si não estava ligada indissoluvelmente a essa forma de

representação e podia muito bem servir à democracia representativa nascente,

como os séculos ulteriores vieram demonstrar.

O Bill of Rights, enquanto lei fundamental, era complementar e permanece até a

contemporaneidade como um dos mais importantes textos constitucionais do Reino Unido,

proporcionando assim uma transformação social que ao limitar os poderes governamentais

40

e garantir as liberdades individuais, suprimiu a maior parte das querelas jurídicas que

atravancavam a atividade profissional dos burgueses.

Reflexo desse movimento, a Revolução Gloriosa16

contou com o apoio maciço dos

comerciantes e armadores ingleses, decididos a enfrentar a concorrência francesa no

campo do comércio marítimo, contrariando o esquema marxista de interpretação histórica,

quando a revolução política criou condições para a revolução industrial do século seguinte,

ou seja, as relações sociais precederam e tornaram possível a transformação das forças

produtivas.

Nesse contexto, o Bill of Rights foi promulgado num contexto histórico de grande

intolerância religiosa, conforme ensina Comparato (2013, p. 107), “iniciado em 1685 com

a revogação por Luís XIV do edito de Nantes, de 1598, que reconheceu aos protestantes

franceses a liberdade de consciência, uma limitada liberdade de culto e a igualdade civil

com os católicos”.

A Revolução Inglesa apresentou, assim, um caráter contraditório no tocante às

liberdades públicas, ao passo que se, de um, lado, estabeleceu a separação de poderes

como garantia das liberdades civis, por outro lado, essa fórmula de organização estatal,

constituiu o instrumento político de imposição, a todos os súditos do rei da Inglaterra, de

uma religião oficial.

Como salientado por Trevelyan (1996, p. 52-53),

En un sentido, Jaime estaba en lo cierto: el verdadero equilibrio de poderes y

parlamentaria en Inglaterra constantemente anular la eficacia del gobierno, como

en la cuestión del ejército permanente. Era necesario decidir de una vez por

todas cuál de los poderes debe prevalecer. Jaime forzó la decisión.

Entretanto, o equilíbrio de poderes entre a realeza e o parlamento na Inglaterra

anulava constantemente a eficácia do governo, a exemplo das questões envolvendo o

exército permanente. Era necessário, para o desenvolvimento, decidir qual poder deveria

prevalecer.

Desta forma, o momento principal constitucional inglês ocorreu durante os eventos

que tiveram curso entre 1688-1689, ou seja, durante a Revolução Gloriosa, com a

deposição de Jaime II, abrindo-se a oportunidade para a decisão em torno dos fundamentos

do regime político inglês.

16 Em dezembro de 1689, a Declaração foi aprovada formalmente pelo Parlamento e passou a constituir o Bill of Rights

da Inglaterra. Essa é a essência da Revolução Gloriosa, em que os eventos ocorridos em 1688-1689, uma série de outras

normas apenas esclareceu e aprofundou os contornos na nova estrutura política inglesa. (PAIXÃO, 2011, p. 86).

41

Contudo, o resultado foi diferente do alcançado com a guerra civil, que havia sido

desencadeada 46 anos antes da Revolução Gloriosa, entretanto, sem conflitos armados,

tampouco batalhas decisivas ou a abolição da monarquia, cuja solução encontrada pode ser

classificada, na expressão utilizada por András Sajó (1999, p. 1-16), como um “legitimate

copy of ‘constitucionalismo fear’”.

Mas o essencial do documento consistiu em instituir a separação de poderes, com a

declaração de que o Parlamento é um órgão precipuamente encarregado de defender os

súditos perante o Rei e cujo funcionamento não pode, pois, ficar sujeito ao arbítrio deste,

fortalecendo a instituição do júri e reafirmando alguns direitos fundamentais dos cidadãos,

sendo expressos até a contemporaneidade, como o direito de petição e a proibição de penas

inusitadas ou cruéis.

A experiência da guerra interna e das perseguições religiosas e políticas deixou

marcas profundas na sociedade inglesa, gerando um sentimento de “desilusão”, em grande

parte da consciência política inglesa do período da Revolução. Nesse sentido elucida

Trevelyan (1976, p. 8-9),

Un cierto grado de desilusión ayuda a los hombres a ser prudente y en 1688, los

hombres eran doblemente decepcionados por primera vez por el gobierno de los

"Santos" bajo Cromwell, y luego el gobierno "Ungido del Señor" bajo Jaime.

Pero, sobre todo, impartido por experiencia, los hombres huyeron a otra guerra

civil. El niño quema una vez que se escapa el fuego. El mérito de esta revolución

no está en gritos o en los disturbios, pero en una voz tranquila y suave de la

prudencia.

O fim da Constituição mista não significou um governo essencialmente popular,

tendo em vista a presença de sérias restrições ao sufrágio e o voto censitário, e tampouco o

estabelecimento de um documento de cunho fundacional ou superior ao restante do direito

inglês, uma vez que grande parte da Constituição inglesa continuou a ser não escrita e

tradicional. Como descreve Munro (1987, p. 5), “the country's government never rest on a

single in mark”.

As liberdades usufruídas pelos ingleses, especialmente após a Revolução Gloriosa,

foram um fator importante na instituição das colônias inglesas na América do Norte, cuja

mudança na percepção do significado dessas liberdades e da sua violação pelo Parlamento

inglês desempenharam um papel decisivo no processo histórico que conduziu à

independência dos Estados Unidos da América.

42

A representação popular, a limitação dos poderes governamentais e a tendência de

respeito aos direitos humanos culminaram com a independência das antigas treze colônias

britânicas da América do Norte, em 1776, reunidas primeiro sob a forma de uma

confederação e constituídas em seguida em Estado federal, em 1787, representando o ato

inaugural da democracia moderna.

Quanto aos fatores que conduziram ao regime político adotado pelos Estados

Unidos da América após a Declaração de Independência, pode ser analisado sob dois viés,

conforme aponta Paixão (2011, p. 91),

Por um lado, é possível traçar uma forte linha de continuidade entre as

experiências inglesa e norte-americana, a ponto de considerar a fundação do

constitucionalismo moderno [...] uma mera continuação lógica do processo de

aquisição de liberdades e de limitação do poder político iniciado e desenvolvido

na Inglaterra; por outro lado não é impossível justificar a completa originalidade

da invenção constitucional norte-americana, afirmando que a herança inglesa

representou, na verdade, um obstáculo a ser superado pelos revolucionários

norte-americanos, que teriam logrado estabelecer um regime político-

constitucional.

Contudo, apesar dessa visão polarizada dos motivos que levaram ao

constitucionalismo norte-americano, não há que se estabelecer uma crença na continuidade

histórica ou no seu progresso, tampouco um exagerado ceticismo quanto à possibilidade de

encontrar fontes, vestígios ou correspondências no passado.

Desta forma, na apreciação do fenômeno de mudança social e política ocorrida à

partir da segunda metade do século XVIII, com o consequente desenvolvimento do

constitucionalismo nos Estados Unidos, é possível destacar que a Constituição muito

embora represente uma inovação política e conceitual de enorme relevância, não se trata

de resultado da atuação surpreendente de um grupo de pessoas dotadas de um tal poder

criativo a ponto de propiciar a modificação, num dado momento e sem referências

anteriores, da prática e da linguagem políticas.

Dito isto, destaca-se que a noção moderna de Constituição, enquanto pacto social e

político, tal como surgida nos Estados Unidos da América, não tem precedente na história,

e que a consagração de Direitos Fundamentais, a divisão de poderes e a limitação do

governo são elementos importantes para a compreensão de todo o processo e para a

afirmação do constitucionalismo moderno, através da condensação dessas normas em um

único documento.

43

Na verdade, a própria ideia de que a Constituição seja interpretada e vivida como

uma norma supralegal, como ensina Stourzh (1988, p. 48), “which depends on the validity

of all other normative acts in a given political community, is the most significant

invocation of constitutionalism in America”.

Ademais, é preciso destacar a modificação política como uma nova fundamentação

para a normatividade, como uma forma de explicar a estrutura e a dinâmica da sociedade,

passando esta além de reconhecer a conquista evolutiva da formalidade constitucional, mas

também a questionar, criticamente, a concepção de Constituição como forma e sua

aplicabilidade cada vez mais complexa, buscando-se não apenas uma igualdade formal

mas também material.

Para a fundação de uma sociedade igualitária, observa Comparato (2013, p. 112):

Muito contribuíram os quacres, que imigraram da Inglaterra no século XVII.

Eles eram resolutamente antimonarquistas, reivindicavam a posse em comum

das terras da lavoura e recusavam-se a tirar o chapéu diante das autoridades.

O princípio da igualdade jurídica entre os homens livres, como se sabe, foi o

traço da sociedade americana que mais impressionou Alexis de Tocqueville [...].

Tão marcado ficou o jovem magistrado francês com o fato de ex-colônias

europeias haverem repudiado completamente a organização aristocrática

tradicional do Velho Continente que desenvolveu, em obra famosa, a tese da

democratização inelutável da humanidade, no futuro próximo.

De todo modo, a pseudoigualdade jurídica não representou um nivelamento

socioeconômico da sociedade norte-americana, apesar da supressão dos privilégios

estamentais. A livre circulação de bens num mercado unificado representou um dos mais

importantes estímulos ao desenvolvimento da economia capitalista.

Ademais, complementa Comparato (2013, p. 114), “além da igualdade essencial de

condição jurídica do indivíduo surgem outras duas grandes características culturais da

sociedade norte-americana voltadas às liberdades individuais e à submissão dos poderes

governamentais ao consentimento popular”.

A América do Norte foi, desde o início, uma sociedade de proprietários, em que a

igualdade perante a lei exercia a função de garantia fundamental da livre concorrência, ou

seja, era uma democracia burguesa, que reunia as classes dominantes do Estado federal

que se pretendia criar, ao afirmar que as câmaras legislativas, com raras exceções, seriam

compostas de proprietários rurais, comerciantes e profissionais liberais.

44

A linguagem política utilizada no contexto revolucionário, como destaca Bailyn

(2003, p. 41-67), poderia indicar três fontes fundamentais para a consolidação das ideias

que teriam inspirado os fundadores da nação norte-americana:

A Antiguidade Clássica, o common law praticado na Inglaterra e o

jusnaturalismo europeu. Com efeito, essas três distintas manifestações

intelectuais foram componentes importantes da prática revolucionária. Autores

como Platão, Cícero, Horácio, Virgílio, Coke, Blackstone, Locke, Rousseau,

Beccaria e Burlamaqui, dentre vários outros pertencentes às tradições enfocadas,

foram de fato transcritos, apropriados, lidos, discutidos e utilizados como

referências nos vários escritos revolucionários.

Uma das características mais notáveis da Declaração de Independência dos Estados

Unidos reside no fato de ser ela o primeiro documento a afirmar os princípios, na história

política moderna, ligado à nova legitimidade política: a soberania popular. Na concepção

dos chamados ‘pais fundadores dos Estados Unidos’, a soberania popular acha-se, assim,

intimamente unida ao reconhecimento de direitos inalienáveis de todos os homens, entre os

quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

A importância histórica da Declaração de Independência está ligada ao conceito de

felicidade17

: o primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da

soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano, independentemente

das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social.

A Confederação dos Estados Unidos da América do Norte nasce sob a invocação

da liberdade. Desta forma, aponta Comparato (2013, p. 120),

sobretudo da liberdade de opinião e religião, e da igualdade de todos perante a

lei. No tocante, porém, ao terceiro elemento da tríade democrática da Revolução

Francesa – a fraternidade ou solidariedade – os norte-americanos não chegaram

a admiti-lo nem mesmo retoricamente. A isto se opôs, desde as origens, o

profundo individualismo, vigorante em todas as camadas sociais; um

individualismo que não constituiu obstáculo ao desenvolvimento da prática

associativa na vida privada, como bem observou Tocqueville, mas que sempre se

mostrou incompatível com a adoção de políticas corretivas das grandes

desigualdades sócio-econômicas.

17 Não é de se afastar, por outro lado, a provável influência que sobre Jefferson exerceu o rico pensamento francês sobre

o tema, durante o século XVIII (MAUZI, Robert. L’Idée de bonheur dans la littérature et la pensée françaises au

XVIII siècle. Paris: A. Colin, 1960). Rousseau, por exemplo, afirmou que “quanto mais bem organizado um Estado,

maior o predomínio das questões públicas sobre as privadas, porque a soma da felicidade comum fornece uma porção

mais considerável à felicidade de cada indivíduo e, por isso mesmo, há menos necessidade de se procurar a felicidade

através dos cuidados particulares de vida” (Do Contrato Social, livro 3°, cap. XV).

45

Nas nações da Europa Ocidental, a proclamação da liberdade democrática, com a

valorização dos direitos humanos, somente ocorreu com a Revolução Francesa, em 1789,

onde, até então, a soberania pertencia legitimamente ao monarca, auxiliado no exercício do

reinado pelos estratos sociais privilegiados.

2.3.1 Modernas declarações de direitos: francesa e americana

A ideia de uma revolução, assim como a análise semântica do termo Revolutio, em

latim, é o ato efetivo de resolvere (volvere significa volver ou girar, com o prefixo re

indicando repetição), no sentido literal de rodar para trás e no figurativo de retornar ao

ponto de partida, ou ainda de relembrar-se.

O uso político do vocábulo tem origem inglesa18

, no sentido de uma volta às

origens, com uma restauração dos antigos costumes e liberdades, indicando o

reconhecimento de que a história política é cíclica ou repetitiva.

O movimento que eclodiu na França em 1789 trouxe um novo significado à palavra

Revolução, passando a indicar uma renovação completa das estruturas sociopolíticas, a

instauração não apenas de um novo governo ou de um regime político, mas de toda uma

sociedade, no conjunto das relações de poder que compõem a sua estrutura.

A ruptura de paradigma, que representa o fim do feudalismo, com a queda da

monarquia e o início do capitalismo, deve ser analisada à luz do pensamento de Hobbes19

e

Maquiavel20

, como os grandes filósofos dos séculos XVI e XVII, que ainda influenciam

significativamente o pensamento político ocidental.

Os revolucionários já não buscam restaurar a antiga ordem política, mas induzir o

nascimento de uma sociedade sem precedentes históricos, utilizando todas as armas

disponíveis, inclusive e, sobretudo, a violência21

, a fim de que direitos antes pertencentes

18 O termo revolution é assim usado, pela primeira vez, para caracterizar a restauração monárquica de 1660, após a

ditadura de Cromwell. Vinte e oito anos depois, o episódio da derrubada da dinastia Stuart, com a consequente

entronização do duque de Orange e sua mulher, ficou definitivamente marcado nos relatos históricos como a Glorious

Revolution. No Bill of Rights de 1689, de resto, a ideia dominante, expressa já no preâmbulo, é a da restauração das

antigas prerrogativas dos súditos diante do monarca, numa tradição histórica que remonta à Magna Carta

(COMPARATO, 2013, p. 140-141). 19 Ao publicar sua obra-prima em 1951, Leviatã, Hobbes deixa claro o pessimismo quanto à natureza humana ao concluir

que o homem seria essencialmente mau, egoísta e ambicioso, existindo como tendência geral de todos os homens um

perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte (HOBBES, 2003, p. 78-102). 20 Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, Nicolau Maquiavel, no clássico O príncipe, de 1512, aconselhava que o

soberano, na condução dos negócios públicos, deveria fazer o possível para se manter no poder, com base nas leis ou

com base na força: o primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais, cabendo ao príncipe saber se comportar

como homem e como animal (MAQUIAVEL, 2007, p. 119-137). 21 “A força”, escreveu Karl Marx em O Capital, “é a primeira de toda sociedade velha que traz uma nova em suas

entranhas” (MARX, 2008, p. 864).

46

apenas a uma classe favorecida ou escolhida por Deus, pudesse ser estendida a outras

classes.

A convicção de fundar um mundo novo, que não sucedia o antigo, mas a ele se

opunha radicalmente, levou os revolucionários à destruição de inúmeros monumentos

históricos e obras de arte, além de abolir o calendário cristão22

e substituí-lo por um novo,

além de substituir e introduzir um novo sistema de pesos e medidas.

Uma das principais diferenças é que a Revolução Francesa não se apresenta como

sucessora de um regime que desaparecia por morte natural, mas como a destruidora

voluntária do regime antigo, de forma violenta, representando segundo Comparato (2013,

p. 144), “a negação dos direitos humanos e da soberania popular, em cujo nome se abrira o

movimento revolucionário”.

Para que pudesse ocorrer essa mudança de paradigma, destaca-se o racionalismo

abstrato dos líderes revolucionários de 1789, que se preocupavam mais em defender a

pureza das ideias do que a dignidade concreta da pessoa humana, substituindo o império da

tradição, variável de povo a povo, para um espírito que pudesse ser sempre o mesmo em

todos os tempos e lugares, dando assim um caráter de universalidade de direitos.

Quanto aos Direitos Humanos, a Revolução Francesa e suas extensões militares por

quase todo o continente já haviam esgotado o que tinham a oferecer, conforme observa

Trindade (2012, p. 45):

Igualdade civil e liberdade individual – uma e outro muito relativizadas pela

desigualdade social que se consolidava no capitalismo. Isso não foi pouco, se

comparado com o modo de vida da sociedade feudal, mas deixava muito a

desejar para a maioria da população que, como visto, sonharia mais alto. Os

anseios de igualdade social ou, ao menos, de algo que se aproximasse disso

foram ferozmente frustrados pelos revolucionários burgueses que, malgrado sua

aliança com o campesinato e com as massas populares urbanas, sempre

conservaram a hegemonia política e, por isso, imprimiram ao processo de

transformações a marca dos seus interesses de classe.

Por meio deste estilo abstrato e generalizante é que se pode distinguir a Revolução

Francesa do Bill of Rights dos Estados Unidos, uma vez que os americanos, em regra,

estavam mais interessados em firmar sua independência e estabelecer seu próprio regime

político do que levar a ideia de liberdade a outros povos.

22 O calendário republicano foi criado por decreto da Convenção de 24 de outubro de 1973. O ano começava no

equinócio de outono e era dividido em 12 meses de 30 dias cada um, mais 5 ou 6 dias complementares, consagrados à

celebração das festas republicanas. Cada mês era dividido em três décadas ou grupos de 10 dias. O calendário

republicano vigorou até 1° de janeiro de 1806; mas desde 2 de dezembro de 1804, quando Napoleão foi sagrado

imperador, a França já havia deixado de ser oficialmente uma república (COMPARATO, 2013, p. 143).

47

A consagração normativa dos Direitos Humanos Fundamentais, enquanto abstrata e

universal, coube à França, em que dentre as inúmeras e importantes previsões, destaca

Moraes (2011, p. 9), estão

o princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à

opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal

e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção de inocência, liberdade

religiosa, livre manifestação de pensamento.

O movimento de normatização das leis e condensação em um único documento

denominado Constituição ganhou força não apenas no continente europeu, mas também na

América, simbolizando mais que o desejo de liberdade das antigas colônias, uma forma de

limitar o poder estatal, e legitimar os direitos e garantias fundamentais.

Esses ideais de universalismo e formação de um pacto social e político foram

difundidos, em pouco tempo, não apenas na Europa, assim como elucida Comparato

(2013, p. 147), mas “também em regiões distantes como a Índia, a Ásia Menor e na

América Latina. Destaca-se a conspiração baiana de 1798, pela qual as ideias

revolucionárias francesas já haviam conquistado os oficiais e artesãos mais humildes”.

Os ideais da Revolução Francesa desencadearam a supressão das desigualdades

entre indivíduos e grupos sociais, destacando-se da famosa tríade, a busca pela igualdade

como ponto central, uma vez que a liberdade, para os homens de 1789, limitava-se a

suprimir questões ligadas à existência de estamentos ou corporações de ofício, enquanto a

fraternidade era concebida como uma virtude cívica, cujo resultado seria a abolição de

todos os privilégios.

Na luta contra as desigualdades, foram extintas todas as servidões feudais, além de

se proclamar, em 1791, a emancipação dos judeus e a abolição de todos os privilégios

religiosos, além de proibir por meio de decreto o tráfico de escravos nas colônias23

,

entretanto, sem avançar no campo da desigualdade entre os sexos.

No que tange à liberdade política, a Declaração de 1789 entendeu-a antes como

uma libertação da “tirania monárquica” do que propriamente como a efetiva instauração de

um regime plúrimo de liberdades individuais, dando início a um novo tipo de conflito

bélico, com o intuito de libertar os povos da opressão interna e externa.

23 Esse decreto foi revogado em 1802, durante o Consulado. Mas a própria fórmula da revogação é significativa: “o

tráfico de negros e sua importação nas colônias far-se-ão conforme as leis e regulamentos existentes antes de 1789”. Ou

seja, reconheceu-se que a proibição do comércio de seres humanos era uma consequência implícita dos princípios

proclamados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (COMPARATO, 2013, p. 149).

48

Os direitos de votar e ser votado, no magistério de Trindade (2012, p. 46-47),

Ficaram, de fato, restritos à elite econômica, modelo que se disseminou até o

final do século XIX, seja por muitas variantes de qualificação censitária do

eleitorado (isto é, baseado em censo prévio de patrimônio ou renda), seja

mediante subterfúgios jurídicos aparentemente ‘democráticos’, às vezes até

engenhosos.

Muito embora a ideia inicial fosse estabelecer uma igualdade, inclusive política-

formal, através do sufrágio e da elegibilidade universal, que foram motivos de discursos

eloquentes durante a Revolução, jamais deixou de ser uma retórica convincente, mesmo no

ápice das transformações em 1792-1793. As classes populares quase conseguiram impor

seus pontos de vista a esse respeito.

Os revolucionários franceses entendiam que a libertação da França representava

apenas a primeira etapa para a instauração do reino universal da liberdade igualitária,

colocando em prática o paradoxo que Jean Jacques-Rousseau formulou no Contrato Social,

em que os líderes mais exaltados enxergavam na invasão militar de outros países uma

espécie de recurso extremo, a fim de forçá-los a serem livres24

.

O processo revolucionário do Bill of Rights norte-americano deu ênfase a criação

de garantias judiciais a fim de que esses direitos pudessem ser efetivados, enquanto a

Revolução Francesa se limitou a declarar direitos, sem mencionar os instrumentos judiciais

que os garantissem, o que pode ser considerado como meras exortações, sem efetividade.

Ao se entender que o Direito vive, em especial, na consciência humana, o fato de

direitos subjetivos estarem desacompanhados de instrumentos assecuratórios não impede o

seu reconhecimento no meio social como exigências impostergáveis, e que como aponta

Comparato (2013, p. 152), “a vigência dos direitos humanos independe do seu

reconhecimento constitucional, ou seja, de sua consagração no direito positivo estatal

como direitos fundamentais”.

Por essa razão, embora seja apenas uma proclamação de direitos, ainda que despida

de garantias efetivas de seu cumprimento, pode exercer o feito de um ato esclarecedor,

iluminando a consciência jurídica universal e instaurando uma evolução histórica na

valorização da pessoa humana e na conquista dos direitos e garantias fundamentais.

24 “A fim de que o pacto social, portanto, não seja uma fórmula vã, ele há de conter tacitamente esse compromisso, que é

o único a dar força aos demais, qual seja o de que todo aquele que se recusar a obedecer à vontade geral será compelido a

isso por todo o corpo social: o que não significa outra coisa senão que ele será forçado a ser livre” (ROUSSEAU, 1981,

p. 75).

49

A consagração normativa dos direitos fundamentais da pessoa humana, como

descreve Guerra (2014, p. 11), “coube à França, quando em 26/8/1789, a Assembleia

Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, prevendo, por

exemplo, o princípio da igualdade, da liberdade, da legalidade, livre manifestação de

pensamento, entre outras”.

Tanto a Declaração norte-americana quanto a francesa representam a emancipação

histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais por tradição sempre estiveram

subordinados como a família, o estamento, o clã, as organizações religiosas, consagrando

desta forma a experiência inglesa da Magna Carta de 1215, evidenciando-se, a partir daí,

as declarações de direitos formais, e a sua incorporação nos textos constitucionais,

inicialmente como preâmbulo, e às vezes, como capítulo autônomo.

Contudo, surge um problema político decorrente deste movimento revolucionário

francês, qual seja, o de encontrar outro titular da soberania, ou poder supremo, em

substituição ao monarca, uma vez que a monarquia absoluta se tornou inaceitável para a

nova classe ascendente, a burguesia.

Para resolver a questão da soberania e da legitimidade em ocupar o ápice da

representatividade, observa Comparato (2013, p. 156),

Em lugar do monarca, que deixava o palco, entrava em cena uma entidade

global, dotada de conotações quase sagradas, que não podiam ser contestadas

abertamente pela nobreza e pelo clero, sob pena de sofrerem a acusação de

antipatriotismo; entidade essa que, de qualquer forma, pairava acima do povo,

onde predominava a força numérica dos não proprietários.

A grande vantagem prática da fórmula encontrada pelos deputados do Tiers Etat25

foi que o novo soberano, pela sua própria natureza, era incapaz de exercer pessoalmente o

poder político, podendo existir politicamente como referência simbólica, mas atuando

somente por meio de representantes.

A Revolução ao suprimir a dominação social fundada na propriedade da terra, ao

destruir os estamentos e abolir as corporações, acabou por reduzir a sociedade civil a uma

coleção de indivíduos abstratos, perfeitamente isolados em seu egoísmo, criando-se a

25 “O terceiro estamento” tinha como identidade social, a composição por todos aqueles que, excluídos da nobreza e do

clero, não gozavam dos privilégios ligados a estas duas ordens superiores, sendo portanto, um aglomerado social

heterogêneo, formado de um lado pela classe burguesa e pelo enorme grupo social restante designado como o povo

(COMPARATO, 2013, p. 154).

50

liberdade individual fundada na vontade, ao passo que a filosofia substituía a tirania da

tradição pela liberdade da razão.

Os “direitos do cidadão” passaram a servir de meios de proteção aos “direitos do

homem”, e a vida política tornou-se um mero instrumento de conservação da sociedade

civil, sob a dominação da classe proprietária. Mesmo rompendo com a antiga tradição

monárquica, ainda é possível perceber resquícios da necessidade de se estabelecer o poder,

e a sua manutenção por uma minoria, que dita os rumos de toda a sociedade.

Importante destacar que, inicialmente, o conceito desenvolvido de “cidadão” não

pode se coadunar com a ideia de homem, haja vista que, aqueles pertenciam apenas a uma

classe em ascensão, a burguesia, mas em uma sociedade machista, escravocrata e

preconceituosa, que não reconhecia nem estendia estes direitos às mulheres, crianças nem

escravos, enquanto o ideal do conceito de “homem” buscava uma proteção universal e

abstrata de todo e qualquer ser humano.

Dentre as obras de todos os filósofos do século XVIII, as de Montesquieu e Jean

Jacques-Rousseau foram as que mais influenciaram o espírito dos revolucionários de 1789,

pela ideia da necessidade de uma limitação institucional de poderes dos governantes, e

pelo princípio de que a vontade geral do povo é a única fonte de legitimidade dos

governos.

A fonte inspiradora para as transformações e revoluções, no que tange à formação

do pacto social e político, pode ser atribuída, na visão de Comparato (2013, p. 162), a

Rousseau: “Rousseau, em especial, é geralmente considerado o “pai espiritual” da

Revolução Francesa. Desde o mês de outubro de 1790, o seu busto, juntamente com um

exemplar do Contrato Social, foi colocado na sala da Assembleia Nacional”.

A Declaração de 1789 foi o primeiro elemento constitucional do novo regime

político, e pelo fato de ter sido publicada sem a sanção do rei, alguns a interpretaram como

uma simples declaração de princípios, sem força normativa. Contudo, em pouco tempo, a

assembleia aceitou as ideias expostas por Sieyès, reconhecendo a competência decisória

por ela exercida emanada diretamente da nação.

Quanto à Revolução americana, seu ideal libertário decorre da forma de

colonização empregada no “novo” continente, que diferentemente da “velha” Europa não

foi impregnado pelo feudalismo, como modelo de organização da sociedade e da

economia, seja pela imensidão do território, seja pela população rarefeita, o que

inviabilizava e tornava desnecessário esse modelo.

51

A Inglaterra havia se livrado do absolutismo, e também já dava passos

significativos para a construção de seu pacto social e da proteção das liberdades

individuais, como leciona Trindade (2012, p. 87-88), “cem anos antes da França e a

Europa em geral (desde, pelo menos, a Revolução Gloriosa de 1688), e desenvolvido

também mais cedo as noções jurídicas de liberdade individual, garantias pessoais e

autonomia política local”.

No início do século XVIII, os norte-americanos já não estavam submetidos a

qualquer coisa que se assemelhasse a feudos ou privilégios civis, pelo menos intoleráveis,

decorrentes de seu nascimento. Muito embora o governador e os funcionários

administrados de cada colônia ainda fossem nomeados pelo rei, os demais habitantes que

não fossem escravos, índios ou pessoas com pouco poder aquisitivo, já contavam com

prerrogativas que os europeus só teriam, anos mais tarde, com revoluções e guerras.

A sociedade colonial tornava-se mais complexa, e fortalecia-se uma classe

dominante local que se interessava cada vez mais pela vida política, como destaca Heale

(1991, p. 26):

Os prósperos grandes negociantes, advogados, proprietários de terras e

fazendeiros que ocupavam elevada posição na sociedade colonial vinham

buscando, há muito tempo, exercer influência nas instituições políticas que se

haviam estabelecido em cada colônia, tais como o conselho do governador e,

especialmente, a assembleia. As assembleias eram eleitas pelos próprios

colonos, pelo menos por aqueles que tinham patrimônio suficiente para votar, os

quais eram comumente em número muito grande, e, com o correr dos anos, as

assembleias iam obtendo mais poder, à medida que tomavam por modelo a

Câmara dos Comuns. Embora desejando manter-se leais ao rei, os colonos

buscavam naturalmente certo grau de autonomia, e as elites que tinham acento

nas assembleias, procuravam transformá-las, em mini parlamentos, recorrendo

amplamente à tradição parlamentar inglesa para justificar suas reivindicações.

Por essa razão, quando o Parlamento de Londres, em 1764, resolveu instituir taxas

sem o prévio consentimento dos colonos subjugados, fez com que estes sentissem que seus

direitos estavam sendo violados, e toda a agitação e revolta que se seguiram foram a

expressão do civismo britânico, com o objetivo de manter contra o governo e contra o rei

inglês, as liberdades com as quais se habituaram ao longo de sua história.

Os desentendimentos entre os ingleses e seus súditos na América, que culminou

conduzindo ao movimento de independência, foram causados por medidas mercantis e

tributárias adotadas pela metrópole que, a partir da segunda metade do século XVIII,

passaram a ser consideradas pelos colonos como indevidamente lesivas aos seus interesses

econômicos e financeiros, conforme ensina Gusdorf (1993, p. 169):

52

Desde meados do século XVII, por exemplo, o comércio colonial fora regulado

pelas Navigations Law (Leis da Navegação), que exigiam que alguns produtos

coloniais fossem exportados diretamente para a Inglaterra, e apenas em navios

ingleses ou coloniais, e poder-se-ia argumentar ser injusto que ainda se

acrescentassem impostos a tais restrições comerciais.

A imposição tributária por parte da metrópole e a insubordinação dos colonos por

não se sentirem mais representados por aqueles, fez com que crescesse a instabilidade

política, e se precipitasse para a guerra de independência, que perduraria de abril de 1775 a

setembro de 1883, durante a qual os norte-americanos obtiveram apoio econômico e

militar da França, e a partir de fevereiro de 1778, da Espanha, que a partir de 1779,

tornaram-se potências rivais da Inglaterra.

Foram então proclamadas as famosas “declarações” americanas de direitos: a

Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, em 12 de junho de 1776, considerada a

primeira declaração de direitos dos tempos modernos, e a Declaração de Independência

dos Estados Unidos da América, em 4 de junho de 1776, que proclamava e justificava o

desligamento da Grã-Bretanha.

Declarações similares foram emitidas por várias das colônias que se

transformariam em Estados federados do novo país, como no magistério de Trindade

(2012, p. 103-104),

A Constituição americana, aprovada na Convenção da Filadélfia de 17 de

setembro de 1787, no princípio não incorporava uma declaração de direitos

fundamentais do indivíduo. Contudo, nove das treze ex-colônias exigiriam que

isso fosse providenciado como condição para ratificarem a Constituição e

aderirem à federação. A reivindicação foi acatada e deu origem às dez primeiras

emendas aprovadas no século XIX e XX, elas configuram o chamado Bill of

Rights norte-americano.

As declarações e a Constituição americana tinham seu aporte teórico na filosofia

jusnaturalista da época e na tradição constitucional inglesa, a qual buscava limitar o poder

arbitrário dos governantes sobre a pessoa, ampliando a autonomia dos indivíduos face ao

Estado, tratando apenas de direitos civis e políticos, sem qualquer menção a direitos

sociais, pois não faziam parte dos ideais liberais.

Muito embora esses documentos pregassem um “universalismo”, não abarcava

aqueles com pouco poder aquisitivo, escravos, índios e mulheres, ainda que o seu modelo

econômico não se baseasse tanto no trabalho escravo, o que culminou com um progressivo

movimento de abolição da escravatura, conforme observa Heale (1991, p. 57):

53

Onde ocorreu a emancipação, isso não significava, contudo, igualdade, pois até

mesmo os mais ardorosos dos libertários brancos tinham dificuldades em se

livrar dos preconceitos acumulados. Às vezes, atribui-se aos negros um status

análogo ao dos índios, de não escravos, mas também não integralmente de

cidadãos, pois seus direitos civis e políticos eram restritos e imprecisos. Em todo

o caso, a grande maioria dos escravos vivia nos Estados atlântico do sul e, ali,

eram por demais importantes para a economia agrícola, e por demais numerosos

para que aquelas sociedades cogitassem seriamente da emancipação.

Enfim, as características do processo de surgimento dos Estados Unidos como

nação independente chamaram a atenção dos historiadores para uma importante distinção,

qual seja, as condições internas completamente diferentes das que existiam na França de

1789. A Revolução Americana não transformou a sociedade americana colonial, isto é, não

transformou a estrutura econômico-social já estabelecida internamente, nem alterou o

modo de viver, produzir e se relacionar com que estavam habituados os colonos.

Vê-se aqui, uma diferença fundamental entre os acontecimentos da América e os da

França, haja vista que o que estava em jogo na Revolução Francesa, como destaca Gusdorf

(1993, p. 192),

era uma total mutação da existência comunitária, uma transformação pela raiz da

ordem social, das hierarquias tradicionais, das estruturas políticas e econômicas,

uma redistribuição da propriedade, uma renovação dos valores psicológicos e

morais que também se afirmou na ordem da moral, da língua, do costume. Nada

seria como antes, enquanto nos Estados Unidos tudo continuou como antes, com

exceção de certas estruturas políticas. A despeito de alguns violentos safanões,

as colônias da América não foram submersas por um cataclismo.

O período de Independência Americana, dito revolucionário, não questionava

realmente o modo de vida dos habitantes das colônias, sua relações mútuas ou seus

interesses imediatos; a República federal americana colocou um presidente no lugar do

monarca constitucional da Inglaterra e o Congresso de Washington substituiu o distante

Parlamento de Londres.

Há diferenças essenciais entre o que aconteceu na França e o que ocorreu na

América, de acordo com Tocqueville (2009, p.226):

Como a Revolução Francesa não teve apenas por objeto mudar um governo

antigo, mas abolir a forma antiga da sociedade, ela teve de ver-se a braços a um

só tempo com todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências

reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os usos e, de alguma

maneira, esvaziar o espírito humano de todas as ideias sobre as quais se tinham

fundado até então o respeito e a obediência.

Relevante destacar ainda que, seja a Revolução Francesa ou a Revolução

Americana, estas refletem o pensamento político europeu e internacional do século XVIII,

54

corrente de uma filosofia humanitária cujo objetivo era a liberação do homem esmagado

pelas regras caducadas do absolutismo e do regime feudal.

Além desses ideais libertários, o final do século XVIII também marca o período do

constitucionalismo, no qual esses preceitos de liberdade e igualdade são condensados em

documentos que representam o símbolo máximo de proteção e garantia dos direitos,

denominados de Constituição, que reúnem o núcleo inderrogável de direitos para

organização política, econômica e social dos Estados.

2.3.2 Movimento do constitucionalismo

As disposições fundamentais da Constituição Francesa de 1791 fazem distinção

entre os “direitos do homem”, independentemente de sua nacionalidade, e os “direitos do

cidadão”, próprios unicamente dos franceses, concebendo assim o documento em sua

dupla dimensão, nacional e universal.

Entretanto, através da consolidação das nações-Estados, no curso do século XIX, os

“direitos do homem” acabaram sendo absorvidos pelos “direitos do cidadão”, como ensina

Arendt (1979, p. 290 e s.): “com o advento do Estado totalitário, os homens e mulheres

privados de nacionalidade acabaram perdendo toda a capacidade jurídica; ou seja,

deixaram de ser pessoas”.

De toda forma, o núcleo inderrogável de Direitos Fundamentais26

, em especial no

que tange às liberdades individuais alcançou, nesse primeiro texto revolucionário, uma

definitiva precisão de contornos, enquanto no campo penal fixou-se o princípio

fundamental de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena que seja fixada

em lei (art. 8°).

Além das disposições referentes aos Direitos do Homem e do Cidadão, a

Constituição Francesa de 1791 ainda cuidou de reforçar o caráter antiaristocrático e

antifeudal do novo regime político, bem como de nacionalizar os bens pertencentes a

eclesiásticos ou congregações religiosas.

Somados aos pontos destacados, é possível identificar algumas ações significativas

ainda no século XIX e seus desdobramentos no século XX, no processo de

internacionalização dos Direitos Humanos, que se estende até a atualidade, e que pode ser

26 Duas preocupações máximas da burguesia foram rigorosamente atendidas: a garantia da propriedade privada contra

expropriações abusivas (art. 17) e a estrita legalidade na criação e cobrança de tributos (arts. 13 e 14).

55

analisado sob o enfoque de três vertentes de proteção internacional da pessoa humana: o

direito humanitário, os direitos humanos e o direito dos refugiados.

Acerca das convergências dessas três vertentes de proteção dos direitos humanos,

enfatiza Cançado Trindade (2006, p. 322-323), a necessidade de modificar a velha

expressão ‘segurança dos Estados’ para que se constitua uma verdadeira segurança

humana:

Las três vertientes de protección de los derechos de la persona humana han

marcado presencia, de forma convergente, em relación con el tema de la suridad,

y más propriamente de la seguridade humana. La cuestión ha sido planteada de

forma expressa em el marco de la adopción de medidas de privación de libertad,

ligadas a los llamados ataques armados preventivos em la lucha contra actos de

terrorismo. [...] La vieja expresión ‘seguridad de los Estados’, de triste memoria

por contener toda una historia de represión y violación massiva de los derechos

humanos en la experiencia reciente de muchos países latino-americanos, es

debidamente remplazada por la expresión ‘seguridad humana’.

Ademais, essas vertentes de proteção dos direitos humanos, complementa Sidney

Guerra (2011, p. 55),

impende registrar que as normas do direito humanitário, especialmente a

Convenção de Genebra de 1864, previram o regramento em situações de guerra,

no intuito de minimizar a dor e o sofrimento de soldados prisioneiros, doentes e

feridos em situações de conflito armado.

Desta forma, a proteção estava mais relacionada a um direito humanitário, do que

propriamente a um direito universal e abstrato de proteção dos Direitos Humanos

Fundamentais, haja vista se tratar de uma situação específica, a de conflitos bélicos

envolvendo Estados-nação.

Ademais, pela primeira vez na História, verificam-se disposições voltadas aos

direitos humanos de caráter social. Comparato (2013, p. 164) destaca:

O antepenúltimo parágrafo do Título Primeiro previu a criação de um

estabelecimento geral de Assistência Pública, para educar as crianças

abandonadas, ajudar os enfermos pobres e fornecer trabalho aos pobres válidos

que não tenham podido encontrá-lo.

A criação desta norma se deve, em especial, à miséria generalizada que tomou

conta da França, após a Revolução Francesa, e que deixou, ainda mais deficitária e

fragilizada a estrutura estatal de apoio às vítimas do conflito, exigindo como ação positiva

a criação de mecanismos que, em tese, pudessem tentar reequilibrar a balança e propiciar o

desenvolvimento da população.

56

Sobre esses direitos essenciais, ainda determinou a organização de uma instituição

pública de ensino, acessível e gratuita a todos os cidadãos, além da precedência27

ao

reconhecimento do controle de constitucionalidade das leis, aos dispor que “o Poder

Legislativo não poderá fazer lei alguma que prejudique ou impeça o exercício dos direitos

naturais e civis, consignados no presente título e garantidos pela Constituição”.

A queda da monarquia, bem como a guerra externa provocaram o fim da vigência

da ordem constitucional, culminando com a convocação de uma nova Assembleia

Constituinte, tomando o nome de Convenção, por influência dos Estados Unidos, com

patente predominância democrática, abolindo-se o sufrágio censitário e a distinção entre

cidadãos ativos e passivos.

A votação da Constituição Francesa de 1793 buscava uma solução entre os

conflitos. De um lado os girondinos, para quem os direitos individuais deviam sobrepor-se

aos direitos sociais, e desta forma não deveria haver alteração na Constituição ou pacto

social, a não ser em aspectos secundários, de outro lado, os jacobinos, que pleiteavam a

adoção do projeto de declaração de Robespierre, com um amplo reconhecimento dos

direitos sociais, e a declaração de que a propriedade privada era um direito ordinário.

De toda forma, incongruências e imprecisões fizeram parte desse novo pacto social,

como aponta Comparato (2013, p. 167): “o texto final, porém, mais retórico do que os das

declarações anteriores, não ficou isento de contradições e imprecisões de linguagem, em

particular, a distinção entre os direitos do homem e os do cidadão perdeu a nitidez que

tinha na declaração de 1789”.

A Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1793, de modo geral,

limitou-se a enfatizar o conteúdo das declarações anteriores, sem representar qualquer

avanço em matéria de direitos sociais, em comparação com a Constituição de 1791,

destacando28

, contudo, as disposições dos artigos 11, 25, 26 e 35.

A Constituição Francesa de 1793 não chegou a ser aplicada, uma vez que logo após

a sua promulgação, a Convenção Nacional instituiu um governo provisório, denominado

“republicano”, que deveria atuar enquanto durasse a guerra com as potências monárquicas.

27 Diferentemente do modelo francês, a Constituição norte-americana não declarou o controle de constitucionalidade, que

somente passou a existir a partir do caso Marbury v. Madison, julgado pela Corte Suprema em 1803. 28 O reconhecimento de que a soberania política pertence ao povo, a proclamação de que a lei deve proteger a liberdade

pública e individual contra a opressão dos que governam, e a afirmação de que a insurreição do povo contra os

governantes que violam seus direitos é o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres.

57

Contudo, a prisão, o julgamento e a execução sumária de Robespierre culminaram

com a insurreição popular de Paris, gerando assim a necessidade de uma nova Carta

Política, que afastasse o povo do poder.

A Constituição Francesa de 1795 já não falava em soberania popular, optando por

uma fórmula neutra através da universalidade dos cidadãos, ao passo que reforçou os

mecanismos de separação e controle dos Poderes estatais, adotando assim o modelo de

Montesquieu e não mais o de Rousseau.

Com isso, verifica-se um retrocesso no que tange aos Direitos Fundamentais, uma

vez que já não há mais previsão. Segundo Comparato (2013, p. 169),

A resistência à opressão, nem as liberdades de opinião, de expressão e de culto,

nem tampouco os direitos sociais consagrados nas declarações anteriores: o

direito ao trabalho, à assistência pública e à instrução. Considera-se inexistente a

“garantia social”, “se a divisão dos poderes não é estabelecida, se seus limites

não são fixados e se a responsabilidade dos funcionários públicos não é

assegurada”. Na mesma linha da limitação de poderes, considera-se crime que o

cumprimento de uma pena redunde em sua agravação (art. 13).

Outro destaque da nova Carta Política de 1795 foi a iniciativa de acrescentar à

Declaração de Direitos uma Declaração de Deveres, com uma preocupação evidente de

limitar, com isso, os direitos humanos daqueles que não faziam parte da burguesia. Os

movimentos constitucionais irão confirmar a necessidade de se estabelecer a existência de

deveres básicos, tanto dos particulares quanto dos órgãos públicos, em correlação com

todas as espécies de direitos humanos.

A finalidade ética do Estado, a partir de então, não é mais a mera satisfação dos

interesses de um ou de uma minoria, mas a busca do bem comum, conforme sustentou

Jean-Jacques Rousseau, no seu Contrato Social (1757-1762). É o governo do povo, pelo

povo e para o povo, de acordo com as palavras imortalizadas por Abraham Lincoln,

proferidas no famoso discurso de Gettysburg em 1863.

Esse modelo é o que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito, e

apesar de todos os seus defeitos, conforme aponta Popper (1988, p. 18), “é o modelo

político adotado pela maioria dos países mais avançados e é o único arcabouço

institucional que permite a mudança social sem violência”.

A Constituição espanhola de 1812, que vigorou até 1814 e entre 1820 e 1823 é um

reflexo do novo cenário, sem possuir destacadamente em seu corpo uma Declaração de

58

Direitos, mas que reconhecia, para além da soberania nacional, uma monarquia limitada e

a independência do Judiciário.

A Carta Constitucional francesa de 1814, conforme enfatiza Sampaio (2010, p.

193), “restaurou a monarquia após a derrota de Napoleão, prescindia igualmente de um

documento prévio com a lista de direitos. Mas ela iniciava com a proclamação do ‘Direito

Público dos Franceses’, em que se encontrava a igualdade de todos perante a lei”.

O movimento constitucional francês, após cinco intensos anos de lutas e revolução,

buscava não apenas a liberdade individual, mas também uma garantia essencial dos

Direitos Humanos e Fundamentais; passou por um longo e tenebroso inverno político e

apresentou modificações significativas apenas 53 anos depois com a Constituição Francesa

de 1848.

O ano de 1848 foi marcado por um vendaval político, denominado Manifesto

Comunista, que ameaçava romper as estruturas conservadoras e imperiais, estabelecidas no

Congresso de Viena de 1815, pautado nas palavras de ordem: nacionalismo, trabalho e

liberdade.

A revolta popular de Paris foi uma consequência do descontentamento do

operariado urbano com excessos capitalistas agravados pela fome no campo. Explica

Comparato (2013, p. 179): “visou claramente não só a derrubada do rei, mas também à

restauração da república, nos moldes do espírito revolucionário de 1792-93”.

A fim de acalmar os ânimos e estabelecer uma tranquilidade simbólica foi

estabelecido um governo provisório, que no intuito de solucionar o problema do

desemprego urbano, criou as “fábricas nacionais”, que tiveram vida curta, refletindo

diretamente na elaboração da nova Carta Constitucional, dado o sucesso trágico de se

inserir direitos sociais, assim como previam as Cartas de 1791 e 1793.

A Declaração de Direitos da Constituição francesa de 1848 esboçou uma ampliação

em termos de Direitos Humanos Fundamentais que seria definitiva a partir dos

movimentos constitucionais do século XX. Nesse sentido, Moraes (2011, p. 11): “além dos

tradicionais direitos humanos, em seu art. 13 previa como direitos dos cidadãos garantidos

pela Constituição a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados,

às crianças abandonadas, aos enfermos e aos velhos sem recursos”.

Por esta razão, a Constituição Francesa de 1848 foi composta por uma obra de

compromisso, servindo de mediadora entre os interesses do liberalismo, claramente

59

afirmado com a declaração preambular de redução das despesas públicas e dos impostos, e

de outro lado os interesses dos socialistas democráticos.

A concepção normativa dos Direitos Fundamentais surge junto com a consolidação

das vigas-mestras do Estado Democrático de Direito, quando foram criados mecanismos

jurídicos que possibilitaram a participação popular na tomada de decisões políticas, bem

como o desenvolvimento de instrumentos para o controle e a limitação do poder estatal.

Com a consagração desses valores liberais, foram transformados em verdadeiras

normas jurídicas, podendo ser invocadas perante uma autoridade independente, inclusive

contra o próprio Estado. Contudo, como destaca Bobbio (1992, p. 88), diferentemente do

que se pensa, “são valores dinâmicos, sujeitos a saltos evolutivos e a tropeços históricos, já

que acompanham a evolução cultural da própria sociedade. Desse modo, é natural que o

conteúdo ético dos direitos fundamentais também se modifique ao longo do tempo”.

Ainda que se possa falar em reconhecimento e consagração dos Direitos Humanos

Fundamentais, no período de transformações dos pactos sociais, estes não são dados de

forma estática e definitiva, mas acompanham a evolução da sociedade e os anseios de

proteção e evolução destas normas. Há dinamicidade, o que nem sempre significa avançar,

mas também retroceder nesse processo evolutivo.

Além disso, valores conservadores também foram vislumbrados. Na visão de

Comparato (2013, p. 181),

a Família, a Propriedade e a Ordem Pública, invocados com letra maiúscula no

inciso IV do preâmbulo – e o progresso e a civilização (preâmbulo, inciso I). É

interessante observar, a este respeito, que, enquanto as anteriores declarações de

direitos da Revolução Francesa não fizeram referência alguma à família, o

preâmbulo da Constituição de 1848 menciona-a nada menos do que quatro

vezes. Por outro lado, a orientação do ensino público, como dispõe o art. 13, não

é para formação do cidadão, mas sim para o mercado de trabalho.

Nesse sentido é que a declaração das liberdades individuais aparece sempre

limitada pela cláusula do respeito aos direitos iguais dos demais sujeitos e à manutenção

da segurança pública, passando o conteúdo concreto dessas liberdades a depender das

determinações editadas pelas leis orgânicas.

Seja como for, malgrado todas essas considerações, não se pode deixar de assinalar

como descreve Comparato (2013, p. 182), “que a instituição de deveres sociais do Estado

para com a classe trabalhadora e os necessitados em geral, estabelecida no art. 13, aponta

para a criação do que viria a ser o Estado do Bem-Estar Social, no século XX”.

60

Como marco histórico, a Constituição da França de 1848 apresenta avanços e

retrocessos no campo dos Direitos Fundamentais, uma vez que prescreve a abolição da

pena de morte (art. 5), além de repristinar o Decreto da Convenção de 1793, proibindo-se a

escravidão em todas as terras francesas (art. 6).

Apesar desses inegáveis avanços no campo dos Direitos Humanos, a Constituição

Francesa de 1848 foi a responsável por um dos maiores abusos cometidos pela França, no

campo das relações exteriores, ao declarar que “o território da Argélia e das colônias é

território francês” (art. 109), contrariando o princípio firmado no preâmbulo, segundo o

qual a República Francesa “não dirige nunca suas forças contra a liberdade de povo

algum”.

No ano de 1864 foi inaugurado o que se convencionou chamar de direito

humanitário em matéria internacional, ou seja, o conjunto de leis e costumes da guerra,

visando minorar o sofrimento dos soldados doentes e feridos, bem como de populações

civis atingidas por um conflito bélico.

Acerca da criação deste direito humanitário, assim como das ações positivas e

negativas tomadas pelos Estados-nação em razão de conflitos armados, enfatiza Grócio

(2004, p.58), “o direito de guerra e da paz, cuja sistematização foi bipartida em direito

preventivo da guerra e direito da situação ou estado de guerra, destinado a regular as ações

das potências combatentes”.

A Convenção assinada em Genebra em 1864, unicamente por potências europeias,

tinha como escopo “melhorar a sorte dos militares feridos nos exércitos em campanha”, a

partir dos esforços de uma comissão reunida, que em 1880 tornar-se-ia a Comissão

Internacional da Cruz Vermelha.

Nesse mesmo diapasão, na primeira metade do século XX, a Convenção de

Genebra de 1864 foi revista, a fim de se estenderem seus princípios aos conflitos

marítimos (Convenção de Haia de 1907) e aos prisioneiros de guerra (Convenção de

Genebra de 1929), além de outra Convenção, também assinada em Genebra, e no ano de

1925, proibindo a utilização, durante a guerra, de gases asfixiantes ou tóxicos, bem como

de armas bacteriológicas.

61

2.3.3 Constitucionalismo liberal, social e pós social

A concepção de Constituição como pacto social e político é produto da

Modernidade, sendo decorrente do Iluminismo e das revoluções burguesas dos séculos

XVII e XVIII, ocorridas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França, onde o

constitucionalismo moderno representa a limitação jurídica do poder político, em favor dos

direitos dos governados.

À elaboração política das Constituições e à sustentação doutrinária dos dogmas

constitucionais, sucedeu, porém, uma análise mais paciente e construtiva de juristas

voltados a definir e reconhecer o teor jurídico das novas Cartas, conforme observa

Bonavides (2011, p. 228):

A aristocracia e a realeza, forças do passado, ideologicamente desarmadas e

vencidas, se tornaram secundárias, fadadas ao declínio. De sorte que o espírito

da Constituição não podia pertencer-lhes como depois no século XX não fora

possível, após as Constituições socialistas, fazê-lo pertencer à sociedade

burguesa, cujos fundamentos de classe haviam sido aluídos por uma ideologia

que decretava o fim dessa modalidade de organização social.

Sob influência das transformações e em razão da ruptura de paradigma

proporcionada pelo fim do feudalismo e o início do capitalismo, os movimentos

revolucionários29

tanto norte-americanos quanto franceses influenciaram diretamente para

se estabelecer um diálogo no sentido de proteger não apenas as liberdades, mas as

garantias fundamentais de forma geral, e que atendesse não só aos anseios de um grupo ou

de uma nação, mas de toda a universalidade.

Esse momento histórico marcou uma nova concepção no âmbito da existência do

ser humano, quando emerge o necessário reconhecimento de sua individualidade. Segundo

Bobbio (1976, p. 56), “contrastada pelas necessidades sociais apresentadas pelos núcleos

gerenciadores presentes nas civilizações de então, e mais tarde, pelas formas embrionárias

reconhecidas dos entes estatais”.

Criou-se com isso uma estrutura jurídica essencialmente ambígua, muitas vezes

contraditória, em que a liberdade era respeitada em sua formulação constitucional, ou seja,

29 “A perspectiva histórica nos remete à constatação de que as primeiras declarações de direito contaminaram os sistemas

jurídicos ocidentais, espalhando-se pelas diversas Constituições, ora como preâmbulo, ora como emendas anexadas, ora

como artigos incorporados ao texto constitucional, ora ainda como leis jusfundamentais que se iam juntando à Carta

original. Consagravam-se apenas os direitos de cunho liberal, dominando cronologicamente o período que medeia 1789 a

1914, com um intervalo breve de primórdios de um constitucionalismo social que será preeminente desde então, ora sob

inspiração social-democrática, ora sob ditames da doutrina marxista-leninista ou apenas socialista” (SAMPAIO, 2010, p.

192).

62

visando apenas uma igualdade formal, mas a sua realização fora abolida na prática,

impossibilitando assim, a igualdade material.

No Estado liberal do século XIX a Constituição, como pacto social, disciplinava

somente o poder estatal e os direitos individuais, conforme destaca o magistério de

Bonavides (2011, p. 229): “direitos civis e políticos, ao passo que hoje o Estado social do

século XX regula uma esfera muito mais ampla: o poder estatal, a sociedade e o

indivíduo”.

Sob o arcabouço dos conflitos armados que envolveram as grandes potências do

século XX, destaca-se também o movimento constitucional no sentido de estabelecer

limites à atuação do Estado, bem como colocar um sistema de contrapesos às liberdades

individuais, visando o interesse da coletividade.

Desta forma, em meio a essas transformações emerge a Constituição Política dos

Estados Unidos Mexicanos de 1917, cuja fonte ideológica pautava-se, de acordo com

Comparato (2013, p. 189),

(na) proibição da reeleição do Presidente da República (Porfírio Diaz havia

governado mediante reeleições sucessivas, de 1876 a 1911), garantias para as

liberdades individuais e políticas (sistematicamente negadas a todos os

opositores do presidente-ditador), quebra do poderio da Igreja Católica,

expansão do sistema de educação pública, reforma agrária e proteção do trabalho

assalariado.

Apesar de todo o ideário disseminado pela nova Carta política mexicana, produziu

efeitos exatamente contrários ao visado, uma vez que foi criada uma sólida estrutura

estatal, independente da figura do chefe de Estado, ainda que a Constituição tenha dado

poderes maiores do que os previstos na Constituição norte-americana.

O ideal anarquista de destruição de todos os centros de poder proporcionou

contraditoriamente, a partir da fundação do Partido Revolucionário Institucional em 1929,

uma estrutura monocrática nacional em substituição à multiplicidade de caudilhos locais,

assim como era o ideal mexicano, antes da nova Carta política.

A Constituição mexicana de 1917 passou a garantir direitos individuais com fortes

tendências sociais, como por exemplo, a efetivação da educação e os direitos trabalhistas,

conforme descreve Moraes (2011, p. 11):

Art. 5° – o contrato de trabalho obrigará somente a prestar o serviço

convencionado pelo tempo fixado por lei, sem poder exceder um ano em

prejuízo do trabalhador, e não poderá compreender, em caso algum, a renúncia,

63

perda ou diminuição dos direitos políticos ou civis. A falta de cumprimento do

contrato pelo trabalhador, só o obrigará à correspondente responsabilidade civil,

sem que em nenhum caso se possa exceder coação sobre a sua pessoa.

A Carta política mexicana de 1917 foi a primeira a consagrar aos direitos

trabalhistas a qualidade de Direitos Fundamentais, juntamente com as liberdades

individuais e os direitos políticos, demonstrando-se extremamente avançada, ao passo que

na Europa os direitos humanos com uma dimensão social só viriam a se firmar após a

Grande Guerra de 1914-1918, que encerrou de fato o “longo século XIX”.

Seguindo este movimento constitucional, em 1919, surge a Constituição de

Weimar, trilhando a mesma via da Carta Mexicana e de todas as convenções aprovadas

pela então recém-criada Organização Internacional do Trabalho. Assim descreve

Comparato (2013, p. 190):

Na conferência de Washington do mesmo ano de 1919, regularam matérias que

já constavam na Constituição mexicana: a limitação da jornada de trabalho, o

desemprego, a proteção da maternidade, a idade mínima de admissão de

empregados nas fábricas e o trabalho noturno dos menores na indústria.

Entre a Constituição mexicana e a de Weimar30

eclode a Revolução Russa como

um dos acontecimentos decisivos na evolução da humanidade do século XX, com a

ascensão dos deputados operários, soldados e camponeses, através da Declaração do Povo

Trabalhador e Explorado. São afirmadas, com apoio na doutrina marxista, várias medidas

constantes da Constituição mexicana, tanto no campo socioeconômico quanto no

político31

.

A Declaração de Direitos constante na Carta Política Soviética de 1917, entre

outros, estabelecia o fim da propriedade privada, passando não apenas a terra, mas o gado

e todas as empresas agrícolas a serem de propriedade nacional. Além destes, todas as

fábricas, usinas, minas, ferrovias e outros meios de produção e transporte também, com o

objetivo de assegurar o poder dos trabalhadores sobre os exploradores.

Pelas próprias circunstâncias que idealizaram a Revolução de 1917, tinha-se como

escopo, conforme argumenta Moraes (2011, p. 12),

30 Previa em sua Parte II os Direitos e Deveres fundamentais dos alemães. Os tradicionais direitos e garantias individuais

eram previstos na Seção I, enquanto a Seção II trazia os direitos relacionados à vida social, a Seção III, os direitos

relacionados à religião e às Igrejas, a Seção IV, os direitos relacionados à educação e ensino, e a Seção V, os direitos

referentes à vida econômica (MORAES, 2011, p. 11). 31 Sobre esse momento histórico, ler: FOLLETT, Ken. Queda de gigantes. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo:

Arqueiro, 2014.

64

suprimir toda a exploração do homem pelo homem, abolir completamente a

divisão da sociedade em classes, esmagar implacavelmente todos os

exploradores, instaurar a organização socialista da sociedade e a fazer triunfar o

socialismo em todos os países.

A disseminação desse movimento, idealizado por Karl Marx, visando à aplicação

dos recursos de forma igualitária a todos, de qualquer grupo ou classe social, está fora do

quadro dos direitos humanos, sendo severamente criticado o modelo francês de separação

entre a sociedade política e a sociedade civil, dicotomia fundada na propriedade privada.

Os direitos da pessoa humana, desta forma, não passariam de barreiras ou marcos

divisórios entre os indivíduos, em tudo e por tudo, semelhantes aos limites da propriedade

territorial. Conforme assevera Comparato (2013, p. 192),

os direitos do cidadão, sobretudo numa época de sufrágio censitário, nada mais

seriam do que autênticos privilégios dos burgueses, com exclusão da classe

operária. Na sociedade comunista [...] só os trabalhadores tem direitos e só eles

constituem o povo, titular da soberania política.

Na Constituição mexicana de 1917 não foram feitas as exclusões próprias do

marxismo. O povo mexicano não foi reduzido unicamente à classe trabalhadora, contudo,

nem todos os direitos trabalhistas declarados na Carta política soviética podem ser

considerados, objetivamente, como direitos humanos.

A doutrina jurídica alemã contemporânea distingue os Direitos Humanos dos

Direitos Fundamentais, conforme destaca Stern (1994, p. 35):

Letztere sind die Rechte in der Verfassung verankert, die ethische Grundlage des

nationalen Rechtssystems dar, auch wenn sie nicht durch das universelle

juristische Gewissen, als unverzichtbare Voraussetzungen für die Wahrung der

Menschenwürde anerkannt werden kann. Aus diesem Grund ist authentisch

Menschenrechte existieren, unabhängig von ihrer Anerkennung im Staat

Rechtssystem und sogar gegen sie, während einige Rechte, qualifizierte sich als

grundlegende in der Verfassung eines Landes kann nicht universell gültig sind,

die Menschenrechte besitzen.

Sob esta ótica, os Direitos Fundamentais são aqueles consagrados na Constituição,

representando as bases éticas do sistema jurídico nacional, ainda que não reconhecidos de

forma universal, como requisito indispensável à preservação da dignidade humana.

Entretanto, os Direitos Humanos existem, independentemente de seu reconhecimento na

ordem estatal, e mesmo contra estes, ao passo que alguns direitos entendidos como

65

fundamentais na Constituição de um país podem não ter vigência universal, própria dos

Direitos Humanos.

Diferentemente da sociedade soviética, basicamente formada por operários, a

sociedade mexicana era predominantemente agrícola. Desta forma, os direitos trabalhistas

interessavam a uma parcela ínfima da população, sem mencionar sua inaplicabilidade nas

pequenas e médias empresas urbanas.

Foi por meio da Constituição mexicana que se estabeleceu a desmercantilização do

trabalho, ou seja, a proibição de equipará-lo a uma mercadoria qualquer, sujeito à lei de

oferta e procura no mercado, estabelecendo assim o princípio da igualdade material de

posição jurídica entre trabalhadores e empresários na relação de trabalho, criando a

responsabilização por acidentes de trabalho e as bases para a construção do moderno

Estado Democrático de Direito.

Como já explanado, a Constituição de Weimar decorre do movimento

constitucional, predominante no século XX, produto do final da Grande Guerra de 1914-

1918, promulgada imediatamente após o colapso de uma civilização cuja aplicabilidade32

inicialmente era incerta, considerando os tumultos e as incertezas inerentes ao momento

histórico33

em que foi concebida.

Desde a sua concepção, a Constituição de Weimar se estruturava

contraditoriamente, procurando conciliar ideais pré-medievais com exigências socialistas

ou liberais-capitalistas decorrentes da civilização industrial. Contudo, pouco antes de

entrar em vigor, a assembleia ratificou o tratado de Versalhes, que impôs à Alemanha

indenizações de guerra em montante desproporcional e insuportável.

As potências vencedoras criavam com isso as condições predisponentes de um

futuro colapso financeiro da República Alemã, tornando impossível a sua normal

integração no concerto europeu do pós-guerra. Como advertiu Keynes (2002, p. 106),

O fator desencadeante da bancarrota adveio dez anos após, com o colapso da

Bolsa de Nova York e a grande depressão mundial que se lhe seguiu. Abria-se,

assim, o palco para a entrada em cena da barbárie nazista, que destruiu a

República de Weimar em poucas semanas, no início de 1933.

32 A vigência efetiva dos textos constitucionais depende muito mais do que as leis ordinárias, de sua aceitação pela

coletividade. 33 Ao sair de uma guerra perdida, que lhe custou, ao cabo de quatro anos de combates, cerca de 2 milhões de mortos e

desaparecidos (quase 10% da população ativa masculina), sem contar a multidão dos definitivamente mutilados, o povo

alemão passou a descrer de todos os valores tradicionais e inclinou-se para soluções extremas (COMPARATO, 2013, p.

201).

66

Mesmo com breve vigência, a Constituição de Weimar exerceu uma forte

influência sobre a evolução das instituições políticas em todo o Ocidente, observando-se o

Estado da democracia social, traçada pela Constituição Mexicana de 1917, que adquiriu

uma estrutura mais elaborada na Alemanha de 1919, e foi retomada por vários países após

o chamado ‘inverno no mundo’34

, decorrente dos movimentos nazifascistas e a Segunda

Guerra Mundial.

Além dos direitos sociais expressamente previstos, a Constituição de Weimar

demonstrava um forte espírito de defesa dos direitos sociais, conforme aponta Moraes

(2011, p. 12), ao proclamar:

O império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação

jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da

humanidade um mínimo de direitos sociais e que os operários e empregados

seriam chamados a colaborar, em pé de igualdade, com os patrões na

regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no

desenvolvimento das forças produtivas.

Uma das melhores defesas à dignidade da pessoa humana, ao complementar os

direitos civis e políticos no século XX, está ligada à democracia social, uma vez que o

sistema comunista negava os direitos econômicos e sociais, assim como eram ignorados

pelo liberal-capitalismo.

A estrutura da Constituição de Weimar é claramente dualista. A primeira parte tem

por objeto a organização do Estado, enquanto a segunda apresenta a declaração dos

direitos e deveres fundamentais, acrescentando às clássicas liberdades individuais os novos

direitos de conteúdo social.

Essa estrutura dualista não teria minimamente chocado os juristas35

de formação

conservadora caso a segunda parte da Constituição de Weimar tivesse se limitado à

clássica declaração de direitos e garantias individuais, onde estes funcionam como um

sistema de freios e contrapesos contra o Estado, delimitando o campo da liberdade

individual, em que os Poderes Públicos não estavam autorizados a invadir.

Ao mesmo tempo em que se manifestam a democracia de massas e a contradição

entre a unidade e homogeneidade do povo e o pluralismo do Parlamento, os postulados

34 Sobre o tema, ler: FOLLET, Ken. Inverno no mundo. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo: Arqueiro, 2014. 35 O debate juspublicista dos anos da República de Weimar (1918-1933), travado entre figuras como Hans Kelsen, Carl

Schmitt, Rudolf Smend e Hermann Heller, é, até os dias de hoje, de crucial importância para o estudo das concepções de

Estado e Constituição. Ao normativismo positivista de Kelsen opuseram-se várias doutrinas e concepções, cujo ponto

comum era o desejo de introduzir o político na análise da ordem normativa concernente ao Estado, tentando se aproximar

da realidade constitucional e política (BERCOVICI, 2003, p.195).

67

liberais de neutralidade e não intervenção do Estado são abandonados. Desta forma,

orienta Bercovici (2003, p. 197):

O Estado deixa de ser liberal para converter-se em um Estado total. No Estado

total existente na Alemanha de Weimar, os partidos políticos inviabilizam a

tomada de decisões, além do fato de, para Schmitt, a regulação econômica e

social ser incompatível com instituições do liberalismo, como as do sistema

parlamentarista.

Os direitos sociais, ao contrário, têm por objeto uma prestação positiva do Estado,

uma vez que o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência social e outros do

mesmo gênero apenas se realizam por meio de políticas públicas, isto é, programas de ação

governamental.

Percebe-se, desta forma, que os direitos resguardados nesse momento são de

grupos sociais inteiros e não apenas de indivíduos, passando a exigir dos Poderes Públicos

uma orientação determinada na política de investimentos e de distribuição de bens,

implicando numa intervenção estatal no livre mercado e na distribuição de renda.

Essa orientação marcadamente social e não individualista aparece até mesmo nas

disposições que o constituinte classificou como se referindo a pessoas individuais. Como

destaca Comparato (2013, p. 206),

fixou-se, dessa forma, a necessária distinção entre diferenças e igualdades. As

diferenças são biológicas ou culturais, e não implicam a superioridade de alguns

em relação a outros. As desigualdades, ao contrário, são criações arbitrárias, que

estabelecem uma relação de inferioridade de pessoas ou grupos em relação a

outros.

Enquanto as desigualdades devem ser rigorosamente proscritas, em razão do

princípio da isonomia, apresentando-se assim uma observância tanto em relação às

igualdades formais quanto às materiais, de outra forma as diferenças devem ser respeitadas

ou protegidas, conforme signifiquem uma deficiência natural ou uma riqueza cultural.

A Constituição de Weimar ainda apresentou avanços no campo da vida familiar,

estabelecendo pela primeira vez a regra da igualdade jurídica entre marido e mulher, além

de equiparar os filhos legítimos aos havidos fora do casamento, traduzindo a política social

do Estado, colocando tanto a família quanto a juventude sob o pálio da proteção estatal.

68

Para sedimentar as bases da democracia social, a Constituição de Weimar

apresentou um conjunto de disposições sobre a educação pública36

e o direito trabalhista,

consagrando a evolução ocorrida durante o século XIX, e que contribuiu decisivamente

para a elevação das camadas mais pobres da população em vários países da Europa

Ocidental.

Tal como na Constituição mexicana de 1917, os direitos trabalhistas e

previdenciários são elevados ao âmbito constitucional de Direitos Fundamentais, assim

como a seção sobre a vida econômica estabeleceu como limite à liberdade de mercado a

preservação de um nível de existência adequado à dignidade humana, além de introduzir a

função social da propriedade.

A fim de promover essas garantias fundamentais, de proteção dos direitos

trabalhistas, estabelecendo limites ao poder do Estado e promovendo as liberdades

individuais, é nesse contexto que nasce, segundo Marmelstein (2014, p. 45),

O Estado do bem-estar social (Welfare State), um novo modelo político, no qual

o Estado, sem se afastar dos alicerces básicos do capitalismo (economia de

mercado, livre-iniciativa e proteção da propriedade privada), compromete-se a

promover maior igualdade social e a garantir as condições básicas para uma vida

digna.

Nesse período de transformação das sociedades e a criação das “superpotências”,

deflagram-se duas grandes guerras mundiais, com características bem distintas e que

influenciaram diretamente na criação de mecanismos de proteção não apenas do indivíduo,

mas de toda a coletividade.

As duas guerras podem ser distinguidas tanto pela qualidade quanto pelas suas

características essenciais, conforme aponta Comparato (2013, p. 225-226),

Onde a de 1914-1918 desenrolou-se, apesar da maior capacidade de destruição

dos meios empregados (sobretudo com a introdução dos tanques e aviões de

combate), na linha clássica das configurações imediatamente anteriores, pelas

quais os Estados procuravam alcançar conquistas territoriais, sem escravizar ou

aniquilar os povos inimigos. A Segunda Guerra Mundial, diferentemente, foi

deflagrada com base em proclamados projetos de subjugação de povos

considerados inferiores, lembrando os episódios de conquista das Américas a

partir dos descobrimentos.

36 A educação fundamental, segundo observa Comparato (2013, p. 207), “foi estabelecida com a duração de oito anos, e a

educação complementar até os dezoito anos de idade do educando. Em disposição inovadora, abriu-se a possibilidade de

adaptação do ensino escolar ao meio cultural e religioso das famílias”.

69

O fim trágico da Segunda Guerra Mundial abriu as consciências para o fato de que

a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na reorganização

das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade da pessoa

humana, criando-se assim regras e órgãos capazes não apenas de evitar novos conflitos

armados, mas de auxiliar os povos devastados pelas guerras.

2.4 Desenvolvimento histórico dos direitos humanos

A expectativa do século XX, pautado nas modernas declarações de direito da

França e dos Estados Unidos, além do movimento do constitucionalismo que teve início a

partir de uma concepção liberal extrema, passando pelos ideais sociais até a concepção de

um movimento pós-social pautado no Estado Democrático de Direito, fez com que os

Direitos Humanos Fundamentais, progressivamente, ganhassem efetividade prática,

trazendo a esperança de que pudesse existir um direito universal de proteção destes

direitos.

Seja em decorrência das transformações sociais ou mesmo pela hecatombe do

maior conflito bélico, até então, enfrentado pela humanidade com a Primeira Guerra

Mundial, acelerou-se a necessidade de criação de um núcleo inderrogável de Direitos

Humanos Fundamentais que evitaria atrocidades contra a pessoa humana, conforme

sublinha Trindade (2014, p. 145):

E, naqueles anos duríssimos que se seguiriam aos escombros da maior e mais

desoladora guerra até então travada pelas nações (1914-1918), essas esperanças

se nutriam das rápidas – por vezes profundas – transformações sociais em curso

em partes muito importantes do planeta. Muitas conquistas sociais – e seus

reflexos jurídicos – foram mesmo notáveis, e mesmo quando controvertidas,

chegaram por um momento a parecer irreversíveis.

Diferentemente dos Direitos Fundamentais que remontam à Antiguidade, quanto à

sua origem, a preocupação com a pessoa humana, assim como um sistema de proteção é

recente na história, e não tem mais de um século de lutas, conquistas, avanços e

retrocessos no processo de formação desses direitos.

Para a construção do arcabouço jurídico de proteção dos Direitos Humanos, é

necessário destacar alguns fatos históricos marcantes, que representam a ascensão da

classe explorada face aos exploradores, a fim de obter-se condições dignas de subsistência,

como a primeira Revolução Russa de 1905, que trincou irremediavelmente o mais antigo

70

absolutismo da Europa, já dando sinais da ascensão da classe operária e dos camponeses

como atores fundamentais nessa nova realidade apresentada.

No México, no final de 1910, eclodiu a primeira revolução popular vitoriosa do

século XX, assim destacada por Villa (1993, p. 67):

a sufocante ditadura de Porfirio Díaz mantinha-se no poder desde 1876, ora pela

força escancarada, ora mediante eleições fraudulentas, e sustentava-se num

bloco social integrado por latifundiários, grandes exportadores de minérios e de

produtos agrícolas, uma Igreja Católica aferradamente antiliberal e

antissocialista, e o capital estrangeiro instalado em vários setores da economia.

Muito embora seja possível falar em vitória popular, não se pode dizer o mesmo

em relação à efetividade da proteção dos direitos das minorias, que durante esse período

enfrentou uma nova ditadura, além da intervenção norte-americana, violentas reações às

reivindicações dos camponeses, e a consequente derrota e dispersão dos exércitos

populares, que culminou com uma Constituição de vanguarda em 191737

, resguardando os

direitos civis e políticos para toda a população, incorporando direitos econômicos e

sociais, estabelecendo restrições à propriedade privada.

Dentre as inovações introduzidas por esta Carta constitucional, assevera Villa

(2014, p.70), “pela primeira vez, numa Constituição, seu longuíssimo artigo 123

relacionava, detalhadamente, os direitos sociais dos trabalhadores. Mesmo mantendo o

capitalismo, foi a Constituição socialmente mais avançada até então produzida pela

humanidade”.

Contudo, na medida em que as forças populares perderam a intensidade, a maioria

das conquistas descritas na Carta constitucional mexicana de 1917 não saíram do papel,

mas serviram de base para influenciar outros levantes populares, colocando as forças

sociais em movimento e produzindo as transformações ocorridas na Rússia, no mesmo

ano, que buscava uma transição do capitalismo para o socialismo.

A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado inaugurou uma ótica

completamente nova da abordagem tradicional dos Direitos Humanos, como ressalta

Trindade (2014, p. 165-166):

37 Logo no seu artigo 3°, a Constituição do México revolucionário assegurava que a educação, além de laica, seria

gratuita e baseada nos “[...] resultados do progresso científico [...] contra qualquer espécie de servidão, fanatismo e

preconceitos”, seria ainda democrática “[...] considerando a democracia não somente uma estrutura jurídica e um regime

político, mas também um sistema de vida fundado na constante promoção econômica, social e cultural do povo”.

(TRINDADE, 2014, p.150).

71

Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato contida na

Declaração francesa de 1789, a Declaração russa de 1918 elegia como ponto de

partida o ser humano concretamente (isto é, historicamente) existente, o ser

humano que vive em sociedade, em relação contínua com outros homens, e que,

portanto, poderá desenvolver (ou não desenvolver) suas potencialidades

humanas conforme a posição que ocupar nessa sociedade, ou conforme o modo

de organização dessa sociedade venha a favorecer ou dificultar o movimento.

Esse é um dos pontos fundamentais que diferencia a Declaração russa de 1918 da

Declaração francesa de 1789, ao reconhecer que o sistema capitalista divide em classes

sociais os interesses conflitantes, e que não é possível estabelecer uma igualdade formal e

material, enquanto houver exploradores com poder econômico e político, dando-se assim,

primazia aos explorados e oprimidos.

Considerando o caráter socialista da Revolução russa, a ênfase necessária àquele

momento deveria recair em medidas para a conquista da igualdade, como observa

Trindade (2014, p. 165):

De outro modo não seria quebrada a desigualdade social do capitalismo. Mas,

até em proveito desse rumo, seria também razoável esperar que, em vez de

silenciar sobre garantias individuais, os revolucionários imprimissem-lhes

sentido novo – compatível com os direitos sociais dos trabalhadores e com a

primazia do interesse social, superando o viés individualista com que haviam

sido marcadas as revoluções burguesas. Não fizeram isso.

Sob o pretexto de elevar as classes operárias e camponesas, e extinguir a

exploração política e econômica, emerge um novo regime de governo, pautado em uma

suposta igualdade, com a disseminação dos Direitos Humanos. Houve apenas uma

mudança de cadeiras, entretanto a opressão e a exploração das classes operárias jamais

deixaram de ocorrer, ainda que sob a roupagem de um modelo onde os bens são, em tese,

da coletividade.

Enquanto México e Rússia passavam por profundas transformações

constitucionais, o império alemão emergia de um transe catastrófico, após uma desoladora

derrota na Primeira Guerra Mundial, para iniciar a caminhada em direção a um período

ainda mais tenebroso com o nazismo, genocídio e ainda mais vergonhosa derrota, na

Segunda Guerra Mundial.

Esse cenário instável, com forte influência das transformações da sociedade no

século XX, e o pós Primeira Guerra Mundial, culminaram com a elaboração de uma nova

Carta Constitucional, segundo Trindade (2014, p. 170):

72

derrotada a revolução e assinada a rendição alemã na guerra, uma assembleia de

maioria social-democrata reuniu-se em fevereiro de 1919 na cidade de Weimar –

que emprestaria nome à nova república – e iniciou a elaboração da Constituição.

Dentre as trágicas consequências da Primeira Guerra Mundial para a Alemanha,

destaca-se o Tratado de Versalhes, pelo qual as potências vencedoras, sob o pretexto de

reparações de guerra, impuseram-na perdas territoriais, longas e pesadas indenizações, a

proibição do rearmamento, restrições comerciais, além de se apropriarem de suas colônias

na África, levando ao caos econômico, social e político.

A Constituição de Weimar, do ponto de vista social, não traz as mesmas evoluções

que a Constituição Mexicana, nem mesmo a Russa, mas busca estabelecer um ponto de

equilíbrio na luta de classes, preservando o capitalismo, e inspirou movimentos

constitucionais, como o brasileiro, na redação da Carta Constitucional de 1934, que

buscava o fim das revoluções sociais por meio de concessões aos trabalhadores.

Inspiradas nessas transformações decorrentes do pós Primeira Guerra Mundial,

surgiram novidades nas relações internacionais, que por meio do Tratado de Versalhes

criou a Liga das Nações. Conforme explica Trindade (2014, p. 180), “com a intenção de

evitar que a disputa entre as potências imperialistas pela conquista de mercados conduzisse

novamente a guerras mundiais”.

A criação da Liga das Nações, em 1919, tinha por escopo criar uma instância de

arbitragem e regulação dos conflitos bélicos, além de patrocinar a celebração de alguns

tratados internacionais relativos aos direitos de certas minorias, além de promover a

criação da Organização Internacional do Trabalho. Com a criação da Organização das

Nações Unidas objetivou-se colocar a guerra definitivamente fora da lei.

Além dos direitos trabalhistas, o Estado de Bem-Estar Social também se

comprometeu a garantir os chamados direitos econômicos, sociais e culturais, ligados

diretamente às necessidades básicas dos indivíduos, independentemente de sua qualidade

de trabalhador, como alimentação, saúde, moradia e educação, dentre outros.

O reconhecimento desses direitos, elucida Sarmento (2006, p. 146),

parte da ideia de que, sem as condições básicas de vida, a liberdade é uma

fórmula vazia. Afinal, liberdade não é só a ausência de constrangimentos

externos à ação do agente, mas também a possibilidade real de agir, de fazer

escolhas e de viver de acordo com elas.

73

Ainda que o movimento constitucional tenha passado por uma grande evolução,

tanto em decorrência das revoluções, quanto pelas Constituições do México de 1917, a

Carta Política Soviética de 1917, e a Constituição de Weimar de 1919, os Estados Unidos

sofreram um duro golpe, em 1929, com a maior crise da história do liberalismo

econômico, que foi a quebra (crack) da Bolsa de Valores de New York.

Por outro lado, o horror engendrado pelo surgimento dos Estados totalitários, como

ensina Comparato (2013, p. 226), trouxe à tona “verdadeiras máquinas de destruição de

povos inteiros, suscitou em toda parte a consciência de que, sem o respeito aos direitos

humanos, a convivência pacífica das nações torna-se impossível”.

Desta forma, enquanto a Liga das Nações não passava de um clube de Estados,

com liberdade de ingresso e retirada conforme suas conveniências próprias, sem quaisquer

sanções, as Nações Unidas surgiram com a vocação de se tornarem a organização da

sociedade política mundial, devendo pertencer todas as nações do globo empenhadas na

defesa da dignidade humana.

A primeira menção à criação de uma organização das sociedades pode ser

encontrada na “Carta do Atlântico38

”, assinada pelo Presidente norte-americano Roosevelt

e o Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill, no ano de 1941.

Os signatários obrigavam-se a promover igual acesso a todos os Estados ao

comércio mundial e ao suprimento de matérias-primas, visando à melhoria dos padrões de

trabalho, o progresso econômico e a previdência social, além de se comprometerem após a

destruição da tirania nazista, a estabelecer uma situação de paz em que todas as nações

pudessem viver com segurança dentro de suas fronteiras, livres do medo e da miséria.

Além disso, cita-se a mensagem39

sobre o estado da União, dirigida pelo Presidente

Roosevelt ao Congresso norte-americano, também em 1941, pela qual procurou

demonstrar que os Estados Unidos, por razões de decência e de segurança nacional, não

poderiam permanecer indiferentes do assalto à liberdade dos povos, que vinha sendo

perpetrado pelos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

No texto da Carta, os Direitos Humanos foram concebidos como sendo,

unicamente, as liberdades individuais. Contudo, um dos propósitos da Organização era o

38 Nesta Carta foi declarado que o objetivo comum a seus países, na guerra em curso, era o respeito pelo direito de todos

os povos de escolher a sua própria forma de governo, bem como a intenção de lutar para a restauração dos direitos

soberanos e de autogoverno, para todos aqueles que foram dele privados pela força (COMPARATO, 2013, p. 228). 39 Na segunda parte do seu discurso, o Presidente traçou as linhas gerais do que deveria ser a política internacional dos

Estados Unidos, no esforço de reconstrução do mundo no pós-guerra, fundado em quatro liberdades humanas essenciais:

liberdade de palavra, liberdade de culto, liberdade de penúria, libertação do medo (COMPARATO, 2013, p. 227).

74

de empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social

de todos os povos, sendo, então, criado o Conselho Econômico e Social, com o escopo de

propiciar níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e

desenvolvimento econômico e social.

Dentre as inovações introduzidas pela Carta das Nações Unidas tem-se a existência

de um direito de autodeterminação dos povos, que aprovou o estatuto da Comissão de

Direitos Humanos e foi substituída, em 2006, pelo Conselho de Direitos Humanos, com

competência meramente consultiva junto à Assembleia Geral, para qual formulando

apenas recomendações.

Ao se verificar a formação e os anseios da Organização das Nações Unidas de

manter a paz e a segurança, constata-se, conforme aponta Comparato (2013, p. 230), “que

tem sido descumprida em razão da estrutura oligárquica do Conselho de Segurança, onde

os membros permanentes têm o poder de veto”.

Além disso, uma das principais atribuições do órgão, qual seja, a de formular

planos a serem submetidos aos membros das Nações Unidas, para o estabelecimento de

um sistema de regulamentação dos armamentos, nunca foi levado a sério, uma vez que

chocava com os interesses nacionais das “superpotências”.

Por essa razão, e em decorrência do abuso de poder por parte do Conselho de

Segurança, o sistema de solução pacífica de controvérsias não tem funcionado a contento,

pois como dispõe o art. 36, é obrigatória a submissão à Corte Internacional de Justiça, com

sede em Haia, de todas as controvérsias de caráter jurídico.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, simbolizou o

nascimento de uma nova ordem mundial, muito mais comprometida com os Direitos

Fundamentais, inspirando a criação de inúmeros outros tratados visando à proteção de todo

o gênero humano e não apenas um grupo de indivíduos, e consequentemente a criação dos

Conselhos como órgãos capazes de regulamentar, recomendar e atuar nas questões de

controvérsia internacional.

Contudo, os membros permanentes do Conselho de Segurança, quando essa

solução não lhes convém, impedem o trâmite normal da jurisdição internacional,

preferindo resolver a disputa com o uso de pressões, inclusive a militar, uma vez que a

autoridade da Corte Internacional de Justiça é limitada pois, salvo declaração em contrário,

os Estados Partes no Estatuto da Corte não se submetem de pleno direito à sua jurisdição.

75

Nesse ponto, destaca-se um dos objetivos da presente pesquisa, ao propor a criação

de um Tribunal Constitucional Internacional que possa dar efetividade aos Direitos

Humanos Fundamentais, mas que supere as ideologias de soberania, criando, assim, um

núcleo inderrogável de direitos, que possa reconhecer as diferenças e ao mesmo tempo

estabelecer critérios comuns, através de normas, para aplicação destes direitos.

Desta forma, diversamente do que há no cenário internacional contemporâneo, no

qual o reconhecimento e a efetividade dos Direitos Humanos dependem da anuência dos

Estados Partes e do reconhecimento da legitimidade e da jurisdição dos tribunais

internacionais, o que se busca é criar um Tribunal que possa impor sanções aos Estados

Partes que violarem os Direitos Humanos Fundamentais.

O Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, no ano de 1946, estipulou que

a Comissão de Direitos Humanos, a ser criada, deveria desenvolver seus trabalhos em três

etapas, conforme destaca Comparato (2013, p. 237-238):

Na primeira, incumbir-lhe-ia elaborar uma declaração de direitos humanos, de

acordo com o disposto no artigo 55 da Carta das Nações Unidas. Em seguida,

dever-se-ia produzir no dizer de um dos delegados presentes àquela reunião,

“um documento juridicamente mais vinculante do que uma mera declaração”,

documento esse que haveria de ser, obviamente, um tratado ou convenção

internacional. Finalmente, ainda nas palavras do mesmo delegado, seria preciso

criar “uma maquinaria adequada para assegurar o respeito aos direitos humanos

e tratar os casos de sua violação”.

A Comissão de Direitos Humanos concluiu a primeira etapa, no ano de 1948, com

um projeto de Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovado pela Assembleia das

Nações Unidas em 10 de dezembro do mesmo ano. A segunda etapa somente efetivou-se

em 1966, com a aprovação de dois Pactos, um sobre direitos civis e políticos, e outro sobre

direitos econômicos, sociais e culturais.

Muito embora outras convenções tenham sido pactuadas no intuito de dar

efetividade, a terceira etapa, consistente na criação de mecanismos capazes de assegurar a

universal observância desses direitos, ainda não foi completada, ainda que tenha sido

instituído um processo de reclamação junto à Comissão de Direitos Humanos, objeto de

um protocolo facultativo, anexo ao Pacto sobre direitos civis e políticos.

76

2.4.1 Pós guerra e o processo de internacionalização dos direitos humanos

A humanidade passou por processos gradativos de transformação nos últimos

séculos, desde a ruptura de paradigma com a mudança do feudalismo para o capitalismo,

até as Revoluções que visavam dar aos homens a liberdade, em todos os aspectos,

locomoção, cidadania, autoafirmação, nacionalidade, mas também acabar com os

privilégios e as diferenças impostas por uma suposta linhagem dos deuses, estabelecendo

assim não apenas uma igualdade formal, mas também material.

Além disso, com os ultrajes ocorridos entre 1930 e o final da Segunda Guerra

Mundial e a instituição do Estado totalitário, percebeu-se uma evolução negativa das

tiranias tradicionais, e a avalanche de massacres bélicos em pelo menos três continentes. A

eternidade estava por um fio40

.

Cessadas as hostilidades, as consciências se abriram para o fato de que a

sobrevivência da humanidade exigia a reorganização da vida em sociedade em escala

mundial, com base no respeito absoluto da pessoa humana, através da sistematização e

condensação desses pensamentos em Cartas, Constituições, Convenções e Declarações.

No preâmbulo da Carta das Nações Unidas, os fundadores da Organização

declararam-se:

Resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, [...] a

reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do

ser humano, na igualdade de direitos do homem e das mulheres, assim como das

nações grandes e pequenas, e [...] a promover o progresso social e melhores

condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla (COMPARATO, 2013,

p. 543).

A criação de novos órgãos, inexistentes ao tempo da Liga das Nações, como o

Conselho Econômico e Social e a Organização das Nações Unidas incluiu em seus quadros

a preexistente Organização Internacional do Trabalho, além das novas agências

especializadas para cuidar, em âmbito global, das questões voltadas à agricultura,

alimentação, saúde, educação, ciência e cultura.

Estimulado por essas transformações decorrentes do pós-guerra, seguiram-se os

“trinta anos gloriosos”, em que a humanidade conheceu uma taxa média de crescimento

econômico e uma queda nos índices de desemprego sem precedentes, onde mais de uma

centena de países deixaram sua subjugação e tornaram-se nações independentes.

40 Ver sobre o período da Guerra Fria, em Follet (2014).

77

Com base nas transformações que eclodiram através da Declaração Universal de

1948, a discussão sobre os Direitos Humanos e sua proteção internacional enfatizou não

apenas a tradição de algumas dimensões internacionais na proteção dos Direitos

Fundamentais, uma vez que o indivíduo era considerado um corpo estranho ao processo

dialético normativo.

A fim de proteger e criar modelos capazes de atender à demanda de efetivação dos

Direitos Humanos Fundamentais, Sidney Guerra esclarece (2014, p. 44): “a introdução dos

standards dos direitos do homem no direito internacional (garantia e defesa de um

determinado standard para todos os homens) obrigou ao desenvolvimento de um direito

internacional individualmente referenciado”.

Além da proteção diplomática e da proteção humanitária, desenvolveu-se uma

teoria jurídico-contratual internacional de justiça, com o escopo de alicerçar uma nova

dimensão de vinculatividade na proteção dos direitos da pessoa humana, apregoando-se

mudanças no comportamento de Estados e das pessoas em defesa de uma maior proteção a

esses direitos.

No que tange à composição do Direito Internacional dos Direitos Humanos,

Quintana (1999, p. 32) que o discrimina por fases ou etapas, inseriu-a na primeira:

Podemos distinguir tres fases o etapas las caules pueden igualmente aplicarse a

la composición del International Human Rights Law: La primeira, corresponde a

la etapa de definición y codificación de las normas sobre derechos humanos la

cuál aparece principalmente cristalizada em los documentos que componen la

llamada Carta internacional de derechos humanos de la ONU; la segunda, se

relaciona a las atividades de promoción, mientras que la tercera a la protección

de los derechos humanos. Es decir, uma etapa legislativa em donde se estabelece

el contenido y/o definición de cada uno de los derechos; uma outra fase, de

promoción, de estúdios, seminários, cursos y publicaciones, como también, a

tareas de asistencia técnica; y por último, la etapa de protección internacional,

tendiente a controlar el respecto y efectivo cumplimento de los derechos

humanos, a través de la implantación de Grupos especiales de expertos (los

Comités de derechos humanos) y de medidas procedimentales adecuadas para

investigar ‘comunicaciones’ (denuncias) de violaciones a los derechos humanos.

Essa sistematização passou por etapas para a sedimentação destes direitos. Num

primeiro momento tem-se a definição e a codificação de normas sobre Direitos Humanos,

que culminou com a promulgação da Declaração de Direitos de 1948; em seguida os

tratados e convenções que visavam promover e dar efetividade a esta, e por fim, num

terceiro momento onde se busca a proteção desses direitos através da implantação de

78

grupos especiais, os comitês de Direitos Humanos, responsáveis por investigar as

denúncias de violações a estes direitos.

A seu turno, Piovesan (2012, p. 173) preconiza a necessidade de uma ação

internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos, capaz de impulsionar o

processo de internacionalização destes direitos, propiciando uma nova sistemática de

proteção internacional41

que torna possível a responsabilização do Estado no âmbito

internacional, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de

sua proteção, complementando assim o seu raciocínio:

O movimento internacional de direitos humanos e a criação de sistemas

normativos de implementação desses direitos passam, assim, a ocupar uma

posição de destaque na agenda da comunidade internacional, estimulando o

surgimento de inúmeros tratados de direitos humanos, bem como de

organizações governamentais e não governamentais comprometidas com a

defesa, proteção e promoção desses direitos.

Essa evolução permitiu a construção de instrumentos, órgãos e procedimentos de

aplicação dos Direitos Humanos, passando a constituir um ramo autônomo do Direito

Internacional Público, caracterizando-se essencialmente como um direito de proteção,

marcado por uma lógica própria, e voltado a garantir os direitos dos seres humanos e não

do Estado.

A criação destes instrumentos e procedimentos, conforme relata Comparato (2013,

p. 544),

a partir dos anos 70, como assinalou o Relatório Mundial sobre o

Desenvolvimento Humano de 1999, das Nações Unidas, a humanidade em seu

conjunto vem sendo submetida a um processo fortemente contraditório de

unificação técnica e desagregação social.

Os meios de comunicação e informação aproximaram os homens uns dos outros,

como nunca se vira, mas atrás desse avanço, percebe-se o aprofundar de uma formidável

desigualdade entre os que podem e os que não podem utilizar-se das maravilhas do

engenho humano, em uma sociedade de consumo onde cada vez mais tanto os produtos

quanto as relações interpessoais são descartáveis.

A dissociação da humanidade entre a minoria abastada e a maioria carente

acelerou-se consideravelmente, a partir do final dos anos 1970, impulsionados pelo

41 Uma tentativa de avaliar os desenvolvimentos modernos respeitantes à proteção do indivíduo, mais especificamente

contra o seu próprio Estado, deve ter em conta as matrizes do Direito Internacional consuetudinário ou geral. Para

responsabilizar um Estado no plano internacional é necessário que o queixoso prove que a questão está submetida ao

Direito Internacional (BROWLIE, 1997, p. 577).

79

neoliberalismo, levando a desigualdade não apenas aos países subdesenvolvidos, mas

também aos próprios países ricos.

Durante as duas últimas décadas do século XX, essa desigualdade alcançou índices

alarmantes, segundo observa Stiglitz (2013, p. 40):

o coeficiente Gini, que mede o grau de desigualdade socioeconômica de uma

população, acusou um agravamento de 16% nos Estados Unidos, na Suécia e no

Reino Unido. Aliás, a desigualdade socioeconômica nos Estados Unidos atingiu

atualmente o seu ponto mais elevado dos últimos cem anos.

O mesmo processo de desigualdade também ocorreu em países como a China, a

partir do início do século XX, que atualmente é a segunda potência mundial em termos de

PIB, indicando que a dissociação da humanidade não é um fenômeno puramente

geográfico, uma espécie de deriva social dos continentes, mas um corte vertical no interior

de cada Estado, ao universalizar o desequilíbrio estrutural, como essência do

subdesenvolvimento.

Os efeitos dessa dissociação passam pelo aumento do número de desempregados,

até índices que apontam quase 13% da população mundial vivendo abaixo da linha da

pobreza, onde a capacidade laboral de cada um, considerada por Smith (1988, p. 54), “a

mais sagrada e inviolável das propriedades”, torna-se, sob a ótica dessa nova roupagem

econômica, um bem secundário e dispensável no processo de produção.

Sob esse pano de fundo se instala um perfil de profunda insegurança

socioeconômica e política, seja em função da escassez de trabalho ou o subemprego, seja

pela insegurança sanitária, com doenças que se espalham, e que pela falta de controle se

tornam epidemias, em âmbito global, afetando principalmente os países com piores

condições financeiras.

Além disso, no que tange à (in) seguridade social, enquanto Direito Fundamental,

destaca-se, segundo Comparato (2013, p. 545),

a insegurança previdenciária, com a deterioração das instituições estatais de

previdência e assistência social [...] Insegurança econômica, a afetar todos os

povos e a ameaçar a subsistência, a curto prazo, de pelo menos meio bilhão de

pessoas, nas regiões tropicais.

Por conseguinte, fala-se ainda na insegurança política, com a multiplicação das

guerras civis, que provocam um número crescente de mortos e refugiados. Destaca-se, em

80

relação aos conflitos civis, os que envolvem em especial a região da Síria, na Ásia

Ocidental, como exemplo dessa intolerância e dos abusos de uma minoria que diz

representar as vontades do povo e por vezes a de Deus.

A fim de combater tanto a insegurança quanto a multiplicação das guerras civis, foi

realizada a Conferência de Viena, em 1993, que estabeleceu importantes pressupostos

programáticos indispensáveis à universalização dos Direitos Humanos, como a inter-

relação entre desenvolvimento, direitos humanos e democracia, a legitimidade do

monitoramento internacional de violações cometidas pelas Nações, o direito ao

desenvolvimento e a interdependência de todos os Direitos Fundamentais.

Acerca da Declaração de Viena, que em seu arcabouço introduziu uma série de

recomendações, na esfera internacional, acentua Alves (1999, p. 33) que “com suas

recomendações programáticas, constitui o documento mais abrangente sobre a matéria na

esfera internacional e com uma característica inédita, efeito decisivo para a disseminação

em escala planetária dos direitos humanos no discurso contemporâneo”.

Na Conferência de Viena confirmou-se a ideia de que os Direitos Humanos estão

além dos domínios dos Estados, invalidando o recurso abusivo ao conceito de soberania

para mascarar violações, demonstrando desta forma, que os Direitos Humanos não são

mais matéria exclusiva das jurisdições em âmbito doméstico.

Certamente uma das conquistas mais significativas da Conferência foi a

universalização dos Direitos Humanos, como aponta De Lucas (1994, p.56):

En relación con la universalidad, ya que sólo el final llegó a un consenso sobre

el carácter universal de los derechos humanos y el hecho de que la diversidad

cultural no puede ser invocada para justificar su violación, que es, a pesar de las

diversas particularidades históricas, culturales, étnicas y religiosa debe ser tenido

en cuenta es el deber de los Estados de promover y proteger los derechos

humanos, independientemente de sus sistemas.

Sob o pano de fundo da universalidade dos Direitos Humanos, a diversidade

cultural não pode ser invocada para justificar violações, ainda que as diversas

particularidades históricas, culturais, étnicas e religiosas sejam consideradas. Os Estados

devem promover a proteção e a efetividade desses direitos, independentemente dos

respectivos sistemas.

Afirma-se que o sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos ganhou

força e consistência após a Convenção de Viena, haja vista que foi delimitado o núcleo

81

inderrogável de princípios fundamentais no caminho da “globalização” dos mecanismos

concretos dessa proteção.

Ao invés de serem observados os princípios fundamentais, dentre eles o da

solidariedade internacional contra a guerra e a miséria, extraídos tanto das Revoluções

quanto da Declaração dos Direitos do Homem de 1948, verificou-se uma subordinação da

humanidade aos interesses exclusivos das grandes potências.

Desta forma, deflagra-se um perigoso momento histórico, relacionado à crise do

modelo de soberania e a consequente limitação dos poderes estatais, conforme vislumbra

Comparato (2013, p. 546):

Vivemos um perigoso momento histórico, em que se tenta, sistematicamente,

eliminar as instituições de limitação de poder político e econômico, em âmbito

mundial. [...] o estabelecimento de controles institucionais ao exercício do poder

de mando foi uma condição histórica indispensável ao surgimento dos direitos

humanos.

O embate entre socialismo e capitalismo, que culminou com o esfacelamento da

União Soviética, constituiu uma grave ameaça à reorganização das relações internacionais

num sentido comunitário, haja vista que os Estados Unidos, ao alcançar a condição de

potência hegemônica mundial, refutam em assinar quaisquer Pactos que possam restringir

a liberdade dos americanos.

A intervenção humanitária tem como objetivo precípuo cessar graves e repetidas

violações aos Direitos Humanos, de acordo com o previsto na Declaração de Direitos

Humanos de 1948, conforme esclarece Alves (2005, p. 146):

Quando nos estertores da Guerra Fria, a França, impulsionada pelos Médicos

sem fronteiras, submeteu a Assembleia Geral das Nações Unidas, na sessão de

1988, o projeto de resolução sobre assistência humanitária que deu origem à

expressão ‘direito de ingerência’; sua preocupação explícita era com as

dificuldades interpostas por determinados governos de países conflagrados,

como o Afeganistão e o Sudão, a concessão de auxílio médico e alimentar às

vítimas integrantes – muitas vezes apenas pela etnia – de movimentos

insurrecionais.

Além da Declaração de 1948, destaca-se a assistência humanitária que visa garantir

proteção e efetividade dos direitos humanos, em consonância com as Convenções de

Genebra de 1949 e de 1970, e com organismos atuando de maneira pacífica, em nome do

direito internacional e das exigências da sociedade internacional no sentido de garantirem

a assistência humanitária devida.

82

Contudo, a posição adotada pelos Estados Unidos está defasada, haja vista que o

último tratado de direitos humanos, integralmente ratificado e aprovado pelo país ocorreu

em 1966, sobre os diretos civis e políticos, não acontecendo o mesmo quanto ao Pacto

sobre direitos econômicos, sociais e culturais que teve sua ratificação rejeitada pelo

Congresso norte-americano.

Desde então, os Estados Unidos recusam-se, sistematicamente, a se submeter às

normas internacionais de proteção dos direitos humanos, por considerarem que isto

implica uma limitação de sua soberania. Nesse sentido, afirma Comparato (2013, p. 547-

548),

Assim foi com os Protocolos de 1977 às Convenções de Genebra de 1949, com a

Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as

mulheres de 1979, com a Convenção sobre o Direito do Mar de 1982, com o

Protocolo Adicional de 1988 à Convenção Americana sobre direitos humanos

em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, com o Segundo Protocolo

de 1989 ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, com a

Convenção sobre os direitos da criança em 1989, com a Convenção sobre a

Diversidade Biológica em 1992, com a Convenção de Ottawa de 1997, sobre a

proibição de uso, armazenagem, produção e transferência de minas antipessoais,

com a Convenção de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional, em 17

de julho de 1988, e com o Protocolo de Quioto de 1998, sobre a emissão de

gases poluentes, com a Convenção de Oslo de 2008, que proibiu a utilização das

bombas de fragmentação.

Após um lento e pesaroso processo de afirmação dos direitos e liberdades

individuais, aos direitos da própria humanidade, passando pelo reconhecimento dos

direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos direitos dos povos, o que se

verifica é que toda a humanidade atravessa uma série crise, envolvendo não apenas as

Nações abastadas, como também aquelas com poucos recursos, onde revestidos por uma

visão de missão sacrossanta, grupos armados voltam-se contra aqueles que detêm a

hegemonia econômica e militar.

O que se questiona com o desenrolar da história é o caminho a ser percorrido, se

todas as lutas para alcançar um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais

terão sido em vão, e se a humanidade está fadada ao seu fim. Ao procurar interpretar este

espírito, Jaspers (1965, p. 70-72) “distinguiu dois tipos de previsão histórica: a

simplesmente especulativa42

e a instigante43

”.

42 A primeira representa um puro exercício intelectual. O observador imagina-se fora do mundo, como mero expectador

do “teatro da História”. Nessa perspectiva cerebrina, o futuro da humanidade é abandonado ao puro acaso, ou às forças

cegas da natureza. Em suma, nada se prevê, porque “de fora” nada se pode ver; e, sem visão do futuro, não se pode agir,

pois toda ação humana supõe um objetivo escolhido e intencionalmente procurado (JASPERS, 1965, p. 27-28). 43 A realidade existencial do mundo só aparece aos olhos daqueles que empenham a sua própria pessoa na trama

histórica. A verdadeira prognose faz-se não apenas com o intelecto, mas também com a vontade, a sensibilidade

83

O diagnóstico da crise vivenciada pela humanidade pode ser entendida por uma

carência governativa, um colapso do sistema representativo, tanto no cenário doméstico

quanto internacional, causado pelo movimento neoliberal capitalista, ao propagar em todo

o mundo a desregulamentação das instituições financeiras, transformando não apenas a

sociedade mas os agentes e consequentemente aumentando, ainda mais, as desigualdades

econômicas, políticas e sociais.

Chega-se ao século XXI no ápice do capitalismo, ou seja, no momento histórico em

que se coloca uma maior distância entre os anseios por uma sociedade igualitária com a

voracidade do lucro a qualquer custo, culminando com uma encruzilhada epistemológica:

ou a humanidade se deixa conduzir à dilaceração definitiva, ou tomará o rumo da justiça e

da dignidade.

O capitalismo não é um mero sistema econômico, mas como já mencionado, uma

forma global de se viver em sociedade, e que assumiu protagonismo com a queda do Muro

de Berlim e a dissolução da União Soviética, definindo-se como um conjunto de

instituições sociopolíticas, caracterizado por um espírito competitivo, excludente e

dominador.

No campo econômico, enquanto o capital desumanizado é elevado à posição de

pessoa artificial, o homem é reduzido a simples condição de instrumento de produção, ou

ao papel de mero consumidor a serviço do capital. Como já destacava Marx (2008, p.46),

mais de um século antes da atual “globalização”, “a tendência a criar um mercado mundial

insere-se no próprio conceito de capital”.

Contudo, não apenas no campo econômico imperam as leis de mercado, fundadas

no liberalismo extremo, como recomendou Smith (1988, p. 54):

o estabelecimento de um sistema de rivalidades e emulações em todas as

profissões, mesmo as tradicionalmente não econômicas, como os ofícios

religiosos. Na verdade, para a mentalidade capitalista, somente aquilo que tem

preço no mercado possui valor na vida social.

O pano de fundo que sustenta institucionalmente o capitalismo é o confinamento da

atividade estatal à proteção da ordem, do contrato e da propriedade privada, como

garantias do exercício das liberdades mercantis, enquanto os conjuntos das liberdades civis

e políticas passam a exercer um papel secundário, podendo, por vezes, ser preteridas diante

das liberdades mercantis, conforme se verifica em relação à Rússia e à China.

valorativa e o juízo ético. Nesse sentido, ela é instigante da ação, pois supõe em cada um de nós a consciência de que

somos, respeitadas certas condições, senhores de nosso próprio destino (JASPERS, 1965, p. 33-35).

84

A prática capitalista representa o desenvolvimento sistemático do espírito

individualista, impregnado pelos ideais revolucionários do final do século XVIII, através

de uma intervenção mínima do Estado, agregando-se a lógica da exclusiva possibilidade

técnica, onde tudo o que pode ser produzido possui um valor absoluto e não deve ser

impedido por exigências éticas.

O desejo pela concentração ilimitada de capital tem como característica a

exploração e a sociedade de massa, conforme descreve Comparato (2013, p. 553), “com

base na exploração de trabalhadores e consumidores, na apropriação dos bens comuns da

humanidade, naturais ou culturais, e na exaustão, esta também global, do meio ambiente”.

O ideal do capitalismo financeiro contemporâneo é a realização de lucros sem

produção de bens, ou prestação de serviços à comunidade, excluindo-se bens materiais

apenas, com crescimento na valorização e no monopólio de conhecimentos tecnológicos,

dando-se, assim, um extraordinário impulso ao sistema de propriedade intelectual,

concernentes às atividades mercantis.

O objetivo de analisar as experiências do passado é evoluir e construir uma

civilização que assegure a todos os seres humanos, sem embargo das múltiplas diferenças

biológicas e culturais que os distinguem entre si, o direito elementar da busca pela

felicidade, e de estabelecer uma igualdade que não seja apenas formal, mas que possa

acima de tudo, enxergar o outro com os olhos do outro.

Para se falar em uma sociedade genuinamente democrática, deve-se atentar à

organização dos meios de comunicação social, pautando-se, mais uma vez, na civilização

ateniense onde o debate público sobre questões de interesse coletivo nela ocupava um

lugar central, e a isegoria ou igualdade de palavra era escrupulosamente observada,

qualquer que fosse a condição social do cidadão.

Em que pese as concepções clássicas, atualmente, o espaço público de

comunicação já não é a ágora ateniense nem mesmo o Parlamento, como concebeu o

constitucionalismo clássico, mas sim a imprensa, o rádio, a televisão, a internet. Com

exceção da última, os demais veículos de comunicação de massa, quando não

monopolizados pelo Estado autocrático, acabaram sendo apropriados pela classe

empresarial, para o (des) serviço de interesses pessoais.

A democratização dos meios de comunicação de massa representa para Comparato

(2013, p. 560)

85

a condição sine qua non do efetivo exercício da soberania popular nos dias que

correm. “Um governo popular sem informação popular”, disse James Madison

em seu tempo, “é um prólogo à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas”. A farsa

democrática, nós já conhecemos desde há muito. Resta saber se ainda há tempo

de se evitar a tragédia.

Ao analisar-se o cenário das relações internacionais, percebe-se o desvanecimento

das esperanças, suscitadas pós Segunda Guerra Mundial, de que o mundo seria

reorganizado no sentido de preservar a paz e os direitos humanos. Contudo, para falar-se

em efetividade dos direitos fundamentais dos povos e dos direitos da própria humanidade,

uma das soluções admitidas seria a implantação de um governo democrático em âmbito

global.

Os tratados de direitos humanos das Nações Unidas têm constituído a espinha

dorsal do sistema universal de proteção dos Direitos Humanos, podendo ser abordado tanto

de forma regional quanto global, mas relacionando-se uns aos outros, dando assim um

caráter de complementariedade entre as normas destinadas à proteção do homem.

A despeito da aceitação universal da tese da indivisibilidade dos direitos humanos,

como ensina Cançado Trindade (2000, p. 150),

Persiste a disparidade entre os métodos de implementação internacional dos

direitos civis e políticos, e dos direitos econômicos sociais e culturais. Apesar da

conclamação da Conferência de Viena, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais, e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher, continuam até o presente (meados de 1997)

desprovidos de um sistema de petições ou denúncias internacionais.

Para a construção dessa democracia globalizada, deve-se atentar para os elementos

institucionais já existentes, reunidos na Organização das Nações Unidas, que se

contrapõem à oligarquia imposta pelos Estados Unidos com o fim da União Soviética,

atribuindo poderes às Nações Unidas, aos povos nela representados, ampliando as funções

de natureza legislativa, executiva e judiciária da Organização.

Com efeito, se o objetivo for democratizar a instituição, não se pode deixar de

exigir que os Estados Membros, observa Comparato (2013, p. 561), “tenham um mínimo

de representatividade e consentimento popular no funcionamento de seus órgãos de

governo, e que estes atuem sempre dentro dos parâmetros definidos pelos grandes

princípios jurídicos, notadamente em matéria de direitos humanos”.

Uma distinção a ser feita quanto ao princípio da efetiva representatividade dos

povos está no fato de que este não representa igualdade de votos de cada Estado nas

86

reuniões da Assembleia Geral. A densidade demográfica deve ser considerada na

regulação do sufrágio, contudo, não deve prevalecer à tese de potenciais econômicos ou

militares, como fator determinante para fixar o número de representantes.

As convenções sobre direitos humanos sofrem um anacronismo ao dependerem de

ratificação individual pelos Estados membros para que possam se tornar efetivas, como

salientou Grócio (2004, p. 236-238):

As convenções entre Estados, analogamente aos contratos de direito privado,

podem classificar-se em duas grandes espécies: as bilaterais e as multilaterais.

As primeiras, dirimunt partes, isto é, separam os interesses próprios das partes

contratantes, ao passo que as segundas communionem adferunt, vale dizer, criam

relações de comunhão. Ora esse objetivo comunitário é mais acentuado nas

convenções multilaterais votadas no seio de uma organização internacional,

cujas decisões, tal como no âmbito das sociedades ou associações do direito

privado, são normalmente tomadas por votação majoritária e não por

unanimidade.

Um avanço significativo em relação aos Estados membros seria a aplicação do art.

18, 3ª alínea, da Carta das Nações Unidas, exigindo-se um quórum qualificado para

aprovar convenções sobre direitos humanos, por uma maioria de dois terços, dispensando-

se a ratificação individual dos Estados membros para sua efetividade.

Todavia, verifica-se que entre as principais atribuições conferidas à Organização

das Nações Unidas, por determinação da Carta de 1945, são, de um lado, a manutenção da

paz e da segurança internacionais, com a consequente criação do Conselho de Segurança

dotado de competência decisória para exercer uma ação pronta e eficaz.

De outro lado, seguindo os preceitos da Carta de 1945, busca-se a cooperação de

todos os povos em matéria econômica e social, criando-se o Conselho Econômico e Social,

porém, com uma diferença gritante e fundamental da anterior: nestes casos, somente

incumbe a atribuição de recomendações à Assembleia Geral, aos Membros das Nações

Unidas e às entidades especializadas interessadas.

Enquanto houver este abismo no tocante aos órgãos que buscam dar efetividade às

demandas globais, pouco haverá de evolução nessa área, devendo ser abolido o caráter

oligárquico do Conselho de Segurança, suprimindo-se os cargos permanentes com poder

de veto.

Ademais, é necessário dotar o Conselho Econômico e Social de competência

decisória, capaz de supervisionar e direcionar, não apenas as atividades das agências

87

especializadas, como também do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da

Organização Mundial do Comércio.

Pode até parecer utópico, ou de aplicabilidade questionável, haja vista o modelo

econômico amplamente adotado pelas grandes potências e que direcionam a

macroeconomia mundial, contudo, assim como parecia inconcebível a ruptura de

paradigma do feudalismo para o capitalismo, com a destituição dos monarcas, precisamos

idealizar novos meios para atender às demandas globais, sem violar os direitos e garantias

fundamentais conquistados ao longo das gerações.

Mas para que estas transformações possam ocorrer, é preciso a organização de um

poder Judiciário forte e autônomo, afirma Comparato (2013, p. 565), “devendo-se abolir a

cláusula de reconhecimento facultativo da jurisdição da Corte Internacional de Justiça,

assim como já ocorreu na União Europeia, com o Protocolo n.11 à Convenção Europeia de

Direitos Humanos, no tocante ao Tribunal de Estrasburgo”.

Para que essas funções judiciárias se tornem efetivas, seria necessário completar a

obra iniciada com a Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, e com os dois

Pactos Internacionais de 1966, haja vista que esses documentos normativos constituíram

etapas preparatórias para se estruturar um aparelhamento institucional adequado,

assegurando o respeito universal aos direitos humanos e tratar os casos de sua violação.

A implementação dessas mudanças esbarra em interesses tanto de ordem

econômica quanto de ordem militar, uma vez que a hegemonia imposta pelos Estados

Unidos com o fim da Guerra Fria trouxe além das consequências econômicas, a

supremacia do poderio militar deste país, opondo-se desta forma, a qualquer limitação de

sua soberania, inviabilizando a efetivação de sanções aplicadas por um tribunal

internacional com competência para julgar os casos de violação dos Estados-Membros, nos

moldes do Estatuto de Roma de 1988, que instituiu o Tribunal Penal Internacional.

2.4.2 Precedentes históricos – direito humanitário, OIT e Convenção de Genebra

Com o intuito de redefinir o âmbito e o alcance da soberania estatal e o indivíduo,

foram instituídos os primeiros marcos no processo de internacionalização dos direitos

humanos (o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do

Trabalho), a fim de permitir que tais direitos pudessem ser entendidos como uma questão

de legítimo interesse internacional.

88

A primeira concepção definindo o Direito Humanitário constituiu elementos para

fixar limites à atuação do Estado em casos de guerra conforme explica Buergenthal (1982,

p. 14): “humanitarian law is the human rights component of the law of war. It is the law

that applies in the war hypothesis in order to set limits to state action and ensure

compliance with fundamental rights”.

A origem da expressão Direito Humanitário em âmbito internacional remonta à

Convenção de Genebra de 1864, como o conjunto das leis e costumes da guerra, visando

reduzir o sofrimento dos soldados doentes e feridos, bem como das populações civis

atingidas por conflito bélico, dividindo-se em direito preventivo de guerra e direito da

situação ou estado de guerra, destinado a regular as ações das potências combatentes.

Contudo, as transformações e revoluções que marcaram o século XX dão conta de

que não há guerra justa, salvo raríssimas exceções, o que corrobora para a tese de que,

como aponta Comparato (2013, p. 185-186),

o direito do estado de guerra (ius in bello) já não poderia existir, por ser uma

contradição nos termos: se a guerra constitui em si mesma um ilícito e, mais do

que isso, um crime internacional, não faz sentido regular juridicamente as

operações bélicas.

A Comissão de Genebra, que teve origem na Convenção de 1864, transformou-se

em 1880 na Comissão Internacional da Cruz Vermelha, e no decorrer da primeira metade

do século XX estendeu seus princípios aos conflitos marítimos, na Convenção de Haia de

1907 e aos prisioneiros de guerra, na Convenção de Genebra de 1929.

Em 1925, outra Convenção, igualmente assinada em Genebra, observa Comparato

(2013, p. 186-187),

proibiu a utilização, durante a guerra, de gases asfixiantes ou tóxicos, bem como

de armas bacteriológicas. As convenções sobre soldados feridos e prisioneiros de

guerra foram revistas e consolidadas em três convenções celebradas em 1949

sob os auspícios da Comissão Internacional da Cruz Vermelha. Na mesma

ocasião, foi celebrada uma quarta convenção, tendo por objeto a proteção da

população civil em caso de guerra.

Essas convenções criaram o direito de Genebra, como um dos ramos do direito

internacional humanitário, onde as quatro convenções assinadas em 1949 incorporaram aos

referidos direitos as lições das trágicas experiências dos conflitos armados ocorridos na

Ásia, na África e na Europa, ao longo do século XX, e em especial durante a Segunda

Guerra Mundial, com o envolvimento das populações civis, seja como combatentes, como

89

forças resistentes ao invasor, seja como vítimas indefesas por ocasião de bombardeios dos

centros urbanos.

O século XX, considerando suas riquíssimas peculiaridades, pode ser entendido

como a era dos extremos, haja vista que é marcada por um período conturbado, no qual os

Estados europeus disputavam novos territórios, em especial no continente africano, e em

que a disputa desenfreada pelo poder juntamente com o assassinato do arquiduque

Ferdinando da Áustria, foram determinantes para eclodir a Primeira Guerra Mundial e

serviram de substrato para a hecatombe da Segunda Guerra Mundial.

A Primeira Guerra Mundial envolveu todas as grandes potências e, na verdade,

todos os Estados europeus, com exceção da Espanha, os Países Baixos, os três países da

Escandinávia e a Suíça. Além disso, descreve Hobsbawm (1998, p. 31),

Tropas ultramar foram, muitas vezes pela primeira vez, enviadas para lutar e

operar fora de suas regiões. Canadenses lutaram na França, australianos e

neozelandeses forjaram a consciência nacional numa península no Egeu –

‘Gallipoli’ tornou-se seu mito nacional – e, mais importante, os Estados Unidos

rejeitaram a advertência de George Washington quanto a ‘complicações

europeias’ e mandaram seus soldados para lá, determinando assim a forma da

história do século XX.

O que se apresentou no pós-Primeira Guerra Mundial, no cenário político, foi a

introdução de novos fatores que determinaram as relações internacionais com a

participação decisiva dos Estados Unidos na fase final do conflito, o fim da concepção

platônica da balança de poderes como forma de prevenir conflitos, os receios quanto aos

efeitos da Revolução russa, e na visão de Almeida Ribeiro (2004, p. 26),

os mais de 20 milhões de mortos em quatro anos de um conflito no qual ficou

demonstrado que as guerras de curta duração, com rápidas operações militares e

sacrifícios limitados, pertenciam ao passado; o fim da segurança coletiva e da

igualdade entre os Estados.

Em decorrência dessas fragilidades, a partir do fim da Primeira Guerra Mundial

concebeu-se o projeto de criação da Liga das Nações, que correspondia a uma organização

intergovernamental de natureza permanente, baseada nos princípios da segurança coletiva

e da igualdade entre os Estados.

As atribuições essenciais desta organização internacional, conforme leciona Sidney

Guerra (2014, p. 28), “estavam assentadas em três grandes pilares: a segurança

90

internacional; a cooperação econômica, social e humanitária e a execução do Tratado de

Versalhes, que põe termo à Primeira Guerra Mundial”.

O Tratado de Versalhes, diferentemente de outras conferências de Paz, não

estabeleceu um encontro entre vencedores e vencidos, uma vez que os Estados derrotados

não participaram da Conferência, o que caracterizou a “paz dos vencedores”, e que dado as

imposições44

e sanções econômicas e territoriais, favoreceram a apresentação de um

nacionalismo exacerbado, que fomentou a ascensão de Adolf Hitler.

Definitivamente, o Tratado de Versalhes não podia garantir uma paz estável por

muito tempo, conforme observa Hobsbawm (1998, p. 42):

O acordo de Versalhes não podia ser a base de uma paz sustentável. Estava

condenado desde o início e, portanto, outra guerra era praticamente certa. Os

EUA quase imediatamente se retiraram e num mundo não mais eurocentrado e

eurodeterminado, nenhum acordo não endossado pelo que era agora uma grande

potência mundial podia sustentar.

Sob essa ótica e moldura negativa é que se desenvolve a Liga das Nações, e que,

mesmo com todas as adversidades ainda apresentou pressupostos interessantes para a

valorização dos Direitos Humanos no plano internacional, ao estabelecer em seu

preâmbulo que os Estados membros devem aceitar certas obrigações e não recorrer à

guerra, além de pautar as relações internacionais na justiça e na honra, com o intuito de

estabelecer proteção ao indivíduo.

A Liga das Nações propõe mecanismos de proteção coletiva e manutenção da paz

com a solução das controvérsias através da arbitragem, ao dispor que os Estados

concordam em submeter casos que possam trazer discórdia passível de uma ruptura nas

relações internacionais ao Conselho (art. 12, §1°), e uma vez não acolhida nenhuma forma

para a solução pacífica do litígio, o Estado não poderá recorrer à guerra, caso o outro

Estado litigante tenha se conformado com a decisão do Conselho (art. 13, §4°).

Os referidos dispositivos representam um limite à concepção de soberania estatal

absoluta, como ensina Piovesan (2012, p. 111),

na medida em que a Convenção da Liga estabelecia sanções econômicas e

militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados que

violassem suas obrigações, fazendo com que houvesse uma redefinição da noção

44 Dentre outros pontos, a Alemanha teve de devolver à França a região da Alsácia-Lorena, a anexação dos cantões de

Eupen e Malmedy, a perda de territórios para a Polônia (parte da Prússia Oriental, da Prússia Ocidental e da Silésia

Oriental), à Tchecoslováquia uma parte da Silésia Superior, além da impossibilidade de se unir à Áustria (GUERRA,

2014, p. 29).

91

de soberania absoluta dos Estados, que passavam a incorporar compromissos e

obrigações de alcance internacional no que tange aos direitos humanos.

A Convenção da Liga das Nações continha dispositivos genéricos no que tange aos

Direitos Humanos, destacando-se os voltados ao mandate system of the league, ao sistema

das minorias e aos parâmetros internacionais do direito do trabalho, por meio do qual os

Estados se comprometiam a assegurar condições justas e dignas de trabalho para homens,

mulheres e crianças.

A criação da Liga das Nações, dedicada à manutenção da paz, teve origem na

Conferência de Paris, em 1919. Na lição de Bowett (1982, p. 17-18), “It had long been

advocated by legal and philosophical works. The first source of the League of Nations

was, however, the proposal introduced at the Paris Conference in 1919”.

Esses dispositivos representavam um limite à concepção de soberania estatal

absoluta, na medida em que a Convenção da Liga das Nações estabelecia sanções

econômicas e militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados

que violassem suas obrigações, representando a mudança do positivismo clássico para o

denominado “neopositivismo”.

Contudo, em decorrência de suas origens conturbadas, ou dos problemas na

interpretação das normas internacionais, a Liga das Nações não cumpriu seus objetivos e

propósitos, apresentando sinais de fraqueza e de debilidade no início da década de 1930.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, demonstrou-se incompetente e desapareceu

formalmente, em julho de 1947, com o fim de suas atividades.

Mas este não foi o único instrumento internacional criado com o intuito de

estabelecer um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais, capaz de atender

aos anseios de uma sociedade cada vez mais dinâmica e plural. Surgiu também a

Organização Internacional do Trabalho como uma resposta às reivindicações dos

movimentos sociais à necessidade da criação de mecanismos de proteção aos

trabalhadores.

O processo de formação da Organização Internacional do Trabalho, conforme

explica Sidney Guerra (2014, p. 31-32),

Passa pela realização da Conferência Internacional proposta em 1890, pela

Suíça, bem como as celebradas no ano de 1897 em Bruxelas e Zurique,

culminando com a reunião de 1900, que tomou cabo na cidade de Paris, onde foi

concebida a Associação Internacional para a Proteção Legal dos Trabalhadores.

92

A Comissão tinha por escopo estabelecer o núcleo inderrogável de uma legislação

do trabalho no plano internacional que pudesse ser acolhida e aceita pelos Estados-

membros, delineando uma organização internacional permanente, capaz de efetivar em

conjunto com os Estados, medidas à proteção de garantias trabalhistas.

Dentre as reuniões, destaca-se a de n°26 que aprovou a Declaração da Filadélfia

com os novos objetivos da Organização Internacional do Trabalho, num período que

envolve o pós-guerra e a necessidade premente de reconstrução, dando assim, de acordo

com Sidney Guerra (2014, p. 33), uma “nova dimensão ao direito internacional do trabalho

na medida em que se ampliavam as finalidades, competências e o funcionamento da

Organização Internacional do Trabalho”.

De fato, a Declaração de Filadélfia estabeleceu novos marcos para o trabalhador e,

consequentemente, para os Direitos Humanos, conforme destacado em seu preâmbulo por

Ramos (2002, p. 21-22):

Considerando que a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a

justiça social; Considerando que existem condições de trabalho que implicam,

para grande número de indivíduos, miséria e privações e que o

descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais;

Considerando que é urgente melhorar essas condições no que se refere, por

exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração

máxima do dia e da semana do trabalho, ao recrutamento da mão de obra, à luta

contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de

existência convenientes, à proteção aos trabalhadores contra moléstias graves ou

profissionais e os acidentes de trabalho, à proteção das crianças, dos

adolescentes e das mulheres; [...] Considerando que a não adoção por qualquer

nação de um regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços

das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus

próprios territórios. [...]

As transformações propiciadas pela reforma do texto legal da Organização

Internacional do Trabalho corroboraram para a proteção dos Direitos Humanos

Fundamentais ao estabelecer que a liberdade de expressão e de associação é pressuposto

indispensável ao progresso, com a participação dos representantes governamentais,

empresariais e operários.

Certamente esses pressupostos fixados pela organização internacional buscam a

valorização da pessoa humana ao enaltecer a busca do pleno emprego, a formação

profissional dos trabalhadores, a remuneração digna, o estabelecimento de um piso salarial

mínimo, a seguridade social e previdenciária, a elaboração e implementação de medidas

socioeconômicas, dentre outros.

93

Desta forma, a partir da premissa dos princípios concebidos pela Organização

Internacional do Trabalho, é possível destacar quatro objetivos estratégicos que orientam a

sua ação, conforme enumera Sidney Guerra (2014, p. 35): “(a) promover e aplicar os

princípios e direitos fundamentais no trabalho; (b) desenvolver as oportunidades para que

os homens e as mulheres tenham um emprego digno; (c) alargar a proteção social; (d)

reforçar o diálogo social”.

Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização Internacional

do Trabalho tinha por finalidade promover padrões internacionais de condições de trabalho

e bem-estar. Sobre a organização, ressalta Cassesse (1990, p. 172):

Immediately after the First World War, the International Labour Organization

(ILO) was established and one of its objectives was to regulate the condition of

workers worldwide. States were encouraged to not only develop and accept

international conventions (on equal remuneration in employment for women and

minors, the night working hours, freedom of association, among others), but also

to meet these new international obligations.

A Organização Internacional do Trabalho foi criada com o escopo de regular e criar

um núcleo inderrogável de direitos dos trabalhadores em âmbito mundial. Os Estados

foram incentivados a recepcionar as Convenções Internacionais relativas à igualdade de

remuneração entre homens, mulheres e menores, à jornada de trabalho noturno, à liberdade

de associação, dentre outros, como também a cumprir estas novas diretrizes internacionais.

O advento destes institutos representa o fim de uma época em que o Direito

Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular as relações entre Estados, no

âmbito estritamente governamental, visando o alcance de obrigações internacionais a

serem garantidas ou implementadas coletivamente, que transcendiam aos interesses

exclusivos dos Estados.

Interessante é a analogia entre a feição desses institutos internacionais estudados e

a especificidade dos tratados internacionais de direitos humanos. A respeito comenta

Cançado Trindade (1991, p. 10-11):

Em matéria de tratados sobre proteção dos direitos humanos, a reciprocidade é

suplantada pela noção de garantia coletiva e pelas considerações de ordem

pública. Tais tratados incorporam obrigações de caráter objetivo, que

transcendem os meros compromissos recíprocos entre as partes.

94

Esses movimentos em prol da afirmação e da sedimentação dos Direitos Humanos

Fundamentais levaram à convicção da necessidade de se construir um mundo comum no

segundo pós-guerra, pautado na concepção da preservação da dignidade humana,

construindo assim um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais que seriam

representados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.

2.4.3 A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948

A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi redigida sob o impacto das

atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, ainda que a revelação tenha

sido feita, de modo parcial, ou seja, com a omissão do que se referia à União Soviética e de

vários abusos cometidos pelas potências ocidentais, após o encerramento das hostilidades.

Na metade do século XIX, prevaleceu no mundo ocidental a ideia de que o Estado

não tinha qualquer responsabilidade pelos atos praticados por seus agentes, adotando

soluções rígidas para os particulares em geral, obedecendo às reais condições políticas da

época, que valorizavam uma cultura extremamente machista, patriarcal e imbuída de

valores aquém das evoluções e das transformações ocorridas na sociedade.

O Estado liberal tinha limitada atuação, destaca Carvalho Filho (2006, p. 460),

“raramente intervindo nas relações entre particulares, de modo que a doutrina de sua

irresponsabilidade constituía mero corolário da figuração política de afastamento e da

equivocada isenção que o poder público assumia à época”.

Essa teoria não prevaleceu por muito tempo, uma vez que a noção de que o Estado

era o ente todo-poderoso, confundia-se com a velha teoria da intangibilidade do soberano e

que o tornava insuscetível de causar danos e ser responsável, sendo substituída pela do

Estado de Direito, segundo a qual deveriam ser atribuídos ao Estado os direitos e deveres

comuns às pessoas jurídicas.

Disto resultou a discussão se a pessoa humana poderia ser considerada sujeito na

ordem jurídica internacional, posto que somente assim seria possível afirmar uma proteção

internacional dos Direitos Humanos. Nesse sentido ensina Luis Silva (2002, p. 391):

Não se pode falar em direitos do homem garantidos pela ordem jurídica

internacional se o homem não for sujeito de Direito Internacional. Negar a

personalidade internacional do homem é negar ou deturpar a existência de uma

série de instrumentos da vida jurídica internacional. [...] A proposição do homem

como sujeito de direito é uma decorrência da orientação jusnaturalista que

95

adotamos para explicar o fundamento do Direito Internacional. Duas são as

principais razões para o homem ser considerado pessoa internacional: a própria

dignidade humana, que leva a ordem jurídica internacional a reconhecer direitos

fundamentais e a protegê-los; a própria noção do direito, obra do homem para o

homem.

A pessoa humana dotada de personalidade na ordem jurídica é destinatária de

várias normas de Direito Internacional, conferindo direitos e proporcionando os meios para

assegurá-los, como se verifica ao longo da história. São utilizados instrumentos destinados

a normatizar essas regras, como os Tratados, os Pactos e as Resoluções, todos ratificados

pelos Estados.

Após a Segunda Guerra Mundial foram estabelecidas comissões de reclamações

através das quais particulares podiam reivindicar os prejuízos sofridos em decorrência das

hostilidades e se necessário a intervenção de governos. Nesse propósito, Aréchaga (1995,

p. 39):

Después de la Segunda Guerra Mundial, por ejemplo, se establecieron

comissiones de reclamaciones ante las cuales los particulares reclamaron por

perjuicios sufridos a consecuencia de las hostilidades. En 1981 se estableció el

Tribunal Arbitral Irán – Estados Unidos como parte de los acuerdos celebrados

entr los dos países después de la crisis de los rehenes em Teherán. Ante el

Tribunal los particulares prejudicados por la crisis han presentado sus

reclamaciones sin que haya sido necessária la intervención de los gobiernos.

O direito da pessoa humana regula uma comunidade internacional constituída de

seres humanos organizados socialmente em Estados cuja reparação das violações de

direitos humanos, observa Cançado Trindade (2002, p. 3), “reflete uma necessidade

internacional atendida pelo direito das gentes, com os mesmos princípios de justiça

aplicando-se tanto aos Estados como aos indivíduos ou povos que os formam”.

De acordo com essa concepção sobre os sujeitos que se manifestam na sociedade

internacional, é possível apresentar ao indivíduo a relação entre os fatos e a

internacionalização dos Direitos Humanos, haja vista que, até o século XIX a pessoa

humana não era reconhecida como sujeito de direitos internacional, estando, portanto à

margem, ou relegada a um plano inferior.

O processo de generalização de proteção dos direitos humanos desencadeou-se no

plano internacional a partir da adoção, em 1948, das Declarações Universal e Americana

dos Direitos Humanos, cuja principal preocupação, aponta Cançado Trindade (1997, p. 17-

58), “era restaurar o direito internacional em que viesse a ser reconhecida a capacidade

processual dos indivíduos e grupos sociais no plano internacional”.

96

Os fundadores desse direito internacional são fruto do processo de

internacionalização dos direitos humanos, ganhando impulso com o direito humanitário,

com a formação da Liga das Nações e a própria criação da Organização Internacional do

Trabalho, que surgiram em momentos diferentes, mas com o mesmo propósito, qual seja, o

de dar proteção à pessoa humana, independente de nacionalidade, credo ou cor da pele.

Esses institutos contribuíram cada qual a seu modo para o processo de

internacionalização dos direitos humanos, como ensina Piovesan (2012, p. 134),

seja ao assegurar padrões globais mínimos para as condições de trabalho no

plano mundial, seja ao fixar como objetivos internacionais a manutenção da paz

e a segurança internacional, ou ainda para proteger direitos fundamentais em

situações de conflito armado.

Embora aprovado por unanimidade, nem todos os membros das Nações Unidas, à

época, partilhavam das convicções expressas no documento, uma vez que países

comunistas como União Soviética, Ucrânia, Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia e

Iugoslávia, além de Arábia Saudita e África do Sul abstiveram-se de votar.

Seja como for, a Declaração, retomando os ideais da Revolução Francesa, como

descreve Comparato (2013, p. 238), “representou a manifestação histórica de que se

formara, enfim, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da

igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens, como ficou consignado no

artigo I”.

A sedimentação desses ideais e sua efetivação ocorreram de forma progressiva,

tanto no plano nacional quanto no internacional, como um fruto sistemático de educação e

afirmação dos direitos e garantias fundamentais, buscando a valorização do homem, ainda

que acima das concepções políticas e econômicas.

Já não se tratava de proteger indivíduos sob certas condições ou em situações

circunscritas no passado, elucida Cançado Trindade (2000, p. 23), “por exemplo, a

proteção de minorias, de habitantes de territórios sob mandato, de trabalhadores sob as

primeiras convenções da OIT, mas doravante de proteger o ser humano como tal”.

De forma técnica, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma

recomendação que a Assembleia Geral das Nações Unidas fez aos seus membros. Não

possui, portanto, força vinculante, razão pela qual a Comissão de Direitos Humanos

concebeu-a, originalmente, como uma etapa preliminar à adoção ulterior de um pacto ou

tratado internacional sobre o tema.

97

Apesar dessa concepção formalista, autores como Comparato (2013, p. 239)

defendem:

a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições,

leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de

respeito à dignidade humana, exercida contra todos os poderes estabelecidos,

oficiais ou não.

Como já destacado, a doutrina jurídica alemã distingue os Direitos Humanos dos

Direitos Fundamentais, na medida em que estes são justamente os direitos humanos

consagrados pelo Estado, mediante norma escrita, fazendo com que esse entendimento seja

uma tendência a ser admitida no âmbito do direito internacional.

Os Direitos definidos na Declaração de 1948 correspondem aos costumes e

princípios jurídicos internacionalmente reconhecidos como normas imperativas de direito

internacional, estabelecendo-se assim um núcleo inderrogável de direitos em âmbito

global, ao passo que a própria Corte Internacional de Justiça adota esse entendimento,

tanto nos sistemas regionais europeu quanto no interamericano.

Ao longo dos anos passariam a coexistir inúmeros instrumentos internacionais de

proteção, de origens, natureza e efeitos jurídicos distintos ou variáveis, baseados em

tratados e resoluções, de diferentes âmbitos de aplicação nos planos global e regional,

distintos também quanto aos seus destinatários ou beneficiários, tratados ou instrumentos

gerais e setoriais, e quanto ao exercício de funções e mecanismos de controle e supervisão,

essencialmente, os métodos de petições ou denúncias, de relatórios, e de investigações.

Formou-se, assim, gradualmente, um complexo, corpus juris. Segundo Cançado

Trindade (2000, p. 24), “no entanto, a unidade conceitual dos direitos humanos veio a

transcender tais diferenças, inclusive quanto às distintas formulações de direitos nos

diversos instrumentos”.

Subjacentes a essa concepção de unidade conceitual, encontravam-se as premissas

básicas de que os direitos e garantias proclamados são inerentes ao ser humano, anteriores,

desta forma, a quaisquer formas de organização política ou social, e de que a proteção de

tais direitos não se esgota na ação do Estado, atuando sempre que as vias internas ou

nacionais se mostram incapazes de assegurar a salvaguarda desses direitos, acionados

como instrumentos de proteção.

No sistema Europeu, a Corte Europeia de Direitos Humanos, como ensina Piovesan

(2012, p. 185),

98

tem proferido relevantes precedentes no sentido de salvaguardar a esfera da

liberdade, da autonomia, da privacidade e da intimidade, adicionando o direito

de desenvolver a personalidade, em face de medidas repressivas adotadas no

combate ao terrorismo.

Com isto verifica-se, pautado no princípio da proporcionalidade, qual o alcance da

interferência estatal nas relações privadas, no intuito de conter os abusos e os excessos do

Estado, além de investigar até que ponto as medidas restritivas de direitos são necessárias

em uma sociedade democrática.

A multiplicidade dos instrumentos, adotados como resposta às necessidades de

proteção, surgiu segundo Cançado Trindade (1979, p. 1-54),

Reflexo de um processo que se desenvolveu ao longo da história, de

generalização da proteção internacional dos direitos da pessoa humana,

superando objeções clássicas como a da pretensa competência nacional

exclusiva ou domínio reservado dos Estados e a concomitante asserção da

capacidade de agir dos órgãos de supervisão internacionais.

A efetividade dos direitos proclamados na Declaração de 1948 é fruto da

construção jurisprudencial de distintos órgãos de supervisão com efeito convergente

enfatizando o caráter objetivo das obrigações e a necessidade de realização do objeto e

propósito dos tratados ou convenções.

Como se pode destacar no sistema interamericano, a Corte Interamericana, com

firmeza e solidez, ensina Piovesan (2012, p. 185), “tem condenado o arbítrio estatal

causador de violações graves e sistemáticas de direitos humanos, a envolver casos de

tortura, execução sumária, assassinatos e desaparecimento forçado”.

A jurisprudência da Corte tem assumido uma força catalisadora capaz de

desestabilizar regimes ditatoriais, sob o argumento de que a instrumentalização do poder

estatal, que deveria garantir direitos, converte-se em opressor e violador destes,

configurando-se assim um “terrorismo do Estado”.

A complementaridade desses sistemas como instrumentos globais e regionais de

proteção, reforçando-se mutuamente, acarreta, por conseguinte, a extensão ou ampliação

da proteção devida às supostas vítimas, conforme elucida Cançado Trindade (2000, p. 26),

“no plano horizontal, qualquer pretenso antagonismo entre soluções nos planos global e

regional, fazendo-se uso do Direito Internacional ou do direito interno, por se mostrarem

estes em constante interação no presente domínio de proteção”.

99

O reconhecimento à igualdade essencial a todos os seres humanos,

independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem

nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, é fruto de um

processo ético que tem seu início na Declaração de Independência dos Estados Unidos, na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na Revolução Francesa e nos

movimentos constitucionais, culminando com a Declaração Universal de 1948.

Esse reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível, na visão de

Comparato (2013, p. 240), quando “ao término da mais desumanizadora guerra de toda a

História, percebeu-se que a ideia de superioridade de uma raça, e uma classe social, de

uma cultura ou de uma religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria

sobrevivência da humanidade”.

O princípio da igualdade essencial do ser humano, ainda que se observe as

múltiplas diferenças de ordem biológica e cultural que os distinguem entre si, afirma ainda

a isonomia ou igualdade perante a lei, decorrente do princípio mencionado, considerando-

se como pecado capital tratar o outro como um ser inferior, sob pretexto da diferença de

etnia, gênero, costumes ou patrimônio.

Os tratados e os instrumentos internacionais de direitos humanos mostraram-se

dotados, no plano substantivo, de fundamentos e princípios básicos próprios, assim como

de um conjunto de normas a requerer uma interpretação e aplicação de modo a consagrar

a realização do objeto e propósitos dos instrumentos de proteção.

Algumas diferenças humanas não são deficiências e como tal devem ser protegidas

e estimuladas, como ensina Arendt (1979, p. 298 e s.),

ao refletir sobre a trágica experiência do totalitarismo no século XX, que a

privação de todas as qualidades concretas do ser humano, isto é, de tudo aquilo

que forma a sua identidade nacional e cultural, o torna uma frágil e ridícula

abstração. A dignidade da pessoa humana não pode ser reduzida à condição de

puro conceito.

A proteção universal de direitos decorre da experiência negativa da hecatombe do

holocausto, que trouxe à tona a fragilidade de se pautar todo um sistema jurídico apenas

em normas postas, sem considerar as diferenças que formam a identidade do ser humano,

seja em razão de sua identidade nacional ou cultural. A formação da dignidade humana

não pode ser reduzida a uma mera conceituação de valores, que podem variar em razão de

critérios históricos, culturais e regionais.

100

No plano operacional, comenta Cançado Trindade (1997, p. 7-447),

passaram a contar com uma série de mecanismos próprios de supervisão. Este

corpus juris em expansão veio enfim a configurar-se, ao final de cinco décadas,

como uma nova disciplina da ciência jurídica contemporânea, dotada de

autonomia, o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Esse processo de generalização e internacionalização dos direitos humanos teve

participação efetiva do Brasil, tanto no plano global, nas Nações Unidas, quanto no

regional, sistema interamericano, começando pela adoção da Declaração Universal de

1948, e posteriormente, da adoção dos dois tratados subsequentes, em 1966.

Na Declaração de 1948, outro princípio axiológico fundamental, qual seja, o

princípio da liberdade compreende tanto a dimensão política quanto a individual,

reconhecendo-se com isto que ambas as dimensões da liberdade são complementares e

interdependentes, ao passo que a liberdade política, sem as liberdades individuais, não

passa de engodo demagógico de Estados autoritários ou totalitários.

O terceiro princípio axiológico fundamental, baseado na solidariedade está

amparado nos direitos econômicos e sociais, como exigências elementares de proteção às

classes ou grupos sociais mais fracos ou necessitados, estabelecendo-se proteção à

seguridade social, aos direitos relacionados ao trabalho (equiparação salarial, jornada de

trabalho, repouso, lazer e férias remuneradas) e à proteção contra o desemprego, além da

livre sindicalização dos trabalhadores e do direito à educação.

Após descrever os três princípios axiológicos, amparada nos valores fundamentais

da liberdade, igualdade e fraternidade, proclamando que todos os seres humanos têm

direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, a Declaração afirma a proibição absoluta

da escravidão e do tráfico de escravos, tomando como premissa o princípio da dignidade

da pessoa humana.

O reconhecimento do homem como pessoa, suscetível de direitos e que necessita

de proteção especial, descreve Comparato (2013, p. 243),

teria sido mais lógico fazer preceder esse dispositivo da declaração de princípio

consignada no artigo VI: “todo homem tem direito de ser, em todos os lugares,

reconhecido como pessoa perante a lei”. Este o princípio supremo em matéria de

direitos humanos. Na verdade, os escravos não são os únicos seres humanos aos

quais se denegam todos os direitos: o mesmo ocorreu com os apátridas durante a

2ª Guerra Mundial.

101

Os direitos inerentes ao homem são fruto de uma longa série de conflitos passando

por grandes etapas históricas de tomada de consciência do conceito de pessoa e da sua

importância como fundamento de todo o universo ético, dado a esse caráter essencial do

princípio da preeminência do ser humano no mundo. A partir daí é possível julgar as novas

questões ético-jurídicas, suscitadas pelo incessante progresso técnico.

Nos prolongados trabalhos preparatórios referentes aos dois Pactos de proteção dos

Direitos Humanos, bem como o Protocolo Facultativo das Nações Unidas, com trabalho

minucioso quanto às medidas de implementação, conforme comenta Cançado Trindade

(2000, p. 31),

quatro fases naqueles trabalhos, que se estenderam de 1947 a 1966: na primeira,

de 1947 a 1950, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas trabalhou

praticamente só, em assistência direta do Conselho Econômico e Social

(ECOSOC) ou da Assembleia Geral das Nações Unidas. De 1950 a 1954, os três

órgãos atuaram conjuntamente, dividindo-se o período em 1951 com a

importante decisão de ter dois Pactos ao invés de um. O argumento que serviu de

base a esta decisão [...] era o de que, enquanto os direitos civis e políticos eram

suscetíveis de aplicação “imediata”, requerendo obrigações de abstenção por

parte do Estado, os direitos econômicos, sociais e culturais eram passíveis

apenas de aplicação progressiva, requerendo obrigações positivas (atuação) do

Estado. [...] o quarto e último período estendeu-se de 1954, data da conclusão

pela Comissão de Direitos Humanos do projeto dos dois Pactos, até 1966, data

de sua adoção (em que os trabalhos foram desenvolvidos pela própria

Assembleia Geral e sua III Comissão).

Nesse período, os debates desenvolvidos pela Comissão de Direitos Humanos

tinham como objetivo criar um único Pacto que contemplasse os direitos civis, políticos,

econômicos, sociais e culturais, podendo ser implementados mediante sistema de relatórios

e petições. Contudo, em decorrência de diferenças quanto ao método de implementação,

inviabilizaram o projeto, gerando dois Pactos diferentes.

Com base nos dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de

1948, que além de consagrar as liberdades clássicas ainda reconhecem os direitos políticos,

as Nações Unidas adotaram, ulteriormente, três convenções internacionais.

A primeira, em 1952, destinada a regular os direitos políticos das mulheres,

segundo o princípio básico da igualdade entre os sexos. A segunda convenção, em 1962,

sobre o consentimento para o casamento, a idade mínima e o seu competente registro, e a

terceira convenção, em 1965, que trata sobre a eliminação de todas as formas de

discriminação, ao passo que tais direitos e liberdades tradicionais estenderam o sistema de

proteção universal da pessoa humana a novos setores.

102

A Segunda Guerra Mundial propiciou uma multidão de refugiados na Europa,

acostado no Estado nazista que aplicou, sistematicamente, a política de supressão da

nacionalidade alemã, a grupos minoritários, sobretudo às pessoas de origem judaica. Nesse

ínterim, observa Arendt (1979, p. 290 e s.):

Chamou a atenção para a novidade perversa desse abuso, mostrando como a

privação da nacionalidade fazia das vítimas pessoas excluídas de toda proteção

jurídica no mundo. Ao contrário do que se supunha no século XVIII, os direitos

humanos não são protegidos independentemente da nacionalidade ou cidadania.

O asilado político deixa um quadro de proteção nacional para encontrar outro.

Mas aquele que foi despojado da sua nacionalidade, sem ser opositor político,

pode não encontrar nenhum Estado disposto a recebê-lo: ele simplesmente deixa

de ser considerado uma pessoa humana. Numa fórmula tornada célebre, concluiu

que a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.

Mesmo vivenciando conflitos tão degradantes à humanidade, o vício do poder

concatena um movimento cíclico, vicioso e repetitivo. Mais uma vez na história

verificamos a indiferença, o ódio, e a ausência de humanidade, em especial aos conflitos

que acometem a região da Síria, desde 2011, que já fizeram milhares de mortos e outros

milhões de refugiados, sem acesso a alimentos e remédios, entre elas, mulheres e crianças.

Percebe-se que a personificação do Estado todo-poderoso, na concepção de Sidney

Guerra (2014, p. 17),

inspirada na filosofia de Hegel, teve uma influência nefasta na evolução do

direito internacional em fins do século XIX e início do século XX. Essa

abordagem resistiu com todas as forças ao ideal de emancipação do ser humano

da tutela absoluta do Estado e ao reconhecimento do indivíduo como sujeito de

direito internacional.

Essa ideia de soberania estatal levou à irresponsabilidade e à pretensa onipotência

do Estado, sem impedir que as referidas atrocidades fossem e ainda continuem sendo

cometidas contra os seres humanos, mostrando-se inteiramente descabida e contrária aos

anseios das Nações na proteção da dignidade da pessoa humana.

Foi no pós-guerra que os direitos da pessoa humana ganharam extrema relevância,

consagrando-se internacionalmente, como resposta às atrocidades cometidas não apenas

contra judeus, mas à humanidade, pela qual a doutrina racista sobre a “pureza ariana”

serviu de justificativa para perseguições, cárceres e execuções em massa, resultando no

extermínio de milhões de pessoas.

Quanto à dinâmica do totalitarismo, que considera os seres humanos descartáveis,

Lafer (1988, p. 35) elucida:

103

O ‘tudo é possível parte do suposto de que os seres humanos são descartáveis.

Essa premissa contesta a afirmação kantiana de que o homem, e só ele, não pode

ser empregado como meio para realização de um fim porque é um fim em si

mesmo, uma vez que apesar do caráter profano de cada indivíduo, o indivíduo é

sagrado, e em sua pessoa palpita a humanidade.

A Segunda Guerra deixou um rastro incomensurável de destruição e afronta aos

valores mais essenciais do ser humano, um verdadeiro aviltamento à dignidade humana

que chegou a níveis jamais imaginados. A partir da segunda metade do século XX, a

dignidade humana ganha âmbito internacional, consolidando a ideia de soberania nacional

e reconhecendo que os indivíduos possuem direitos inerentes à sua existência e que devem

ser protegidos.

Sobre este período, ensina Piovesan (2012, p. 131-132):

O legado do nazismo foi condicionado à titularidade de direitos, ou seja, à

condição de sujeito de direitos, à pertinência à determinada raça – a raça pura

ariana. O século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror

absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial.

Tendo em vista tanto os precedentes da Segunda Guerra quanto os atuais, a

Declaração busca reconhecer o direito de asilo a todas as vítimas de perseguição,

assegurando o direito de todos de ter uma nacionalidade, e a afirmação da democracia

como único regime compatível com o pleno respeito aos direitos humanos. Não é apenas

uma opção política, mas talvez, a única solução legítima para a organização do Estado.

No mesmo sentido, acerca da internacionalização dos Direitos Humanos, afirma

Ramos (2013, p. 18),

que a internacionalização do tema dos direitos humanos é fruto do

desenvolvimento do Direito Internacional do Século XX, iniciado na Liga das

Nações com a defesa das minorias e que foi acelerado pela Guerra Fria,

consagrando-se a afirmação definitiva dos direitos humanos como tema global.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consolidou a ideia de uma

ética universal, combinando os valores da liberdade com a igualdade, enumerando tanto

direitos civis e políticos (art. 3° a 21) como direitos sociais, econômicos e culturais (arts.

22 a 28), além de proclamar a indivisibilidade dos direitos humanos, tornando-os globais e

a dignidade humana refletida como fundamento de muitas Constituições, desde então.

O núcleo inderrogável ligado à Declaração de 1948 está nos chamados direitos da

humanidade, que têm por objetivo constituir uma ordem internacional que assegure a

104

dignidade humana, como busca constante da felicidade, assim como a Declaração de

Independência dos Estados Unidos considerou-a inato em todo ser humano, inaugurando

um novo momento no direito a ter direitos.

2.5 Do necessário diálogo entre os direitos fundamentais e os direitos humanos: do

sistema jurídico multinível

Ao analisar a evolução dos Direitos Humanos Fundamentais vê-se que tais direitos

não podem ser fixados, justamente, por serem dinâmicos, ao ponto de criar novas

concepções acerca dos conceitos de Estado, soberania e governabilidade, na medida em

que são criados órgãos internacionais de proteção dos Direitos Humanos que abrem a

possibilidade da inserção desses novos conceitos, como é o caso do sistema jurídico

multinível45

.

A integração ocorrida na Europa no final da década de 1980 propiciou uma ruptura

de paradigma e justificou esse processo no qual os protagonistas foram os governos

centrais dos Estados-membros, como Alemanha ou França. No magistério de Marks (1996,

p. 341-378),

the process of European integration seemed to certain areas in which the same

issue was subject at the same time, the regulation adopted by institutions of the

sub-national level (such as a province or municipality), national (as a ministry)

and even supranational (eg , European Commission).

Continuaram os Estados-membros a figurar como atores de governabilidade desse

“novo” sistema, no qual o europeu passou a ser descrito como um modelo “multinível”,

composto não somente por governos nacionais, mas também por instituições que existiam

num plano mais além do tradicional Estado-nação. Rompeu-se, assim, a ideia de uma

soberania intocável e estatizada, passando a compor nesse cenário vários outros atores no

âmbito nacional, subnacional e supranacional.

Esse modelo de “governação multinível” foi se popularizando ao longo dos anos e

é amplamente utilizado por estudiosos do fenômeno da integração europeia e por

estudantes de relações internacionais, mas pode apresentar um grave problema. Segundo

45 A ideia de “governação multinível” tem origem nos debates sobre a integração europeia nos primeiros anos da década

de noventa. Em geral, a ideia surgiu como uma reação ao paradigma dominante até esse momento, explicando a

integração europeia como um processo no qual os protagonistas foram os governos centrais dos Estados-membros (como

a Alemanha ou a França). Contrariando essa visão, o processo de integração europeia parecia criar certos espaços nos

quais o mesmo assunto foi sujeito, ao mesmo tempo, à regulação adotada por instituições do âmbito subnacional (como

uma província ou um município), nacional (como um ministério) e até mesmo supranacional (por exemplo, Comissão

Europeia).

105

Sartori (1970, p. 53), “as other popular concepts runs the risk of becoming an umbrella

under which many disparate phenomena are subsumed – to the point that it may lose all

denotative precision and become 'overloaded’”.

O que se buscava com esse modelo era uma coesão entre as diferentes regiões do

continente europeu, legitimando as instituições subnacionais dos Estados-membros, como

as províncias, possibilitando assim o diálogo com as instituições supranacionais, o que

viabiliza a interlocução entre os Direitos Fundamentais de âmbito doméstico e os Direitos

Humanos de âmbito supranacional.

No modelo escalonado de normas e de proteção dos Direitos Humanos, esta

proteção ocorre em pelo menos quatro âmbitos diferentes, conforme observa Torres Perez

(2009, p. 27-37):

Na Europa, os direitos humanos são protegidos pelo menos em quatro âmbitos

diferentes: Âmbito subnacional: Em alguns países europeus, as unidades

subnacionais podem chegar a consagrar em suas ordens jurídicas certos direitos

humanos, que podem ser protegidos nesse âmbito. No entanto, apesar de suas

possíveis implicações internacionais, é comum encontrar que os direitos

reconhecidos na esfera sub-estatal tenham uma relação hierárquica com a ordem

constitucional nacional. Assim, o debate sobre a proteção multinível dos direitos

humanos neste caso é confundido com o estudo do direito constitucional

nacional do respectivo Estado. Este capítulo não aprofundará tal análise, e

tomará como ponto de partida o âmbito nacional. Âmbito nacional: As

constituições nacionais de cada Estado-membro incluem nos seus artigos os

direitos que o respectivo Estado-nação queira reconhecer aos seus cidadãos e

residentes. Âmbito supranacional: Os direitos humanos também são protegidos

pelo direito de União; inicialmente, mediante a expansão jurisprudencial do

Tribunal de Justiça da União Europeia e atualmente mediante a Carta dos

Direitos Fundamentais. Neste âmbito, os instrumentos estão principalmente

destinados a proteger os direitos humanos de violações por parte da União

Europeia e seus órgãos, bem como os Estados-membros, quando os mesmos

apliquem o direito da União. Nível internacional: Além disso, os direitos

humanos são protegidos pelo Sistema Europeu de Direitos Humanos, criado pela

Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950 no marco do Conselho da

Europa, cujo tribunal competente é o Tribunal Europeu de Direitos Humanos,

que é um tribunal internacional com funções similares (na Europa) às realizadas

pelo Tribunal Interamericano de Direitos Humanos.

Essa nova tendência de sistema multinível de proteção dos Direitos Humanos na

Europa provê ao mesmo tempo duas perspectivas: uma que possibilita maior e mais

completa proteção ao oferecer diferentes níveis, além das garantias constitucionais

estabelecidas em âmbito doméstico, que para a efetivação desses direitos buscam a

aplicação subsidiária do sistema internacional. Por outro lado, ao se estabelecer uma nova

ordem jurídica comunitária, com supremacia nos sistemas jurídicos nacionais dos Estados-

106

membros passam a descrever uma nova modalidade de constitucionalismo denominada

multinível.

No campo das relações internacionais, segundo Lafer (2015, p. 4-5),

A Declaração Universal, na esteira da Carta da ONU, alterou a clássica lógica da

Paz de Westfália (1648). Esta lógica de estados soberanos e independentes não

atribuía peso a povos e indivíduos. Baseava-se nas relações de coexistência e

conflito entre entes soberanos num sistema internacional de natureza interestatal.

Este sistema criou as normas de mútua abstenção do Direito Internacional

Público tradicional. Estas, lastreadas na vontade soberana dos Estados, foram

concebidas como normas da convivência possível entre soberanias que se

guiavam pelas suas “razões de estado”. Por isso não contemplavam qualquer

ingerência nas relações entre o Estado e as pessoas que estavam sob sua

jurisdição.

Dentre os sistemas de proteção regional dos Direitos Humanos, o mais antigo e

sedimentado é o europeu, seguido diretamente pelo sistema interamericano, razão pela

qual se questiona se há possibilidade de também haver um sistema multinível de proteção

destes direitos na América Latina.

De imediato é possível dizer que há proteção no âmbito doméstico por meio das

Constituições Nacionais, e proteção internacional por meio do Pacto de San Jose da Costa

Rica, de 1966, além do sistema Interamericano. Contudo, não há até o momento nada no

âmbito supranacional, conforme demonstram as experiências do Mercosul e da

Comunidade Andina.

De fato, desde 1992, surgiu a necessidade de uma Carta de Direitos Humanos do

Mercosul, como pontua Ureña (2014, p.19-20):

Com a Declaração de Las Leñas, a mesma não chegou a se concretizar. Existem

numerosos instrumentos de cooperação intergovernamental para a promoção de

direitos humanos, bem como instrumentos que protegem direitos específicos.

Em particular, foi assinada a Decisão do Conselho do Mercado Comum (CMC)

Nº40/04, criando a Reunião de Altas Autoridades na área de Direitos Humanos

(RAADH), um órgão subsidiário da CMC, que atua em coordenação com o

Fórum de Consulta e Concertação Política (FCCP), que serviu como um fórum

para desenvolvimentos interessantes relacionados aos direitos humanos no

contexto do Mercosul.

Esse fórum vislumbrou a necessidade da criação de mecanismos

intergovernamentais de reação a violações graves dos Direitos Humanos em qualquer um

dos Estados-membros, com estrutura similar às cláusulas democráticas contidas nos

Protocolos de Ushuaia, em 1998, e Montevidéu, em 2011.

107

Contudo, estes instrumentos de proteção dos Direitos Humanos são em sua

essência intergovernamentais, e não estabelecem um verdadeiro regime comunitário de

Direitos Humanos com capacidade de atuar no Mercosul46

, com aplicação imediata e

supremacia sobre a ordem jurídica nacional, que possa vincular tanto as normas nacionais

quanto as internacionais, dificultando assim um diálogo capaz de sobrepor as diferenças

locais, e estabelecer um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais no

sistema interamericano.

Semelhante à ineficácia dos instrumentos de proteção do Mercosul, foi criada a

Carta Andina para promover e proteger os Direitos Humanos, em 2002, contudo, sem

qualquer caráter vinculativo, constituindo-se em um instrumento de soft law, com mera

capacidade de promover os referidos direitos, sem vincular a Comunidade nem mesmo

para criar um regime supranacional.

De fato, a Carta originalmente continha linguagem que visava criar mecanismos

especiais de proteção de caráter comunitário e devia ser coordenada, não só com os

Estados-membros, mas também com a Comunidade como uma organização. Assim

esclarece Hummer (2009, p. 709):

Sin embargo, este enfoque se ha eliminado posteriormente en la última ronda de

negociaciones. Esta decisión hizo, en parte, el escepticismo de la sociedad civil

(representada por varias ONG de derechos humanos), para quienes la creación

de un sistema supranacional de los derechos humanos es contraproducente, ya

que debilitaría el trabajo del sistema de derechos humanos interamericano.

A criação de mais uma ferramenta de proteção dos Direitos Humanos capaz de

sobrepujar a soberania estatal e criar uma jurisprudência quanto às punições a violações de

tais direitos, como o Tribunal Andino, não prosperou. As reservas dos próprios Estados-

membros, além da crença da impossibilidade de aplicar este instrumento supranacional

condenaram este instrumento desde o seu alvorecer.

Como pode ser constatado, não existe um âmbito supranacional de proteção dos

direitos humanos na América Latina. Hummer (2009, p. 65) explica que,

46 Algo semelhante ocorre com a Comunidade Andina. Por um lado, a jurisprudência andina não contribuiu para a

proteção dos direitos humanos no âmbito comunitário. Até o momento, existe um único caso no qual o Tribunal Andino

foi convocado para proteger os direitos humanos de abusos da Comunidade como organização. Neste caso, uma

funcionária do Parlamento Andino processou tal órgão por uma disputa laboral, e invocou a Declaração Universal de

Direitos Humanos, bem como algumas Convenções da OIT. O Tribunal Andino ignorou seus argumentos, e deixou

passar a oportunidade para ampliar a proteção dos direitos humanos por via comunitária: foi declarado incompetente com

base no Estatuto Geral do Parlamento Andino, cujo Artigo 154 prevê que os conflitos laborais serão decididos no direito

do Estado Sede (neste caso, Colômbia). Assim, o conflito devia ser resolvido pela jurisdição interna colombiana

(UREÑA, 2014, p. 20-21).

108

algunos comentaristas han sugerido que este es un problema de progreso y

desarrollo: el proceso de integración de América Latina es joven, argumentar

que si se les da el tiempo suficiente para una protección de la comunidad. Esta

idea es errónea porque se supone que sólo hay una forma de desarrollo legal,

inspirado en el modelo europeo, en el que habría un "niño" en la protección de

los derechos humanos (la única protección nacional), "adolescencia" (Protección

Internacional) y una edad adulta (protección supranacional), que a su vez

conduciría a un punto máximo progreso: el constitucionalismo supranacional.

A partir das concepções europeias da criação de um sistema multinível de proteção

dos Direitos Humanos deve-se atentar para as diferenças não apenas sociais, mas

especialmente culturais que levam a níveis diferentes de maturação, e que culminam com o

declínio do modelo tradicional de Estado-nação para a criação de uma nova forma de

constitucionalismo capaz de atender às necessidades não apenas domésticas, mas

internacionais de valorização da pessoa humana.

A interação entre a proposta nacional e internacional dos Direitos Humanos pode

ser pensada a partir de duas perspectivas, conforme descreve Ureña (2014, p.23-24),

Em primeiro lugar, a partir de um ponto de vista nacional, em que se observa a

interação da legislação nacional em vários Estados da região. Em segundo lugar,

uma perspectiva global, em que a interação é observada fora das leis nacionais

dos Estados da região, e do ponto de vista de um estranho é adotado para eles o

que poderia ser chamado de interesse “comunidade internacional”, não o estado

de direito na Bolívia ou Paraguai, por exemplo, mas no estado de direito

internacional.

A distinção entre nacional e internacional deixa de ser meramente didática, para de

um lado, traçar uma difícil linha entre o que é doméstico e o que é internacional,

especialmente no que diz respeito à proteção dos direitos humanos, além de estabelecer um

diálogo entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais capaz de abarcar não apenas as

concepções domésticas, mas também as internacionais, visando proteger essas garantias

inderrogáveis da pessoa humana.

Além disso, há um processo constante de feedback e de interdependência entre os

dois âmbitos, conforme observa Slaughter (2006, p. 36),

Making untenable distinction: it is reasonable to believe that the rule of

international law is built by strengthening the rule of law in the region, or vice

versa, that the rule of law of a state in the region is strengthened through

strengthening the rule of international law.

109

Dentre os desafios propostos pelo diálogo e integração dos sistemas nacional e

internacional está estabelecer as ferramentas de recepção das normas internacionais de

proteção dos Direitos Humanos, seja pelo método monista e dualista, ou pela forma

piramidal, proposta por Kelsen, das fontes do sistema jurídico, que serão analisadas no

decorrer desta pesquisa.

A criação de um sistema multinível de proteção dos Direitos Humanos, com a

inserção de mecanismos de proteção nacional, subnacional e supranacional, mostra-se útil

em especial quando não há a efetividade da proteção destes direitos em âmbito doméstico,

ou quando a violação é perpetrada pelo próprio Estado, onde tal sistema visa além de

complementar as disposições domésticas de proteção, dar efetividade quando não há a

respectiva aplicação destes direitos.

Por um lado, no contexto internacional, a exemplo do Sistema Interamericano de

Direitos Humanos, comenta Simmons (2009, p. 77): “It becomes a credible threat to get

reluctant national authorities to protect human rights: this possibility of international

litigation is a clear incentive in the human rights protection process”.

Mesmo sem se destacar como instrumentos supranacionais de proteção dos Direitos

Humanos, o Estado-membro ao ratificar um Tratado ou Convenção os incorpora em seu

ordenamento interno, fortalece os tribunais nacionais que procuram exercer jurisdição na

proteção dos Direitos Humanos, ao criar normas que possam ser invocadas legitimamente

como fonte material para apoiar suas decisões.

Paralelamente a esta integração de normas nacionais e internacionais ocorrem os

movimentos sociais, que utilizam estas normas como instrumentos para promover suas

reivindicações, estabelecendo padrões capazes de auxiliar na luta por Direitos Humanos

Fundamentais como o feminismo, as minorias sexuais, os movimentos indígenas e

afrodescendentes.

Os movimentos sociais têm um papel até agora apenas parcialmente explorado na

América Latina como impulsores de decisões do sistema interamericano. Sobre o tema,

Merry (2006, p. 83-84) leciona:

but also as interpreters of their faults and impellers of compliance processes in

the local context. In this sense, social movements become translators: take

international legal standards and translate them to their local members, and take

local issues and translate them so that they can be expressed in terms of

international legal standards. Deepen these relations is an outstanding and

important task in order to get a better understanding of the processes of

implementation of decisions of the Court and the Inter-American Commission.

110

Os movimentos sociais tornam-se, desta forma, normas jurídicas internacionais que

em âmbito doméstico visam compreender e implementar as decisões do Tribunal e da

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e buscam dar efetividade aos Direitos

Humanos Fundamentais.

Além dos desafios da recepção dessas normas internacionais no ordenamento

interno, assim como sua integração, destaca-se a efetividade dessas normas, que ora

dependem de políticas públicas para sua implementação, ora dependem de um foro

qualificado para que essas normas internacionais possam ser indexadas no ordenamento

doméstico.

Razão pela qual debate-se a necessidade, assim como ocorreu na Europa com a

União Europeia, da criação de uma Constituição Internacional ou Interamericana47

,

inspirada pela ideia de uma Carta que possa limitar o poder das instituições globais, dos

Estados e dos indivíduos através da implantação de valores48

como normas jurídicas

internacionais que sirvam como defesa contra os abusos de poder, seja em âmbito

doméstico ou internacional, de forma análoga à proteção que uma Constituição Nacional

emprega no exercício da autoridade no âmbito doméstico.

A implantação regional desta ideia implicaria ver no Pacto de San José uma Carta

Interamericana de Direitos, como uma espécie de documento constitucional básico. Ureña

(2014, p. 34-35) entende que:

Neste contexto, os tribunais nacionais agem como agentes da comunidade

internacional para aplicar e implementar padrões legais internacionais. A partir

desta perspectiva, o ponto de partida não é como o direito internacional dos

direitos humanos, por exemplo, o direito do Chile, mas a maneira em que os

tribunais chilenos executam a ordem jurídica internacional denominado

“Sistema de Direitos Humanos Interamericana” está integrada.

Adotando a perspectiva de uma Carta de Direitos Interamericana, seria possível

utilizar dois instrumentos de proteção dos Direitos Humanos Fundamentais: um de âmbito

internacional, representado pela Comissão e o Tribunal Interamericano de Direitos

47 Uma primeira maneira de compreender a interação entre direito nacional e internacional é apelar à ideia de uma

Constituição Interamericana, inspirada pela ideia de uma "constituição global." A partir desta perspectiva, a ideia é

limitar o poder de instituições globais, Estados e indivíduos através da adoção de valores como normas jurídicas

internacionais que sirvam como uma defesa contra os abusos de poder, onde quer que estes ocorram, de forma análoga a

como uma Constituição nacional limita o exercício da autoridade no cenário nacional Ureña (2014, p.36-37). 48 Seguindo essa linha de raciocínio, destacam-se os ensinamentos de Fassbender (2009, p. 87), Wet (2006, p. 35) e

Petersmann (1998, p. 193), dentre outros, o que sugere que há um "núcleo duro" da ordem jurídica internacional, que

serve como último limite ao poder (da mesma forma que funcionam as cartas de direitos nos sistemas nacionais latino-

americanos e europeus). O conteúdo deste núcleo varia de acordo com o autor e inclui, entre outros, o direito

internacional dos direitos humanos, e a Carta das Nações Unidas (UREÑA, 2014, p. 33).

111

Humanos, e um de âmbito doméstico, através dos tribunais nacionais dos diferentes

Estados, prevalecendo, desta forma, o direito internacional sobre o nacional.

O exemplo mais claro dessa visão de constitucionalismo interamericano é a

jurisprudência da Corte sobre as anistias. Assim pontua Cassesse (2002, p. 16):

como es sabido, durante algunas medidas de justicia de transición adoptadas en

el Perú, cogitated Corte que ciertas normas de derecho interno peruano han de

considerarse "sin efectos jurídicos". Esta decisión, sin precedentes en el derecho

internacional contemporáneo, es característico de la vista del constitucionalismo

Interamericana: desde esta perspectiva, el sistema interamericano es un sistema

que tiene la Corte como cuerpo de cierre de cuyas decisiones son parte ipso iure

de la legislación nacional de los Estados miembros . Además, los tribunales

nacionales están llamados a realizar el control descentralizado de la

convencionalidad de las normas jurídicas nacionales, que debe ser llevada a cabo

utilizando como norma de juicio no sólo la Convención, sino también para el

propio caso.

Mas ao mesmo tempo em que um movimento constitucional interamericano se

desenvolve no sentido de criar um núcleo inderrogável de Direitos Humanos

Fundamentais, capaz de abarcar todas as aspirações estatais, das organizações não

governamentais e dos indivíduos, seria também um avanço significativo na proteção

desses direitos, enfrentaria alguns desafios quanto à sua efetividade, (pois dependeria da

criação de um órgão supranacional para decidir as questões envolvendo violações a tais

direitos com superioridade hierárquica e jurisdição para revisar as decisões dos tribunais

nacionais).

Outro desafio no que tange à efetivação de uma Carta Interamericana de Direitos

Humanos está nas instituições internacionais como potenciais violadoras destes direitos em

detrimento das normas de constituições nacionais, e que em razão de um instrumento

internacional retirariam a competência dos tribunais nacionais e comprometeriam a

efetividade da proteção dos Direitos Humanos.

Não bastassem essas argumentações o Sistema Interamericano ainda tem mais uma

peculiaridade, o pluralismo, que interfere não apenas nas questões sociais, culturais e

econômicas, como também influencia diretamente no sistema jurídico dos Estados, onde

cada nação adota um modelo distinto de jurisdição. Consequentemente estabelecer um

único sistema, pautado em uma Carta Interamericana de Direitos, também enfrentaria esse

desafio.

Dessa forma, uma das possíveis soluções apresentadas, haja vista não haver um

órgão supranacional para decidir questões envolvendo violações de Direitos Humanos, é o

112

diálogo entre os tribunais nacionais e internacionais, a fim de permitir uma interação entre

estes, uma “via de mão dupla”, e não apenas os tribunais nacionais se inspirando nas

decisões dos tribunais internacionais.

Assim, a legitimidade de proteção dos Direitos Humanos como um todo seria

aumentada, porque a participação dos interessados seria garantida. Na visão de Torres

Perez (2009, p. 114-116), “dialogue would allow the different courts involved in the adopt

better decisions dialogue, contribute to the creation of a true identity of the inter-American

community, beyond national borders”.

Esse diálogo permitiria que os diferentes tribunais envolvidos pudessem adotar

melhores decisões, contribuindo para a criação de uma verdadeira identidade da

comunidade interamericana, que superasse as fronteiras nacionais, e que pudesse ao

mesmo tempo servir-se dessas decisões para sua fundamentação em âmbito doméstico e

para decisões de tribunais internacionais.

Contudo, essa proposta também apresenta desafios sobre como estabelecer os

critérios, dentro da perspectiva pluralista, para incluir algum tipo de exigência para

participar da conversa, e como produzir resultados a partir da deliberação entre estes

tribunais, capazes de efetivar os Direitos Humanos Fundamentais.

Acerca disto, apresenta-se como argumento a validar este diálogo capaz de reunir

os Direitos Fundamentais descritos nas Cartas nacionais49

com os Direitos Humanos

decorrentes dos tratados internacionais, através da criação de um núcleo inderrogável de

Direitos Humanos Fundamentais, que por meio deste diálogo possa agir de forma

complementar, pela qual os primeiros dependem dos segundos, e vice-versa.

2.6 Das similitudes e diferenças entre revogação, ab-rogação e derrogação

A presente pesquisa tem como escopo analisar a inderrogabilidade de direitos na

ordem constitucional, o que nos remete à necessidade de analisar alguns conceitos

indispensáveis para a compreensão do tema, quais sejam, revogação, ab-rogação e

derrogação.

49 Na Colômbia, Rodríguez Garavito (2009, p. 134) analisou as redes epistêmicas que compõem o que ele chama de

neoconstitucionalismo na América Latina. Há alguns estudos empíricos sobre a interação dos juízes constitucionais

colombianos com os seus homólogos estrangeiros.

113

A revogação50

decorre do latim revocatio que é a ação ou efeito de revogar,

fazendo referência a deixar sem efeito uma resolução ou um mandato; pode ser entendido

como a possibilidade de afastar ou dissuadir alguém de um desígnio ou fazer retroceder ou

recuar alguma coisa.

No âmbito jurídico, a revogação é a anulação, substituição ou emenda de uma

ordem por autoridade diferente daquela que tenha resultado a primeira. Nesse sentido,

segundo De Plácido e Silva (2014, p. 1871), “a revogação ou ato revocatório somente

produzirá os efeitos de anular, desfazer, desvigorar o que antes era feito, se promovido ou

realizado por quem tenha autoridade para anulá-lo ou o desfazer”.

Por conseguinte, a revogação pressupõe um modo de extinção de uma relação

jurídica, produzindo efeitos ex nunc, pois tem vigência apenas após a sua declaração51

.

Pode ocorrer de duas formas: tácita52

ou expressa53

.

Esta revogação, contudo, poderá ser total ou parcial, denominada de ab-rogação ou

derrogação, respectivamente. Nota-se, deste modo, que o conceito de revogação é gênero

do qual estes dois últimos são espécies.

Nesse sentido, a fim de conceituar as duas espécies de revogação, passa-se a

analisar o conceito de ab-rogação, que na doutrina De Plácido e Silva (2014, p. 24), “é a

perda total de vigência de determinado ato normativo. É a ação de cassar, revogar, tornar

nulo ou sem efeito um ato anterior”.

O elemento ab denota afastamento, separação, podendo apresentar também sentido

intensivo, como em abuso e absorver. Ab figura em inúmeras locuções latinas usuais no

Direito, conforme explica Henriques (1999, p. 30),

Absurdo: forma de argumentação pela qual se prova a falsidade do princípio

pela falsidade evidente da consequência; ab initio: no início, no começo, na

inicial; corresponde a in limine; ab irato: por ira, por impulso de ira, em

50 Segundo Azevedo (2010, p. 756), revogar significa “ab-rogação, anulação, anulamento, impugnação, ob-rogação,

nulificação, revocação, canceladura, cancelamento, rescisão, rescindimento, desajuste, encampação, resiliação,

revogamento, cassação, casamento, desfazimento, circundução, perempção, prescrição, nulidade, invalidação, invalidade,

retroatividade, demissão, dispensa, exoneração, remoção, despedida, congé, deposição, destronização, destituição,

desconsagração”. 51 A data da cessação da eficácia de uma lei não é a da promulgação ou publicação da lei que a revoga, mas a em que a

lei revocatória se tornar obrigatória (DINIZ, 2005, p. 243). 52 É a que se dá quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a reger parcial

ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão ‘revogam-se as disposições em

contrário’ por ser supérflua. Trata-se de revogação indireta que não deve ocorrer, por haver lei complementar requerendo

que cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas (DINIZ, 2005, p.

245). 53 É aquela em que a norma revogadora declara qual a lei que está extinta em todos os seus dispositivos ou aponta os artigos que pretende retirar (DINIZ, 2005, p. 244).

114

consequência de ira; ab intestato: sem deixar testamento; opõe a sucessão

testamentária; ab abrupto: discurso sem exórdio, sem preparo.

Em regra, o instituto da ab-rogação somente ocorre em virtude de lei ou

regulamento que passe a implantar novos princípios, determinando a anulação ou cassação

de determinada lei, regulamento ou costumes anteriormente vigentes, podendo ocorrer de

fato ou de direito. Isto significa que aquela ocorre quando uma determinada norma se torna

obsoleta ou cai em desuso, sendo anulada pela prática, enquanto esta decorre de revogação

expressa.

O instituto da ab-rogação pode ocorrer ainda em duas searas distintas. Na primeira,

administrativa, o que para Diniz (2005, p. 29) significa: “a cessação de ato administrativo

em razão de uma superveniente inoportunidade, inconveniência ou iniquidade ocorridas

ante uma mudança na situação fática por ele regida, mantendo-se os efeitos já produzidos”.

Admite-se ainda, ab-rogação de tratado internacional, aplicando-se o princípio lex

posterior derogat priori sempre que o segundo tratado ditar a lei dos Estados signatários

do primeiro, podendo ocorrer de forma expressa ou tácita, dependendo da forma como

ficar declarada ou não no tratado posterior a cessação dos efeitos da anterior.

Já a última espécie de revogação, qual seja a derrogação, no entendimento de

Plácido e Silva (2014, p. 683), “derivado do latim derogatio, de derogare (anular uma lei),

é o vocábulo especialmente empregado para indicar a revogação parcial de uma lei ou de

um regulamento”.

Assim como a ab-rogação, a derrogação pode ocorrer tanto de forma expressa,

quando há menção explícita de nova norma, quanto tácita, onde esta decorre de

incompatibilidade da lei nova com a anterior, tornando-a ineficaz. A norma derrogada não

perde sua vigência, pois somente os dispositivos atingidos é que deixam de ter

obrigatoriedade.

O que se propõe na presente pesquisa, justamente, é analisar a inderrogabilidade,

ou seja, a impossibilidade de revogação, ainda que parcial de direitos, entendidos como

fundamentais, presentes na ordem constitucional vigente à luz de um sistema jurídico

multinível de proteção dos Diretos Humanos Fundamentais.

Desta forma, ainda que haja previsão expressa ou que ocorra a incompatibilidade

de lei nova face disposições anteriores, o que se busca é a criação de um núcleo

inderrogável de direitos, dos quais não haja qualquer possibilidade de retrocesso, nem de

revogação, seja pelo instituto da ab-rogação ou da derrogação.

115

Em suma, após analisar algumas concepções preliminares acerca da elaboração de

conceitos-chave para a presente pesquisa, como a distinção entre Direitos Fundamentais e

Direitos Humanos, a evolução de institutos que visam a proteção jurídica desses direitos, e

por fim, a análise morfológica e sintática da revogação, como gênero e de suas subespécies

ab-rogação e derrogação, será verificada a evolução histórico-constitucional de proteção

desses direitos no cenário brasileiro.

A evolução dos Direitos Fundamentais no cenário internacional, desde a ruptura do

paradigma do feudalismo para o capitalismo, converge com as Revoluções americana,

francesa e inglesa. Destaca-se nessa linha de raciocínio a evolução desses direitos e a

formação de seu núcleo inderrogável na esfera doméstica e internacional, além de perceber

como as mudanças durante esse período histórico influenciaram diretamente na construção

do constitucionalismo pátrio.

Sob esse enfoque, serão abordados os movimentos constitucionais que

representaram a evolução da proteção dos Direitos Fundamentais, desde a Constituição do

Império de 1824 até a Constituição da República de 1988, apresentando avanços e

retrocessos no que tange à proteção dos direitos humanos no cenário doméstico e

internacional, aplicando-se os instrumentos de proteção e de responsabilização por

violações a esse núcleo inderrogável de direitos fundamentais.

2.7 Conclusões parciais

As transformações da sociedade juntamente com o reconhecimento em âmbito

global da importância de se estabelecer igualdades tanto formais quanto materiais, faz de

indivíduos e coletividade signatários de direitos, utilizando-se de mecanismos e

instituições que fomentam a defesa da dignidade humana contra a violência, o aviltamento,

a exploração e a miséria, tornando esses valores inderrogáveis.

Para se chegar ao conceito, ao rol de Direitos Humanos Fundamentais e seu núcleo

inderrogável, foram necessárias lutas e conquistas não apenas para assegurar e codificar,

mas para efetivar tais preceitos fundamentais, percorrendo a evolução destes direitos na

religião, na filosofia e na ciência.

Na construção do arcabouço jurídico da inderrogabilidade desses direitos, algumas

teorias se destacaram, através das quais se propunha estabelecer a nomenclatura mais ideal

a ser utilizada. Indagava-se se deveria ser tratado como Direitos Fundamentais ou Direitos

116

Humanos, adotando-se na presente pesquisa a expressão Direitos Humanos Fundamentais

utilizada por Alexandre de Moraes e José Afonso da Silva.

Mais do que estabelecer uma ou outra expressão como a que identifica o núcleo

inderrogável de direitos, é possível destacar que tais direitos são enunciados protegidos por

normas constitucionais, com supremacia formal e material, e que devido a sua importância

axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico, traduzindo-se em um

verdadeiro “sistema de valores”.

Tais preceitos devem respeitar a diversidade ideológica, de modo que os interesses

de todos os grupos sociais, inclusive das minorias, sejam respeitados e tratados da mesma

forma, sempre sob o prisma da dignidade da pessoa humana, a fim de que os Direitos

Humanos Fundamentais não sejam invocados para justificar a violação da dignidade de

outros seres humanos.

Para efetivar esses direitos, emerge o Direito Internacional dos Direitos Humanos,

resguardando o valor da dignidade humana como pedra fundamental dos direitos humanos

e fruto de precedentes históricos da moderna sistemática de proteção internacional, visto

que a própria Constituição da República de 1988 admite as duas expressões, tanto Direitos

Humanos como Direitos Fundamentais, para justificar neste a proteção infraconstitucional

e naquela a proteção supranacional.

Ao analisar a evolução dos Direitos Fundamentais desde a Magna Carta de 1215

até a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, buscou-se demonstrar que o

núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais tem como fundamento a luta das

minorias para o reconhecimento de direitos além de efetivar o texto das Cartas

Constitucionais, estabelecendo um necessário diálogo entre os Direitos Fundamentais e os

Direitos Humanos.

A par dessas conclusões, também foi esclarecido o significado semântico de

revogação, enquanto gênero e o de suas subespécies ab-rogação e derrogação, para que se

possa compreender a proposta desta pesquisa que argumenta não ser possível a derrogação

de Direitos Humanos Fundamentais, ainda que parcial.

A partir dessa análise conceitual e etimológica, destaca-se que o movimento

constitucional passa por um processo evolutivo, e que exige dos Estados observar não

apenas as normas de direito interno para a proteção dos Direitos Humanos Fundamentais,

mas também as normas supranacionais, justificando assim a criação de um sistema

117

multinível de proteção destes direitos, e quiçá a criação de uma Constituição Internacional

com o fito de estabelecer um núcleo inderrogável desses direitos.

Os desafios apresentados por essa evolução constitucional permeiam desde uma

relativização da soberania, até a utilização de decisões estrangeiras para fundamentar as

decisões internas, especialmente quando não há a efetividade da proteção destes direitos

em âmbito doméstico, ou quando a violação é perpetrada pelo próprio Estado.

Em suma, após analisar esses conceitos fundamentais, estabeleceu-se a distinção

entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, destacando que, para a efetivação desses

direitos deve-se buscar uma solução não apenas doméstica, mas supranacional, dando

ensejo à criação de um sistema multinível de proteção desses direitos, além de aventar a

possibilidade de se criar uma Constituição Internacional que comporte um núcleo “duro”,

inderrogável, comum a todas as nações.

Assim, passará a ser analisada a evolução dos Direitos Fundamentais em âmbito

doméstico, desde a Constituição do Império de 1824 até a redemocratização do país

através da Constituição da República de 1988, que dentre suas inovações dedicou um

capítulo específico para tratar desses direitos, assim como o art. 60 da referida

Constituição, que tornou-os inderrogáveis.

118

3 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NA HISTÓRIA

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

3.1 Os Direitos Fundamentais na história constitucional brasileira

Conforme verificado ao longo do segundo capítulo, os Direitos Fundamentais são

decorrentes de uma série de lutas que buscam a valorização do homem face ao Estado

detentor dos poderes de tutela, uma vez que se faz necessário implementar medidas de

contrapeso em função das recorrentes violações à humanidade.

Contudo, também se constata ao longo da história que abusos e o uso da máquina

estatal de forma desequilibrada e desordenada levaram a desigualdades que culminaram

em uma série de explorações e tratamentos desumanos, além de episódios de carnificina e

de barbárie em nossa história recente.

Nesse sentido, ensina Castilho (2010, p.99):

Todas as constituições outorgadas, proclamadas, promulgadas ou arrancadas

com sangue e lágrimas tiveram por base dois elementos comuns: definiam

normas para o funcionamento do Estado, limitando-lhe o poder em algum grau,

e definiam de que maneira teriam que ser garantidos e protegidos os direitos das

pessoas.

Desta forma, duas ideias básicas conduzem aos novos paradigmas da época, quais

sejam, os ideais liberais e socialistas, evidenciados pela inversão de perspectiva, que

trouxe uma mudança no modo de encarar a política, onde a relação passou a ser entre

indivíduos, e não entre o Estado e os indivíduos, assim como não mais entre súditos e

soberanos.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, os líderes mundiais perceberam que o

conceito de constitucionalismo precisava ser alterado, haja vista que não havia mais como

manter os ideais liberais da Revolução Francesa de não intervenção do Estado,

provenientes do esfacelado liberalismo econômico.

Nesse contexto, surge o princípio da livre-iniciativa, coordenado por um Estado

que pudesse interferir apenas e tão somente quando necessário para promover o bem-estar

social, com a efetiva prestação de serviços à sociedade, como saúde, alimentação,

segurança, transporte, educação e justiça social.

Verifica-se a implementação deste movimento na Constituição da República de

1988 (Martins; Rezek, 2008, p.607), pelo que prevê o seu art. 170, ao dispor que “a ordem

119

econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim

assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Canotilho e Streck (2013, p.1785), em obra conjunta, afirmam:

Embora a Constituição de 1824 e a Constituição da República de 1891

dispusessem, qual as demais Constituições liberais, sobre aspectos concernentes

à ordem econômica (direito de propriedade, liberdade de indústria e comércio,

liberdade de profissão e liberdade contratual, etc.), a sistematização desses temas

em um capítulo do texto constitucional ocorrerá apenas na Constituição de 1934,

sob inspiração das experiências constitucionais mexicana, em 1917, e a alemã

em 1919. Desde 1934 todas as Constituições brasileiras conterão um capítulo

atinente à Ordem Econômica e Social, a partir de 1988 dividido em distintas

seções, “Ordem Econômica” e “Ordem Social”.

O Brasil é uma República federativa desde a sua proclamação em 1889, ou seja, é

uma federação que nasceu por decreto, que tem por escopo a união dos estados, reunidos

sob um mesmo comando central, para tornar um país forte diante dos outros países, uma

vez que os estados, individualmente, não teriam condições de se sustentar.

Para que se possa compreender os rumos do constitucionalismo no Brasil, é

necessário fazer uma acurada reflexão acerca das três fases históricas em relação aos

valores políticos, jurídicos e ideológicos que tiveram influxo preponderante na obra de

caracterização formal das instituições.

Quanto a estas fases históricas que compõem a formação das instituições

brasileiras, aponta Bonavides (2011, p. 361):

A primeira, vinculada ao modelo constitucional francês e inglês do século XIX;

a segunda, representando já uma ruptura, atada ao modelo norte-americano e,

finalmente, a terceira, em curso, em que se percebe, com toda a evidência, a

presença de traços fundamentais presos ao constitucionalismo alemão.

Desde a sua descoberta em 1500, graças ao espírito de aventura do povo lusitano, o

Brasil apenas sofreu transformações significativas em 1808 devido às fragilidades da

Coroa portuguesa, obrigada a abandonar sua metrópole para não cair refém de Napoleão

Bonaparte; e, finalmente, tornando-se independente em 1822 pelas divergências entre os

próprios portugueses.

Conforme acentua Gomes (2010, p. 21), a Independência foi produto de “uma

guerra civil entre portugueses, desencadeada na Revolução Liberal do Porto de 1820 e cuja

motivação teriam sido os ressentimentos acumulados na antiga metrópole pelas decisões

favoráveis ao Brasil adotadas por D. João”.

120

O rei D. João VI retornou a Portugal em abril de 1821, depois de nomear o filho D.

Pedro príncipe regente do Brasil. Para trás, deixou um país transformado. Entre as muitas

mudanças ocorridas nesses 13 anos, o Brasil tinha sido promovido, em 1815, a Reino

Unido com Portugal e Algarve.

Pressionado por Portugal, em agosto de 1822, através das cortes constituintes

portuguesas que destituíram D. Pedro do papel de príncipe regente e o reduziram à

condição de mero delegado das autoridades de Lisboa, cancelando todas as suas decisões

até então, fizeram com que um jovem de apenas 22 anos proclamasse a Independência e

decretasse o rompimento dos laços com a metrópole.

Vários acontecimentos do século XIX impulsionaram as transformações ocorridas

no Brasil. A coroa portuguesa viu-se obrigada a se aliar a Inglaterra para fugir do domínio

de Napoleão Bonaparte, contudo, outro acontecimento, igualmente decisivo, havia

precedido o vendaval francês.

Em 1776, ou seja, treze anos antes da queda da Bastilha, que ficou conhecida como

Revolução Francesa, ocorreu a independência dos Estados Unidos, que resultou na criação

da primeira democracia republicana da história moderna, quando os americanos criaram o

laboratório em que seriam testadas com sucesso as ideias que os filósofos iluministas

haviam desenvolvido décadas anteriores.

Gomes (2010, p. 47) ilustra esse pensamento ao apontar:

É preciso lembrar que, até então, todo o poder emanava do rei e em seu nome

era exercido. Era assim que os países haviam sido governados desde sempre.

Pensadores como David Hume, o inglês John Locke e os franceses Montesquieu,

Jean-Jacques Rousseau, Denis Diderot e François-Marie Arouet, conhecido

como Voltaire, sustentavam no entanto, que era possível limitar o poder dos reis

ou até mesmo governar sem eles.

Dentre as experiências testadas pelos norte-americanos, há que se destacar o

federalismo que teve como marco inicial a experiência vivida na sua Declaração de

Independência. Em princípio, as treze colônias se reuniram em forma de confederação,

tomando por base os pontos em comum como leis, linguagem, religião e objetivos.

A confederação e seus dispositivos, conforme orienta Oliveira Filho (2009, p. 185),

não geram os efeitos almejados e não trouxeram aos Estado aquilo que mais

desejam: estabilidade. Com isso verifica-se que a noção de independência,

soberania e liberdade incutida nos Estados independentes acabavam por

dificultar o exercício de um pleno governo central.

121

As maiores dificuldades as quais o governo central se deparou encontravam-se no

desprezo dos Estados para com suas autoridades assim como o aprovisionamento de

recursos. Elucida Calmon (1954, p. 24):

a Confederação rumava para um insucesso tendo em vista que os Estados

mantinham a sua soberania interpretando que tal conduta fortalecia a

independência e a liberdade adquirida assim como a possibilidade de dissolução

do vínculo pelo exercício do já mencionado direito de sucessão.

Estas dificuldades apresentadas pelo vínculo da Confederação acabaram por iniciar

uma grande discussão acerca do sentido e da finalidade desta. Foi assim que se

desenvolveu o federalismo americano, isto é, mediante acordos e conflitos, declarações e

convenções, resultando em três correntes deste processo: nacionalistas, federalistas e

unionistas.

Diante de todos estes fatos e constatações, Hamilton (2003, p. 15-16) afirmava que

era o momento de se deixar de lado pequenas paixões e focar as atenções na real diferença

entre um governo e uma simples liga, entre um governo parcial e um governo geral, entre

um governo de todos e um governo de alguns apenas, e finalizava afirmando a necessidade

de se pensar em interesses comuns diversos e interesses particulares.

Assim, a federação deveria ser a capacidade de amar a união em substituição ao

amor do Estado. Como descreve Alexandre de Moraes (2010, p. 3),

a federação americana, portanto, nasceu adotando a necessidade de um poder

central, com competências suficientes para manter a união e coesão das antigas

colônias, garantindo-lhes, como afirmado por Hamilton, a oportunidade máxima

para a consecução da paz e liberdade, contra o faccionismo e a insurreição e

permitindo, à União, realizar seu papel aglutinador dos diversos Estados-

membros e de equilíbrio, no exercício das diversas funções constitucionais,

delegadas aos três poderes.

O iluminismo preconizava uma nova era, em que a razão, a liberdade de expressão

e de culto e os direitos individuais predominariam sobre os direitos divinos invocados

pelos reis e pela nobreza para manter os seus privilégios. Contudo, durante muito tempo

tudo isso funcionou apenas como teoria intensamente discutida nos salões parisienses.

Até então, democracia e república eram conceitos testados por breves períodos na

Antiguidade, especialmente na Grécia e em Roma, em cidades ou territórios muito

122

pequenos. Coube aos norte-americanos54

demonstrar ao mundo que não só era possível

governar com essa nova forma de governo as sociedades maiores e mais complexas, assim

como era possível inverter a pirâmide do poder.

A Revolução Francesa e a Independência Americana são as mais conhecidas,

porém não são as únicas transformações deflagradas pelo poder corrosivo das ideias

liberais nas quatro décadas que antecederam a Independência brasileira, quando

praticamente todas as áreas de atuação humana foram afetas por ela, incluindo as artes, a

ciência e a tecnologia.

No Brasil, do Primeiro Reinado, monarquistas absolutos e liberais, republicanos e

federalistas, abolicionistas e escravagistas, se confrontavam pela primeira vez na

Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, cujo objetivo era organizar o novo país.

Como ensina Sousa (1988, p. 178), “o novo ‘pacto social’ tinha na arena política

temas como liberdade religiosa e de pensamento, direitos individuais e de propriedade,

imprensa sem censura, governo firmado no consentimento geral”.

As transformações ocorridas no Brasil, do Estado monárquico unitário para o

Estado republicano, deram origem à federação. Para Bastos (2010, p. 232), a federação

perfeita caracteriza-se onde “o estado federal é soberano do ponto de vista do direito

internacional, ao passo que os diversos Estados Membros são autônomos do ponto de vista

do direito interno”.

A ideia de federação teve início em 1787, quando foi publicada a primeira

Constituição do mundo, a dos Estados Unidos da América do Norte, o que inspirou outros

países como o Brasil a também adotar a denominação de Estados Unidos do Brasil.

Contudo, essa nomenclatura não se manteve, conforme será visto adiante.

As marés de inovações na Europa e nos Estados Unidos chegaram com algum

atraso ao Brasil, mas teriam efeito igualmente devastador. Situada do outro lado do

mundo, a América portuguesa fora mantida até 1808 como uma colônia analfabeta, isolada

e controlada com rigor.

54 O paradigma da nova era aparecia logo na certidão de nascimento dos Estados Unidos. Redigida pelo advogado,

fazendeiro e futuro presidente, Thomas Jefferson, a Declaração de Independência Americana anunciava que “todos os

homens nascem iguais” e com alguns direitos inalienáveis, incluindo a vida, a liberdade e a busca da felicidade. A

afirmação mudava tudo porque, até então, esses direitos eram sempre concedidos por alguém – o rei, o imperador, o papa

– e da mesma forma poderiam ser tomados ou comprados, dependendo da circunstância do momento. O texto de

Jefferson serviria de inspiração para que, 13 anos depois, o marquês Lafayette, nobre francês que havia lutado ao lado

dos americanos na guerra da independência contra a Inglaterra, escrevesse a famosa Declaração Universal dos Direitos

do Homem. Proclamada pelos revolucionários franceses, seria adotada um século e meio mais tarde, com algumas

adaptações, como a carta de princípios das Nações Unidas: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e

direitos”. (GOMES, 2010, p. 47-48).

123

Em situação bem diferente, os Estados Unidos, acrescenta Gomes (2010, p. 50),

“provem de uma cultura protestante que havia criado uma colônia alfabetizada,

empreendedora, habituada a participar das decisões comunitárias e a se manter bem-

informada sobre as novidades que chegavam da Europa”.

Em 1776, o ano da Independência americana, o padrão de vida dos Estados Unidos

já era superior ao da sua metrópole Inglaterra. Como a prática religiosa incluía ler a Bíblia

em casa e nos cultos dominicais, até os escravos eram alfabetizados, o que, por

conseguinte deixava o índice de analfabetismo próximo do zero.

Ao retornar a Lisboa em abril de 1821, o rei D. João VI deixara para trás um Brasil

profundamente transformado pelas decisões que havia tomado nos seus treze anos de

permanência no Rio de Janeiro, contudo, sua última providência, antes de partir, tinha sido

desastrosa para o país, que tentava dar os primeiros passos como nação independente, ao

mandar raspar os cofres do Banco do Brasil.

A identidade nacional, criada com a vinda de D. João VI, trouxe certa união a

províncias que eram, até então isoladas, dispersas e rivais. Além das divisões regionais,

havia as divergências políticas, decorrentes desta época revolucionária, em que o mundo

inteiro debatia qual seria a forma ideal de organizar e governar as sociedades.

O poder dos reis estava sendo contestado, mas havia muitas dúvidas a respeito de

como substituí-lo por outro mais legítimo e eficaz. No Brasil, conforme pontua Gomes

(2010, p. 64), “o projeto de independência tinha ampla aceitação, mas poucos

concordavam a respeito do que fazer com o novo país depois de conquistada a autonomia”.

Esses grupos tinham visões bem diferentes a respeito do futuro do Brasil. O

primeiro defendia a continuidade da monarquia, ficando D. Pedro como soberano. No

entanto, seu poder seria limitado por uma Constituição que defenderia os direitos das

pessoas e a organização do governo no novo país.

O segundo grupo defendia uma ruptura mais radical com o passado. Na República,

em lugar de um rei ou imperador, o Brasil teria um presidente eleito pela população, com

mandato temporário e também limitado pela Constituição, incluindo ainda um grupo que

defendia a continuidade do Reino Unido Brasil, Portugal e Algarve, criado em 1815.

Nesta primeira parte da história constitucional brasileira, os republicanos foram

vencidos, haja vista que romper com a ordem vigente e ampliar a participação nas decisões

do poder deixavam o futuro incerto e ameaçador, especialmente para aqueles que tinham

muito a perder.

124

Apesar de a organização político-administrativa da Constituição da República de

1988 (Canotilho; Streck, 2013, p. 700-706.) ser considerada imperfeita, por ter como origem

a herança das províncias que se tornaram Estados-membros, foi a adotada e prescrita no

art. 18 desta, que assim dispõe: “A organização político-administrativa da República

Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,

todos autônomos, nos termos desta Constituição”.

Quanto à transformação em Estado, é este o destino natural dos Territórios que

conseguem atingir um patamar de desenvolvimento que lhes garanta a maioridade, ou seja,

um nível de autossuficiência que lhes permita desvincular-se da União e ter vida autônoma

como os Estados.

Como exemplo, coube à lei complementar dispor a respeito, valendo como

sugestão que se acompanhe a disciplina prevista no art. 9° dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946 (Canotilho; Streck, 2013, p. 703) para a

elevação do Território do Acre a Estado, ou seja, a previsão de mudança de categoria logo

que suas rendas se tornassem iguais às do Estado então com menor arrecadação.

Inspirado pelo movimento denominado constitucionalismo moderno, o Brasil em

pouco mais de 180 anos de Independência e 110 anos de República, editou oito

Constituições55

, caracterizado por um estigma de instabilidade e falta de continuidade de

nossas instituições políticas.

Neste sentido, leciona Barroso (2009, p. 8): “um lance de vista superficial poderia

fazer crer que a vivência brasileira consiste em um encadeamento de crises, que se

alternam em farsesca repetição”. Crise esta caracterizada pela manifestação violenta e

repentina de ruptura do equilíbrio. Em outra obra, Barroso (1982, p. 146) complementa:

Uma incursão, ainda que breve, na evolução constitucional do Estado brasileiro

conduz à constatação mais acertada da existência, intangida e secular, de males

que podem se dizer crônicos. Por trás das aparências, não têm sido nossas

vicissitudes produto de situações agudas e decisivas – críticas –, mas de

reincidentes disfunções orgânicas, perenizadas pelos beneficiários da falta de

amadurecimento e contemporaneidade da vida nacional.

Essa disfunção ou os sucessivos malogros de nossos projetos institucionais não se

prende a qualquer deficiência de cunho mais grave na elaboração constitucional, ao ângulo

55 A doutrina é praticamente unânime em reconhecer que o texto com que passou a vigorar a Constituição de 1967, após

17.10.69, embora sob a roupagem formal de emenda (EC n° 1/69), configurou ao ângulo, uma nova Carta, tal a

amplitude das alterações introduzidas (SILVA, 2014, p.45).

125

da técnica legislativa, o que se poderia atribuir, talvez, a uma eventual incapacidade de

apreensão adequada da realidade social, para uma correta roupagem da sua feição

normativa fundamental.

Houve, portanto, um árduo caminho até chegar à elaboração da Carta constitucional

atual. Foram oito constituições, uma ainda no período do Império e as outras já durante a

República. Cada uma refletiu a situação social e política do Brasil da época, tanto no

cenário internacional como no doméstico, conforme se vê nos tópicos a seguir.

3.2 Da Carta Imperial de 1824 à Constituição de 1891

A história constitucional brasileira se inicia sob o símbolo da outorga. Embora não

possa contar com o selo da aprovação popular, é inegável que a Constituição de 1824,

também conhecida como Carta do Império, fundava-se em certo compromisso liberal, a

despeito de jamais haver sido encarada pelo Imperador como uma fonte de legitimidade do

poder que exercia.

O imperador D. Pedro I56

havia convocado uma assembleia para redigir a

Constituição, instalando-a em 3 de maio de 1823 (Castilho, 2010, p. 102). Mas vendo que

os constituintes tentavam restringir seus poderes de imperador, fechou a assembleia e

chamou dez indivíduos de sua confiança para escrever a carta.

Quanto aos motivos que levaram a um suposto golpe da dissolução da assembleia

constituinte, aponta Franco (1968, p. 231-232), “o insucesso final do trabalho da

Assembleia deve-se, sobretudo, é justo reconhecer, às contradições e arrebatamentos

psicológicos do imperador”.

Além deste, outros motivos podem ser apresentados. De um lado, a influência dos

Andradas, afeiçoada ao Brasil e a um liberalismo monárquico e moderado, e de outro, a

influência radical do partido português, fomentadores dos impulsos autoritários do

Imperador.

Há que se destacar ainda, quanto ao desequilíbrio decorrente da própria origem da

Assembleia Constituinte que nasceu como resposta às provocações das cortes lusitanas,

episódio superado quando da negociação da autonomia política e não pela ruptura da

Independência.

56 O momento histórico, observa Cerqueira (1997, p. 34), “na Fala do Trono, no dia 3 de maio de 1823, em que D. Pedro

(Pedro I), já sagrado, por ato próprio, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, abre os trabalhos da

Assembleia Constituinte, o soberano adverte, que só defenderia a “constituição, se fosse digna de mim”.

126

A Carta Imperial de 1824 manteve os princípios do liberalismo moderado, doutrina

que admitia a intervenção do governo em determinados assuntos, sendo esta a base para

implantação da figura do poder moderador, acima dos poderes executivo, legislativo e

judiciário, que no fundo servia apenas para fortalecer o poder pessoal do imperador57

.

Quanto ao modelo liberal adotado pela Carta de 1824, descreve Gomes (2010, p.

219), que “embora tivesse imperfeições, era a melhor entre as de todos os países do

hemisfério ocidental, com exceção dos Estados Unidos. Foi a mais duradoura Constituição

brasileira. Bem-sucedida ao organizar o estado e discriminar as fronteiras entre os

diferentes poderes”.

Uma das novidades da Carta de 1824 era a liberdade de culto. Embora o Império

tivesse mantido o catolicismo como religião oficial, pela primeira vez na história

brasileira, judeus, muçulmanos, budistas, protestantes e adeptos de outras crenças

poderiam professar livremente sua fé.

A maior de todas as novidades, no entanto, era o chamado Poder Moderador,

exercido pelo Imperador, que na prática era como um quarto poder, que se sobrepunha aos

outros três, e arbitrava eventuais divergências entre eles. O artigo 98, §VI daquela

Constituição afirmava que o Poder Moderador era:

a chave de toda a organização política, delegado privativamente ao imperador

que, nessa condição, é o responsável pela manutenção da independência,

equilíbrio e harmonia entre os poderes públicos. O artigo seguinte afirmava: A

pessoa do imperador é inviolável, e sagrada: ele não está sujeito a

responsabilidade alguma.

A criação do Poder Moderador inspirava-se nas ideias do pensador franco-suíço

Henri-Benjamin Constant de Rebeque, como uma tentativa de reconciliar a monarquia

com liberdade, direitos civis e Constituição. Na opinião de Benjamin Constant, caberia ao

soberano mediar, balancear e restringir o choque entre os poderes.

No Brasil, entre as atribuições do imperador estavam, como relaciona Lima (1989,

p. 65), “a faculdade de nomear e demitir livremente ministros, dissolver a câmara dos

deputados e convocar novas eleições parlamentares. Entre 1824 e 1889, D. Pedro I e D.

Pedro II invocaram o poder moderador 12 vezes para dissolver a Câmara”.

57 Adotou a forma monárquica de governo, dividiu o território em províncias, cada qual com seu presidente, e definiu o

catolicismo como religião oficial do Império, concentrando nas mãos do Imperador, os Poderes Executivo e Moderador e

instituiu a forma unitária de Estado, com forte centralização político-administrativa (CAPEZ, 2008, p. 27).

127

Como frutos decorrentes do vínculo lusitano, a Carta de 1824 institucionaliza, por

instrumentos diversos, o modelo oligárquico, onde a supremacia da Coroa mitigou-se por

órgãos de controle derivados da monarquia, como o Senado e o Conselho de Estado, bem

como por via de um órgão dependente de eleição, a Câmara dos Deputados.

No que tange à inautenticidade eleitoral, ilustra Faoro (1979, v.I, p. 291) “pela

fórmula constitucional censitária e pela manipulação do oficialismo, neutraliza, em

intensidade quase absoluta, o sistema representativo de participação popular”. O mesmo

autor ainda aponta:

A Constituição não desempenha, senão remotamente, senão por tolerância ou

consentimento, o papel de controle, em nome dos destinatários do poder, os

cidadãos convertidos em senhores da soberania. Constituição puramente

nominal, incapaz de disciplinar, coordenar, imperar, ideal teórico de uma

realidade estranha à doutrina e rebelde à ideologia política importada.

A Lei n° 16, de 12.08.1934, deu origem ao Ato Adicional de 1834, que entre outras

provisões, foi produto de uma proposta de reforma da Constituição, buscando romper com

asfixia unitária, concedendo certo grau de autonomia às províncias, em consonância com

as aspirações federalistas que já se delineavam.

Para controle desta autonomia, foi editada a Lei n° 105, de 12.05.1840, chamada de

Lei de Interpretação (Barroso, 2009, p.8.), que deu sentido e reduziu o conteúdo e a

extensão das inovações introduzidas, sem romper com a herança do patrimonialismo58

,

com a criação dos cargos públicos.

Em seu longo e avançado elenco de “garantias dos direitos civis e políticos dos

cidadãos brasileiros”, remarcado de inspiração liberal, a Constituição do Império, ao lado

do princípio da legalidade, consagrava o princípio da isonomia, inaugurado em nosso

ordenamento no inciso XIII do art. 179: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer

castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.”.

58 O colonialismo português que, como o espanhol, foi produto de uma monarquia absoluta, assentou as bases do

patrimonialismo, arquétipo de relações políticas, econômicas e sociais que predispõem à burocracia, ao paternalismo, à

ineficiência e à corrupção. Os administradores designados ligavam-se ao Monarca por laços de lealdade pessoal e por

objetivos comuns de lucro, antes que por princípios de legitimidade e dever funcional. Daí a gestão da coisa pública em

obediência a pressupostos privatistas e estamentais, de modo a traduzir fielmente, na Administração Pública, as

aspirações imediatas de classe que lhe compõe o quadro burocrático. O agente público, assim, moralmente

descomprometido com o serviço público e sua eficiência, age em função da retribuição material e do prestígio social.

Veja-se sobre esta e outras disfunções nacionais, Keith S. Rosenn. Brazil´s legal culture: the jeito revisited. In: Florida

International Law Journal, v.I, n.1, 1984, publicado em português, numa versão ampliada, sob o título O jeito na

cultura jurídica brasileira, 1998.

128

O Projeto da Constituinte obedecia basicamente em matéria de organização de

poderes o célebre esquema de Montesquieu: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder

Judiciário. Além disso, como aponta Bonavides (2011, p. 363),

A Carta Imperial de 1824 ainda incluiu a garantia dos direitos individuais e

políticos, sob a inspiração da Constituição francesa de 1791 e ao mesmo tempo

formulava com originalidade um capítulo sobre os “deveres dos brasileiros”, no

qual admitia o direito de resistência e declarava “dever do brasileiro negar-se a

ser o executor da lei injusta”, reputando como tal a lei retroativa ou oposta à

moral, mas unicamente “se ela tendesse a depravá-lo e a torná-lo vil e feroz”.

Entre as principais medidas adotadas na Carta Imperial estão a transformação das

províncias, que passavam a ser governadas por presidentes nomeados pelo imperador.

Além disso, definiu-se que as eleições seriam indiretas e censitárias, com o voto restrito

aos homens livres e proprietários, desde que tivessem renda.

Destaca-se ainda o controle de constitucionalidade como um dos núcleos essenciais

do Estado de Direito e que, sob a influência do jacobinismo francês e dos doutrinadores

políticos da Inglaterra, não previu esse direito fundamental.

Conferia, no entanto, conforme ilustra Carvalho (2013, p. 446), “em seu art. 15, n.

8° e 9°, ao Poder Legislativo, a competência de velar na guarda da Constituição e

promover o bem geral da Nação, além de fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-

las”.

Apesar da existência, ao tempo do Império, do Supremo Tribunal de Justiça, não

podia ele tornar efetiva a supremacia constitucional, porque dependente do Poder

Moderador por meio do qual o Imperador poderia intervir em todos os Poderes, estando,

portanto, acima de todos eles, o que inviabilizava o controle de constitucionalidade pelo

Poder Judiciário.

Durante quase toda sua vigência, o preceito conviveu, sem que assinalassem

constrangimento ou perplexidade, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o

regime escravocrata, características de uma cultura baseada na exploração, na vassalagem

e que estava em ruínas.

No que tange à escravidão, assevera Albuquerque (1981, p. 430; 441) que “a

abolição jurídica da exploração do trabalho escravo, tardiamente decretada em 13 de maio

de 1888, apenas confirmou a obsolescência econômica e financeira da instituição servil,

ultrapassada pelas novas relações de produção capitalistas, ascendentes desde a década de

70”.

129

O Segundo Reinado foi marcado por movimentos insurrecionais importantes, sob o

ângulo militar e político, como a Revolução Farroupilha (1835-1845), a Cabanagem

(1835-1840), a Balaiada (1838-1841), a Sabinada (1837-1838) e a Revolta Praieira (1849),

demonstrando a decadência da economia agrária e a deterioração das relações entre a

monarquia, de um lado, e o clero e o exército de outro.

Outra característica evidente deste período diz respeito à marginalização

institucionalizada da maior porção dos contingentes demográficos, que abrangiam

trabalhadores escravos e livres, complementada pelo ato grau de analfabetismo, cujo

legado do Império chegou a ser de 83% de iletrados (Albuquerque, 1981, p. 432) para uma

população de pouco mais de 14 milhões de pessoas.

A monarquia fraquejou com a transformação da economia agrária e a abolição da

escravidão, que impôs a importação do colono estrangeiro. O Exército emergiu como força

política, cuja aspiração federalista decorria da necessidade de se ter o controle sobre o país

de dimensão continental.

A despeito dessas transformações, com a influência do positivismo na

democratização, bem como no modelo norte-americano, acentua Almeida Melo (2008, p.

254-255), “os Estados Unidos sugeria a adequação ao sistema monárquico do regime

presidencial de governo”.

A Constituição de 1824 foi a que mais tempo permaneceu em vigência, não

necessariamente pelas suas qualidades, mas pelas características do regime imperial. Como

ilustra Villa (2011, p.15), “foi no século XIX, juntamente com a Constituição

estadunidense, a mais longeva”.

Pautada nas insurreições e na insatisfação de parte da população, a revolta chegou

ao seu clímax quando a nova ordem59

, inspirada no figurino norte-americano,

institucionalizou a Constituição em 24 de fevereiro de 1891, operando a tríplice

transformação: a forma de governo, de monárquica passa a republicana; o sistema de

governo, de parlamentar transmuda-se em presidencial; a forma de Estado, de unitária

converte-se em federal.

Segundo os apontamentos de Fagundes (1982, p. 16), a República do Brasil nasce

sem legitimidade,

59 Como ensina Cerqueira (1997, p. 40), “A República viria como esgotamento do modelo monárquico e a decadência

política do II Reinado que originou a questão religiosa e militar, que abalaram a base do Império nos trópicos, exótico

legado colonialista”.

130

Nada documenta que a ideia republicana fosse uma aspiração generalizada na

opinião pública, embora houvesse grupos diversos, e intelectualmente de grande

expressão, que por ela batalhassem. E o episódio, em si, da Proclamação,

revestiu todos os aspectos de um mero pronunciamento militar, de um golpe

armado. O povo o recebeu atônito e perplexo.

A República iniciou-se de forma melancólica, densamente autoritária, omissa na

questão social, elitista no seu desprezo à conscientização popular, e convulsiva quanto à

instabilidade das instituições, golpeadas como gesto de força pelo Marechal Deodoro, que

dissolveu as Câmaras Legislativas.

A carta promulgada no verão de 1891 com espírito liberal sofreu grande influência

da Constituição norte-americana e da Constituição Argentina, mas vários dos direitos

individuais foram suprimidos por causa de pressões dos grandes latifundiários.

Sob a influência do Direito norte-americano, Rui Barbosa inaugura o controle de

constitucionalidade das leis, já previsto na Constituição Provisória de 1890, que previa em

seu artigo 58, §1°,

Das sentenças da justiça dos Estados em última instância, haverá recurso para o

Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar a validade ou a

aplicabilidade de tratados e leis federais e a decisão do tribunal do Estado for

contra ela; b) quando se contestar a validade das leis ou atos dos governos dos

Estados em face da Constituição, ou das leis federais e a decisão do tribunal do

Estado considerar válidos os atos, ou leis impugnadas (CARVALHO, 2013, p.

446).

O mau começo do constitucionalismo republicano pode ser exemplificado quando

Floriano que sucede a Deodoro suprimiu as liberdades públicas, inaugurando a ditadura,

com violências pessoais, guerra civil e deportações, dando início a um período de

extermínio dos inimigos60

e prisioneiros.

Com a República, o Brasil ingressou na segunda época constitucional de sua

história, mudando o eixo dos valores e princípios de organização formal do poder. Como

ensina Bonavides (2011, p. 364):

Os novos influxos constitucionais deslocavam o Brasil constitucional da Europa

para os Estados Unidos, das Constituições francesas para a Constituição norte-

americana, de Montesquieu para Jefferson e Washington, da Assembleia

Nacional para a Constituinte de Filadélfia e depois da Suprema Corte de

Marshall, e do pseudoparlamentarismo inglês para o presidencialismo

americano.

60 Após Floriano, e na tentativa de conciliação com o governo de Prudente de Morais, surge a revolta pré-política de

Canudos (1893-1897), os seguidores do Conselheiro são considerados inimigos da República, que aniquila mais de 3.000

pessoas. A campanha de Canudos foi um crime, diria Euclides da Cunha em “Os Sertões”, sua obra imortal

(CERQUEIRA, 1997, p. 41).

131

Na sociedade o trabalho livre do imigrante, nomeadamente o italiano das lavouras

de café, substituiu o braço servil do africano, como uma espécie de prolongamento

humano da era colonial nas instituições imperiais extintas em 1889. Este novo Estado já

não pretendia oscilar formalmente como um pêndulo entre as prerrogativas do absolutismo

decadente e as franquias participativas do governo representativo.

Entrava o Brasil, numa época constitucional em que pela primeira vez as

instituições básicas do poder se conciliavam com a tradição continental hispânica,

sobretudo com o modelo daquelas federações que, a exemplo da Argentina e do México,

se haviam embebido na inspiração tutelar do constitucionalismo norte-americano.

No final de 1891, acontece a primeira deturpação interpretativa da Constituição:

após a renúncia de Deodoro, deveria haver nova eleição, conforme dispositivo da

Constituição61

. Contudo, seu vice e sucessor Marechal Floriano Peixoto62

, decide

permanecer até o final dos quatro anos, obtendo para tal a chancela do Congresso,

temeroso este de que o regime recém-inaugurado se convertesse em ditadura militar.

Com efeito, o núcleo inderrogável que caracterizava a estrutura do novo Estado

diametralmente oposta àquela vigente no Império era: o sistema republicano, a forma

presidencial de governo, a forma federativa de Estado e o funcionamento de uma Suprema

Corte, apta a decretar a inconstitucionalidade dos atos do poder.

Além disso, quanto às técnicas de exercício da autoridade, preconizadas no modelo

norte-americano, elucida Bonavides (2011, p. 365), “na época pelo chamado ideal de

democracia republicana imperante nos Estados Unidos e dali importadas para coroar certa

modalidade de Estado Liberal”, representavam uma ruptura com o modelo autocrático do

absolutismo monárquico e se inspiravam em valores de estabilidade jurídica vinculados ao

conceito individual de liberdade.

A Proclamação da República e a edição da Carta de 1891 não foram suficientes

para acalmar os ânimos dos grupos insatisfeitos com a forma de governo, revelando a

fragilidade desta nova ordem através das inquietações sociais e rebeliões sucessivas que a

desestabilizaram.

61 Assim dispunha o art. 42 da Carta de 1891: “Art. 42. Se, no caso de vaga, por qualquer causa, da Presidência ou Vice-

Presidência, não houverem ainda decorrido dois anos, do período presidencial, proceder-se-á a nova eleição”. 62 Floriano sustentou que, por tratar-se do primeiro mandato após a Constituição, não era aplicável o art. 42 já referido,

mas, sim, o §2° do art. 1° das Disposições Transitórias, que estatuía: “2° O presidente e o Vice-Presidente, eleitos na

forma deste artigo, ocuparão a Presidência e a Vice-Presidência da República durante o primeiro período presidencial”.

(BARROSO, 2009, p.13).

132

Já em 1892, deu-se a sublevação das fortalezas de Lage e Santa Cruz. Em 1893, a

Guerra de Canudos, a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e a Revolta da Armada.

Em 1895, 1904 e 1905, os levantes da Escola Militar. Em 1910, a revolta liderada por João

Cândido pela extinção da pena corporal da chibata.

Ainda na República Velha, em 1922, nos primórdios do movimento tenentista, o

levante do forte de Copacabana. Em 1923, a revolução do Rio Grande do Sul contra

Borges de Medeiros. Em 1924, a revolução paulista, liderada pelo General Isodoro Lopes,

reunindo-se os rebeldes; posteriormente, as tropas de Luís Carlos Prestes, no Rio Grande

do Sul, dando origem à Coluna Prestes. A revolução de 1930 encerra este ciclo penoso da

República brasileira. (CUNHA, 1983, p.23).

Durante o governo de Floriano, notadamente pela política adotada por Rui Barbosa

no Ministério da Fazenda, a sociedade brasileira recebeu um tênue impulso de

modernização, com estímulo à iniciativa privada, por meio de financiamentos e incentivos,

o que fez surgir um setor produtivo urbano, de base industrial e molde capitalista.

Em 1894, assinalada pelo início da transição autoritária pela sucessão de Floriano a

Prudente de Morais, segundo Albuquerque (1981, p. 528-529), há um retrocesso na área

econômica e, por conseguinte, no campo político, “com a rearticulação dos setores

agrários, cabendo ao segmento hegemônico da burguesia latifundiária, o cafeicultor, a

predominância no poder”.

Sem uma identificação própria e inspirada no modelo norte-americano, a forma

federalista ignorou o passado unitário e centralizador do país, recorrendo ao mesmo

critério de repartição de competência adotado naquele país, como se a União estivesse

subitamente recebendo poderes expressos, delegados por Estados que antes eram

independentes.

Manifestamente contrário diante da impossibilidade de tal exagero, Rui Barbosa63

num primeiro momento, ameaçou atribuir “soberania” aos Estados, identificou-lhe o

caráter desagregador, pronunciando-se na Assembleia Constituinte em dura crítica aos que

propugnavam pela quase independência dos Estados em relação à União:

Não somos uma federação de povos até ontem separados e reunidos de ontem

para hoje. Pelo contrário, é da união que partimos [...]. Grassa, por aí, um apetite

desordenado e doentio de federalismo, cuja expansão sem corretivo seria a

63 BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. v.XVII, t.I, 1946, p.146, 148; 151. Disponível em:

http://docvirt.com/docreader.net/docreader. Acesso em: 20 jul.2016.

133

perversão e a ruína da reforma federativa [...]. Ontem de Federação não tínhamos

nada. Hoje não há federação que nos baste.

Campo Sales assumiu um governo com um quadro distorcido com uma grave

debilidade da União, e com o intuito de aliar um critério mais pragmático e profícuo nas

relações intergovernamentais a um propósito de controle político, engendrou o que ele

próprio denominou de a “Política dos Estados”, que em seguida degenerou na

controvertida “Política dos Governadores”.

Com um reflexo negativo, esta política serviu tão somente para fortalecer o

predomínio dos Estados mais fortes, como São Paulo e Minas Gerais, que em seguida

converteu-se na abusiva “Política do Café-com-leite”64

. Nesse sentido, identifica Fagundes

(1982, p. 15), como “um apelo oportunista à conjugação de forças estaduais e federais, em

permuta de apoio, que predispôs à deturpação do quadro institucional”.

A concentração do poder político na órbita estadual acentuou a força dos

governadores, que eram mera expressão das oligarquias65

regionais, onde a autonomia

federativa, idealizada na superestrutura jurídica, pervertia-se na infraestrutura oligárquica e

gerava ainda um subproduto: o coronelismo, surgido na manipulação dos municípios por

chefes locais.

Acompanhando esse quadro de distorções e deformações, consequência das

mesmas causas, instituiu-se a falsificação ostensiva, continuada e permanente do sistema

de sufrágio, onde o acesso aos cargos do Poder Executivo e ao Congresso não decorria da

escolha do eleitorado, mas por imposição prévia dos partidos dominantes em São Paulo e

Minas Gerais, com participação residual de outros Estados.

Em obra clássica, Leal (1978, p. 253) analisa a questão das oligarquias e do

coronelismo:

Em estudo de profundo corte sociológico, conclui que aqueles fenômenos

decorrem da superposição do regime representativo, em base ampla, a uma

inadequada estrutura econômica e social. Por esta via, incorporou-se à cidadania

ativa um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o consciente

desempenho de sua missão política, vinculando-se os detentores do poder

público, em larga medida, aos condutores daquele “rebanho eleitoral”.

64 Sumariamente, a política do café-com-leite significava a alternância de presidentes indicados por São Paulo (produtor

de café) e por Minas Gerais (Estado onde era mais desenvolvida a pecuária leiteira) no Governo da República. Tal

política durou até 1930, quando o paulista Washington Luiz a rompeu, vetando o mineiro Antonio Carlos de Andrade

(DALLARI, 1985, p. 3). 65 Em seu significado tradicional, ligado à etimologia do vocábulo, oligarquia designa o “governo de poucos”, embora

desde o pensamento grego a mesma palavra tenha sido utilizada na acepção mais específica e eticamente negativa de

“governo dos ricos”, para o qual se usa hoje um termo de origem igualmente grega “plutocracia” (BOBBIO, 2010, p.

835).

134

A República brasileira, que desde a sua proclamação não conseguiu atingir um

nível de funcionamento institucional normal, apresentava-se sem legitimidade, um

simulacro de liberalismo. A ausência de verdadeiros partidos políticos nacionais fazia com

que, por sob um falso rótulo partidário, se dissimulasse o encadeamento personalista das

relações políticas66

, guardando as aparências democráticas, mas sem possibilitar fazer

política fora do oficialismo.

Contemporânea de uma época turbulenta, confrontada pela realidade estamental da

organização sociopolítica do país, a Constituição de 1891 não foi efetivamente uma síntese

normativa das instituições, em que o processo eleitoral descreditado pela manipulação e

pela fraude foi razão decisiva, embora não única, de seu fracasso.

Analisando a sucessão de Campos Sales, Afonso da Silva (2014, p. 106) retrata a

situação real:

Ainda uma vez, a oposição, sem força para se opor à designação presidencial,

marcava a sua posição em uma candidatura de contestação (refere-se ao

lançamento do nome de Quintino Bocaiúva), com o que salvava a aparência da

democracia. Fora assim com Lauro Sodré contra Campos Sales. Mas não haveria

propriamente uma disputa de votos. O candidato do Catete podia preparar a sua

plataforma de governo, lê-la em um banquete, aos próceres, sem precisar ir ao

encontro do povo, em uma campanha eleitoral.

No primeiro período da República, ocorreu a coloração mais acentuada da forma

federativa de estado, na dinâmica trajetória histórica do Brasil, onde os grandes estados já

possuíam mais de quarenta anos de autonomia efetiva enquanto outros eram dotados de

autonomia relativa, que os permitia governar desde que não desagradasse o governo

central.

Apesar das intervenções que ocorreram no período, muitas delas sem fundamento

verdadeiro, segundo Almeida Melo (2008, p. 256-257), “os estados podiam eleger seus

presidentes e governadores, a cada quatro anos, com exceção do Rio Grande do Sul”.

Alguns estados galgaram progresso mais acentuado do que as províncias do Império;

apesar de pobres, tiveram vida independente do poder central e deste não recebiam

assistência financeira.

66 A esse propósito, consignou Albuquerque (1981, p.536): “As alianças entre as oligarquias regionais substituíram

vantajosamente as que poderiam ser referendadas por legendas partidárias. A tentativa para por em ação alguns partidos

de âmbito nacional e que se realizaram entre os participantes do bloco de classes hegemônico careciam de diversidade

ideológica na medida em que defendiam interesses sociais não antagônicos. Desta forma, a sua existência estava limitada

ao prestígio desfrutado por chefes portadores de certo carisma político, como Pinheiro Machado e Rui Barbosa,

fundadores do Partido Republicano Conservador (1910) e do Partido Republicano Liberal (1913), respectivamente”.

135

As motivações que levaram à Revolução de 1930 são variadas. Houve desde o

apoio de Washington Luiz à candidatura vitoriosa de Júlio Prestes sobre a Aliança Liberal,

passando pela crise econômico-financeira de 1929, até o surgimento de uma nova classe

média, urbana e industrial, que se contrapunha à velha face do país, rural e agrária.

Essa pequena burguesia urbana em ascensão, em cujo contexto se inseria a jovem

oficialidade do Exército, tinha o seu ideário expresso no Tenentismo, movimento que em

seu difuso programa defendia o voto secreto, a reforma administrativa e outras teses

voltadas para a moralização das práticas políticas.

Além disso, impulsionado pela Primeira Guerra, o processo de industrialização fez

nascer nas cidades o operariado, que começou a despertar como força política. As

organizações dos trabalhadores, que antes tinham um mero caráter associativo e

beneficente, assumem o seu papel reivindicatório.

Nesse contexto, Afonso da Silva (2014, p. 34) aponta: “O movimento de 1930, a

despeito dos desvios que, posteriormente, apresentou no seu curso originário, foi a única

revolução da República, no sentido de transformação de estruturas e renovação das

instituições”. Contudo, era rasa e sem profundidade, pois representava apenas uma disputa

na classe dominante, sem maior ambição por transformações sociais mais amplas.

Em 1930 ocorreu a pseudo Revolução Liberal, haja vista que foi liberal apenas

porque tinha como aspiração suprema sanear o sistema representativo adulterado pelos

vícios da corrupção eleitoral e estabelecer tanto quanto possível a autenticidade do

processo eletivo, sob a égide de um Governo Provisório67

que agiu durante quatro anos, até

ser pressionado pela Revolução Constitucionalista de 1932, deflagrada em São Paulo.

Ao final da República Velha o descontentamento é evidente com a desprestigiada e

falida forma de governo, que privilegiava algumas classes em detrimento de outras,

período marcado por uma revolução e evolução industrial que trouxe entre suas

consequências o surgimento de duas novas classes, a do operariado e a da nova burguesia,

urbana e industrial, que demonstraram grande força no cenário político nacional.

Assim, diante de todas as transformações na sociedade, tanto no aspecto político

quanto econômico, a sociedade brasileira exige mudanças, com uma nova forma de

governo, uma nova Constituição que contivesse um conteúdo mais social e atingisse os

anseios dessas novas classes.

67 Prometida desde o Decreto que instituiu o Governo Provisório da República (11 de novembro de 1930), como já se

viu, a Assembleia Nacional Constituinte só vai ser convocada em 19 de agosto de 1933 (Decreto n° 23.102)

(CERQUEIRA, 1997, p. 64).

136

Além disso, os direitos e garantias fundamentais, ainda em formação, necessitavam

de aporte quantitativo e qualitativo. Nesse primeiro momento da história constitucional

brasileira, estes direitos não passam de meras liberdades individuais, contudo, voltadas a

uma determinada classe dominante e sem atingir a coletividade. Não era possível falar em

essencialidade destes direitos devido a sua imaturidade constitucional.

3.2.1 Da Constituição de 1934 à Constituição de 1937

Com a crise do modelo presidencialista de governo, e pressionado pela instauração

de uma nova ordem, uma Junta Governativa Militar, por meio do Decreto n° 19.398, de 11

de novembro de 1930, formalizou a transferência do poder para uma forma de Governo

Provisório, chefiado por Getúlio Vargas.

Os primeiros anos da década de 1930 espelharam o início de uma convulsão

ideológica, de graves consequências para a futura ordem constitucional brasileira, que

serviram de pano de fundo para a Constituinte de 1933-1934. A promulgação da nova

Constituição de 1934 inaugura no Brasil a terceira grande época constitucional de sua

história.

No campo das liberdades democráticas, a Constituição restringiu os Direitos

Fundamentais, com a introdução do conceito de segurança nacional que recebeu um

destaque especial, uma novidade no produto do autoritarismo da década de 1930, onde

foram reservados nove artigos à segurança nacional e apenas dois aos direitos e garantias

individuais.

Como entende Pinto Ferreira (1971, v. I, p. 112), esta “nova ordem com o governo

que era para ser provisório, perdurou até 16 de julho de 1934, quando foi promulgada a

Carta Política de 1934, cuja necessidade fora ‘dramaticamente’ acentuada pela Revolução

Constitucionalista de São Paulo, em 1932”.

Getúlio Vargas foi empossado num governo transitório, com a promessa de

convocar uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição, mas foi

preciso que os barões do café do Estado de São Paulo se rebelassem contra o governo

federal em 1932 para que a promessa fosse cumprida.

Foi concedido o estado de guerra, que implicava a suspensão das garantias

constitucionais. Havia uma obsessão pela segurança a tal ponto que o art. 163, §2°

137

dispunha que “nenhum brasileiro poderá exercer função pública, uma vez provado que não

está quite com as obrigações estatuídas em lei para com a segurança nacional”.

Inspirada pelos movimentos sociais, em especial pela Constituição de Weimar, de

1919, e pelo corporativismo, a Constituição de 1934 continha inovações e virtudes, uma

vez que dedicou um título à Ordem Econômica e Social68

, iniciando a era da intervenção

estatal, criando entre outros a Junta do Trabalho, o salário mínimo, instituindo o mandado

de segurança, acolhendo expressamente a ação popular e mantendo a Justiça Eleitoral,

criada em 1932, todos elevados ao nível da inderrogabilidade de direitos.

Com efeito, esta época foi marcada por crises, descreve Bonavides (2011, p. 366),

“golpes de Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de Presidentes, bem

como queda de governos, repúblicas e Constituições”. Em menos de um século

transformou-se não apenas as instituições, mas o pensamento político, econômico e social.

Era uma época de revoluções industriais, com o crescente êxodo rural e o

surgimento de novas formas de trabalho, predominantemente urbana, na qual foi possível

verificar uma fórmula de compromisso entre capital e trabalho69

, delineando um arcabouço

formal de uma democracia social, além de tornar obrigatório e secreto o voto a partir dos

18 anos e também o direito de voto às mulheres.

O culto do Estado forte é típico do período, uma vez que os Estados Unidos não

eram mais o modelo, mas os sistemas totalitários da Europa, que atacavam as ideias

liberais consideradas anacrônicas. Na Europa, ensina Barroso (2009, p. 20):

O racionalismo jurídico de Preuss e Kelsen, projetado em diversas

Constituições, como da Alemanha, Áustria e Espanha, ampliava o objeto do

constitucionalismo, incorporando os direitos econômicos e sociais. Tal avanço,

contudo, operava-se na esfera estritamente jurídica, incapaz de submeter o

desempenho político das instituições, que, em diversos países, afastavam-se até

mesmo da fórmula liberal clássica do Estado de direito.

Como característica dessas transformações em âmbito mundial, destaca-se o

desenvolvimento de formas alternativas de governo, contrárias ao capitalismo, e que

tinham por ideologia a ascensão de uma determinada classe em detrimento de todos,

68 Esse reluzente espelho trouxe à Constituição imagens novas de matéria constitucional: a subordinação do direito de

propriedade ao interesse social ou coletivo, a ordem econômica e social, a instituição das férias anuais do trabalhador

obrigatoriamente remuneradas, a indenização do trabalhador dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à

infância, o socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da educação e da cultura debaixo da proteção

especial do Estado (VILLA, 2011, p. 40). 69 A ressonância do social no constitucionalismo brasileiro também foi disposta no inciso IV do art. 157 da Constituição

de 1946, que preceituava a participação obrigatória e direta dos trabalhadores nos lucros da empresa, nos termos e pela

forma que a lei determinar.

138

conforme se verifica com a instalação do fascismo desde 1922 na Itália, liderado por

Mussolini.

Na Alemanha, liderado por Hitler, um povo humilhado pela Primeira Guerra, e

insatisfeito com o modelo democrático adotado por Weimar, permite a ascensão do

nazismo, por meio de um grupo que tinha por ideologia a purificação através da imposição

da raça ariana como uma raça superior às demais.

Seguindo os movimentos que marcaram este período antidemocrático, em Portugal,

assevera Franco (1968, p.88), “já se havia entronizado o salazarismo, e na Espanha, pouco

após, o franquismo tomaria o poder. Em toda parte se disseminava o sentimento antiliberal

e antidemocrático, em nome do regime de autoridade”.

Um nacionalismo xenofóbico se instalara no Brasil, decorrente do final da Primeira

Guerra, cuja preocupação era não deixar formar em seu seio núcleos estrangeiros capazes

de reivindicar a autonomia cultural ou política e de comprometer a unidade moral e

política da nação. Foram esses os fundamentos para a instalação do nazismo na Alemanha.

Em sentido contrário a estes movimentos antidemocráticos e antiliberais, a

Constituição de 1934 consolidou o ideário moralizador e liberal da Revolução de 1930, por

meio da qual as reivindicações eram muito mais econômicas e sociais que políticas,

decorrentes das lutas das classes trabalhadoras.

Com a Constituição de 1934, chega-se a uma nova corrente de princípios, como

relaciona Bonavides (2011, p. 366), que “consagravam um pensamento diferente em

matéria de direitos fundamentais da pessoa humana, a saber, faziam ressaltar o aspecto

social, sem dúvida, grandemente descurado pelas Constituições precedentes”.

O social, nesta época, assinalava a presença e a influência do modelo de Weimar

numa variação substancial de orientação e de rumos para o constitucionalismo brasileiro,

em um período complexo e tumultuado que perduraria por mais de 50 anos, em meio a

vicissitudes, abalos e contradições.

O constitucionalismo dessa época fez brotar no Brasil o modelo fascinante de um

Estado social e de inspiração alemã, atado politicamente a formas democráticas, em que a

sociedade e homem-pessoa, não o homem-indivíduo, são os valores supremos, tudo

indissoluvelmente vinculado a uma concepção reabilitadora e legítima do papel do Estado

com referência à democracia, à liberdade e à igualdade.

Mas esse Estado, em razão de abalos ideológicos e pressões, conforme descreve

Bonavides (2011, p. 368),

139

Não menos graves de interesses contraditórios ou hostis, conducentes a

enfraquecer a eficácia e a juridicidade dos direitos sociais na esfera objetiva das

concretizações, tem permanecido na maior parte de seus postulados

constitucionais uma simples utopia.

Estas transformações políticas, sociais e econômicas culminaram numa

bipolarização ideológica através de dois movimentos políticos. De um lado, a Ação

Integralista Brasileira, fundada em 1933, por Plínio Salgado, de inspiração

indisfarçavelmente fascista com uma doutrina “nacionalista, tradicionalista e autoritária”

(CAETANO, 1987, p. 562).

De outro lado, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), criada em 1935, uma “frente

anti-imperialista e antifascista”, que reunia antigos partidários da revolução de 1930,

setores liberais de esquerda e o Partido Comunista. Em razão da sua radicalidade afastou

adeptos e acarretou a prisão de inúmeros militantes levando-a à clandestinidade.

Em novembro de 1935, teve início a insurreição armada para tomar o poder,

conforme descreve Albuquerque (1981, p. 583) “de forma prematura, desarticulada e sem

apoio popular seguro, com repercussões no Rio de Janeiro, Natal e Recife”, ficando

conhecida como Intentona Comunista.

Com este movimento desorganizado surge uma das patologias políticas nacionais: a

“indústria do anticomunismo”, o pretexto para a suspensão das liberdades públicas, que

atingiu o seu apogeu na fase mais violenta do ciclo militar autoritário, iniciado em 1964.

A consequência imediata deste movimento interferiu diretamente na curtíssima

vigência da Carta de 1934, como leciona Barroso (1982, p. 21),

com um longo período de suspensão das garantias constitucionais, em especial

após a introdução das três emendas na Constituição (Decreto Legislativo n° 6, de

18.12.35), que reforçou a autoridade do Poder Executivo, que, pouco após,

declarou “Estado de Guerra”, prorrogado por um ano.

Conforme dispunha a Constituição de 1934 era vedada a reeleição do Presidente no

quadriênio imediatamente posterior, razão pela qual deflagrou-se em 1937 o processo

sucessório, com a candidatura de Armando Sales de Oliveira, ex-Governador de São

Paulo, que expressava os interesses da burguesia industrial e cafeeira daquele Estado.

De outro lado, José Américo de Almeida, político paraibano, representava alguns

dos ideais do movimento de 1930, opunha-se ao retorno à política oligárquica e

incorporava ao seu programa as reivindicações populares, enquanto Plínio Salgado,

140

lançado pelo movimento integralista, desistiu pouco tempo depois, engajando-se no

continuísmo de Vargas.

Àquela altura, conspirava-se abertamente contra a realização de eleições e já se

articulava militarmente a continuidade do governo, sob a liderança do General Góis

Monteiro, Chefe do Estado-Maior do Exército. No entanto, isso somente seria possível se

houvesse uma ruptura institucional.

No fluxo da incessante repressão iniciada com a perseguição à Aliança Nacional

Libertadora, comenta Castilho (2010, p. 104) “o golpe pretendido alicerçou-se no pretexto

mais óbvio e disponível: “o perigo comunista”, àquela altura inteiramente inexistente, pelo

encarceramento dos membros da oposição”.

Armado o cenário, a farsa foi encenada pela divulgação do falso “Plano Coben”

(corruptela de Bela Kuhn, antigo líder comunista húngaro), ficção que narrava detalhes de

uma pretensa insurreição comunista70

, cujo responsável era o então Capitão Olímpio

Mourão Filho, que mais tarde também teria papel decisivo em outro golpe contra as

instituições: o de 1964.

Para conseguir o apoio necessário, Getúlio Vargas espalhara que a Constituição era

“liberal demais” e que impedia o efetivo exercício do governo. Assim ilustra Vargas

(1938, p. 23-24):

A organização constitucional de 1934, vazada nos moldes clássicos do

liberalismo, e do sistema representativo, evidenciara falhas lamentáveis, sob esse

e outros aspectos. A constituição estava, evidentemente, antedatada em relação

ao espírito do tempo. Destinava-se a uma realidade que deixara de existir.

Conformada em princípios cuja validade não resistira ao abalo da crise mundial,

expunha as instituições por ela mesma criadas à investida dos seus inimigos,

com o agravante de enfraquecer e amenizar o poder público.

Com o apoio dos comandantes militares e sob a influência das forças ditatoriais que

se alçaram no poder na Europa, Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, dissolve o

Congresso com tropas de choque, faz uma proclamação à Nação e outorga a Carta de

1937, dando início ao “Estado Novo”71

. Com fim melancólico, expira-se a fugaz vigência

da Constituição de 1934.

70 Como ensina Cerqueira (1997, p. 65): “Ajustada a nova orientação recebida da Internacional Comunista, o Partido

Comunista Brasileiro precipita a rebelião, em novembro de 1935. Inteiramente dissociados da realidade política

brasileira, os líderes do levante cometem gravíssimo erro político, no qual se misturam fantasias sobre a situação do país,

um resíduo de antigos métodos do “tenentismo”, e a alienação de um importante setor do PCB às diretrizes de fora”. 71 A representação classista intensificou os antagonismos nas relações do exercício do poder político e justificou a

implantação de regime autoritário para aplacar as divergências insuperáveis. Os ideais da Revolução de 1930 foram

abandonados e ocorreu o Golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, com o qual foi instituído o Estado Novo

(ALMEIDA MELO, 2008, p. 257).

141

No preâmbulo da Carta de 1937, lê-se: “[...] atendendo ao estado de apreensão

criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais

profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente [...]”. Sob essa suposta

insegurança também justificou-se o Ato Institucional n° 1, de 9 de abril de 1964: “[...] os

processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo que deliberadamente

se dispunha a bolchevizar o País [...]”.

Mais uma vez, a Constituição demonstra sua fragilidade, em um período em que

para se manter no poder, todas as articulações eram possíveis, inclusive o golpe, a fim de

que a estrutura imposta em 1930 perdurasse por mais alguns anos, espelhados nos modelos

ditatoriais que se instalavam por todo o mundo, como na Itália, na Alemanha, na URSS e

em Cuba.

Com a promulgação desta Constituição em 10 de novembro de 1937, Getúlio

Vargas institucionalizou a ditadura do Estado Novo, com um modelo autoritário, embora

disfarçado de democrático. Seu principal objetivo era o de manter as condições de poder

de Getúlio Vargas.

A Constituição foi apelidada de “Constituição Polaca”, por ter sido inspirada na

Carta da Polônia72

, de 1935, um dos modelos fascistas europeus da época, sem

participação popular. Foi redigida pelo então ministro da Justiça de Getúlio Vargas,

Francisco Campos e vigorou apenas por três anos, ocasião em que o Brasil passou a se

chamar Estados Unidos do Brasil.

Entre as principais medidas da Constituição de 1937, relaciona Castilho (2010, p.

104),

Instituição da pena de morte, com a supressão da liberdade partidária e anulação

da independência dos poderes e a autonomia federativa. Permitiu a suspensão da

imunidade parlamentar, a prisão e o exílio de opositores. Estabeleceu eleição

indireta para Presidente da República, com mandato de seis anos.

Embora o texto mantivesse o regime federativo, este era meramente nominal, haja

vista que, na prática, reestabeleceu-se o unitarismo do Império, com interventores

designados pelo Poder Central, no qual o Poder Legislativo, bicameral, a ser exercido com

a colaboração do Conselho de Economia Nacional jamais chegou a se instalar.

72 Como ensina Cerqueira (1997, p. 68-69): “A Constituição da República da Polônia, em seu preâmbulo, (“Em nome de

Deus Todo-Poderoso”), agradece à Providência a devolução da liberdade, depois de um século e meio de escravidão,

promete manter, na Pátria livre e unificada, sua independência, seu poder, sua segurança, e a ordem social, respeitando os

princípios eternos do Direito e da liberdade, desejosa, ainda, de concorrer para o desenvolvimento de todas as forças

morais e materiais da renascente Humanidade, e finalmente assegurar a todos os cidadãos da República o direito à

igualdade e ao trabalho, reconhecendo seus direitos à proteção do Estado”.

142

Uma das grandes novidades introduzidas pela Constituição autoritária e

centralizadora de 1937, no âmbito do controle de constitucionalidade, constava do

parágrafo único do art. 96:

No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do

Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou

defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República

submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois

terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do

Tribunal (CARVALHO, 2013, p. 448).

Com o rompimento da independência e harmonia entre os Poderes pela atribuição

de supremacia ao Executivo, com base no art. 180, o ditador, por não se haver reunido o

Parlamento Nacional, legislou durante todo o período de sua permanência no Poder por

meio do decreto-lei73

.

O enorme passivo político do Estado Novo, marcado pela violência institucional

como instrumento de combate ideológico, empana, mas não eliminou algumas realizações

no campo econômico e social, onde teve início o primeiro estágio de nacionalização

formal da economia, bem como do controle de certas áreas de produção, como mineração,

aço e petróleo.

Fomentou-se a industrialização no setor privado, paralelamente à prestação, pelo

Estado, de serviços de infraestrutura, propiciando uma expansão capitalista, com avanços

inegáveis no campo trabalhista, com a instituição de diversos direitos e vantagens aos

trabalhadores, marcados pelo caráter paternalista da atuação governamental e do

atrelamento dos sindicatos ao poder público.

Em todo esse complexo painel, entende Barroso (2009, p. 24) que “a Constituição

não desempenhou papel algum, substituída pelo mando personalista, intuitivo, autoritário”.

Governo de fato, de suporte policial e militar, sem submissão qualquer à Lei Maior, que

73 Era mais amplo o arsenal ditatorial. O art. 177, que revê sua eficácia indefinidamente prorrogada, permitia a

aposentadoria e a reforma de qualquer funcionário civil ou militar, por juízo discricionário do “Governo” (SIC). O

“Estado de emergência”, declarado pelo art. 186, suspendendo direitos e garantias individuais, só foi revogado após a

deposição do Presidente, pela Lei n°16 de 30 de novembro de 1945. Com a extinção dos partidos políticos, o único

mecanismo de ação ideológica operante era o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Estabeleceu-se a censura

aos meios de comunicação, instituiu-se a pena de morte e proibiram-se as greves. Criou-se o Tribunal de Segurança

Nacional, colegiado de exceção manipulado para a intimidação de adversários. Remonta a este período a introdução da

tortura como instrumento de repressão política. Simboliza esta época obscura a entrega de Olga Benário, mulher de Luís

Carlos Prestes, à Gestapo Nazista, vindo a mulher do líder comunista a ser morta em um campo de concentração. Sobre

este episódio, veja-se o candente relato de Fernando Moraes (Olga, 1985). Para um instigante retrato literário da

perseguição política do Estado Novo, confira-se a obra clássica de Graciliano Ramos, Memórias do cárcere.

(BARROSO, 2010, p. 23).

143

não teve vigência efetiva, salvo quanto aos dispositivos que outorgavam ao Chefe do

Executivo, poderes excepcionais.

O desgaste político gerado em função do Estado Novo foi de certa forma atenuado

pela ocorrência da Segunda Guerra Mundial, em curso desde 1939. Após uma

ambiguidade inicial, o Brasil ingressou no conflito em 1942, sob a influência dos Estados

Unidos, que se haviam envolvido no ano anterior.

Contudo, havia uma resistência interna que se opunha ao regime, e com o desfecho

da Segunda Guerra em 1945, aumentou-se o cerco em torno da ditadura. Desta forma,

Vargas deu início a uma série de medidas liberalizantes, a partir da Lei Constitucional n°

9, de 28 de fevereiro de 1945, que alterou profundamente a feição da Carta de 1937.

Pela primeira vez na experiência brasileira fora anunciada a convocação de eleições

gerais, nas quais os partidos políticos organizaram-se em âmbito nacional, e mesmo não se

identificando com um lastro ideológico mais profundo, representavam diferentes

segmentos da sociedade74

.

Em meio à politização resultante da abertura do regime e já deflagrada a campanha

à sucessão presidencial75

, fortalecia-se pelo apoio de Vargas, o eclético movimento

político denominado de Queremismo, que defendia a permanência do ex-ditador no poder.

A repercussão popular desta iniciativa fez com que se temesse pelo efetivo desdobramento

do processo eleitoral.

Para que isto não acontecesse, em 29 de outubro de 1945, as Forças Armadas

lideradas pelo General Góis Monteiro intervieram num golpe de força, mas sem violência,

e depuseram o Presidente, que se retirou para São Borja. Houve a convocação da

Assembleia Constituinte em 12 de novembro de 1945, eleita em 2 de dezembro seguinte.

Nesta mesma data, fora sufragado o novo Presidente General Eurico Gaspar Dutra,

encerrando o ciclo da Carta de 1937, que jamais teve vigência regular e efetiva,

desfazendo o sonho de seu artífice, o jurista Francisco Campos, de institucionalizar no

Brasil um governo forte e corporativista.

74 Surgiram, a partir daí, mais de trinta partidos políticos. Apenas alguns deles tiveram alcance nacional, com destaque

para três, a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro

(PTB). Na UDN se agrupavam os principais setores de oposição ao Estado Novo em torno de um discurso liberal e de

interesses que tinham apelo, sobretudo na classe média urbana. O PSD congregou as situações estaduais, lideradas pelos

interventores nomeados por Vargas, bem como os chefes políticos do interior. O PTB articulou-se com base nas

reivindicações trabalhistas, fortemente marcado, na sua gênese, pela atividade sindicalista oficial. Sintomaticamante, a

figura carismática e ambígua de Vargas ligava-se tanto ao PSD como ao PTB, havendo sido presidente de honra de

ambos os partidos. Com a libertação de Prestes, em 1945, iniciou-se um breve período de legalidade do Partido

Comunista. Os integralistas se reuniram no Partido de Representação Popular (PRP). (BARROSO, 2009, p. 24). 75 Apresentaram-se como candidatos à Presidência da República: o Brigadeiro Eduardo Gomes, pela UDN; o General

Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD; e o engenheiro Yedo Fiúza, pelo PCB.

144

3.2.2 Da Constituição de 1946 e o pós-guerra

A Carta Política promulgada em 18 de setembro de 1946 foi contemporânea de

uma fecunda época de construção constitucional em todo mundo. Após o fim da Segunda

Guerra, diversos Estados tornaram-se independentes, elaborando seus estatutos

fundamentais, e outros tantos, findos os regimes ditatoriais, reordenavam suas instituições.

Acerca da elaboração dos novos pactos sociais, conforme noticia Franco (1976, p.

171) “entre 1946 e 1949, vinte e um países editaram novas Constituições, sem contar a

América Latina, onde oito Estados inauguraram novas Leis básicas ou reformaram a fundo

as existentes”. Externamente, três foram as principais fontes de influência na elaboração da

nova Carta.

Primeiro, a Constituição norte-americana, ainda uma vez, serviu de estampa para a

moldagem do federalismo; na Constituição francesa de 1848, procurou colher certa

atenuação para a rigidez do sistema presidencialista, notadamente quanto ao

comparecimento de ministros de Estado ao Congresso; por fim a Constituição de Weimar,

que inspirou a inclusão de princípios afetos à ordem econômica e social.

O tempo da Constituição de 1946 foi a melhor fase do federalismo brasileiro,

conforme observa Trigueiro (1985, p. 147-175):

Os estados adquiriram autonomia, ainda quando governados por adversários do

partido que ocupava a Presidência da República. Os fatores determinantes dessa

evolução foram a garantia do voto secreto, controlado pela Justiça Eleitoral, que

impediu o desmoralizado expediente de dualidade de governos, que estava a

justificar a intervenção, bem como a multiplicidade dos partidos, que tornava

impossível ao Congresso fazer intervenção arbitrária e inconciliável com a

Constituição.

Os países alinhados com o nazismo, governados por ditadores, foram derrotados. A

ditadura de Getúlio Vargas também foi pressionada e o Estado Novo foi encerrado com a

deposição de Getúlio. Para ocupar a presidência foi chamado, pelas Forças Armadas, o

presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares que ficou no cargo durante apenas

três meses, entre outubro de 1945 e janeiro de 1946.

Após a realização das eleições para presidente, curiosamente, como afirma Castilho

(2010, p. 105), venceu o candidato Eurico Gaspar Dutra, “com apoio do próprio Getúlio

Vargas que ele havia ajudado a derrubar”. Com a promulgação da nova Constituição em

145

18 de setembro de 1946, o Brasil novamente muda de nome e passa a se chamar República

dos Estados Unidos do Brasil.

Entre as mudanças introduzidas por meio da Carta de 1946, no que tange aos

direitos individuais76

, destaca-se a volta de alguns dispositivos básicos constantes da Carta

de 1934, suprimidos pela Carta de 1937, entre eles: igualdade de todos perante a lei;

liberdade de manifestação de pensamento, sem censura, a não ser em espetáculos e

diversões públicas; inviolabilidade do sigilo de correspondência, reafirmando a

necessidade de um núcleo inderrogável de direitos em valorização à pessoa humana.

Impulsionada pelas transformações do pós-guerra, e com a crescente valorização do

homem, apresentou ainda avanços quanto à liberdade de consciência, de crença e de

exercício de cultos religiosos; liberdade de associação para fins lícitos; inviolabilidade da

casa como asilo do indivíduo; garantia de prisão somente em flagrante delito ou por ordem

escrita de autoridade competente e a garantia ampla de defesa do acusado.

Além disso, com o novo paradigma da política mundial, que valorizava a liberdade

de expressão e o direito fundamental à vida, extinguiu a censura e a pena de morte;

devolveu a independência dos três poderes, a autonomia dos estados e municípios e

estabeleceu a eleição direta para presidente da República, com mandato de cinco anos77

.

A Constituição de 1946, no magistério de Villa (2011, p. 72), entre as mudanças

propostas contemplou

novamente a mudança da capital para o Planalto Central. Essa disposição acabou

sendo cumprida 14 anos depois em 1960. Os estados e municípios voltaram a

poder ter símbolos próprios. Os indígenas receberam destaque pelo artigo 216,

com redação parecida com a da Constituição de 1934, onde o Constituinte

insistiu que a posse das terras indígenas está vinculada a uma localização

permanente, portanto, indígenas nômades estariam excluídos.

Na estrutura típica do constitucionalismo burguês, buscou um pacto social apto a

conciliar a nova fórmula de compromisso, os interesses dominantes do capital e da

76 Em sua face mais virtuosa, a Carta de 1946 continha ampla e moderna enunciação dos direitos e garantias individuais,

bem como de regras atinentes à educação e à cultura e, muito especialmente, dos princípios que deviam reger a ordem

econômica e social. Foi sua a inovação de introduzir no texto constitucional a regra de que a lei não poderia excluir da

apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual (art. 141, §4°). Previu a obrigatoriedade do ensino

primário (art. 188, I), a repressão ao abuso do poder econômico (art. 148), condicionou o uso da propriedade ao bem-

estar social (art. 147) e consignou o direito dos empregados à participação no lucro das empresas (art. 157, IV), dentre

outras medidas de caráter social. (BARROSO, 2009, p. 27). 77 Precisamente pela sua amplitude, a Constituição de 1946 viveu o grande drama dos textos prolixos e pleonásticos: ser

cumprida. Pecou na efetividade (eficácia social), não correspondendo, inteiramente, às exigências e aspirações de seu

tempo, embora tenha desempenhado o importante papel de restaurar, dentro dos limites do possível, o regime

democrático. (BULOS, 2009, p. 34).

146

propriedade com as aspirações emergentes de um proletariado que se organizava e que

ansiava pela concretude dos direitos e garantias conquistados por meio da Constituição.

Politicamente, a nova ordem timbra-se pelo liberalismo, em coloração

conservadora, que segundo Saldanha (1983, p. 195) era “tingida de social”. Exaltada pela

doutrina como a melhor de nossas Cartas, a Constituição de 1946 merece análise dúplice.

Como instrumento de governo, ela foi deficiente e desatualizada, desde a sua promulgação.

Como declaração de direitos e de diretrizes econômicas e sociais, foi ágil e avançada.

Com efeito, no que se relacionava à estrutura e ao funcionamento dos Poderes,

praticamente nada inovou, mantendo, substancialmente, o molde da Carta de 1891, que

teve como consequência uma grave letargia no processo de elaboração legislativa,

causando um descompasso entre a capacidade técnica e material de legislar do Congresso e

as exigências da vida nacional, sobretudo no campo da economia.

No momento em que todo o mundo alargava a competência do Executivo em razão

dos abusos cometidos no período anterior, o constituinte de 46 teve restringido o

desempenho, notadamente na área da produção legal, com uma produção morosa e

insatisfatória.

A rigidez, no processo de elaboração das leis, por meio do Legislativo, conforme

explica Barroso (2009, p. 26), “gerou a distorção, com a invasão da esfera de reserva legal

por atos normativos subalternos, gestados no Executivo, sem controle do órgão de

representação popular”.

Ao ângulo da realização da justiça social acenada pela Carta de 1946 (art. 145)

faltou substancial efetividade, notadamente pela não edição da maior parte das leis

complementares por ela previstas. Esta omissão impediu que se integrasse, na extensão

adequada, o seu sistema de garantias e direitos e se concretizassem as várias regras

programáticas nela inseridas.

Sob o prisma político, no entanto, o período iniciado em 1946, e que resistiu a

todas as turbulências até abril de 1964, foi o único até então, na história brasileira que

permitiu certa autenticidade no processo representativo, com a presença de partidos

políticos de âmbito nacional e o equilíbrio estabelecido entre os Poderes do Estado que

assegurou pleitos menos marcados pela fraude.

Entre as crises ocorridas, segundo Saldanha (1983, p. 172), foram “nascidas da

crônica incapacidade de absorção institucional da divergência e de um germe golpista que

contaminara os segmentos políticos que não se haviam afirmado eleitoralmente desde o

147

fim do Estado Novo”. A que talvez mereça maior destaque está na disseminação,

equivocada, de fazer da oposição um destrutivo combate às instituições.

Sob o prisma e a conjuntura da guerra fria78

, o governo de Dutra foi marcado pela

cassação do registro do Partido Comunista, que elegeu um senador e quinze deputados

federais no qual a intolerância ideológica e o aparato autoritário culminaram com o

cancelamento do registro do partido, pelo Tribunal Superior Eleitoral, em 7 de maio de

1947.

Com uma base eleitoral fixada no que ficou denominado de ‘populismo

nacionalista’, Getúlio Vargas vence seu oponente, o Brigadeiro Eduardo Gomes, lançado

uma vez mais pela UDN, sobre uma plataforma de proteção ao trabalhador e de defesa da

economia nacional79

. Esta fase foi veemente combatida por diversos segmentos militares e

pela burguesia industrial e financeira, tanto nacional quanto estrangeira.

Progressivamente, o governo foi se desgastando e ficando isolado, como aponta

Albuquerque (1981, p. 609):

à esquerda, sofria a contestação ao trabalhismo oficial, em particular ao seu

assistencialismo paternalista e ao controle exercido sobre as práticas sindicais,

estigmatizado como peleguismo. À direita, uma campanha intensa, contínua e

virulenta, liderada pelo jornalista e Deputado Carlos Lacerda, denunciava a

corrupção administrativa, o tráfico de influências e facilidades concedidas ao

jornal situacionista Última Hora.

Este período também fora marcado por um atentado contra Lacerda, em 4 de agosto

de 1954, que vitimou o major Rubens Vaz. A investigação realizada pelos oficiais da

Aeronáutica implantou um verdadeiro poder paralelo, denominado de República do

Galeão, que conduziu ao comprometimento do chefe da guarda pessoal do Presidente.

Incitado a renunciar, sob pressão militar e de parcela influente da opinião pública,

Vargas pratica o seu último gesto político: suicidou-se em 24 de agosto de 1954. Como

anota Barroso (2009, p. 29), “em sua carta-testamento, o espelho da complexa

personalidade do homem que por 19 anos dirigiu o país: o sincero sentimento da causa

78 Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e URSS travam uma corrida armamentista que tem como base

a detenção da tecnologia da bomba de urânio enriquecido, que dizimou Hiroshima. Essas mesmas potências também

intensificam a polarização entre capitalistas e comunistas, que culminou com um dos símbolos mais bizarros e fortes

dessa luta, o muro de Berlim, criado em 1961, numa tentativa esdrúxula de evitar que os alemães da Alemanha Oriental

(comunista) migrassem para a Alemanha Ocidental (capitalista), e que perduraria por mais de 27 anos (FOLLET, 2014,

p.197). 79 Após longa e convulsionada campanha, foi criada, em 1953, a Petrobras, instituindo-se o monopólio estatal da

exploração, refino e transporte do petróleo. Em 1952 fora criado o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico. Em

1954, Vargas encaminhou ao Congresso mensagem criando a Eletrobras, só aprovada anos depois. (BARROSO, 2009, p.

28).

148

popular comungado com uma postura messiânica, personalista; o chefe que se supunha

acima da estrutura coletiva e das forças sociais”.

A morte de Vargas causou uma enorme comoção popular, provocando o refluxo da

ascensão conservadora e adiando por dez anos o golpe que se delineara, congregando o

poder militar a lideranças políticas civis, agrupadas, principalmente, na UDN. O Vice-

Presidente Café Filho assume a chefia do Governo para completar o mandato.

Em 1955 fora eleito para presidência da República o candidato do PSD, Juscelino

Kubitschek80

, cuja candidatura sofrera forte oposição dos chefes militares, que nele viam o

continuísmo do populismo getulista, especialmente pela presença de João Goulart, do PTB

e ex-Ministro do Trabalho de Vargas, compondo a chapa vitoriosa como Vice-Presidente,

dando início a uma nova crise.

O sistema presidencialista representativo passou por uma das mais sérias crises,

desde a sua implementação. Imediatamente após o resultado das eleições, iniciou-se uma

conspiração contra a posse dos eleitos, a pretexto de que não havia obtido a maioria

absoluta dos votos. Contudo, tal exigência não constava na legislação.

Em 3 de novembro seguinte, Café Filho sofreu um enfarte e afastou-se do cargo,

sendo substituído por Carlos Luz, Presidente da Câmara dos Deputados, que foi declarado

impedido pelo Congresso e sucedido por Nereu Ramos, Presidente do Senado. Este último

governou sob estado de sítio até a transmissão do cargo. Café Filho, reestabelecido da

enfermidade, foi impedido de reassumir81

.

Interessante registro histórico, como observa Barroso (2009, p. 30), é o voto do

Ministro Nelson Hungria:

Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma

contra-insurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita

pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa

inócua declaração de princípios, expedir mandato para cessar a insurreição [...].

O impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes de

ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurreicionais do Exército,

contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica. Não conheço o pedido de

segurança.

80 Concorreram ao pleito três outros candidatos: Juarez Távora, pela UDN (e, também pelo PDC e PL); Ademar de

Barros, pelo PSP; e Plínio Salgado pelo PRP. 81 Café filho, na mesma data em que votado seu impedimento pelo Congresso (Resolução n° 21, de 22.11.55), impetrou

mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de que lhe fosse assegurado “o pleno exercício de suas

funções e atribuições constitucionais de Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil”. O STF, por maioria,

decidiu “sustar o julgamento até que seja (fosse) suspenso o estado de sítio”. Tal decisão, na prática, importava em

denegar a segurança, pois, notoriamente, o estado de sítio duraria até a expiração de seu mandato, quando estaria

prejudicada a ordem requerida (BARROSO, 2009, p. 29).

149

Juscelino Kubitschek toma posse em 31 de janeiro de 1956, sob uma forte

hostilidade da oposição civil e do ressentimento militar. Seu governo realizou-se com

relativo equilíbrio e ampla aceitação popular, mesmo mantendo intactas as estruturas de

estratificação social, realizando com êxito um programa de governo marcado pelo

desenvolvimento, em um plano de metas que foi em larga medida atingido.

A industrialização, nutrida por investimentos de infraestrutura, principalmente nos

setores de energia e transportes, e por capitais estrangeiros, consolidou o processo de

substituição de importações, em expressivo crescimento da renda nacional, e deixou como

símbolo desta capacidade empreendedora, a construção de Brasília.

Não obstante, a oposição ao seu governo tomava contornos alarmantes. Nos

círculos políticos, à esquerda, condenava-se a sua inércia na questão fundiária e a

internacionalização da economia, o que gerou um capitalismo dependente, além de

aumentar a dívida externa do Brasil a números astronômicos para que essa fase de

desenvolvimento acontecesse.

De outro lado, à direita, através do bloco udenista-militar capitalizava o

descontentamento que resultava do crescimento da inflação e na consequente alta do custo

de vida, acrescentando-lhe o discurso da moralização administrativa, o que foi agravado

pelo fato de que o modelo econômico adotado reforçou a hegemonia centro-sul,

intensificando as disparidades regionais.

A vitória de Jânio Quadros, candidato da oposição82

nas eleições presidenciais de 3

de outubro de 1960, decorreu de um discurso reformista, mas de lastro conservador,

baseado essencialmente na moralização administrativa. Como líder da nação, se impôs na

condição ao poder das forças políticas que se represaram desde 1945 comprimidas pelo

fracasso eleitoral.

O principal defeito instrumental da Constituição de 1946, descreve Franco (1976,

p.172), estava na “possibilidade de eleição de Presidente e Vice-Presidente de chapas e

partidos diferentes”. A inconveniência era patente, mas os fatores estruturais mais

complexos conduziam a um inevitável colapso institucional. Assim ocorreu em 1960, com

a eleição de João Goulart, do PTB, num evidente paradoxo.

Mesmo com o apoio popular, o governo de Jânio Quadros não resistiu a sete meses,

levando à renúncia do presidente. Como o Vice-Presidente estava em visita oficial à China,

82 O Presidente eleito, apoiado pela UDN e pelo PDC, obteve quase seis milhões de votos. Seu principal adversário, o

General Henrique Lott, com o suporte de Juscelino e de uma coligação de Partidos (PTB, PSD E PSB) não foi além dos

dois milhões de votos. Concorreu ainda, sem votação expressiva, Ademar de Barros, pelo PSP.

150

quem assumiu o cargo foi o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili,

instalando assim uma nova crise, com o mesmo fundamento de situações anteriores: a falta

de amadurecimento do país.

João Goulart teve sua posse vetada pelos ministros militares, o que prenunciava o

golpe em curso contra as instituições. Em defesa da legalidade constitucional, vários

setores trabalhistas, e diversos governadores estaduais, em especial o do Rio Grande do

Sul, Leonel Brizola, apoiado pelo III Exército, conduziram ao impasse que ameaçou à

guerra civil.

Em fórmula transacional, mudou-se o sistema de governo, por meio de uma

emenda constitucional parlamentarista (Emenda Constitucional n° 4, de 2 de setembro de

1961, intitulada Ato Adicional83

), que ascendeu Goulart à presidência, despojado, contudo,

de parcela ponderável de poderes inerentes ao cargo.

Como documento de transição a Carta de 1946 ficou obsoleta ao longo dos seus

anos de vigência, conforme elucida Castilho (2010, p. 105), “passaria apenas por uma

reforma em 1961, que fez com que fosse adotado o regime do parlamentarismo, mas que

fora anulado por plebiscito em 1963, que restaurou o regime presidencialista”.

A conspiração visando à deposição do Presidente começou a se articular antes

mesmo de sua posse. Em sua face mais visível, o golpe militar deflagrado em 31 de março

de 1964 tinha como causas imediatas o clima de instabilidade política e econômica,

marcado por greves sucessivas e generalizadas, e a subversão da hierarquia militar,

detectada em movimentos de praças, sargentos e oficiais de baixa patente84

.

Um quadro político complexo e turbulento estava instaurado, no qual o Presidente

não liderava, que teve como consequência uma crescente influência de militares e

simpatizantes comunistas (a despeito da ilegalidade formal do Partido), inquietando os

setores conservadores, notadamente militares, formados no ideário do anticomunismo.

Foram anunciadas reformas de base que despertaram a oposição burguesa

industrial, financeira e comercial. Além disso, a atuação das ligas camponesas no nordeste

e o ensaio de uma reforma agrária fomentavam o antagonismo de usineiros e proprietários

83 Visando resolver a crise política deflagrada com a renúncia do Presidente da República, introduzindo o regime

parlamentar de governo, como forma de garantir a posse do Vice-Presidente da República, no cargo de Presidente, ante a

resistência militar, era artificial e programático, sem tradição nem respaldo popular (ALMEIDA MELO, 2008, p. 259). 84 Diagnosticando as razões dos excessos cometidos, assinalou Albuquerque (1981, p. 634): “Se era verdadeiro que o

alargamento do âmbito de discussão dos problemas nacionais promovia demonstrações de imaturidade política, este era o

preço inevitável à menoridade em que os setores populares haviam sido tradicionalmente mantidos”.

151

rurais, colimando com a política nacionalista de restrição ao capital estrangeiro

consubstanciada pela Lei nº 4.131/62.

Durante o ano de 1962, a campanha para as eleições gerais intensificou o debate da

devolução do regime presidencial ao governo, no interesse do Presidente da República, por

significar a devolução da competência que pertencia ao cargo para o qual foi eleito, com

apoio partidário e sindical. No referendo, o regime parlamentar recebeu votação contrária

da maioria esmagadora do eleitorado.

Assim, as discussões doutrinárias foram postas, sobre a necessidade de uma nova

Emenda Constitucional, como afirma Almeida Melo (2008, p. 260):

Para concretizar a decisão popular, considerou-se que o resultado do referendo

era imediatamente aplicável, pois traduzia a manifestação direta do povo contra

o Ato Adicional e determinava a repristinação do texto original da Constituição.

A intervenção ostensiva de empresas estrangeiras85

e agentes diplomáticos,

militares e de inteligência norte-americanos, regulamentada em janeiro de 1964, como

aponta Barroso (2009, p. 33), encontrou identificação na imprensa “que fazia contundente

contestação ao governo, canalizando o sentimento da classe média, sempre a mais sensível

às oscilações de seu status quo”.

A promiscuidade das relações políticas, em prejuízo da autoridade e da disciplina,

com o fortalecimento exagerado das lideranças sindicais e o prestígio desmesurado das

patentes mais baixas das Forças Armadas, em detrimento dos comandantes, determinou o

enfraquecimento do governo.

Os interesses internacionais foram contrariados pela intensificação de movimentos

nacionalistas, e como ensina Almeida Melo (2008, p. 260), “o patrimônio foi considerado

sob a ameaça de desapropriação mediante indenização em títulos da dívida pública, sob o

pretexto da reforma agrária e da construção de açudes para resolver problemas regionais”.

Sem uma base de apoio sólida, e deparando-se com forças poderosas, homogêneas

e articuladas, o Presidente foi tragado pelos acontecimentos, envolvendo-se numa

radicalização retórica, muitas vezes insuflada pela manipulação da reação, irrompendo o

85 Numa mistura de nacionalismo xenofóbico com segurança nacional, o artigo 91 parágrafo único, determinava que a

“lei especificará as áreas indispensáveis à segurança nacional, regulará sua utilização e assegurará, nas indústrias nelas

situadas, predominância de capitais e trabalhadores brasileiros”. O artigo 89 transformou a segurança nacional em

responsabilidade de todos os cidadãos: “Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos

limites definidos em lei”.

152

movimento militar. A legalidade constitucional não encontrou quem a defendesse em 1° de

abril.

Com a tomada do poder pelos militares, apesar de manterem a Carta em vigor,

criaram uma normativa paralela, supraconstitucional, denominada de Ato Institucional de

9 de abril de 196486

, baixado pelos comandantes-em-chefe das três Armas, que inaugurou

a nova ordem.

Entre as medidas adotas por essa nova ordem, sublinha-se: eleição indireta do

Presidente; suspensão das garantias de vitaliciedade e estabilidade; possibilidade de

demissão, dispensa ou aposentadoria de serviços públicos federais, estaduais e municipais;

possibilidade de cassação de direitos políticos e de mandatos legislativos, dentre outras

medidas de caráter discricionário.

O regime militar, na visão de Villa (2011, p. 78), “constitucionalizou parte da

legislação arbitrária que tinha produzido”. De acordo com o artigo 151 da Carta de 1967,

aquele que abusar dos direitos individuais [...] e dos direitos políticos, para

atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na

suspensão destes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo

Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da

República, sem prejuízo da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente, a

mais ampla defesa.

Sob o rótulo de “subversivos ou corruptos”, iniciou-se uma intensa repressão,

disseminada e anárquica, aos adversários da véspera, onde a intolerância política, acirrada

pela vitória de oposicionistas aos governos estaduais da Guanabara e Minas Gerais,

culminou com a edição do Ato Institucional n° 2, de 27 de outubro de 196587

.

A crise instalada pela eleição de opositores para governos estaduais também teve

reflexo no Ato Institucional n° 3, de 5 de fevereiro de 1966, que tornou indireta a eleição

dos Governadores de Estado e atribuiu a estes a nomeação dos Prefeitos dos Municípios

das Capitais.

Em dias de desmando e prepotência, as instituições entraram em colapso, a

legitimidade, já contestável, esvaiu-se e a autocracia se instituiu. Sob o peso de três atos

86 O Ato Institucional de 9 de abril de 1964, em face da edição posterior de outros Atos, passou a ser identificado como o

de n° 1. 87 O Ato Institucional n° 2 reafirma a vigência da Constituição de 1946, na qual introduzia, dentre outras as seguintes

modificações: alargamento da jurisdição dos tribunais militares; eleição indireta do Presidente da República; atribuição

do poder permanente ao Presidente da República de suspensão dos direitos políticos por dez anos e de cassação de

mandatos; extinção dos partidos políticos existentes; exclusão da apreciação do Poder Judiciário dos atos práticos com

base nos diplomas revolucionários, prorrogação, por mais um ano, do mandato do Presidente em exercício; atribuição ao

Presidente para baixar atos complementares e decretos-leis.

153

institucionais, vinte emendas constitucionais e cerca de quarenta atos complementares,

desabou a Constituição de 1946.

3.2.3 Da Constituição de 1967 à Emenda Constitucional n°01/69

O ciclo inaugurado em 1° de abril de 1964 reivindicou para si o título de

Revolução88

, como se depreende já no Preâmbulo do Ato Institucional n° 1. Contudo, esta

designação é imprópria, mas compreensível nas circunstâncias, uma vez que todo poder

recém-instalado, principalmente quando obtido por vias de fato, tem por comportamento

natural assim justificar-se historicamente.

Entretanto, do ponto de vista da ciência política e da filosofia, uma revolução se

caracteriza pela ruptura de uma determinada ordem institucional, com a radical

transformação da estrutura política e econômica, e num sentido ainda mais profundo, com

a inversão das forças sociais predominantes.

Tais características não se verificaram a partir de 1964, pelo contrário, sintomas de

movimento revolucionário poderiam ser detectados, ainda que de forma difusa, na atuação

do governo então deposto, e que pautado nas mazelas criadas pelas próprias instituições e

por seus administradores, deixaram lacunas que foram, ao menos na teoria

complementadas pelo regime imposto.

O que se pode constatar quanto aos indicadores econômicos e sociais, relaciona

Barroso (2009, p. 34), é que o período ditatorial,

Exibiu indicadores econômicos positivos e custos sociais dramáticos. Inserido na

economia mundial como um dos dez grandes produtores de riquezas, o Brasil

convivia e continua a conviver com índices sofríveis em áreas como educação,

habitação e saúde. A inapetência política para enfrentamento da questão agrária

acentuou os problemas urbanos, que em sua ponta mais visível se manifestam na

criminalidade e na violência em geral.

No plano institucional, o exercício autoritário do poder desprestigiou e enfraqueceu

os órgãos de representação política e afastou da vida pública as vocações de toda uma

88 A seguinte passagem do Ato Institucional n° 1 é bastante esclarecedora sobre a pretensão de legitimidade dos

militares: “Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo

anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder

Constituinte. Ela edita normas jurídicas, sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes

da Revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu

nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular”.

154

geração. O processo de amadurecimento democrático, de consciência política e de prática

da cidadania ficaria estagnado por mais de 21 anos.

Sobre o período referente à ditadura, afirma Bahia (2012, p. 102-103), que apesar

de os militares quererem dar um caráter democrático “ao seu golpe e ao regime instaurado,

o fato é que o País padeceu 20 anos de atraso no desenvolvimento político-democrático,

atraso este que ainda cobra seu preço nos dias de hoje, uma vez que perdemos a

continuidade de uma cultura política liberal”.

Foi um enorme passo atrás em relação às Constituições de 1891, 1934 e 1946,

retirando dos cidadãos a eleição direta do Presidente da República. De acordo com

Sarasate (1967, p. 103), um dos autores do anteprojeto da Constituição, “Carlos Medeiros

justificou que o traumatismo da campanha pela eleição direta ou degenera o processo

eleitoral ou impede o vencedor de governar em clima de paz e segurança”.

Em 11 de abril de 1964, em cumprimento ao disposto no Ato Institucional n° 1, o

Congresso Nacional elegeu o Marechal Humberto Castelo Branco para concluir o mandato

do Presidente deposto, que expirava em 31 de janeiro de 1966, com o compromisso de

realizar eleições para sua sucessão.

Em 1965, editou o Ato Institucional n° 2, que declarou extinto o pluripartidarismo,

permitindo o funcionamento de apenas dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional

(Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1966, Castelo Branco fechou

o Congresso Nacional, como forma de coação para que os congressistas aprovassem a

Constituição de 1967, que instituía oficialmente o regime militar.

Desejoso de transmitir o cargo a seu sucessor já sob a égide da nova Carta, e

considerando que a legislatura em curso findar-se-ia em 31 de janeiro de 1967, Castelo

Branco baixou o Ato Institucional n° 4, de 7 de dezembro de 1966, convocando

extraordinariamente o Congresso Nacional para votar, até 24 de janeiro, o anteprojeto de

Constituição remetido pelo governo.

Após a edição de tão farta legislação revolucionária, a manutenção da Constituição

de 1946, desfigurada e irreconhecível, já não tinha razão de ser. Como aponta Castilho

(2010, p. 106), “a Constituição foi imposta, em 15 de março de 1967, sendo uma das mais

autoritárias da história, e que novamente mudou o nome do Brasil para República

Federativa do Brasil”.

Traço marcante da nova Carta foi a concentração do poder, em sentido vertical e

horizontal, onde as rendas e competências reuniam-se na União, com o esvaziamento dos

155

Estados e Municípios, que viram minguar sua autonomia pela dependência política e

financeira implantada.

No âmbito da União, como ilustra Barroso (2009, p. 36), “o Poder Executivo se

hipertrofiava, notadamente pela subtração da iniciativa do processo legislativo ao

Congresso em todas as matérias de relevância”. Contudo, é possível observar pequenos

avanços como a desapropriação de terras mediante o pagamento de indenização por títulos

da dívida pública, para fins de reforma agrária e a definição com maior amplitude dos

direitos dos trabalhadores.

Quando da posse do Marechal Artur da Costa e Silva, escolhido indiretamente e

por imposição militar para suceder Castelo Branco, a Carta de 1967 já estava em vigor.

Com a expectativa de que o movimento militar já tivesse esgotado o ciclo discricionário

para institucionalizar-se em um Estado de Direito, foi editado o Ato Institucional n° 5,

fruto de uma crise entre o Governo e o Congresso, motivado pelo discurso do Deputado

Márcio Moreira Alves.

Do plano foi utilizada a competência conferida pelo novo diploma ao Presidente da

República para decretar o recesso do Congresso Nacional. Além disto, o AI n° 5, que

representou a mais exacerbada manifestação de poder autoritário na República, introduziu

medidas89

paralelamente à ordem constitucional e acima dela.

Chegou-se, então, à ditadura plena, com censura à imprensa, embora sem lastro

legal, mas como prática disseminada. A tortura aos adversários políticos, geralmente

presos de forma ilegal, dando assim, início a um ciclo dramático, que reprimia a atividade

partidária e que politizou as Forças Armadas.

Este período de ascensão militar, como ensina Ferreira Filho (2015, p. 235), foi

denominado “tentação militar. Enredada na disputa do poder, as Forças Armadas falseiam

o jogo democrático porque não podem perder, ou melhor, não perdem nunca. Divididas em

facções, a desordem que geram é a pior possível”.

O ano de 1968 marca, também, o dramático seguimento da resistência armada ao

regime militar90

, composta por estudantes universitários, duramente reprimidos no período

89 Alteração da competência do Executivo para legislar quando do recesso dos órgãos legislativos de qualquer dos três

níveis de governo; possibilidade de intervenção federal nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na

Constituição; poder do Presidente da República de suspender direitos políticos e cassar mandatos eletivos de todos os

níveis; suspensão das garantias da magistratura; possibilidade de confisco de bens; suspensão do habeas corpus nos

casos de crimes políticos e outros; exclusão da apreciação judicial dos atos praticados com base no Ato Institucional que

se editava, bem como de seus Atos Complementares. (BULOS, 2009, p.136). 90 Aqui faz-se referência específica à guerrilha urbana. Anteriormente, houve um foco guerrilheiro na Serra do Caparaó,

inspirado na luta revolucionária de Fidel Castro, em Cuba. Outra tentativa revolucionária, conduzida pelo PC do B

156

imediatamente anterior, que refletiam com as especificidades locais as inquietações

estudantis que agitavam a França do General De Gaulle.

A sequência trágica desta história é marcada por crimes diplomáticos, como o

sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em 1969, que tinha como objetivo

a troca por presos políticos. Contudo, esses movimentos multifacetados e divididos

fracassaram, destroçados por violenta e aparatosa repressão policial-militar, sem conseguir

mobilização popular.

Vitimado por grave moléstia, Costa e Silva deixa o exercício da Presidência, e seu

substituto constitucional Pedro Aleixo é impedido de assumir pelos três Ministros

militares, que, em golpe de força, editam o Ato Institucional n° 12, de 31 de agosto de

1969, investindo-se ilegitimamente nas funções governativas.

Se a Lei de Segurança Nacional de 1967 já era dura, muito pior foi a adotada pela

Junta Militar. Segundo Villa (2001, p. 82-83), “Pelo decreto-lei n° 898, de 29 de setembro

de 1969, foram incluídos mais três artigos tipificando novos crimes. A lei seria empregada

inclusive nos casos de crimes cometidos no exterior por estrangeiro contra brasileiro”.

Também seria aplicada, “sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito

internacional, aos crimes cometidos, no todo ou em parte, em território nacional, ou que

nele, embora parcialmente, produziram ou deviam produzir seu resultado”. E foram

incluídos delitos cometidos no estrangeiro, por brasileiros, que, “mesmo parcialmente,

produziram ou deveriam produzir seu resultado no território nacional” (artigos 4° a 6°).

Em 14 de outubro de 1969, por meio do Ato Institucional n° 16, finalmente, a Junta

Militar declara a vacância do cargo de Presidente da República, convocando o Congresso

que estava em recesso desde dezembro de 1968, para em colégio eleitoral, homologar o

nome dos novos Presidente e Vice-Presidente, previamente escolhidos pelo sistema militar

de poder que dominava o país.

Foi marcada a “eleição” do novo presidente, pelo Congresso Nacional, para 25 de

outubro, e a posse para cinco dias depois. Todavia, a Junta esqueceu-se de suspender

temporariamente o artigo 76 da Constituição, que determinava a eleição presidencial por

meio de um colégio eleitoral.

Havia, contudo, um problema. Era necessário reabrir o Congresso para a “eleição”,

mesmo com um único candidato. Dilema este resolvido pela edição do Ato Complementar

(dissidência que se formara do Partido Comunista Brasileiro, que não apoiou a luta armada), teve lugar na região do

Araguaia (BARROSO, 2009, p. 37).

157

n° 72 segundo o qual o recesso do Congresso Nacional estaria suspenso a partir do dia 22

de outubro, conforme disposição do artigo 1°.

Precavida, a Junta Militar91

incluiu no AI-16 o artigo 6° que permitia legislar,

mesmo com o Congresso aberto, até o dia 30 de outubro, data da posse de Emílio

Garrastazu Médici, “eleito” em 25 de outubro, sem nenhum opositor. Pouco antes da posse

foi divulgado o último documento legal da Junta, a Emenda Constitucional n° 1, que na

prática era uma nova Constituição, haja vista o número de alterações que efetuou na

Constituição de 196792

.

A emenda com status de Constituição resolveu alterar a denominação oficial do

país, deixando de ser “Brasil”, assim como dispôs a Constituição de 1967, para “República

Federativa do Brasil”. Paradoxalmente, em um momento de enorme centralização política,

o que menos havia era federalismo, que pressupõe uma relativa autonomia dos entes

federados.

O general Médici, conforme afirma Barroso (2009, p. 38), foi “favorecido pela

conjuntura econômica internacional, que propiciou o financiamento, a juros baixos à

época, do “milagre brasileiro”. Em seu governo viveu-se um período de expressivo

crescimento econômico, altamente concentrador da renda nacional”.

A Constituição teve vigência meramente nominal em grande número de seus

preceitos, à exceção de sua parte orgânica. Jamais se tornou efetivo o amplo elenco de

direitos e garantias individuais, paralisados pela vigência indefinida do AI n° 5, incluindo

neste diapasão os direitos sociais, que embora generosamente enunciados no título

dedicado à Ordem Econômica e Social, jamais deixaram de ser uma “folha de papel93

”.

A atividade política institucional foi relegada a um plano secundário, preterida por

um novo estamento tecnocrático-militar, com censura à imprensa e aos meios de

comunicação, paralelamente a uma ampla campanha promocional das realizações

governamentais, formando-se numerosos grupos paramilitares de violência política e

91 Preocupada com a preservação do ideário e objetivos do movimento militar de 1964 a “linha dura” do regime tomou

em suas mãos as rédeas do processo político e já em 31 de agosto de 1969 tomou posse uma Junta Militar composta pelo

General Aurélio de Lira Tavares (Ministro do Exército), pelo Almirante Augusto Rademaker (Ministro da Marinha) e

pelo Brigadeiro Márcio de Sousa e Melo (Ministro da Aeronáutica) impedindo assim que a sucessão se fizesse em favor

do vice-presidente como previa a Constituição. 92 “A emenda só serviu como mecanismo de outorga uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente

reformulado” (SILVA, 2014, p. 89). 93 Em verdade, a expressão contém uma alusão à célebre frase de Frederico Guilherme IV: “Julgo-me obrigado a fazer

agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que Deus do Céu e o meu país se

interponha uma folha de papel escrita, como se fosse uma segunda Providência” (LASSALLE, 1985, p. 25).

158

tortura, responsáveis pela eliminação clandestina de adversários, fora das situações de

confronto armado.

Dada a longevidade do regime militar (21 anos), a parafernália legal é enorme,

gerando obsessão de legalizar todos os seus atos, como se fosse capaz de dar uma espécie

de salvo-conduto. O número de decretos é fabuloso, mas um deles, do Governo Médici,

vale destaque. Segundo Villa (2011, p. 85),

O de número 69.534, de 11 de novembro de 1971, que ficou conhecido como

“decreto secreto”, cuja preocupação era salvaguardar os “assuntos sigilosos”. O

Presidente da República “poderá classificar como secreto ou reservado os

decretos de conhecimento restrito, que disponham sobre matéria da segurança

nacional”. Contudo, os decretos deveriam ser publicados no Diário Oficial da

União, afinal essa era a norma desde que o Brasil se tornara republicano. Para

resolver a questão, seria enviado para publicação o decreto, redigido “de modo a

não quebrar o sigilo, somente a ementa do decreto, com o respectivo número”

(art. 7°, §2°). Ou seja, o cidadão não tinha conhecimento do conteúdo do

decreto.

Neste período, a Constituição foi objeto de duas Emendas: a de n° 2, promulgada

em 9 de maio de 1972, que regulou a eleição indireta de Governadores e Vice-

Governadores, e em 1974, a de n° 3, de 15 de junho de 1972, que dispôs sobre a

possibilidade de parlamentares ocuparem cargos de Ministro, Secretário e Prefeito de

Capital, sem perda do mandato, e sobre a convocação de suplentes.

Para suceder ao Presidente Médici, foi eleito, em 15 de janeiro de 1974, o General

Ernesto Geisel94

, que muito embora tivesse utilizado instrumentos discricionários, como a

cassação de mandatos parlamentares e o recesso do Congresso, foi durante o seu mandato

o início do processo lento e gradual de refluxo do poder ditatorial.

O fim da tortura, decorrente desse recuo militar, explica Faoro (1978, p. 39), “deve-

se historicamente a Geisel a atitude determinada que coibiu a utilização da tortura pelos

organismos militares95

”. Como consequência, ao final de seu período presidencial,

promulgou a Emenda Constitucional n° 11, de 13 de outubro de 1978, que revogou os

Atos Institucionais e os Atos Complementares, no que contrariavam a Constituição

Federal.

94 Disputaram a eleição indireta, sem chances, mas em jornada simbólica, o Deputado Ulysses Guimarães e o jornalista

Barbosa Lima Sobrinho, para a Presidência e Vice-Presidência, respectivamente. 95 A obra de Faoro contém as peças do processo movido pela viúva e filhos do jornalista Wladimir Herzog, morto em

dependências do II Exército, em São Paulo, em outubro de 1975. A sentença de 1° grau, mantida pelo Tribunal Federal

de Recursos, declarou a responsabilidade da União Federal pela prisão ilegal, tortura e morte do jornalista. As mortes

sucessivas de Herzog e do operário Manuel Fiel Filho levaram o Presidente a exonerar o Comandante do II Exército e,

em desdobramento da crise, o Ministro do Exército.

159

A Emenda Constitucional n° 8 também merece destaque ao legalizar o célebre

pacote de abril de 1977, pelo qual Geisel fechou o Congresso sob o pretexto de que a

Reforma do Judiciário não tinha sido aprovada, e entre o período de 1° e 15 de abril,

promoveu alterações na Constituição, com auxílio dos presidentes da Câmara e do Senado

Federal, com o objetivo de controlar sua sucessão em 1979, reorganizando o Colégio

Eleitoral, e garantindo ampla maioria ao governo.

Como assevera Villa (2011, p. 86), Geisel criou o “senador biônico (art. 41, §2°),

apelido dado pela oposição ao senador “eleito” indiretamente por um colégio eleitoral

estadual controlado pelo governo. Determinou que cada senador teria dois suplentes (até

então, havia somente um suplente para cada senador)”.

Alterou ainda, a composição da Câmara dos Deputados impondo que cada Estado

teria no mínimo seis deputados e, no máximo, 55 (art. 39). Era um meio de prejudicar a

oposição, mais forte nos estados populosos, e favorecer o governo nos estados menos

populosos e que dependiam do poder central, diminuindo o quórum para 50% mais um

(era de dois terços); por fim, estendeu o mandato presidencial de cinco para seis anos.

Indicado por Geisel depois de diversificada resistência, o General João Batista de

Oliveira Figueiredo foi eleito pelo Congresso, derrotando o General Euler Bentes

Monteiro, lançado pela oposição, tomando posse em 15 de março de 1979, reafirmando o

compromisso de restaurar a legalidade democrática.

Como destacado, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional n° 11, em

outubro, que entrou em vigor em 1° de janeiro de 1979, incorporando as chamadas

salvaguardas de Estado à Constituição. O AI-5, símbolo maior do autoritarismo foi

revogado, além de serem reestabelecidas as imunidades parlamentares (art. 32) e dado

início à reforma política, com extinção da pena de morte e a regulamentação dos estados

de sítio e de emergência, além da revogação dos atos institucionais e complementares (art.

3°).

Estava aberto o caminho para a redemocratização, mas que percorreria mais seis

longos anos, até 1985, quando foi eleito Tancredo Neves, justamente pelo Colégio

Eleitoral, organizado e sempre manipulado pelo regime militar. Como aponta Villa (2011,

p. 87), “se o crescimento econômico entre 1968 e 1978 acabou dando certa legitimidade ao

regime militar, a crise econômica que se estabeleceu em 1979 foi empurrando o eleitorado

para a oposição, farto da repressão política, do desemprego e da inflação”.

160

O sexênio de Figueiredo, único presidente na história que teve um mandato de seis

anos, foi marcado por denúncias de corrupção, pela disparada da dívida externa e pela

recessão econômica. Em meio a estas dificuldades, depois de 20 anos, foram realizadas

eleições aos governos estaduais, em 1982, nas quais o PMDB conquistou vitórias

importantes nos estados de São Paulo e Minas Gerais, e o PDT obteve vitória no Rio de

Janeiro com a eleição de Leonel Brizola.

A realização das eleições diretas para os governos estaduais, em 1982, consolidou o

caminho para a redemocratização, concluiu o ciclo iniciado com a extinção do AI-5 e a

anistia aos perseguidos pelo regime militar (1979). Os cinco partidos políticos legais

travavam uma dura disputa eleitoral, com a vitória da oposição em Estados-chave, mas

com o PDS mantendo a maioria no Colégio Eleitoral que elegeria indiretamente o

presidente da República em janeiro de 1985.

As vitórias oposicionistas, no chamado triângulo de ferro da política brasileira,

aprofundaram a crise do governo militar. Mesmo com todos os malabarismos legais, o

regime dava sinais de profundo esgotamento. O desafio foi construir uma articulação

suficientemente ampla para isolar os mais conservadores do regime e abrir caminho para

estabelecer a democracia.

Após a mais impressionante campanha popular96

da história política brasileira,

observa Castilho (2010, p. 106), o Congresso Nacional rejeita a Emenda Constitucional

“que restabelecia as eleições diretas para Presidente da República. Contudo, no pleito

indireto realizado em 15 de janeiro de 1985, é eleita a chapa da oposição, que tinha como

candidato à Presidência, Tancredo Neves, e à Vice-Presidência, José Sarney”.

A derrota da emenda contou com a participação decisiva do governo federal, dos

partidários Paulo Maluf e do presidente do PDS, José Sarney, que pressionaram os

deputados usando de todos os meios imagináveis, causando uma enorme frustração

nacional. A saída encontrada foi lançar o governador mineiro Tancredo Neves candidato

da oposição à Presidente da República, em desfavor do líder da campanha das Diretas Já,

Ulysses Guimarães.

96 No início do ano legislativo de 1983 foi apresentada uma Emenda Constitucional por um deputado do Mato Grosso,

Dante de Oliveira (PMDB), reestabelecendo a eleição direta para a Presidência da República. A emenda acabou

empolgando o país. No fim do mesmo ano ocorreram alguns atos públicos em favor da emenda. Mas foi a partir de

janeiro de 1984, após um grande comício em São Paulo, que a campanha das Diretas Já adquiriu um caráter de massa.

Até 16 de abril, o último ato público também realizado em São Paulo, milhões de pessoas participaram de uma das

maiores campanhas democráticas da história do Brasil. Contudo, a emenda não conseguiu ser aprovada pela Câmara.

Faltaram 22 votos para atingir o quórum necessário de 320. (VILLA, 2011, p. 90).

161

Mas as articulações políticas não ficaram apenas nisso. Foi necessário dividir o

PDS, o que acabou ocorrendo. Em agosto foi lançada a Aliança Democrática, união entre o

PMDB e os dissidentes liberais do PDS. Tancredo e os peemedebistas tiveram de aceitar o

vice-presidente indicado pelos dissidentes, José Sarney, que tinha uma enorme rejeição

pelo fato do senador maranhense ter sido um ativo apoiador do regime militar e ter

rompido com a candidatura de Paulo Maluf na última hora.

Em comovente fatalidade, o Presidente eleito, acometido de grave enfermidade,

não chega a tomar posse, falecendo em 21 de abril de 1985. Assume o Vice-Presidente, e

pela Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, é convocada uma

Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 15 de novembro de 1986, para elaborar uma

nova Constituição para o Brasil.

3.2.4 Da Constituição de 1988 e seu núcleo inderrogável

A Assembleia Nacional Constituinte, que iria elaborar a nova Constituição da

República, marcou o ingresso do Brasil no rol dos países democráticos, após vinte e cinco

anos de regime militar e quase doze de abertura lenta e gradual. Não prevaleceu a ideia,

que teve amplo apoio na sociedade civil, de eleição de uma constituinte exclusiva, que se

dissolveria quando da conclusão dos trabalhos.

Ao revés, optou-se pela fórmula insatisfatória de delegação dos poderes

constituintes ao Congresso Nacional, a funcionar temporariamente, como constituinte,

inclusive com a participação de senadores eleitos anteriormente à sua instalação, por se

encontrarem no curso de seus mandatos de oito anos.

Instalada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos

Moreira Alves, em 1° de fevereiro de 1987, a Assembleia Constituinte elegeu, em seguida,

como seu Presidente, o Deputado Ulisses Guimarães, que fora o principal líder

parlamentar de oposição ao regime militar.

O anteprojeto, almejado por Tancredo, foi rejeitado por Sarney. Segundo Barroso

(2009, p. 41), “os trabalhos se desenvolveram sem a apresentação de um anteprojeto

prévio, muito embora o Poder Executivo houvesse constituído uma comissão de notáveis

para elaborá-lo, conhecida, em razão do nome de seu Presidente, como Comissão Afonso

Arinos”.

162

A Constituição de 1988 tem a virtude de espelhar a reconquista dos direitos

fundamentais, notadamente os de cidadania e os individuais, simbolizando a superação de

um projeto autoritário, pretensioso e intolerante que se impusera ao país, pela qual os

anseios de participação, represado à força nas duas décadas anteriores, fizeram da

constituinte uma apoteose cívica, marcada, todavia, por interesses e paixões.

Apelidada por Ulisses Guimarães como ‘Constituição cidadã’, por valorizar os

princípios da democracia e da cidadania, apresentou em sua constituinte, além das

dificuldades naturais advindas da heterogeneidade das visões políticas, também uma

metodologia que contribuiu para as deficiências do texto final.

Inicialmente, foi dividida em 24 subcomissões e, posteriormente, em 8 comissões.

Cada uma delas elaborou um anteprojeto parcial, encaminhado à Comissão de

Sistematização, o que resultou em 25 de junho do mesmo ano na apresentação do trabalho

que reuniu todos estes anteprojetos em uma peça de 551 artigos.

A Constituição de 1988 é a mais longa de todas as anteriores. Segundo Villa

(2011, p. 93), “são 250 artigos e mais 70 nas disposições transitórias, perfazendo um total

de 320 artigos. Acabou ficando até enxuta, pois na primeira versão tinha 501 artigos,

depois “sintetizados” em 334, até chegar, quando da votação, aos 250”.

As Constituições brasileiras já nascem obsoletas. Desde a Constituição de 1824, em

seu art. 174 dispunha que passados quatro anos da promulgação e “se reconhecer que

alguns de seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escrito, a qual deve ter

origem na câmara dos deputados”.

Foi colocado no horizonte político em um curto espaço de tempo, qual seja, quatro

anos após a vigência da Carta Magna a possibilidade de mudança, antes mesmo de o texto

se consolidar. Desta forma, não é de se estranhar que até julho de 2015, a Constituição de

1988 receberá 8897

emendas, o que resulta em uma média de mais de três emendas por

ano.

Já a Constituição dos Estados Unidos de 1787, teve em 224 anos de vigência, 27

emendas, das quais as dez primeiras entraram em vigor em 1791, como o Bill of Rights

americano.

De 1992 a 2015, a nossa Constituição apenas não sofreu emenda em 1994, cujo

período presidencial recordista foi o de Fernando Henrique Cardoso (35), seguido do de

97 BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Emendas Constitucionais.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm>. Acesso em: 17 jul.

2015.

163

Luís Inácio Lula da Silva (27) e na gestão de Dilma Vana Rousseff (25) até julho de 2015

e empatados em quarto lugar, dos de Fernando Collor e de Itamar Franco (dois de cada

um).

Uma das características marcantes da Constituição de 1988 é o fato de ser

excessivamente minuciosa, o que corrobora ao grande número de emendas e artigos

alterados sucessivamente. É difícil encontrar algo da vida social que a Constituição não

tenha tentado normatizar.

A falta de coordenação entre as diversas comissões e a abrangência desmesurada

com que cada uma cuidou de seu tema, foram responsáveis por uma das maiores

vicissitudes da Constituição de 1988, conforme elucida Barroso (2009, p. 42):

As superposições e o detalhismo minucioso, prolixo, casuístico, inteiramente

impróprio para um documento dessa natureza. De outra parte, o assédio dos

lobbies, dos grupos de pressão de toda ordem, geraram um texto com inúmeras

esquizofrenias ideológicas e densamente corporativo.

A Constituição foi promulgada em uma conjuntura internacional profundamente

alterada no ano seguinte, com a queda do Muro de Berlim, que levou ao fim da Guerra

Fria, concomitante ao fato de que o modelo social-democrata na Europa e o Estado de

Bem-Estar Social davam sinais de esgotamento.

A Constituição manteve a denominação República98

Federativa do Brasil e numa

concessão ao movimento democrático do período foi determinado que o “poder emana do

povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta

Constituição” (art. 1°, parágrafo único).

Com o intuito de criar um processo de formação de uma comunidade de nações,

assim como ocorre na Europa, dispõe o art. 4°, parágrafo único que “A República

Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos

da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

A Constituição Federal de 1988 simboliza o marco jurídico da transição

democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país, como leciona Piovesan

(2013, p. 153):

O valor da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado

Democrático de Direito (artigo 1°, III, da Constituição), impõe-se como núcleo

98 O primeiro instante significativo do termo República surge em Cícero, quando afirma que “é, pois, a República coisa

do povo considerado como tal, não de todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu

fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum” (CÍCERO, 2006, p. 40).

164

básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de

valoração a orientar a interpretação do sistema constitucional.

Desta forma, a Constituição da República de 1988 trouxe um avanço singular na

consolidação dos direitos e garantias fundamentais, sendo a primeira Constituição

brasileira a consagrar os direitos humanos como princípio a reger o Brasil nas relações

internacionais.

No que tange à positivação de garantias individuais, pontua Barroso (2009, p. 42):

de toda sorte, não devem ser minimizadas as inovações dignas de louvor, não só

no campo dos Direitos Fundamentais, a que já se fez referência, como também

na constitucionalização de importantes garantias, a exemplo da ação civil

pública e do mandado de segurança coletivo.

No tocante à organização dos Poderes, ocorreu maior paridade e equilíbrio,

atenuando a supremacia do Executivo. No âmbito da organização do Estado, ocorreu uma

significativa descentralização política, que revalorizou Estados e Municípios, pelo

incremento de suas competências e de suas receitas.

A Constituição da República de 1988, no magistério de Piovesan (2012, p. 81-82),

“insurge como marco jurídico da transição ao regime democrático, alargando

significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, colocando-se entre as

constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à matéria”.

A preocupação em assegurar direitos sociais e individuais projeta a Construção de

um Estado Democrático de Direito, voltado a assegurar a liberdade, a segurança, o bem-

estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Dos valores e princípios que fundamentam a Carta de 1988, destacam-se a

cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1°, II e III), proporcionando o encontro

entre o princípio do Estado Democrático de Direito e os Direitos Fundamentais, onde estes

funcionam como elemento básico para a realização do princípio democrático.

A Constituição confere uma unidade de sentido, observa Miranda (2000, p. 166),

“de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. E ela repousa na

dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz a pessoa fundamento e fim da

sociedade e do Estado”.

165

Com base nesses preceitos é que se busca construir uma sociedade livre, justa e

solidária, que possa garantir o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a

marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, visando promover o bem

comum, sem preconceitos ou discriminação de qualquer natureza, constituindo assim o

núcleo essencial do Estado brasileiro.

Pela primeira vez uma Constituição em forma de pacto social assinala

especificamente objetivos do Estado brasileiro, como afirma Afonso da Silva (2014, p.

93):

Não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e entre eles, uns que

valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a

democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade

da pessoa humana.

A justiça social buscada por meio dos dispositivos inseridos na Constituição da

república de 1988 deu destaque aos valores da dignidade e do bem-estar da pessoa

humana. Neste sentido destaca Pérez Luño (1995, p. 288-289):

Valores constitucionales tienen una triple dimensión: a) fundamentadora –

núcleo básico e informador de todo el sistema jurídico y político; b) de guía –

objetivos o fines predeterminados que son ilegítima cualquier disposición

legislativa que persigue diferentes fines, o que impide el logro de los fines

especificados por el sistema axiológico constitucional; y c) crítico – para servir

como un parámetro de criterio o valoración para la interpretación de los actos o

conductas.

Os valores constitucionais compõem o contexto hierárquico fundamentador básico

para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, capaz de orientar a hermenêutica

teleológica e evolutiva da Constituição, servindo como critério para medir a legitimidade

das diversas manifestações do sistema de legalidade.

Verifica-se desta forma que o núcleo inderrogável de Direitos Humanos

Fundamentais serve não apenas como fonte do ordenamento jurídico, mas também como

critério e parâmetro de valoração capaz de orientar a interpretação e a compreensão do

sistema constitucional tanto em âmbito doméstico através da Constituição da República de

1988, quanto em âmbito internacional.

No tocante ao direito comparado, a jurisprudência do Tribunal Constitucional da

República Federal da Alemanha tem considerado, segundo Pérez Luño (1995, p. 292),

166

numerosas decisiones, el sistema de los derechos fundamentales consagrados en

la Ley Fundamental como la expresión de unos valores de "orden" que deben

guiar la interpretación de todas las demás normas constitucionales del sistema

jurídico en su conjunto, teniendo en cuenta que estos valores se manifiestan los

"universales la justicia '. También en España, el Tribunal Constitucional ha

declarado expresamente que «los derechos fundamentales reflejan un sistema de

valores y principios de alcance universal que informará a todo el sistema

jurídico.

Partindo-se da premissa de que toda Carta Constitucional deve ser compreendida

como unidade e como sistema que destaca determinados valores sociais, é possível afirmar

que a Constituição da República de 1988 elegeu como núcleo essencial a dignidade da

pessoa humana, dando-lhe unidade e sentido, conferindo a esta uma característica singular.

A valoração do homem como já explicitado decorre da crise do positivismo

impulsionada pela profunda crise do positivismo jurídico, associado à derrota do fascismo

na Itália e do nazismo na Alemanha, que tinham como pano de fundo a legalidade e

promoveram a barbárie tendo como pressuposto a lei.

Como ensina Bobbio (1995, p. 136-137), “nesse contexto, ao final da Segunda

Guerra Mundial, emergem a grande crítica e o repúdio à concepção positivista de um

ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinado à ótica meramente formal”.

Parte-se da premissa de uma reconstrução dos Direitos Humanos, no pós-guerra,

que tinha como bases, de um lado, a emergência da criação de um Direito Internacional de

proteção dos Direitos Humanos, e, de outro, a nova concepção do Direito Constitucional

ocidental, em resposta às atrocidades cometidas pautadas no positivismo jurídico.

No âmbito do Direito Constitucional ocidental, como ensina Piovesan (2012, p.

85), “são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga

axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das

Constituições europeias do Pós-Guerra”.

Observe-se que tanto na experiência brasileira quanto na latino-americana, a

abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana

serão a marca destas Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização

política, destacando-se na Constituição da República de 1988, a previsão inédita de

princípios fundamentais, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana.

Essa reformulação do pensamento positivista propõe uma reaproximação da ética e

do direito, fazendo surgir a força normativa dos princípios, em especial o da dignidade da

167

pessoa humana, proporcionando um reencontro com o pensamento kantiano,

principalmente quanto às ideias de moralidade, dignidade, direito e paz.

Para Kant, as pessoas devem existir como um fim em si mesmo e jamais como um

meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito. Nesse sentido, Waldron

(1984, p. 200):

The objects have, in turn, a conditional value as irrational, so are called "things"

that are replaceable by other equivalent. Rational beings, the other way around,

are called "people", as an end in itself, have an absolute intrinsic value, are

irreplaceable and unique, and should not be taken merely as a means.

Desta forma, a humanidade deve ser tratada dentro da sua individualidade, sempre

como um fim em si mesmo. A autonomia é a base da dignidade humana e de qualquer

criatura racional, uma concepção autônoma diretamente ligada à liberdade, por meio de

um princípio universal da moralidade como fundamento de todas as ações.

Enquanto no plano internacional a necessidade de criação de um Direito

Internacional dos Direitos Humanos foi consubstanciada pela teoria “kantiana” que

elencou como fundamento a dignidade humana como valor intrínseco à condição humana,

de outro lado, no plano dos constitucionalismos locais, tal vertente se concretizou com a

abertura das Constituições à força normativa dos princípios, destacando-se a dignidade da

pessoa humana.

Conforme sustenta Streck (2014, p. 130), “é no princípio da dignidade humana que

a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de

chegada”. Consagra-se, assim, a dignidade humana como um verdadeiro superprincípio, a

orientar tanto o Direito Internacional como o Direito Interno.

Como o discorrer da presente pesquisa tenta demonstrar, esse conceito de

dignidade humana supervalorizado é fruto da constatação de que o positivismo clássico

pode elevar ao poder tanto ideologias quanto pessoas, que sob o pretexto da norma escrita

cometem atrocidades contra a humanidade

No mesmo sentido, no tocante à força normativa dos princípios, ensina Bonavides

(2008, p. 233), “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da

Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana”. Ao tratar da força

normativa do princípio fundamental da dignidade humana, leciona:

Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e

se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das

168

normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos

éticos da personalidade se acham consubstanciados.

Seja no âmbito internacional ou interno, a dignidade da pessoa humana é o

princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, tornando-se um símbolo a

orientar o constitucionalismo contemporâneo.

Essa nova concepção, que rompe com o paradigma positivista, infere que o valor

da dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais constituem os

princípios constitucionais que agregaram as exigências do pós-guerra, de justiça e dos

valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.

Ao privilegiar a temática dos Direitos Fundamentais, esse movimento

constitucionalista de valorização do homem redimensiona e proporciona uma nova

topografia constitucional, onde a Constituição de 1988, em seus primeiros capítulos,

apresenta avançada e detalhada Carta de direitos e garantias, elevando-os, inclusive, a

cláusula pétrea99

, demonstrando a vontade constitucional de priorizar e valorizar os

direitos e garantias fundamentais.

Pautado nesse movimento constitucionalista, Pérez Luño (1995, p. 316) destaca

que na Constituição espanhola,

La dignidad de la persona, sus derechos inviolables y al libre desarrollo de su

personalidad, proclamada en ese arte. 10 (1) en conexión necesaria con el arte. 9

(2), que requiere hacer la libertad y la igualdad real y efectiva, constituyen una

clara decisión de nuestros electores a favor de las libertades. Tal procedimiento

de decisión en un estado de derecho que se define como socialdemócrata e

impone una interpretación de los derechos fundamentales, que contempla no

sólo las esferas como subjetivos de libertad, sino como elementos constitutivos

de un sistema unitario de las libertades, la herencia común de los ciudadanos

individual y colectivamente, cuyo alcance y la eficacia máxima meta aparecen

como indispensables que deben alcanzarse.

A Carta de 1988, ao inaugurar esse novo paradigma, tem como pressupostos os

direitos e garantias fundamentais, que condicionam o constitucionalismo por ele invocado.

E é sob esta ótica que se afirma o Estado e não sob a perspectiva do Estado que se afirmam

os Direitos.

99 O art. 60, §4°, apresenta as cláusulas pétreas do Texto Constitucional, ou seja, o núcleo intocável, inderrogável da

Constituição de 1988. Integram esse núcleo: I) a forma federativa de Estado; II) o voto direto, secreto, universal e

periódico; III) a separação dos Poderes; e IV) os direitos e garantias individuais. Importante frisar que a Carta anterior

resguardava como cláusula pétrea somente a Federação e a República (art. 47, §1°, da Constituição de 1967), não

fazendo menção aos direitos e garantias individuais.

169

Desta forma, como leciona Piovesan (2012, p. 90), “há, assim, um Direito

brasileiro pré e pós 1988 no campo dos Direitos Humanos. O Texto Constitucional

propicia a reinvenção do marco jurídico dos Direitos Humanos, fomentando

extraordinários avanços nos âmbitos da normatividade interna e internacional”.

A Constituição da República de 1988 inova ainda ao incluir como Direitos

Fundamentais os direitos sociais (Capítulo II do Título II), além dos direitos civis e

políticos, alargando assim a extensão e dimensão destes direitos e garantias.

No ano de 1988, pela primeira vez, uma Constituição brasileira insere em seu

Texto os direitos sociais como garantia fundamental de forma condensada, tendo em vista

que nas Constituições anteriores as normas relativas a eles encontravam-se dispersas no

âmbito da ordem econômica e social, sem constar do título dedicado aos direitos e

garantias.

Diz-se, assim, que não há direitos fundamentais sem respeito aos direitos sociais,

ao passo que a Constituição da República de 1988 acolhe o princípio da indivisibilidade e

interdependência dos direitos humanos, na qual o valor da liberdade está diretamente

ligado à igualdade.

A dignidade da pessoa humana como valor supremo, afirma Afonso da Silva (2014,

p. 93),

atrai o conteúdo dos direitos fundamentais. Concebida como referência

constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, observam Gomes

Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a

uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-

constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo

reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais

tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para

construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se

trate de direitos econômicos, sociais e culturais.

Nessa esteira, a Constituição da República de 1988, além de aumentar o leque de

proteção dos direitos individuais, ainda prevê novos sujeitos de direito com a inclusão dos

direitos difusos e coletivos, que pertencem à determinada classe ou categoria social.

Ademais, como pontua Pérez Luño (1995, p. 310), a Constituição vem a

concretizar a concepção de que “los derechos fundamentales representan una de las

decisiones básicas de la constituyente a través del cual los principales valores éticos y

políticos de una comunidad logran expresión legal”[...]“Los derechos fundamentales

marcan un horizonte de objetivos socio-políticos para lograr al precisar la situación

jurídica de los ciudadanos en sus relaciones con el Estado, o entre sí (p. 311)”.

170

Os direitos e garantias fundamentais figuram com especial força normativa e

expansiva, capaz de abarcar todo o universo constitucional e servir como critério

interpretativo de todo o ordenamento jurídico, tornando suas normas imperativas por meio

do princípio da aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5°, § 1° da Constituição da

República de 1988.

O princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais foi introduzido na Carta de 1988, sob a inspiração do direito

comparado, em especial do direito alemão, português e espanhol. Segundo Piovesan (2012,

p. 92),

a Lei Fundamental da Alemanha de 1949, ao tratar dos direitos fundamentais,

estabelece no art. 1°: “Os direitos fundamentais a seguir discriminados

constituem direito diretamente aplicável para os Poderes Legislativo, Executivo

e Judiciário”. A mesma preocupação é apresentada pela Constituição Portuguesa

de 1976, que, ao disciplinar os direitos e deveres fundamentais, prescreve, no art.

18: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias

são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

Também a Constituição espanhola de 1978, compartilhando do mesmo

entendimento, determina, no art. 9°: “Corresponde aos poderes públicos

promover as condições para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos

grupos que integram sejam reais e efetivas; remover os obstáculos que impeçam

ou dificultem sua plenitude e facilitar a participação de todos os cidadãos na vida

política, econômica, social e cultural”.

Este princípio tem como escopo assegurar a força dirigente e vinculante dos

direitos e garantias fundamentais, a fim de torná-los prerrogativas diretamente aplicáveis

pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, através da Constituição e não por

deliberação do legislador.

O sentido essencial da norma não pode, pois, deixar de ser, observa Miranda (2000,

p. 282-283),

a) salientar o caráter preceptivo, e não programático, das normas sobre direitos,

liberdades e garantias; b) afirmar que estes direitos se fundam na Constituição e

não na lei; c) sublinhar (na expressão bem conhecida da doutrina alemã) que não

são os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei que deve

mover-se no âmbito dos direitos fundamentais.

A Constituição da República de 1988 foi a primeira a elencar a prevalência dos

direitos humanos como preceito fundamental capaz de reger o Estado nas relações

externas, fixando os valores a orientar a agenda internacional do Brasil, dando ênfase ao

disposto no art. 4°100

do Texto.

100 Fica determinado que o Brasil se rege, nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência

nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não intervenção; V – igualdade

171

Após mais de 190 anos da outorga da primeira Constituição no Brasil, verifica-se

um avanço significativo no que diz respeito à proteção dos direitos e garantias individuais,

em especial aos Direitos Fundamentais, que a partir da Constituição da República de 1988

passaram a ter como núcleo essencial a dignidade da pessoa humana por meio dos direitos

humanos.

Embora o Texto constitucional brasileiro apresente uma significativa evolução à

proteção destes Direitos Fundamentais, é necessário analisar como essas garantias

essenciais são abordadas por outras Cartas constitucionais e se é possível traçar um núcleo

inderrogável de Direitos Fundamentais nestes pactos sociais.

3.3 Conclusões parciais

Os Direitos Fundamentais são decorrentes de uma série de lutas visando a

valorização do homem face ao Estado detentor dos poderes de tutela, uma vez que se faz

necessário implementar medidas de contrapeso dado as recorrentes violações à

humanidade.

Contudo, constata-se também ao longo da história que abusos e uso da máquina

estatal de forma desequilibrada e desordenada levaram a uma série de desigualdades que

culminaram em explorações e tratamentos desumanos, além de episódios de carnificina e

barbárie em nossa história recente.

Desta forma, essas duas ideias básicas conduzem aos novos paradigmas da época,

quais sejam os ideais liberais e socialistas, evidenciado pela inversão de perspectiva, que

trouxe uma mudança no modo de encarar a política. A relação passou a ser entre cidadãos

– e não entre o Estado e os cidadãos – e não mais entre súditos e soberanos.

A evolução histórico-constitucional do Brasil seguiu o fluxo dessas transformações

do movimento constitucional desde os ideais liberais, passando pelas conquistas sociais até

a democratização do direito, e a consequente sedimentação dos Direitos Humanos

Fundamentais em Cartas Constitucionais, ora avançando, ora retrocedendo, em matéria de

efetivação e proteção.

Importante destacar que a Constituição da República de 1988 inovou em muitos

aspectos, em especial, no que tange à proteção dos Direitos Humanos ao considerar que

entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX

– cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político.

172

tratados internacionais que versem sobre eles devem ser recepcionados como emendas

constitucionais, respeitando às regras de foro qualificado.

Ademais, introduz um capítulo próprio para tratar das liberdades e garantias

fundamentais, com normas programáticas, que para efetivação necessitam de políticas

públicas que propiciem a sua realização plena, com o fito de estabelecer igualdade material

além de formal.

Entretanto, inicialmente, conclui-se que os desafios para a efetivação desses

direitos são enormes, haja vista que, mais do que reconhecê-los inderrogáveis, por meio de

disposição da Constituição da República, a criação das políticas públicas depende de

interesses, na maioria das vezes, mais individuais do que coletivos, no Congresso

Nacional.

A par dos desafios domésticos para efetivá-los, será analisado em seguida, o

movimento constitucional na América Latina, ocorrido no Chile, na Colômbia, na

Argentina e na Bolívia, além da criação do núcleo inderrogável de direitos nos referidos

pactos sociais, tendo como premissa a dignidade da pessoa humana, como influência da

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

173

4 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NO DIREITO COMPARADO

LATINO-AMERICANO

4.1 A evolução da inderrogabilidade no direito comparado latino-americano

Após analisar o desenvolvimento das garantias fundamentais, tanto em âmbito

internacional quanto doméstico, foi possível constatar que o movimento constitucional de

proteção desses direitos conquistou status globalizado, na medida em que o direito interno

passou a buscar soluções para seus conflitos na jurisprudência estrangeira, através dos

tribunais constitucionais, contribuindo para a efetividade dos Direitos Humanos

Fundamentais. Neste capítulo serão analisadas algumas Cartas Constitucionais da América

Latina.

Nesse sentido, relevante ressaltar as transformações, assim como a evolução do

sistema jurídico multinível101

de proteção na América Latina, destacando a criação de um

núcleo inderrogável de Direitos Fundamentais nas Cartas Políticas chilena, boliviana,

venezuelana, argentina e como o Brasil analisa a jurisdição constitucional de tribunais

internacionais na proteção dos Direitos Humanos Fundamentais.

Ao discorrer acerca do sistema jurídico global, Habermas (2001, p. 331-332)

enfatiza:

Face aos processos de formação da opinião e da vontade em uma esfera pública

geral – difusos, mas ainda focalizados na globalização da sociedade – aparece

um sistema funcional que se tornou autônomo e que, por seu turno, somente

pode ser percebido pela sociedade inteira da perspectiva de um sistema global.

O desenvolvimento dessa moderna modalidade de constitucionalismo coaduna com

as perspectivas de um movimento dinâmico, capaz de atender às necessidades de uma

sociedade cada vez mais complexa, e que exige dos operadores do direito o discernimento

para ultrapassar velhos conceitos ligados à soberania, capaz de auxiliar na solução de

conflitos com diferentes estratégias por meio de dois ou mais sistemas jurídicos

constitucionais.

Nesse sentido, surgem algumas teorias visando fundamentar essas relações

interestatais, com o aproveitamento de legislação estrangeira, dentro de suas Cartas

Constitucionais, promovendo o intercâmbio de elementos constitucionais entre agentes

supostamente autossuficientes.

101 Conforme descrito, esse sistema busca efetivar os Direitos Fundamentais por meio da proteção infra e

supraconstitucional, através da internacionalização dos Direitos Humanos.

174

Dentre essas teorias que buscam introduzir relações interestatais, destaca-se o

cross-constitucionalismo102

, conforme identifica Moraes (2015, p.2-3),

[...] pelo aproveitamento ou uso do conhecimento estrangeiro já desenvolvido

em torno de princípios compartilhados, por um empreendimento interpretativo

comum, em ordem a resolver controvérsias de matriz constitucional que

excedam os limites dos territórios nacionais e, simultaneamente, são debatidas

por tribunais constitucionais, supranacionais e internacionais.

No sentido de se estabelecer uma cooperação entre os Estados para a formação de

uma jurisprudência internacional, deve-se partir da concepção de um diálogo

constitucional, e não necessariamente de um monólogo. Neste não há qualquer

correspondência dialógica entre os tribunais, enquanto naquele, através de um diálogo

transjudicial, ocorre o transplante ou transposição estatal de decisões judiciais.

Como disserta Burgorgue-Larsen (2011, p. 155-156), tais interações transjudiciais

devem partir de um “dialogue spontané, orchestré, qui peut être formaté comme un

dialogue intégré”. Esse diálogo transjudicial é materializado como um diálogo vertical

construído entre tribunal constitucional, de um lado, e tribunal supranacional ou

internacional, de outro, em razão da vinculação daquele a este e por meio deste diálogo e

por ostentarem a mesma natureza, de modo a persuadi-los a utilizar a jurisprudência

estrangeira.

O que se busca é um diálogo espontâneo, integrado às necessidades tanto de âmbito

doméstico quanto internacional, e não apenas um monólogo, com a importação de direito

estrangeiro, mas uma troca de fundamentações, buscando efetivar os Direitos Humanos

Fundamentais, em caso de violação ou conflitos.

O diálogo entre os tribunais nacionais, na conclusão de Vergottini (2010, p. 7),

Si tratta di uno dei luoghi comuni più usati del nostro tempo. Tuttavia, vi è una

grande differenza tra l'interazione di giurisprudenza, che consiste del dialogo in

senso stretto, e la semplice influenza la decisione di una corte costituzionale

rispetto ad un altro che è uguale a te.

102 Este fenômeno jurídico moderno se dá quando uma questão constitucional concreta é discutida simultaneamente em

Cortes Constitucionais de países distintos, ou ainda entre tribunais nacionais e tribunais de Organizações Internacionais.

São encontradas designações de sinonímia doutrinária como cross-constitucionalismo, ou ainda fecundação cruzada.

Essa teoria foi proposta por Marcelo Neves e o nome que aparenta inicialmente sugerir uma supraconstitucionalização

internacional, propõe, na verdade, um diálogo de sistemas jurídico-constitucionais buscando o aprendizado e a validação

de suas decisões. Não se trata da criação de um metassistema jurídico, ou uma Constituição Mundial. O

transconstitucionalismo de Neves busca harmonizar decisões, tendo em vista a particularidade da sociedade moderna,

globalizada. Constata-se essa transversalidade, quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal cita em seus acórdãos

algumas decisões de tribunais estrangeiros (NEVES, 2009, p. 153).

175

A busca pelo diálogo constitucional deve superar a mera influência de um tribunal

constitucional sobre outro, para que se possa falar em uma verdadeira interação de

jurisprudências, através da qual tal diálogo ocorra no sentido estrito da palavra, e

consequentemente, corrobore para a criação de um núcleo inderrogável de direitos.

Este é um dos diversos desafios desse novo modelo constitucional, que embora

dinâmico, deve ater-se a questões não apenas constitucionais, mas culturais, econômicas e

sociais, além de romper o paradigma de uma soberania intocável, para dar azo às decisões

internacionais como fonte de legitimação de decisões nacionais.

Ademais, deve-se observar o uso da jurisprudência estrangeira pelos tribunais

constitucionais, partindo da premissa dos precedentes, assim como o modelo norte-

americano utiliza de decisões pretéritas que servirão de modelo para decisões mais

recentes, demonstrando que através das lições do passado é possível resolver casos

concretos no futuro.

Eis o grande desafio dos Direitos Humanos Fundamentais, numa perspectiva

multinível: criar esta ponte capaz de realizar o diálogo entre as cortes constitucionais, uma

via de mão dupla, e não apenas a imposição de países desenvolvidos face os países em

desenvolvimento.

Considerando que o Direito interno é aberto, dinâmico e suscetível de interagir com

outros ordenamentos jurídicos, deve ser capaz de construir um modelo teórico, segundo

Moraes (2015, p. 7-8) “que franquie aos tribunais nacionais critérios objetivos de seleção

de precedentes estrangeiros que podem, ou mesmo devem, ser utilizados pela justiça

constitucional”.

Os tribunais constitucionais nacionais se vinculam ao Direito Internacional dos

Direitos Humanos, haja vista que as decisões prolatadas pelos tribunais internacionais ou

supranacionais, como da Corte de Justiça, do Tribunal Penal Internacional, da Organização

das Nações Unidas, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização

dos Estados Americanos, do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, da Organização do

Conselho da Europa, devem ser utilizados por todos ou aqueles Estados que se submetem a

sua jurisdição, através da ratificação de tratados internacionais.

No sistema judicial norte-americano, o grau de persuasão utilizado na aplicação de

decisões estrangeiras em âmbito doméstico, como ilustra Zaring (2006, p. 320 e 324),

176

The foreign court most cited by the federal courts is, by a substantial margin of

34% of the jurisprudential references, the High Court of Canada. Do not forgets

that, in particular, three federal agencies have the practice of citing foreign

decisions: the District Court of Southern New York, Manhattan, the District

Court of New York's East, Brooklyn, and the Court of Appeals for the second

circuit, set in the same way in New York.

Desta forma, mesmo uma grande potência como os Estados Unidos da América,

em pelo menos três órgãos federais: o Juizado Distrital do sul de Nova York, do Brooklyn,

e o Tribunal de Apelação, tem a práxis de citar decisões estrangeiras, a fim de fundamentar

suas decisões.

A dignidade da pessoa humana fundamentada nos arts. 1°, initio, 22 e 23, n° 3, da

Declaração Universal dos Direitos Humanos103

e, particularmente os arts. 1°, III, e 226,

§7°, in fine, da Constituição da República do Brasil, funcionam como diretrizes para as

democracias contemporâneas, onde a supremacia constitucional busca salvaguardar as

distribuições tanto horizontais, quanto vertical do poder político.

Nesse sentido, o movimento constitucional da pós-modernidade, relativo ao

controle de constitucionalidade supranacional, como descreve Curtis (2012, p.17), pauta-se

na “Commonwealth104

, which is identified by the conferral of jurisdiction for review or not

to adjudicate a constitutional justice body, political or judicial, another national state”.

A jurisprudência estrangeira, como base para a formação de um sistema

multinível105

de proteção dos Direitos Humanos Fundamentais é relevante para determinar

o sentido, o alcance e o conteúdo das normas constitucionais que estabelecem os poderes

internacionais do governo nacional, contornando assim a legislação doméstica através da

opinião internacional.

103 Declaração Universal dos Direitos Humanos, arts. 1°, initio, 22 e 23, n° 3: “Todas as pessoas nascem livres e iguais

em dignidade e direitos. Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo

esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos

econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao desenvolvimento da sua personalidade. Toda pessoa

que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma

existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, meios de proteção social”

(MORSINK, 2000, p. 281-320). 104 Commonwealth of Nations (em português: Comunidade das Nações), normalmente referida como Commonwealth e

anteriormente conhecida como a Commonwealth britânica, é uma organização intergovernamental composta por 53

países membros independentes. Todas as nações membros da organização, com exceção de Moçambique (antiga colônia

do Império Português) e Ruanda (antiga colônia do Império Belga), faziam parte do Império Britânico, do qual se

desenvolveram. Os Estados membros cooperam num quadro de valores e objetivos comuns, conforme descrito na

Declaração de Singapura. Estes incluem a promoção da democracia, direitos humanos, boa governança, Estado de

Direito, liberdade individual, igualitarismo, livre comércio, multilateralismo e a paz mundial. A Commonwealth não é

uma união política, mas uma organização intergovernamental através da qual os países com diversas origens sociais,

políticas e econômicas são considerados iguais em status. 105 Que possa atuar tanto em âmbito infra quanto supranacional.

177

Para compreender a criação de uma justiça constitucional internacional, mister

destacar alguns marcos fundamentais para relativizar o conceito de soberania, para que,

então, decisões estrangeiras pudessem ter efetividade junto às normas domésticas, e

servissem como fonte para fundamentar as decisões dos tribunais internos.

A justiça constitucional internacional foi inaugurada pelo Tribunal do Império

Austro-Húngaro, organizado para o julgamento de conflitos de atribuições entre dois

Estados-Federados, ou entre esses e órgãos estatais, e de recursos dos cidadãos por

violação dos direitos políticos garantidos pela Constituição, em 1867, passando pelo

Tratado de Versalhes pós Primeira Guerra até a queda do Muro de Berlim, com a

globalização da justiça constitucional.

A despeito da evolução dos tribunais constitucionais internacionais, posiciona-se

Favoreu (1994, p. 78):

Los tribunales constitucionales son instituciones creadas saber, específica y

exclusivamente, las controversias constitucionales, situados fuera del sistema

judicial e independientes de las autoridades públicas y. Los cortes supremas o

cámaras constitucionales de los mismos pueden ser incluso jurisdicciones

constitucionales, pero no son los tribunales constitucionales. Los tribunales

constitucionales no necesariamente se encuentran fuera de la estructura del poder

judicial, que es la razón por la justicia constitucional puede ser ejercida por los

miembros de los órganos que forman la estructura judicial de papel al mismo

tiempo que la corte constitucional.

A criação desses tribunais constitucionais internacionais busca conhecer,

exclusivamente, de controvérsias constitucionais, situadas fora do aparato judicial e

independente deste e dos poderes públicos, ou seja, matérias que possam não ser

contempladas pela Carta Constitucional, ou se contempladas não implementadas ou

efetivadas.

Há que se fazer uma distinção entre os tribunais constitucionais internacionais e a

Suprema Corte em âmbito nacional, haja vista que estes podem até ser jurisdições

constitucionais, mas não são tribunais constitucionais, enquanto que aqueles não

obrigatoriamente estão situados fora da estrutura do Poder Judiciário, razão pela qual a

justiça constitucional pode ser exercitada pelos organismos integrantes da estrutura

judiciária que façam o papel, concomitantemente, de tribunal constitucional.

As questões complexas, que não figuram no rol de direitos e garantias

fundamentais positivadas nas Cartas Políticas, devem ser solucionadas a partir de

princípios, enquanto enunciados normativos, com maior grau de abstração e generalidade,

178

prevendo os valores fundamentais do ordenamento jurídico, destinados à atividade

produtiva, interpretativa e aplicativa das regras descritas pela Constituição, obedecendo-se,

por vezes, o critério ou o método da ponderação.

A fim de legitimar soluções às questões complexas envolvendo o Direito

Internacional, conceitua Habermas (1997, p. 279-305):

O Direito que pretenda ser legítimo, ao menos, precisa estar em consonância

com os princípios morais que reivindiquem validade geral, para além de uma

comunidade jurídica, eis que os direitos fundamentais e os princípios do Estado

de Direito são respostas à pergunta sobre como institucionalizar a democracia.

Nesse sentido, visando à eficácia das normas constitucionais, corroborando com

tais preceitos e técnicas para solução de conflitos, caminha a teoria da argumentação

jurídica, como articulação de meios e técnicas para provocar, a partir de premissas

verossímeis conclusões relativas, com a adesão voluntária da comunidade jurídica pela

força dos argumentos.

Acerca dessas teorias que buscam solucionar conflitos entre princípios

fundamentais, há que se destacar a teoria da nova retórica, como ensina Marini (2003, p.

23):

Os princípios gerais de Direito são considerados como tópicos aos quais as

autoridades jurisdicionais podem recorrer no processo argumentativo de

fundamentação das decisões, com a diferenciação entre os lugares comuns, que

correspondem ao senso comum, e os lugares específicos, que compreendem os

pontos de partida compartilhados por determinados ramos do conhecimento.

A interpretação constitucional, como espécie do gênero interpretação jurídica, pode

ser identificada pela superioridade hierárquica, caráter político, conteúdo específico e,

destacadamente, natureza da linguagem, através da implementação de normas jurídicas

providas de maior abertura e densidade, com a necessidade de uma operação de

concretização, na qual é conferida ao intérprete a liberdade de conformação.

Considerando a normatividade dos princípios, através da positivação dos Direitos

Fundamentais nos pactos sociais, possíveis conflitos entre princípios, como destaca

Moraes (2014, p. 33),

devem ser solucionados pelo critério ou método da ponderação em decisões

suscetíveis de controle da racionalidade do discurso por técnicas de

argumentação jurídica, de tal modo a aproximar as normas constitucionais da

realidade fática que lhes é subjacente, revela que o Direito Constitucional do

Séc. XXI não deixa de ser, de certa forma, o Direito Constitucional sem

Constituição.

179

Todas essas transformações convergem para o atual cenário do movimento

constitucional, destacando sua dinamicidade e globalização com uma ascensão

institucional na organização dos Poderes do Estado moderno, por força do qual os

magistrados são chamados à implementação das garantias fundamentais consagradas na

Carta Política.

O ponto de convergência da judicialização da política e do ativismo judicial

encontra-se no quadro da valorização das atividades do magistrado. Por meio dos diálogos

constitucionais, identifica-se o protagonismo, e por vezes, a supremacia, do Poder

Judiciário, que em decorrência da judicialização de relações de natureza social e política,

opera o efeito do ativismo judicial.

A utilização de jurisprudência estrangeira em âmbito doméstico ocorre através da

utilização de precedentes, que fundamentam as decisões internas, mas que apenas integram

o direito nacional após passarem por um processo de recepção dessas normas

internacionais, como observa Maccormick (1997, p. 522) “preterit decisions that serve as

models for more recent decisions” tendo em vista a “applying lessons from the past to

resolve concrete cases of present and future”.

Do ângulo do tribunal receptor, os precedentes estrangeiros podem ser utilizados

como holding106

ou ratio decidendi107

, de forma a justificar racionalmente os fundamentos

das decisões sobre questões constitucionais que permeiam os sistemas jurídicos

contemporâneos, corroborando para a criação de um modelo moderno que pode ser

chamado de constitucionalismo multinível, aberto, dinâmico, e suscetível de interagir com

outros ordenamentos jurídicos, através do qual são observadas não apenas as questões

jurídicas, mas também questões sociais e culturais na formação do pacto social.

Os tribunais constitucionais podem ser persuadidos, na análise de casos concretos,

pelo Direito estrangeiro, haja vista que as decisões oriundas de cada tribunal nacional de

justiça constitucional, seja única ou de cúpula, como as Cortes ou Tribunais

Constitucionais, da Itália e da Espanha, a Suprema Corte dos Estados Unidos, e o Supremo

Tribunal Federal, do Brasil, são usadas pelos Estados de onde são emanadas, como fonte

106 As holdings são sociedades não operacionais que têm seu patrimônio composto de ações de outras companhias. São

constituídas ou para o exercício do poder de controle ou para a participação relevante em outras companhias, visando

nesse caso, constituir a coligação. Em geral, essas sociedades de participação acionária não praticam operações

comerciais, mas apenas a administração de seu patrimônio. Quando exerce o controle, a holding tem uma relação de

dominação com as suas controladas, que serão suas subsidiárias. (CARVALHOSA, 2009, p. 14). Fazendo uma aplicação

constitucional do conceito, a questão é saber se uma lei inferior à Constituição Nacional pode ser estendida à jurisdição

do Tribunal Internacional. 107 A ratio decidendi (também conhecido pela forma abreviada ratio) refere-se à “razão para a decisão” e é um princípio

de direito comum que demonstra a razão para um caso.

180

interpretativa e de fundamentação de suas decisões em caso de conflito de princípios

constitucionais.

Nesse sentido, como afirma Bhuiyan (2007, p. 4), é necessário distinguir entre a

utilização de elementos estrangeiros e o uso de elementos internacionais,

There are two types of law in question in this debate: the foreign law and

international law. These two types of law are, at times, confused by the doctrine,

so that the cases involving the international conventions and treaties, the

evidence are different from those cases that only involve domestic issues and

cite foreign laws simply to support the grounds of decisions the constitutional

court. The cases in which international conventions and treaties are used with

binding effect can not be confused with the cases in which foreign legal sources

are used with persuasive effectiveness.

Esta observação é relevante uma vez que são diferentes dos casos que envolvem

meramente questões domésticas e citem leis estrangeiras simplesmente para apoiar os

fundamentos das decisões de um tribunal constitucional. Os casos em que convenções e

tratados internacionais são usados com eficácia vinculante não podem se confundir com

aqueles em que fontes legais estrangeiras são usadas com eficácia persuasiva.

A dignidade da pessoa humana sobre a qual versam os arts. 1°, initio, 22 e 23, n° 3,

da Declaração Universal dos Direitos do Homem108

e, mais especificamente os arts. 1°, III,

e 226, § 7°, in fine, da Constituição da República de 1988109

funcione como valor supremo

dos ordenamentos jurídicos das democracias contemporâneas, salvaguardando as

distribuições horizontal e vertical do poder político. Nesse contexto, as questões

constitucionais levadas aos tribunais constitucionais utilizam-se da jurisprudência

estrangeira, dentre as quais está inserida a tutela processual dos Direitos Humanos

Fundamentais.

Trata-se de um dos temas aos quais se dedica a pós-modernidade do Direito

Constitucional, sobremodo, como elucida Curtis (2012, p. 17), na “Commonwealth on the

control extranational constitutionality, which is identified by the conferral of jurisdiction

108 Declaração Universal dos Direitos Humanos, arts. 1°, initio, 22 e 23, n° 3: “All people are born free and equal in

dignity and rights. Everyone, as a member of society, has the right to social security and realization, through national

effort and international cooperation and in accordance with the organization and resources of each State, of the

economic, social and cultural rights indispensable for his dignity and development of his personality. Everyone who

works has the right to just and favorable remuneration ensuring for himself, and his family an existence compatible with

human dignity, and supplemented, if necessary, social protection means”. (MORSINK, 2000, p. 281-320.) 109 Constituição da República Federativa do Brasil, arts. 1°, III, e 226, § 7°, in fine: “A República Federativa do Brasil,

formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de

Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e

da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre de decisão do casal.” (TAVARES, 2012, p. 320).

181

for review or not to adjudicate a constitutional justice body, political or judicial, another

national state”.

Este talvez seja um dos grandes desafios na criação de um tribunal constitucional

internacional, pois, além das diferenças jurídicas, sociais e culturais, para a criação de um

núcleo comum e inderrogável de direitos em âmbito internacional, há dificuldade em se

relativizar o conceito de soberania, a fim de que um tribunal estrangeiro tenha competência

para rever uma decisão de mérito proferida por um tribunal doméstico.

A jurisprudência estrangeira é relevante, como destaca Ramsey (2004, p. 71), para

“determine the meaning, scope and content of constitutional norms establishing the

international powers of the national government “in this way”, directing them to

circumvent the domestic powers of the national government from the perspective of

international opinion”.

Ao utilizar uma decisão estrangeira como fonte de fundamentação de uma decisão

em âmbito doméstico, mister ressaltar seu sentido, alcance e o conteúdo destas normas

constitucionais, estabelecendo-se assim os poderes internacionais do governo nacional,

passando pelo crivo da opinião internacional.

No processo de evolução da Justiça Constitucional, foi inaugurada pelo Tribunal do

Império austro-húngaro, organizado para o julgamento de conflitos de atribuição entre dois

Estados-Federados, ou entre estes e órgãos estatais, e de recursos dos cidadãos por

violações dos direitos políticos garantidos pela Constituição, em 1867, em quatro fases110

.

A primeira fase, dispersada entre a celebração do Tratado de Versalhes e o início da

Segunda Guerra Mundial, expressava, como observa Villalón (1987, p. 94, 124, 133 e

218), “la creación de los tribunales constitucionales de Checoslovaquia de 1920, Austria,

1920, y Liechtenstein, 1921, y las garantías Corte Española 1931”.

Os conflitos que marcaram o século XX, além de representarem um salto

significativo da humanidade no que tange à evolução armamentista, também foram

marcados pela evolução e transformação dos Estados. Nesse contexto o

Constitucionalismo, pós Revolução Francesa, caracterizado pelo liberalismo extremo,

trouxe inúmeras violações à dignidade humana, tornando a vida um princípio descartável.

A segunda fase, disposta entre a primeira metade da década de 1940 e a segunda

metade da década de 1960, é exprimida, segundo Pegoraro (2004, p. 112), “los tribunales

constitucionales de Alemania, Austria, 1945, Alemania, 1951, Italia, 1956, Chipre, 1960,

110 É possível analisar esta evolução na obra de Favoreau (1994, p. 78).

182

Turquía en 1961 y Yugoslavia en 1963 y, en cierto modo, el Consejo Constitucional de

Francia de 1959”.

Esse período significou o declínio dos regimes totalitários, representando também

uma dura crítica ao positivismo puro, haja vista que, com o fim da Primeira Guerra e

pautados nessa ideologia, ditadores como Mussolini e Hitler, conseguiram disseminar um

sentimento de ódio e repressão na Europa do século XX.

A terceira fase, disseminada entre a primeira metade da década de 1970 e a segunda

metade da década de 1980, foi exteriorizada pelos ensinamentos de Dominique Rousseau

(2002, p. 15-16): “los tribunales constitucionales de España, Portugal 1978, 1982 y

Bélgica en 1984 y, en cierto modo, por el Tribunal Especial de Grecia de 1975”.

Trata-se do período da Guerra Fria, quando a busca pela corrida armamentista, no

intuito de se possuir a tecnologia das bombas nucleares, coadunou com o sentimento de se

criar um núcleo inderrogável de direitos, para que atrocidades, como as ocorridas com os

judeus na Segunda Guerra Mundial desaparecessem, culminando com a proclamação da

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

A quarta e última fase, dissipada entre a queda do Muro de Berlim e a globalização

da justiça constitucional, representa, na visão de Segado (2004, p. 32-33),

Los tribunales constitucionales de Hungría de 1990, Bulgaria, 1991, Croacia,

1991, Rusia 1991, Albania en 1992, Eslovaquia en 1992, Estonia, 1992,

República Checa, 1992, Rumania de 1992 Eslovenia, 1993 Lituania, Moldova

1993, 1995, Letonia, 1996, Ucrania y Bielorrusia en 1996, en 1997, y el Tribunal

Supremo de Polonia de 1997.

Esta última fase indica a redemocratização de muitos países que passaram por

ditaduras militares, o que representou uma série de restrições a direitos fundamentais,

pautados na ideia de uma segurança nacional, caracterizando assim um período de

retrocesso da proteção desses direitos até as novas Cartas Constitucionais que buscam não

apenas relacionar, mas efetivar os direitos consagrados em seus pactos sociais.

Sobre essa evolução, destaca-se que os tribunais constitucionais são instituições

criadas para conhecer, especial e exclusivamente, das controvérsias constitucionais,

situados fora do aparato judicial e independente destes e dos poderes políticos. Os

tribunais constitucionais não obrigatoriamente estão situados fora da estrutura do Poder

Judiciário, razão pela qual a justiça internacional pode ser exercida por organismos

183

integrantes da estrutura judiciária, e que atuem, concomitantemente, como tribunal

constitucional.

A persuasão racional da jurisprudência estrangeira está relacionada ao Direito

Constitucional contemporâneo, ou como aponta Carbonell (2003, p. 13), é um “novo

Direito Constitucional, entendido como teoria, ideologia ou método de investigação dos

sistemas jurídicos de hoje, com vistas à superação da antinomia entre naturalismo e

positivismo jurídicos”.

A partir da superação das concepções jusnaturais e juspositivistas, depara-se com

um novo paradigma jurídico pautado na interface entre a Filosofia do Direito e a Filosofia

da Política, orientando ao estabelecimento de uma nova grade de inteligibilidade da

compreensão das relações entre direito, moral e política, harmonizando-os pelo fio

condutor da questão da ordem jurídica legítima.

Ademais, no campo da Teoria do Direito, une-se pela análise da importância da

principiologia constitucional, racionalidade do processo argumentativo no discurso

filosófico e hermenêutica jurídica na compreensão do funcionamento do direito nas

sociedades democráticas. Em consequência, como ensina Habermas (1997, p. 279-305),

O Direito que pretenda ser legítimo, ao menos, precisa estar em consonância

com os princípios morais que reivindiquem validade geral, para além de uma

comunidade jurídica, eis que os direitos fundamentais e os princípios do Estado

de Direito são respostas à pergunta sobre como institucionalizar a democracia.

Para a teoria da nova retórica, os princípios gerais de direito são considerados

tópicos aos quais as autoridades jurisdicionais podem recorrer no processo argumentativo

de fundamentação das decisões, com a diferenciação entre os lugares comuns, que

correspondem ao senso comum, e os lugares específicos, que compreendem os pontos de

partida compartilhados por determinado ramo do conhecimento.

Partindo-se dessas premissas, analisa-se a evolução do constitucionalismo no

âmbito da América Latina, destacando-se como cada Estado trata a inderrogabilidade de

seus direitos, criando-se assim um núcleo duro, capaz de orientar não apenas a legislação

infraconstitucional, mas servir de quadro para emoldurar um Direito Constitucional

Internacional, que possa ao mesmo tempo respeitar a diversidade e servir de base

supranacional.

184

4.2 A inderrogabilidade de direitos na Constituição chilena

Ao analisar a inderrogabilidade de direitos na América Latina, relevante ressaltar as

transformações pelas quais países como o Chile passaram, desde a descolonização em

1810, até o término do regime ditatorial do general Augusto Pinochet, em 1989, que em

maior ou menor grau evoluiu até a abertura democrática, cujas sucessivas reformas

culminaram na promulgação da Constituição de 2005.

Dentre as características que marcam essa Carta Constitucional, destaca-se a

disseminação do princípio democrático em todas as esferas de poder, tanto de maneira

intrínseca, no que tange à sua formação, quanto extrínseca, no que diz respeito à sua

atuação, culminando com uma democratização da Justiça Constitucional, seja pela

participação de distintos poderes na composição do Tribunal Constitucional, quanto na sua

forma de atuação, por meio dos mecanismos que lhe confere a nova Constituição trazendo

equilíbrio ao complexo ordenamento jurídico.

O enfoque democrático associado à atuação dos Tribunais Constitucionais, como

leciona Zacharias Ribeiro (2008, p. 155-179),

É tema que floresce após o término das ditaduras latino-americanas nos anos da

década de 1980, inexoravelmente torna as novas democracias mais robustas,

embora seja tema que nunca tenha perdido importância, ganha, hoje, maior

relevância, na medida em que a América Latina volta a discutir a legitimidade de

regimes supostamente democráticos que assumiram o poder em países como a

Venezuela e a Bolívia, onde a liderança de partidos de esquerda leva a uma

elevação dos tons nacionalistas e populistas, facetas estas que, conforme

demonstra a história recente das nações, redundam em desequilíbrio entre as

forças políticas e, desta forma, por via reflexa, levam a uma desarmonia entre os

poderes constituídos que, mais cedo ou mais tarde, culminam numa ditadura.

Dentre as funções que permeiam uma Carta Constitucional, além de fundar o

Estado, deve-se prever a possibilidade de limitação do poder, através da conjugação de

vários mecanismos, dentre os quais o amplo exercício democrático e a atuação de um

órgão capaz de proteger o núcleo inderrogável de preceitos constitucionais, possibilitando

assim um equilíbrio necessário entre os órgãos de poder.

Para tratar do tema democratização da Justiça Constitucional destacam-se dois

grandes exemplos, como o Tribunal Constitucional espanhol e o chileno, devido ao núcleo

inderrogável que deles emana, bem como de sua posição de harmonizador dos demais

poderes da República.

185

A complexidade do direito exige que um órgão possa deliberar, em definitivo,

como destaca Tavares (2008, p. 160), “acerca não só do controle de constitucionalidade –

função precípua do Tribunal Constitucional – bem como acerca de temas que envolvam a

distribuição de competências, atrito entre os Poderes, governabilidade, direitos

fundamentais, dentre outros”.

O Tribunal Constitucional, diante da reestruturação do sistema jurídico latino-

americano, ganha relevância para o desempenho das funções que eram vislumbradas, além

da preocupação com a tutela e a garantia da ordem constitucional, partindo-se da premissa

de defesa do próprio Estado, desde então, caracterizado como um Estado Constitucional.

A Constituição confere competência ao Tribunal Constitucional não apenas de

controle, impondo limites ao legislador, mas, também, a efetivação dos Direitos Humanos

Fundamentais, tornando-se assim, um guardião do sistema como um todo. Nesse sentido,

conforme assevera Canotilho (2005, p. 233), “O Tribunal Constitucional assume, ele

próprio, uma dimensão normativo-constitutiva do compromisso pluralístico plasmado na

Constituição”.

Somente a partir da Constituição Política chilena de 1925, é que se ventilou a

possibilidade de controlar a constitucionalidade de uma lei, através do artigo 86111

, que

criou de fato, o recurso denominado de inaplicabilidade pela inconstitucionalidade da lei,

um marco no direito público chileno, permitindo que a Corte Suprema pudesse apreciar se

as leis estavam adequadas ou não às regras constitucionais.

A Carta Fundamental chilena assume como núcleo inderrogável de Direitos

Humanos Fundamentais, o compromisso de conservar a unidade, a paz e a justiça,

possibilitando a expressão de uma sociedade plural em suas estruturas e ideais políticos,

onde cada um dos setores integram o sistema, de modo que as decisões representem o

conjunto da sociedade política.

Desde a redemocratização chilena, a reforma constitucional de maior impacto

ocorreu em 2005, que colocou fim a diversos entraves autoritários mantidos até então no

texto constitucional, conforme destaca Cumplido Cereceda (2005, p. 113-126):

111 “Artigo 86. La Corte Suprema tiene la superintendência directiva, correcional y econômica de todos los Tribunales de

la Nacion, com arreglo a la lei que determine su organizacion y atribuciones. La Corte Suprema, em los casos

particulares de que conozca o lê fueren sometidos em recurso interpuesto em juicio que se siguiere entre outro Tribunal,

podrá declarar inaplicable, para esse caso, cualquier precepto legal contrario a la Constitucion. Este recurso podrá

deducirse em cualquier estado Del juicio, sin que se suspenda su tramitacion”.

186

Restablece una clara subordinación de las Fuerzas Armadas al Presidente de la

República, el que puede destituir y cambiar a sus comandantes em jefe; se

elimina el rol político institucional del Consejo de Seguridad Nacional como

parte del poder tutelador del gobierno que había sido concebido em el texto

original de la Carta de 1980.

A Constituição chilena assegura qualquer direito essencial que emane da natureza

humana, com previsão legal em diversos dispositivos, dentre eles o art. 19 e o art. 5°,

atribuindo aos órgãos estatais o dever de respeitar e promover, como limites intrínsecos à

soberania, os assegurados pela Constituição, como também os extrínsecos, assegurados

pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile.

De maneira geral, a Constituição, no que tange aos direitos individuais, ainda que

com imperfeições em matéria de direitos sociais e econômicos, decorrente da concepção

do constituinte autoritário de 1980, teve alterações com a reforma constitucional de 1989.

A partir deste momento, incumbiu ao Estado o dever de respeitar e promover os direitos

estabelecidos pelos tratados ratificados pelo Chile, como o Pacto Internacional de Direitos

Sociais, Econômicos e Culturais, como núcleo inderrogável de direitos.

Como leciona Ortiz Gutierrez (2008, p. 339),

La Carta de 1980, estabelece en ninguna de sus disposiciones el derecho a un

nivel de vida digno o adecuado como un derecho de las personas, sólo en el

artículo 1°, inciso 4° determina que el Estado debe contribuir a crear condiciones

para la realización material y espiritual de la persona, como asimismo el inciso

final del artículo 1° estabelece el deber del Estado de promover la integración

armónica de todos los sectores sociales y assegurar el derecho de las personas a

participar con igualdad de oportunidades en la vida nacional.

O direito de proteção à saúde está assegurado constitucionalmente no art. 19, XIX,

que protege o livre e igual acesso às ações de promoção, proteção e reabilitação do

indivíduo, atribuindo como dever do Estado garantir a execução destas ações. No entanto,

cada pessoa tem o direito de escolher o sistema público ou privado de prestação de serviço.

Outra garantia fundamental, com previsão constitucional, é o direito à Previdência

Social. As ações do Estado devem ser dirigidas visando garantir que os cidadãos possam

gozar de serviços básicos, que objetivem não apenas a igualdade formal, mas também a

material, seja por meio de instituições públicas ou privadas.

Ainda no art. 19, VIII, a Carta Fundamental chilena assegura o direito de se viver

em um meio ambiente livre de contaminação. É dever do Estado garantir a sua efetivação e

187

tutelar pela preservação da natureza, estabelecendo restrições a certas liberdades e direitos

visando proteger o meio ambiente.

No que tange aos direitos culturais, como destaca Acalá (2008, p. 339-340),

El derecho a la educación en el artículo 19, n° 10. Se assegura el derecho y deber

preferente de los padres de educar a sus hijos. La educación básica y media es

obligatoria, debiendo el Estado financiar un sistema gratuiro con tal objeto,

destinado a assegurar el acceso a ella de toda la población. El mismo artículo 19

n° 10 establece que corresponderá al Estado fomentar el desarrollo de la

educación en todos sus niveles; estimular la investigación científica y

tecnológica, la creación artística y la protección e incrementar del patrimônio

cultural de la Nación.

Diferentemente do que constatamos na realidade brasileira, onde a Constituição da

República de 1988 prevê o direito à educação, como um direito básico e de proteção e

dever do Estado, no Chile, tal dever compete, primeiramente, aos pais, e subsidiariamente

ao Estado, destacando-se que a educação básica e fundamental é obrigatória, contudo, sem

fazer qualquer menção ao ensino superior.

No tocante às liberdades econômicas, o constituinte chileno tenta seguir a

concepção neoliberal, retirando do Estado as matérias econômico-sociais, limitando-o às

atividades empresarias. Deve prevalecer a livre iniciativa econômica e empresarial,

conforme prevê o art. 19, XXI da Carta Chilena, atribuindo-se a obrigação de igualdade de

tratamento do Estado em matéria econômica, fortalecendo o direito à propriedade privada,

ainda que se admitam limitações em decorrência da função social.

Embora discorra sobre os Direitos Humanos Fundamentais de forma específica e

esparsa por toda a Carta Constitucional chilena, destaca-se o artigo 19, XXVI, que versa

sobre o núcleo inderrogável dos direitos. Conforme Ortiz Gutierrez (2008, p. 339),

la seguridad de que los preceptos legales que por mandato de la Constitución

regulen o complementen las garantias que estabelece o que las limiten em los

casos que ella autoriza, no podrán afectar los derechos en su esencia, ni imponer

condiciones, tributos o requisitos que impidan su libre ejercicio.

Assim como no Brasil, através da Constituição da República de 1988, a Carta

Constitucional Chilena prevê um núcleo inderrogável de direitos. Ainda que possa haver

conflito entre normas, não pode existir a imposição de condições, tributos ou quaisquer

outros requisitos que afetem o livre exercício dos mandamentos constitucionais.

188

4.3 A inderrogabilidade de direitos na Constituição colombiana

Para tratar da evolução político-constitucional da República Colombiana, destaca-

se o período de 1976 a 2005. Entre 1970-1978 tem-se o “Desmonte da Frente Nacional”,

além do processo de decomposição da ordem pública com o bloqueio progressivo do poder

e do regime político, culminando com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte

de 1991.

O neoconstitucionalismo inaugurado no regime político constitucional da

Colômbia, ocorrido entre 1991-2005, visa consolidar a democracia, com especial atenção

aos desenvolvimentos legais e jurisprudenciais. Como adverte Pecaut (2006, p. 155-156),

Este período estuvo sin embargo marcado por hechos tan importantes como la

reunión de la Asamblea Nacional Constituyente, el cambio del modelo

económico, la crisis del gobierno de Samper, el fortalecimento de las FARC y el

aumento de la influencia de las organizaciones paramilitares.

Durante esta última etapa de desenvolvimento, consolida-se o novo modelo de

justiça constitucional, graças às ações constitucionais previstas para a proteção direta,

imediata e específica dos direitos constitucionais como a ação de tutela e as ações

populares, além da presença legítima da Corte Constitucional, do Conselho Superior de

Justiça e da Fiscalização Federal da Nação como novos mecanismos constitucionais

encarregados de efetivação da justiça.

No que tange à evolução e às transformações da Carta Constitucional colombiana,

divide-se em dois períodos distintos: o primeiro, denominado pré constitucional (1976 até

1991), e o segundo, pós constitucional (desde a entrada em vigor da Carta Política de 1991

até 2005).

O primeiro período, como destaca Carpizo (2007, p. 235-236), “trata de la etapa em

la que tuvo plena vigência del modelo consocional liberal conservador-conservador liberal

que impuso flertes limitaciones a la democracia y que configura una forma de evidente

presidencialismo dirigido y limitado”.

Há de se notar a ausência de rupturas entre os governos civis e uma contínua

estabilidade constitucional e econômica, acompanhadas pela tendência de um crescimento

relativo paulatino e desordenado de desenvolvimento social, além da transformação dos

modelos de crescimento predominantemente do regime agrário para urbanização e

desenvolvimento das cidades.

189

Destaca-se que a Constituição Política da Colômbia de 1886 teve sua vigência por

106 anos, exceto o período de 5 anos da ditadura militar, ocorrida entre 1953 até 1958,

quando sua aplicação ficou limitada.

O texto constitucional de 1991 significou, conforme aponta Ortiz Gutierrez (2008,

p. 250-251), “el inicio del proceso de cambio, reestructuración, actualización y

democratización de las más importantes piezas del régimen político colombiano, todo lo

cual había sido aplazado por varias y muy profundas causas durante casi todo el siglo

XX”.

Enquanto durante o século XX, praticamente em todo o mundo o direito

constitucional adquiria dimensões extraordinárias e inovadoras, à exceção dos períodos de

guerras na Europa, a partir de 1948, a Colômbia manteve um sistema político

extremamente rígido e refratário ao desenvolvimento, além de conservar um regime

constitucional vinculado a noções e cláusulas superadas pelo desenvolvimento e o fim das

ditaduras fascistas e nacionalistas.

O caminho para a construção colombiana de condições institucionais e materiais

para consolidar um regime de governabilidade democrática começou a partir da

transformação constitucional de 1991, em meio a profundas debilidades sociais,

econômicas e culturais que ameaçavam sua legitimidade.

Este processo de legitimação das transformações constitucionais na Colômbia tem

sido árduo e complexo no plano das disciplinas jurídicas, em especial a formação da

jurisprudência, haja vista a forte reação dos representantes do velho pensamento jurídico,

que encontram na antiga judicialidade sua expressão natural.

Alguns dos elementos que transformaram o constitucionalismo colombiano, na

visão de Ortiz Gutierrez (2008, p. 285-286),

Son los que integram la noción de Estado Social y democrático de derecho para

arribar al concepto de Estado democrático avanzado, al reforzar las reglas que

permiten alcanzar permanentes y actualizados consensos en los diversos

espacios y sedes de la sociedade organizada así como en sus diversos

fragmentos, y al reconocer nuevos y diferentes actores sociales validamente

habilitados para desarrolhar atividades y para actuar como interlocutores de los

cometidos públicos.

As transformações ocorridas através da Carta Política colombiana de 1991 vão

desde o Estado Unitário centralizado para um Estado Unitário complexo, com a

possibilidade de se criar entidades regionais e províncias, adotar uma noção de soberania

190

popular, respeitando no âmbito político o regime presidencial por eleição de maioria

simples.

No que tange ao regime de direitos e liberdades, foram apreciadas evoluções de

singular importância, com a criação de um rol de direitos constitucionais fundamentais,

cujo valor foi reforçado com cláusulas de aplicabilidade imediata, além do reforço judicial

na relação entre particulares, através das ações de tutela apreciadas com preferência em

relação às demais normas constitucionais.

O pluralismo cultural existente no âmbito de grande parte da sociedade latino-

americana foi um desafio para a realização de reformas institucionais nesta região. Estados

que buscavam democratizar suas instituições tiveram dificuldades em elaborar um discurso

mais participativo e verdadeiramente democrático usando a linguagem constitucional

forjada na modernidade europeia.

Estes novos temas constituem uma espécie de institucionalização jurídica do

multiculturalismo. Aos grupos indígenas passa a ser reconhecida uma dupla cidadania, ou

uma cidadania multicultural, e os indígenas passam a pertencer simultaneamente a duas

comunidades – a nacional e a cultural – sem que uma exclua a outra. No entanto, tal

duplicidade não vem sem problemas, pois tensões entre estas duas cidadanias são comuns

e devem ser resolvidas.

A Corte Constitucional colombiana manifestou-se em diversas ocasiões acerca da

colisão de princípios decorrente do reconhecimento da diversidade cultural no país112

. O

conflito que se concretiza é o seguinte: dar prioridade ao direito individual ou deixar que

uma prática cultural se afirme contra estes direitos? Esta “tensão”, ou conflito entre

princípios, tem sido um locus de atuação importante para o Judiciário. Como o Poder

Legislativo deixou de legislar sobre o exercício da autonomia indígena, coube à Corte

manifestar-se sobre eventuais conflitos entre ordens normativas.

Desta forma, notam-se alguns conflitos normativos gerados pelo reconhecimento

da diversidade cultural, conforme alude Semper (2006, p. 761-778):

De um lado, existe uma carta de direitos liberais, sob o título II da Constituição,

denominado “Dos Direitos Fundamentais”, que contém os direitos individuais de

caráter liberal, ou seja, direitos de liberdade e de proteção contra a interferência

do poder estatal. De outro, logo no Título I da Constituição, que trata “Dos

112 As decisões da Corte Constitucional em material indígena podem ser encontradas em:

http://www.ramajudicial.gov.co. Dentre as principais decisões da Corte sobre a colisão entre direitos individuais e

diversidade cultural, citamos: ST-428/92; T-567/92; ST 188/93; ST-380/93; T-342/94; T-007/95; SC-104/95; ST-496/96;

SU 039/97; ST-254/94; SC-139/96; ST-349/96; ST-496/96; SU 510/98 e 652/98.

191

Princípios Fundamentais” (artigos 1-10), no artigo 1º, afirma-se o caráter

pluralista do Estado colombiano. De acordo com o artigo 7º da mesma Carta “o

Estado reconhece e protege a diversidade étnica e cultural da nação colombiana”

e, conforme o artigo 8º, “é obrigação do Estado e da sociedade proteger as

riquezas culturais e naturais da nação”.

Juntos, estes princípios constitucionais são os pilares do direito à diversidade

cultural na Colômbia, pois eles estruturam e dão suporte à realização de outras normas

garantidoras do direito à identidade cultural. A natureza jurídica e o alcance deste princípio

constitucional formulado em termos genéricos são pouco claros e problemáticos. No caso

concreto, é a Corte Constitucional que determina o âmbito de proteção dos artigos 1º, 7º e

8º da Constituição, ponderando-os com outros princípios constitucionais que tenham peso

comparável.

Os princípios contidos nos artigos 7º e 8º são regulamentados por meio de outros

dispositivos constitucionais, que garantem o ensino bilíngue dentro de comunidades

indígenas (artigo 10), a propriedade coletiva das terras indígenas (artigo 329), a autonomia

dos povos indígenas dentro deste território (artigos 287, 329 e 330) e o direito à jurisdição

especial indígena (artigo 246). Estes artigos determinam os fundamentos da autonomia

indígena e, portanto, do princípio da diversidade cultural: o direito reconhecido às

comunidades indígenas de elaborar suas próprias normas e o direito de aplicá-las, no

âmbito de seus territórios.

Desta forma, a Constituição colombiana eleva como núcleo inderrogável de

direitos, o respeito à liberdade e à diversidade, em especial, atribuindo-se direitos à

população indígena, que ao longo de toda a história foi deixada à margem da sociedade,

como se não fosse sujeito de direitos.

4.4 A inderrogabilidade de direitos na Constituição argentina

A Constituição Nacional argentina foi discutida pelo poder constituinte aberto

atendendo a especial situação com motivo de separação e incorporação da província de

Buenos Aires que se incorporou definitivamente no Estado Nacional em 1859, passando

por três reformas parciais, em 1866, 1898 e 1957, que integram o texto vigente.

Em 1993, a Constituição Nacional argentina foi objeto de uma reforma total em

especial em sua primeira parte, com um capítulo único de declarações, direitos e garantias,

onde se encontram explícitos ou implicitamente reconhecidos todos os direitos e garantias

192

individuais próprias do movimento constitucional na América Latina, agregando-se a

reforma de 1957, os direitos sociais em seu art. 14°, realizando na parte dogmática um

notável aporte ao seu desenvolvimento.

A Constituição Argentina, desde sua promulgação, em 1853, adotou o modelo

norte-americano da judicial review, incumbindo aos diversos órgãos do Poder Judiciário,

através de controle difuso, efetuar o controle de constitucionalidade das leis e dos atos

normativos. Em última instância, caberá à Suprema Corte de Justiça analisar e decidir

quanto às controvérsias entre preceitos fundamentais.

O constitucionalismo argentino, como observam Alfonsín e Manili (2003, p. 532),

Los términos de la Constituión americana y los de la nuestra coinciden tan

perfectamente en estabelecer la jurisdicción de los tribunales supremos de

justicia para la interpretación de la Constitución, que podemos sin restricción

reproducir las doctrinas recibidas para la una como perfectamente emanadas de

outra.

No que tange aos Direitos Humanos Fundamentais, relevante destacar o impacto

das inovações introduzidas com a reforma constitucional argentina, ocorrida em 1994, a

partir da ampliação de normas explícitas (previstas nos arts. 37, 41, 42 e ss. da

Constituição Argentina)113

, os processos constitucionais de proteção, como habeas corpus

e habeas data (art. 43)114

, além da atribuição de hierarquia constitucional aos instrumentos

internacionais115

que versam sobre direitos humanos (art. 75, inc. XXII, §2°)116

.

113 “Articulo 37º – Esta Constitucion garantiza el pleno ejercicio de los derechos politicos, con arreglo al principio de la

soberania popular y de las leyes que se dicten em consecuencia. El sufragio es universal, igual, secreto y obligatorio.

“Articulo 41º – Todos los habitantes gozan del derecho a um ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano

y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones

futuras, y tienen el deber de preservarlo. El danho ambiental generara prioritariamente la obligacion de recomponer,

segun lo establezca la ley”. “Articulo 42º – Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la

relacion de consumo, a la proteccion de su salud, seguridad e intereses economicos; a una informacion adecuada y veraz;

a la libertad de eleccion y a condiciones de trato equitativo y digno”. 114 “Articulo 43º– Toda persona puede interponer accion expedita y rapida de amparo, siempre que no exista otro medio

judicial mas idoneo, contra todo acto u omision de autoridades publicas o de particulares, que en forma actual o

inminente lesione, restrinja, altere o amenace, con arbitrariedad o ilegalidade manifiesta, derechos y garantias

reconocidos por esta Constitucion, un tratado o una ley. En el caso, el juez podra declarar la inconstitucionalidad de la

norma en que se funde el acto u omision lesiva”. 115 Os instrumentos internacionais recepcionados com hierarquia constitucional originária são: A Declaração Americana

de Direitos e Deveres do Homem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, A Convenção Americana sobre

Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e seu protocolo facultativo, A Convenção sobre a

Prevenção e Sanção dos Crimes de Genocídio, A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação Racial, A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, A

Convenção contra a Tortura e outros meios de Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e a Convenção sobre os

Direitos da Criança. 116 “Articulo 75º – Corresponde al Congreso: [...] 22.Aprobar o desechar tratados concluidos con las demas naciones y

con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquia

superior a las leyes.[...]§2° Los demas tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el

Congreso, requeriran del voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Camara para gozar de la

jerarquia constitucional”.

193

Percebe-se, a fim de seguir os preceitos de um movimento constitucional moderno,

que busca assegurar os direitos das classes minoritárias e afirmar os direitos políticos,

sociais, coletivos e do consumidor, que a Constituição Nacional argentina cria mecanismos

para garantir a efetividade de um núcleo inderrogável de direitos.

Nesse sentido, como observa Haro (1999, p. 474-475),

A manera de conclusión, es indudable que tanto por el Cap. 2 intitulado “Nuevos

Derechos y Garantías” como por los Tratados de Derechos Humanos referidos, a

lo que debemos asimismo agregar el reconocimiento a la preexistência étnica y

cultural de los pueblos indígenas argentinos (Art. 75°, inc. 17), se ha acrecentado

de manera muy auspiciosa la dogmática constitucional, al incorporar nuevos

derechos, deberes y garantias que hacen a la dignidad de la persona humana,

algunos nuevos, pero muchos que ya estaban receptados en el orden jurídico

argentino y ahora reciben expresso reconocimiento constitucional.

O precedente vem afirmar uma marcada perspectiva personalista e societária,

enquanto através de seu exercício cada homem, enfim, a sociedade, procura alcançar a

maior plenitude e desenvolvimento integral e harmônico, visão que se complementa com a

disposição do inciso XIX do art. 75 da Constituição Nacional argentina, que estabelece

como atribuição do Congresso promover a população ao desenvolvimento humano e ao

progresso econômico com justiça social.

Para a criação do núcleo inderrogável de direitos, uma importante reforma ocorreu

no sistema judiciário, em especial no sistema de controle de constitucionalidade, que da

mesma forma como se deu a célebre decisão proferida pelo caso Marbury versus Madison,

as premissas judiciais da judicial review na Argentina foram extraídas de princípios

implícitos na Constituição.

Interessante notar que a Constituição Nacional argentina expressamente consagra o

princípio da supremacia em seus arts. 31 e 116, respectivamente, que assim consignam:

Art. 31. Esta Constitución, las leyes de la Nación que en su consecuencia se

dicten por el Congreso y los tratados con las potencias extranjeras son la ley

suprema de la Nación [...].

Art. 116. Corresponde a la Corte Suprema y a los tribunales inferiores de la

Nación, el conocimiento y decisión de todas las causas que versen sobre puntos

regidos por la Constitución, y por las leyes de la Nación.

Entretanto, os dispositivos destacados constituem dois importantes marcos

normativos acerca do tema, haja vista que a Constituição Nacional Argentina, assim como

a norte-americana, não estabelece, de modo explícito, de que forma se dará o controle,

194

como observam Vanossi e Ubertone (1996, p. 47), “como en el caso norteamericano,

nuestra Constitución Nacional no prevê de manera específica la atribución judicial de

controlar la constitucionalidad de leyes”.

O precedente jurisprudencial que conferiu esta atribuição ao Poder Judiciário foi o

caso Sojo117

, julgado em 1887 pela Suprema Corte, ainda que em precedentes anteriores, a

Corte já tenha decidido acerca da constitucionalidade de um decreto expedido pelo Poder

Executivo e de duas leis provincianas, como nos casos Rio Ramón y otros, de 4 de

dezembro de 1863 e o caso Domingo Mendoza y outro c/ Província de San Luis, de 5 de

dezembro de 1865.

Nesse sentido, para concluir a análise de algumas evoluções constitucionais na

América Latina, serão abordadas as transformações e evoluções ocorridas no Estado

Plurinacional da Bolívia e suas implicações no chamado neoconstitucionalismo, que

passou a observar a diversidade como critério para a criação de normas constitucionais,

dando origem ao núcleo inderrogável de direitos.

4.5 A inderrogabilidade de direitos na Constituição boliviana

As inovações introduzidas pelo novo movimento constitucional, em especial no

que tange à legitimação constitucional, partem de duas premissas: pela forma de atuação e

pela composição dos tribunais, assegurando a estes um caráter democrático, onde essa

esfera de legitimação é relativizada na busca da construção dos limites e contornos de sua

atuação, visando efetivar os Direitos Humanos Fundamentais.

Contudo, como sustenta Tavares (2005, p. 495), “permanece, todavia, a questão

central, sobre a legitimidade na forma de composição, considerando que os seus membros

exercerão a função de controle de outros agentes eleitos pelo povo”. Para que possa ser

preenchido o pressuposto democrático, é necessário previsão expressa na Carta

Constitucional, por vontade do constituinte.

117 O redator do periódico Don Quijote, Eduardo Sojo, publicou um desenho que a Câmara dos Deputados considerou

ofensivo e, por esta razão, determinou a detenção do jornalista durante o período de duas sessões. Este, então, impetrou

um habeas corpus perante a Corte Suprema, fundado numa Lei de 1863. Decidiu-se que a Lei jamais poderia sobrepor-se

à Constituição, que não dá competência à Corte Suprema para o processamento e julgamento de habeas corpus na

hipótese discutida pelo impetrante. Como conclui Baeza (2004, p. 101): “Apesar da similitude entre este caso e o

precedente de “Marbury”, pois em ambos tratou-se de normas emanadas do Congresso que ampliavam a competência

que a Constituição atribui à Corte Suprema de Justiça, o certo é que enquanto no caso americano declarou-se a

inconstitucionalidade da lei, no “Sojo” se concluiu que a norma não havia extravasado o âmbito de sua competência, mas

que, se o tivesse feito, seria contrária à Constituição”.

195

O argumento jacobino, na visão de García de Enterría (1983, p. 189-190),

a possibilidade de uma decisão judicial se sobrepor a um voto majoritário da

Assembleia, representante da vontade geral, é não só claramente sofismático,

senão negador do próprio conceito de Constituição. Esta é a obra do Poder

Constituinte e como tal superior ao poder ordinário, que só pode organizar-se

como tal em virtude da Constituição.

Esta visão é complementada por Tavares (2005, p. 502), por entender que é

“insuficiente para justificar a função limitadora do exercício do poder pelos demais órgãos,

partindo, então, para uma justificação complementar, agora em razão do processo a ser

observado, ou seja, a técnica da decisão”.

No tocante à história constitucional boliviana e à criação de seu núcleo

inderrogável de direitos, analisar-se-á, primeiramente, o comportamento da Justiça

Constitucional boliviana antes da criação do tribunal constitucional, durante os períodos de

falência democrática, e os elementos democráticos na composição e funcionamento da

Justiça Constitucional plurinacional.

A Constituição de 1826 instituiu o controle político da constitucionalidade dos atos

do Executivo a cargo da “Câmara dos Censores”, em seu art. 51: “Compete à Câmara dos

Censores: 1. Velar se o Governo cumpre e faz cumprir a Constituição, as leis e os tratados

públicos[...]”. Na Carta para Segado (1997, p. 360), “omite cualquier referencia a una

cláusula de supremacía similar de 1787 de Estados Unidos y menos consagra el poder

judicial para solicitar cualquiera de velar por la constitucionalidad de las leyes”.

Já na Constituição de 1831 foi criado o “Conselho de Estado”, em seu art. 98, com

a competência de “velar sobre a observância da Constituição e informar o corpo legislativo

sobre tais infrações [...]”. Referido conselho era composto de sete conselheiros eleitos pelo

Congresso, de uma lista de dez pessoas eleitas pelo povo, mas sua função era meramente

informativa das violações constitucionais. Portanto, seu trabalho era ineficaz.

A Constituição de 1839 extinguiu o Conselho de Estado sem prever qualquer tipo

de controle. O controle político somente foi reestabelecido pela Constituição de 1843, mas

as informações deveriam ser prestadas ao Poder Executivo, até o golpe de Estado em 1848,

quando o General Manuel Isidoro Belzu extinguiu a Corte Suprema, sob o pretexto de falta

de recursos financeiros.

Na Constituição de 1851, novamente, extinguiu-se o Conselho de Estado, sem

previsão de controle, mas que apresentou certo avanço ao consagrar o princípio da

196

supremacia da Constituição frente às leis ordinárias, levando assim a doutrina a considerar

a possibilidade da existência do controle difuso judicial.

Já em 1921, a Corte Suprema esclareceu, segundo Segado (1997, p. 360),

la posibilidad del conocimiento de la constitucionalidad de las leyes en Bolivia

se inspira en la práctica de la Corte Federal de la Gran República (en referencia a

la Corte Suprema de los Estados Unidos). La Constitución de 1938 preveía la

exhibición y 1967, la acción de amparo y la característica de inaplicabilidad, un

hormigón normas de control de procesos con efectos inter partes.

Embora a Bolívia tenha reiteradamente inserido em suas Constituições a previsão

de controle, inspirada no modelo norte-americano, sua efetividade é questionável, haja

vista que a Corte Suprema acabou se tornando lenta, dado o elevado número de processos

e também pela corrupção.

A Constituição de 1994 criou o Tribunal Constitucional nos termos do artigo 119,

que estabelece:

Art. 119: I. O Tribunal Constitucional é independente e está submetido somente

à Constituição. Tem sua Sede na Cidade de Sucre. II. Está integrado por cinco

magistrados que formam uma única Sala e são designados pelo Congresso

Nacional por dois terços de votos dos membros presentes. III. O presidente do

Tribunal Constitucional é eleito por dois terços de votos do total de seus

membros. IV. Para ser magistrado do Tribunal Constitucional se requerem as

mesmas condições que para ser ministro da Corte Suprema de Justiça118

.

Desempenham suas funções por um período pessoal de dez anos improrrogáveis

e podem ser reeleitos, passado um tempo igual ao que houverem exercido seu

mandato. VI o processamento penal dos magistrados do Tribunal Constitucional

por delitos cometidos no exercício de suas funções se rege pelas normas

estabelecidas para os ministros da Corte Suprema de Justiça.

Na reforma constitucional de 1994 foi criado o Tribunal Constitucional

encarregado do controle abstrato e concreto, repressivo e preventivo, a proteção dos

direitos fundamentais individuais, a solução dos conflitos de competência e as ações de

nulidade. Inverteu-se a situação, haja vista que o modelo boliviano passou a ser

concentrado, abstrato e sem prejuízos de inúmeras outras atribuições.

No tocante ao tema do controle de constitucionalidade, foram relevantes: a criação

do Tribunal Constitucional como órgão independente submetido apenas à Constituição; a

função precípua do Tribunal Constitucional de controle de constitucionalidade e de

interpretação judicial da Constituição; a forma de composição do Tribunal; atribuição de

118 Nacionalidade, nato, prestação de serviço militar, idade mínima de 35 anos, estar inscrito no registro civil, não ter

antecedentes criminais, ser jurista e demonstrar 10 anos de experiência profissional (art. 117, 3 e 64 e 61 da

Constituição). Só é permitido acumular uma atividade docente.

197

amplo elenco de competências e legitimidade para o exercício do controle abstrato

concentrado.

O Tribunal Constitucional iniciou seus trabalhos em junho de 1999, conhecendo de

recursos indiretos ou incidentais de inconstitucionalidade de leis, decretos e qualquer

gênero de resoluções não judiciais de acordo com o art. 120 n° 1 da Constituição em

harmonia com o artigo 7 n° 2 da Lei 1.836 do Tribunal Constitucional. Segundo Alcalá

(2002, p. 77),

Viniendo en procedimientos judiciales o administrativos cuya decisión depende

de la constitucionalidad o inconstitucionalidad de una ley, decreto o cualquier

arreglo no judicial de género representan esos procesos. El complejo está

promovido por el juez, tribunal o autoridad administrativa, de oficio oa petición

del partido.

O controle concreto da constitucionalidade das leis bolivianas se faz por dois

modos: mediante consulta diante de um caso concreto, por solicitação das partes ou de

ofício pelo próprio juiz; ou, uma consulta pelo Presidente da República, pelo Presidente do

Congresso Nacional ou pelo Presidente da Corte Suprema da Justiça sobre a

constitucionalidade de projetos de leis, decretos ou resoluções, aplicáveis a um caso

concreto.

No tocante à jurisdição constitucional entre tribunais ordinários e Tribunal

Constitucional, observa Alcalá (2002, p. 80):

En este sentido, parece que una mejor coordinación en materia de jurisdicción

constitucional entre los tribunales ordinarios y el Tribunal Constitucional se

desarrolla en Bolivia con el procedimiento incidental ante el Tribunal

Constitucional promovidas por los jueces o por el afectado en un procedimiento

judicial, similar al conjunto de Europa del tribunales constitucionales de

Alemania, Italia y España, entre otros.

Quanto às decisões da Corte Suprema de Justiça, sustenta Harb (1997, p. 353) que

até a reforma de 1994, “tenido efectos únicamente a los demandantes, las leyes eran y no

eran inconstitucionales, que fue retirado por la reforma de 1994, en su artículo. 121 dio

efecto a las resoluciones y decisiones de la Corte Constitucional”.

A profunda modificação ocorrida na Bolívia com a criação do Tribunal

Constitucional, seja no campo da política, social ou econômico, visa propiciar a eficácia do

controle de constitucionalidade, além de ressaltar a necessidade de se exercer uma ampla

pedagogia constitucional, a fim de generalizar a educação dos indivíduos para a prática das

instituições democráticas.

198

Entretanto, o simples translado da competência para outro tribunal não é garantia

da efetividade do controle, haja vista que o Tribunal Constitucional está subordinado

administrativa e financeiramente ao Conselho Superior de Justiça, que pode prejudicar o

desempenho das funções do tribunal.

4.6 Conclusões parciais

Ao analisar-se o movimento constitucional no sentido da criação de um núcleo

inderrogável de direitos, seja em maior ou menor grau, todos caminham na mesma direção,

a de valorizar e proteger o ser humano, através da criação de normas, sistemas de controle,

buscando dar efetividade a estes textos constitucionais, através da implementação de

políticas públicas.

No caso chileno, destaca-se a disseminação do princípio democrático em todas as

esferas de poder, seja de maneira intrínseca (no que tange à sua formação), quanto

extrínseca (no que diz respeito à sua atuação), culminando com uma democratização da

Justiça Constitucional, pela participação de distintos poderes na composição do Tribunal

Constitucional e na sua forma de atuação, por meio dos mecanismos que lhe confere a

nova Constituição no sentido de trazer equilíbrio ao complexo ordenamento jurídico.

Na Constituição colombiana destaca-se a consolidação do novo modelo de justiça

constitucional, graças às ações constitucionais previstas para a proteção direta, imediata e

específica dos direitos constitucionais como a ação de tutela e as ações populares, além da

presença legítima da Corte Constitucional, do Conselho Superior de Justiça e da

Fiscalização Federal da Nação como novos mecanismos constitucionais encarregados de

efetivação da justiça.

Já na Carta Nacional argentina, destaca-se a reforma total ocorrida em 1994, em

especial em sua primeira parte, com a criação de um capítulo único de declarações, direitos

e garantias, onde se encontram explícita ou implicitamente reconhecidos todos os direitos e

garantias individuais próprias do movimento constitucional na América Latina, agregando-

se a reforma de 1957 e os direitos sociais em seu art. 14°, realizando na parte dogmática

um notável aporte ao seu desenvolvimento.

E, por fim, discorre-se sobre o movimento constitucional que passou pelas maiores

transformações e que ainda vem assimilando as novas tendências constitucionais, através

da Constituição boliviana, com a criação do Tribunal Constitucional como órgão

199

independente submetido apenas à Constituição; função precípua do Tribunal

Constitucional de controle de constitucionalidade e de interpretação judicial da

Constituição; a forma de composição do Tribunal; atribuição de amplo elenco de

competências e legitimidade para o exercício do controle abstrato concentrado.

Nesse cenário, de sedimentação e fortalecimento das práticas constitucionais, bem

como dos Direitos Humanos Fundamentais é que serão analisados, no contexto

internacional, a inderrogabilidade nos sistemas de proteção global e regional de Direitos

Humanos, através dos sistemas interamericano, europeu, africano e asiático, criados após a

Segunda Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,

culminando na criação de tratados e convenções internacionais com o fito de efetivar as

intenções de humanização da Declaração de 1948.

200

5 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NOS SISTEMAS DE

PROTEÇÃO INTERNACIONAL E REGIONAL DOS DIREITOS

HUMANOS

5.1 A internacionalização da proteção dos direitos humanos pós Segunda Guerra

Mundial

Ao analisar a evolução dos direitos e garantias fundamentais, passando pelas

transformações constitucionais ocorridas na América Latina, percebe-se que a mudança de

paradigma foi decorrente de uma série de lutas, avanços e retrocessos que influenciaram

diretamente na formação do constitucionalismo tanto global quanto regional, assim como

na consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, símbolo do século XX e

do final da Segunda Guerra Mundial.

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos, conforme Buergenthal

(1988, p. 17), “It is a post-war phenomenon. Its development can be attributed to the

monstrous human rights violations was Hitler and the belief that some of these violations

could be prevented if an effective international system of protection of human rights

existed”.

A proteção dos Direitos Humanos em âmbito supranacional é um fenômeno pós-

guerra, atribuído principalmente às monstruosas violações à humanidade da era Hitler e à

crença de que tais violações poderiam ser prevenidas se existisse um sistema efetivo de

proteção internacional destes direitos.

Ademais, em todo o período de evolução da proteção dos direitos e garantias

fundamentais, a internacionalização dos Direitos Humanos é fruto de um movimento

recente na história, decorrente da Segunda Guerra Mundial, em resposta às atrocidades

cometidas contra a pessoa humana durante o nazismo.

Por mais de meio século, pós Segunda Guerra, enfatiza Henkin (1990, p. 2), “the

international system has demonstrated commitment to values that transcend the values

purely 'state', notably human rights, and has developed an impressive normative system of

protection of these rights”.

Essa evolução de pensamento decorre da tentativa de minimizar os horrores da era

Hitler, que ficou marcada pela destruição e descartabilidade da pessoa humana, resultando

na criação de mecanismos e de instrumentos de proteção que pudessem atuar não apenas

no plano doméstico, mas criar uma universalidade de atuação destes instrumentos.

201

A internacionalização dos Direitos Humanos surge como o novo paradigma ético

no intuito de restaurar a lógica do razoável, rompendo com o totalitarismo, que negava que

a pessoa humana pudesse ser a fonte do direito, emergindo a necessidade de reconstruir os

Direitos Humanos, aproximando-se o direito da moral.

Desta forma, segundo Sachs (1998, p. 33), “o século XX foi marcado por duas

guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e

industrial”. Nesse cenário, Hannah Arendt destaca que o maior direito passa a ser o direito

a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos, sem considerar questões étnicas,

raciais ou econômicas.

Ainda sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos, como

processo de democratização e disseminação da paz entre os Estados-nação, observa Lafer

(1988, p. 26),

Configurou-se como a primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao

fato de que o direito ex parte populi de todo ser humano à hospitabilidade

universal só começaria a viabilizar-se se o ‘direito a ter direitos’, para falar com

Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homologadora do ponto de

vista da humanidade. Foi assim que começou efetivamente a ser delimitada a

‘razão de estado’ e corroída a competência reservada da soberania dos

governantes, em matéria de direitos humanos, encetando-se a sua vinculação aos

temas da democracia e da paz.

O desafio apresentado nesse contexto é o de reestabelecer a ordem internacional

com parâmetros que busquem a criação de um núcleo inderrogável de direitos, tendo como

parâmetro a dignidade da pessoa humana, e que possa apresentar instrumentos capazes de

garantir a eficácia destes direitos, por meio da introdução da ética e da moral no

estabelecimento de normas tanto globais quanto domésticas.

A necessidade de uma ação internacional mais eficaz, para a proteção dos Direitos

Humanos, como ensina Piovesan (2012, p. 185),

Impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando com

a criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a

responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições

nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos

humanos.

A reconstrução de um novo modelo internacional que possa ser eficaz na proteção

dos Direitos Humanos necessariamente delimitará o conceito de soberania estatal,

contrariando assim, os princípios básicos da não intervenção, como corolário dos Direitos

Fundamentais dos Estados, especialmente no que tange à soberania e à igualdade jurídica.

202

São identificados três princípios básicos, de natureza costumeira, pertinentes ao

princípio da não intervenção, e que dificultam a criação de uma Constituição Internacional,

como aponta Guerra (2014, p. 74),

(I) a que proíbe um Estado de interferir nos assuntos domésticos de outro

Estado; (II) a que proíbe um Estado de apoiar dentro do seu território atividades

prejudiciais a outro Estado;

(III) a que veda um Estado dar apoio a beligerantes e insurgentes, caso esteja

acontecendo um conflito no âmbito de um determinado Estado.

No entanto, este conceito de intervenção tem sido um tema de relevante discussão

no Direito Internacional, haja vista uma confusão sobre a esfera de atuação: se consiste

apenas em assuntos internos, como na mudança forçada da forma de governo, ou se

também abrange os problemas de natureza externa, como a imposição de certas normas em

relação à política exterior.

Segundo certa corrente doutrinária, o ato da intervenção somente se caracteriza

quando reúne os seguintes elementos, na visão de Mello (1997, p. 456): “(a) estado de paz;

(b) ingerência nos assuntos internos e externos; (c) forma compulsória desta ingerência;

(d) finalidade de o autor da investigação impor a sua vontade; (e) ausência de

consentimento de quem sofre a intervenção”.

Essa intervenção apenas pode ocorrer nos casos avalizados e analisados pela

Organização das Nações Unidas, haja vista seu caráter internacional que tem como

objetivo a manutenção da paz e da segurança internacionais, sendo vedado quando um

Estado ou grupo de Estados interfere nos assuntos internos ou externos, para impor a sua

vontade sem observar as normas internacionais, caracterizando uma clara violação à

soberania estatal e à igualdade jurídica.

Para se estabelecer um núcleo inderrogável de direitos fundamentais na esfera

global, são necessários sacrifícios, na ordem da delimitação da soberania estatal,

submetendo-se a órgãos ou comissões internacionais que podem aplicar sanções em caso

de descumprimento ou violação a direitos e garantias voltadas à proteção da pessoa

humana.

Uma expressão utilizada pela doutrina anglo-americana é a chamada intervenção

humanitária, que os franceses denominaram de ingerência, estabelecendo a necessidade de

promover a assistência humanitária em situações emergenciais, causadas por conflitos

203

armados, catástrofes naturais ou promovidas pelo próprio Estado ou governo para diminuir

o sofrimento causado à população civil.

Esta ingerência em favor das vítimas, em situações de extrema urgência

humanitária, elucida Salcedo (1997, p. 130),

Aparece ante todo como un imperativo moral y fue introducida para designar

uma actitud ética, esto es, para referirse a las exigencias de solidaridad que

mueven a socorrer a las victimas de las violaciones masivas de derechos

humanos fundamentales producidas a consecuencia de uma situación de

urgencia humanitaria, cualquiera sea su origen, y em especial las que derivan de

las situaciones de catástrofes políticas, caracterizadas por la desintegración de la

autoridade política.

A atuação e aplicabilidade desses ideais apresentam enormes dificuldades no que

tange ao reconhecimento dessa situação jurídica, como a eficácia das normas de direito

internacional humanitário, a atuação somente nas situações de emergência humanitária

advinda de conflitos armados, e a aspiração de garantir juridicamente o livre acesso das

vítimas de catástrofes humanitárias.

A fim de exemplificar essa dificuldade destaca-se, mais uma vez, os conflitos

propagados desde 2010, na região da Síria. Milhares de refugiados tentam conseguir asilo

nos países vizinhos, mas são barrados, por questões burocráticas ou xenofóbicas. Fato é

que, a cada dia, milhares de pessoas morrem na tentativa de fugir dessa guerra civil.

Entretanto, apenas após a Segunda Guerra Mundial começou-se a relativizar o

conceito de soberania estatal, com a criação de limitações, observando-se os Direitos

Humanos, conforme explicam Claude e Weston (1989, p. 4-5),

With the rise and decay of Nazi Germany – the doctrine of state sovereignty has

been dramatically changed. The doctrine in defense of unlimited sovereignty

was increasingly attacked, during the twentieth century, especially in the face of

the consequences of the revolution of the horrors and atrocities committed by the

Nazis against the Jews during World War II, which caused many scholars

conclude that state sovereignty is not an absolute principle, but must be subject

to certain limitations for human rights.

A ascensão e decadência do nazismo na Alemanha foi o marco histórico,

responsável pela alteração da doutrina da soberania estatal, ao passo que durante o século

XX, em especial em decorrência da revolução e das atrocidades cometidas pelos nazistas

contra os judeus, fez com que a soberania ilimitada, como princípio absoluto, passasse a

ser relativizada, sujeita a certas limitações sob a égide dos Direitos Humanos.

204

A proteção internacional dos Direitos Humanos passou a ocupar um espaço central

na agenda das instituições internacionais, restringindo assim a atuação do Estado que, após

essa ruptura de paradigma, não pode mais tratar os indivíduos como objetos,

desumanizados, sem sofrer responsabilização na arena internacional.

Reflexo dessa exortação da moral e de uma reorganização dos Estados com base na

moral e na ética vislumbrou-se em 1945-1946 com a criação do Tribunal de Nuremberg,

como um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos,

estabelecendo critérios para a responsabilização dos alemães pela guerra e pelos abusos do

período, culminando com o Acordo de Londres de 1945, que instituiu um Tribunal Militar

Internacional para julgar os criminosos de guerra.

Ao definir os crimes que seriam abarcados pela jurisdição do Tribunal, o Acordo de

Londres, ilustra Steiner e Alston (2000, p. 114-123),

When defining the crimes that would be embraced by the Court's jurisdiction,

the Charter [annexed to the London Agreement of 1945] was beyond the

traditional 'war crimes' in two respects. First, the Charter included the 'crimes

against peace' – the so-called jus ad bellum, which contrasted with the war rights

category or jus in bello. Second, the term 'crimes against humanity' could have

been read to include the entire Nazi government program of extermination of

Jews and other civil groups, both inside and outside Germany, 'before or during

the war', and to include, therefore, not only the Holocaust but also the

preparation of plans and the initial persecution of Jews and other groups at a

time prior to the Holocaust.

A instituição, pela primeira vez, de um Tribunal Internacional, para julgar os

crimes de guerra, inovou especialmente em dois pontos fundamentais: ao incluir os crimes

contra a paz que contrastavam com os direitos de guerra, e ao incluir os crimes contra a

humanidade, de modo a abranger a totalidade do programa do governo nazista de

extermínio dos judeus e de outros grupos civis, dentro e fora da Alemanha, antes e durante

a guerra, considerando não apenas o Holocausto, mas também a elaboração dos planos e

perseguição dos judeus e de outros grupos em momentos anteriores ao Holocausto.

Definida a competência, por meio do Acordo de Londres, ao Tribunal de

Nuremberg atribuiu-se a responsabilidade de julgar os crimes cometidos ao longo do

nazismo, seja pelos líderes do partido, seja pelos oficiais militares. Com base no art. 6° do

referido acordo, fixou os crimes sob a jurisdição do Tribunal que demandam

responsabilidade individual, como aqueles cometidos contra a paz, os crimes de guerra e

os crimes contra a humanidade.

205

A respeito do Tribunal de Nuremberg e das sanções aplicáveis no plano

internacional, explica Kelsen (2009, p. 327):

Se indivíduos são diretamente obrigados pelo Direito Internacional, tais

obrigações não invocam sanções específicas do Direito Internacional (represália

ou guerra) ao comportamento dos indivíduos. A obrigação diretamente imposta

aos indivíduos é constituída por sanções próprias do Direito Interno,

nominalmente a punição e a execução civil. O direito Internacional pode deixar a

determinação e a execução dessas sanções a critério da ordem jurídica nacional,

como no caso do delito internacional e da pirataria. As sanções podem ser

determinadas por um tratado internacional e sua aplicação a casos concretos

pode ser efetuada por uma Corte Internacional criada pelo tratado internacional;

isto ocorreu, por exemplo, no caso do julgamento de crimes de guerra, de acordo

com o Acordo de Londres, de 8 de agosto de 1945.

Ao mencionar a criação desse Tribunal especial, destaca-se um salto significativo

na evolução da proteção dos Direitos Humanos, a fim de propiciar sanções aqueles que

cometessem, em nome de uma suposta positividade, crimes contra a humanidade,

apontando-se pela primeira vez, um órgão capaz de julgar os crimes de guerra e atribuir as

respectivas penas pelos delitos cometidos.

A condenação criminal dos indivíduos que participaram na disseminação do

nazismo fundamentou-se, basicamente, na violação de costumes internacionais, ainda que,

de forma bastante controvertida, tenha se pautado na alegação de afronta ao princípio da

legalidade do direito penal, sob o argumento de que os atos punidos pelo Tribunal de

Nuremberg não eram considerados crimes no momento em que foram cometidos,

justamente, baseados no Reich.

O Acordo de Londres assim como o Tribunal de Nuremberg, sofreram importantes

críticas, em especial no que tange ao princípio da legalidade no direito penal, conforme

destaca Kelsen (1947, p. 153-171):

A objeção mais frequentemente colocada – embora não seja a mais forte – é que

as normas aplicadas no julgamento de Nuremberg constituem uma lei post facto.

Há pouca dúvida de que o Acordo de Londres estabeleceu a punição individual

por atos que, ao tempo em que foram praticados, não eram punidos, seja pelo

direito internacional, seja pelo direito interno. [...] Contudo, este princípio da

irretroatividade da lei não é válido no plano do direito internacional, mas é

válido apenas no plano do direito interno, com importantes exceções.

A instauração e as condenações decorrentes do Tribunal de Nuremberg assumem

um duplo significado no processo de internacionalização dos Direitos Humanos: primeiro,

consolidando a ideia da necessidade de se limitar a soberania nacional, ao reconhecer que

206

os indivíduos têm direitos protegidos pelo Direito Internacional, e segundo, a mudança nas

relações interestatais, ampliando o alcance de atuação das normas de direitos humanos,

voltadas não apenas ao cenário nacional, mas também à internacionalização desses

direitos.

A ruptura do paradigma da soberania estatal ilimitada propiciou a criação de

mecanismos de proteção supranacional, dando ensejo a um sistema multinível de proteção

desses direitos, seja em âmbito doméstico ou internacional. Segundo Miranda (2000, p.

30),

Quando o Estado, não raramente, rompe as barreiras jurídicas de limitação e se

converte em fim de si mesmo e quando a soberania entra em crise, perante a

multiplicação das interdependências e das formas de institucionalização da

comunidade internacional, torna-se possível reforçar e, se necessário, substituir,

em parte, o sistema de proteção interna por vários sistemas de proteção

internacional dos direitos do homem. Com antecedentes que remontam ao século

XIX, tal é a nova perspectiva aberta pela Carta das Nações Unidas e pela

Declaração Universal dos Direitos do Homem e manifestada, ao fim de quatro

décadas, em numerosíssimos documentos e instâncias a nível geral, sectorial e

regional.

Há uma busca incessante do reconhecimento, do desenvolvimento e da realização

dos objetivos traçados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e contra as

violações perpetradas pelos Estados e pelos particulares, através da disseminação do

Direito Internacional dos Direitos Humanos, mostrando-se como um instrumento vital para

a uniformização, o fortalecimento e a implementação desses direitos.

Através dessa ideologia surge a ideia de se estabelecer um núcleo inderrogável de

Direitos Fundamentais e de se criar um sistema multinível, visando não apenas à proteção

desses direitos e garantias conquistados ao longo dos séculos, mas também à

instrumentalização de órgãos capazes de delimitar a soberania nacional, através da criação

de uma Constituição internacional, visando uma igualdade não apenas formal, mas

principalmente, material.

O indivíduo passa a ser sujeito de direitos tanto em âmbito doméstico quanto

supranacional, através da internacionalização dos Direitos Humanos. Conforme assevera

Cançado Trindade (2006, p.22),

Ao sustentar que o ser humano é sujeito tanto do direito interno quanto do

direito internacional, dotado em ambos de personalidade e capacidade jurídicas

próprias. [...] o primado é sempre de norma de origem internacional ou interna

que melhor proteja os direitos humanos; o Direito Internacional dos Direitos

Humanos efetivamente consagra o critério da primazia da norma mais favorável

às vítimas.

207

A multiplicidade de instrumentos internacionais no pós Segunda Guerra levou a

uma nova etapa da proteção internacional dos direitos humanos e, por conseguinte, à busca

por uma justiça global, pautada em princípios que visam estabelecer um núcleo

inderrogável de direitos fundamentais, e que poderiam ser institucionalizados através de

uma Constituição Internacional. Levou também à criação de um tribunal supranacional,

com legitimidade para impor sanções a indivíduos ou Estados-nação que violassem tais

direitos.

Os desafios encontrados nessa nova fase do Direito Internacional são o de propiciar

à pessoa humana não apenas normas internacionais, mas os meios e ações para que possam

ser efetivados. Conforme ensina Piovesan (2012, p. 306):

Na condição de sujeitos de direito internacional, cabe aos indivíduos o

acionamento direto de mecanismos internacionais, como é o caso das petições

ou comunicações, mediante as quais um indivíduo, grupos de indivíduos ou, por

vezes, entidades não-governamentais, podem submeter aos órgãos internacionais

competentes denúncia de violação de direito enunciado em tratados

internacionais.

Essas transformações corroboram para que os direitos do homem sejam afirmados

nas Constituições dos Estados, reconhecidos e proclamados, em âmbito internacional,

ampliando os sujeitos com capacidade para garantir a efetividade desses direitos.

Entretanto, apesar desta instrumentalização e formalização, tais direitos continuam sendo

violados.

Uma consequência que abalou tanto a doutrina quanto a prática do direito

internacional foi a elevação do indivíduo à categoria de sujeito de direitos, capaz de

ingressar em âmbito internacional, em busca da satisfação de seus direitos. Eis a lição de

Bobbio (1992, p. 25):

todo indivíduo foi elevado a sujeito potencial da comunidade internacional,

cujos sujeitos até agora considerados eram, eminentemente, os Estado soberanos

[...] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não

era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.

Entretanto, para se estabelecer um núcleo inderrogável de direitos fundamentais

numa esfera global, algumas barreiras precisam ser superadas, dentre elas, as diferenças

sociais, culturais e econômicas de cada região. A proteção dos direitos humanos através de

instituições de âmbito regional se revela mais efetiva, na medida em que os Estados

208

situados num mesmo contexto geográfico, histórico e cultural têm maior probabilidade de

transpor os obstáculos que se apresentam em âmbito mundial.

Ao lado do sistema normativo global, surge o sistema normativo regional de

proteção, que busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional,

particularmente na Europa, na América e na África, conforme observa Piovesan (2000, p.

21-22):

Cada qual dos sistemas regionais de proteção apresenta um aparato jurídico

próprio. O sistema americano tem como principal instrumento a Convenção

Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabelece a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Já o sistema

Europeu conta com a Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950, que

estabelece a Corte Europeia de Direitos Humanos. Por fim, o sistema africano

apresenta como principal instrumento na Carta Africana de Direitos Humanos de

1981, que, por sua vez, estabelece a Comissão Africana de Direitos Humanos.

Foi, no entanto, a Proclamação de Teerã119

sobre Direitos Humanos, adotada pela I

Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1968, a que melhor expressão deu a essa

nova visão da internacionalização dos Direitos Humanos, constituindo-se em um relevante

marco na evolução doutrinária da proteção internacional dos Direitos Humanos.

A referida Proclamação propugnou pela garantia das leis internacionais visando às

liberdades, conforme assegura Cançado Trindade (2000, p. 53-54), “pelas leis de todos os

países, a cada ser humano, da “liberdade de expressão, de informação, de consciência e de

religião”, assim como do “direito de participar na vida política, econômica, cultural e

social de seu país””.

Todos os sistemas são considerados instrumentos essenciais para o funcionamento

e disseminação da proteção internacional dos Direitos Humanos. Desta forma, serão

analisados quais os mecanismos empregados e como podem ser efetivados tais direitos,

com base nos sistemas global e regional de proteção dos Direitos Fundamentais.

5.2 A inderrogabilidade no sistema global de proteção internacional dos direitos

humanos

As transformações ocorridas após a hecatombe do Holocausto criaram as condições

necessárias para que os Direitos Humanos se convertessem em tema de legítimo interesse

119 A Conferência Internacional dos Direitos Humanos declarou solenemente que: “2. A Declaração Universal de

Direitos Humanos enuncia uma concepção comum a todos os povos de direitos iguais e inalienáveis de todos os

membros da família humana e a declara obrigatória para a comunidade internacional”.

209

internacional, transcendendo o âmbito estritamente doméstico, propiciando o reexame do

princípio da soberania absoluta do Estado. Através da universalização destes direitos, fez

com que os Estados consentissem em submeter ao controle da comunidade internacional o

que até então era de competência exclusiva do Estado.

O processo de universalização dos direitos humanos, como ensina Piovesan (2012,

p. 225-226), “traz em si a necessidade de implementação desses direitos, mediante a

criação de uma sistemática internacional de monitoramento e controle – a chamada

international accountability”.

Como já destacado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não

apresenta força jurídica obrigatória nem vinculante, por se tratar de uma Declaração e não

de um Pacto, uma Convenção ou um Tratado. Contudo, reconhece que é necessário

estabelecer um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais, para consagração

de um código comum a ser seguido por todos os Estados-nação.

Dentre as dificuldades, pós Declaração de 1948, estava justamente a sua eficácia

para assegurar o reconhecimento e a observância dos direitos nela previstos, chegando à

conclusão da necessidade de se “juridicizar” sob a forma de tratado internacional,

juridicamente obrigatório e vinculante no âmbito do Direito Internacional.

Os debates para formação dessas normas internacionais começaram em 1949 e

concluíram-se apenas em 1966, com a elaboração de dois tratados internacionais distintos:

o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais. Ambos passaram a integrar os direitos constantes na

Declaração de 1948.

No que tange ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o instrumento

reconheceu em seu art. 4°, inciso 2 que não poderia haver derrogação dos artigos 6°, 7° e

8° (§§ 1° e 2°), 11, 15, 16 e 18, inabilitando assim, que qualquer indivíduo ou Estado

pudesse praticar quaisquer atos que visassem destruir os direitos ou liberdades

reconhecidos, ou ainda, que importasse em limitações mais amplas do que as previstas no

instrumento:

Artigo 6° – 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá

ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida.

2. Nos países em que a pena de morte não tenha sido abolida, esta poderá ser

imposta apenas nos casos de crimes mais graves, em conformidade com

legislação vigente na época em que o crime foi cometido e que não esteja em

conflito com as disposições do presente Pacto, nem com a Convenção sobre a

Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio. Poder-se-á aplicar essa pena

apenas em decorrência de uma sentença transitada em julgado e proferida por

tribunal competente.

210

3. Quando a privação da vida constituir crime de genocídio, entende-se que

nenhuma disposição do presente artigo autorizará qualquer Estado Parte do

presente Pacto a eximir-se, de modo algum, do cumprimento de qualquer das

obrigações que tenham assumido em virtude das disposições da Convenção

sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio.

4. Qualquer condenado à morte terá o direito de pedir indulto ou comutação da

pena. A anistia, o indulto ou a comutação da pena poderá ser concedido em

todos os casos.

5. A pena de morte não deverá ser imposta em casos de crimes cometidos por

pessoas menores de 18 anos, nem aplicada a mulheres em estado de gravidez.

6. Não se poderá invocar disposição alguma do presente artigo para retardar ou

impedir a abolição da pena de morte por um Estado Parte do presente Pacto.

Artigo 7° – Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento

cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma

pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas.

Artigo 8° – 1. Ninguém poderá ser submetido à escravidão; a escravidão e o

tráfico de escravos, em todos as suas formas, ficam proibidos.

2. Ninguém poderá ser submetido à servidão.

Artigo 11. Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma

obrigação contratual.

Artigo 15 – 1. Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que não

constituam delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no

momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena mais

grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de

perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinqüente

deverá dela beneficiar-se.

2. Nenhuma disposição do presente Pacto impedirá o julgamento ou a

condenação de qualquer indivíduo por atos ou omissões que, no momento em

que foram cometidos, eram considerados delituosos de acordo com os princípios

gerais de direito reconhecidos pela comunidade das nações.

Artigo 16. Toda pessoa terá direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de

sua personalidade jurídica.

Artigo 18 – 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de

consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma

religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou

crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio

do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir

sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.

3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às

limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança,

a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais

pessoas.

4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade

dos países e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação

religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções

(PIOVESAN, 2012, p. 248-274).

Do referido texto extrai-se que o núcleo inderrogável de direitos estabelecido neste

pacto engloba o direito à vida, com disposições referentes ao genocídio, à proteção

especial aos menores e às mulheres; a imposição da proibição da tortura, a penas e

tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes sob quaisquer aspectos; a proibição da

escravidão, e do tráfico de escravos, em todas as suas formas; a proibição de prisão por

211

descumprimento de cláusula contratual; regras referentes à extradição; o reconhecimento

da personalidade jurídica; e o direito às liberdades de pensamento, consciência e religião.

Já no tocante ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

estabeleceu em seu art. 4° que os Estados Partes somente poderiam submeter a limitações

os direitos previstos no instrumento, através de lei, na medida compatível com a natureza

desses direitos e exclusivamente para favorecer o bem-estar geral da sociedade.

Desta forma, estabeleceu nos artigos 5°, 6°, 7°, 9° e 10° um núcleo inderrogável de

direitos, por meio dos quais a restrição ou suspensão destes, seja por um indivíduo ou pelo

Estado, não pode afetar tais direitos:

Artigo 5º – 1. Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser

interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer

direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que

tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente

Pacto ou impor-lhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas.

2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos

fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis,

convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto

não os reconheça ou os reconheça em menor grau.

Artigo 6º – 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito ao

trabalho, que compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de

ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão

medidas apropriadas para salvaguardar esse direito.

2. As medidas que cada Estado Parte do presente Pacto tomará a fim de

assegurar o pleno exercício desse direito deverão incluir a orientação e a

formação técnica e profissional, a elaboração de programas, normas e técnicas

apropriadas para assegurar um desenvolvimento econômico, social e cultural

constante e o pleno emprego produtivo em condições que salvaguardem aos

indivíduos o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais.

Artigo 7º – Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda

pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem

especialmente:

a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores:

I) Um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual

valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia

de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma

remuneração que eles por trabalho igual;

II) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as

disposições do presente Pacto;

b) A segurança e a higiene no trabalho;

c) Igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu Trabalho, à

categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de

tempo de trabalho e capacidade;

d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias

periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.

Artigo 9º – Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda

pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social.

Artigo 10 – Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem que:

1. Deve-se conceder à família, que é o elemento natural e fundamental da

sociedade, as mais amplas proteção e assistência possíveis, especialmente para a

sua constituição e enquanto ele for responsável pela criação e educação dos

212

filhos. O matrimônio deve ser contraído com o livre consentimento dos futuros

cônjuges.

2. Deve-se conceder proteção especial às mães por um período de tempo

razoável antes e depois do parto. Durante esse período, deve-se conceder às

mães que trabalham licença remunerada ou licença acompanhada de benefícios

previdenciários adequados.

3. Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência em prol de

todas as crianças e adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou

qualquer outra condição. Devem-se proteger as crianças e adolescentes contra a

exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes em

trabalhos que lhes sejam nocivos à moral e à saúde ou que lhes façam correr

perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento

normal, será punido por lei.

Os Estados devem também estabelecer limites de idade sob os quais fique

proibido e punido por lei o emprego assalariado da mão-de-obra infantil.

Desta forma, ficou reconhecida, entre outras medidas, a inderrogabilidade de

direitos no que tange ao direito de se ter um trabalho, através de políticas públicas que

propiciem a inclusão, a orientação e a formação técnica e profissional; estabelecer

condições justas e favoráveis; o direito à filiação em sindicato; o direito à previdência

social e a proteção à família.

Com efeito, quanto à conjugação desses instrumentos internacionais, como observa

Piovesan (2012, p. 226-227), “simbolizou a mais significativa expressão do movimento

internacional dos direitos humanos, apresentando central importância para o sistema de

proteção em sua globalidade”.

A Carta Internacional dos Direitos Humanos é fruto da elaboração desses pactos,

denominada International Bill of Rights, composta pela Declaração de 1948 e pelos dois

pactos internacionais de 1966, como destaca Donnelly (2003, p. 27),

In contemporary order, the rights listed in the International Bill of Rights

represent the broad consensus about the minimal requirements for a life with

dignity. The rights listed in this International Charter can be conceived of as

rights that reflect a moral view of human nature, to understand human beings as

autonomous and equal individuals who deserve equal consideration and respect.

A busca pela concepção de direitos que refletissem uma visão moral da natureza

humana, compreendendo os seres humanos como indivíduos autônomos e iguais, culminou

com a promulgação da Carta Internacional de Direitos, representando o consenso

alcançado acerca da criação de um núcleo inderrogável de direitos, necessários para uma

vida com dignidade.

Essa Carta inaugurou o sistema global de proteção dos Direitos Humanos, em

conjunto com o sistema regional de proteção, nos âmbitos europeu, interamericano,

213

africano e mais recentemente asiático, ampliado com o advento de diversos tratados

multilaterais de direitos humanos, pertinentes a determinadas e específicas violações de

direitos, como o genocídio, a tortura, as discriminações raciais e contra as mulheres, a

violação dos direitos das crianças, entre outras formas específicas de violação.

A despeito dos outros tratados internacionais, os que versam sobre Direitos

Humanos não visam estabelecer um equilíbrio entre os interesses individuais e os Estados,

mas garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais ao ser humano, dando

enfoque à relativização da soberania nacional, a fim de que os interesses da humanidade

possam ser atingidos, e que as violações sejam assim, reduzidas.

A Carta Internacional de Direitos, como sugerem Claude e Weston (1989, p. 8),

especifica: “It is just the beginning and not the end of the legislative drafting process

relating to international human rights within the United Nations and other bodies”. Não

pretende, contudo, substituir o sistema nacional, mas apenas suprimir as omissões e

deficiências.

No sistema internacional de proteção dos direitos humanos, há uma dupla

responsabilidade: primeiro o Estado deve proteger esses direitos, e, segundo, a

comunidade internacional tem o dever subsidiário, uma garantia adicional de proteção,

contra falhas e omissões das instituições nacionais.

Sob esse prisma é importante destacar os tratados internacionais que constituem

referência obrigatória ao sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos, tanto no

âmbito global quanto em âmbito especial, estruturando os instrumentos disponíveis para

efetivar a tutela desses Direitos Fundamentais.

A manifestação unânime dos Estados quanto à Declaração de 1948, como observa

Sidney Guerra (2014, p. 61-62), “sem que houvesse nenhuma reprovação ou reservas,

defere uma condição importante para a Declaração, transformando-a em um verdadeiro

‘Código Internacional dos Direitos Humanos’ a ser seguido por todos os povos”.

A Declaração contou com a manifestação favorável de 48 Estados e 8 abstenções

(África do Sul, Arábia Saudita, Bielo-Rússia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Polônia,

Ucrânia e URSS). Sob esse novo paradigma passa-se a vincular aos Direitos Humanos

Fundamentais a concepção de um bem comum, ou um núcleo inderrogável de Direitos

Fundamentais com o objetivo de emancipar o ser humano de todo tipo de servidão,

passando o plano de proteção a ser universal, isto é, inerente a todo ser humano.

214

A respeito dessa universalidade dos Direitos Humanos, Bobbio (1992, p.29-30)

aponta três fases na formação das declarações de direitos, indicando como última a da sua

universalidade:

As declarações nascem como teorias filosóficas. Sua primeira fase deve ser

buscada na obra dos filósofos [...] a ideia de que o homem enquanto tal tem

direitos, por natureza, que ninguém (nem mesmo o Estado) lhe pode subtrair, e

que ele mesmo pode alienar (mesmo que, em caso de necessidade, ele os aliene,

a transferência não é válida). [...] Enquanto teorias filosóficas, as primeiras

afirmações dos direitos do homem são pura e simplesmente a expressão de um

pensamento individual: são universais em relação ao conteúdo, na medida em

que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas são

extremamente limitadas em relação à sua eficácia, na medida em que são (na

melhor das hipóteses) propostas para um futuro legislador.

O segundo momento da história da Declaração dos Direitos do Homem consiste,

como observa Bobbio (1992, p. 29-30),

na passagem da teoria à prática, do direito somente pensado para o direito

realizado. Nessa passagem, a afirmação dos direitos do homem ganha em

concreticidade, mas perde em universalidade. Os direitos doravante protegidos

(positivados) valem somente no âmbito do Estado que os reconhece.

A partir da Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a

afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva, como também destaca

Bobbio (1992, p. 29-30),

Universal no sentido que os destinatários dos princípios nela contidos não são

mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva

no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do

homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente

reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado

que os tenha violado.

Apesar de todo o contexto envolvido na formação da Declaração dos Direitos

Humanos, há conscientização de que o mundo precisava de normas moralizadoras. Alguns

autores120

sustentaram que os Direitos Humanos não poderiam ser concebidos de maneira

universal, mas apenas de forma setorizada ou regional.

120 “É sabido que os direitos humanos não são universais na sua aplicação. Actualmente são consensualmente

identificados quatro regimes internacionais de aplicação de direitos humanos: o europeu, o inter-americano, o africano e

o asiático” (SANTOS, 2006, p. 442).

215

Esse posicionamento relativista tem como base o fato da não obrigatoriedade da

Declaração de 1948, e o número limitado de Estados que participaram na redação (56

Estados), o que, segundo eles, não expressaria a vontade de todos os povos do planeta.

Outra corrente denominada relativismo cultural apontou que a Declaração de 1948

por se tratar de direito costumeiro, vincularia os Estados, possuindo força cogente,

conforme destaca Sidney Guerra (2013, p. 108):

Essa ideia é, de certo modo, bastante interessante, haja vista que para ser

invocado o costume, como norma internacional, devem ser observadas as

seguintes características, a saber: prática comum, resultante da repetição

uniforme de certos atos na vida internacional; prática obrigatória, considerada

norma que deve ser respeitada pelos membros da Sociedade Internacional; e

prática evolutiva, pois se adapta às novas circunstâncias sociais.

A crítica a este pensamento decorre justamente do número limitado de Estados que

participaram na redação do texto da Declaração, muito embora, à época o número de

Estados existentes no plano internacional fosse extremamente limitado, em razão do

grande número de colônias, que em função da opressão, não contemplavam a visão de

todos os povos.

Contudo, a essa corrente somam-se outros argumentos, conforme ensina Piovesan

(2012, p. 165):

A incorporação das previsões da Declaração atinentes aos direitos humanos

pelas Constituições nacionais; as referências feitas pelas resoluções das Nações

Unidas à obrigação legal de todos os Estados em observar a Declaração

Universal e decisões proferidas pelas Cortes nacionais que se referem à

Declaração Universal como fonte do direito. [...] A Declaração de 1948, ainda

que não assuma a forma de um tratado internacional, apresenta força jurídica

obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada

da expressão direitos humanos constantes nos arts. 1 (3) e 55 da Carta das

Nações Unidas.

Com base nessas teorias universais e relativistas, coloca-se em xeque se a

Declaração de 1948 realmente representa um núcleo inderrogável de Direitos Humanos

Fundamentais em âmbito global, e se pelo fato de ser uma concepção ocidental haveria

aplicabilidade a todos, em especial aos povos da África e da Ásia, uma vez que estes não

tinham reconhecida sua personalidade jurídica internacional.

Nesse contexto, alguns autores121

sustentam a possibilidade de uma coexistência

pacífica de grupos de pessoas com histórias, culturas e identidades diferentes, possibilitada

121 “A soberania garante que ninguém daquele lado da fronteira pode interferir nas atividades deste lado. As pessoas de lá

podem ser resignadas, indiferentes, estoicas, curiosas ou entusiastas com referência às práticas daqui, e por isso, talvez

não se sintam propensas a interferir” (WALZER, 1999, p. 28).

216

através da tolerância e do diálogo, haja vista que a sociedade internacional é uma anomalia

e que essa tolerância é uma característica essencial da soberania e uma causa importante da

sua atração.

Diplomatas e estadistas adotam em geral atitudes espúrias e condenáveis. Aceitam

a lógica da soberania e são capazes de negociar com tiranos e assassinos. Conforme

observa Walzer (1999, p. 29),

Precisam acomodar os interesses dos países cuja cultura ou religião dominante

perdoa, por exemplo, a crueldade, a opressão, a misoginia, o racismo, a

escravidão e a tortura. Quando os diplomatas apertam as mãos de tiranos ou com

eles se sentam à mesa, estão, por assim dizer, usando luvas. As ações não têm

importância moral. Mas os acordos firmados têm: são atos de tolerância. Em

nome da paz do porque acreditam que a reforma cultural ou religiosa deve vir de

dentro, deve resultar de trabalho local, eles reconhecem o outro país como

membro soberano da sociedade internacional.

Para os adeptos da teoria do relativismo cultural, os Direitos Humanos devem ser

analisados sob vários contextos, dentre eles, histórico, político, econômico, moral e

cultural. Sob estas perspectivas, tais direitos devem ser concebidos de acordo com os

valores de um determinado Estado e não podem ser definidos em escala global.

Configura-se, desta forma, o multiculturalismo, que na visão de Garcia (2001, p.

67),

Hace referencia a la convivencia en un mismo país o región de tradiciones

culturales distintas y indica mezcla de culturas y por tanto de visiones sobre la

vida y los valores, diferentes y opuestos entre sí. [...] El multiculturalismo en lo

que tiene de diálogo entre culturas, de convivencia en paz y liberdad, de

comparación y constrastación crítica entre culturas es um fenómeno claramente

positivo. Sin embargo, hay que tener em cuenta que si va acompanhado de una

postura relativista (es decir, que da el mismo valor a toda cultura, tanto las

pluralistas como las no pluralistas), entonces resulta incompatible, con la

defensa de valores universales, que son las que requiere una fundamentación

racional de los derechos humanos.

Um dos grandes desafios dessa corrente do multiculturalismo relativista está na

concepção dos Direitos Humanos serem direitos universais. Assim, para seguir a

orientação do século XX protegendo à pessoa humana e disseminando o mecanismo e os

órgãos de proteção desses direitos, uma visão particularizada não reúne um núcleo

essencial de Direitos Humanos Fundamentais, mas dissemina uma concepção de vários

sistemas que compõem este núcleo.

Na esteira da corrente relativista, sustenta Santos (2006, p. 442):

217

os direitos humanos não são universais na sua aplicação, [...] um dos debates

mais acesos sobre os direitos humanos gira à volta da questão de saber se os

direitos humanos são universais, ou pelo contrário, um conceito culturalmente

ocidental e também os limites de sua validade.

Ainda acerca dos desafios dos Direitos Humanos Fundamentais que invocam a

existência de diferentes culturas, ideologias e visões de mundo, aborda De Lucas (1994,

p.33), “la realidad multicultural de las sociedades hacia las que nos encaminamos,

reivindicam un relativismo cultural que, forzosamente, debería ser también ético y

jurídico”.

No entanto, essa visão de que os Direitos Humanos são meramente arranjos de

tolerância deve ser evitada visando a não ocorrência de ações que possam ferir a dignidade

da pessoa humana, justificada, às vezes, por uma pretensa diferença cultural, ideológica ou

religiosa.

Para firmar um diálogo intercultural (interpretação que vise envolver diferentes

concepções e pontos convergentes), Santos (1999, p. 445-447) invocou a hermenêutica

diatópica, estabelecendo assim, cinco premissas para interpretar e superar o

posicionamento polarizado de universalismo e relativismo:

A primeira premissa é a de superação do debate sobre o universalismo e

relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos

conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória

de direitos humanos. Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural,

enquanto posição filosófica, é incorreto. [...]

A segunda premissa é que todas as culturas possuem concepções de dignidade

humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. [...]

A terceira premissa é que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas

suas concepções de dignidade humana. [...]

A quarta premissa é que nenhuma cultura é monolítica. Todas as culturas

comportam versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do

que outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras,

algumas mais abertas a outras culturas do que outras. [...]

Por último, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as

pessoas e grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença

hierárquica. [...]

Ao estabelecer essas premissas, o que se busca é um diálogo intercultural de

Direitos Humanos, a fim de fomentar o debate acerca da matéria, considerando os diversos

sentidos locais, em especial quando existem posicionamentos antagônicos acerca de

conceitos que envolvem liberdade, individualidade, sexualidade e Direitos Humanos, sobre

os quais não é possível adotar um posicionamento global ou neutro, nem se trata apenas de

uma situação de mera preferência.

218

O relativismo deve ser objeto de uma revisão crítica que exige diferenciar

relativismo, diversidade e pluralismo, conforme observa Garcia (2001, p. 71):

La diversidade y el pluralismo morales son, en muy buena medida, rasgos

notables de nuestro tempo en países que pueden llamarse, de veras, modernos,

por otro lado, seria arriesgado, sin embargo, no contemplar la possibilidad de

que las sociedades relativamente liberales, democráticas y secularizadas de hoy

posean, a pesar de todo, algún género de constitución moral. Una constitución

moral común a todas ellas, aunque tal vez poco consolidada y em algunos casos

sólo em ciernes. Lo sería, sobre todo, si no tomáramos en serio el supuesto

sociológico clásico de que, sin tal constitución, no es posible un orden social

duradero y fructífero, ni eticamente aceptable.

De todo modo, a crítica persiste quanto à aplicação da Declaração de 1948 aos

povos asiáticos e africanos, haja vista que a percepção de Direitos Humanos Fundamentais

corresponde a uma ideia ocidental, não se adequando à realidade de uma diversidade

cultural, que até mesmo poderá impor normas incompatíveis às necessidades da região.

A aceitação de justificativas culturais a condutas que violam os Direitos Humanos

carregam uma forte conotação totalitária, conforme observa Ramos (2013, p. 194),

na medida em que pode significar a coerção daqueles que, embora membros da

comunidade, não mais se identificam com seus valores. Sempre é bom lembrar

que o relativismo cultural da temática dos direitos humanos pode, à custa da

liberdade, restringir indivíduos a papéis preestabelecidos, o que nos mostra o

caráter libertário e de ruptura da temática dos direitos humanos.

Muito embora a realidade ocidental à época da elaboração da Declaração de 1948

fosse muito distinta das culturas africana e asiática, percebeu-se que os direitos

consagrados no documento foram aos poucos inseridos na consciência de seus nacionais,

corroborando, inclusive, na luta pela descolonização.

São mais prudentes e mais construtivas as várias tentativas de compatibilizar o

particularismo das diversas culturas com a efetivação da universalização dos direitos,

conforme enfatiza Lindgren Alves (2005, p. 34),

Essa tarefa intelectual é complexa na medida em que a própria noção de direitos,

assim como a do indivíduo, é oriunda do Ocidente. As culturas não ocidentais

sempre acentuaram os deveres, privilegiando o coletivo sobre o pessoal, fosse

em prol da ‘harmonia’ social, fosse em defesa da ordem e da autoridade,

religiosa ou secular, não importando sua arbitrariedade ou o grau de sofrimento

exigido na vida de cada um.

219

Para se tentar compreender a razão de Estados não ocidentais terem ratificado os

documentos internacionais de direitos humanos, criando um sistema regional próprio, tem-

se a própria estrutura ontológica da pessoa humana, ao reinserir a moral como razão

pública, sem quaisquer apelos a questões religiosas, costumeiras ou políticas.

Ademais, pode-se justificar a adesão de outras culturas, não ocidentais, as solenes

declarações de Direitos Humanos elaboradas após a Declaração de 1948, como decorrentes

da reinserção da moral, que valoriza o homem e a coexistência entre diferentes

civilizações.

A origem desses documentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos é

ocidental, contudo, conforme salienta Macedo (1999, p. 141), “mas válidos para todo o

mundo, e hoje constituem-se um problema de responsabilidade interna de cada país, e, só

esgotadas as instâncias internas, caberá uma atuação de órgãos internacionais”.

Refutando as ideias contrárias à universalização dos direitos humanos, Perez Luño

(1998, p. 86-87) adverte, “no es sólo el plano de los movimientos políticos donde se

producen estos ataques contra el universalismo, también en el plano de las ideas han

aparecido tesis y doctrinas que coinciden em erosionar la ideia de la universalidad de los

derechos”.

A tese da universalidade dos Direitos Humanos ganhou força de forma inequívoca

a partir das Conferências Mundiais de Direitos Humanos, em Teerã (1968) e a de Viena

(1993), simbolizando os marcos teóricos no processo de internacionalização dos Direitos

Humanos e a afirmação de sua universalidade.

A Conferência Mundial de Teerã visou instar os Estados para que aderissem aos

dois Pactos e a outros instrumentos internacionais de Direitos Humanos, de modo a

assegurar a prevalência do princípio da universalidade dos direitos humanos, além de

propor a adoção de procedimentos padrão, a fim de garantir a necessária coordenação e

eficiência dos órgãos de supervisão dos tratados de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Essa nova visão global e integrada de todos os Direitos Humanos, segundo

Cançado Trindade (2006, p. 57), “constitui a grande contribuição da I Conferência

Mundial de Direitos Humanos para os desenvolvimentos subsequentes da matéria, estando,

a partir de então, o campo efetivamente aberto para a consagração da tese da inter-relação

ou indivisibilidade dos direitos humanos”.

Este é o ponto fulcral para abertura do diálogo a fim de se estabelecer um núcleo

inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais, preparado na Conferência Mundial

220

sobre Direitos Humanos de Viena, que estabeleceu importantes pressupostos

programáticos indispensáveis à universalização dos direitos humanos: a inter-relação entre

desenvolvimento, direitos humanos e democracia; a legitimidade do monitoramento

internacional de suas violações; o direito ao desenvolvimento e a interdependência de

todos os direitos fundamentais.

A Declaração de Viena, com suas recomendações programáticas, constitui o

documento mais abrangente sobre a matéria na esfera internacional e traz características

singulares, conforme acentua De Lucas (1994, p. 56),

Sólo al final llegó al consenso sobre el carácter universal de los derechos

humanos y el hecho de que la diversidad cultural no puede ser invocada para

justificar su violación, es decir, a pesar de las diversas particularidades

históricas, culturales, étnicas y religiosas deben tenerse en cuenta es el deber de

los Estados de promover y proteger los derechos humanos, independientemente

de sus sistemas.

O caráter universal dos Direitos Humanos legitima o diálogo para estabelecer um

núcleo inderrogável de direitos, partindo da premissa da diversidade cultural, com

particularidades históricas, culturais, étnicas e religiosas, atribuindo aos Estados o dever de

promover e proteger tais direitos, independentemente dos respectivos sistemas.

O sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos saiu fortalecido da

Conferência de Viena, haja vista que os princípios consagrados visavam à globalização dos

mecanismos voltados à concretização desses Direitos Fundamentais, com a consequente

constitucionalização das regras de conduta da sociedade, através da relativização da

soberania dos Estados e da própria formação de tribunais internacionais para julgar

matérias relativas a estes direitos.

Esse sistema internacional de proteção, contudo, não se restringe aos mecanismos

convencionais como os Pactos, Tratados e Convenções, mas abrange também mecanismos

não convencionais, isto é, decorrentes de resoluções elaboradas por órgãos criados pela

Carta das Nações Unidas, como a Assembleia Geral, o Conselho Econômico e Social e a

Comissão de Direitos Humanos.

A diferença a ser estabelecida entre os mecanismos convencionais e não

convencionais pode pautar-se no primeiro caso, conforme observa Piovesan (2012, p. 306),

“na inexistência de Convenções específicas sobre o direito violado, na ausência de

ratificação pelo Estado-violador de uma Convenção determinada ou na existência de forte

opinião pública favorável à adoção de medidas de combate à violação”.

221

Em contrapartida, a escolha de mecanismos convencionais poderia ser baseada,

segundo Piovesan (2012, p. 307),

Na efetiva ratificação de uma Convenção específica pelo Estado-violador, na

ausência de vontade política dos membros da Comissão em adotar medidas

contra as violações cometidas por determinado Estado, na intenção de construir

precedentes normativos ou na inexistência de opinião pública suficientemente

forte para legitimar um procedimento de elevada natureza política, como são os

procedimentos adotados pela então Comissão de Direitos Humanos.

Percebe-se, quanto aos mecanismos não convencionais, que atendem a medidas

urgentes de proteção de caráter essencialmente preventivo, no tocante a mecanismos

temáticos como execuções arbitrárias ou sumárias, à tortura, a desaparecimentos forçados

ou involuntários e à detenção arbitrária, através da indicação de relatores especiais para

países determinados.

O sistema global de proteção dos Direitos Humanos compreende mecanismos tanto

convencionais quanto não convencionais, que apresentam características

consideravelmente diversas, devendo ser utilizados aqueles que atendam melhor cada caso

específico, considerando ser ou não o Estado-violador pertencente à determinada

convenção, haver pressão política necessária para sensibilizar órgãos de proteção, e existir

ou não interesse em construir precedentes normativos.

Ainda que consideradas as limitações vigentes no sistema global de proteção, a

possibilidade de submeter o Estado ao monitoramento e controle da comunidade

internacional, no magistério de Piovesan (2012, p. 315), “sob o risco de uma condenação

política e moral no fórum da opinião pública internacional, parece uma importante

estratégia a ser utilizada e potencializada pelos indivíduos titulares de direitos

internacionais”.

As Nações Unidas têm contribuído de forma significativa para promover e proteger

os Direitos Humanos, como observa Meron (1986, p. 5),

It has adopted conventions and declarations regulating most aspects of the

relationship between governments and the governed; It has established important

procedures for the implementation and supervision of rules contained in such

instruments; It has also encouraged the principle of international accountability

in relation to the way governments treat individuals and groups.

Desta forma, as convenções e declarações têm disciplinado boa parte dos aspectos

que envolvem governos e governados, além de estabelecer importantes procedimentos para

222

a implementação e supervisão de normas constantes nestes instrumentos, relativamente à

forma pela qual os governos tratam os indivíduos e grupos.

Os instrumentos criados, a fim de proteger os Direitos Humanos Fundamentais,

ainda assumem outra função, qual seja a de legitimar os governos tanto no âmbito

doméstico quanto no internacional, destacando-se assim a universalização desses direitos e

sua observância como critério fundamental no atual Estado Democrático de Direito.

Feitas as considerações acerca do Sistema Global de proteção dos Direitos

Humanos Fundamentais, sua evolução e as transformações decorrentes da universalização

e das teorias relativistas, serão analisados agora os sistemas regionais de proteção dos

Direitos Humanos, os sistemas interamericano, europeu e africano, e, por fim, o asiático.

5.3 A inderrogabilidade nos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos

A busca pelo reconhecimento, desenvolvimento e realização dos objetivos que

visam à felicidade da pessoa humana contrapõe-se às violações perpetradas pelo Estado e

por particulares. É necessário um instrumento vital para estabelecer um núcleo

inderrogável, fortalecido e plenamente capaz de ser implementado, qual seja, o Direito

Internacional dos Direitos Humanos.

Vários líderes nacionais, principalmente da Itália fascista de Benito Mussolini e a

Alemanha nazista de Adolf Hitler, sacrificaram milhares de vidas, conforme observa

Tibiriçá e Farah (2014, p. 28), “em nome de um ideal que não respeitava o valor e a

dignidade da pessoa humana, sendo que com o final da guerra, a comunidade internacional

atentou-se para a preservação desses direitos, levantando o estandarte dos direitos

humanos”.

Com as violações perpetradas no século XX, surge a necessidade de se criar

mecanismos de proteção que pudessem atender à demanda global. Contudo, diante das

diferenças entre os povos e em respeito à diversidade, foram criados os sistemas regionais,

a fim de atender às especificidades e adotar-se a melhor opção em favor do lesado,

buscando efetivar as normas internacionais de proteção dos Direitos Humanos.

Concomitantemente ao sistema global surgem os sistemas regionais de proteção,

visando internacionalizar os Direitos Humanos, mas em regiões delimitadas denominadas

de plano regional, particularmente na Europa, América, África e Ásia. A respeito da

criação do sistema regional de proteção, explica Piovesan (2012, p. 318):

223

Embora o Capítulo VIII da Carta da ONU faça expressa menção aos acordos

regionais com vistas à paz e segurança internacionais, ele é silente quanto à

cooperação no que tange aos direitos humanos. Todavia, o Conselho da Europa,

já em 1950, adotava a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Em 1969, a

Convenção Americana era adotada. [...] Em 1977, as Nações Unidas

formalmente endossaram uma nova concepção, encorajando ‘os Estados, em

áreas em que acordos regionais de direitos humanos ainda não existissem, a

considerar a possibilidade de firmar tais acordos, com vistas a estabelecer em

sua respectiva região um sólido aparato regional para a promoção e proteção dos

direitos humanos’ (Assembleia Geral, Resolução nº32/127, 1977).

Entre as vantagens destacadas dos sistemas regionais, está a facilidade para se

chegar a um consenso político, seja com relação às normas convencionais, seja quanto aos

instrumentos de proteção e mecanismos de monitoramento. É possível vislumbrar questões

referentes à cultura, à língua e às tradições.

Diversamente do sistema global, que sofre com a ausência de capacidade de impor

sanções, nos sistemas regionais, conforme observam Heyns e Viljoen (1999, p. 423),

While the global system of protection of human rights generally suffers from the

absence of a sanction ability of national systems, regional systems of human

rights protection have advantages compared to the UN system: can reflect more

truly the peculiarities and values historical people of a particular region,

resulting in a more spontaneous acceptance and due to the geographical

proximity of the countries concerned, the regional systems has the potential to

exert strong pressure in the face of neighboring states in cases of violations. [...]

An effective regional system can thus complement the overall system in various

forms.

A dificuldade de imposição de sanções no sistema global frente aos Estados se

contrapõe às vantagens dos sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos ao

refletir com maior autenticidade as peculiaridades e os valores históricos de povos de uma

determinada região. Isso resulta numa aceitação mais espontânea, e em razão da

proximidade geográfica dos Estados envolvidos, possibilita a potencialização no exercício

de pressão em face de Estados vizinhos, em caso de violações.

A criação dos sistemas regionais visa fortalecer e consolidar a convivência global

através da integração dos instrumentos das Nações Unidas, desde a Declaração de 1948

aos Pactos de 1966, além das demais Convenções internacionais, com mecanismos dos

sistemas regionais122

de proteção, composto pelos sistemas interamericano, europeu,

africano e, mais recentemente asiático de proteção dos Direitos Humanos.

122 A proclamação regional dos direitos do homem, circunscrita de início à Europa e à América, alcançando depois a

África e até mesmo o mundo árabe-islâmico, é obra das organizações regionais concernentes: o Conselho da Europa, a

Organização dos Estados Americanos, a Organização da Unidade Africana e a Liga dos Estados Árabes. Diga-se, de

224

No âmbito do sistema global de proteção, cujas discussões têm lugar na

Organização das Nações Unidas baseadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

é difícil o consenso entre os Estados Partes, na visão de Carmo Neto (2008, p. 322), “o que

enfraquece a capacidade sancionatória de suas deliberações e impede a criação de órgãos

jurisdicionais internacionais; por isso resultados diversos têm sido possíveis nos sistemas

regionais de proteção dos direitos fundamentais”.

Mesmo aqueles que não têm a origem de suas instituições no modelo ocidental

estão adotando os programas de Direitos Humanos estabelecidos tanto pelo Conselho

Europeu quanto pela Organização dos Estados Americanos, demonstrando-se em muitos

aspectos mais efetivos do que os adotados pelas Nações Unidas.

Em 1981, os Estados africanos introduziram um sistema regional de Direitos

Humanos quando a Organização da Unidade Africana adotou a Carta Africana de Direitos

Humanos e dos Povos. Conforme destaca Piovesan (2012, p. 319),

O sistema asiático, em 1997, concluiu uma Carta Asiática dos Direitos

Humanos, sob a forma de uma declaração. [...] endossando os princípios da

universalidade e da indivisibilidade dos Direitos Humanos, bem como os direitos

ao desenvolvimento sustentável, à democracia e à paz, com a crítica visão

autoritária dos “asian values”.

A Carta Asiática ainda apresenta medidas concretas para a proteção dos Direitos

Humanos na região, destacando a importância dos Estados asiáticos adotarem instituições

regionais para proteger e promover esses direitos, além de elaborarem uma Convenção

Regional, refletindo as peculiaridades, mas compatível com os parâmetros internacionais,

inclusive com a criação de órgãos de monitoramento, como uma Comissão e uma Corte

independentes.

A internacionalização dos direitos humanos fez com que, do ponto de vista

estritamente jurídico, conforme observa Amaral Júnior (2002, p. 53), “surgissem,

sobretudo a partir do final da Segunda Guerra Mundial, mecanismos, instituições e

instrumentos voltados à proteção e à defesa desses direitos”.

Somente depois da primeira metade do século XX, é que a proteção dos Direitos

Humanos no plano internacional deixou de ser realizada meramente por mecanismos das

relações interestatais, culminando com a necessidade da criação de órgãos de

passagem, que o continente asiático apresenta a particularidade, contrariamente às outras regiões, de não ter adotado

convenção regional alguma e mecanismo institucional algum destinado a promover e a proteger os direitos humanos,

sobre uma base regional ou sub-regional (BICUDO, 2003, p. 227).

225

implementação dos Direitos Humanos, reconhecendo também aos indivíduos, capacidade

processual no plano internacional.

Embora apresentem características diferentes, tanto o sistema global quanto o

regional visam um objetivo em comum: promover e proteger os Direitos Humanos. São

complementares, haja vista que o sistema global proclama um núcleo inderrogável de

Direitos Humanos Fundamentais, a ser alcançado por todos os povos e Nações, enquanto o

sistema regional deve considerar, além dos preceitos globais, as diferenças e as

peculiaridades de cada região.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, desta forma, como ensina

Piovesan (2012, p. 95):

Ao revés, são complementares. Inspirados pelos valores e princípios da

Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos

direitos humanos no plano internacional. Vale dizer, os diversos sistemas de

proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos.

Embora sejam instrumentos jurídicos distintos, ambos buscam proteger direitos

idênticos, cujo propósito é ampliar e fortalecer os Direitos Humanos, ampliando, por

conseguinte, o grau de eficiência da proteção. Podem ser aplicados nos casos concretos, os

instrumentos que melhor protejam a vítima.

O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado

expressamente em tantos tratados de Direitos Humanos contribui, segundo Cançado

Trindade (1993, p. 52-53),

Em primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas

possibilidades de ‘conflitos’ entre instrumentos legais em seus aspectos

normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior coordenação entre

tais instrumentos em dimensão tanto vertical (tratados e instrumentos de direito

interno) quanto horizontal (dois ou mais tratados). [...] Contribui, em terceiro

lugar, para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos

instrumentos jurídicos – garantido os mesmos direitos – são no sentido de

ampliar e fortalecer a proteção.

Ao estabelecer como critério a norma mais favorável à vítima, evita-se que em

decorrência de conflitos de ordem regional face ao sistema global, sejam violados Direitos

Humanos Fundamentais. Desta forma, torna-se possível uma maior intercomunicação entre

os Estados e os Sistemas Regionais, a fim de uniformizar as normas, interpretações e

decisões face ao Estado-violador.

226

Contudo, para serem efetivados esses Direitos Humanos Fundamentais, é

necessário analisar o processo de judicialização nos sistemas regionais, através do qual os

tratados internacionais de proteção dos Direitos Humanos podem ser divididos em quatro

dimensões, conforme elucida Piovesan (2012, p. 95-96),

1) fixam um consenso internacional sobre a necessidade de adotar parâmetros

mínimos de proteção dos direitos humanos (os tratados não são o “teto máximo”

de proteção, mas o “piso mínimo” para garantir a dignidade humana,

constituindo o “mínimo ético irredutível”);

2) celebram a relação entre a gramática de direitos e a gramática de deveres; ou

seja, os direitos internacionais impõem deveres jurídicos aos Estados (prestações

positivas e/ou negativas), no sentido de respeitar, proteger e implementar os

direitos humanos;

3) instituem órgãos de proteção, como meios de proteção dos direitos

assegurados (por exemplo: os Comitês, as Comissões e as Cortes); e

4) estabelecem mecanismos de monitoramento voltados à implementação dos

direitos internacionalmente assegurados (por exemplo: os relatórios, as

comunicações interestatais e as petições individuais).

Justamente em decorrência dessa estruturação dos tratados internacionais de

proteção dos Direitos Humanos é possível compreender a judicialização desses direitos no

plano internacional, e com base nos critérios descritos, estabelecer um núcleo inderrogável

dos Direitos Humanos Fundamentais, a serem observados tanto no plano regional como no

plano global.

A dificuldade no que tange à efetivação desses Direitos Humanos Fundamentais

está em estabelecer sanções ao Estado-violador. Na lição de Ihering (1985, p. 35),

a espada sem balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do

direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita

sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com

que maneja a balança.

No âmbito internacional concentra-se na dicotomia entre a força e o Direito,

celebrando, desta forma, a passagem do direito da força para a força do Direito, refletindo

o crescente processo de judicialização dos Direitos Humanos na ordem internacional

contemporânea, ao passo que no âmbito do sistema global, ainda não há um Tribunal

Internacional de Direitos Humanos, especializado em efetivá-los ou impor sanções aos

Estados quando são violados.

Há, contudo, a Corte Internacional de Justiça, como principal órgão jurisdicional da

Organização das Nações Unidas. No entanto, para ser acionado, na visão de Piovesan

227

(2012, p. 96-97), “por Estados, os Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e Ruanda (criado

por resolução do Conselho de Segurança da ONU) e o Tribunal Penal Internacional (para

julgamento dos mais graves crimes contra a ordem internacional)”.

Com a busca constante da afirmação e do reconhecimento dos Direitos Humanos,

em âmbito global, é imperioso a criação de um Tribunal Constitucional Internacional,

voltado para efetivar os Direitos Humanos Fundamentais, partindo-se da premissa da

criação de um núcleo inderrogável desses direitos, a fim de que tais normas possam ser

aplicadas, responsabilizando-se assim o Estado-violador ou os particulares que não as

observarem. Diversamente do sistema global, quanto à aplicabilidade de sanções a

Estados ou indivíduos que violam Direitos Humanos Fundamentais, nos sistemas

regionais, as Cortes de Direitos Humanos, em que se destaque a mais antiga e tradicional a

Europeia, além da Interamericana, destacam-se por sua eficiência, em especial para

afirmar e proteger os Direitos Humanos.

No sistema regional europeu, com o Protocolo n. 11, em vigor desde 1° de

novembro de 1998, qualquer pessoa física, organização não governamental ou grupo de

indivíduos pode submeter diretamente à Corte Europeia demanda veiculando denúncia de

violação do Estado Parte de direitos reconhecidos na Convenção, propiciando, desta

forma, a democratização do sistema, com a previsão de acesso direto dos indivíduos e

organizações à Corte Europeia de Direitos Humanos.

Já no sistema interamericano, de acordo com o artigo 44 do novo regulamento da

Comissão Interamericana, de maio de 2001, ilustra Piovesan (2012, p. 97-98),

Se a Comissão considerar que o Estado não cumpriu as recomendações de seu

informe, aprovado nos termos do artigo 50 da Convenção Americana, submeterá

o caso à Corte Interamericana, salvo decisão fundada da maioria absoluta dos

membros da Comissão. Cabe observar, contudo, que o caso só poderá ser

submetido à Corte se o Estado-parte reconhecer, mediante declaração expressa e

específica, a competência da Corte no tocante à interpretação e aplicação na

Convenção – embora qualquer Estado-parte possa aceitar a jurisdição da Corte

para determinado caso, nos termos do artigo 62 da Convenção Americana.

O novo regulamento introduzido pela Comissão Interamericana buscou a

judicialização do sistema interamericano, de forma direta e automática, com o objetivo de

reduzir a discricionariedade e estabelecer critérios objetivos para que denúncias de

violações possam ser submetidas à apreciação da Corte Interamericana.

228

Na seara global, é possível destacar o desenvolvimento da judicialização na esfera

penal, mediante a criação dos tribunais ad hoc e, posteriormente, com a criação do

Tribunal Penal Internacional, assim como a responsabilização internacional não apenas do

Estado-violador, mas também dos indivíduos, perpetradores dos crimes internacionais.

Conquanto nos sistemas regionais, esse movimento de judicialização ocorreu na

esfera civil, através da criação e atuação das Cortes Europeia, Interamericana, Africana e

Asiática, e consequentemente com a responsabilização internacional dos Estados

perpetradores de violação aos Direitos Humanos Fundamentais, internacionalmente

disseminados, atuando apenas com sanções morais e políticas, sem aplicação jurídica.

A evolução desta temática trouxe ao cenário internacional novos sujeitos

internacionais, como as organizações não governamentais, os indivíduos e a sociedade

civil internacional. Segundo Cançado Trindade (2000, p. 8), “ainda é grande a resistência

de muitos Estados em aceitar, por exemplo, as cláusulas facultativas referentes às petições

individuais e comunicações interestatais constantes dos tratados de direitos humanos da

ONU”.

Concomitante a esse processo de judicialização, importante destacar a necessidade

de se democratizar a capacidade processual do indivíduo no sistema internacional,

reconhecendo os novos sujeitos processuais, com o fortalecimento do acesso à justiça

internacional, através da criação de mecanismos internos capazes de implementar as

decisões internacionais no âmbito doméstico.

De nada adiantará a judicialização do Direito Internacional sem que o Estado

implemente as decisões internacionais em seu âmbito interno, conforme observa Piovesan

(2012, p. 99-100): “os Estados devem garantir o cumprimento das decisões internacionais,

sendo inadmissível sua indiferença e silêncio, sob pena, inclusive, de afronta ao princípio

da boa-fé, que orienta a ordem internacional”.

Cada Estado deve trazer em seu bojo constitucional normas que visem efetivar os

Direitos Humanos Fundamentais de acordo com as diretrizes internacionais de proteção

desses direitos, como ocorre com o art. 60, IV da Constituição da República de 1988 (que

trata do núcleo inderrogável de Direitos Fundamentais), além do art. 5°, §3° (que

regulamenta que os tratados e convenções internacionais, que versem sobre Direitos

Humanos, desde que aprovados por um quórum privilegiado, são recepcionados como

Emendas Constitucionais).

229

Os mecanismos criados pelos Estados devem funcionar como ferramentas de

aplicação imediata e direta no âmbito interno dos Estados. Na visão de Cançado Trindade

(2004, p. 27), “o futuro da proteção internacional dos direitos humanos depende em grande

parte da adoção e do aperfeiçoamento das medidas nacionais de implementação”.

Sob a égide dessas análises, quanto às diferenças e similitudes dos sistemas global

e regional, serão analisados os sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos, a se

destacar o europeu, interamericano, africano e asiático, discorrendo sobre seus avanços,

dilemas e perspectivas de efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais, além do

estabelecimento de um núcleo inderrogável desses direitos, comum a todos os povos,

respeitando as diferenças de cada região.

5.4 A inderrogabilidade nos sistemas europeu e interamericano de proteção dos

direitos humanos

O continente europeu é a região mais desenvolvida no que tange à proteção dos

direitos humanos nos termos da Convenção Europeia para a proteção dos Direitos

Humanos e das liberdades fundamentais. Isto decorre, em especial, das atrocidades

cometidas na Segunda Guerra Mundial, que culminaram com a criação de mecanismos de

proteção em âmbito global e regional.

A grande vantagem desta Convenção, como assinala Mello (1997, p. 756),

É que, além de enunciar em uma convenção internacional os direitos do homem,

ela também determina as garantias de execução destes direitos. Esta convenção

contém uma restrição à soberania estatal, entendida em seu sentido clássico,

como não houve em nenhum outro texto internacional sobre a matéria.

Tanto a criação do Sistema Europeu quanto a promulgação da Convenção europeia

seguem o novo paradigma de valorização do homem, com a declaração e afirmação dos

Direitos Humanos Fundamentais, além de limitar a soberania estatal, a fim de que,

pautados no positivismo clássico, os Estados pudessem cometer crimes contra a

humanidade sem sofrer sanções.

O modelo integracionista consagrado na Europa passou por grandes

transformações, desde o número limitado de Estados, em sua configuração inicial, que

eram de seis, para a nova contabilização, como observa Sidney Guerra (2014, p. 97-98),

“27 Estados: Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Itália, Espanha, Áustria,

230

Grã-Bretanha, Portugal, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Grécia, Estônia, Letônia,

Lituânia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Eslovênia, Chipre, Malta,

Romênia e Bulgária”.

O sistema de proteção dos Direitos Humanos teve início com a fundação do

Conselho Europeu, em Estrasburgo, culminando com a Convenção de 1950, que expressou

suas angústias e preocupações ao destacar que as liberdades fundamentais constituíam as

bases para a justiça e para a paz no mundo, destacando a necessidade do regime

democrático e a concepção comum no respeito e afirmação dos Direitos Humanos.

A Convenção Europeia apesar de representar um salto evolutivo em matéria de

Direitos Humanos, por estabelecer um sistema regional de proteção desses direitos, por

outro lado contemplava apenas direitos civis e políticos, tais como: direito à vida;

proibição de tortura; escravidão; aplicação de penas cruéis, desumanas ou degradantes,

trabalho forçado; direito ao devido processo legal; direito à segurança e à liberdade; direito

à liberdade de pensamento, expressão e religião; direito à vida privada, entre outros.

Destaca-se, ainda, a criação de órgãos destinados a fiscalizar a aplicação dos

Direitos Humanos declarados no documento internacional, como também julgar os casos

de Estados-violadores desde que signatários do Tratado, conforme lembra Accioly (2006,

p. 300): “o primeiro caso dá-se no ano de 1969, com o processo Stauder123

, onde um

beneficiário de pensão de guerra se insurge em face de uma exigência que atentava contra

sua dignidade pessoal e contra o princípio da não discriminação previsto no art. 7° do

Tratado de Roma”.

Tomando por base o respeito aos Direitos Fundamentais como princípios gerais da

ordem jurídica comunitária, o Tribunal entendeu que, no caso da exigência de

identificação como beneficiário da pensão de guerra para se obter uma redução no preço

de um pote de manteiga, além de haver violação das normas comunitárias (pela

obrigatoriedade de identificação), houve desrespeito à dignidade da pessoa humana.

No entanto, a proteção aos direitos da personalidade, como observam Dromi,

Ekmekdjan e Rivera (1996, p. 233),

Han logrado una marcada recepción en los convênios internacionales,

posibilitando-se así, la supranacionalización de aquellos. De tal modo, los

Estados en tanto, adherentes a tales convenciones y em cuanto integrantes de un

sistema comunitario, reflejan en éste sus compromisos com los derechos

fundamentales, aunque la Comunidad en sí misma no hubiere formulado un

123 Processo nº29/69, Stauder versus City of Ulm.

231

catálogo de protección. En tal sentido, el TJCE há sinalado que los derechos

fundamentales de la persona forman parte de los princípios generales del

derecho comunitario.

Como consequência do movimento internacional de afirmação dos Direitos

Humanos, observa-se que a divisão em sistemas regionais propicia maior disseminação da

proteção destes direitos, estabelecendo assim um núcleo inderrogável de Direitos Humanos

Fundamentais em cada região, mas que se coadunam com os ideais globais e ampliam os

sujeitos capazes de interpor denúncias ou petições sempre que houver violação.

Desta forma, com a ratificação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de

países como Portugal, a título exemplificativo, Canotilho (1998, p. 670) observa:

Os cidadãos portugueses podem, nos termos dos artigos 25 e seguintes, daquela

Convenção, recorrer individualmente, através de petição, para a Comissão

Europeia dos Direitos do Homem. Esta petição ou queixa pode conduzir, por sua

vez, por iniciativa da Comissão ou de outro Estado, a um processo perante o

Tribunal Europeu, eventualmente conducente a uma decisão condenatória

vinculativa para o Estado ‘não amigo’ dos direitos do homem.

Uma das grandes evoluções propiciadas pelo sistema regional europeu foi a criação

de órgãos incumbidos de fiscalizar o respeito aos Direitos Humanos e julgar as eventuais

violações, não apenas em âmbito doméstico, mas em especial no plano internacional, além

de reconhecer o indivíduo como sujeito de direito internacional e não somente os Estados

como tal.

A existência de órgãos incumbidos de fiscalizar o respeito aos direitos humanos e

julgar as suas eventuais violações, dentro de cada Estado, conforme destaca Comparato

(2013, p. 240),

é uma questão crucial para o progresso do sistema internacional de proteção da

pessoa humana. Os Estados continuam a defender zelosamente sua soberania e a

rejeitar toda e qualquer interferência externa em assuntos que consideram de sua

exclusiva jurisdição. A própria Carta das Nações Unidas, de resto, declara a não

ingerência em assuntos internos de cada Estado como um dos seus princípios

fundamentais (art. 2, alínea 7).

Outra decisão revolucionou o Tribunal de Justiça da Corte Europeia. Ao se analisar

o caso Internationale Handelsgesellschaft124

, passou-se a dar nova interpretação, ao

enunciar Quadros (2004, p. 129), “que a salvaguarda desses direitos, inspirando-se nas

124 Processo nº11/70, Ac. 17.12.70.

232

tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, deve ser assegurada no quadro da

estrutura e dos objetivos da Comunidade”.

A sedimentação dos ideais de proteção dos Direitos Humanos ocorreu

principalmente no sistema europeu, através desses mecanismos e instrumentos capazes não

apenas de afirmar, mas de efetivar os Direitos Fundamentais garantidos tanto pelo

movimento constitucional quanto pelas tradições de cada região, adequando-se a esta nova

interpretação de estrutura e objetivos comuns.

Seguindo esse novo paradigma tendente de primazia do Direito Comunitário,

destaca-se o caso Nold125

. A partir dele, o Tribunal passou a reconhecer, como ilustra

Campos (2004, p. 354), “que fazem parte do direito comunitário, os princípios que,

segundo as Constituições ou as tradições constitucionais dos Estados-membros

considerados em seu conjunto garantem os direitos individuais fundamentais”.

Um dos grandes desafios e preocupações com a criação desses sistemas regionais

era uma aplicação efetiva dos Direitos Fundamentais, com observância das diferenças

étnicas, sociais, culturais e econômicas, além de se observar a diversidade quanto à

formação dos Estados, e consequentemente a nova estrutura constitucional dos Estados,

com respeito aos Direitos Fundamentais e a dita diversidade para se alcançar um núcleo

inderrogável.

Já no ano de 1992, por força do Tratado de Maastricht, é que se constituiu a União

Europeia, tornando verdadeiramente explícita a necessidade de se respeitar os Direitos

Fundamentais expressos na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Segundo Duarte

(2006, p. 20),

A partir dos anos noventa do século passado, a questão dos direitos

fundamentais alojou-se definitivamente no centro nevrálgico de controle do

presente e do futuro da União Europeia. A questão adquiriu esta importância por

razões que, por um lado, são próprias ao processo singular de aprofundamento

da integração política e jurídica no quadro da União Europeia e, por outro lado,

são ditadas por concepções hodiernas a respeito da relação entre o poder político

e as pessoas, cujas repercussões extravasam o âmbito tradicional da actuação

unilateral e interna do Estado e se fazem sentir, com crescente acuidade, no

plano transnacional.

A criação da União Europeia foi complementada com a instituição de uma moeda

comum, que se firmou no Tratado de Amsterdã, no ano de 1997, mantendo os princípios

basilares intergovernamentais, como a política externa e de segurança comum, com o

intuito de criar uma segurança comum para a Europa comunitária, e a cooperação no

125 Processo nº4/73, Ac. 14.05.74

233

domínio da justiça e assuntos internos, visando tratar do asilo e imigração, do tráfico de

drogas, da delinquência internacional e do terrorismo.

O Tribunal de Justiça da União Europeia prossegue na sua competência de

salvaguarda dos Direitos Fundamentais, ao reconhecer princípios jurídicos gerais,

inspirando-se nas Cartas Magnas comuns dos Estados Membros, bem como nas

convenções internacionais onde os países sócios são partes signatárias. Segundo Accioly

(2006, p. 304),

Dentre eles, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e

das Liberdades Fundamentais (CEDH). A partir de então o Tribunal elevou à

categoria de direitos comunitários fundamentais uma gama de liberdades, tais

como: o direito de propriedade, o livre exercício de uma atividade profissional, a

inviolabilidade do domicílio, a liberdade de opinião, o direito à proteção da

personalidade, a proteção da família, a liberdade econômica e a liberdade de

religião ou de crença.

A evolução da proteção dos Direitos Fundamentais no sistema europeu ocorreu no

ano 2000, com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, realizada em Nice,

que estabeleceu direitos sociais e econômicos, tornando-se assim um ambicioso texto

sobre os Direitos Humanos capaz de abarcar direitos civis, políticos, econômicos, sociais e

culturais, enfim, um núcleo inderrogável de direitos.

Os redatores da Convenção foram felizes ao criar um órgão intermediário entre o

queixoso e o tribunal, qual seja a Comissão de Direitos Humanos, encarregada de

selecionar as denúncias formuladas, de investigar os fatos e manifestar sua opinião, com

fundamento, sobre a ocorrência ou não de violações de direitos.

Qualquer dos Estados Partes na Convenção pode formular denúncias de violação

de Direitos Humanos contra outro Estado Parte, denúncias essas que serão processadas

perante a Comissão, além dos próprios indivíduos, organização não governamental ou

grupo de indivíduos, como sustenta Sidney Guerra (2014, p. 101):

As denúncias contra um Estado-parte na Convenção podem também ser

representadas por qualquer pessoa, organização não governamental ou grupo de

indivíduos, o que representou sensível progresso em relação ao direito

internacional clássico, confinado exclusivamente às relações entre Estados. Mas,

em evidente concessão da soberania estatal, determinou-se que essas denúncias

apresentadas por indivíduos ou grupos privados somente seriam recebidas contra

um Estado que houvesse previamente reconhecido a competência da Comissão

para processá-las (art. 25).

Uma das competências da Comissão de Direitos Humanos foi a legitimidade para

propor uma ação contra um Estado-parte perante o Tribunal Europeu de Direitos

234

Humanos. A fórmula de compromisso, na visão de Comparato (2013, p. 304), “com a

soberania de cada Estado-parte foi aplicada ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. É a

cláusula de reconhecimento facultativo da jurisdição obrigatória”.

Mas foi o protocolo n° 11 à Convenção que propiciou uma mudança de paradigma

no sistema europeu de proteção aos Direitos Humanos por ter extinguido a Comissão

Europeia de Direitos Humanos, transferindo boa parte de suas atribuições ao Tribunal

Europeu de Direitos Humanos, além de revogar a cláusula de reconhecimento facultativo

da jurisdição do Tribunal, fazendo com que todos os Estados Partes da Convenção

passassem a se submeter a este.

Os procedimentos de garantia dos direitos elencados na Convenção Europeia de

Direitos Humanos foram mediatizados com a entrada em vigor do Protocolo,

estabelecendo como mecanismo para efetivar os direitos e liberdades fundamentais, o

Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Com a anterioridade da vigência do Protocolo n° 11, a Comissão era o órgão

perante o qual deviam se prestar as reclamações sobre possíveis violações de Direitos

Fundamentais. Conforme assevera Delgado (2000, p. 270),

Reconocidos tanto en el convenio como en sus protocolos. El CEDH atribuía a

la comisión tres funciones diferenciadas: Una primeira estrictamente

administrativa, una segunda de conciliación y una tercera de instrucción. [...]

Podemos resumir las innovaciones en 1998 en el Convenio en dos grandes

grupos. Por una parte están las modificaciones puramente formales, como la

rotulación de los artículos. Pero lo más significativo de la reforma es la

reestructuración del mecanismo de protectión de los derechos. Aquí se

encuentran la supresión de la Comisión, la redicción del papel del Comité de

Ministros a la supervisión de la ejecución de las sentencias, y la capital a nuestro

entender, que es la transformación del Tribunal.

Para aceitar uma demanda, a Comissão, em plenário, primeiro verificava se tinha

sido interposta por um Estado ou por um particular, e tentava promover uma conciliação

amistosa para o conflito. Caso não fosse possível ou infrutífera a conciliação, a Comissão

elaborava um relatório descrevendo os fatos, e se era caso de violação de Direitos

Fundamentais, com parecer de cada um dos membros.

O objetivo do Protocolo n° 11 era fundir as funções da Comissão Europeia e a

Corte Europeia, como um único órgão permanente jurisdicional. No entanto, com a

mudança no Comitê de Ministros, este perdeu sua capacidade decisória nos casos não

submetidos à apreciação da antiga Corte Europeia pela Comissão.

235

O sistema adotado no continente europeu é extremamente avançado, em especial,

pelo fato de atribuir legitimidade à pessoa humana de litigar diretamente no Tribunal

Europeu, sem intervenção de terceiros, por violação de Direitos Humanos, tornando-se

assim um efetivo sistema de proteção do indivíduo que reconhece a valorização da

dignidade humana, conforme observa Sidney Guerra (2014, p. 103), “permitindo que

possíveis injustiças e/ou falhas que tenham sido produzidas no âmbito interno de um

determinado Estado possam ser devidamente corrigidas por essa instância supranacional”.

Além deste, destacam-se o Protocolo n° 12, que introduziu uma cláusula de

proibição geral de discriminação, com o escopo de fomentar a igualdade formal e material

entre todos, o Protocolo n° 13, que veda a aplicação da pena de morte em quaisquer

circunstâncias, e o Protocolo n° 14, que alterou procedimentos na Corte, visando dar maior

celeridade na resolução das demandas propostas no âmbito desta.

Desta forma, percebe-se que a Corte Europeia tem dupla competência, uma

contenciosa, ao passo que dentre os requisitos a serem observados, devem ser esgotados

todos os recursos internos oferecidos pelo ordenamento jurídico estatal, responsável pela

violação dos Direitos Humanos, e outra consultiva, isto é, opinar por meio de pareceres

sobre questões judiciais atinentes à Convenção, desde que não analisem questões relativas

ao conteúdo ou à extensão dos direitos e liberdades fundamentais.

Os sujeitos legitimados a propor ações na Corte Europeia, além dos Estados, são as

organizações não governamentais, os grupos de particulares e qualquer pessoa singular,

desde que na condição de vítima, como observa Sidney Guerra (2014, p. 104), “isto é,

quando um ou mais direitos protegidos na Convenção tenham sido aviltados em um

determinado Estado-membro desse sistema de proteção”.

Seguindo essa mesma vertente de proteção dos Direitos Humanos, foi criada a

Organização dos Estados Americanos que consagrou a Convenção Americana de Direitos

Humanos. Já no preâmbulo do Tratado Internacional, discorre que o verdadeiro sentido da

solidariedade americana e da boa vizinhança não pode ser outro senão o de consolidar no

continente, no quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade individual e

de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem.

No plano regional do sistema interamericano, o Brasil ocupou um importante papel

na criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme ilustra Cançado

Trindade (2000, p. 39), destacando a

236

Delegação do Brasil que propôs, na IX Conferência Internacional Americana

(Bogotá, 1948), a criação de uma Corte Interamericana de Direitos Humanos. A

proposta do Brasil – aprovada e adotada como Resolução XXI da Conferência

de Bogotá – ressaltava a necessidade da criação de um órgão judicial

internacional para tornar adequada e eficaz a proteção jurídica dos direitos

humanos internacionalmente reconhecidos.

Além disso, destaca-se que os Estados-membros proclamaram os Direitos

Fundamentais da pessoa humana como princípios que devem pautar suas atuações, sem

qualquer tipo de discriminação de raça, nacionalidade, credo ou sexo, dando origem ao

Sistema Interamericano de Direitos Humanos, constituído pela Convenção Americana de

Direitos Humanos, adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada

Interamericana sobre Direitos Humanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro

de 1969.

A análise do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos exige que

seja considerado o seu contexto histórico, além das peculiaridades regionais, como ensina

Piovesan (2012, p. 125-126):

Trata-se de uma região marcada por elevado grau de exclusão e desigualdade

social, ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda

convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais,

com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade de

Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no

âmbito doméstico.

O mundo vivia por uma ampla e difusa transição política; ao mesmo tempo em que

se disseminava a ideia de proteção integral e indistinta aos Direitos Humanos

Fundamentais, ainda vivia-se, na região americana, muitos Estados marcados por sistemas

ditatoriais militares, até o final da década de 1980, em especial na Argentina, no Chile, no

Uruguai e no Brasil.

Ao longo da vigência desses regimes ditatoriais que marcaram os Estados da

região, os mais básicos direitos e liberdades foram violados, através de execuções

sumárias, desaparecimentos forçados, torturas sistemáticas, prisões ilegais e arbitrárias,

perseguições político-ideológicas, além da abolição das liberdades de expressão, reunião e

associação.

A Convenção Americana de Direitos Humanos foi adotada em 1969 em uma

Conferência intergovernamental celebrada pela Organização dos Estados Americanos,

conforme observa Thomas Buergenthal em Meron (1984, p. 440),

237

The meeting took place in San José, Costa Rica, which explains why the

American Convention is also known as the 'Pact of San José, Costa Rica.' The

American Convention entered into force in July 1978, when the 11th instrument

of ratification was deposited.

Do encontro que ocorreu em San José da Costa Rica, que estabeleceu um núcleo

inderrogável de Direitos Fundamentais, só veio a entrar em vigor após a ratificação do 11°

Estado, que ocorreu no ano de 1978.

O sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos no continente

americano abarca os procedimentos contemplados na Carta de Organização dos Estados

Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção

Americana de Direitos Humanos.

Isso porque o sistema americano, segundo observa Sidney Guerra (2012, p. 27),

Num primeiro momento, atribuía uma série de competências para todos os

Estados-membros, por força da Carta da Organização dos Estados Americanos e

da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Posteriormente,

com a Convenção Americana de Direitos Humanos, os procedimentos e

instrumentos ali previstos são aplicados tão somente aos Estados-partes do

referido tratado internacional.

Por esta razão diz-se que no âmbito americano existe um sistema duplo de proteção

dos Direitos Humanos: um geral, baseado na Carta e na Declaração e outro que abarca

apenas os Estados signatários da Convenção, que além de contemplar a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos, também alcança a Corte Interamericana de Direitos

Humanos.

No decorrer da Conferência de San José de 1969, que conduziu à adoção da

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Brasil teve participação das mais ativas,

refletida em suas numerosas intervenções. No magistério de Cançado Trindade (2000, p.

49),

Em uma destas (6ª sessão da II Comissão da Conferência, em 19 de novembro

de 1969), a Delegação do Brasil afirmou que se impunha ‘assegurar a

independência’ da futura Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual,

ademais, não poderia situar-se fora do sistema interamericano.

A Convenção entrou em vigência no ano de 1978, admitindo-se que os Estados

Partes da Organização dos Estados Americanos aderissem a esta, como ocorreu no Brasil,

de forma tardia, apenas em 1992, por meio do Decreto n° 678 e pelo Decreto n°

5.174/2004, que promulgou a Declaração de Reconhecimento da Competência obrigatória

238

da Corte Interamericana em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da

Convenção sobre Direitos Humanos.

Em 1978, quando a Convenção Americana de Direitos Humanos entrou em vigor,

muitos dos Estados da América Central e do sul eram governados por ditaduras, tanto de

direita, quanto de esquerda, conforme destaca Thomas Buergenthal em Pasqualucci (2003,

p. 25),

Of the 11 States Parties to the Convention at the time, less than half had

democratically elected governments. The other half of the states had ratified the

Convention for various political reasons. [...] Over the years, however, there was

a gradual change in the political regime of the Americas, making it possible for

the inter-American system of human rights protection have a growing

importance.

Dos 11 Estados Partes da Convenção, à época de sua promulgação, menos da

metade tinha governos eleitos democraticamente, enquanto a outra metade apenas ratificou

a Convenção por questões de ordem política. Somente após a queda dessas ditaduras foi

possível para o sistema interamericano ampliar a importância da proteção dos Direitos

Humanos Fundamentais.

As referidas mudanças no cenário político fizeram com que quase a totalidade dos

Estados latino-americanos na região, com exceção de Cuba, migrassem para governos

eleitos democraticamente com significativos avanços na proteção dos Direitos Humanos

em suas Cartas Constitucionais, além de ratificarem e reconhecerem a Convenção e

competência jurisdicional da Corte.

Desde a ratificação, houve um divisor de águas em relação aos Direitos Humanos

no Brasil. Foi sua condenação, por unanimidade, pelo então juiz brasileiro Antonio

Augusto Cançado Trindade. Pela primeira vez a Corte Interamericana de Direitos

Humanos, como ilustra Guerra (2014, p. 106),

No caso Ximenes Lopes, cuja sentença foi prolatada em São José da Costa Rica

em 4 de julho de 2006, ao admitir o reconhecimento parcial da responsabilidade

internacional do Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida, à integridade

pessoal, consagrados nos arts. 4.1, 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em

relação à obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecidos no art.

1.1 do referido tratado internacional.

Este é apenas um exemplo de como os Estados-membros têm sido

responsabilizados por violações dos Direitos Humanos, e como as ideias disseminadas no

pós Segunda Guerra Mundial, traduzindo a nova roupagem de valoração da dignidade da

239

pessoa humana e a limitação da soberania dos Estados com a consequente

responsabilização por tais violações.

Esta ruptura de paradigmas, ocorrida após a Declaração de 1948, além da criação

dos Sistemas Regionais de Proteção, fundamentalmente consagrados na Convenção

Americana são os relativos ao exercício de direitos civis e políticos, dos Pactos de 1966,

muito embora os Estados apresentem a ideia de gozo de direitos civis, políticos,

econômicos, sociais e culturais.

A Convenção Americana é mais extensa que muitos instrumentos internacionais de

Direitos Humanos. Segundo Buergenthal (1988, p. 441),

It contains 82 articles and encodes more than two dozen different rights,

including the right to legal personality, to life, humane treatment, personal

liberty, a fair trial, privacy, name, nationality, participation in government , the

same legal protection and judicial protection. The American Convention

prohibits slavery; proclaims freedom of conscience, religion, thought and

expression, and freedom of association, movement, residence, next to the

prohibition of the application of ex post facto laws.

A Convenção Americana contempla 82 artigos, que buscam criar um núcleo

inderrogável de direitos, incluindo o direito à personalidade jurídica, à vida, ao tratamento

humano, à liberdade pessoal, a um julgamento justo, à privacidade, ao nome, à

nacionalidade, à participação no governo, à igual proteção legal e à proteção judicial.

Ademais, proíbe a escravidão, proclama a liberdade de consciência, religião, pensamento e

expressão, bem como a liberdade de associação, movimento, residência, além de proibir a

aplicação de leis com efeito retroativo que prejudiquem a vítima.

Quanto aos direitos sociais, econômicos e culturais, a Convenção Americana não

estabelece claramente a proteção para os referidos direitos, apenas determina que os

Estados devam adotar medidas para serem alcançadas e efetivadas em âmbito doméstico,

conforme acentua o art. 26 do diploma internacional.

Em face desse catálogo de direitos constantes da Convenção Americana, ensina

Piovesan (2012, p. 129):

o Estado-parte tem a obrigação de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício

desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação. Cabe ainda ao Estado-

parte adotar as medidas legislativas e de outra natureza que sejam necessárias

para conferir efetividade aos direitos e liberdades enunciados.

240

A fim de efetivar os direitos sociais, econômicos e culturais, foi consagrado, no

âmbito da Organização dos Estados Americanos, o Protocolo de San Salvador que elencou

uma série de direitos126

, dentre eles, o sistema interamericano de direitos humanos passa a

ser constituído pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos.

Os Estados Partes na Convenção Americana têm a obrigação não apenas de

‘respeitar’ esses direitos garantidos na Convenção, mas também de ‘assegurar’ o seu livre

e pleno exercício. Como atenta Buergenthal (1984, p. 442),

A government therefore has positive and negative obligations to the American

Convention. On the one hand, there is the obligation not to violate individual

rights; for example, there is a duty not to torture an individual or not deprive him

of a fair trial. But the state's obligation goes beyond this negative duty and may

require the adoption of necessary and reasonable affirmative measures in certain

circumstances to ensure the full exercise of the rights guaranteed by the

Convention.

Importante frisar que as obrigações do Estado vão além de disciplinar normas de

proteção de Direitos Humanos Fundamentais, mas de propiciar a sua efetividade, podendo

ser responsabilizado de forma positiva e negativa, ou seja, tanto pela ação quanto pela

omissão, que possam gerar quaisquer tipos de violações ao diploma internacional.

Ao apresentar um breve perfil da Convenção Americana, explica Gross Espiell

(1982, p. 557):

The part concerning the obligations of States and the rights protected, consists of

a first chapter that defines such obligations, a second chapter which lists civil

rights and protected politicians, a third chapter on economic, social and cultural

rights, a fourth chapter which deals with the suspension of guarantees,

interpretation and application, and a final chapter that governs the relationship

between rights and duties. Thus, a single instrument provides for both civil and

political rights, and economic, social and cultural rights. Part II deals with the

protection means. Chapter VI lists the competent bodies Chapter VII regulates

the Inter-American Commission on Human Rights and the Chapter IX provides

for common devices to both organs. Part III consists of two chapters that

establish general and transitional forecasts.

A partir dessa breve exposição da estrutura geral da Convenção Americana quanto

aos aparatos de monitoramento e implementação dos mecanismos de proteção dos Direitos

Humanos, destacam-se a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos

Humanos.

126 Direito ao trabalho, direito à seguridade social, direito às condições equitativas de trabalho, direito à associação

sindical, proteção à família, proteção à criança, proteção ao idoso, proteção à cultura, proteção ao meio ambiente

equilibrado, entre outros.

241

Dentre as funções da Comissão Interamericana está a observância e proteção dos

Direitos Humanos, além de fazer recomendações aos governos dos Estados Partes,

prevendo a adoção de medidas adequadas à proteção desses direitos, preparar estudos e

relatórios necessários, além de solicitar aos governos informações relativas às medidas

adotadas concernentes à efetivação da Convenção e, por fim, estabelecer um relatório

anual à Assembleia Geral das Organizações dos Estados Americanos.

As Comissões realizam as seguintes funções, na visão de Fix-Zamudio (1991, p.

152),

a) conciliatoria, entre un gobierno y grupos sociales que ven violados los

derechos de sus miembros; b) aconseja, asesorar a los gobiernos a tomar las

medidas apropiadas para promover los derechos humanos; c) la crítica, el

informe sobre la situación de los derechos humanos en un Estado miembro de la

OEA, luego de la ciencia de los argumentos y observaciones del Gobierno de

que se trate, cuando estas violaciónes persisten; d) la legitimación cuando un

gobierno supuestamente debido al resultado del informe de la Comisión sobre

una visita o un examen, decide reparar las faltas de sus procesos internos y

violaciónes remediar; e) promover, en la realización de estudios sobre cuestiones

de derechos humanos con el fin de promover su respeto y f) de protección

cuando Además de las actividades mencionadas, intervenir en casos de urgencia

para pedir al gobierno contra el que se ha presentado una denuncia, a suspender

su la acción y el informe sobre las acciones tomadas.

Isso demonstra que além da competência de examinar as comunicações,

encaminhadas por indivíduos ou grupos de indivíduos, ou ainda entidade não

governamental, que contenham denúncia de violação a direito consagrado pela Convenção,

também possui funções que visam, além de implementar estes direitos, reafirmar a

necessidade de efetivar os Direitos Humanos como uma garantia fundamental ao exercício

do Estado Democrático de Direito.

Inicialmente, a competência da Comissão estava adstrita à promoção dos Direitos

Humanos, como observa Sidney Guerra (2014, p. 108), “por meio de preparação de

estudos e relatórios, além de recomendações aos governos dos Estados com vistas à

adoção de medidas em prol dos Direitos Humanos no plano doméstico dos seus

respectivos territórios”.

Entre o sistema interamericano e europeu destacam-se similitudes e diferenças,

especialmente no que tange aos sujeitos com capacidade para realizar denúncias ou

queixas. No sistema interamericano, diversamente do sistema europeu, é vedada a

possibilidade de a pessoa litigar diretamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos

por seus direitos violados, devendo, para tanto, provocar a Comissão Interamericana de

Direitos Humanos.

242

Contudo, a petição tal como no sistema europeu, deve atender a determinados

requisitos de admissibilidade, como o prévio esgotamento dos recursos internos, exceto

quando possa haver demora processual, ou ainda quando a legislação interna não prover o

devido processo legal.

Quanto ao requisito do prévio esgotamento dos recursos internos, leciona Cançado

Trindade (1991, p. 12);

Como se sabe, estamos diante da regra de Direito Internacional em virtude da

qual se deve dar ao Estado a oportunidade de reparar um suposto dano no âmbito

de seu próprio ordenamento jurídico interno, antes que se possa invocar sua

responsabilidade internacional; trata-se de uma das questões, que, com maior

frequência, é suscitada no contencioso internacional, concernente tanto à

proteção diplomática de nacionais no exterior, como à própria proteção

internacional dos Direitos Humanos.

Após a Comissão Interamericana decidir sobre sua admissibilidade, considerando

os requisitos estabelecidos no art. 46, caso aceite, solicitará informações ao governo

denunciado, observando o contraditório para que o Estado denunciado manifeste-se quanto

às supostas violações aos Direitos Humanos.

Diversamente do sistema europeu, que assegura o acesso direto de qualquer

indivíduo ou grupo de indivíduos ou organizações não governamentais à Corte Europeia,

no sistema interamericano, conforme destaca Piovesan (2012, p. 137), “apenas a Comissão

Interamericana e os Estados Partes podem submeter um caso à Corte Interamericana, não

estando prevista a legitimação do indivíduo, nos termos do artigo 61 da Convenção

Americana”.

Dispõe ainda, o novo Regulamento da Comissão, que passou a vigorar em 2001, se

a Comissão considerar que o Estado-violador não cumpriu as recomendações do informe

aprovado nos termos do artigo 50 da Convenção Americana, submeterá o caso à Corte

Interamericana, demonstrando assim a nova roupagem de judicialização do sistema

interamericano.

A avaliação discricionária da Comissão Interamericana deixa de existir e passam a

ser adotados parâmetros objetivos para que uma denúncia seja levada ao conhecimento da

Corte Interamericana, nos casos onde não há solução amistosa, sendo realizado de forma

direta e automática.

243

O sistema ganha maior tônica de juridicidade, reduzindo a seletividade política que,

até então, era realizada pela Comissão Interamericana. Nesse sentido, Piovesan (2012, p.

137):

Cabe observar, contudo, que o caso só poderá ser submetido à Corte se o Estado-

parte reconhecer, mediante declaração expressa e específica, a competência da

Corte no tocante à interpretação e aplicação da Convenção – embora qualquer

Estado-parte possa aceitar a jurisdição da Corte para determinado caso.

Outro ponto facultativo, nas normas da Convenção, está na cláusula das

comunicações interestatais, pela qual os Estados Partes podem declarar que reconhecem a

competência da Comissão para receber e examinar comunicações em que um Estado-parte

alegue que outro tenha cometido violação aos direitos previstos no referido diploma

internacional.

Acerca das comunicações interestatais, submetidas por um Estado contra outro

Estado, na lição de Buergenthal (1984, p. 454-455),

If both states, and have ratified the American Convention, made a declaration

recognizing the competence of the interstate Commission. The American

Convention reverses the traditional pattern, hitherto used by the European

Convention, for example where the right of individual petition is optional and

interstate communication procedure is required. The drafters of the Convention

apparently assume that the inter-State communications can be used by certain

States for political purposes and interventional purposes and that this risk exists

to a lesser extent with respect to private communications.

Uma crítica feita ao sistema interamericano é justamente não admitir a

possibilidade da petição ser encaminhada diretamente pelo indivíduo, prejudicando assim,

sobremaneira a efetivação dos Direitos Humanos, uma vez que, para ser apreciada uma

denúncia são necessárias articulações políticas que possam motivar uma ação ou inação

governamental.

No tocante à Corte Interamericana de Direitos Humanos, esta se constitui como

uma instituição judicial independente e autônoma, com o objetivo de aplicar e interpretar a

Convenção Americana acerca dos Direitos Humanos, baseada nos artigos 33, b, e 52 a 73

do diploma internacional e pelas normas do seu Estatuto, instalado em 1979, com sede em

São José, na Costa Rica.

A Convenção Americana estabelece dois órgãos para assegurar sua implementação:

a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos

Humanos. Para Piovesan (2012, p. 138) trata-se de “órgão jurisdicional do sistema

244

regional, composto por sete juízes nacionais de Estados membros da OEA, eleitos a título

pessoal pelos Estados Partes da Convenção”.

Assim como a Corte Europeia, a Corte Interamericana apresenta dupla competência

(consultiva e contenciosa). A primeira refere-se à interpretação das disposições da

Convenção Americana, além dos tratados acerca da proteção dos direitos humanos. A

segunda, de caráter jurisdicional, refere-se à solução de controvérsias acerca da

interpretação ou aplicação da Convenção.

No que diz respeito a essa dúplice competência, Pinto (1993, p. 94) destaca:

La Corte Interamericana tiene competencia contenciosa y consultiva. En cuanto

a la primera, como un Tribunal de Justicia, corresponde a la Corte para resolver

los conflictos de carácter legal, que cuando una decisión de la Comisión, que se

presentan, por esta o por cualquier Estado que haya aceptado su competencia en

relación con otra Estado del sistema interamericano, que también ha reconocido

su jurisdicción.

A Corte pode, mediante solicitação de qualquer membro da Organização dos

Estados Americanos, dar parecer relativamente à interpretação dinâmica e evolutiva, da

Convenção ou qualquer outro tratado de proteção dos Direitos Humanos, analisando ainda

a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos

internacionais, propiciando desta forma, o controle de convencionalidade das normas.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem a mais ampla jurisdição em

matéria consultiva, se comparada com qualquer outro Tribunal internacional, como

observa Pasqualucci (p. 80):

The Court has exercised its jurisdiction in order to carry out important

conceptual contributions in the field of human rights. [...] The advisory opinions

as a mechanism with much lower degree of confrontation that contentious cases,

it is not even limited to specific facts released to the evidence, serve to give legal

expression to the legal principles. [...] Through its advisory jurisdiction, the

Court has contributed to give uniformity and consistency to the interpretation of

substantive and procedural prediction of the American Convention and other

human rights treaties.

A dupla competência da Corte Interamericana, assim como na Corte Europeia,

contribui não apenas para responsabilizar o Estado-violador, com a emissão de parecer

com orientações procedimentais, mas também judicializando e unificando as decisões

acerca da Convenção Americana e dos tratados que visam à proteção dos Direitos

Humanos.

245

Em pouco mais de 30 anos de vigência, a Corte emitiu mais de 20 pareceres.

Dentre eles, destaca-se o parecer acerca da impossibilidade de adoção da pena de morte no

Estado da Guatemala127

, pelo qual a Comissão Interamericana solicitou à Corte opinião no

sentido de esclarecer se a imposição da pena de morte por um Estado, em face de crimes

não punidos com essa sanção quando da adoção da Convenção Americana pelo Estado,

constituiria violação à Convenção, ainda que o Estado tivesse feito reservas a essa

importante previsão da Convenção.

A Corte tem jurisdição para examinar casos envolvendo denúncias de que um

Estado-parte tenha violado direitos pela Convenção. Conforme esclarece Piovesan (2012,

p. 144), “se reconhecer que efetivamente ocorreu a violação à Convenção, determinará a

adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado. A

Corte pode ainda condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima”.

A decisão da Corte, para os Estados que reconheceram sua jurisdição, tem força

jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado o seu imediato cumprimento. Em caso

de compensação da vítima, seguir os procedimentos de um título executivo contra o

Estado, de acordo com as diretrizes e procedimentos internos relativos à execução de

sentença desfavorável ao Estado.

Tanto a Corte Europeia de Direitos Humanos como a Corte Interamericana de

Direitos Humanos têm o poder de proferir decisões juridicamente vinculantes. Na lição de

Sieghart (1983, p. 35),

Against sovereign states, condemning them for the violation of human rights and

fundamental freedoms of individuals, and ordering them, the payment of fair

compensation or compensation victims.

Até o momento, dos 35 Estados Partes da Organização dos Estados Americanos,

somam-se 21 Estados que declaram reconhecer a competência contenciosa da Corte, além

daqueles que não a reconhecem como Caribe, Cuba, Estados Unidos e Canadá.

Dos 25 Estados Partes da Convenção Americana, como observa Pereira e Quadros

(1993, p. 274),

Os Estados do Caribe de língua inglesa, em sua maioria, até o momento não

aceitaram a competência contenciosa da Corte; Cuba, pelas razões conhecidas,

continua fora do Sistema Interamericano. Os Estados Unidos e o Canadá não

ratificaram a Convenção Americana e não reconhecem a competência da Corte.

127 Opinião Consultiva n° 3, de 8 de setembro de 1983. Disponível em:

http://www.corteidh.or.cr/serieapdf/seriea_03_esp.pdf. Acesso em: 20 set. 2016.

246

A Corte Interamericana, num cenário marcado por governos ditatoriais, que

seguiram na contramão da valorização e afirmação da pessoa humana como princípios

fundamentais a serem seguidos pelos Estados, verificou um cerceamento desses Direitos

Humanos Fundamentais, que somente voltaram a ser observados com a redemocratização

desses países.

O Sistema Interamericano tem assumido um relevante destaque na proteção dos

direitos humanos, conforme ensina Piovesan (2012, p. 251):

O sistema interamericano salvou e continua salvando muitas vidas; tem

contribuído de forma decisiva para a consolidação do Estado de Direito e das

democracias na região; tem combatido a impunidade; e tem assegurado às

vítimas o direito à esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos

sejam respeitados. O sistema americano tem revelado, sobretudo, dupla vocação:

impedir retrocessos e fomentar avanços no regime de proteção dos direitos

humanos, sob a inspiração de uma ordem centrada no valor da absoluta

prevalência da dignidade humana.

Ponto importante a ser destacado é que até a criação desse sistema de proteção

regional, as possibilidades de se obter reparação de danos por violação aos Direitos

Humanos esgotavam-se nas Cortes Constitucionais dos respectivos Estados, e que após a

implantação desses mecanismos, aquele que se sentir injustiçado ou seus familiares,

poderá acionar uma instância de natureza supranacional, com sentenças inapeláveis,

definitivas e não sujeitas a precatórios.

Com isso, serão analisados outros dois sistemas regionais, que visam efetivar os

direitos elencados na Declaração de 1948, e que seguem basicamente as diretrizes do

Sistema Europeu de proteção dos Direitos Humanos, mas observando as peculiaridades de

cada região, tanto no que diz respeito ao Sistema Africano, por meio da Carta Africana,

quanto o sistema Asiático, através da Carta Asiática de Proteção dos Direitos Humanos.

5.5 A inderrogabilidade nos sistemas africano e asiático de proteção dos direitos

humanos

Ao estudar os sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos percebe-se

que, partindo do mais antigo, o europeu, passando pelo intermediário, o interamericano,

ainda é necessário compreender os mais recentes e incipientes sistemas, em pleno processo

de consolidação e de construção.

247

Com base em um estudo cronológico, é relevante atentar ao fato de que a

Convenção Europeia foi adotada em 1951, entrando em vigor em 1953, já a Convenção

Americana foi adotada em 1969, entrando em vigor apenas em 1978, enquanto a Carta

Africana dos Direitos Humanos e dos Povos foi adotada somente em 1981, passando a

vigorar em 1986.

Desde a adoção até a entrada em vigor dos respectivos sistemas, que representam o

período de maturação e desenvolvimento dos sistemas e dos mecanismos de proteção dos

Direitos Humanos, enquanto a Convenção Europeia já tem mais de meio século, a

Convenção Americana ultrapassa quatro décadas, e a jovem Carta Africana apenas 30 anos

de existência.

A grande novidade introduzida pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos

Direitos dos Povos, aprovada na 18ª Conferência de Chefes de Estado e Governo, reunida

em Nairóbi, no Quênia, em julho de 1981, conforme observa Comparato (2013, p. 409-

410),

Consistiu em afirmar que os povos são também titulares de direitos humanos,

tanto no plano interno como na esfera internacional. [...] A Carta Africana, na

esteira da Declaração Universal dos Direitos dos Povos, aprovada numa

conferência realizada em Argel em 1976, vai mais além, e afirma os direitos dos

povos à existência enquanto tal (art. 20, in initio), à livre disposição de sua

riqueza e recursos naturais (art. 21), ao desenvolvimento (art. 22), à paz e à

segurança (art. 23), e também à preservação de um meio ambiente sadio (art.

24).

Os direitos coletivos, visando uma proteção universal dentro de um contexto

regional, para serem reconhecidos no plano lógico, mesmo antes de sua vigência efetiva,

exigem um mínimo de precisão, não apenas quanto ao sujeito, mas também quanto ao

objeto.

A Carta Africana dos Direitos Humanos, desde seu preâmbulo, já demonstra sua

feição própria e peculiar, que a distingue dos demais instrumentos internacionais e

regionais. Destacam-se quatro aspectos do preâmbulo, que orientam a interpretação da

Carta, e que visam estabelecer um núcleo inderrogável de direitos.

O primeiro deles é a atenção dedicada às tradições históricas e aos valores da

civilização africana, conjugando-se ao processo de libertação da África, a luta por

independência e dignidade dos povos africanos, o combate ao colonialismo e

248

neocolonialismo128

, a erradicação do apartheid129

, do sionismo130

e de todas as formas de

discriminação.

Relacionada a esse primeiro aspecto, advém a gramática dos “direitos dos povos”,

que, no dizer do preâmbulo, devem necessariamente garantir os Direitos Humanos através

de uma perspectiva coletivista, mas diferentemente das outras Cartas Europeia e

Americana que apresentam um viés liberal individualista.

Nessa linha chega-se ao terceiro aspecto da Carta para formação de seu núcleo

inderrogável, que é a previsão indissociável de direitos civis e políticos, mas de direitos

econômicos, sociais e culturais.

Por fim, o quarto aspecto refere-se à concepção de deveres, na medida em que o

preâmbulo da Carta afirma que “o gozo dos direitos e liberdades implica o cumprimento

dos deveres de cada um”, ou seja, além de estabelecer os direitos dos indivíduos atribui

deveres para que tais direitos possam ser efetivados.

Embora os Estados africanos tenham ratificado os principais tratados de Direitos

Humanos do sistema global, além da Carta Africana, a grande maioria dos Estados

Africanos, após sua independência, declararam, no preâmbulo de suas Constituições,

adesão aos princípios democráticos e de Direitos Humanos consagrados tanto na

Declaração de 1789 quanto na Declaração de 1948.

Mesmo assim, o cenário que envolve aquela região é de graves e sistemáticas

violações aos Direitos Humanos, em especial na década de 1990, na presença de um grave

sistema de corrupção política, que reduz a eficácia do Sistema Africano de proteção dos

Direitos Humanos, conforme destaca Ouko (2005, p.3),

The endemic state corruption has also led to abuses in the field of social,

economic, cultural and environmental rights. Corruption has worsened the

violations of the rights to health, education, food, water, housing and work,

among others. [...] In short, the implementation of human rights in Africa has

been and still is reduced. [...] A first step would require each African state to

128 O neocolonialismo, também chamado de imperialismo, foi uma política de expansão territorial e econômica praticada

pelas potências europeias a partir do século XIX, em especial em territórios da África e da Ásia. Essa política foi um dos

principais motivos da eclosão da Primeira Guerra Mundial. 129 O apartheid representou a transformação do racismo em lei na África do Sul – a segregação racial foi legalmente

aceita entre 1948 e 1994. Foi o regime do apartheid que retirou os direitos dos negros e deu privilégios aos brancos,

minoria no país. A discriminação institucionalizada teve início quando o Partido Nacional da África do Sul ganhou as

eleições. Em 1949, os casamentos mistos foram proibidos. Em 1950, a Lei da imoralidade proíbe a relação sexual entre

brancos e negros. No mesmo ano, a população é cadastrada e separada por raça, além de ser dividida fisicamente com a

formação de áreas residenciais específicas. 130 O sionismo é também chamado de nacionalismo judaico e historicamente propõe a erradicação da Diáspora Judaica,

com o retorno da totalidade dos judeus ao atual Estado de Israel. O movimento defende a manutenção da identidade

judaica, opondo-se à assimilação dos judeus pelas sociedades dos países em que viviam.

249

assess the causes of persistent human rights violations. Only then Africa could

effectively address their problems.

Uma das dificuldades encontradas na implementação dos direitos elencados na

Carta Africana de Direitos Humanos está em sua corrupção estatal endêmica, agravando

assim as violações aos direitos à saúde, à educação, à alimentação, à água, à moradia e ao

trabalho, dentre outros. Desta forma, somente através da regionalização e da autonomia a

ser atribuída a cada Estado africano para avaliar as causas persistentes destas violações é

que a África poderá enfrentar efetivamente estes problemas.

A Carta Africana de Direitos Humanos surge exatamente dessa necessidade de

promover, proteger e interpretar as previsões de Direitos consagrados nessa Carta, através

da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Foi adotada em 1981, em

Banjul, Gâmbia, pela então Organização da Unidade Africana, mas entrou em vigor apenas

em 1986. Desde 1995 conta com a adesão de todos os 53 Estados africanos.

Quanto à elaboração da Carta Africana, observa Ouko (2005, p. 2), “The African

Charter was primarily drawn up in response to human rights violations that occurred in

Africa in the 1970s”. O documento mantém forte influência da Convenção Europeia de

Direitos Humanos, mas com características próprias que a distingue dos demais

instrumentos internacionais de proteção e afirmação dos Direitos Humanos.

Dentre os aspectos que distinguem este instrumento, destacam-se a atenção

dedicada às tradições históricas e aos valores da civilização africana, concomitante às

aspirações libertárias e democráticas, a luta pela independência e dignidade dos povos

africanos, o combate ao colonialismo e ao neocolonialismo, a erradicação da segregação

racial, do sionismo e de todas as formas de discriminação.

Relacionado a esse primeiro aspecto, advém a gramática dos “direitos dos povos”,

que, conforme observa Piovesan (2012, p. 191), “devem necessariamente garantir os

direitos humanos. Diversamente dos demais instrumentos de proteção, em especial a

Convenção Europeia e a Convenção Americana, a Carta Africana adota uma perspectiva

coletivista, que empresta ênfase aos direitos dos povos”.

Por essas razões, a criação da Carta Africana de Direitos Humanos tem como

premissas critérios variáveis em razão da miscigenação, de diferentes culturas, e diferentes

povos, mas todos com a mesma nacionalidade. O que se busca com este instrumento

internacional é atender às necessidades regionais e abarcar um leque maior de direitos, que

250

possam considerar essas variantes, estabelecendo assim, o seu núcleo inderrogável131

de

Direitos Fundamentais.

A respeito do tema, destaca-se a decisão da Comissão Africana no caso Social and

Economic Rights Action Centre/Centre for Economic and Social Rights vs. Nigeria, ao

acentuar que,

O Direito Internacional e os direitos humanos devem responder às circunstâncias

africanas. A África construirá o seu próprio Direito quando necessário. Não resta

dúvida de que direitos coletivos, direito ao meio ambiente e direitos econômicos

e sociais são dimensões essenciais dos direitos humanos na África132.

Outro ponto a ser destacado é a completude buscada na Carta Africana, ao abarcar

não apenas os direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais, ao

reconhecer que estes direitos são indissociáveis, atribuindo-lhes um caráter universal, e

que com base nos segundos é que se podem satisfazer os primeiros. Por fim, o aspecto em

que atribui deveres para haver a efetividade dos direitos e liberdades.

Foi assim que os Estados africanos estabeleceram em um mesmo documento

internacional, direitos relativos à afirmação da independência, da autonomia e do

progresso dos referidos Estados. No magistério de Sidney Guerra (2014, p. 114-115),

Chama atenção também a livre disposição, em seu interesse exclusivo, de seus

recursos naturais, o direito à autodeterminação e o direito ao desenvolvimento

econômico, cultural e social. A preocupação desses povos com os direitos

indicados não poderia ser diferente por terem sido vítimas de um processo

extremamente excludente ao longo de suas existências.

A consagração de um instrumento internacional de proteção dos Direitos Humanos

no continente africano representa uma grande evolução, em especial, pelo histórico de

colônia e seu processo de descolonização extremamente recente, mas que apresenta

entraves a sua efetivação, dentre eles, os dispositivos previstos na Carta que dependem da

legislação doméstica para dar eficácia ao documento internacional.

131 Os artigos 3° a 14 traduzem o catálogo de direitos civis e políticos, incluindo os direitos à vida e à integridade física e

moral; a proibição da escravidão, da tortura e do tráfico de pessoas; o direito à proteção judicial; às liberdades de

consciência, religião e profissão; o direito à informação; a liberdade de associação; o direito de reunião; à liberdade de

locomoção; direitos de participação política; e o direito de propriedade. Já os artigos 15 a 26 traduzem o catálogo dos

direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais e os direitos dos povos, incluindo o direito ao trabalho sob condições

justas e equitativas; o direito à saúde; o direito à educação; o direito de participar da vida cultural; o direito à proteção da

família; o direito à igualdade e autodeterminação dos povos; o direito de dispor de suas riquezas e recursos naturais; ao

desenvolvimento econômico, social e cultural; à paz e à segurança; e a um meio ambiente satisfatório. 132 Communication 155/96, paras 49-50. In: N. Barney Pityana. The challenge of culture for human rights in Africa: the

African charter in a comparative perspective. In: Malcolm Evans e Rachel Murray (eds.), The African charter on human

and people´s rights: the system in practice – 1986-2000, p. 233 (PIOVESAN, 2012, p. 193-194).

251

Sobre o tema, podem ser identificados problemas sérios para a efetivação da

proteção aos Direitos Humanos no continente africano, como destaca Na´im (2003, p. 16):

The legal protection of human rights under the constitutions of present African

states that are the product of arbitrary colonial histories and decolonization

processes. By their very nature, these states have tended to continue the same

authoritarian policies and to enhance their ability to oppress and control, rather

than to protect and serve, their citizens. The constitutional system by which

these states rule were hurriedly assembled at independence, only to collapse or

be emptied of all meaningful content within a few years. The legal system these

states continue to implement are usually poor copies of colonial legal systems,

lacking legitimacy and relevance to the lives of the population ar large. Many

African states also suffer from cycles of civil wars and severe civil strife that

undermine any prospects of the stability and continuity needed for building

traditions and institutions of government under the rule of law. Their economies

are weak and totally vulnerable to global processes beyond their control.

Diante de todo o exposto, muito embora a Carta Africana seja uma evolução no que

tange ao sistema de proteção dos Direitos Humanos, enfrenta sérios problemas. Para a

efetiva implantação do texto é necessário abordar os mais variados interesses ou a falta

deles, como a ausência de maturidade política, a corrupção, a falta de unidade e de

desenvolvimento da cultura dos direitos humanos.

De um lado, ao proteger os “povos” e incluir em um mesmo texto, direitos civis e

políticos, econômicos, sociais e culturais, de outro, sofre com uma universalidade que não

consegue estabelecer um mínimo que possa ser entendido como essencial e que atenda às

mais variadas necessidades, rompendo com o paradigma colonialista, de toda a sua

história.

Desse modo, a Carta Africana é estruturada em três partes, conforme ensina

Piovesan (2012, p. 192-193):

A primeira é dedicada aos direitos e aos deveres; a segunda trata das medidas de

salvaguarda dos direitos previstos, enfocando a Comissão Africana dos Direitos

Humanos e dos Povos (sua composição, organização e competência); já a

terceira parte consagra disposições diversas (incluindo adesão, ratificação,

processo de emenda e revisão da Carta).

Através dessa divisão, no que tange à proteção aos direitos humanos e dos povos,

assim como na Convenção Europeia e na Convenção Americana, a Carta Africana

estabelece já em seu primeiro artigo o dever dos Estados Partes de proteger os direitos

elencados na Carta, adotando todas as medidas para esse fim, além de estabelecer a

252

igualdade e a proibição de discriminação quando do exercício dos direitos afirmados na

Carta, em seu artigo segundo.

A Carta Africana tem características únicas se comparada com os demais

instrumentos de proteção dos direitos humanos. Segundo Heyns (2005, p. 4),

The Charter recognizes not only the most universally accepted civil and political

rights but also economic, social and cultural rights. [...] Unprecedentedly, in the

same document, in addition to the forecast of civil and political rights, economic

and social rights are recognized. [...] In the relevant decision in the case Serac

vs. Nigeria (2001), the Commission considered that the Charter should be

interpreted also to ensure the right to housing and food.

A inovação introduzida através da Carta Africana de Direitos Humanos está

justamente em reconhecer num mesmo documento os mais universalmente aceitos direitos

civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, a se destacar a

relevante decisão do caso Serac vs. Nigéria (2001), no qual a Comissão entendeu que a

Carta deveria ser interpretada também no sentido de assegurar os direitos à moradia e à

alimentação.

O elemento econômico consiste num crescimento gradual e sustentável, através da

produção de bens e serviços. Além disso, essa evolução deve ocorrer no cenário

doméstico, fundado em fatores internos de produção, sem recursos advindos do exterior,

observando a preservação dos recursos naturais.

O elemento social do processo desenvolvimentista é a aquisição da progressiva

igualdade de condições essenciais da vida, como destaca Comparato (2013, p. 413-414),

“isto é, a realização, para todo o povo, dos direitos humanos de caráter econômico, social e

cultural, como o direito ao trabalho, o direito à educação em todos os níveis, o direito à

seguridade social, o direito à habitação, o direito de fruição dos bens culturais”.

Desta forma, para que se possa falar em desenvolvimento integral, ainda é

necessário destacar o elemento político, com a realização da vida democrática, a assunção

do povo como ator principal e fonte legitimadora de todo poder e destinatário do seu

exercício, indispensável para caracterizar o Estado Democrático de Direito, comum aos

Estados no constitucionalismo moderno.

A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em exercício desde 1987,

é um órgão político ou quase judicial composto por 11 membros, que devem ser escolhidos

por critérios de competência em matéria de Direitos Humanos, além de conduta ilibada,

mas que atuam a título pessoal e não em defesa das prerrogativas do Estado de origem,

253

prevalecendo assim um caráter subjetivo na tomada de decisões, incompatíveis, ou pelo

menos, incoerentes com a região que representam.

Quanto às competências, cabe à Comissão Africana, conforme ensina Piovesan

(2012, p. 195-196),

Promover os direitos humanos e dos povos; elaborar estudos e pesquisas;

formular princípios e regras; assegurar a proteção dos direitos humanos e dos

povos; recorrer a métodos de investigação; criar relatorias temáticas e

específicas, adotar resoluções no campo dos direitos humanos; e interpretar os

dispositivos da Carta.

No que tange ao direito de petição, além de preencher os requisitos de

admissibilidade, tal como ocorre nos sistemas regionais, europeu e americano, como o

prévio esgotamento dos recursos internos, necessário observar um prazo razoável para

apresentar petição e a inexistência de litispendência internacional.

A Comissão é potencialmente poderosa, mas não é ainda uma força continental em

matéria de Direitos Humanos, com trabalho desconhecido. Os Estados Partes geralmente

desconsideram suas resoluções. Segundo Heyns (2005, p.5),

The Commission examined only a few hundred cases and most of the states do

not take seriously the obligation to produce periodic reports. [...] At the same

time, the Commission should have recognized the creative interpretation that is

given to the African Charter, to fill the gaps in various ways. [...] The

Commission has integrated content and expanded the reach of many rights

recognized by the Charter.

O parecer emitido pela Comissão em algumas centenas de casos analisados

infelizmente não é levado a sério pelos Estados africanos, em especial no que tange às

obrigações de elaborar relatórios periódicos. Contudo, necessário reconhecer a

interpretação criativa que a Comissão tem conferido à Carta Africana, no sentido de

preencher as lacunas das mais variadas formas, integrando o conteúdo e expandindo os

direitos reconhecidos pela Carta.

Mesmo com todas as dificuldades tanto de efetividade, quanto de recursos

orçamentários, a Comissão representa uma instituição de grande importância para a

proteção dos Direitos Humanos, desenvolvendo novas formas de democratizar a

participação popular, com a criação de fóruns de Organizações não governamentais, e

relatórios temáticos como substrato de formação desses direitos.

Dentre as diferenças dos outros sistemas predecessores, europeu e americano, a

Carta Africana não estabeleceu, em sua redação original de 1981, uma Corte Africana, mas

254

tão somente a Comissão Africana, sem o poder de adotar decisões juridicamente

vinculantes, reflexo do processo de descolonização e independência, no qual a criação de

uma Corte supranacional poderia colocar em risco a soberania dos novos Estados.

Após algumas conferências governamentais, conforme assegura Piovesan (2012, p.

198-199), “finalmente, em 1988, foi adotado o Protocolo à Carta Africana, visando à

criação da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em Addis Abeba, na

Etiópia. O protocolo entrou em vigor em janeiro de 2004, com o depósito do 15°

instrumento de ratificação”.

A criação da Corte tem por escopo fortalecer a proteção dos Direitos Humanos e

dos povos consagrados na Carta Africana, a fim de propiciar maior eficácia à atuação da

Comissão Africana, como órgão jurisdicional supranacional, judicializando e atribuindo

caráter vinculante às decisões tomadas pela Corte.

Nesse propósito, a manifestação de Ridruejo (2006, p. 227),

Es uma institución jurisdiccional que puede conocer de los casos que le someta

la Comisión, el Estado parte que hubiese llevado um caso a la Comisión, el

Estado parte demandado ante la Comisión, el Estado parte de nacionalidad de la

víctima y las organizaciones intergubernamentales africanas. Para todos estos

supuestos la competencia del Tribunal es obligatoria o automática. Pero, si las

reclamaciones son presentadas por indivíduos o por organizaciones no

gubernamentales dotadas de estatuto de observadoras ante la Comisión, el

Triibunal sólo es competente si el Estado parte interesado ha consentido por acto

ad hoc su competencia.

Para aperfeiçoar e formalizar a referida Corte, foram normatizadas as regras de

funcionamento, seguindo praticamente as mesmas relativas às Cortes Internacionais,

observando-se a dupla competência, consultiva e contenciosa, o reconhecimento das

imunidades diplomáticas, e a imunidade material para emitir opiniões e decisões no

exercício das atividades judicantes.

Nessa seara, destaca-se também outro sistema embrionário, mas que vem ganhando

força no cenário internacional, qual seja, o sistema asiático, e assim como os demais

apresenta dificuldades de efetivação, em especial, pela diversidade e complexidade dos

Estados, comunidades, religiões, línguas e culturas.

Dado a grande diversidade cultural e as enormes diferenças entre os países que

compõem o continente asiático, conforme observa Gomes da Silva (2000, p. 110),

255

Não surpreende que não exista, em relação aos direitos humanos, uma posição

única e obrigatória em toda a região. Efectivamente fazem-se ouvir diferentes

vozes asiáticas, defendendo diferentes perspectivas sobre se e como os direitos

humanos são compatíveis com os valores tradicionais enraizados na cultura

asiática.

Sob a ótica oriental, não é possível estabelecer um universalismo no tocante à

proteção dos Direitos Humanos, haja vista a já exposta diversidade cultural e os diferentes

níveis de desenvolvimento político e econômico. Destaca-se neste contexto que os direitos

elencados na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 são inadequados à

realidade asiática.

Até mesmo por questões históricas, envolvendo a formação e o desenvolvimento

dos sistemas de proteção dos Direitos Humanos, a criação de um sistema asiático busca

adequar as perspectivas do ocidente, contudo, sem perder as características do oriente, em

razão de toda a diversidade já apontada, o que dificulta ainda mais o estabelecimento de

parâmetros mínimos a serem observados como inderrogáveis.

Os Direitos Humanos são uma janela através da qual uma cultura determinada

concebe uma ordem humana justa para seus indivíduos. No magistério de Baldi (2004, p.

86),

Os que vivem naquela cultura não enxergam a janela; para isso, precisam da

ajuda de outra cultura, que, por sua vez, enxerga através de outra janela. Eu creio

que a paisagem humana vista através de uma janela é, a um só tempo,

semelhante e diferente da visão de outra. Se for o caso, deveríamos estilhaçar a

janela e transformar os diversos portais em uma única abertura, com o

consequente risco de colapso estrutural, ou deveríamos antes ampliar os pontos

de vista tanto quanto possível, e acima de tudo, tornar as pessoas cientes de que

existe, e deve existir, uma pluralidade de janelas.

Em decorrência da globalização e do avanço da temática de proteção dos Direitos

Humanos, eles assumiram uma nova linhagem no Direito Internacional, com ênfase na

liberdade e na estabilização do referido direito, adicionando-se à agenda internacional, o

desenvolvimento social e econômico, a manutenção da paz e a elevação da condição

humana, através da disseminação dos instrumentos de proteção dos Direitos Humanos.

Nessa concepção, os Tratados, Convenções e Declarações Internacionais, como a

Declaração de 1948, forneceu às diversas nações uma linguagem codificada de seus

direitos e inspirando, como observa Feitosa (2007, p. 36),

muitas constituições nacionais na positivação das garantias dos direitos

fundamentais dos seres humanos. Dessa forma, nas últimas décadas, esse

256

arcabouço jurídico obteve notável desenvolvimento, sendo reconhecido por meio

de outras convenções e tratados internacionais.

Os debates do século XX envolvendo a universalidade e a relativização dos

Direitos Fundamentais fez com que surgissem emergentes concepções acerca do tema,

entre elas a perspectiva asiática. Diversamente das concepções ocidentais, esta seria

resultado da diversidade cultural e social, na qual o individualismo predominante no

contexto ocidental seria inadequado para as sociedades orientais que dão primazia à

comunidade.

Desta forma, uma vez que as culturas variam apresentando diferentes sistemas

valorativos, a concepção universalista dos Direitos Humanos esbarra no relativismo

cultural de algumas nações. Conforme observa Gomes da Silva (2000, p. 116),

O relativismo cultural é uma filosofia que, reconhecendo os valores

estabelecidos por cada sociedade para guiar a sua própria vida, realça a

dignidade inerente a cada corpo de costumes e a necessidade de tolerância de

todas as convenções apesar de estas poderem ser diferentes das próprias.

As diversidades culturais e ideológicas, predominante no contexto asiático,

somadas às desigualdades sociais e econômicas, faz com que estes não sejam adeptos de

uma cultura universalista, ao passo que o pensamento universalista ocidental tem como

premissa a construção da igualdade e da liberdade do ser humano, representando assim

uma unidade em oposição ao grupo.

Em certo sentido, os Direitos Humanos poderiam representar uma espécie de

linguagem unificada, conforme aponta Vincent (1992, p. 280): “China uses the phrase

'human rights' to describe his conception of what is allowed for some humans, not

something abstract or transcendent which is a principle belonging to all human beings”.

Diferentemente da visão ocidental, os orientais utilizam a expressão “direitos

humanos” para descrever sua concepção do que é permitido para alguns seres humanos, e

não algo abstrato ou transcendente como um princípio a ser observado por todos os seres

humanos.

Isto demonstra que, apesar de quase todas as sociedades adotarem a mesma

concepção ou sentido acerca dos Direitos Humanos, bem como da sua fundamentalidade

principiológica, a cultura asiática apresenta uma concepção particular dos “direitos

humanos”, ou seja, o que é humano na sua parte do mundo, de acordo com as suas

concepções culturais regionais.

257

A cultura oriental até o século XIX desenvolveu uma tradição praticamente sem

influência estrangeira, com uma ordem social pautada não em uma conotação religiosa,

mas um fundamento racional133

numa ordem cósmica, buscando o equilíbrio entre o céu, a

terra e os homens, ou entre a natureza e as relações humanas.

O equilíbrio do mundo depende da harmonia que se apresenta, ao contrário da

concepção ocidental de justiça. Na concepção asiática, a condenação, a sanção e a decisão

da maioria devem ser evitadas. Por isso, o litígio, como explica Davi (1998, p. 471-472),

“deve ser diluído, mais do que resolvido ou decidido. E a mesma ideia de conciliação será

desejada no plano internacional. Com o predomínio da tradição, a conciliação representa o

sucesso, e a necessidade de intervenção judicial é uma vergonha, um fracasso”.

A experiência oriental produziu duas reações opostas, uma pautada na ditadura do

proletariado, substituindo o direito reacionário por uma legalidade socialista, e outra que

dispende pouca atenção ao desenvolvimento e à aplicação do direito, em especial após a

Revolução Cultural, apresentando o oriente como uma sociedade sem direito e, portanto,

harmoniosa.

A cultura oriental parte dessas concepções utópicas, pelas quais o direito não é

fundamental para organizar a sociedade, mas sim as tradições, o respeito, e a divisão do

capital, como forma de se alcançar a igualdade. Para Padoul (1979, p. 16),

Ambas estão erradas, pois a legalidade socialista dos primeiros tempos jamais

foi completa – e a situação de quase ‘não-direito’ não é o reflexo de uma

harmonia pré-estabelecida, mas a consequência do governo monolítico do

Partido Comunista, em especial, a ditadura maoísta, a busca de uma ‘via

chinesa’ para o socialismo, com métodos mais ideológicos do que policiais de

regulamentação – ou pode-se dizer, ‘controle’ da sociedade.

A diferença fundamental entre as sociedades socialistas e as democracias ocidentais

remete à questão da liberdade individual e à limitação do Estado, haja vista que aquelas

colocam a sociedade em primeiro plano, limitando a autonomia individual em benefício do

grupo.

Desse modo, indivíduos vêm depois da comunidade, e os direitos individuais como

indica Vincent (2001, p. 42), “long remains of little or no use due to the obligations of

133 Como observa Assier- Andrieu (2000, p. 96-97), “a tradição confuciana representa a piedade final, a piedade para

com os ancestrais, a obediência ao senhor, ao marido, ao irmão mais velho, o respeito aos protocolos de polidez.

Traduzindo a pureza de intenção e sinceridade de coração, a tradição confuciana tem justificado em si mesma e não em

especulações religiosas, uma vez que os confucionistas não tratam do divino, entendendo que não se discute o

icognoscível, dedicando-se exclusivamente a respeitá-lo.”

258

citizens to ensure governability of the Communist Party and the government system he

imposed”.

Ademais, a região asiática parece abarcar um universo em si mesma, dado ao

emaranhado de religiões, línguas e etnias dentro de um mesmo território, com influências

diversificadas, como o islamismo, o budismo, o cristianismo e o confucionismo. Além

disso, a própria expressão dessas religiões possui variações de um povo para outro. No

entendimento de Gomes da Silva (2000, p. 117), “como é caso do budismo no Sri Lanka,

que tem implicações políticas e sociais distintas quando comparado ao Butão, que por sua

vez, também apresenta diferenças em relação ao Cambodja”.

Sob esta ótica é que figuram as dificuldades de se implementar os Direitos

Humanos para os povos asiáticos, seja em razão das diferenças quanto à colonização,

formação histórica, além da concepção de direito, seja pela dificuldade de se pensar

homogeneamente as questões relativas aos Direitos Humanos, assim como pela

abrangência em torno desses direitos, que para muitas sociedades não ocidentais não

passam de questões morais.

Uma das alternativas criadas para tentar levar ao oriente a concepção ocidental dos

Direitos Humanos é a formação de uma regionalização do espaço cultural, como observa

Symonides (2003, p. 235-236),

[...] que organizado em blocos interliga Estados independentes levando à criação

de novas formas de governança político-institucionais de escopo regional. Essa

tendência à cooperação econômica, cultural e política entre os Estados de uma

mesma região, tem efeitos positivos sobre os direitos humanos.

Por meio dessas alianças interestatais, e através do diálogo é possível os Estados

tornarem-se mais fortes conjuntamente, para poderem enfrentar dificuldades tanto em

âmbito doméstico quanto internacional, da mesma forma que podem exercer um papel

determinante na proteção dos Direitos Humanos, incentivando a criação de acordos

regionais desses direitos onde eles não existem, como uma alternativa para viabilizar a sua

aplicabilidade.

De fato cresce o número de arranjos cooperativos e o aprofundamento dos

processos já existentes. Vizentini (2007, p. 44-45) observa que, a exemplo desse evento,

podemos citar a União Europeia, o Mercosul e, mais recentemente, a Associação das

Nações do Sudeste Asiático, que além de aprofundar sua própria integração, está

aumentando o número de países membros e associando-se a outros blocos regionais:

259

Dentre os processos de integração regional em desenvolvimento ao redor do

globo que têm atraído cada vez mais a atenção dos analistas de política

internacional, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) constitui,

sem dúvida, um dos casos mais bem-sucedidos, e isto sob vários pontos de vista.

Se é verdade que o estágio em que se encontra não pode ser comparado ao

processo de integração europeu, que serve de referência e parâmetro entre

empreendimentos similares por ser o mais avançado, também o é o fato de que a

Asean representa o mais avançado e bem encaminhado processo de integração

regional nascido no Terceiro Mundo.

Essa associação, que começou timidamente e de forma incipiente a cooperar apenas

em algumas atividades econômicas, expandiu para os campos sociais, culturais, políticos e

de segurança, e em especial no que tange à matéria de Direitos Humanos, com a formação

da Comissão Intergovernamental de Direitos Humanos da Associação das Nações do

Sudeste Asiático, a partir de outubro de 2009.

Essa Comissão tem por finalidade, de acordo com Gomes da Silva (2000, p. 123),

“promover uma maior conscientização para a realização dos direitos humanos na região,

mobilizar os Estados do Sudeste Asiático para obter a reparação para as vítimas das

violações dos direitos humanos, a fim de proteger esses direitos e as liberdades dos povos

da ASEAN”.

O documento fruto dessa Comissão estabeleceu o núcleo inderrogável de direitos

para sua funcionalidade, comprometendo-se em promover os Direitos Humanos no

contexto regional, observando-se as particularidades nacionais e regionais, respeitando-se

as diferentes culturas, e tentando estabelecer um equilíbrio entre direitos e

responsabilidades, mas sempre sob a ótica das normas internacionais de Direitos Humanos,

a Declaração de 1948, a Declaração de Viena, e os instrumentos de proteção de Direitos

Humanos que os países membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático são

signatários.

Contudo, esse sistema apresenta sérias dificuldades em sua efetivação, como

aponta Manila (2007, p. 55-56):

Desde o momento em que foi pensada, esta comissão já apresentava

insuficiências capazes de questionar sua plena eficácia na área de direitos

humanos, ainda mais se tratando da região no qual foi pensada. Um dos grandes

problemas refere-se ao compromisso do grupo de manter em vigor o princípio da

não ingerência nos assuntos internos dos Estados-membros, e isso implicará na

inviabilidade de impor sanções ao país em que houver violação dos direitos

humanos. Há uma série de recomendações, mas fica evidente que os Estados têm

apenas obrigação de conduta, falta comprometimento com os resultados.

260

As críticas dirigidas à Comissão vão desde a falta de diálogo com a comunidade

civil, a recusa em aceitar determinados casos de violações de Direitos Humanos, à falta de

transparência e parcialidade dos representantes. Ainda assim, representam um novo

horizonte sobre a matéria diante do contexto asiático. A criação de normas regionalizadas,

ou a criação de associações como a ASEAN, podem representar o início da proteção dos

Direitos Humanos face às violações, em um sistema embrionário e que ainda precisa

evoluir para se equiparar aos sistemas estudados anteriormente.

Após analisar o sistema global e os regionais de Direitos Humanos, serão

analisados os tratados de Direitos Humanos no âmbito da Constituição da República de

1988, as polêmicas e os desafios do nosso sistema jurídico além da doutrina acerca da

matéria, passando pelas teorias de recepção dos respectivos tratados de proteção dos

Direitos Humanos e as alterações promovidas pela Emenda Constitucional n°45/2004

acerca desses instrumentos, para estabelecer um diálogo entre os sistemas de proteção dos

Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal. Além disso, será proposta a criação de

um Tribunal Constitucional Internacional capaz de aplicar um sistema jurídico multinível.

5.6 Conclusões parciais

A consagração dos Direitos Humanos Fundamentais decorre da mudança de

paradigma propiciada por uma série de lutas, que representam avanços e retrocessos e

influenciaram diretamente na formação do constitucionalismo moderno, em âmbito global

e regional, consolidando o Direito Internacional dos Direitos Humanos como símbolo do

século XX e o fim da Segunda Guerra Mundial.

Essa roupagem constitucional de proteção dos direitos surge como o novo

paradigma ético, a fim de reintroduzir a moral nos sistemas positivados, rompendo com o

totalitarismo, que não reconhecia na pessoa humana a titularidade de direitos, emergindo a

necessidade de reconstruir os Direitos Humanos, aproximando-se da moral.

Nesse cenário, conforme Hannah Arendt, o maior direito passa a ser, “o direito a ter

direitos”, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos, sem considerar questões étnicas, raciais

ou econômicas, buscando reestabelecer a ordem internacional a partir de parâmetros que

busquem criar um núcleo inderrogável de direitos, em observância à dignidade humana,

apresentando instrumentos capazes de garantir a eficácia destes, por meio da introdução da

ética e a moral no estabelecimento de normas globais e domésticas.

261

Este novo modelo rompe com os ideais do liberalismo, ao delimitar a soberania

estatal, contrariando, desta forma, os princípios básicos da não intervenção dos Direitos

Fundamentais dos Estados, causando discussão sobre a esfera de atuação desta intervenção

não apenas em assuntos domésticos, mas abrangendo os problemas de natureza

supranacional.

No intuito de se estabelecer esse núcleo inderrogável de direitos, seja na esfera

global ou regional, são necessários sacrifícios, na ordem da delimitação da soberania

estatal, submetendo-se aos órgãos ou comissões internacionais que podem aplicar sanções

em caso de descumprimento ou violação a direitos ou garantias voltados à proteção da

pessoa humana.

A proteção internacional dos Direitos Humanos assume protagonismo na agenda

das instituições internacionais, restringindo a atuação do Estado, que sob esse novo

enfoque não pode mais tratar os indivíduos como objetos, desumanizados, sem sofrer

responsabilização na área internacional. Como exemplo destaca-se pioneiro o Tribunal de

Nuremberg, em âmbito global, e mais recentemente os tribunais especiais regionais, como

a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Os desafios encontrados com a nova roupagem do Direito Internacional, dentre

outros, está em propiciar não apenas as normas internacionais, mas os meios e as ações

para que os Direitos Humanos Fundamentais possam ser efetivados, corroborando para a

criação desse núcleo inderrogável de direitos. Muito embora eles sejam afirmados nas

Constituições dos Estados, reconhecidos e proclamados em âmbito internacional,

encontram dificuldades tanto em âmbito global quanto regional para garantir sua

efetividade.

Para falar em proteção eficaz, relevante ressaltar a diversidade que compõe os

Estados, e dentro desta premissa identificar e criar mecanismos capazes de fortalecer o

núcleo inderrogável de direitos, mas também de atender às necessidades e especificidades

de cada região.

Com base na observação da evolução do constitucionalismo e dos institutos que

visam dar efetividade ao núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais, serão

analisados a inderrogabilidade de direitos na Constituição da República de 1988, a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o diálogo com os sistemas regionais e

global de proteção desses direitos.

262

6 A INDERROGABILIDADE DE DIREITOS NA CONSTITUIÇÃO DA

REPÚBLICA DE 1988, A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL, E O DIÁLOGO COM OS SISTEMAS DE PROTEÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

6.1 A Constituição da República de 1988 e sua recepção dos Tratados

Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos

Após analisar os sistemas de proteção internacional dos Direitos Humanos, tanto

em âmbito global, quanto em âmbito regional, percebe-se que o novo paradigma de

proteção da dignidade da pessoa humana, símbolo do pós-guerra, disseminou-se tanto no

ocidente quanto no oriente, instituindo o Estado Democrático de Direito com o homem,

como fonte e destinatário das normas.

Contudo, seja em âmbito universal ou relativo, a dificuldade apresentada pelos

Estados, está na efetividade dessas diretrizes internacionais, através da incorporação dos

tratados de Direitos Humanos no ordenamento interno, discutindo-se qual a melhor teoria

acerca da recepção dos referidos tratados.

Independentemente das pequenas diferenças no modo como isso tem se

desenvolvido, conforme observa Sidney Guerra (2014, p. 218-219), “a perspectiva

contemporânea é que, cada vez mais, os países se mobilizem no sentido de conferir maior

prevalência às normas de direitos humanos, muito embora alguns outros ainda se mostrem

retrógrados nesse aspecto”.

Cada Estado pode adotar uma teoria de recepção das normas de direito

internacional de proteção dos Direitos Humanos. Algumas adotam o sistema de recepção

automática, pelo qual as normas e os princípios de direito internacional fazem parte

integrante, como ocorre na Constituição Portuguesa134

.

Assim como na Constituição Portuguesa, a Constituição do Peru135

, nas disposições

finais e transitórias também explicita a preocupação de que as normas relativas aos direitos

134 “Art. 8° (Direito internacional). 1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte

integrante do direito português. 2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou

aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado

Português. 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte

vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos. 4.

As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das

respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito

pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. (PORTUGAL. Constituição Portuguesa. Disponível

em: ˂http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portugal/Sistema_Politico/Constituicao/˃. Acesso em: 20 set.2016). 135 “Disposiciones finales y transitorias. Cuarta. Las normas relativas a los derechos y a las libertades que la Constitución

reconoce se interpretan de conformidade con la Declaración Universal de Derechos Humanos y con los tratados y

263

e liberdades fundamentais presentes na Carta constitucional sejam interpretadas em

conformidade com a Declaração de 1948.

A Constituição Argentina136

também confere hierarquia constitucional a

determinados tratados de Direitos Humanos, ainda que estabeleça um quórum qualificado

para que outros possuam a mesma hierarquia, sendo entendidos como complementares aos

direitos e garantias reconhecidos pela Constituição.

A Constituição da Venezuela137

também admite o status constitucional das normas

expostas em tratados de Direitos Humanos, prevalecendo sobre as normas do direito

interno, na medida em que contenham normas mais favoráveis que as estabelecidas na

Constituição, com aplicação imediata tanto nos tribunais quanto nos demais órgãos do

poder público.

A Constituição da Colômbia138

, seguindo a mesma vertente, admite a prevalência

dos Direitos Humanos na ordem interna e busca interpretações dos direitos elencados na

Carta Colombiana em consonância com os tratados internacionais de Direitos Humanos

ratificados pela Colômbia.

A Constituição do Chile139

, no que tange à soberania estatal, esclarece que esta não

pode ser concebida de forma absoluta, mas possui limitações, dentre elas, o respeito aos

direitos essenciais que emanam da natureza humana, atribuindo ao Estado o dever de

respeitá-los e promovê-los.

acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por el Perú”. (PERU. Constituição Peruana. Disponível

em: ˂http://tc.gob.pe/legconperu/constitucion.html˃. Acesso em: 15 set.2016). 136 “Art. 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y

los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquia superior a las leyes. [...] Sólo podrán ser

denunciados, em su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidade de

los membros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por

el Congresso, requerirán del voto de las dos terceras partes de la totalidade de los membros de cada Cámara para gozar

de la jerarquia constitucional”. (ARGENTINA. Constituição Argentina. Disponível em:

˂http://www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/cuerpo1.php˃. Acesso em: 15 set.2016). 137 “Art. 23. Los tratados, pactos y convenciones relativos a derechos humanos, subscritos y ratificados por Venezuela,

tienen jerarquia constitucional y prevalecen em el orden interno, en el medida en que contengan normas sobre su goce y

ejercicio más favorables a las estabelecidas por esta Constitución y la ley de la República, y son de aplicación inmediata

y directa por los tribunales y demás órganos del Poder Público”. (VENEZUELA. Constituição da Venezuela.

Disponível em: ˂http://analítica.com/biblioteca/anc/constitucion1999.asp˃. Acesso em: 15 set.2016). 138 “Art. 93. Los tratados y convênios internacionales ratificados por el Congresso, que reconocen los derechos humanos

y que prohiben su limitación en los estados de excepción, prevalecen en el orden interno. Los derechos y deberes

consagrados en esta Carta, se interpretarán de conformidade com los tratados internacionales sobre derechos humanos

ratificados por Colombia”. (COLÔMBIA. Constituição Colombiana. Disponível em:

˂http://pdba.georgetown.edu/Constituitions/Colombia/col91.html˃. Acesso em: 20 set. 2016). 139 “Art. 5. La soberania reside esencialmente en la Nación. Su ejercicio se realiza por el Pueblo a través del plebiscito y

de elecciones periódicas y, también, por las autoridades que esta Constitución estabelece. Ningún sector del Pueblo ni

individuo alguno puede atribuirse su ejercicio. El ejercicio de la soberania reconoce como limitación el respeto a los

derechos esenciales que emanan de la naturaliza humana. Es deber de los órganos del Estado respetar y promover tales

derechos, garantizados por esta Constitución, así como por los tratados internacionales ratificados por Chile y que se

encuentren vigentes”. (CHILE. Constituição do Chile. Disponível em: ˂http://www.camara.cl/legis/const/c01.htm˃.

Acesso em: 20 set.2016).

264

Observa-se que o novo paradigma constitucional tende a elevar os tratados

internacionais de Direitos Humanos ratificados internamente ao status constitucional, além

de lhes conferir aplicabilidade imediata, como o caminho interpretativo adequado para a

aplicação das normas de proteção dos Direitos Humanos.

Adepta a este movimento constitucional internacional, a Constituição da República

Federativa do Brasil, ao ser promulgada em 1988, destinou um capítulo para detalhar os

Direitos Fundamentais, determinando aplicação imediata, conforme dispõe Canotilho

(2013, p. 183-533):

Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros, e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos seguintes termos:

[...]

Parágrafo 1°: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem

aplicabilidade imediata.

Parágrafo 2°: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem

outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

No que tange à recepção dos tratados internacionais de Direitos Humanos no

ordenamento jurídico brasileiro, a discussão pairava sobre o §2º do referido artigo,

comportando várias interpretações, haja vista a controvérsia que dava margem a vários

entendimentos.

Mesmo considerada uma das Cartas Constitucionais mais avançadas à época de sua

promulgação, por conferir proteção específica e especial aos Direitos Fundamentais, a

doutrina e a jurisprudência debatiam calorosamente acerca da recepção de normas

internacionais no âmbito doméstico, pelo menos até a edição da Emenda Constitucional

n°45, de 30 de dezembro de 2004, que propiciou mudanças significativas na ordem

constitucional brasileira, em especial, ao inserir os §§ 3° e 4° no art. 5°.

Desta forma, o art. 5° da Constituição Federal de 1988 passou a contar com mais

dois parágrafos com a seguinte redação:

Parágrafo 3°. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos

que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas

constitucionais.

Parágrafo 4°. O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a

cuja criação tenha manifestado adesão. (BRASIL. Constituição, 1988).

265

Com a edição da Emenda Constitucional nº45/2004, que teve como escopo

pacificar os debates ao estabelecer o caráter supranacional dos tratados internacionais de

Direitos Humanos, acabou por gerar ainda mais polêmica e discussões acerca dos tratados

já ratificados pelo Brasil, se já teriam status de norma fundamental ou lei ordinária, ou

ainda se precisariam ser votados novamente pelo Congresso Nacional, respeitando-se o

quórum qualificado como descrito na norma.

Essa discussão rendeu, pelo menos, quatro teorias que tentam responder aos

questionamentos suscitados após a Emenda Constitucional nº45/2004 quanto ao status e a

recepção dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico

brasileiro, desde a concepção da corrente que reconhece a natureza supranacional dos

tratados, passando pela corrente que reconhece a natureza constitucional, outra que afirma

a sua natureza ordinária e por fim, a que estabelece o caráter supralegal.

A primeira delas conta como expoente Celso Albuquerque de Melo para quem as

normas internacionais devem prevalecer sobre as normas de direito interno, devendo ainda

ser preponderante mesmo se confrontadas com o texto constitucional, ou quando

confrontar com emenda constitucional não teria o condão de suprimir normas de direito

internacional que versem sobre Direitos Humanos.

Ao estudar o direito numa perspectiva de natureza política, enfatiza Mello (1999, p.

20), que mesmo no exercício do Poder Constituinte, este estaria subordinado ao próprio

Direito Internacional:

O que desejo afirmar é que a posição que defenderei abaixo em poucas linhas é

engajada e política. Não se pode separar o Direito Público da Política, bem como

todo jurista é um cidadão, logo, ele possui, mascarada ou não, uma concepção do

mundo, isto é, uma ideologia. É preciso repetir que vivemos, infelizmente, na era

da globalização, o que acarreta uma relevância muito grande para o DIP.

Inicialmente queremos lembrar que o Estado não existe sem um contexto

internacional. Não há Estado isolado. A própria noção de Estado depende da

existência de uma sociedade internacional. Ora, só há Constituição onde há

Estado. Assim sendo a Constituição depende também da sociedade

internacional. Ao se falar da soberania do Poder Constituinte se está falando em

uma soberania relativa e quer dizer que tal poder não se encontra subordinado a

qualquer norma de Direito Interno, mas ele se encontra subordinado ao DIP de

onde advém a própria noção de soberania do Estado.

Para explicar essa supremacia do Direito Internacional sobre o direito interno, esta

corrente ainda apresenta uma ramificação que procura esclarecer as relações entre tais

normas: uma corrente dualista, pela qual as duas normas jurídicas são independentes e

266

nada têm em comum; a corrente monista, para a qual existe um único direito,

fundamentando assim a noção de soberania e a pressuposição de limites.

A denominação dualismo foi dada por Alfred Verdross, em 1914, e aceita por

Triepel, em 1923, conforme observa Sidney Guerra (2014, p. 228-229), “que afirmava que

o direito internacional e o direito interno de cada Estado eram sistemas rigorosamente

independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não se

condicionava a sua sintonia com a ordem internacional”.

Sob a égide dessa corrente, não há que se falar em supremacia de normas

internacionais face o direito doméstico, mas em direitos autônomos, com sistemas

rigorosamente independentes, na medida em que uma norma de âmbito doméstico não

necessitaria estar em sintonia com os princípios da ordem internacional.

As fontes de Direito Internacional e do direito interno são diversas. Nesse

propósito, relevante destacar o magistério de Boson (2000, p. 136), que acentua os

principais temas:

(a) As normas internacionais procedem da vontade comum dos Estados e só

mediante essa vontade comum podem ser ab-rogadas ou modificadas. Já as

normas jurídicas internas emanam da vontade de um só Estado e por esta podem

ser ab-rogadas ou modificadas, não estabelecendo nenhuma obrigação entre

Estados; (b) as normas de Direito Internacional só tem eficácia na ordem

internacional de quem emanam, enquanto que, por sua vez, as normas de Direito

Interno só tem eficácia na ordem jurídica nacional; (d)um sistema jurídico pode

referir-se ao outro – fenômeno denominado ‘recepção de normas’, em virtude do

qual a ordem jurídica interna faz suas certas normas de Direito Internacional.

Essa corrente está em decadência, muito embora defendida por grande parte da

doutrina italiana, dado os inconvenientes do voluntarismo, por apenas se referir aos

tratados e não aos costumes, visto que o costume internacional é o que fundamenta, via de

regra, as decisões aplicadas pelos tribunais internos.

O simples fato de uma norma interna, contrária a um tratado, vigorar não justifica o

dualismo, segundo Litrento (1997, p. 100),

já que o mesmo pode suceder na ordem interna com os regulamentos ilegais e as

leis inconstitucionais; a diversidade de sujeitos não é também verdadeira, pois

que, hoje em dia, o indivíduo é sujeito de Direito Internacional, e este age na

ordem interna através das organizações internacionais.

Os adeptos dessa corrente enfatizam a diversidade das fontes de produção das

normas jurídicas, destacando os limites de validade em todo o direito nacional, observando

267

que as normas de direito internacional não operam, no ordenamento interno, sem que o

Estado tenha aceito e introduzido estas normas no plano doméstico.

Em relação ao monismo com primazia no direito interno, teve seu apogeu no século

XIX, principalmente em virtude do Hegelianismo, surgindo em Viena com Kelsen e

Verdross. Na visão de Sidney Guerra (2014, p. 230-231),

Kelsen elaborou a pirâmide de normas onde uma norma tinha a sua origem e

retirava a sua obrigatoriedade de outra que lhe era imediatamente superior. No

vértice da pirâmide ficava a norma fundamental que para Kelsen era a norma

internacional e por isso não podia conflitar com o direito interno, que era

considerada inferior (monismo radical).

Mais tarde, com a influência de Verdross, passa a admitir o conflito entre as

duas ordens jurídicas, devendo prevalecer o direito internacional, que é superior

(monismo moderado).

Essa teoria caiu em desuso, pois não se adapta em nenhum sentido com a realidade

de um mundo globalizado, onde as fronteiras estatais estão sendo ultrapassadas pelos

movimentos econômicos e os próprios Estados não têm mais mecanismos para efetuar tal

controle. Como exemplo citamos o nazismo, que considerava o direito alemão superior a

todos os outros, e que em razão disso, deveria predominar sobre os demais sistemas.

A segunda teoria da recepção versa sobre os tratados de direitos internacionais com

natureza constitucional, e conta com vários adeptos e seguidores no Brasil, dentre eles, o

magistério de Cançado Trindade (1991, p. 631), fundamental para a aceitação dessa ideia

pela doutrina e pela jurisprudência:

A novidade do artigo 5°, parágrafo 2° da Constituição de 1988 consiste no

acréscimo ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e

garantias expressos em tratados internacionais sobre proteção internacional dos

direitos humanos em que o Brasil é parte. Observe-se que os direitos se fazem

acompanhar necessariamente das garantias. É alentador que as conquistas do

direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se

no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de

proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do

pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.

A concepção da Constituição Federal de 1988, até a Emenda Constitucional

nº45/2004, era a de que os tratados de Direitos Humanos devem receber tratamento

privilegiado, colocando a pessoa humana em destaque, ocupando a posição central e

necessitando dessa proteção especial, para que sejam observadas as normas internacionais

de Direitos Humanos.

268

A incorporação das normas internacionais de direitos humanos no direito interno é

fundamental e de alta prioridade, conforme leciona Cançado Trindade (2003, p. 235),

Da adoção e aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação depende

em grande parte o futuro da própria proteção internacional dos direitos humanos.

Na verdade, como se pode depreender de um exame cuidadoso da matéria, no

presente domínio de proteção o direito internacional e o direito interno

conformam um todo harmônico: apontam na mesma direção, desvendando o

propósito comum de proteção da pessoa humana. As normas jurídicas, de origem

tanto internacional como interna, vem socorrer os seres humanos que têm seus

direitos violados ou ameaçados, formando um ordenamento jurídico de proteção.

O direito internacional e o direito interno aqui se mostram, desse modo, em

constante interação, em benefício dos seres humanos protegidos.

A partir das contribuições descritas e da dicção dos §§1° e 2° do art. 5° da

Constituição da República de 1988, a incorporação das normas internacionais de Direitos

Humanos complementam os Direitos Fundamentais consagrados e exigem a sua aplicação

imediata a fim de que a proteção aos Direitos Humanos tenha eficácia plena.

A Constituição da República de 1988 recepciona os direitos enunciados em

tratados internacionais em que o Brasil é signatário, conferindo-lhes natureza de norma

constitucional, isto é, como ensina Piovesan (2012, p. 58),

Os direitos constantes nos tratados internacionais integram e complementam o

catálogo de direitos constitucionalmente previstos, o que justifica estender a

esses direitos o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias

fundamentais. Tal interpretação é consonante com o princípio da máxima

efetividade das normas constitucionais, pelo qual, no dizer de Jorge Miranda, a

uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê.

Essa corrente era a que mais se desenvolvia, com adeptos tanto na doutrina quanto

na jurisprudência, ao entabularem que os tratados internacionais “gerais” teriam força

hierárquica infraconstitucional, enquanto os tratados internacionais de proteção aos

Direitos Humanos deveriam apresentar valor de norma constitucional.

A fim de encerrar a discussão quanto à recepção das normas internacionais de

Direitos Humanos, em dezembro de 2004, veio a Emenda Constitucional nº45, a qual

acrescentou os §§3° e 4° no art. 5° da Constituição da República de 1988, que versam

sobre estes tratados internacionais e estabelece o quórum qualificado para incorporá-los no

ordenamento interno, além de reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

A inclusão do §3° tinha como escopo sanar e encerrar as controvérsias sobre a

matéria, conforme destaca Lafer (2005, p. 16),

269

O novo parágrafo 3° do artigo 5° pode ser considerado como uma lei

interpretativa destinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e

doutrinárias suscitadas pelo parágrafo 2° do artigo 5°. De acordo com a opinião

doutrinária tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que declarar o

que pré-existe, ao clarificar a lei existente.

Contudo, mesmo após a inserção do diploma não há pacificação em relação à

matéria. Desta forma, os direitos provenientes de tratados de direitos humanos ao serem

incorporados ao ordenamento jurídico interno brasileiro devem continuar com a natureza

de direitos materialmente constitucionais salvo, e a partir da previsão da Emenda

Constitucional nº45/2004, se observados os requisitos previstos no inciso que deverão

adotar a classificação de direitos formalmente constitucionais.

A terceira teoria da recepção versa sobre os tratados de Direitos Humanos com a

natureza de lei ordinária, e foi adotada no Brasil a partir da manifestação do Supremo

Tribunal Federal, no Recurso Especial n° 80.004/SE140

, cujo relator foi o Ministro Xavier

de Albuquerque.

Por meio de opiniões e votos divergentes, verificou-se em determinado momento a

primazia do direito internacional em face ao direito interno, além da possibilidade de

serem os tratados internacionais modificados por normas internas posteriores à recepção e

implementação.

O Supremo Tribunal Federal, com sua decisão, frustrou aqueles que esperavam um

posicionamento diverso, ao reafirmar a ideia de que os diplomas normativos de natureza

internacional, conforme ilustra Sidney Guerra (2014, p. 241-242),

ingressam no ordenamento jurídico brasileiro com o mesmo status de legislação

ordinária e os possíveis conflitos envolvendo a norma interna e internacional

deveriam ser resolvidos de acordo com a tese, já esposada no Supremo Tribunal

Federal, da lei posterior que revoga a lei anterior.

Acerca desses possíveis conflitos, destaca-se, como exemplo, a divergência entre o

inciso LXVII do art. 5° da Constituição da República de 1988, com o art. 7°, 7 do Pacto de

São José da Costa Rica, no que tange à prisão civil relativamente ao depositário infiel,

onde prevaleceu a tese da norma internacional face às disposições do Poder Constituinte.

140 O caso versava sobre a Lei Uniforme de Genebra sobre as letras de câmbio e notas promissórias, que colidia em seu

conteúdo com o Decreto n° 427/69. No julgamento entendeu-se que poderia haver colisões entre as normas de direito

internacional com as normas de direito interno, devendo ser aplicadas a máxima lex posteriori derogat priori, na medida

em que inexistia um critério expresso na Constituição, prevalecendo, assim a última vontade do legislador.

270

Sem uma ampla aplicação da referida corrente, passa-se à análise da última

corrente referente às teorias da recepção que versa sobre os tratados de Direitos Humanos

com natureza supralegal, teoria esta, concebida no Brasil, também pelo Supremo Tribunal

Federal, em 2000, com base no Habeas Corpus n° 79.785-RJ, que teorizou sobre a

possibilidade dos tratados de Direitos Humanos, ao serem incorporados ao ordenamento

jurídico brasileiro, não poderem afrontar a supremacia da Constituição.

A tese foi levantada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, que na verdade se aplica em

outros países, na visão de Sidney Guerra (2014, p. 248),

Como, por exemplo, na Alemanha e na França, onde os tratados de direitos

humanos não gozam de uma situação diferenciada. Na Alemanha, as regras

gerais de direito internacional público fazem parte do direito federal e, portanto,

se sobrepõem ao direito interno, e na França os direitos humanos têm primazia

em relação ao direito interno. No Brasil, a Constituição da República não

estabeleceu esta prevalência.

Essa teoria também não foi bem aceita pela doutrina, e tem pouca aplicabilidade no

cenário jurídico, haja vista que a evolução do pensamento constitucional de proteção à

pessoa humana, faz com que essa teoria se perca no espaço e no tempo, seguindo a direção

contrária no que diz respeito à criação de um núcleo essencial de Direitos Humanos

Fundamentais, tanto em ordem doméstica, quanto internacional.

Desta forma, após analisar as quatro teorias acerca da recepção dos tratados

internacionais que versam sobre Direitos Humanos, destacam-se os anseios e desafios

proscritos com a Emenda Constitucional nº45/2004, e a inserção dos §§3° e 4° no art. 5°

da Constituição da República de 1988.

A prevalência dos Direitos Humanos, como princípio a reger o Brasil no âmbito

internacional, como ensina Piovesan (2012, p. 63), “não implica apenas o engajamento do

país no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos

Humanos, mas implica na busca da plena interação de tais regras à ordem jurídica interna

brasileira”.

Apesar da tentativa de pacificar o entendimento quanto à recepção dos tratados

internacionais de Direitos Humanos, a partir da Emenda Constitucional nº45/2004,

ocorreram ainda mais divergências e questionamentos acerca da matéria, embora pacífica a

ideia de uma cláusula aberta de Direitos Fundamentais, consagrada no §2° do art. 5° da

Constituição da República de 1988.

271

Acerca dessa abertura ou não tipicidade dos Direitos Fundamentais podem ser

assinaladas disposições semelhantes em algumas Constituições estrangeiras, como observa

Miranda (2000, p. 163),

A primeira referência encontra-se na IX Emenda à Constituição dos Estados

Unidos da América, que é o modelo que mais se aproximou de uma Constituição

liberal. A cláusula de abertura também está presente na Constituição peruana em

seu art. 4°; na Constituição de Guiné-Bissau em seu art.29; na Constituição

portuguesa em seu art. 16°, 1°; na Constituição venezuelana em seu art. 50; na

Constituição colombiana em seu art. 94, dentre outras.

No ordenamento pátrio, verifica-se esta cláusula de abertura desde a Constituição

de 1891, que previa em seu art. 78: “a especificação das garantias e direitos não exclui

outras garantias e direitos não enumerados, mas resultante da forma de governo que ela

estabelece e dos princípios que consigna”.

Este enunciado é o que se pode apreciar como o embrião da cláusula de abertura

dos Direitos Fundamentais, conforme leciona Almeida (1961, p. 135), “no direito pátrio,

mas era uma consideração dos direitos civis da Constituição Política do Império do Brasil

de 1824, como garantia mínima”.

A Constituição de 1934, no dispositivo do art. 113 estabelecia o rol de Direitos

Fundamentais, enquanto no art. 114 estabelecia a cláusula de abertura ampliando o rol dos

Direitos Fundamentais ao consagrar que a Constituição não excluía outros dispositivos

resultantes do regime e dos princípios que ela adotava.

Já a Constituição de 1937, possuía uma cláusula de abertura diferente, pois ao

mesmo tempo em que ampliava os direitos fundamentais, paradoxalmente limitava a

ampliação estabelecendo critérios sua ocorrência, conforme disposição do art. 123:

A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras

garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios

consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o

bem público, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem

coletiva, bem como as exigências da segurança da nação e do Estado em nome

dela constituídos e organizado nesta Constituição (ALMEIDA, 1961, p. 461).

Nas Constituições de 1946 e 1967141

, a cláusula de abertura apresentava a mesma

disposição ao determinar: “a especificação dos direitos e garantias expressas nesta

Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios

141 A Constituição de 1967, no art. 153, §36, previa: “A especificação dos direitos e garantias expressos nesta

Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”. (PIOVESAN,

2012, p. 108).

272

que ela adota”. “A primeira em seu art. 144, enquanto a segunda em seu art. 150, §35, até a

Emenda Constitucional n° 1 de 1969, onde migrou para o art. 153, §36, da Constituição”

(BRASIL, 1974, p. 149).

No caso da Constituição da República de 1988, a cláusula de abertura consagra,

segundo Sidney Guerra (2014, p. 252), “de maneira inovadora, a inserção de direitos

decorrentes de tratados internacionais, ou seja, previu a abertura a direitos decorrentes e

normas de direito internacional, fato que ainda não havia ocorrido em nenhuma outra

Constituição nacional”.

A importância de destacar a cláusula de abertura no histórico constitucional

brasileiro, visa estabelecer que o legislador sempre enumerou os direitos fundamentais de

forma exemplificativa, possibilitando ampliar o catálogo dos Direitos Fundamentais, tanto

pela via interna quanto externa, exercendo assim uma função democratizadora.

O rol de Direitos Fundamentais contidos na Constituição da República de 1988,

apesar de extenso, conforme observa Emerique (2006, p. 38), “não possui caráter taxativo,

mas apenas exemplificativo. A existência do art. 5°, §2°, no texto constitucional consagra

a abertura a outros direitos não expressamente nele referidos”.

Com base na possibilidade de se estender o rol de direitos amparados pela Carta

Constitucional é possível classificar os Direitos Fundamentais em duas espécies: uma

ancorada na Constituição formal, onde os direitos são formais e materialmente

fundamentais, enquanto na outra, sem assento expresso na Constituição, os direitos são

apenas materialmente fundamentais.

Adeptos da primeira corrente, que pauta os Direitos Fundamentais como formais e

materialmente fundamentais, destacam-se os ensinamentos de Antonio-Enrique Pérez

Luño e o magistério de Ferrajoli (2005, p. 20), ao propor uma definição teórica e

puramente formal para os Direitos Fundamentais:

Son todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a todos

los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o

personas con capacidad de obrar; entendendo por derecho subjetivo cualquier

expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a

un sujeto por una norma jurídica. Esta definición es teórica en cuanto, aun

estando estipulada con referencia a los derechos fundamentales positivamente

sancionados por leyes y constituciones en las actuales democracias, prescinde de

la circunstancia de hecho de que en este o en aquel ordenamento tales derechos

se encuentren o no formulados en cartas constitucionales o leyes fundamentales,

e incluso del hecho de que aparezcan o no enunciados en normas de derecho

positivo.

273

Como se pode observar do constitucionalismo em sua concepção liberal, os direitos

do homem foram referidos, inicialmente, em forma de declarações de direitos, mas

passaram a se tornar parte expressiva de inúmeros documentos constitucionais numa

tendência mantida, aprimorada e ampliada com o passar do tempo.

Existe uma correlação entre as noções de Constituição, Estado de Direito e os

direitos fundamentais. Na concepção de Sidney Guerra (2013, p. 196), “estes são essências

na estruturação do Estado Constitucional. Tão intrincada é esta interação que a

possibilidade de dissociá-la inviabiliza a manutenção da ideia de Estado constitucional

democrático”, o que já foi mencionado por Schneider (1991, p. 136): “decir que los

derechos fundamentales son condiciones sin las cuales no existe un estado de derecho

democrático”.

Os Direitos Fundamentais são, por assim dizer, elementos essenciais não apenas

para proteger e afirmar garantias inderrogáveis, mas servem ainda de legitimação dos

Estados, e integram à sua estrutura, como reflexo de sistemas democráticos, onde o povo

assume uma função não mais coadjuvante, mas de autores e destinatários das normas de

proteção.

A indicação do sentido formal e material de um direito fundamental vem

consignada por Miranda (2000, p. 7-9),

quando apresenta o seu entendimento de direitos fundamentais, advertindo que

todos os direitos fundamentais em sentido formal também o são em sentido

material para além dos direitos em sentido formal, coexistindo dessa forma os

dois sentidos.

A esse entendimento, soma-se que ao se estudar os Direitos Fundamentais, essa

divisão é fundamental, ao passo que as conquistas destes direitos são fruto de intensas e

longas batalhas tanto no âmbito interno quanto internacional, e que promover a sua

efetivação, demanda mais do que normas, mas uma mudança de consciência e postura dos

Estados perante os tratados internacionais de Direitos Humanos em busca da sua

realização tanto formal quanto material.

Por outro lado, a corrente que sustenta que os Direitos Fundamentais são

meramente materialmente fundamentais, deve atentar-se aos ensinamentos de Canotilho

(1997, p.111): “os direitos fundamentais são reserva da Constituição, isto é, tomam parte

entre os elementos que identificam a posição do homem no mundo estruturante/estruturado

da ordem constitucional e são reserva de justiça”.

274

Contudo, a mera legalidade formal não pode servir de parâmetro da legitimidade

formal e material da ordem jurídica estatal, cabendo a dignidade do seu reconhecimento

como ordem justa e a convicção, por parte da coletividade, da sua bondade intrínseca,

constituindo-se de elementos de ordem objetiva, integrando um sistema valorativo que

atua como fundamento material de todo ordenamento jurídico.

Outro adepto dessa corrente, Hesse (1992, p. 228-229), dispõe que os direitos

fundamentais apresentam um caráter dúplice:

São direitos subjetivos e são elementos fundamentais da ordem objetiva da

coletividade. Como direitos subjetivos, os direitos fundamentais determinam e

asseguram a situação jurídica do particular como homem e cidadão, garantindo

um instituto jurídico ou liberdade de um âmbito de vida – dimensão individual.

Com isso pretende-se limitar tanto o particular quanto o Estado, estabelecendo

elementos essenciais da consciência jurídica e legitimadores da ordem, apresentando prós,

com a atualização das liberdades garantidas no texto constitucional, e contras, defesa

contra os poderes estatais.

Os Direitos Fundamentais surgem no Estado Constitucional como reação às

ameaças fundamentais que circundam o homem, conforme observa Queiroz (2009, p. 48):

As funções específicas do perigo mudam historicamente, tornando necessários

novos instrumentos de combate, que devem ser desenvolvidos, sempre de novo,

em nome do homem. Isso significa uma abertura de conteúdos, funções e de

formas de proteção, de modo a que todos esses direitos possam ser defendidos

contra os “novos” perigos que possam surgir no decurso do tempo.

Justamente, por essa abertura constitucional, foi possível inserir novas formas de

proteção, múltiplas, exercidas pelos tribunais comuns, pelos tribunais de justiça

constitucionais e pelos tribunais internacionais, estabelecendo uma dependência dos

direitos fundamentais do texto constitucional com a realidade histórico social em que se

constroem essas garantias.

A par do diálogo firmado por essas diferentes instâncias jurídicas, é que se

fundamenta a tese da criação de um sistema jurídico multinível de proteção dos Direitos

Humanos Fundamentais, propiciando tanto ao indivíduo quanto ao Estado mais

possibilidades de verem suas pretensões analisadas, em mais de uma esfera jurídica.

Quanto ao caráter aberto da cláusula constitucional do art. 5°, §2°, é evidenciado

por Gomes da Silva (2000, p. 174):

275

A circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias

individuais não enumerados, quando, no parágrafo 2° do art. 5° declara que os

direitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros decorrentes dos

princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais

em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Para alguns constitucionalistas142

, os direitos individuais podem ser classificados

em três grupos: o dos direitos individuais expressos, explicitamente enunciados nos incisos

do art. 5°; os direitos individuais implícitos, subentendidos nas regras de garantias, como o

direito à identidade pessoal, certos desdobramentos do direito à vida.

E por fim, o grupo dos direitos individuais decorrentes do regime e dos tratados

internacionais subscritos pelo Brasil, que segundo Gomes da Silva (2000, p. 174), “não são

nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm ou podem vir a prover o

regime adotado, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização a

priori”.

Essa classificação dos direitos individuais visa estabelecer critérios de

identificação, partindo-se da referência expressa, passando pelos implícitos, ou seja,

dependentes da implementação de políticas públicas para serem efetivados e, por fim,

aqueles decorrentes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, buscando

por meio destes, estabelecer um núcleo inderrogável de direitos.

Ainda de acordo com Queiroz (2009, p. 48), “não existem numerus clausus dos

perigos. Daí a origem da expressão ‘proteção dinâmica dos direitos fundamentais’,

utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, a que corresponde uma tutela

‘flexível, móvel e aberta’ desses direitos no seu conjunto”.

Isto reflete a concepção de norma fundamental, aquilo que é essencial, relevante,

basilar, que serve de alicerce, e, portanto um direito que pode ser formal e materialmente

fundamental, adotando essa dupla noção de um direito que é proeminente instrumento para

auxiliar na interpretação do art. 5°, § 2°, da Constituição da República de 1988.

142 Na mesma direção, afirma Ferreira Filho (1990, v.1, p.88), “o dispositivo em exame significa simplesmente que a

Constituição brasileira ao enumerar os direitos fundamentais não pretende ser exaustiva. Por isso, além desses direitos

explicitamente reconhecidos, admite existem outros, ‘decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados’, incluindo

também aqueles que derivam de tratados internacionais. Quais sejam estes direitos implícitos é difícil apontar”. Ainda no

mesmo sentido, Cretella Junior (1991, v.2, p.869): “além dos direitos e garantias expressos nos textos constitucionais –

regras jurídicas constitucionais expressas – existem outros direitos e outras garantias que decorrem (a) do regime adotado

pela Constituição e (b) dos princípios que a fundamentam e que nela se enunciam, informando-a. Direitos expressos e

garantias expressas são as normas constitucionais, que integram artigos, parágrafos, incisos, alíneas. [...] O regime

instituído pela Carta Política de 1988 é o Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos individuais e

sociais, a liberdade, a segurança, além de outros explicitados no Preâmbulo”.

276

São normas, assim como as demais normas constitucionais, que contam com a

supremacia no ordenamento jurídico e que devido à sua importância, segundo Emerique

(2006, p. 152), “para o indivíduo e para a coletividade receberam um tratamento

diferenciado pelo poder constituinte, destacando-se a aplicação imediata de seus comandos

e a maior proteção no que concerne à possibilidade de mudanças do seu conteúdo pelos

poderes constituídos”.

Desta forma, o direito materialmente fundamental é aquele que compõe a

Constituição material, contendo as decisões essenciais sobre a estrutura basilar do Estado e

da sociedade e que podem ou não estar dispostas no texto constitucional sob a designação

de Direito Fundamental.

A precariedade de considerar apenas o sentido formal como identificador dos

Direitos Fundamentais, ou seja, somente considerar como direitos fundamentais as

posições jurídicas da pessoa, é minimalista, conforme leciona Hesse (1998, p. 225), “na

sua dimensão individual, coletiva ou social – que por decisão expressa do legislador

constituinte foram consagrados no catálogo dos Direitos Fundamentais (aqui considerados

em sentido amplo)”.

Contudo, existe também o significado material dos direitos fundamentais segundo

o qual são fundamentais aqueles direitos que, mesmo não integrando o rol enumerado no

texto constitucional, por seu conteúdo e importância, podem ser equiparados aos direitos

formal e materialmente fundamentais.

Os direitos e as garantias amparados no art. 5°, §2° têm existência assegurada no

universo constitucional, conforme ensina Maria Garcia (1994, p. 212):

Caracterizados pelo regime ou sistema dos direitos fundamentais, pelo regime ou

princípios adotados pela Constituição ou pelos tratados internacionais firmados.

Cumpre ao intérprete descobri-los em cada caso e descrevê-los na sua essência,

na sua densidade, na sua dinâmica e abrangência no sistema constitucional,

concretizando a sua integração no ordenamento jurídico.

Ao estabelecer a possibilidade de inserção de normas de proteção de Direitos

Fundamentais, por meio de legislação extravagante, o legislador por um lado amplia o

leque de possibilidades e o rol de garantias, e de outro lado, apresenta dificuldade de

integrar os princípios e normas estrangeiras, no ambiente doméstico, respeitando as

características de cada região.

277

Ao efetuar a incorporação, a Constituição da República de 1988 atribui aos Direitos

Internacionais uma natureza especial e diferenciada, conforme leciona Pedro Dallari

(1994, p. 162), “qual seja, a natureza de norma constitucional. Os direitos enunciados nos

tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos

direitos constitucionalmente consagrados”.

A Carta de 1988 inova, ao incluir entre os direitos constitucionalmente protegidos

os direitos enunciados nos tratados internacionais que o Brasil seja signatário, onde as

conquistas dos Direitos Internacionais em favor da proteção do ser humano se projetam no

Direito Constitucional, enriquecendo e demonstrando que a eficácia da proteção dos

Direitos Humanos internacionais é uma preocupação constante tanto de internacionalistas

como de constitucionalistas.

Uma vez que os direitos fundamentais expressamente garantidos são justificáveis

tão somente pelo texto constitucional que os consagra, os direitos materiais, não

formalizados, têm no art. 5°, §2°, sua justificação, desde que atendam a determinadas

exigências, conforme observa Pardo (2003, p. 86),

de dignidade, liberdade e igualdade, além de levarem em conta que as condições

disciplinadas no dispositivo mencionado são básicas para o reconhecimento

desses direitos como fundamentais, e que não contrariem o regime e os

princípios adotados pela Constituição.

No que tange aos direitos decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é

signatário, o núcleo inderrogável de Direitos Fundamentais já é estabelecido em suas

disposições, adquirindo o status de normas constitucionais de Direito Fundamental, por

força do art. 5°, §2°, da Constituição da República de 1988.

Esta cláusula de abertura ou da não tipicidade possui um amplo alcance, podendo

incluir as diferentes modalidades de direitos fundamentais, independentemente da

condição de serem direitos de caráter defensivo ou prestacional, conforme destaca

Alexandrino (2007, p.50),

Se entendermos ‘abertura’ como todo o conjunto de fenômenos por intermédio

dos quais possam ser criados, revelados, alargados ou ampliados outros direitos

fundamentais, a realidade ensina que a abertura do sistema de direitos

fundamentais pode funcionar por outras vias que não a da cláusula aberta.

Tanto a cláusula de abertura, proposta pelo §2° do art. 5° da Constituição da

República de 1988, quanto a formação dos Direitos Fundamentais, esclarece que não

278

podemos partir de uma concepção meramente formal ou material, mas deve-se analisar o

direito de forma dinâmica, para que possa atender às necessidades tanto de proteção

quanto de evolução introduzida pela globalização, nos meios de comunicação de massa,

nos direitos coletivos, e na proteção internacional dos Direitos Humanos.

Superada a análise das teses referentes à recepção dos tratados internacionais de

proteção dos Direitos Humanos, além da evolução da proteção dos Direitos Fundamentais

e a possibilidade de interação com legislações extravagantes, por meio da cláusula de

abertura, é necessário analisar as implicações decorrente das alterações introduzidas no

ordenamento com a aprovação da Emenda Constitucional n°45/2004.

Partindo-se da concepção de que os tratados internacionais de Direitos Humanos

possuem uma estatura constitucional, havendo conflitos ocasionais entre o tratado e a

Constituição, conforme Piovesan (2012, p. 44-56), “devem ser solucionados pela aplicação

da norma mais favorável à vítima da violação do direito humano, titular do direito, tarefa

hermenêutica de incumbência dos tribunais nacionais e dos órgãos de aplicação do

direito”.

Dessa forma, o direito interno e o internacional interagem para proteger os direitos

e interesses do ser humano pelos quais os §§1° e 2° do art. 5° da Constituição de 1988,

caracterizam-se como garantias de aplicabilidade direta e do caráter constitucional dos

tratados de Direitos Humanos os quais o Brasil é signatário.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, a normativa dos tratados de

Direitos Humanos em que o Brasil é parte, segundo Cançado Trindade (1998, p. 88-89),

Tem efetivamente nível constitucional e entendimento em contrário requer

demonstração. A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à

legislação infraconstitucional – tal como ainda seguida por alguns setores em

nossa prática judiciária – não só representa um apego sem reflexão a uma tese

anacrônica, já abandonada em alguns países, mas também contraria o disposto

no artigo (5) 2 da Constituição Federal Brasileira.

Acerca dessa hierarquia constitucional, assim como a receptividade, destaca-se

ainda como alguns países vizinhos refletem sobre os tratados internacionais de Direitos

Humanos, atribuindo um status normativo diferenciado em relação aos demais tratados de

matérias não concernentes aos Direitos Humanos, exemplificados por Argentina143

e

Venezuela144

.

143 Art. 75 da Constituição Argentina: “La Declaración Americana de Los Derechos y Deberes del Hombre; La

Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto

279

A partir da promulgação da Emenda Constitucional n° 45/2004 e buscando uma

interpretação mais condizente do art. 5°, §3° da Constituição de 1988 com as concepções

contemporâneas na ordem internacional e de diversos países que prestigiam os tratados de

Direitos Humanos, é que se atribui uma hierarquia equivalente às emendas constitucionais,

no ordenamento pátrio.

Vislumbra-se a atual identidade do Estado Constitucional. Nas lições de Haberle

(2003, p. 75-77):

Como un “Estado de Derecho Cooperativo”, como el que ya no se revela a sí

mismo como enfrentarse a sí mismos, pero hacen disponibles como referencia

para otros estados constitucional que pertenecen a una comunidad, en la que el

papel de los derechos humanos y fundamentales es relevante . En virtud del

derecho constitucional nacional, este fenómeno de la integración y la

cooperación al menos puede apuntar a un debilitamiento de las fronteras de

tendencia entre la interna y la externa, produciendo un diseño enfocado a la

primacía del derecho comunitario sobre el derecho nacional.

Esse cooperativismo constitucional é complexo, devido aos aspectos sociológicos e

econômicos, além do ideal-moral, pelo qual a proteção aos Direitos Humanos é a fórmula

mais concreta que dispõe o sistema constitucional para exigir uma contribuição positiva do

Estado visando a eficácia na cooperação internacional amistosa entre os Estados e a

proteção dos Direitos Humanos, decorrentes da dignidade humana.

No Paraguai145

e na Argentina146

percebe-se a inserção em contextos

supranacionais em suas Constituições, enquanto a Constituição uruguaia de 1967, após

uma reformulação em 1994, incluiu um novo inciso em seu artigo 6°, que dispõe sobre a

integração social e econômica dos Estados latino-americanos, especialmente em relação à

defesa comum de seus produtos e matérias primas.

Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su

Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención

Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de

todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles,

Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Nino: en las condiciones de su vigência, tienen

jerarquia constitucional, no derogan artículo alguno de la primeira parte de esta Constitución y deben entenderse

complementários de los derechos y garantias por ella reconocidos”. 144 Constituição da Venezuela de 2000, art. 23: “Los tratados, pactos y convenciones relativos a derechos humanos,

subscritos y ratificados por Venezuela, tienen jerarquia constitucional y prevalecen en el orden interno, en la medida en

que contengan normas sobre su goce y ejercicio más favorables a las estabelecidas por esta Constitución y em las leyes

de la República, y son de aplicación inmediata y directa por los tribunales y demás órganos del Poder Público”. 145 A Constituição do Paraguai de 1992, no art. 9°, estabelece: “La República del Paraguay, en igualdad de condiciones

con otros Estados, admite un sistema jurídico supranacional que garantice la vigencia de los derechos humanos, la paz, la

justicia, la cooperación y el desarrollo político, económico, social y cultural”. 146 A Constituição da Argentina, no inciso 24 do art. 75, estabelece: “e corresponde con el Congreso para aprobar

tratados de integración que deleguen competencias y jurisdicción a organizaciones supraestatales en condiciones de

reciprocidad e igualdad, y el respeto del orden democrático y los derechos humanos. Las normas dictadas en su

consecuencia tienen jerarquía superior a las leyes”

280

E por meio desta tendência é possível estabelecer uma convergência do

constitucionalismo mundial de atribuir maior cotação às normas internacionais de proteção

aos Direitos Humanos, onde as Constituições apresentam mais elementos de concretização

de sua eficácia normativa tanto quanto uma dimensão de aproximação entre o direito

internacional e o direito interno.

Ao analisar as duas últimas teorias de recepção dos tratados de direito internacional

de proteção dos Direitos Humanos, percebe-se um posicionamento inadequado e

ultrapassado do Supremo Tribunal Federal, e que é imperioso uma revisão dessa

jurisprudência, conforme leciona Cançado Trindade (1999, p. 46-47),

A disposição do artigo 5°(2) da Constituição Brasileira vigente, de 1988,

segundo a qual os direitos e garantias expressos nesta, não excluem outros

decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é parte, representa, a

meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em nosso país.

Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de

direitos humanos em que o Brasil seja parte incorporam-se ipso jure ao elenco

dos direitos constitucionalmente consagrados. Ademais, por força do artigo 5°(1)

da Constituição, tem aplicação imediata. A intangibilidade dos direitos e

garantias individuais é determinada pela Constituição Federal, que inclusive

proíbe expressamente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (artigo

60 (4) (IV)).

Através dessas considerações é possível entender que a proteção dos Direitos

Humanos decorrente dos tratados internacionais de que o Brasil é signatário, embora

suscite um campo fértil de discussões sobre sua recepção, deve-se atentar ao fato de que

equiparar os tratados internacionais com a legislação infraconstitucional é infundado, ao

passo que os movimentos constitucionais do século XX apontam para a necessidade de se

valorizar e afirmar os Direitos Humanos, merecendo a proteção especial dispendida pelo

texto constitucional.

Com efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção de Direitos Humanos o

mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de

produtos comercializáveis. À hierarquia de valores, conforme observa Cançado Trindade

(1999, p. 46-47), “deve corresponder uma hierarquia de normas, nos planos nacional e

internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de

direitos humanos têm caráter especial, e devem ser tidos como tais”.

Isso deixa claro que tanto a intenção do legislador quanto dos juristas é de dar

efetividade às normas que versam sobre a proteção dos Direitos Humanos, estabelecendo

assim, um núcleo inderrogável de Direitos Fundamentais que ultrapassam a teoria clássica

281

de soberania estatal, possibilitando ainda, respeitando as diferenças regionais, a criação de

órgãos de proteção, visando dar efetividade aos tratados internacionais no plano interno.

Reconhecido como um ideal comum, segundo Cançado Trindade (2000, p. 114-

115),

esse conjunto de valores e preceitos básicos, consubstanciado em um conjunto

de normas jurídicas, o próximo passo consistiu na consagração de um núcleo

básico de direitos inderrogáveis, presentes nos distintos tratados de direitos

humanos, de reconhecimento universal.

Já é cristalizado o ideal comum de todos os povos consubstanciado na Carta

Internacional dos Direitos Humanos, complementada ao longo dos anos por dezenas de

outros tratados “setoriais” de proteção e de convenções regionais, e consagrado,

posteriormente nas Constituições nacionais de inúmeros países.

Paralelamente, passou a manifestar-se um consenso da virtual totalidade dos

Estados do mundo no sentido de fazer figurar dentre as violações mais graves dos Direitos

Humanos, como ensina Cassese (1991, p. 77-78),

Genocidio, el apartheid y la discriminación racial, la tortura y la desaparición

forzada de personas, lo que implicó un principio de acuerdo sobre ciertos

derechos básicos e inalienables, que se expandan gradualmente. Se fue a unirse a

la prohibición absoluta de tales violaciónes graves de los derechos humanos con

la aparición y consolidación de jus cogens en el derecho internacional

contemporáneo.

Desta forma, destacam-se as novas indicações e a fixação de parâmetros de conduta

em torno de valores básicos universais, a serem observados e seguidos por todos os

Estados e povos, tendo presente a nova dimensão dos Direitos Humanos, a permear todas

as áreas da atividade humana.

Após analisar os instrumentos de proteção dos Direitos Humanos, começando pelo

âmbito global e se expandindo para âmbitos regionais, verifica-se também a recepção dos

tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, as teorias

que envolvem a temática, para então, analisar o movimento constitucional no sistema

multinível, suas implicações e o núcleo inderrogável de Direitos Fundamentais nesses

Estados e a disposição da Constituição da República de 1988 quanto ao art. 60, §4°.

282

6.2 A inderrogabilidade de direitos na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal

Para estabelecer precedentes, ou como utilizamos em nosso ordenamento jurídico

as jurisprudências que versam sobre a inderrogabilidade de direitos, não acrescenta

reconhecer que a instituição da Justiça Constitucional operou uma verdadeira mudança no

cenário jurídico dos diversos Estados que a adotam, além do relativo sucesso da

experiência com os tribunais ou cortes constitucionais.

Uma legitimidade performática ou de exercício e de êxito ou ainda de resultado, na

visão de Rothenburg (2005, p. 151-185)147

, essa instituição e sua atuação tem sido

constantemente questionadas em sua legitimidade (portanto, não em sua existência ou

efetividade).

Numa análise descritiva e presa à determinada realidade estatal, algumas decisões

da Justiça Constitucional148

geram insatisfação no espaço político-partidário, na mídia e no

governo, chegando, por vezes, a deflagrar uma situação mais séria de crise institucional.

Com isso, é possível desenvolver o sentimento de uma espécie de “quebra de

confiança” ou descontentamento, como destaca Rosenfeld (2004, p. 335-336), de

“different backgrounds and manifest more strongly because of certain cultural and

institutional particularities”.

Através dele, por meio de diferentes origens e manifestações em virtude de

determinadas peculiaridades culturais e institucionais, deflagra-se a necessidade de

sedimentar um posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos casos envolvendo o

conflito entre princípios fundamentais.

Fato é que as divergências que acompanham a “jurisdição constitucional”

intensificam-se em algumas circunstâncias, como num movimento pendular que se renova

constantemente (Black Jr., 1960, p. 183), fazendo ressurgir a controvérsia entre Kelsen e

Schmitt, ao menos como questão de princípio (Segado, 1989, p. 381), especialmente

quando “surge algum ativismo ou, inversamente, uma eventual fraqueza, dos respectivos

Tribunais Constitucionais”. (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1983, p. 157).

147 O autor acrescenta que essa consagração dependeu também da falta de outro órgão em melhores condições para

garantir os direitos fundamentais e as regras democráticas. 148 “Utilizar-se-á, aqui, do conceito de Justiça Constitucional para identificar a instância que, operando por processo

judicializante, possui o ônus (constitucionalmente imposto) da curatela da supremacia da Constituição” (TAVARES,

2005, p. 147-159).

283

Recentes casos analisados pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil podem ilustrar

essa afirmação, como a quebra de sigilos bancários de supostos envolvidos tanto com o

esquema do “mensalão” quanto da “Lava Jato”, a verticalização, a Comissão Parlamentar

de Inquérito do “apagão aéreo”, dentre outros.

Desde que a Corte Suprema estadunidense avocou para si a responsabilidade pela

supremacia da Constituição, segundo Tavares (2007, p. 154-155),

a Paramont Law, em 1803, passou, naquele exato momento, a enfrentar as

acusações de usurpar um espaço que não lhe havia sido atribuído ou imaginado

pela Constituição de 1787. Apesar desses questionamentos, o modelo

implementado com o constitucionalismo (norte-americano) difundiu-se

amplamente, tendo impregnado profundamente a História constitucional de

diversos países da América, a exemplo de Argentina e do Brasil, que

estabeleceram suas cortes supremas e um modelo de controle difuso-concreto da

constitucionalidade das leis.

Com base nesse modelo, o Poder Judiciário, na sua evolução histórica,

desempenhou e desempenha um papel diferenciado, tendencialmente ativo, a fim de

concretizar e implementar os direitos e garantias consagrados na Constituição, seja por

meio das normas ou dos princípios norteadores.

As contemporâneas teorias da Constituição, e com ela da teoria da Justiça

Constitucional, como observa Martins (2005, p. 39),

têm sido acusadas de deslocar a Constituição de seu centro “natural” de

gravidade (eixo político) para uma insuportável e não-democrática judicialização

das decisões (estruturais, institucionais e sociais) mais relevantes: a ameaça,

aqui, é a hipertrofia sufocante do sistema jurídico sobre o político.

Sob essa ótica, o que se pressupõe é uma tese contrária aquela proposta por

Haberle, ou seja, a ideia de uma separação entre a política e o jurídico, totalmente

compatível com posturas que assumem o Judiciário, do ponto de vista institucional, com

baixa estrutura democrática, ao menos em sua origem ou composição.

Essa concepção envolve certo idealismo democrático, atacando as posturas mais

recentes de um judicial review ou de um Tribunal Constitucional como posturas que

podem ser consideradas equivocadamente ativistas, haja vista que não há como saber qual

a concepção democrática que está sendo defendida.

Cita-se como exemplo a democracia deliberativa, cujos postulados indicam a

necessidade de que as decisões socialmente relevantes respeitem os pressupostos

284

dialógicos de racionalidade por ela exigidos, sem se importar em apontar um órgão

específico que teria legitimidade supostamente democrática para ratificar e impor

coercitivamente tais decisões.

Alguns autores chegam a observar que a democracia deliberativa deve promover

periódicas reestruturações das instituições, ou seja, do próprio desenho estrutural do

Estado, quando a razão pública comece a falhar (BOHMAN, 1996, p. 198; GUTMANN,

THOMPSON, 2004, p. 97).

Desta forma, a ampliação do espaço idealizado tradicionalmente para o Poder

Judiciário assim como para o Tribunal Constitucional149

, na tutela da Constituição e sua

supremacia, para além de um mero legislador negativo, conforme expressão de Kelsen foi

viabilizada, dentre outras circunstâncias, pela abertura semântica das Constituições, em sua

contemplação principiológica do discurso dos direitos humanos150

, pela supremacia da

Constituição, pela vinculação dos legislativos aos direitos fundamentais consagrados, e

ainda, pela necessidade de retirar do espaço político certas opções.

Pacífico é o entendimento a respeito do papel das cortes constitucionais e de sua

vinculação à Constituição a que devem guardar, nas distintas formas de controle de

constitucionalidade, resultando como finalidade essencial do constitucionalismo e da

natureza concreta dos fatos que se descrevem perante a corte controladora da

constitucionalidade.

Nesse sentido, como lecionam Streck, Oliveira e Lima (2008, p. 356-357), “mesmo

nos casos do chamado controle concentrado, qualquer tribunal constitucional somente

agirá quando se comprove que a eventual violação da Constituição é atual e efetiva, e não

uma simples projeção intelectiva”.

O Supremo Tribunal Federal, em Recurso Extraordinário (art. 103, III, a, b, c, d, da

Constituição da República), julgou “as causas decididas em única ou última instância”, ou

seja, sentencia a aplicação dada à Constituição em situações jurídica concretas, e não

meras teses sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis e de atos

normativos.

149 Conforme percebeu Leonardo Martins, referindo-se ao contexto alemão: “A consequência é talvez que o Tribunal

Constitucional Federal tenha avocado, sim, muita responsabilidade para si, invadindo a esfera do legislador de uma

forma positiva, ou seja, não por meio do tradicional instrumento de cassação, mas da criação de pautas positivas da

atividade legiferante” (MARTINS, 2005, p. 39). A invasão, contudo, talvez seja mais uma assimilação de espaço, com

possibilidade de atuação concorrente no âmbito da implementação satisfatória desse discurso aberto dos direitos

fundamentais. 150 No século XX, a filosofia dos direitos humanos foi “objeto de uma crítica radical. Algumas teorias políticas

procederam a uma negação sistemática desses direitos [...] afirmaram a superioridade absoluta do Estado (fascismo), da

raça (nazismo), ou da classe ideológica (estalinismo)” (MORANGE, 1985, p. 41).

285

Nesses casos, o Supremo Tribunal Federal não atuou nem mesmo como mera corte

de cassação, mas como corte de apelação, cabendo-lhe julgar tanto o error in procedendo

quanto o error in iudicando, cujo resultado da atuação no controle difuso de

constitucionalidade nunca é o julgamento de uma tese, e dessa atuação não resulta uma

teoria, mas uma decisão.

Agir no limite de um contexto, ou seja, obedecer aos ditames do poder constituído

é condição existencial do Supremo Tribunal Federal, como poder jurisdicional vinculado à

Constituição. Os poderes do Estado estão submetidos a uma mesma vontade política,

objetivamente identificada em determinado percurso histórico na formação das sociedades,

como no instante constituinte, demonstrando assim o papel das constituições na

consolidação das democracias no século XX.

Desta forma, a alegação de que é cabível a reclamação contra as “teses” e não

contra os julgados151

do Supremo Tribunal Federal incorre na imprecisão inerente ao papel

das cortes controladoras da constitucionalidade que é o de agirem somente diante de uma

situação contextualizada152

.

O processo histórico não pode, na visão de Streck, Oliveira e Lima (2008, p. 372-

373), “delegar para o Judiciário a tarefa de alterar, por mutação ou ultrapassagem, a

Constituição do país (veja-se, nesse sentido, só para exemplificar, e esse é o ponto, o

“destino” dado em ambos os votos, ao art. 52, X, da Constituição do Brasil)”.

Com efeito, as mudanças propiciadas pelo Poder Judiciário convergem para a tese

da mutação constitucional153

que é compreendida mais uma vez como solução para um

suposto hiato entre texto constitucional e a realidade social, conforme observa Mendes

(2004, p. 207),

a exigir uma “jurisprudência corretiva”, tal como aquela a que falava Bullow,

em fins do século XIX (veja-se, pois, o contexto histórico): uma jurisprudência

corretiva desenvolvida por juízes éticos, criadores do Direito (Gesetz und

Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da Constituição e dos supostos

151 Não será colocado em pauta o problema da relação entre o Senado (art. 52, X, Constituição Federal de 1988) e a

questão da “repercussão geral”, introduzida pela Emenda Constituição nº45/04, regulamentada no art. 543-B do CPC/73.

Destaca-se a complexidade do problema: além do poder que o Supremo Tribunal Federal terá a partir da equiparação do

controle difuso ao concentrado tem-se que aquela corte pode determinar a interpretação de uma norma constitucional e

impô-la a todos os processos em sede de controle difuso. Podem ser anuladas, inclusive, as decisões já proferidas pelas

diversas instâncias do Poder Judiciário. Portanto, conforme alerta Scaff (2007, p. 20), “isto é mais do que uma súmula

vinculante: é uma decisão única, tomada por seis ministros (maioria absoluta), que pode desfazer as decisões adotadas

pelos Tribunais de todo o país. A exigência do quórum qualificado (oito votos) é apenas para juízo de admissibilidade e

não para a votação do mérito. É um poder jamais visto no Brasil nas mãos do STF”. 152 O que não significa dizer em concreto, quando direitos subjetivos não estão em questão, ou seja, no sentido esse em

que o termo é comumente emprestado por doutrina e jurisprudência do controle da constitucionalidade. 153 Mutação constitucional é a forma pela qual o poder constituinte difuso se manifesta. É forma de alteração do sentido

do Texto Maior, sem, todavia afetar-lhe a letra. Trata-se de uma alteração do significado do texto, que é adaptado

conforme a nova realidade na qual a Constituição está inserida.

286

envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações

constitucionais são reformas informais e mudanças constitucionais empreendidas

por uma suposta interpretação evolutiva.

A mutação constitucional parte de uma concepção decisionista da jurisdição e

contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes

permanentes, onde se discute se os tribunais podem ou não mudar a Constituição,

“inventando” direitos, descaracterizando assim o legítimo papel como poder jurisdicional

numa democracia.

Desse modo, relevante analisar a conduta da República Federativa do Brasil em

face do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a fim de verificar a adequação da

postura nacional às novas diretrizes axiológicas do Direito Internacional. A violação

dessas normas pode levar à responsabilidade internacional do Estado que, por sua vez,

pode gerar sanções por violações de normas internacionais.

A proteção aos Direitos Humanos, desta forma, conta com uma relação de

complementariedade entre os sistemas interno e internacional, cabendo àqueles a

responsabilidade primária de assegurar tais direitos e a este a atuação de modo

complementar, quando a proteção nacional se revelar inexistente ou ineficaz.

Nesse sentido, analisam-se alguns casos para exemplificar, como ilustra Amaral

Junior (2001, p. 279-280),

Os frutos das Revoluções Americana e Francesa, movimentos essencialmente

nacionais, repercutiram em vários Estados e auxiliaram na positivação dos

direitos decorrentes da dignidade humana, transformando direitos naturais em

direitos fundamentais; a proibição do tráfico negreiro, por normas internacionais,

contribuiu para movimentos nacionais abolicionistas; as alterações internas

provocadas pela Revolução Industrial funcionaram como um dos fatores que

propiciaram a criação da Organização Internacional do Trabalho e de normas

protetivas ao trabalhador; a prática do sistema de apartheid, na África do Sul, foi

considerada como uma violação do Direito Internacional, ensejando sanções da

comunidade internacional que auxiliaram o fim de tal regime, e muitas normas

estabelecidas pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH)

foram incorporadas por constituições nacionais.

Destaca-se, desse modo, um movimento dialético, e a relevância da existência de

dois sistemas de proteção, que inspiram e influenciam um ao outro, a fim de resguardar a

proteção dos Direitos Humanos Fundamentais, demonstrando que tanto o sistema interno

quanto o internacional buscam atingir o mesmo objetivo, uma vez que compartilham

idêntico fundamento.

287

É a primazia do valor da dignidade humana, como leciona Piovesan (2012, p. 11-

12), “como paradigma e referencial ético, verdadeiro superprincípio a orientar o

constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local, regional e global, dando-lhe especial

racionalidade, unidade e sentido”.

Em decorrência do cenário e da complementariedade entre os sistemas interno e

internacional, consagrou-se no Direito Internacional dos Direitos Humanos a norma de

esgotamento dos recursos internos para que uma violação de direitos humanos, na esfera

interna, possa ser analisada pelo Direito Internacional.

A atuação do Supremo Tribunal Federal pode ser analisada sob duas óticas

distintas, tanto pela postura da corte recepção dos tratados quanto às decisões relativas à

efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais no Brasil. É relevante sua atuação, tanto

pela garantia dos direitos individuais quanto da efetivação de políticas públicas, que

permitam estabelecer uma ordem social, em que a igualdade seja efetivamente

concretizada.

No Brasil atualmente, a violação dos Direitos Humanos, conforme aponta Lafer

(2005, p. 35),

Não tem como fulcro e foco o arbítrio do poder concentrado e centralizado de

um regime autoritário mas sim as dificuldades de um regime democrático em

assegurar, num país continental e numa sociedade heterogênea, permeada por

vastas desigualdades, o efetivo respeito aos direitos humanos.

Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República

de 1988, assume papel de destaque e de liderança na criação de uma ordem social, por

meio do Direito que busca efetivação real dos Direitos Humanos Fundamentais, como

processo de implementação de tais direitos.

O tema da recepção dos tratados que versam sobre Direito Internacional dos

Direitos Humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro foi alterado por força da Emenda

Constitucional nº45, de 8 de dezembro de 2004, que adicionou o §3° ao art. 5° da

Constituição da República de 1988.

Esta alteração buscou sanar duas questões relativas à recepção dos tratados que

versam sobre Direito Internacional dos Direitos Humanos no Brasil: a necessidade de um

procedimento formal de recepção para os tratados de direitos humanos e a hierarquia legal

destas normas, uma vez recepcionadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A necessidade de recepção dos tratados internacionais deriva da adoção pelo Brasil

da tese dualista de relacionamento entre o direito interno e o direito internacional, pela

288

qual se exige um procedimento formal para que os tratados internacionais passem a ter

validade interna, decorrente da interpretação combinada dos arts. 21, I; 49, I; 84, VIII da

Constituição Federal de 1988, além de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal154

.

A primeira questão que a Emenda Constitucional nº45 de 2004 veio a responder diz

respeito à necessidade deste procedimento formal para os tratados de direitos humanos,

uma vez que o art. 5°, §1° da Constituição Federal de 1988 determina que “as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, fundamentando

assim a necessidade de um procedimento específico para a recepção dos tratados

internacionais de direitos humanos.

A Emenda Constitucional n°45/04 estabelece um procedimento especial. Nesse

sentido, descreve Comparato (2001, p. 59),

Aprovação pelas 2 casas Congressuais por 3/5 dos votos em 2 turnos, para que

os tratados internacionais de direitos humanos adquiram status de emenda

constitucional155

, rechaçando, assim, as teses doutrinárias do caráter supra-

constitucional ou constitucional, sem necessidade de um procedimento especial

de recepção para os tratados que versam sobre Direito Internacional dos Direitos

Humanos, fundados na exegese do art. 5°, §2° da CF/88.

esta regulamentação, contudo, não soluciona a questão da hierarquia normativa dos

tratados ratificados pelo Brasil anteriormente à Emenda Constitucional nº45/04, os quais,

em matérias de direitos humanos, formam o conjunto mais relevante de normas protetivas

da dignidade humana, desde a Convenção para prevenir e reprimir os crimes de genocídio

até a Convenção sobre os direitos da criança, estes considerados o núcleo inderrogável de

Direitos Humanos Fundamentais.

Esta postura é adotada na posição tradicional da jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal156

, pela qual através de sistemas complementares, busque a mais ampla

proteção às vítimas de violações dos direitos humanos. Como visto, a violação de normas

de direito internacional pode ensejar a responsabilização do Brasil além de diminuir sua

legitimidade internacional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre direitos humanos é vasta e

variada, refletindo o fato de que a dignidade humana se traduz em múltiplos direitos, a fim

154 Como, por exemplo, o RE 80.004 e no Agravo Regimental na Carta Rogatória nº8.279. 155 É interessante notar, contudo, que não há previsão de quem detém a competência para definir se um tratado é ou não

de direitos humanos e, portanto, se é possível ou não de se enquadrar no procedimento especial criado pela Emenda

Constitucional nº45/04. 156 Como, por exemplo, no Habeas Corpus nº72.131, no RE nº243.613 e na ADI-MC nº1.480.

289

de ser efetivamente assegurada, partindo desde temas gerais até a aplicação direta do

Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Quanto aos temas gerais, segundo Amaral Junior e Jubilut (2009, p. 42-43), “o

primeiro ponto de destaque vem a ser o fato de que os direitos humanos são apontados

como paradigmas jurídicos axiológicos, o que denota a adequação das decisões do

Supremo Tribunal Federal ao sistema internacional de proteção da pessoa humana”.

Um segundo ponto a se destacar, é que desde 2001 houve um aumento significativo

das referências à dignidade humana, que aparece ora como postulado, ora como princípio e

ora como valor fonte do ordenamento jurídico, justificando-se assim, a proteção basilar aos

direitos humanos.

No que tange ao conflito entre direitos, a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal tem sinalizado a primazia da proteção aos direitos civis e políticos, de cunho

liberal e individualista, muito embora existam decisões que consagram direitos humanos

de titularidade coletiva, como o direito ao meio ambiente.

Ademais, deve-se destacar a necessidade de um diálogo entre a jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal e os Sistemas de Proteção dos Direitos Humanos tanto em

âmbito global quanto regional, analisando-se ainda, se realmente é um diálogo, uma via de

mão dupla, ou um monólogo onde os países em desenvolvimento como o Brasil

fundamentam as decisões que envolvem questões complexas de conflito entre princípios

fundamentais, com base em precedentes internacionais, conforme será analisado a seguir.

6.3 O diálogo necessário entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e os

sistemas de proteção dos Direitos Humanos Fundamentais

O pensamento jurídico enquanto atividade judicial ingressou numa nova era ou

etapa, marcado pelas crescentes influências recíprocas das jurisprudências nacionais e

internacionais umas sobre as outras. Nesse sentido, em 1994, a acadêmica norte-americana

Anne-Marie Slaughter (1994, p.99) publicou um trabalho que iniciava com uma frase

destinada a se tornar célebre: “the courts are talking to each other around the world”.

A internacionalização da influência da jurisprudência constitucional remete a

extensão que ultrapassa as fronteiras da força gravitacional dos entendimentos exarados

em sentenças ou precedentes que tratam de hermenêutica constitucional. Desta forma, uma

interpretação dada em âmbito doméstico de um aspecto da Constituição exerce influência

290

em outras Cortes Constitucionais em um problema de interpretação de outra Lei

Fundamental.

O ponto a ser destacado é se essas relações são recíprocas, fomentando um

verdadeiro diálogo, ou se ainda se trata de tribunais de países mais desenvolvidos que

influenciam na tomada de decisões de países em desenvolvimento. Entre os adeptos da

corrente do diálogo constitucional, afirma Ramires (2016, p. 7-8),

Essas relações são recíprocas: apesar de ainda se poder identificar alguns

tribunais como mais influentes do que outros no que se refere à propagação

externa de sua jurisprudência, as referências aos julgados estrangeiros têm se

tornado mútuas, mediante constantes e difusos envios e recepções de racionales

decidendi entre as diversas correntes em vários países do mundo.

O diálogo internacional entre juízes está relacionado ao fenômeno da globalização

que tende a planificar as relações humanas, fomentadas pela evolução dos meios de

comunicação nas últimas décadas que facilitou sobremaneira o intercâmbio de dados e

experiências em todas as áreas. Especialmente, os órgãos judiciais como os tribunais

constitucionais, cortes supremas e tribunais internacionais dispõem, hoje, de páginas

oficiais na internet pelas quais divulgam sua jurisprudência para fácil acesso, gratuito e

instantâneo.

Entretanto, para falar em diálogo é necessário estabelecer uma linguagem que o

instrumentalize, pela qual juízes e tribunais de diversas nações, com idiomas e culturas

diversificadas, citem-se uns aos outros como autoridades argumentativas em assuntos

constitucionais, produzindo uma espécie de conversação multilateral. É preciso que se

estabeleça uma linguagem comum.

Em outras palavras, o entendimento e a compreensão entre os juízes e os tribunais

do mundo pressupõem a existência de uma gramática compartilhada entre as ordens

jurídico-constitucionais dos diversos países, que pode ser identificada como o Estado

Democrático de Direito, fundamentados em sistemas principiológicos de tomada de

decisão em direitos e garantias fundamentais.

Trata-se, pois, da construção e do reconhecimento de uma tradição compartilhada.

Afinal, nas palavras de Kaufmann (2007, p. 94 e 106), “la tradición es el terreno común en

el que vivimos” onde os Estados constitucionais que se pretendem democráticos e de

direito partem das mesmas concepções de constitucionalismo.

291

Como explica a ex-juíza da Suprema Corte canadense Claire L’heurex-Dubé (2002,

p. 234-235), o pioneirismo do Bill of Rights dos Estados Unidos, como o primeiro

documento de sua natureza a ser interpretado e ganhar sentido através das decisões dos

tribunais, “It became ‘natural’ that other countries would look at your text and the

interpretation that won in US courts to draft their own protection models and guarantee

rights”.

De fato, o constitucionalismo norte-americano exerceu influência, incluindo o seu

repertório de jurisprudência, desde muito tempo sobre o direito e a política da América

Latina (como, por exemplo, no Brasil). O ato normativo que organizou a Justiça Federal e

instalou o Supremo Tribunal Federal (Decreto nº848, de 11 de outubro de 1890) já previa

que a jurisprudência estrangeira, especialmente a norte-americana, deveria servir de fonte

jurídica subsidiária nos provimentos judiciais federais157

.

Os efeitos práticos dessa influência nas discussões constitucionais brasileiras do

final do século XIX são bastante visíveis. Em 1893, naquela que é vista como a primeira

vez em que foi arguido no foro brasileiro o “direito dos tribunais de examinar a

constitucionalidade dos atos legislativos ou administrativos e negar-lhes execução ou

manter contra eles o direito dos indivíduos” (Rodrigues, 1991, p.61), o advogado Rui

Barbosa sustentava que “nossa lâmpada de segurança” deveria ser “o direito americano,

suas antecedências, suas decisões, seus mestres”158

. A tese foi tacitamente acolhida pelo

Supremo Tribunal Federal159

, em um curto acórdão considerado um dos marcos iniciais do

controle judicial de constitucionalidade no Brasil.

Com isto inaugurou-se uma projeção unilateral da jurisprudência norte-americana.

Contudo, nos anos recentes, o incremento dos laços e das influências internacionais no

direito tem afetado as decisões judiciais, especialmente no âmbito das cortes mais altas.

Nesse sentido, uma das novidades introduzidas pelo modelo do diálogo entre as

cortes constitucionais, segundo L’heurex-Dubé (2002, p. 234-235) foi a chamada

157 Eis o texto do artigo 386, 2ª parte, daquele diploma legal: “Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que

regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity,

serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”. 158 Razões finais apresentadas perante a primeira instância em 1893 e publicadas sob o título Os actos inconstitucionaes

do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal (Rio de Janeiro: Companhia Impressora, 1893; reproduzido em

BARBOSA, Rui. Obras completas. v.XX, t.V, Rio de Janeiro: MEC, 1956). O pedido, fortemente embasado na doutrina

inaugurada por John Marshall em Marbury v. Madison, consistia na declaração de nulidade do ato do Poder Executivo

que reformou um Marechal das Forças Armadas contra sua vontade. Combatendo o alvitre contrário encampado pelo

Procurador da República Rodrigo Octavio de Langgaard Menezes (que viria a ser nomeado Ministro do STF em 1929),

Rui Barbosa alertava que os autores da Constituição brasileira eram discípulos de James Madison e Alexandre Hamilton,

não de Jean-Jacques Rousseau e Gabriel Bonnot de Mably como o nobre procurador, que se aferrava à doutrina fatal da

onipotência das assembleias, doutrina anacrônica e contrária ao nosso direito escrito. 159 AC n.112, j.19-09-1895. Jurisprudência, p. 189-191.

292

polinização cruzada, onde os juízes não mais recebem, simplesmente, os casos

de outras jurisdições, particularmente dos Estados Unidos, e, então, aplicam-nos

ou modificam-nos para sua própria jurisdição. Ao contrário a polinização

cruzada e o diálogo entre jurisdições estão ocorrendo crescentemente.

Com efeito, dois fenômenos simultâneos têm se verificado nas últimas décadas: o

declínio da influência da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre suas

congêneres de outras jurisdições, e o incremento das relações recíprocas dos outros

tribunais do mundo.

Como exemplo citamos a decisão da Suprema Corte da Índia em Rajagopal v. State

of Tamil Nadu (1995)160

. Neste caso, os peticionários pretendiam uma ordem judicial para

que os organismos estatais indianos abstivessem de tentar impedir a publicação da

autobiografia de um criminoso condenado, na qual o autor declarava que autoridades

públicas do país haviam cometido crimes em sua companhia. O Tribunal decidiu que os

agentes públicos não podem se insurgir contra a publicação de uma obra supostamente

difamatória sobre sua atuação oficial, a não ser que consigam provar a falsidade da

acusação e o fato de ter sido feita sem preocupação com a realidade.

De maneira similar, no caso Ferreira v. Levin (1995)161

, o Tribunal Constitucional

da África do Sul lidava com questões de direito à liberdade e de proteção contra a

autoincriminação. Em sua sentença invocou oito julgamentos da Suprema Corte dos

Estados Unidos, entretanto, não considerou qualquer precedente da era mais recente de

“Rehnquist”.

A redução da influência da jurisprudência norte-americana pode ser relacionada

tanto à mudança de paradigma na formação das Cartas Constitucionais que passaram a

adotar o modelo europeu quanto à resistência da Suprema Corte americana em se engajar

no diálogo judicial e admitir a recepção de influências externas.

Dessa maneira, Tribunais que se introduzem intensamente no diálogo internacional

acabam ocupando novos espaços de influência, independentemente da posição de maior ou

menor destaque político-econômico das nações na ordem mundial: é destacadamente o

caso do Tribunal Constitucional da África do Sul e da Suprema Corte de Canadá162

.

160 [1995] 3 L.R.C. 566 apud RAMIRES (2016, p. 107). 161 CCT 5/95, 1996 (1) AS 984 (CC) apud RAMIRES (2016, p. 108) 162 Segundo Slaughter (A new world order, 2004, p. 246), “Canada and South Africa – an old and a new democracy –

with two new constitutional courts (the Canadian Supreme Court has existed since the mid-nineteenth century, but the

new Constitution of Canada was enacted only in 1982, the Constitutional Court South African was created in 1994), each

looking around the world and prospecting opinions from similar constitutional courts, and both disproportionately

influential as a result”.

293

A existência de um denominador comum em questões de Direitos Humanos

Fundamentais, além da “polinização cruzada” de Slaughter, fomentam a nova

característica funcional que deve ser entendida como característica substancial: a repetição

de problemas comuns em diversos países e a busca por soluções em uma tradição

constitucionalista também compartilhada.

As trágicas consequências das experiências antidemocráticas do século XX

evidenciaram a muitas sociedades, nos diversos cantos do mundo, a necessidade de se criar

um núcleo inderrogável de Direitos Humanos Fundamentais protegidos das disposições

das maiorias, levando à recuperação de estruturas originais do constitucionalismo,

readaptadas e desenvolvidas, onde as nações passam a (re) descobrir o que suas tradições

jurídicas próprias tinham em comum.

Na formação desse diálogo, em especial na Europa, o caso da Alemanha merece

especial destaque por se tratar de outro país com arraigada tradição jurídica própria, que

alcançou imensurável projeção internacional. O sistema jurídico comum da Europa

continental e da América Latina é fundado no legado romano-germânico, onde como

ensina Miranda (2009, p. 178), “as decisões do Bundesverfassungsgericht, o Tribunal

Constitucional Federal alemão, são hoje das mais citadas mundo afora, rivalizando em

influência com as proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América”.

Ao contrário dos tribunais do Canadá e da África do Sul ao fazer referência a

precedentes estrangeiros, o Tribunal Constitucional germânico desenvolveu um estilo de

fundamentação que cita basicamente apenas seus próprios precedentes. Contudo, para

fundamentar suas decisões163

, os juízes do tribunal utilizam consultas extensivas às fontes

internacionais e estrangeiras.

Outra experiência interessante para demonstrar o crescente papel dos diálogos

constitucionais pelo mundo é a francesa, que conta com um sistema de justiça

constitucional original, exercido por um Conselho Constitucional, órgão político

especialmente formado para o efeito da Constituição de 1958 e que, a partir de 1971,

163 Por exemplo, em 2002 o BVerfG precisou decidir a respeito do caso de um açougueiro muçulmano turco que abatia

animais à moda halal, para atender às convicções religiosas de sua clientela. Em virtude de que o ritual de abate

alegadamente representava sofrimento adicional aos animais, e especialmente porque era dispensado pela própria

autoridade religiosa islâmica no país, foi questionada a admissibilidade da conduta do açougueiro em relação à Lei de

Proteção aos Animais. A decisão do Tribunal Constitucional, no sentido de que a prática estava protegida pelo direito de

liberdade religiosa e não poderia ser proscrita pelo Estado, contrariou frontalmente expectativas de grupos sociais

ruidosos, tanto de protetores dos animais quanto de setores xenófobos. Nesse contexto, os juízes alemães entenderam

conveniente referir, em sua sentença, que o Tribunal Constitucional da Áustria também já decidira de forma semelhante.

(RAMIRES, 2016, p. 134).

294

assumiu-se como órgão para-jurisdicional ou quase jurisdicional de fiscalização de

constitucionalidade, embora apenas preventiva.

A atuação do Conselho Constitucional, na avaliação de Favoreau (2004, p. 86),

“mesmo com todas as suas limitações, consolidou no país o princípio da

constitucionalidade, segundo a qual toda a autoridade (inclusive a do legislador) está

sujeita à Constituição, com progressos espetaculares no campo da proteção das liberdades

e direitos fundamentais”.

No que se refere à recepção da experiência jurisdicional estrangeira, entretanto, o

Conselho padece de pelo menos duas dificuldades estruturais não encontráveis nas demais

cortes constitucionais do mundo: (a) a fiscalização de constitucionalidade francesa é um

controle a priori que deve ser realizado em um prazo particularmente curto (de um mês em

princípio, e de oito dias se o Governo declara urgência); (b) o órgão, provavelmente

seguindo o exemplo do Conselho de Estado, normalmente tende a motivações muito

concisas, que não são acompanhadas de eventuais votos divergentes (CARPENTIER,

2009, p. 132-133).

Assim, destaca-se que o Conselho Constitucional jamais citou explicitamente em

suas sentenças algum precedente de outro tribunal nacional, mas por outro lado, já

encontrou espaço ao menos uma vez para uma referência expressa a uma decisão do

Tribunal Europeu de Direitos Humanos164

e, em outra oportunidade, para um

pronunciamento do chamado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (atual

Tribunal de Justiça da União Europeia)165

.

Por contraste com seus colegas da Europa Central, os juízes constitucionais

portugueses, em geral, não têm qualquer pudor ou reserva na invocação de julgados

estrangeiros, colocando o Tribunal Constitucional de Portugal, sob este aspecto, na

categoria a que pertencem o seu congênere sul-africano e a Corte Suprema canadense.

A realidade portuguesa é de certa forma, como afirma Orrú (2006, p. 303), “uno dei

punti più avanzati del fenomeno della progressiva affermazione di un cerchio aperto (oltre

i confini nazionali) interpreti della Costituzione”. Os motivos para tal são de duas ordens:

(a) atuam os elementos comuns a outros ordenamentos ocidentais em geral, especialmente

a crescente integração internacional do direito público e a revolução tecnológica e de

164 Decisão nº 2004-505 DC de 19 de novembro de 2004 (Traité établissant une Constitution pour l’Europe), citando o

caso do TEDH Leyla Sahin v. Turkey, App. n. 44774/98, sentença (4ª Seção) de 29/06/2004. 165 Decisão nº 2005-531 DC de 29 de dezembro de 2005 (Loi de finances rectificative pour 2005), citando decisão do

TJCE C-276/97, de 12 de setembro de 2000.

295

informação; (b) o fenômeno é favorecido por fatores particulares e específicos da realidade

histórico-cultural portuguesa.

Como ilustração, há duas importantes decisões, espaçadas em quase sete anos entre

si, concernentes à licitude de provas obtidas por interceptação de conversas telefônicas: o

Acórdão nº407/97, que invoca os casos Olmstead v. United States (1928) e Katz v. United

States (1967), e o Acórdão nº198/04, que faz um apanhado da jurisprudência norte-

americana sobre as teorias dos frutos da árvore envenenada e da regra de exclusão

(RAMIRES, 2016, p. 146-147).

Justamente, nas questões sensíveis do ponto de vista sociopolítico é que o Tribunal

Constitucional lusitano procura se valer de uma comparação com o estado da arte do

tratamento do tema nos principais órgãos jurisdicionais dos países com grau equivalente de

desenvolvimento jurídico-democrático.

Desta forma, a jurisprudência do Tribunal Constitucional português demonstra uma

clara disposição do colegiado de envolver-se no diálogo constitucional travado nas

principais democracias do mundo, em especial nos países centrais da Europa, e de

contribuir para este debate.

O Supremo Tribunal Federal do Brasil assemelha-se ao Tribunal Constitucional de

Portugal no que se refere às extensas invocações de julgados estrangeiros e às intensas

influências que estes exercem sobre as decisões da Corte, manifestando-se no Brasil a

contingência da necessidade de lidar com uma Carta constitucional nova, pródiga na

positivação dos direitos e garantias fundamentais, e com um passado autoritário que se

manifestava nas práticas jurídicas vigentes há décadas.

A Carta da República de 1988 não alterou substancialmente o quadro institucional

do Poder Judiciário doméstico, em especial, não criou um tribunal constitucional. O cume

da hierarquia judiciária continuou pertencendo ao Supremo Tribunal Federal, que também

manteve o poder, não exclusivo, mas último, de interpretação constitucional. Tampouco

houve uma renovação imediata dos quadros do Supremo ou dos demais tribunais, de modo

que os mesmos magistrados nomeados pelo regime militar permaneceram em seus postos,

com a tarefa de interpretar o novo documento político.

Com o desenvolvimento da teoria constitucional brasileira e sua integração no

contexto mundial, além da renovação paulatina dos membros do Supremo Tribunal

Federal, a jurisprudência da mais alta corte brasileira passou a alinhar-se com a

296

preocupação de dar efetividade ao texto constitucional e aos direitos e garantias nela

encerrados.

Nesse processo de autoafirmação da Corte e de definição de suas funções e técnicas

de trabalho, o olhar voltado às práticas estrangeiras foi fundamental, conforme destaca

Ramires (2016, p. 152-153),

na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.130/DF166

, de

grandes consequências para a matéria porque reconheceu a inconstitucionalidade

superveniente da íntegra da Lei de Imprensa (Lei n. 5250, de 09 de fevereiro de

1967), o acórdão do Supremo Tribunal Federal faz menção a mais de uma

dezena de precedentes norte-americanos, a uma mancheia de julgados do

Tribunal Constitucional Alemão, além de sentenças da Câmara dos Lordes do

Reino Unido, do Tribunal Constitucional da Espanha e do Tribunal Europeu de

Direitos Humanos.

Outro caso de grande repercussão foi o Habeas Corpus nº 82.424, no âmbito do

qual se discutiu perante o Supremo167

se um sujeito que publicara livros com conteúdo

discriminatório contra judeus praticara crime de racismo ou agira abrigado pela liberdade

de manifestação de pensamento. O acórdão fez menção a 12 julgados estrangeiros, de

diversos Tribunais.

De modo geral, as referências ao direito estrangeiro pelo Supremo Tribunal

Federal, como ensina Marcelo Figueiredo (2009, p. 57-69),

Tornaram-se fartas, e não parecem obedecer a algum critério ou alguma ordem.

Contudo na profusão de referências a materiais não-nacionais pelo colegiado,

pode-se notar a relativamente pequena influência de algumas ordens jurídicas

das quais era de se esperar uma presença mais marcante.

Em relação aos demais tribunais na América do Sul, devido à proximidade

geográfica o que se esperava era um diálogo mais intenso e constante, também em razão

da facilidade da linguagem, a formação histórica, as identidades jurídicas de tradição

romano-germânica, as tentativas de integração político-jurídica, como o Mercosul e a

inserção em uma mesma ordem supranacional de direitos humanos, com a vigência da

166 ADPF n.130, Rel.Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe 06/11/2009. 167 Mais importante, porém, foi a inserção do parágrafo seguinte na ementa da decisão: “A exemplo do Brasil as

legislações de países organizados sob a égide do Estado Moderno de Direito Democrático igualmente adotam em seu

ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte

Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que

consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos

humanos que simbolizem a prática de racismo”.

297

Convenção Interamericana de Direitos Humanos e o reconhecimento da Corte

Interamericana de Direitos Humanos.

Contudo, a perspectiva desse diálogo judicial foi uma frustração. No entendimento

de Afonso da Silva (2012, p. 522-523), “um claro déficit na integração jurídica na América

do Sul é uma grande ausência de diálogo constitucional transnacional entre tribunais, o que

resulta em uma quase total ausência de migração de ideias constitucionais na região”.

Segundo o autor, pouco se sabe no Brasil sobre o que acontece nos países vizinhos

e o que fazem os seus tribunais, embora com maior frequência se conheça o que escrevem

os autores de países vizinhos, especialmente da Argentina. Apesar de manterem-se

relativamente cientes da atividade do Tribunal Constitucional alemão ou da Suprema Corte

dos Estados Unidos, os juristas brasileiros em geral não têm a menor ideia do que (e como)

se decide na Corte Suprema de Justiça da Argentina, no Tribunal Constitucional do Chile

ou na Corte Constitucional da Colômbia168

.

Percebe-se uma abertura extremamente seletiva, e de certa forma, limitada, à

influência estrangeira na jurisprudência nacional, pela qual o Supremo Tribunal Federal

busca inspiração nos tribunais mais antigos, como o dos Estados Unidos, ou mais

consagrados como o da Alemanha, mas descura de outras experiências mais próximas do

ponto de vista geográfico, histórico ou cultural.

Contudo, mesmo com toda a seletividade, isso não quer dizer que o Supremo

Tribunal Federal não esteja incrementando suas relações recíprocas e engajando-se

crescentemente em diálogos umas com as outras, uma vez que as ausências apresentadas

apenas demonstram que ainda há espaço para um aumento da integração e da troca de

experiências, fomentando o diálogo e a criação de um núcleo inderrogável de Direitos

Humanos Fundamentais na esfera internacional.

De certa forma, a falta de diálogo nas relações jurídicas entre os países vizinhos

geograficamente ao Brasil, se deve ao fato de que nos últimos anos, diversos países da

região têm sofrido revezes na governança democrática, com a ascensão de regimes

políticos populistas e personalistas, como ocorre na Venezuela, Bolívia e Equador. Em

menor grau este fenômeno também pode ser vislumbrado na Argentina.

168 O constitucionalista brasileiro ainda aponta: “nem mesmo por meio das decisões da Corte Interamericana as ideias

migram de um país a outro, como costuma ocorrer na Europa por meio da jurisprudência do Tribunal Europeu de

Direitos Humanos. No Brasil, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos não tem ressonância nas

decisões dos tribunais nacionais”. (SILVA (b), 2012, p.523).

298

Não é acidental que a doxa vigente nesses países seja infensa ao elemento

estrangeiro, especialmente do oriundo das democracias desenvolvidas, conforme aponta

Galeano (1971, p. 123), “Esto se debe a que las imágenes que le da sustancia es un

producto de una arrogancia revolucionaria, que desea romper con el supuesto pasado la

opresión y la explotación impuesta por Europa y los Estados Unidos”.

Assim, os ideólogos dos novos regimes procuram exaltar os valores autóctones ou

telúricos das culturas nacionais, por oposição aos importadores ou cultivadores de uma

cultura estrangeira considerada por estes, decadente, e lutam contra a globalização, que

segundo eles, fazem mais ricos os países ricos e mais pobres os países pobres.

Essa disseminação de uma cultura populista e personalista desenvolve um ideário

de que a massa não consegue alcançar os bens pretendidos porque os países desenvolvidos

exploram os países em desenvolvimento, impedindo-os de conseguir prover todos os

direitos e benesses de um regime democrático.

Na Venezuela, mudou-se a composição do Supremo Tribunal de Justiça como meio

de assegurar a ascendência do governo sobre o colegiado, com a interferência direta do

poder político sobre a magistratura, como a demissão e até mesmo a prisão de juízes por

terem tomado decisões contrárias à vontade do então Presidente da República, casos que

abalaram de forma considerável a percepção de independência do Poder Judiciário neste

país.

Na Bolívia, por sua vez, as reformas implementadas a partir da nova Carta

Constitucional, que incluíram o sufrágio popular para nomear juízes, têm gerado sérias

dúvidas quanto à capacidade do Poder Judiciário de promover julgamentos isentos em

casos politicamente carregados, havendo razões para antecipar que a estrutura judiciária

possa se tornar um instrumento de vingança política, contra os adversários do regime.

Essas limitações impõem aos juízes das principais cortes dessas nações

dificuldades no diálogo judicial, haja vista que em razão da cooptação política ou coação,

abstêm-se, em suas decisões de buscar uma integração na comunidade internacional,

apenas referendando os anseios desses regimes populistas, como forma de legitimar o

arbítrio do poder central.

Há, contudo, exemplos positivos, com experiências virtuosas na América do Sul,

como o Chile, que mesmo após um período de violação em massa aos Direitos

Fundamentais, a partir do golpe de Estado que depôs o Presidente Salvador Allende, em

1973, instalou a ditadura do general Augusto Pinochet. O Chile encetou a abertura política

299

em 1987, e a transição para a democracia ganhou corpo a partir do fim do governo do

general, em 1990.

O Tribunal Constitucional Chileno foi constituído pela reforma constitucional de

1970, anterior, portanto, ao regime militar, que suspendeu as garantias da Constituição de

1925 e dissolveu a Corte. Conforme descreve Torres (2008, p. 209-210),

El funcionamiento del Tribunal Constitucional de Chile ha pasado por tres

etapas: (a) la primera (1970-1973) es el Tribunal de sólo cinco miembros, se

creó la reforma constitucional de 1970 y logrado emitir sólo 17

pronunciamientos antes de ser disuelto en noviembre 1973; (B) la segunda fase

(1981-2005) se inicia con la instalación en 1981 de la Corte de siete miembros

establecidos en el Capítulo VII de la Constitución de 1980, que trabajó

ininterrumpidamente desde entonces, pero con cambios sustanciales en su

composición y tareas desde la reforma constitucional de 2005; (C) el 26 de

febrero de 2006 comienza el mandato de esta reforma y, con ella, la tercera etapa

de la Corte Constitucional, el cual deberá trabajar consta de diez miembros y un

aumento significativo en sus habilidades.

No início da nova fase de atuação do Tribunal Constitucional Chileno, as citações

de elementos estrangeiros ainda eram raras e, quando existentes, limitavam-se a reforçar a

argumentação desenvolvida. Liliana Galdámez Zelada, porém, observa que os anos de

2008 a 2010 registraram o “uso crescente”, em quantidade e influência, desses elementos.

A jurista chilena fez um levantamento quantitativo de referências encontráveis nesse

período, que indica que a jurisprudência estrangeira mais citada nas sentenças é a

espanhola, seguido da alemã, e depois, em grau equivalente, as de França e Itália

(ZELADA, 2012, p. 193-192).

O segundo exemplo sul-americano de integração no constitucionalismo

contemporâneo, e na formação de um diálogo internacional, é a Colômbia, que tem um

regime democrático antigo, mas suas instituições públicas apresentam um funcionamento

precário.

A Corte Constitucional colombiana foi criada pela Constituição de 1991,

vislumbrando tornar-se um dos tribunais mais ativistas do mundo. Sob essa ótica Landau

(2009, p. 57) constata que a referida Corte,

It has acted as a substitute for legislation on various issues and various

opportunities through policy injection to the system, the management of highly

complex and polycentric political issues and the development of a dense

construction of constitutional rights, the Court uses to control the Executive

Branch.

300

Não há dúvida de que o recurso ao diálogo internacional é parte importante nesse

processo de autoafirmação da Corte, haja vista que inspirou-se na tradição do common law,

por exemplo, para estabelecer efeitos vinculantes de seus próprios precedentes, além de

que, assim como no Brasil, o controle de constitucionalidade colombiano é misto, com o

controle abstrato e o concentrado convivendo entre si.

Com vistas nessa ascendência do papel do juiz constitucional, o jurista colombiano

Andrés Fajardo-Arturo considera que seu país tem experimentado uma “mudança de

cultura jurídica”, acompanhando a evolução do direito constitucional em âmbito mundial.

Para a consecução desse objetivo, a integração da aplicação do direito interno ao sistema

interamericano de direitos humanos, em especial, e aquilo que o autor chama de

“homogeneização” do direito constitucional, em geral, desempenham um papel

fundamental (FAJARDO-ARTURO, 2008, p. 313-314).

Desta forma, em maior ou menor grau as Cortes Constitucionais têm buscado

dialogar de forma a cruzar não apenas pensamentos, mas fundamentações para casos

complexos envolvendo a proteção de Direitos Humanos Fundamentais, tanto num sistema

mais antigo como o Europeu e norte-americano, quanto nos sistemas embrionários latino-

americanos.

Esse diálogo servirá de elo entre a criação de um núcleo inderrogável de direitos,

através de uma Constituição Internacional, com um Tribunal Constitucional Internacional,

que tenha mecanismos capazes de investigar, julgar e posteriormente aplicar sanções tanto

aos indivíduos quanto aos Estados que violem esses direitos comuns, não ficando o

Tribunal adstrito a questões a serem relativizadas, como a soberania, em favor de um bem

maior, a proteção da humanidade.

Ao estabelecer esses parâmetros na efetivação dos Direitos Humanos

Fundamentais, busca-se dentre outros aspectos, a prevalência da autoridade do argumento

e não do argumento da autoridade. Assim, países que não acompanharem as evoluções

decorrentes de um constitucionalismo dinâmico, pautado no diálogo internacional, estão

fadados à falência institucional e consequentemente, à quebra da ordem democrática.

Ademais, para ampliar o controle de constitucionalidade a um sistema multinível,

com aplicações domésticas e supranacionais, mais do que a criação de um núcleo

inderrogável de direitos, é importante, através de uma Carta Constitucional Internacional, a

criação de um Tribunal Constitucional Internacional como aplicador do sistema jurídico

multinível.

301

6.4 O Tribunal Constitucional Internacional como aplicador do sistema jurídico

multinível

Ao longo de toda a pesquisa constata-se que a evolução do sistema de proteção dos

Direitos Humanos Fundamentais foi acompanhada pela criação de mecanismos visando à

efetividade desses direitos nas hipóteses de violação tanto por parte dos Estados quanto por

parte dos indivíduos.

A primeira jurisdição verdadeiramente internacional foi instituída em 1945, pelos

Aliados, mais precisamente pelos americanos que criaram o primeiro tribunal

internacional, e ocorreu em função da ideia de se punir os nazistas, manifestado através da

Declaração de Moscou de 1943, sendo o Tribunal Militar Internacional instituído pelo

Acordo de Londres de 1945.

Após a criação desse tribunal de exceção, as Nações Unidas concentraram seus

esforços para estabelecer um tribunal penal internacional, que se manifestava basicamente

em dois aspectos: codificar crimes internacionais e elaborar um projeto de estatuto para

estabelecer um tribunal internacional.

Nesse processo foram elaborados os princípios decorrentes do Tribunal de

Nuremberg visando proteger crimes contra a paz e a segurança da humanidade, contudo,

encontrando fortes resistências devido à polarização ocorrida após o final da Segunda

Guerra até a hecatombe da queda do muro de Berlim.

Enquanto o projeto de um Tribunal Internacional Penal se desenvolvia, foi criada

uma corte com base ad hoc visando punir as atrocidades cometidas na antiga Iugoslávia,

onde seriam processados quatro tipos de crimes: graves violações às Convenções de

Genebra de 1949; violações às leis e costumes da guerra; crimes contra a humanidade e

genocídio, com jurisdição limitada às violações ocorridas no território da antiga Iugoslávia

a partir de 1991.

Baseado nesse tribunal de exceção foi criado o segundo tribunal ad hoc,

encarregado de processar e julgar as graves violações de direito humanitário cometidas em

Ruanda e nos países vizinhos em 1994, onde segundo Jankov (2009, p. 26), “seu Estatuto

assemelha-se ao do TPII, entretanto, os dispositivos relativos aos crimes de guerra por

refletirem o contexto de um conflito armado eminentemente interno, afastam as graves

violações das Convenções de Genebra”.

Nesse sentido, destaca-se a criação do Tribunal Penal Internacional, através da

Conferência de Roma, que em julho de 1998 aprovou o Estatuto do Tribunal, por 120

302

votos favoráveis e 7 contrários, a se destacar China, Estados Unidos, Filipinas, Índia,

Israel, Siri Lanka e Turquia, além de 21 abstenções. Este foi considerado o ápice do

desenvolvimento de uma instância superior de caráter internacional.

Desde 1948, com a adoção da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime

de Genocídio, era prevista a criação de uma Corte Penal Internacional169

. Após 50 anos,

em 1998, com a aprovação do Estatuto, criou-se, ineditamente, uma Corte de caráter

permanente, independente e com jurisdição complementar às Cortes nacionais170

.

Diferentemente dos Tribunais ad hoc criados na década de 1990 para julgar os

crimes cometidos na ex-Iugoslávia e em Ruanda – cuja criação foi baseada em resoluções

do Conselho de Segurança da ONU, para as quais é requerido o consenso de 5 membros

permanentes, com poder de veto, nos termos do art. 27, § 3°, da Carta da ONU –, o

Tribunal Penal Internacional, conforme explica Piovesan (2012, p.83),

Assenta-se no primado da legalidade, mediante uma justiça preestabelecida,

permanente e independente, aplicável igualmente a todos os Estados que a

reconhecem, capaz de assegurar direitos e combater a impunidade,

especialmente a dos mais graves crimes internacionais. Consagra-se o princípio

da universalidade, na medida em que o Estatuto de Roma se aplica

universalmente a todos os Estados-partes, que são iguais perante o Tribunal

Penal, afastando a relação entre “vencedores” e “vencidos”.

Com isso constata-se a complementariedade do Tribunal Penal Internacional, com

o objetivo de efetivar os direitos consagrados nas Cartas Constitucionais, evitando-se

assim a impunidade para os mais graves crimes internacionais, considerando que, por

vezes, na ocorrência destes crimes, as instituições nacionais se revelam falhas ou omissas

na solução das lides.

169 A Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio foi adotada em 9 de dezembro de 1948. Prescreve

ser o genocídio um crime que viola o Direito Internacional, o qual os Estados se comprometem a prevenir e punir. O

artigo 2° da Convenção entende por genocídio “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no

todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: a) assassinato de membros do grupo; b) dano

grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submissão intencional do grupo a condições de existência

que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e e) transferência forçada de crianças de um grupo para outro grupo”. Quanto ao julgamento do crime de genocídio, o

artigo 6° da Convenção estabelece: “as pessoas acusadas de genocídio serão julgadas pelos tribunais competentes do

Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela corte penal internacional competente com relação às Partes

Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição”. Constata-se, assim, que desde 1948 era prevista a criação de uma

Corte Penal Internacional para o julgamento do crime de genocídio. O raciocínio era simples: considerando que o

genocídio era um crime que, por sua gravidade, afrontava a ordem internacional e considerando ainda que, em face de

seu alcance, as instâncias nacionais poderiam não ser capazes de processar e julgar seus perpetradores, seria razoável

atribuir a uma Corte Internacional competência para fazê-lo. (PIOVESAN, 2012, p. 82-83). 170 O Tribunal Penal Internacional é integrado por 18 juízes, com mandato de 9 anos. É composto pelos seguintes órgãos,

nos termos do artigo 34 do Estatuto: a) Presidência (responsável pela administração do Tribunal); b) Câmaras (divididas

em Câmara de Questões Preliminares, Câmara de Primeira Instância e Câmara de Apelações); c) Promotoria (órgão

autônomo do Tribunal, competente para receber as denúncias sobre crimes, examiná-las, investigá-las e propor ação

penal junto ao Tribunal); e d) Secretaria (encarregada de aspectos não judiciais da administração do Tribunal).

303

Desta feita, o Estado continua com a responsabilidade primária, o dever de exercer

sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, atribuindo-se à

comunidade internacional a responsabilidade subsidiária, buscando assim equacionar o

direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz dos princípios da

complementariedade e da cooperação.

De acordo com o artigo 5° do Estatuto de Roma, compete ao Tribunal o julgamento

dos seguintes crimes: a) crime de genocídio (tal como definido no artigo 2° da Convenção

para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948); b) crimes contra a

humanidade (incluindo ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil, sob a

forma de assassinato, extermínio, escravidão, deportação, encarceramento, tortura,

violência sexual, estupro, prostituição, gravidez e esterilização forçadas, desaparecimento

forçado, apartheid, entre outros crimes que atentem gravemente contra a integridade física

ou mental); c) crimes de guerra (violações ao Direito Internacional Humanitário,

especialmente às Convenções de Genebra de 1949); e d) crimes de agressão (ainda

pendentes de definição nos termos do artigo 5°, 2, do Estatuto).

Por se tratar de jurisdição complementar, estabelece o artigo 17 do Estatuto que

dentre os requisitos de admissibilidade deve haver a indisposição do Estado-parte, que

pode ocorrer em razão de demora injustificada ou por falta de imparcialidade no

julgamento; ou sua incapacidade em proceder à investigação e ao julgamento do crime,

que ocorre quando há o colapso total ou substancial do sistema nacional de justiça.

Outro aspecto relevante do Tribunal Penal Internacional refere-se às penas. O

Estatuto estabelece como regra, a pena privativa de liberdade até 30 anos, admitindo

excepcionalmente a prisão perpétua, quando justificada pela extremidade do crime e pelas

circunstâncias pessoais do condenado (artigo 77), podendo ainda, além das sanções penais

aplicáveis, impor sanções de natureza civil, determinando a reparação às vítimas e aos seus

familiares (artigo 75), conjugando desta forma, a justiça retributiva com a reparatória.

Desde a sua criação, mais de 1.700 denúncias de indivíduos e organizações não

governamentais de Direitos Humanos, provenientes de mais de 100 países, haviam sido

recebidas pela Promotoria do Tribunal Penal Internacional, que após análise meticulosa,

concluiu que mais de 80% destas não eram de competência do Tribunal. Destacou-se,

apenas, os casos envolvendo a República Democrática do Congo, em 2004; República de

Uganda, em 2004; e República Centro Africana, em 2005. Ademais, a Promotoria ainda

304

instaurou uma investigação para analisar supostos crimes internacionais ocorridos no

Quênia entre 2007-2008; em 2011 na Líbia e na Costa do Marfim.

Desta forma, existem no plano internacional, ferramentas e mecanismos para

analisar crimes cometidos contra a humanidade, contudo, conforme disposição do próprio

Estatuto, limitado a um determinado rol de crimes, entendidos como graves crimes

internacionais.

Só então é possível chegar a uma das propostas desta pesquisa: a criação de um

Tribunal Constitucional Internacional, pautado num núcleo inderrogável de direitos, cuja

jurisdição seja universal, que possa atuar no sistema multinível, de maneira infra e

supranacional, observando-se a soberania estatal, mas ampliando a possibilidade de

proteção de Direitos Humanos Fundamentais consagrados numa Carta Constitucional

Internacional.

O Estado constitucional, em sentido contemporâneo, é necessariamente um que

recepciona e nutre características construídas em uma tradição que ultrapassa tempos e

fronteiras: limitação de poder, democracia, direitos e garantias fundamentais. Antoine

Garapon (1998, p. 36-40) afirma:

A ideia da lei como expressão da soberania popular viu-se ultrapassada pela

integração do direito numa comunidade política supranacional. O direito já não

se encontra à disposição da vontade popular. A soberania dos representantes do

povo encontra-se limitada por princípios que constam desses diversos textos

(Constituições e declarações internacionais de direitos) cujo enunciado possui

uma forte densidade moral. Os princípios comuns são a base de um novo pacto

entre as nações, de modo que os textos constitucionais tornam-se a fonte em que

os juízes procuram inspiração para os seus juízos, para além do Estado que os

criou.

A criação desse núcleo inderrogável de direitos em âmbito internacional deverá

considerar as diferenças culturais, sociais, étnicas e econômicas, a fim de estabelecer não

apenas uma igualdade formal, mas também material, destacando-se, dentre outros, o

direito à vida, à saúde, à segurança, ao trabalho e à moradia assim como as liberdades de

expressão, pensamento, reunião, entre outros.

Com isso, busca-se não um rol taxativo de direitos pautados apenas nas regras, mas

em princípios, como enunciados normativos, capazes de orientar a uma interpretação

extensiva, pautados na dignidade da pessoa humana, valorizando o homem em detrimento

de pseudointeresses coletivos que trazem prejuízos à humanidade.

305

Com a instauração das Constituições modernas, o fenômeno jurídico insere-se em

dimensões bem mais vastas que aquelas, rigidamente nacionais, do legalismo positivista.

Assim, na visão de Cappelletti (1999, p. 13),

Na “relatividade” dos princípios constitucionais, está também o seu destino de

natural disposição para a universalidade ou, pelo menos, internacionalidade ou

supranacionalidade. Se há um campo em que a sensibilidade, a cultura e a

realidade mesma dos homens foram e vão rapidamente se internacionalizando,

este é, certamente, o campo das normas e dos institutos, dos valores e dos

princípios de caráter constitucional.

A importância da criação de um Tribunal Constitucional Internacional está em

reconhecer que a evolução do constitucionalismo levou a uma mutação que busca não

apenas positivar os direitos, mas efetivá-los. Entretanto, o Tribunal Penal Internacional

conforme previsto no Estatuto de Roma, não tem o arcabouço de solucionar todas as

questões, mas somente aqueles mais relevantes no plano internacional, relacionados a

crimes cometidos contra a humanidade.

A aplicação do direito pelos juízes em decorrência da evolução do

constitucionalismo tem se afastado das condicionantes estritamente locais e ganha um

horizonte mais amplo. Nesse sentido, na visão de Ramires (2016, p. 102-103), “a

verificação de uma comunidade supranacional de princípios jurídicos comuns e superiores

às regras paroquiais seja uma reminiscência do universalismo jusnaturalista, tanto

medieval quanto moderno”.

A relação do constitucionalismo com os ideais racionalistas que o inspiraram,

especialmente a partir da criação da semântica comum possibilita o diálogo judicial

internacional. Destaca-se, todavia, que este interconstitucionalismo contemporâneo não se

confunde com o direito natural.

A justiça constitucional é uma forma de superar o legalismo, além de superar a

arcaica concepção jusnaturalista de um direito absoluto e eterno, sem imposição universais

nem desprezo por particularidades. Ao contrário, é uma construção conjunta de

interpretações das Constituições dos Estados, visando reforçar e justificar a sua aplicação.

Assim, com a criação de um Tribunal Constitucional Internacional, pautado num

núcleo inderrogável de direitos e a partir da atuação de um sistema multinível de proteção,

os Estados passarão a um novo estágio de evolução do constitucionalismo: o da

relativização do conceito de soberania, para um sistema dinâmico que acompanha as

306

necessidades da coletividade na efetivação desses direitos, assim como na proteção contra

os crimes cometidos contra a humanidade.

6.5 Conclusões parciais

A evolução dos Direitos Humanos em âmbito internacional trouxe à tona a

discussão acerca de como os tratados e convenções que versarem acerca desses direitos em

âmbito internacional serão incluídos em âmbito doméstico, no qual cada Estado tem

adotado medidas específicas no que tange à recepção desses instrumentos internacionais.

O Brasil, assim como outras nações, passou por um processo de amadurecimento

das teorias de recepção dos tratados internacionais relacionados aos Direitos Humanos,

com avanços e retrocessos, até a promulgação da Emenda Constitucional n° 45/2004, que

buscou trazer um fim a essa discussão ao introduzir o §3° no artigo 5° da Constituição da

República de 1988, atribuindo status de Emenda Constitucional aos tratados e convenções

internacionais que versem sobre esses direitos.

Essa abertura constitucional permitiu aumentar o leque de proteção dos Direitos

Humanos Fundamentais além da inserção de novas formas de proteção, como o sistema

multinível, exercidos pelos tribunais comuns, pelos tribunais de justiça constitucionais E

pelos tribunais internacionais. Estabeleceu-se assim uma dependência da positivação

desses direitos em instrumentos internacionais e, posteriormente, a inclusão nas Cartas

Constitucionais.

A Constituição da República de 1988 passou por profundas transformações que

visavam além de reestabelecer a democracia após um tenebroso período militar, criar um

núcleo inderrogável de direitos, dispondo de dispositivos específicos, como o art. 5°, além

do art. 60, §4° que os torna inderrogáveis.

Além disso, o Poder Judiciário, na sua evolução histórica, desempenhou um papel

diferenciado, tendencialmente ativo, a fim de concretizar e implementar os direitos e

garantias consagrados na Constituição, por meio de normas e princípios norteadores.

Para efetivar os direitos consagrados na Constituição da República de 1988, apesar

de não haver sido criado um Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Federal avocou

para si a responsabilidade de não só receber os tratados quanto de decidir relativamente à

efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais. É relevante sua atuação, tanto pela

307

garantia dos direitos individuais quanto da efetivação de políticas públicas, que permitam

estabelecer uma ordem social, em que a igualdade seja efetivamente concretizada.

O processo de globalização e internacionalização da jurisprudência constitucional

levou à extensão que ultrapassa os limites domésticos dos entendimentos em sentenças ou

precedentes que versam sobre interpretação constitucional. Desta forma, as decisões

proferidas em âmbito doméstico acerca de questões de aspecto constitucional têm

influência em outras Cortes Constitucionais, em casos complexos de efetividade dos

Direitos Humanos Fundamentais.

Entretanto, para haver essa internacionalização é necessário um diálogo entre as

Cortes constitucionais, fomentando a comunicação e o intercâmbio de dados e

experiências em todas as áreas. Especialmente, os órgãos judiciais, os tribunais

constitucionais, cortes supremas e tribunais internacionais buscam fundamentar suas

decisões em consonância não apenas com o direito doméstico, mas de acordo com que as

demais Cortes Constitucionais têm decido.

Assim, através da troca dessas experiências constitucionais e de suas

jurisprudências, em maior ou menor grau de interlocução, fomentam um movimento

constitucional dinâmico, capaz de atender às necessidades da coletividade, através da

criação de uma Constituição Internacional e de seu respectivo Tribunal Constitucional, a

fim de estabelecer um núcleo inderrogável de direitos, e propiciar a aplicação de um

sistema jurídico multinível.

308

7 CONCLUSÃO

Na arcada da vertente pesquisa estão os direitos fundamentais, sua formação e o

estribo no preceito da dignidade da pessoa humana, bastião acostado no prenúncio dos

princípios fundamentais da República brasileira, insculpido no texto constitucional

vigente. Investigar tais conceitos cientificamente, mesmo que se tenha a maior alteza de

propósitos, torna-se uma nobre e escarpada missão diante do fato de serem incontáveis e

infindáveis os mananciais que sobre ela vertem palavras e ensinamentos.

Tendo em pauta uma base conceitual histórica e com arrimo na metodologia

analítica documental, adotou-se, como premissa inicial, o fato de que a ordem de direitos

fundamentais, para sua efetividade, carece de um feixe de preceitos que deve ser

engendrado por um sistema multinível de proteção, descortinando sua real necessidade na

ordem jurídica de uma nação.

Alinha-se, por tal, no contexto da tentativa de resgatar, ainda que em breves linhas,

alguns dos principais parâmetros delineadores de sua conceituação. E essa partida se

realizou ao constatar-se que o problema está na matriz que engloba o termo dignidade,

tendo esta por assento o entorno de um núcleo valorativo que busca inserir o ser humano

no vértice para o qual convergem o respeito e sua própria existência. Isso demonstra que o

simples fato de haver o indivíduo, firmada está sua dignidade, independentemente de

outros reconhecimentos.

De uma proposta sucinta, porém quase absoluta, o termo ganha refino ao longo dos

anos da civilização e atinge um dos momentos mais marcantes com a envergadura

proporcionada pelo Cristianismo, ao associar a dignidade a um contexto justificador da

existência humana, logo, de observância obrigatória e necessária a fim de resguardar a

própria humanidade.

Contudo, na esteira de estabelecer um corte histórico mais condensado, adotou-se a

Magna Carta de 1215 como um instrumento balizador da positivação dos direitos,

limitação do poder estatal, além de estabelecer premissas visando a valorização e a

proteção do homem.

Da escola do pensamento Kantiano a dignidade é brindada como um dos

imperativos categóricos no qual, do raciocínio existencialista atinge-se a autonomia de

seus valores, assentes na premissa da ética do ser humano, fazendo compreendê-lo como

309

um ser distinto dos demais viventes pela razão de possuir uma dignidade atrelada à

racionalidade.

Nesse ínterim, verifica-se a evolução e a proteção dos Direitos Humanos

Fundamentais no sistema latino-americano através da análise da evolução histórico

constitucional das Cartas chilena, colombiana, argentina e boliviana, que a seu turno em

maior ou menor grau, buscam criar um núcleo inderrogável de direitos, observando-se as

diferenças sociais, culturais, étnicas e econômicas na formação de um sistema

plurinacional de proteção desses direitos.

A dignidade como um valor postado é, enfim, objeto de inserção e reconhecimento

nas Declarações mundiais que nasceram com a missão de declarar o pronto respeito que

deve o Estado prestar ao indivíduo, este detentor de direitos e garantias fundamentais. Esse

é, sem dúvida, um dos primeiros e mais relevantes marcos decorrentes da inclusão da

dignidade da pessoa humana como um princípio geral a ser inserido nas diversas culturas

existentes.

Sua positivação e o trato da matéria nos quadrantes do Direito Constitucional

operou-se de modo a destinar a ela um tratamento diferenciado, tendo em vista as

implicâncias decorrentes de sua observância e aplicabilidade. Diante disso, os

ordenamentos jurídicos foram profundamente afetados de modo a inserir-se um modelo de

interpretação e integração das normas jurídicas de tal modo que passou a existir uma

unidade de pensamentos em torno da dignidade humana.

A estruturação dos direitos fundamentais na seara constitucional ocorreu como

decorrência do reconhecimento do valor da dignidade humana. Ao postá-la como

atualmente está, no prelúdio da Carta Política, o legislador içou o indivíduo ao grau maior

de razão existencial do Estado brasileiro. E o fez também com o intuito de fixar a

dignidade como um ponto de partida para se aplicar os demais direitos fundamentais.

Tais direitos delimitam o perímetro do que é lícito ou não para a atividade estatal.

Não é de hoje a lição de que somente poderá haver intervenção legítima do Estado onde

não se afrontarem os direitos individuais. Para tanto, como forma de restaurar o equilíbrio,

uma vez pendido, estipulam-se também nas bases constitucionais as garantias

fundamentais, medidas que caminham na mesma capitulação com os direitos

fundamentais.

A Carta Política de 1988 trouxe um amplo arco de garantias que se conectam à

atividade jurisdicional. E tal ocorreu por conta da necessidade de garantir a possibilidade

310

da interferência do Poder Judiciário sempre que chamado para tutelar os direitos

fundamentais vilipendiados. Como consequência, impôs-se uma necessária adaptação da

interpretação e aplicação da legislação ordinária, material e processual, aos preceitos

maiores do texto constitucional. Descortina-se com a Carta uma nova ordem pautada num

sistema garantista.

Em vista desse quadro não há como negar a necessidade de se impor limites à

atuação estatal, visando à proteção dos direitos fundamentais em todos os níveis e

segmentos. Debruçando os olhares na metodologia adotada pela Carta Magna, infere-se

que os direitos fundamentais previstos não são exclusivos; permite-se ainda a inclusão de

outros implicitamente considerados e passíveis de serem reconhecidos pela ordem

constitucional. Com isso se concebe a capacidade de adequação da estrutura jurídica à

realidade social, esta mutante.

Não pairam dúvidas de que o núcleo estruturante dessa ordem processual garantista

reside no princípio da dignidade da pessoa humana. Estando abrigado no texto

constitucional como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, esse

princípio implica que toda atuação do Poder Público deve ser avaliada tendo em vista o

respeito ao indivíduo, sob o risco de ser transgredida a dignidade da pessoa humana.

Aviltá-la releva o descompromisso estatal com a ordem jurídica de direitos fundamentais

e, por consequência, tem-se a necessária estampa de uma ordem que contenha

instrumentais aptos a lhes dar efetividade.

O princípio da dignidade da pessoa humana submete o Estado a uma ordem de

valores, positivando determinado sistema axiológico. Nesse diapasão infere-se que a

pessoa é o mais nobre valor da democracia, o feixe das atenções do Estado, o qual deve

agir comprometido em sustentar, sob quaisquer penas, a integridade do indivíduo.

A afirmação dos direitos específicos do homem é a consequência do preceito da

dignidade da pessoa humana, esta que é o coração e o alicerce dos direitos fundamentais.

A dignidade humana atua, portanto, como o preceito orientador da interpretação

constitucional, promovendo a integração do ordenamento jurídico. Torna-se, todavia,

incontestável para a ordem constitucional a observância à preservação e aplicação dos

direitos fundamentais em todas as suas dimensões.

Desta feita, a internacionalização dos Direitos Humanos insurge como uma fonte

catalizadora buscando aproximar a moral da norma, e estabelecer limites à atuação do

Estado através da criação de pactos, tratados e instrumentos internacionais visando a

311

criação de um núcleo duro, inderrogável, através do qual os agentes públicos devem pautar

sua atuação, a fim de que tais preceitos fundamentais não sejam violados.

De toda forma, ainda foram analisadas a atuação do Supremo Tribunal Federal e as

mudanças introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro que propiciaram uma alteração

interpretativa no que tange à recepção de tratados internacionais que versam sobre direitos

humanos com status de emenda constitucional.

Ademais, as divergências que acompanham a “jurisdição constitucional” culminam

num movimento pendular que se renova constantemente, e que com base nesse modelo,

demonstra que o Poder Judiciário desempenha um papel diferenciado, com tendência ativa,

a fim de concretizar e efetivar os direitos e garantias consagrados na Carta Constitucional,

por meio de normas ou de princípios norteadores.

Essa postura do Poder Judiciário afronta as teorias de separação dos poderes, haja

vista que envolve certo idealismo democrático, com posturas, por vezes, equivocadamente

ativistas, sem estabelecer a concepção democrática que está sendo defendida.

Desta forma, a ampliação do espaço idealizado tradicionalmente ao Poder

Judiciário e aos tribunais constitucionais, na tutela da Constituição e sua supremacia, vão

além das disposições do legislador negativo. No entanto, deve ater-se à abertura semântica

das Constituições, através de sua contemplação principiológica dos Direitos Humanos, da

supremacia da Carta Constitucional, da vinculação do Poder Legislativo aos Direitos

Fundamentais consagrados, tanto em âmbito doméstico quanto internacional, e ainda para

retirar do cenário político a efetivação desses direitos, evitando sua sujeição a interesses

pessoais.

A proteção aos Direitos Humanos, desta forma, conta com uma relação de

complementariedade entre os sistemas interno e internacional, cabendo àqueles a

responsabilidade primária de assegurar tais direitos e a este a atuação de modo

complementar, quando a proteção nacional se revelar inexistente ou ineficaz. Ademais, as

violações a este direitos podem ocorrer tanto por indivíduos quanto pelos próprios Estados,

que afirmam os direitos em suas Cartas Constitucionais, mas ou não o reconhecem ou não

o efetivam.

Destaca-se, desse modo, um movimento dialético, e a relevância da existência de

dois sistemas de proteção, que inspiram e influenciam um ao outro, a fim de resguardar a

proteção dos Direitos Humanos Fundamentais, demonstrando que tanto o sistema interno

quanto o internacional buscam atingir o mesmo objetivo, uma vez que compartilham

312

fundamento idêntico. Entretanto, o desafio está no diálogo necessário entre os Estados para

criar uma Constituição Internacional capaz de abranger direitos tanto de ordem interna

quanto internacional.

Mesmo com a existência e atuação tanto dos sistemas regionais quanto do sistema

global de proteção dos direitos humanos, há que se estabelecer um diálogo entre as Cortes

Constitucionais de cada Estado a fim de criar um núcleo inderrogável de direitos capaz de

observar as diferenças culturais, sociais, étnicas e econômicas, culminando com a criação

de uma Constituição Internacional.

Ademais, mesmo relativizando o conceito de soberania, e criando o referido

instrumento internacional, ainda restaria a dificuldade na implementação desses direitos,

haja vista que os Estados além de reconhecerem a validade desse instrumento, ainda

precisam acatar as decisões impostas por um Tribunal Constitucional, dando assim

efetividade às sanções impostas.

Reconhece-se que tanto em âmbito global quanto regional existem os respectivos

tribunais que buscam analisar os casos, quando são provocados, e emitem decisões visando

aplicar sanções tanto aos indivíduos quanto aos Estados que porventura violem Direitos

Humanos Fundamentais. Contudo, na maioria das vezes não há eficácia nesta conduta, seja

pela falta de reconhecimento de competência dos respectivos ou por ignorarem as sanções

por não haver punições mais severas.

No início desta pesquisa cumpre-se uma entusiástica missão de apresentar alguns

dos principais aspectos que permeiam os direitos fundamentais, à luz de sua formação e

associação ao preceito da dignidade da pessoa humana, defendendo o emérito ideal de que

a positivação dos direitos fundamentais em Direito Constitucional descortina a

imprescindível segurança para que, na relação entre o Estado e o indivíduo, a justiça social

seja elevada à sua completude. Para tanto, logicamente, necessário estabelecer um sistema

multiproteção ou multinível.

Em suma, para que seja possível falar em um constitucionalismo dinâmico é

preciso fomentar o diálogo entre as Cortes Constitucionais, buscando estabelecer um

núcleo inderrogável de direitos positivados através de uma Carta Constitucional

Internacional e que através de um Tribunal Constitucional Internacional possa efetivar

esses direitos.

O modelo europeu de proteção dos Direitos Humanos, por ser mais antigo,

apresenta maior substrato e instrumentos capazes de efetivar esses direitos. Contudo, na

313

América do Sul, conforme explanado ao longo da pesquisa, em decorrência, dentre outros

motivos, da ascensão de sistemas populistas, o diálogo constitucional se torna mais difícil

em razão de não aceitar a aplicação de entendimentos estrangeiros em suas Cortes.

A presente pesquisa busca, através do diálogo judicial internacional, estabelecer

critérios comuns, que culminem na elaboração da respectiva Carta Constitucional e que

permita criar um órgão aplicador desses direitos através do Tribunal Constitucional

Internacional, uma vez que a maioria dos conflitos domésticos principiológicos tem

identidade comum, e, por conseguinte, podem buscar soluções comuns.

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