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1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Laura Elza Mack Uma investigação da temporalidade a partir de Winnicott MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA SÃO PAULO 2011

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Laura Elza Mack

Uma investigação da temporalidade a partir de Winnicott

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

SÃO PAULO

2011

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Laura Elza Mack

Uma investigação da temporalidade a partir de Winnicott

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica sob a orientação do Prof. Doutor Alfredo Naffah Neto.

SÃO PAULO

2011

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Banca Examinadora

_____________________

_____________________

_____________________

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Em memória de meu pai,

Para todos aqueles que não puderam criar um tempo próprio.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicicialmente, ao CNPQ Capes pela bolsa concedida, sem a qual este

trabalho não existiria.

Agradeço ao Professor Prof. Dr. Renato Mezan pela ajuda ao longo deste trabalho.

Agradeço a Prof. Dra. Elsa Oliveira Dias por ceder seu tempo para conversar sobre

o presente trabalho e dar-me dicas valiosas.

Agradeço a Prof. Dra. Ariadne Moraes e a Prof. Dra. Edna Kahhale por aceitarem

meu convite para membro suplente da banca.

Agradeço especialmente ao Prof. Dr. Leopoldo Fulgencio e ao Prof. Dr. Gilberto

Safra, pela leitura atenta e seriedade com a qual se dedicaram à qualificação do

presente trabalho e por gentilmente aceitarem participar em minha banca.

Agradeço meu orientador Prof. Dr. Alfredo Naffah Neto pelo entusiasmo e apoio

desde o início.

Agradeço a todos colegas do mestrado, especialmente Leonardo Luiz, Marina

Oliveira, Vera Canhoni, Erlon Campos, Cris Farah, Debora Noronha, Daniela Guizzo,

Andrea Nozek; e aos amigos, Juliana Farah, Daniel Rehfeld, Alice Bei, Nagisa

Tavares, Leonardo Niro, Bruno Conte, Eduardo e Gabriela Nasser, pelas leituras,

conversas e contribuições cada um a sua maneira, obrigada, vocês ajudaram a

manter vivo o presente trabalho.

Agradeço aos amigos de longa data pelas memórias, pela presença e

principalmente pela duração de nossa amizade ao longo destes 25 anos: Andrea

Castanho, Bruno Guida, Carla Abbud, Joana Reiss, Ligia Oliveira, Mariana

Suchodolski, Simone Bazarian, Renata Fóz, Roberta Mendonça e Roberta Ursaia.

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Agradeço a minha terapeuta por sustentar a situação no tempo ao longo destes

anos de análise.

Agradeço ao meu irmão Daniel, sua mulher Jen e meus sobrinhos por existirem.

Agradeço a Rita, Carlos Alberto, Gustavo e Deborah pelo acolhimento e carinho.

Agradeço à minha mãe, Margaret, por ser mãe e minha. Agradeço ela também pela

leitura atenta e auxílio na versão final deste trabalho, obrigada.

Agradeço, finalmente e especialmente, ao meu marido Bruno, por ser quem ele é.

Sem seu incentivo não teria sido possível dar continuidade a este trabalho.

Agradeço também pelas leituras, contribruições e conversas, afinal – a vontade de

escrever este trabalho surgiu de uma conversa que tivemos sobre o tempo.

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RESUMO

Na teoria de D. W. Winnicott percebemos que nada é dado ao sujeito e até mesmo o

tempo é uma conquista do processo de amadurecimento. Isto revela um aspecto

bastante particular da concepção de tempo em Winnicott, já que se trata de um

tempo “vivo” e necessário à existência. E aqui, é preciso apreender a palavra vivo

em uma concepção especificamente winnicottiana, pois não se trata, como é o caso

do tempo cronológico, de um tempo apresentado como uma dimensão a priori da

realidade, como algo que pré existe ao sujeito. Com efeito, este tempo “vivo” deve

ser constituído e, neste sentido, cabe ao bebê constituir o tempo necessário à

própria existência. Pretendemos, portanto, no presente trabalho, investigar as

experiências de temporalização (como modos de permanência do ser) do bebê que,

sujeito aos cuidados maternos, é capaz de experimentar um tempo contínuo e assim

criar seus tempos, a saber, o tempo subjetivo, o transicional e o objetivo. Nestes

tempos o sujeito experimentará a continuidade de ser, fato que, para Winnicott,

equivale à manutenção da saúde.

Palavras chave: Tempo, Subjetividade, Transicionalidade, Objetividade, Integração

,

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ABSTRACT

Nothing can be taken for granted in Winnicott’s view, not even time:

each new individual must create his/her own concept of time. This awareness allows

us to reach a deeper understanding of the significance of time for the

English psychoanalyst. If time is created by individuals as a result of

their special relationship with their mothers, then we cannot understand

time as something that exists beforehand, like chronological time.

Each individual is faced with the challenge of fashioning a time to live in. This

dissertation is interested in researching the experiences of temporality of the baby.

Under the care of a good enough mother, each child is able to experience time in its

continuity, and therefore create the subjective, transitional and objective time

necessary to keep on being.

Key words: Time, Subjectivity, Transitionality, Objectivity, Integration

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO99999999999999999999999999. 11

I. Temporalidade nas escolas inglesa e francesa de psicanálise............ 17

II. Experiências de continuidade de ser no tempo.................................... 19

III.Síntese da bibliografia fundamental....................................................... 23

IV.Material & Métodos e análise dos aspectos éticos................................ 25

CAPÍTULO I: O TEMPO SUBJETIVO OU O TEMPO DA EXPERIÊNCIA... 27

1.1. Nota sobre a ruptura do senso de continuidade de ser ................. 27

1.2. Elementos fundamentais para o estabelecimento do tempo

subjetivo ou tempo da experiência: previsibilidade e confiabilidade do

ambiente................................................................................................

29

1.2.1. O tempo vivido na continuidade da presença da mãe ou

tempo da experiência...... ...............................................................

34

1.2.2. O tempo e elemento feminino puro ou tempo de espera....... 38

1.2.3. O tempo e integração............................................................. 41

1.2.4. O tempo e memória................................................................ 47

CAPÍTULO II: TEMPO TRANSICIONAL OU TEMPO EM QUE O BEBÊ É

CAPAZ DE MANTER VIVA A MEMÓRIA DA PRESENÇA DA MÃE...........

51

2.1. A temporalidade transicional do brincar.......................................... 54

2.2. Nota sobre a incapacidade de brincar............................................ 58

CAPÍTULO III: O TEMPO OBJETIVO E O FALSO-SELF E O TEMPO

NA CLÍNICA..................................................................................................

65

3.1. O tempo objetivo e o falso-self........................................................ 65

3.2. Os tipos de transferência e o manejo clínico: questões sobre a

temporalidade e a interpretação............................................................

69

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................. 80

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O sino dobra

Medindo um tempo que não é nosso, impelido pela vaga-

[rosa

Pulsação da terra, um tempo

Mais antigo que o tempo dos cronômetros, mais antigo

Que o tempo contado pelas aflitas e aborrecidas mulheres

Em vigília, calculando o futuro

Tentando esfiapar, desmanchar, deslindar

E o passado ao futuro cerzir num remendo inconsútil,

Entre a meia-noite e a aurora, quando o passado é apenas

[fraude

E o futuro ao futuro se recusa, antes que a manhã desperte,

Quando o tempo se detém e o tempo jamais se extingue.

E a pulsação da terra, desde o princípio em tudo viva,

Tange

O sino.

(T. S. Eliot)

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INTRODUÇÃO

“A loucura, aqui, significa simplesmente uma ruptura do que possa configurar, na ocasião, uma continuidade pessoal de existência.”1

Admitindo, inicialmente, a importância e, principalmente, a relevância da

temática do tempo para a psicanálise em geral, como fazem Sylvie Le Poulichet em

“O tempo na psicanálise”2 e Jô Gondar em “Os tempos de Freud”3 e “Winnicott,

Bergson, Lacan: tempo e psicanálise”4, nosso trabalho pretende ser uma

investigação acerca da temporalidade a partir de D. W. Winnicott. Para isto,

utilizaremos à princípio, de maneira muito ampla, a diferenciação entre tempo,

temporalidade e temporalização, proposta por Laplanche.5 Para ele, o tempo se

refere a noção física ou cosmoslógica; a temporalidade, à subjetividade e faz a

articulação, em amplo sentido, entre indivíduo e vida; e finalmente, a

temporalização, estaria vinculada ao movimento pelo qual o indivíduo cria seu

próprio tempo. Como nos mostra Pelbart, para Laplanche “a psicanálise só tem algo

de interessante a dizer sobre o tempo no plano da temporalização”6. Neste sentido,

como poderíamos ler a epígrafe supracitada de Winnicott? Não poderíamos

entender a loucura como a descontinuidade pessoal da existência, como a falha da

criação de um tempo pessoal? Não estaria a loucura intimamente ligada à questão

da temporalização? Em outras palavras: seria a normalidade a possibilidade de

experimentar a continuidade no tempo e do tempo?

A continuidade do ser no tempo deve permanecer ao longo da vida até a

morte. Esta continuidade no tempo acompanha o sujeito. Propomos três modos de

continuidade: 1) a continuidade do tempo subjetivo; 2) a continuidade do tempo

1 Winnicott, D. W. : O Brincar e a realidade, tradução J. O. de Aguiar Abreu e Vanede Nobre, Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro, 1975, p. 136. 2 Le Poulichet, S.: O tempo na Psicanálise. Jorge Zahar Editor; Rio de Janeiro, 1996. 3 Gondar, J. : Os tempos de Freud. Revinter; Rio de Janeiro, 1995. 4 Gondar, J. : Winnicott, Bergson, Lacan: tempo e psicanálise, Ágora, vol. 9 no.1, Rio de Janeiro, Jan/ Jun 2006. 5 Laplanche, J.: “Temporalité et traduction. Pour une remise au travail de la philosophie du temps.” In Psychanalyse à l’Université, 14, 53, 1989, Paris, pp. 17-33 citado por Pelbart, P. P. : “Tempo e psicanálise” In A vertigem por um fio; Iluminuras, São Paulo, 2000. 6 Idem, p. 131. Se refere ao movimento presente→passado→futuro como movimento originário da temporalização.

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compartilhado no campo dos fenômenos transicionais; e 3) a continuidade do tempo

objetivamente percebido.

Poderíamos, portanto, a partir daí pensar a “psicopatologia” winnicottiana

tendo como parâmetro a noção de temporalização, referida à relação do indivíduo

com o mundo em termos de sua continuidade de ser e da afirmação do self7. Na

“saúde” o indivíduo teria a possibilidade de experenciar a continuidade de ser ao

longo do tempo (“keep on being”); enquanto que nos estados chamados

“patológicos” haveriam tipos de rupturas desta continuidade (“breakdown”),

caracterizando assim a doença8. A este respeito Dias pontua com pertinência: “Ao

longo da vida até a morte, a continuidade de ser permanecerá como o problema

fundamental; sua preservação equivale à saúde”9. A expressão empírica disto, dado

que ninguém reclama de sua continuidade de ser, é: “Não consigo viver”, “não sei

onde estou”, “não vejo saída”, “cheguei ao fim da linha” e finalmente, “quero morrer!”.

Uma importante questão a ser destacada neste momento, é que esta continuidade

não pode ser assegurada pelo próprio bebê; é o ambiente previsível e confiável que

a garante. Portanto, é da condição de dependência do bebê, que surgem suas

necessidades e problemas fundamentais, tais como: nascer, sentir-se real, ter

contato com a realidade, integrar-se no tempo e no espaço, criar a distinção entre

realidade interna e externa, criar a capacidade do uso de objetos, e ser si-mesmo10.

Para todas estas tarefas o bebê “precisa de uma presença segura da mãe que

inspire fé em si-mesmo e no mundo”.11 A ausência ou a quebra das condições de

confiabilidade resultam necessariamente em trauma, o que equivale à ruptura da

continuidade de ser.

7 O leitor perceberá que neste trabalho são utilizados os termos si-mesmo e self como sinônimos. Correndo o risco de sermos julgados como pouco criteriosos, tomamos a liberdade de utilizar os dois termos sem privilegiar, nem escolher um deles, pois cada um dos comentadores utilizados se refere ao self de um modo. Gilberto Safra utiliza o termo self sem traduzí-lo, enquanto que Elsa Dias utiliza a tradução si-mesmo. 8 A ruptura em cada um dos tempos resultaria em patologias distintas. 9 Dias, E. O. : A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Imago; Rio de Janeiro, 2003, p. 158. 10 A discussão acerca da continuidade de ser no tempo, ou seja, que persiste no decorrer do passar

do tempo, será melhor abordada a partir da distinção da continuidade do modo de relação que caracteriza os objetos subjetivos, objetos transicionais e objetivamente percebidos. 11 Loparic, Z.: “Winnicott uma psicanálise não edipiana.” In Percurso; vol. 9, n. 17, 1996.

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No início, não há tempo (nem mesmo subjetivo) e tudo é para sempre. O ser

emerge do não-ser, de modo que a falha ambiental que quebra a linha da vida é

vivida como aniquiliação definitiva. Um pouco mais a frente no processo de

amadurecimento, bem próximo aos fenômenos transicionais, a mãe que desaparece

por um x de tempo maior que a tolerância da criança suporta (tolerância aqui

equivale a capacidade da criança de manter a presença, existência, da mãe mesmo

na sua ausência física), corresponde à morte (definitiva) da mãe e portanto dela (a

criança) também. Qualquer intrusão ou falha da adaptação causa uma reação no

lactente e esta reação quebra sua continuidade de ser pois enquanto estiver

reagindo o bebê não estará sendo.12

Para que exista a possibilidade do sujeito experimentar a continuidade no

tempo foi necessário que houvesse uma outra continuidade, ou seja, àquela relativa

aos cuidados ambientais num estágio de dependência absoluta. As experiências

vividas durante esta fase são experiências que garantem uma sensação de

confiança, já que o bebê pôde permanecer relaxado, tranquilo e seguro em função

da previsibilidade dos cuidados recebidos. Deste estado relaxado pode surgir sua

ação criativa – o gesto espontâneo. Na sua capacidade adaptativa a mãe atribui

importância e significado à manifestação criativa do infante garantindo assim ao

bebê a possibilidade de experimentar a confiança no próprio impulso criativo. Desta

experiência resultaria o senso de existir. Isto se dá, em grande parte, porque a

continuidade destes cuidados possibilita a integração do ego,13 indiferenciado, do

bebê numa unidade. Poderíamos pensar que a continuidade dos cuidados maternos

ao longo do tempo é fundamental para toda possibilidade criativa do ser humano –

inclusive para a criação de um tempo próprio: “Aqui a palavra chave é integração

que comporta quase todas as tarefas do desenvolvimento. A integração leva o bebê

ao status unitário...”14.

12 Dias, E. O.: O caráter temporal do trauma e os sentidos de trauma em Winnicott, Winnicott E-prints, Vol. 1 número 2, série 2, 2006. 13 Winnicott apresenta dois sentidos para ego: como uma tendência inata à integração ou como uma unidade. Deste modo, entendemos ego como o resultado dos processos de integração. 14 Winnicott, D. W.: Home is where we start from. W.W. Norton & Company; New York-London, 1986, p. 28. Tradução da autora.

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14

Como pudemos perceber através desta breve exposição é do estágio de

dependência absoluta que surgem três dimensões temporais para o sujeito15. É do

cuidado contínuo, expresso pela presença da mãe atenta ao ritmo de seu bebê, que

o sujeito pode ser continuidade no tempo nos tempos subjetivo, transicional e

objetivo.

Num segundo estágio, podemos pensar que a fidedignidade no fator

ambiental garante também ao bebê uma experiência paradoxal, a de criar algo que

estava lá para ser criado. No início, a capacidade criativa necessita do apoio da

mãe, de modo que sua existência possibilite que o bebê crie um substituto a ela – o

objeto transicional. A presença da mãe é constituinte para o objeto transicional, de

modo que ele só tem valor com sua presença – é a mãe que dá sentido ao objeto

transicional, é necessário que ela permaneça lá já que o sentimento de que a mãe

existe não dura para sempre (dura um certo tempo), e o bebê não suportará que sua

ausência seja muito prolongada. Se isto ocorrer, o bebê poderá ficar traumatizado,

pois poderá haver ruptura na continuidade da sua existência.16 É a presença efetiva

da mãe ou cuidadora que garante no início a continuidade da existência.

Destacamos aqui a importância da memória neste processo: desde os primórdios de

nossa existência todas as experiências são “guardadas” e nada é perdido, deste

modo poderíamos então dizer que é a memória da presença que também garante a

continuidade do ser, pois ela é a memória viva da presença. Neste sentido, quando

a mãe oferece seus cuidados ao longo do tempo, garante ao bebê uma experiência

de confiança a tal ponto que o bebê pode se interessar em outras coisas que não a

mãe e, assim, “perdê-la”, pois já “memorizou” os cuidados recebidos. Neste

momento o bebê passa a usar símbolos da sua relação com a mãe para se

relacionar com o mundo, o objeto transicional seria o primeiro. Vale lembrar a

particularidade deste símbolo que é o objeto transicional, ele depende da existência

do objeto (mãe) para ter validade, de modo que não é simbólico por natureza. Ele

de fato é e não é a mãe, é transicional.17

15 Considerando a importância do estágio de dependência absoluta para o estudo da continuidade de ser para o infante, estudaremos este assunto mais detalhadamente no capítulo intitulado: Tempo subjetivo. 16 Vale lembrar que para Winnicott trauma equivale a ruptura na continuidade do ser, o que é diferente de feridas no eu. 17 Discussão a ser continuada no capítulo 2.

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15

Sabemos que a teoria winnicottiana credita bastante importância aos

momentos inicias da vida dos seres humanos, ou seja, é nos primórdios da relação

mãe-bebê que se desenvolverá, ou não, um padrão saudável de desenvolvimento

daquela pessoa. Mas o que é saúde para o autor inglês? Esta é uma pergunta cara

ao autor em questão pois percebemos sua teorização gravitando, muitas vezes, ao

redor deste tema. No livro Tudo Começa em Casa no capítulo intitulado: “O conceito

do indivíduo saudável”, Winnicott define saúde como uma maturidade que

corresponde à maturidade equivalente à idade do indivíduo. Argumenta que o

desenvolvimento prematuro do ego bem como a consciência de si prematura são tão

pouco saudáveis como a consciência atrasada. É como se o psicanalista inglês nos

dissesse: tudo tem seu tempo e respeitar isto resulta em saúde.

Entendemos, também com Winnicott, que a “continuidade de ser significa

saúde”18, deste modo, saúde equivale, dito de maneira ampla, à capacidade que o

sujeito continuar a ser ao longo do tempo e de sua própria criatividade. A

continuidade de ser ao longo do tempo depende da relação do bebê com o

ambiente, e esta relação sofre mudanças no decorrer do tempo. No início da vida o

bebê deve se relacionar apenas com objetos subjetivamente percebidos, depois de

um tempo vivido neste modo, o bebê criará a ilusão de contato através do objeto

transicional, com o tempo o bebê passará a ampliar os fenômenos transicionais sem

nunca perder contato com o modo criativo de se relacionar com o mundo. Neste

momento, após a fase do EU SOU, podemos dizer que a criança lida com objetos

reais, ou seja, com objetos passíveis de serem tão odiados quanto amados. Cada

uma destas fases equivale a um modo de ser no tempo, a um modo de experimentar

o tempo; a estes modos designamos os nomes – subjetivo, transicional e objetivo.

A provisão dos cuidados ambientais possibilita a integração do eu.19 Se houve

ruptura da possibilidade de continuar sendo – vivida como invasão precoce ou falta

demasiada dos cuidados ambientais – a integração do si-mesmo será afetada. As

consequências da ruptura da continuidade de ser serão diferentes dependendo do

momento em que ocorrem. Caracterizando, portanto, a gravidade da doença em

18 Winnicott, D. W.:op cit., 1986, p. 22. Tradução da autora. 19 Ego é, para Winnicott, ”... a parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar numa unidade.”, que é diferente de Self, de eu e de pessoa inteira.

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16

caráter temporal – quanto mais cedo, mais grave, pois a integração do eu ainda

estaria num estágio inicial. Se o bebê já tem um self minimamente estabelecido no

momento do trauma, o self se protege e responde ao ambiente criando uma defesa

em relação ao mesmo, resguardando, assim, seu self verdadeiro e espontâneo de

futuras ameaças. Este retraimento do self interrompe o processo de

desenvolvimento do bebê e faz com que ele “pare” no tempo, congele na situação

traumática, interrompra o processo de amadurecimento, já que ele deixa de ter

experiências.20 Deste modo o núcleo criativo do self deixa de experimentar a vida

em sua própria temporalidade e criatividade. Nestes casos estariam contemplados

os pacientes de tipo falso-self patológico. Estes são os estados “patológicos”,

marcados pela ruptura ao invés da continuidade, vejamos como Winnicottt expõe

estas ideias em Playing and Reality:

Talvez valha a pena tentar formular isto de modo que dê ao fator tempo seu devido peso. O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe se ausenta por mais que x minutos, a imago se esvai, e junto com ela a capacidade do bebê de usar o símbolo da união. O bebê está angústiado, mas esta angustia é logo reparada porque a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos o bebê não mudou. Mas em x + y + z minutos o bebê ficou traumatizado. O trauma implica que o bebê teve uma experiência de ruptura na continuidade da vida, de modo que certas defesas primitivas organizam-se agora a fim de defendê-lo contra a repetição da “angústia impensável” ou contra o retorno do estado confusional agudo pertencente à desintegração da recém surgida estrutura do ego.21

I. Percebemos, portanto, a teoria winnicottiana não apenas inserida, mas

intimamente referida à temporalização do sujeito – já que muitas das

pedras angulares da teoria se ligam diretamente a esta; nas palavras de

Winnicott: “..em x + y + z minutos o bebê ficou traumatizado”. Podemos

deduzir a partir desta passagem que o trauma é temporal. O caráter

temporal do trauma tem dois aspectos fundamentais: “.não apenas o trauma

tem, nele mesmo, um sentido temporal, como também atinge, prejudicando

e mesmo impedindo, o processo pelo qual a temporalidade humana pessoal

20 Vale destacar que geralmente a loucura não é uma regressão, já que esta pressupõe um elemento de confiança. É geralmente um arranjo sofisticado de defesas cujo objetivo é prevenir a repetição da desintegração. Winnicott, D.W.: op. cit., 1986, p.28. 21Winnicott, D.W.: Playing and Reality. Routledge; London-New York, 2005, p. 131

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está sendo constituída.” 22Temos aqui uma amostra do quanto é cara ao

autor a noção de tempo e o quanto ela está intimamente ligada a diversos

conceitos fundamentais da sua teoria. Estaríamos aqui, portanto,

interessados em pesquisar as experiências de temporalização (como modos

de permanência do ser) do bebê, que sujeito aos cuidados maternos, é

capaz de experimentar um tempo contínuo e assim criar seus tempos:

subjetivo, transicional e objetivo.

I. Temporalidade nas escolas inglesa e francesa de psicanálise

A frase de Laplanche supracitada: “a psicanálise só tem algo de interessante

a dizer sobre o tempo no plano da temporalização” e inserida neste trabalho deve

ser compreendida dentro de um contexto já que se trata de um psicanalista francês e

Winnicott é um psicanalista inglês. As diferenças e estilos destas duas escolas de

psicanálise se devem, em parte, pelas diferenças de estrutura semântica que as

diferentes linguas oferecem. Jô Gondar nos oferece uma interessante contribuição

sobre este este assunto no artigo intitulado Winnicott, Bergson, Lacan: tempo e

psicanálise23, nele a autora faz distinção entre as acepções de tempo utilizadas

pelas escolas inglesa e francesa, através da tradução do termo Nachträglich. Para a

autora a diferença na tradução do alemão Nachträglich para o francês e para o

inglês é indicador das diferentes acepções de tempo das escolas francesa e inglesa,

cada uma tendo, através da tradução escolhida, representado a noção de tempo

mais adequada à escola:

As versões francesa e inglesa da obra de Freud não atribuíram o mesmo sentido ao termo, cada uma delas escolhendo um equivalente capaz de se harmonizar com a noção de tempo mais adequada à sua escola. Os franceses traduziram Nachträglich por après-coup, enquanto que os ingleses preferiram traduzir por deferred action (ação retardada ou ação preterida).24

22 Dias, E. O. : O caráter temporal e os sentidos de trauma em Winnicott, Winnicott E-prints, Vol. 1, número 2, série 2, 2006, p. 5. 23Gondar, J.: Winnicott, Bergson, Lacan: tempo e psicanálise, Ágora, vol.9 no.1, Rio de Janeiro, Jan/ Jun 2006 24 Gondar, J.: Winnicott, Bergson, Lacan: tempo e psicanálise, Ágora, vol.9 no.1, Rio de Janeiro, Jan/ Jun 2006

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Para Gondar, apesar de Freud não ter uma teoria do tempo explícita, a

referência ao tempo estava implícita em diversos de seus conceitos, tais como:

memória, transmissão, repetição, perlaboração, pulsão, invenção, acontecimento e

novo.25 A autora destaca: “uma das noções de tempo que atravessam a obra de

Freud tornou-se a mais conhecida – a noção de Nachträglich, que podemos traduzir

por ‘posteriormente’ ou por ‘a posteriori’. Essa noção vai ser o ponto de partida para

pensarmos duas modalidades de tempo apresentadas por dois autores diferentes da

psicanálise – Lacan e Winnicott.” 26Ainda com Gondar:

A escolha desses termos é fruto de duas ideias muito diferentes sobre a temporalidade. A escola inglesa defende a idéia de uma temporalidade processual, contínua, expressando-se em um desenvolvimento progressivo. É verdade que esse desenvolvimento comporta fixações ou regressões, mas elas são consideradas emperramentos de um processo que, em condições favoráveis, deveria seguir o seu curso. [...] Subjaz aí a idéia de retardamento, de demora, de espera. É claro que há divergências, meandros distintos entre alguns analistas ingleses, mas me parece ser possível marcar com duas palavras o solo temporal a partir do qual suas noções de tempo são construídas: processo e continuidade.27

Concordamos quando Gondar diz que o tempo winnicottiano é um tempo

processual e contínuo. Por outro lado, Laplanche baseia-se na tradução e tradição

francesa que contempla um sentido de temporalização bastante diferente daquele

que gostaríamos de utilizar para Winnicott. Ao nos referirmos aos processos de

temporalização neste trabalho nos referimos à continuidade.

A idéia de continuidade ou temporalidade processual é descartada na tradução francesa do Nachträglich. O termo aprés-coup sugere ‘golpe’, ‘ruptura’, ‘descontinuidade’. Os franceses não valorizam a idéia de etapas sucessivas de desenvolvimento, mas sim o modo como são subitamente reorganizadas, de maneira retrospectiva, as posições subjetivas. Se os ingleses defendem a idéia de uma temporalidade processual, isto é, de uma permanente mudança no tempo, os franceses privilegiam os momentos críticos, as cristalizações capazes de reordenar, num varrido, todas as contingências anteriores (GONDAR, 1995). Nesse caso, o tempo se constitui a partir de uma série de rupturas. A realidade temporal não é dada pela duração, mas pelo instante, ou seja, o tempo é fundamentalmente descontínuo. Trata-se de uma visão estrutural do tempo. O que estabelece diferenças, isto é, o que distingue um

25 O aprofundamento desta discussão se encontra no livro de Gondar Os tempos de Freud. 26 Gondar, J. : op. cit. 2006

27 Gondar, J. : op. cit. 2006

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‘antes’ e um ‘depois’ são instantes de subjetivação: um sujeito emerge num átimo, num instante, podendo em seguida desaparecer. Assim, a ênfase não é dada à espera, mas ao que se dá de súbito, num instante privilegiado. Podemos marcar com duas palavras essa concepção de tempo: instante e descontinuidade.28

Neste sentido poderíamos pensar que a distinção Laplanchiana, inicialmente

usada, não contempla as dimensões do tempo winnicottiano que pretendemos

desenvolver neste trabalho – um tempo processual e contínuo, ou seja, da duração.

Deste modo, as palavras temporalidade e temporalização se tornam nomenclaturas

para uma só ideia: o ser no tempo, ou, o modo como o sujeito tem a experiência do

tempo.

II. Experiências de continuidade de ser no tempo

Os capítulos seguintes serão dedicados ao aprofundamento dos diferentes

modos de ser no tempo. À luz dos processos de temporalização procuraremos

estudar, na clínica winnicotina, a partir de vinhetas, o que configura a continuidade

de ser ao longo do tempo e como se dá sua ruptura, no período de dependência

absoluta e dependência relativa. Pretendemos também investigar as diferentes

acepções de tempo (se houver) presentes na obra de Winnicott, tais como tempo

subjetivo, transicional e objetivo. Para isto estudaremos como ocorre a conquista de

um self integrado (ser si-mesmo), que possibilita uma vivência criativa e não uma

vida pautada na reatividade em relação ao ambiente como no paciente de tipo falso-

self patológico.

Uma das grandes contribuições de Winnicott é a possibilidade de pensar a

sobreadequação, a normalidade excessiva, como uma manifestação de uma

doença. Uma doença, que em estados graves, representa uma total cisão entre

verdadeiro e falso self. Entendemos o falso self como uma estrutura de defesa que é

acionada para preservar o verdadeiro self de um ambiente invasivo, hostil. Não

podemos esquecer que a estrutura de falso self é também necessária e universal já

que ela representa a parte do ego que atende às exigências sociais ao mesmo

28 Gondar, J.: op. cit. 2006.

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tempo que protege o verdadeiro self do ambiente. O importante para o nosso estudo

é a identificação de que quando a estrutura de falso self é criada na relação

primordial, no estágio de dependência absoluta, não há espaço potencial e, portanto,

há perda da área da criatividade. Em casos de falhas ambientais no estágio inicial

da vida ocorre a aniquiliação do ser e portanto a aniquilação do tempo, nas palavras

de Safra: “...um tempo que, por ter surgido a partir do ritmo singular da criança, faz

parte de e é seu self.”29

Partindo da imagem emblemática sugerida por Loparic para caracterizar a

teoria winnicotiana – o bebê no colo da mãe30 –, procuraremos estabelecer, por

assim dizer, as “experiências de continuidade de ser no tempo” necessárias ao

sujeito para adquirir seu status unitário e integrado. Considerando a integração no

tempo e no espaço como as tarefas do início da vida, como conquistas (experiência)

necessárias para o sujeito, Winnicott aponta para a importância de um ambiente

facilitador que auxilie o bebê nestas tarefas. Esta é a função da mãe suficientemente

boa, que funciona como um ambiente adaptativo às necessidades do bebê. A mãe,

em situações favoráveis, cuida para que o bebê não sinta prematuramente a

“realidade externa”, já que esta escapa ao controle onipotente da criança; ela atende

às necessidades particulares do bebê para que este não se dê conta, antes do que

deveria, da sua alteridade e nem do tempo do outro. Neste momento inicial o bebê

só deve conhecer o seu próprio tempo (lidar apenas com as próprias experiências

em sua própria temporalidade). Para ilustrar tal situação, poderíamos pensar no

período de amamentação: a mãe dá de mamar quando o bebê tem fome – não

antes, nem depois. Ela se ausenta somente por um tempo para que o bebê

preserve-a viva em sua memória, suportando assim a separação. Se a mãe se

ausentar por um tempo maior do que a capacidade do bebê de mantê-la na

memória, o bebê tem sua continuidade interrompida.31 Em casos graves, como em

doenças esquizóides é a desintegração que aparece como realidade ao invés da

integração, ou seja, um desfazer ativo da integração.32

29 Safra, G. : op. cit., 2004, p. 62.

30 Loparic, Z.: “De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática” In Natureza Humana, v. 8, 2006, pp. 21-47. 31 Phillips, A.: Winnicott. Harvard University Press; Cambridge, 1988, p. 21. 32 Diferenciamos aqui a não integração do estado inicial da desintegração. A desintegração é patológica e a não- integração um estado normal referente ao início da vida.

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A “mãe-ambiente” oferece através de seus cuidados num tempo necessário

para que o bebê seja. Oferece sua capacidade de ser, seu elemento feminino puro

como presença ao bebê. Ela, na sua capacidade de ser, a partir de seu elemento

feminino puro, é presença para o bebê. Poderíamos dizer que a mãe oferece

cuidados, através do holding, para que o bebê temporalize – crie seu próprio tempo.

A este respeito vale lançar mão de uma citação mais extensa daquilo que Safra

denomina de tempo subjetivo:

É, inicialmente, no ritmo que o recém-nascido tem a possibilidade de existir de maneira singular, caso a mãe-meio ambiente possa adequar seu cuidado ao interjogo de tensões característico do bebê. A organização da dupla mãe-bebê segundo este ritmo constitui um primeiro núcleo ao redor do qual se integram elementos sensoriais, tais como: sensações táteis, sonoras, gustativas, entre outras, que irão compor o self do bebê. Este núcleo sustentado pela mãe ao longo de um período dá ao bebê duração em qualidades, levando-o a eventualmente constituir o que poderíamos denominar tempo subjetivo. Neste tempo o bebê existe, com vivacidade, como ser em presença de outro, vivido como parte de si mesmo. É um tempo que, por ter surgido a partir do ritmo singular da criança, faz parte de e é seu self. Ele é fruto da continuidade de ser do indivíduo e o retira do vácuo da eternidade e do não-ser. Resgata-o da angústia impensável.

Pessoas que não puderam constituir o tempo subjetivo sofreram um desencontro precoce entre seu ritmo e a maneira como o mundo se organizou. Estabelece-se uma fratura de não-ser em seu self, que acarretará um prejuízo na função de realização, na criação da realidade. Trata-se de um ponto focal para o estabelecimento de um conflito com a realidade, o que tem sido chamado na literatura psicanalítica de núcleo psicótico.33

A fratura do não-ser a que Safra se refere é uma brecha na continuidade de

seu self – um tempo do não vivido, o tempo da morte. Os pacientes de tipo falso-self

patológicos também sofrem da fratura do não-ser com seu verdadeiro self

resquardado de futuras ameaças e o falso-self patológico cumprindo uma função

adaptativa em relação ao ambiente. Esta fratura do não-ser gera grande sofrimento

e angústia. Muitas vezes há tentativa de suicídio por parte do paciente que se revela

33 Safra, G.: A face estética do self. Unimarco Editora; São Paulo, 2005, pp. 61-62.

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como constatação última de sua não existência: “onde o desejo de estar morto em

geral é um disfarce para ainda não estar vivo.”34

Além destes fatores que justificariam este trabalho, poderíamos destacar a

escassez de estudos sobre o tempo na bibliografia de comentadores da obra de

Winnicott.35 Nosso trabalho se mostra relevante, também, na medida em que os

escritos do psicanalista inglês são pouco sistematizados e os conceitos que

remetem ao tempo se encontram por toda sua obra, tornando assim necessário um

trabalho investigativo de compilação do que o autor escreveu acerca deste tema.

A existência do tempo parece ser irrefutável, mas de que tempo estamos

falando? O único tempo irrefutável é o tempo compartilhado, que conhecemos por

tempo cronológico. Mas não é sobre este tempo que gostaríamos de desenvolver

este trabalho. Gostaríamos de, neste trabalho, compreender as temporalidades do

sujeito a partir de Winnicott. Passaremos pelo tempo subjetivo, transicional e

objetivo, divisão que atende à nossa compreensão das diferentes experiências do

tempo que o sujeito tem ao longo da vida.

No capítulo I sobre o tempo subjetivo nos aprofundaremos sobre a

temporalidade do início da vida, uma temporalidade que se estabelece a partir dos

cuidados maternos. Para a melhor compreensão deste modo específico do tempo

utilizaremos uma vinheta clínica de um bebê abandonado por sua mãe aos 20 dias

de idade.

No capítulo II, sobre o tempo transicional, procuraremos caracterizar a

temporalidade que permite a criação do objeto transicional, situando-a na área

34 Winnicott, D. W.: Natureza Humana, tradução Davi Litman Bogomoletz. Imago, Rio de Janeiro,

1990, p. 154. 35 Como exemplos de trabalhos que trataram a questão do tempo na obra de Winnicott, poderíamos citar Dias, E. O.: op. citada, 2003; Dias, E. O.: “Winnicott e Heidegger: temporalidade e esquizofrenia” In Natureza Humana, Vol. 8, número especial 1, outubro 2006; e Loparic, Z.: op. citada, 1996.; Loparic, Z.: “Heidegger and Winnicott” In Natureza Humana, vol. 1, n. 1, 1999. ; Loparic, Z.: “Esboço do paradigma Winnnicottiano” In Cadernos de História e Filosofia das Ciências, Unicamp, v. 11, n. 2, 2001;, Loparic, Z.: op. citada, 2006; e Safra, G.: A face estética do Self. Unimarco Editora; São Paulo, 2005. ; Safra, G.: A po-ética da clínica contemporânea. Editora Idéias & Letras; Aparecida, 2004. e Ab’Saber, T.: O sonhar restaurado: formas de sonhar em Bion, Winnicott e Freud. Editora 34; São Paulo, 2005 (principalmente o capítulo intitulado “Uma janela para o sonho”).

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transicional e no espaço potencial de Winnicott. Para isto procuraremos pensar a

partir de vinhetas clínicas.

O terceiro capítulo é uma breve exposição sobre o tempo objetivo e falso self,

para realizar esta tarefa faremos uma investigação desta temporalidade a partir de

casos do tipo falso self patológico utilizando, de início, um excerto do caso B. de

Winnicott.

III. Síntese da bibliografia fundamental

Winnicott será, sem dúvida, o autor mais trabalhado nesta pesquisa. Se faz

necessário, neste momento, uma compilação inicial dos conceitos fundamentais que

auxiliarão o estudo dos modos de ser no tempo, modos de continuidade. Entre eles

destacamos: a noção de presença, elemento feminino puro, integração e memória

como elementos fundamentais para a compreensão do tempo enquanto

continuidade. Para a elaboração do segundo capítulo, sobre o tempo transicional

utilizaremos os conceitos de espaço potencial e fenômenos transicionais. E,

finalmente, elemento masculino puro, criação, fenômenos transicionais e tempo

interno x tempo externo. Os conceitos de desintegração x não-integração, ruptura na

continuidade de ser na linha da vida, esquizofrenia, borderline, verdadeiro e falso

self, continuidade de ser, integração, ser si-mesmo, status unitário, eu sou, pessoa

inteira, mãe-ambiente, saúde e loucura também serão objeto de estudo para o

presente trabalho Com a finalidade de relacionar estes conceitos à trama temporal

escolhemos, inicialmente, algumas obras e capítulos que nos parecem relevantes.

São elas em ordem alfabética: 36

• “Babies and their mothers”: especialmente o capítulo intitulado “The

ordinary devoted mother” que contém elaborações significativas sobre a

mãe devotada comum, identificação primária, integração e

• “breakdown”.“Home is where we start from”: destacamos os capítulos “The

concept of a healthy individual” neste capítulo há importantes contribuições

36 Serão priorizados na pesquisa os livros na versão original, em inglês, mas as citações serão em geral das versões portuguesas.

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sobre o estágio inicial de dependência, sobre ruptura, desintegração,

loucura, esquizofrenia e verdadeiro e falso self; “Sum, I am” aqui

encontramos elaborações sobre o status unitário; “The concept of the

false self” aqui há contribuições sobre cisão (splitting of the self) e

esquizofrenia.

• “Human nature” o livro inteiro em suas partes: I “The human child

examined: soma, psyche, mind”; II “The emotional development of the

human being”; III “Establishment of unit status”; IV “From instinct theory to

ego theory”

• “Playing and reality” capítulos: I “Transitional objects and transitional

phenomena” para a ideia de objeto transicional; IV: “Creativity and its

origin” trazendo a noção de criatividade.

• “The family and individual development” destacamos os capítulos: I “The

first year of life: Modern views on the emotional development”; II “The

relationship of the mother to her baby at the beginning”; III “Growth and

development in immaturity”; IV “On security”: VI “Integrative and disruptive

factors in family life”; VIII “The effect of psychosis on family life”; XI

“theoretical statement of the field of child psychiatry”; XV “Casework with

mentally ill children”.

• “The maturational process and the facilitating environment” o livro todo.

• “Thinking about children” Destacamos a parte II “Early infant development”

e parte VIII : “Autism and schizophrenia”

Dentre os comentadores destacam-se os trabalhos de Elsa Oliveira Dias e

Gilberto Safra. Dias no livro A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott propõe

que “a tarefa de integração no tempo e no espaço é a mais básica e fundamental

das tarefas do amadurecimento”37. Além disso, ao conceber o amadurecimento

como o conceito fundamental na obra do psicanalista inglês e, sobretudo,

caracterizá-lo enquanto processo, sugere uma profícua problematização deste autor

com o tempo.

37 Dias, E. O.: op. cit., 2003; p. 196.

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Não poderíamos deixar de mencionar o livro de Gilberto Safra, A face estética

do Self, cujas preocupações (especialmente o capítulo II: “Era uma vez o tempo”),

suscitaram inúmeras questões que propomos discutir em maior profundidade ao

longo da pesquisa. Entre elas destacaríamos os diversos sentidos de tempo

expostos pelo autor: tempo subjetivo, tempo transicional, tempo convencionado,

tempo compartilhado.38 Que estão de acordo com a distinção proposta por nós de

tempo subjetivo, tempo transicional e tempo objetivamente percebido.

IV. Material e Métodos utilizados

O presente trabalho se caracteriza como uma mescla de pesquisa de cunho

teórico e introdução de vinhetas clínicas. Já destacamos os livros de Winnicott que

serão usados para o projeto e alguns comentadores, além da literatura que se

encontra na referência bibliográfica. Além disso, pretendemos utilizar vinhetas

clínicas com a finalidade de ilustrar a relação do sujeito com o tempo. A situação de

análise é um ambiente que poderá contribuir para uma compreensão mais rica

destes estados patológicos marcados pela ruptura da continuidade de ser. Deste

modo aproximaremos as experiências clínicas à teoria.

O método utilizado para esta aproximação da teoria com a prática será na

forma de vinhetas clínicas. Estas vinhetas serão criadas pela autora baseada na

minha experiência clínica, mas de maneira alguma será um retrato fidedigno de

qualquer paciente meu. Pretendo utilizar vinhetas que ilustrem a vivência do tempo,

mas serão recortes de vivências de análise maquiados de forma que serão

absolutamente irreconhecíveis. Sendo deste modo quase uma criação de um

personagem, por exemplo: “Suponhamos um paciente que tenha tido uma

experiência de ruptura de sua continuidade no início da vida por ter sido separado

da mãe precocemente.” A partir destas vinhetas farei a articulação com a teoria.

Outro exemplo de vinheta que pretendemos utilizar é “Suponhamos um paciente que

olhe para o relógio durante todo o período da sessão.” Estas vinhetas nos

possibilitam uma aproximação da questão do tempo sem uma desnecessária

exposição dos pacientes. O método empregado para a criação destas vinhetas será

38 Estas noções de tempo foram retomadas por Safra no capítulo III (“O tempo e o gesto criativo”) de sua obra A po-ética da clínica contemporânea. Editora Idéias & Letras; Aparecida, 2004.

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de uma análise de situações que melhor exemplifiquem as questões teóricas do

presente trabalho.

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CAPÍTULO I: O TEMPO SUBJETIVO OU O TEMPO DA EXPERIÊNCIA

1.1. Nota sobre o trauma ou ruptura da continuidade de ser

“Suponhamos um paciente que tenha tido uma experiência traumática no início da vida por ter sido separado da mãe

precocemente.”

Pensando neste caso com base no Winnicott, este elemento por si só já poderia ser

um indicador de como este bebê poderia vir a se desenvolver, sendo que fora

privado, desde muito cedo, de uma experiência fundamental para todos nós: ser

cuidado por uma pessoa de maneira especial e única. Estes cuidados garantem ao

bebê aspectos fundamentais para sua continuidade de ser: a previsibilidade e a

confiabilidade: “Qualquer intrusão ou falha de adaptação causa uma reação no

lactente e essa reação quebra a continuidade de ser. Ou seja, a intrusão é

traumática porque obriga o bebê a reagir ao invés de continuar sendo,

simplesmente.“39 Imaginando estas primeiras semanas de vida deste bebê

lembramos do que Winnicott denominou agonias impensáveis40 – experiências que

excedem a capacidade emocional do bebê naquele devido momento. Experiências

que por não poderem ser vividas pelo ego frágil, perseguem ao longo da vida na

forma de um medo de colapso iminente. Winnicott nos recorda que tal colapso já

ocorreu, e que muitas vezes é necessário lembrar isto ao paciente.

Um bebê separado precocemente de sua mãe e sem a possibilidade de

contar com uma figura substituta que assuma o lugar de quem cuida, fica diante do

imprevisível: “não sabendo o que esperar, ele não acumula experiências que

constituam um passado e não pode projetar um futuro. Ele fracassa na mais

importante das três tarefas básicas da primeira mamada teórica: não se

temporaliza”41e é justamente este fracasso na temporalização que gostaríamos de

destacar. É nesta dependência máxima que a continuidade de ser do bebê pode

39 Dias, E. O.:op cit, 2006. 40 Ao longo de sua obra Winnicott mudou da expressão “angústia”, para “angústia impensável” e finalmente “agonia primitiva”, mas eu particularmente gosto de impensáveis, pois caracteriza melhor a natureza desta. 41 Dias, E. O.:op cit, 2006, p. 6.

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ocorrer, em casos de falhas neste processo haverá reação contra a intrusão por

parte do bebê. “A morte, para um bebê nos estágios iniciais, significa algo bem

definido, ou seja a perda do ser em razão de uma reação prolongada contra a

intrusão ambiental (o fracasso total da adaptação suficientemente boa).”42 A morte

como perda da continuidade de ser poderia estar relacionada à impossibilidade

deste bebê temporalizar-se neste momento inicial da vida, ou seja, ser no tempo

subjetivo. Acreditamos que a morte do ser, neste estágio de dependência absoluta,

equivale à perda ou ao não estabelecimento do tempo subjetivo já que reagir ao

imprevisível é ter de começar tudo de novo e

Começar tudo de novo é estar privado da raiz pessoal e da espontaneidade; é não poder juntar experiências, não formar passado, não poder projetar o futuro, não adquirir a crença num mundo encontrável e perdurável; é dispersar-se num presente eterno, em que a luta para nunca mais sofrer a agonia impensável priva o indivíduo da liberdade de deixar acontecer, de recepcionar acontecimentos.43

Poderíamos dizer que a incapacidade de recepcionar acontecimentos paraliza

o sujeito no tempo, já que o sujeito perde sua espontaneidade.44As questões sobre a

temporalidade no início da vida aparecem também no encontro entre o ritmo do

bebê com sua mãe, que pode apresentar dificuldades: “Não há dúvida que muitas

dificuldades da adaptação materna estão relacionadas precisamente ao tempo.”45

Escolhemos fazer esta breve introdução ao capítulo a partir de um caso que poderia,

muito claramente, evidenciar a ruptura da continuidade de ser na vida de um bebê

para não perdermos de vista o fato de que a temporalização é um processo vivo e

que não está, de maneira alguma, garantida ao sujeito. A seguir, pretendemos

percorrer os caminhos de um bom encontro entre o bebê e sua mãe, ou seja, aquele

que favoreça a temporalização e explicitar suas características.

42 Winnicott, D. W.: op. cit., 1990, p. 156. 43 Dias, E. O.:op cit, 2006, p.6. 44 Voltaremos a esta questão ao longo do trabalho. 45 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 201.

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1.2. Elementos fundamentais para o estabelecimento do tempo subjetivo

ou tempo da experiência: previsibilidade e confiabilidade do ambiente

“O aspecto central dos cuidados adaptativos está relacionado ao tempo. Sua característica básica é a confiabilidade, e esta significa

previsibilidade”46

No início da vida a temporalidade resume-se à continuidade de ser e a

garantia desta continuidade é dada pelo ambiente previsível e confiável.

Acreditamos que um ambiente previsível e confiável deva conter determinadas

qualidades, são sobre estas características que desenvolveremos este capítulo.

Para ser previsível e confiável a mãe deve ser uma presença real para seu bebê,

ou seja, seus cuidados devem se basear no ser ao invés do fazer. Só assim

poderá garantir ao bebê uma duração extentida ao longo do tempo:

O recém nascido vive numa espécie de continuum, numa mera duração estendida. Apesar de algumas pequenas marcações do tempo, como a respiração da mãe e a alternância dos estados de movimento e quietude terem sido já experimentadas na vida intra-uterina, sua temporalidade resume-se à sua continuidade de ser.47

Acreditamos que nomear esta temporalidade inicial de subjetiva favorecerá

nossa discussão e compreensão dos modos de ser no tempo em Winnicott.

Loparic, ao propor uma aproximação entre Heidegger e Winnicott 48,

evidencia a importância do caráter temporal do homem, já que:

uma interpretação possível é a de que a natureza humana [...] [é] a estrutura invariante de um tipo muito particular de temporalização que se manifesta na forma de um ser humano que, conforme ele mesmo [Winnicott] diz, ‘é uma amostra, no tempo, da natureza humana.49

46 Dias, E. O. : op. cit., 2003, p. 201 47 Dias, E. O. : op. cit., 2003, p. 197. 48 Um importante aspecto a ser destacado é seu esforço em relação ao que ele identifica como quebra de paradigma apresentada por Winnicott nos moldes de uma revolução científica de Kuhn. 49Loparic, Z.: op. cit., 2001; p. 51.

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Ainda que tal aproximação não seja diretamente por nós discutida,

acreditamos que ela oferece a possibilidade de compreendermos de forma mais

abrangente a íntima relação de Winnicott com o tempo. Como? Mostrando que:

uma das formas de perturbação do amadurecimento é justamente a não constituição, pelo bebê, do tempo ou, melhor, dos tempos necessários para a continuidade da existência.50

O tempo a que Loparic se refere aqui não equivale ao tempo cronológico,

espacializado,51 e sim um tempo subjetivo que deverá ser constituído. Estes tempos

a que Loparic se refere seriam os modos de ser continuo no tempo: subjetivo,

transicional e objetivo. Poderíamos tomar este pequeno trecho como um resumo do

que será discutido por nós. A partir desta frase é possível nos perguntar: Como se

dá a constituição, pelo bebê, dos modos de ser contínuo no tempo? Ao propor a não

constituição do tempo52, pelo bebê, Loparic nos apresenta uma dimensão da

temporalidade bastante particular. Bastante particular pois se trata de um tempo

v3ivo e necessário à existência: vivo pois não é apresentado como uma dimensão a

priori da realidade, como algo que pré existe ao sujeito (como o tempo cronológico).

Ao contrário do tempo cronológico, este tempo deve ser constituído – cabe ao bebê

constituir o tempo necessário à própria existência.

Ao bebê é dada a tarefa de se temporalizar; mas ele não é capaz de fazê-lo

sozinho, sem os cuidados o sujeito permanece no vácuo da eternidade e do não-ser.

Lembramos da frase de Winnicott: “não existe algo como um bebê”, nela fica

evidente que “o acontecer humano demanda presença de um outro.”53 A mãe é a

pessoa mais indicada para ser esta presença para o bebê, uma presença viva que

favorece o encontro. É a mãe que sustenta a situação ao longo do tempo e isto

significa que ela cuide do bebê respeitando seu próprio ritmo: “O aspecto central dos

cuidados adaptativos está relacionado ao tempo. Sua característica básica é a

confiabilidade, e esta significa previsibilidade.”54 Esta citação de Dias nos oferece

50 Loparic, Z. : “É dizível o inconsciente?” In Natureza Humana 1 (2), 1999; p. 359. 51 Safra: G.: op. cit, 2004; p. 57. 52 Nos casos de patologias graves como deficiência mental ou esquizofrenia infantil. 53 Safra, G.: A face estética do self. Unimarco Editora; São Paulo, 2005, p. 147. 54 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 201

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uma compreensão do tempo relacionando-o a previsibilidade e confiabilidade dos

cuidados adaptativos. A previsibilidade dos cuidados temporaliza o bebê no mundo

subjetivo. A capacidade de prever se torna uma base segura para a confiança, já

que as expectativas sobre um futuro imediato são inicialmente formuladas.55

Entendemos que esta é a primeira dimensão de tempo vivida pelo sujeito – um

tempo subjetivo, regido por suas próprias necessidades atendidas pela continuidade

dos cuidados previsíveis e confiáveis.

É este o fundamento da temporalização, inicialmente subjetiva, do bebê: a partir das experiências do presente, ele começa a constituir um “passado”, um “lugar” onde guardar experiências, de onde pode antecipar o futuro, pelo fato de algumas coisas e acontecimentos terem se tornado previsíveis.56

Pensando nesta temporalidade inicial, escrevemos este capítulo, nele

desenvolvemos a relação presente entre tempo e cuidados adaptativos durante o

período de dependência absoluta. Considerando, com Dias, o estágio de

dependência absoluta57 como aquele que compreende a vida intra-uterina, o

nascimento, o período imediatamente após o nascimento e o estágio da primeira

mamada teórica, 58 a partir de quando poderíamos presumir o início das dimensões

temporais para o sujeito? Tentaremos uma primeira aproximação a esta resposta

ainda com Dias:

O fato é que em algum momento após a concepção, ocorre um ‘primeiro despertar”, a partir do qual passa a haver “um simples estado de ser, e uma consciência [awareness] incipiente da continuidade do ser e da continuidade do existir no tempo.[...] Tendo atingido o estado de ser, o que o bebê necessita é continuar a ser. 59

A citação de Dias se refere ao primeiro modo de ser, a primeira experiência

de ser. A questão que nos surge é: como é atingido o estado de ser? E como é

55 Dias, E. O.: op. cit., 2006, p. 5.

56 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 199.

57 Neste momento o bebê está envolvido com as chamadas três tarefas de integração, personalização e realização 58 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 157. 59 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 157.

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garantida sua continuidade? O estado de ser seria algo inato ao sujeito e a

continuidade garantida pelo ambiente? Para responder à estas perguntas,

destacaremos elementos fundamentais para o estabelecimento do ser no tempo e

para o continuar a ser no tempo. Neste primeiro capítulo nos debruçaremos acerca

da constituição e manutenção da temporalidade subjetiva no período de

dependência absoluta. A fim de desenvolver esta tarefa, destacaremos alguns

elementos que estão intimamente ligados à temática supracitada. São eles:

presença, elemento feminino puro, integração e memória corporal e representativa,

estes são os elementos destacados por nós como fundamentais para a manutenção

da previsibilidade e confiabilidade do ambiente.

Outro importante elemento a ser destacado, neste momento, é lembrar ao

leitor que ao falarmos em continuidade entre a mãe e o bebê, e a continuidade do

tempo subjetivo tal como é experimentado pelo último, pressupomos a existência de

pequenas descontinuidades; o essencial é que estas pequenas descontinuidades

não se configurem em rupturas e não interrompam a continuidade de ser do bebê.

Cada bebê tem seu próprio “nível” de suportabilidade. O que configuraria ruptura

para um, é suportável para outro. Daí a importância dos cuidados maternos que

através de uma identificação especial, atende às necessidades de cada bebê,

protegendo-o da quebra de continuidade. Um bebê poderá ser alimentado a cada

três horas, outro a cada duas e assim por diante. O importante é que o ritmo do bebê

seja respeitado. De fato: “no exercício pleno de sua função materna adaptativa, a

mãe está sempre “traumatizando” dentro da pauta da adaptação e é assim que o

bebê passa da dependência absoluta para a dependência relativa.” 60

Pensando no bebê que citamos no início do capítulo, que teve a continuidade

dos cuidados ambientais interrompido num momento precoce de sua vida, momento

em que dificilmente o bebê teria maturidade suficiente para lidar com a ausência

prolongada da mãe e muito menos ter vivido as experiências integradoras que os

cuidados maternos possibilitam; poderíamos supor que ele foi privado de constituir

um tempo subjetivo :

60 Dias, E. O.:op cit, 2006, p. 3.

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A organização da dupla mãe-bebê segundo este ritmo constitui um primeiro núcleo ao redor do qual se integram elementos sensoriais, tais como: sensações táteis, sonoras, gustativas, entre outras, que irão compor o self do bebê. Este núcleo sustentado pela mãe ao longo de um período dá ao bebê duração em qualidades, levando-o a eventualmente constituir o que poderíamos denominar tempo subjetivo. 61

Poderíamos compreender o tempo subjetivo como um tempo propício para o

bebê ter experiências. As experiências de um bebê no início da vida podem ser

pensadas a partir dos estados relaxados e dos estados excitados. Nos estados

excitados, poderíamos pensar num tempo entre o impulso e o encontro com o seio:

este tempo do impulso instintivo (fome) até o encontro com objeto (seio) deve ser

rápido para que o impulso não se perca. Quando o seio é encontrado (como objeto

subjetivo) temos o tempo da presença, ou seja, o tempo da permanência do objeto.

Depois de saciar a fome o bebê pode descansar, durante seu sono temos um tempo

em que ele é cuidado pelo ambiente. A mãe cuida para que façam silêncio e não

acordem o bebê, sua comida é preparada e assim por diante. O ambiente cuida para

que o bebê tenha as experiências necessárias para a constituição de um senso de

continuidade de si mesmo. Estes cuidados ambientais são oferecidos ao bebê

durante os estados excitados e os estados relaxados. A totalidade dos cuidados

ambientais que cuida do bebê durante os estados relaxados e excitados no ritmo do

próprio bebê será a base para o estabelecimento de uma temporalidade subjetiva,

ou seja, o tempo que o bebê tem para viver estas experiências com os objetos

subjetivos de “ponta a ponta”:

Se essas experiências repetem-se de modo previsível, a continuidade de ser é preservada e começa a formar-se um estoque de experiências cada vez mais consistentes; isto permite expectativas mais configuradas sobre o futuro imediato. Gradualmente, o bebê torna-se capaz de prever e a confirmação regular das expectativas forma uma base para a confiança. O bebê vai sendo “datado”, conquista que, no início, ocorre necessariamente em termos da temporalidade do mundo subjetivo.62

61 Safra, G.: A face estética do self. Unimarco Editora; São Paulo, 2005, pp. 61-62.

62 Dias, E. O.:op cit, 2006, p. 5.

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Gostaríamos, nos tópicos seguintes, destacar alguns pontos que julgamos

essenciais para a criação do tempo subjetivo, baseado na previsibilidade e

confiabilidade do ambiente.

1.2.1. O tempo vivido na continuidade da presença da mãe ou tempo da

experiência

“Com Winnicott, é possível afirmarmos que nada no ser humano se constitui sem a presença do outro. Tudo o que emerge num indivíduo que não possa ser constituído em presença de outro, é um abismo no self, é

agonia impensável.”63

Ao falarmos sobre presença sabemos corriqueiramente seu significado, mas

qual seria a acepção desta palavra para a psicanálise? E, especialmente, na nota

supracitada de Safra? Como tal palavra não consta nos tradicionais dicionários de

psicanálise64, recorremos ao vocabulário de filosofia de André Lalande. A primeira

definição que encontramos para a palavra presença é: “A presença do eu a si

próprio, ou a intimidade, não se distingue da sua presença no ser.” Em seguida, na

nota deste verbete descobrimos que presença também quer dizer colocar-se a frente

de alguém para o defender. De fato a mãe cuida, através de sua presença, e

defende seu bebê para que ele não descubra “cedo demais” sua fragilidade e

dependência. Assim nos aproximamos, segundo nosso entendimento, à dimensão

de presença atribuída por Safra: se refere à uma presença que existe, ou seja, ao

ser que é.

Poderíamos dizer que a mãe capaz de ser presença para o filho é “a mãe que

é”, ou seja, é uma mulher cujo elemento feminino puro permite o advento da

identificação primária entre mãe e bebê. É uma mãe cujo cuidado está ancorado no

ser e não no fazer, uma mãe capaz de aguardar o tempo necessário para que o

bebê encontre o seio, ao invés de ser uma mãe pré-ocupada em ser provedora. É

notável que a mãe não é o bebê, mas por ter sido bebê um dia, ela é capaz de se

63 Safra, G. : A clínica em Winnicott, Natureza Humana, vol.1 no.1 São Paulo junho. 1999 64 Neste caso foram consultados os dicionários: Laplanche, J.: Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Lagache; tradução Pedro Tamen, São Paulo: Martins Fontes, 2001 e Newman, A.: As idéias de Winnicott: um guia, tradução de Davi Bogomoletz, Rio de Janeiro, Imago, 2003.

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identificar com ele tão profundamente, que atende suficientemente às suas

manifestações como se fosse, para garantir a continuidade de ser ao bebê. Ela

disponibiliza o seu próprio ser para que o bebê constitua seu si-mesmo, no seu

ritmo. A adequação da mãe sufiecientemente boa está, também, em atender à

temporalidade de seu bebê. Neste sentido são um, é a díade mãe-bebê, como uma

presença-encontro. Um encontro particular, marcado por uma devoção. Devoção

que só é possível ser experimentada pelo bebê, caso seja ancorada na presença

verdadeira da mãe. Podemos dizer que há aqui uma presença viva, nos planos

afetivo e corporal, expressa por uma pessoa total (soma e psique). Ou seja: uma

presença psicossomática.65

“Como o bebê habita, inicialmente, num mundo subjetivo, iniciá-lo no sentido

do tempo e do espaço significa cuidar de que o tempo e o espaço que regem esse

mundo sejam também subjetivos.”66 Tal iniciação depende de um cuidador que

garanta a experiência de onipotência ao bebê, em que ele é atendido no seu próprio

tempo. No início da vida é a mãe suficientemente boa que oferece um tempo

tranquilo e contínuo, através de seus cuidados adequados às necessidades

específicas daquele bebê em questão. Destes cuidados oferecidos pela mãe e de

sua possibilidade de ser ao longo do tempo para o bebê, surge sua capacidade de

experimentar o tempo subjetivo como contínuo:

O primeiro sentido de tempo, no mundo subjetivo, é o da continuidade da presença, que se instaura pela experiência repetida da presença da mãe, de sua permanência, da continuidade dos cuidados que lhe apresentam continuamente o mundo. O bebê não sabe da existência permanente da mãe, mas sente os efeitos da presença e vagarosamente, criando uma memória desta presença, conta com isso. Para preservar a continuidade de ser e manter vivo o mundo subjetivo, o bebê precisa ser permanentemente assegurado pela presença que subsiste. 67

É a presença da mãe que funciona, para o bebê, como um fio que costura os

instantes não-integrados vividos por este. A presença da mãe acena à unidade

neste ser que só conhece a sucessão de instantes, vividos na alternância dos

65 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 104. 66 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 197. 67 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 197.

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estados excitados e relaxados.68A presença viva da mãe acompanha o bebê de um

estado ao outro, criando uma continuidade, não só entre os estados, mas entre o

próprio bebê e a mãe – garantindo a experiência de onipotência. Após o pico de

excitação corporal gerado pela fome, o seio aparece (como se o bebê o criasse)

proporcionando a experiência de saciedade e relaxamento até o próximo pico de

excitação. A presença da mãe funciona como um corrimão imaginário que assegura

ao bebê que após um estado haverá o outro e assim por diante. A repetição deste

ciclo – oscilando entre os estados excitado e relaxado – sustentado pela mãe

através do holding, muitas e muitas vezes é o início do sentido das palavras

identidade, integração e constitui a base do ser. Ninguém se constitui fora da

presença de outrém e nem tampouco o tempo. Poderíamos dizer que a presença da

mãe oferece durações de tempo ao bebê através da duração das experiências.

Percebemos que o tempo como continuidade pode ser experimentado pela

continuidade da presença dos cuidados maternos, estando, deste modo, tempo e

experiência intimamente ligados, já que, apenas nas experiências vividas, pode a

temporalidade ser estabelecida. São estas as experiências sutis que, segundo

Winnicott, só o contato humano é capaz de propiciar.69 Poderíamos dizer, também,

que a presença da mãe deve estar no presente, atenta ao aqui e agora de seu bebê:

Quando a mãe se detém, sem pressa e atenciosamente, nos detalhes que o bebê apresenta, ela está possibilitando a este criar e habitar um nicho, que é feito de tempo e concentração, no interior do qual alguma coisa, que pertence ao aqui e agora, pode ser experimentada.70

Mães excessivamente preocupadas (com o futuro) ou apressadas não podem

oferecer sua presença viva ao seu bebê e este fica empobrecido. Este quadro pode

ser facilmente observado em pacientes graves do tipo psicótico. Neles percebemos

que há ausência da possibilidade de “contar com o tempo”, possivelmente por não

terem experimentado a presença segura da mãe que costurasse a experiência de

excitação à de relaxamento e assim os retirasse da agonia dos instantes sucessivos,

eternos de aniquilação do ser, e por isso, impensáveis. Nas palavras de Dias: “Por

68 Aprofundaremos esta dimensão no subcapítulo tempo e integração 69 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 167. 70 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 205.

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não terem sido temporalizados no sentido subjetivo, os psicóticos padecem

exatamente da imediaticidade e, simultaneamente, de infinitude.”71

Como vimos anteriormente, a dimensão temporal não é dada ao sujeito, ela é

criada a partir de determinadas experiências vividas pelo bebê na presença viva de

sua mãe. Presença que possibilita ao bebê ter experiências em seu próprio ritmo,

sobre isto vale a pena lançar mão de uma citação mais extensa de Dias:

Juntamente com a constituição do sentido de presença, começa a ocorrer um tipo especial de marcação no tempo que, na saúde, é necessariamente anterior à percepção das cronologias. Essa marcação do tempo é feita pela vias naturais, especificamente humanas, de intimidade com o corpo da mãe – o ritmo corpóreo desta, as batidas do seu coração; também é regida pelos ritmos do próprio bebê aos quais o ambiente se adapta: a fome, a amamentação, a excreção, o sono, o despertar, os sons, a luz e os cheiros. A datação do tempo é operada, portanto, pelos cuidados maternos que, inicialmente, se ajustam ao ritmo do funcionamento e das sensações corpóreas. Fazendo assim, a mãe propicia que o bebê seja iniciado na periodicidade do tempo, tendo como matriz o seu ritmo, o ritmo corpóreo.72

Poderíamos destacar esta como uma das qualidades fundamentais da mãe

suficientemente boa: ela é aquela que é capaz de oferecer e sustentar cuidados

maternos respeitando o ritmo de seu bebê. Quando o bebê tem seu ritmo respeitado

ele é capaz de de ter experiências, e estas experiências possibilitam que ele seja

iniciado na peridiocidade do tempo, a partir de seu próprio ritmo. Acreditamos que o

tópico seguinte, sobre o elemento feminino puro, poderá favorecer o entendimento

de nossa discussão ao apontar o elemento feminino puro como um elemento

fundamental da mãe suficientemente boa; como um pressuposto da capacidade de

ser presença para outrem.

Veremos a seguir, porque somente podemos ser presença efetiva para outro a

partir do elemento feminino puro – uma presença que contempla a quietude e

“sustenta a situação no tempo”. A partir do seu elemento feminino puro a mãe 71 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 208. 72 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 199.

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permite que o bebê demore o tempo que for necessário no seu próprio ritmo. A mãe

permite que o bebê faça do seu ritmo corpóreo uma morada, ela permite que ele

(de)more na experiência.73 A mãe precisa ter tempo para exercer a tarefa de cuidar

do bebê: “isto requer que ela tenha tempo suficiente para esperar, no ritmo do bebê,

que ele vá de ponta à outra ponta da experiência, que tenha começo meio e fim.”74

Acreditamos que há relação entre a capacidade de espera da mãe com seu

elemento feminino puro.

1.2.2. O tempo do elemento feminino puro ou tempo de espera

“O estudo do elemento feminino puro, destilado e não contaminado, nos conduz ao SER, e constitui a única base para a autodescoberta

e para o sentimento de existir.”75

Winnicott, impulsionado por seu trabalho clínico, desenvolveu os conceitos de

“elemento feminino puro” e “elemento masculino puro” para, entre outras coisas,

designar modos distintos de relação objetal: a relação com objetos subjetivos se

refere ao elemento feminino puro e a relação com objetos objetivamente percebidos

ao elemento masculino puro. O elemento feminino puro “diz respeito ao ser, à

experiência de identidade primária, em que um é o mesmo que outro (o bebê é o

objeto), experiência que se dá no âmbito da ilusão de onipotência, com objetos

subjetivos.”76 É a relação com o objeto subjetivamente percebido que marca o início

da relação de meninos e meninas com a mãe. Poderíamos dizer que todos,

independentemente do sexo, na saúde, se relacionam com o primeiro objeto – a

mãe – a partir do elemento feminino puro.

...as experiências de integração, que ocorrem na primeira mamada teórica, são as primeiras e inaugurais experiências de si-mesmo, de ser como identidade. Isto é, ao encontrar-se com o objeto subjetivo, o bebê faz uma experiência de identificação primária com o objeto: ele é o seio. Isto constitui uma experiência de ser que tem um novo sentido para além daquele da continuidade de ser: o ser como

73 Devo esta ideia a Elsa Oliveira Dias. 74 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 201.

75 Winnicott, D. W.: Playing and Reality, Routledge; London-New York, 2005, p. 111. 76 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 285.

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identidade. Winnicott denomina “elemento feminino puro” esta experiência de ser, que está presente em homens e mulheres.77

A experiência de ser da mãe é fundamental para que ela possa oferecer os

cuidados que constituirão os objetos subjetivos para seu bebê. O elemento feminino

da mãe facilita sua identificação com seu bebê, favorece uma disponibilidade

tranquila que “sustenta a situação no tempo”, e “que se estende demoradamente e

não exige que nada aconteça, apenas aguarda os movimentos do bebê e o

acompanha em suas inúmeras idas e vindas.”78 A mãe que é capaz de esperar o

tempo de seu bebê sem exigir que nada aconteça favorece a temporalização, pois

garante experiências que duram no tempo. O bebê pode assim experimentar a vida

a partir de seu próprio ritmo, pois ele está sendo respeitado pela mãe. Uma mãe

apressada, ansiosa, que se orienta pelo tempo do relógio ao invés do ritmo corpóreo

de seu bebê, não favorece a constituição de um tempo subjetivo e sem o tempo

subjetivo o sujeito fica sem uma base segura a partir da qual ser.

Pretendemos diferenciar os cuidados oferecidos pela mãe que “é” e a mãe

que “faz”: a mãe que “é” oferece seus cuidados a partir de seu elemento feminino

puro, enquanto que a mãe que “faz” cuida mecanicamente e, portanto, mais

identificada com seu elemento masculino puro.

Os diferentes modos de relação objetal – a partir dos elementos feminino e

masculino – expressam temporalidades distintas. A temporalidade da relação objetal

a partir do elemento feminino puro poderia ser expresso pela continuidade da

capacidade da mãe esperar no ritmo de seu bebê. A continuidade do tempo, neste

primeiro momento de vida, que coicide com o período de dependência absoluta do

bebê em relação aos cuidados maternos, depende de uma recuo da mãe e de suas

atividades mundanas, ela se recolhe aos cuidados do infante e, assim, é capaz de

se identificar com ele, respeitando inclusive seu próprio tempo, tempo que não

corresponde em absoluto ao tempo cronológico.79 A continuidade dos cuidados

77 Dias, E. O.: op cit., 2003, p. 218. 78 Dias, E. O.: op cit., 2003, p. 207.

79 Com isto não pretendemos inferir que a mãe não possa organizar as mamadas no tempo cronológico (por exemplo: café da manhã, almoço e jantar) mas gostaríamos de enfatizar que esta é uma necessidade da mãe, neste momento, e não do bebê.

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ambientais é assegurada, desde o sono até as fraldas do bebê que são trocadas. As

continuidades se dão entre o bebê e a mãe, que adapta e protege seu filho para que

este não descubra precocemente a alteridade ou o tempo do outro. Assim se dá a

experiência de onipotência: por ser garantido que o bebê viva de acordo com seu

próprio ritmo e controle os objetos ao seu redor, dizemos que ele é onipotente. Este

é o sentido da continuidade no tempo do holding, expressos pela continuidade da

presença da mãe.

O tempo objetivo é por sua vez marcado pela alteridade, ou seja, há nesta

temporalidade a dimensão do outro, do não-eu. Nesta fase, o infante já tendo

experimentado a ilusão e o sentimento de onipotência, pode despedir-se dela

suportando as falhas de adaptação da mãe. Lembramos que para haver despedida

da ilusão de onipotência é necessário que haja memória da presença, como uma

experiência vivida – e sustentada ao longo da vida.

Deste modo, o tempo objetivo, do outro, só poderá existir de maneira

saudável para o indivíduo sucedendo o tempo subjetivo. “Se tudo correr bem, o fazer

só surge no momento em que a instintualidade está sendo integrada como parte da

pessoalidade”80, ou seja, enquanto o elemento feminino puro tem a capacidade para

ser, e é, o elemento masculino puro tem a capacidade para fazer. Na saúde, o fazer

deve suceder o ser. Isto quer dizer que o fazer só tem significado quando

respaldado num ser pessoal, contínuo. Deste modo, podemos propor que a

temporalidade objetiva do fazer só tem significado quando apoiada na temporalidade

subjetiva. Ou seja, a alteridade da mãe-objeto pode ser suportada quando houve

experiência de continuidade entre o bebê e a mãe-ambiente, vivido na fase de ilusão

de onipotência.

O elemento masculino puro integra-se num período mais tardio do

amadurecimento, período em que há distinção eu – não-eu, e uma capacidade de se

relacionar com objetos de maneira objetiva. Poderiamos inclusive pensar no tempo

cronológico, que na atualidade aparece como representante prioritário/unívoco do

80 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 285.

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tempo, a partir do elemento masculino puro. Em ambos, tanto o elemento masculino

como o tempo cronológico, a dimensão da alteridade se faz presente.81

Se a mãe se preocupa excessivamente com a hora certa de alimentar o bebê,

ao invés de deixá-lo comer quando ele tem fome, teremos um desencontro entre o

ritmo do bebê e o ritmo dos cuidados oferecidos a ele. Este desencontro poderá

deixar feridas graves no bebê já que a constituição do tempo subjetivo será afetada.

1.2.3. O tempo da integração

“A integração significa responsabilidade, ao mesmo tempo que consciência, um conjunto de memórias, e a junção de passado,

presente e futuro dentro de um relacionamento”82

Esta frase de Winnicott nos permite pensar que tempo e integração são

intimamente ligados. O ser humano se integra e amadurece ao longo do tempo. Ela

também faz lembrar de um paciente que dizia não ter memória sobre seu passado,

sentia que sua vida inteira havia passado “em branco” e que não existira até aquele

instante. Se tratava de um paciente com falso-self patológico iniciando o processo de

integração do falso e verdadeiro self em análise.83 Recordamos, agora, de outra

frase de Winnicott: “Na formulação de uma teoria psicológica é muito fácil considerar

a integração como garantida, mas no estudo dos estados iniciais do

desenvolvimento humano é necessário pensá-lo como algo a ser alcançado.”84

Podemos pensar que o bebê, não é integrado; ele deve vir-a-ser integrado. O bebê

nasce com uma tarefa fundamental: vir-a-ser. Ele nasce com a tendência inata para

integração, um princípio ontológico, sempre presente até a morte. Neste momento,

lembramos de outra frase de Winnicott: “não há algo como um bebê”, que nos

recorda da fragilidade absoluta do infante. O bebê é totalmente dependente da mãe,

o bebê sempre estará no colo ou sob os cuidados de alguém. Esta frase nos revela

outro aspecto da importante relação mãe-bebê no estágio de adaptação primitiva, a

81 Aprofundaremos esta ideia no capítulo III 82 Winnicott, D. W.: op. cit., 1990, p. 140. 83 Este seria o trabalho, de integração, com este paciente que conhecia a continuidade do tempo

objetivo, mas não experimentava a continuidade do tempo subjetivo em sua vida. Por isto sentia que não vivera até aquele instante, como se estivesse fora do tempo. 84 Winnicott, D. W.: op. cit., 1990, p. 136.

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continuidade existente entre ambos. O bebê só existe no colo da mãe-ambiente, é o

ambiente cuidador que dará ao bebê a possibilidade de vir a ter experiências, para a

partir delas integrar-se no tempo e espaço. É importante lembrarmos que durante o

estágio de dependência absoluta o bebê está envolvido com três tarefas

interdependentes:

1) a partir de um estado de não-integração, a realização das experiências de integração no espaço-tempo, ou seja, a temporalização e espacialização do bebê (integração); 2) o alojamento gradual da psique no corpo (personalização); 3) o início das relações objetais, que culminará, mais tarde, na criação e no reconhecimento da existência independente de objetos e de um mundo externo (realização).85

A integração no tempo e espaço é a mais básica das tarefas do ser-humano,

mas não ocorre plenamente sem as outras. Podemos estabelecer, com Dias, a

relação de determinada tarefa com o tipo de cuidado necessário para que ela ocorra

de maneira satisfatória. Deste modo, cada tarefa corresponde a um tipo de cuidado

oferecido pelo ambiente.

Integração no espaço e no tempo corresponde ao segurar ou sustentar (holding); o alojamento da psique no corpo é facilitado pelo manejo (handling), que é um aspecto mais específico do segurar, relativo aos cuidados físicos; o contato com objetos (object-presenting)86

Como vimos anteriormente, o tempo não é dado ao sujeito, mas sim

constituído, sustentado pelo holding materno. Isto se faz possível pelas experiências

vividas e a memória das mesmas, ou seja, ocorre então uma integração numa

identidade que faça sentido. Esta seria, segundo Dias, a quarta tarefa a ser

conquistada pelo sujeito e só aparece nos escritos de Winnicott em 1966,

... quando, ao dar acabamento à sua teoria do objeto subjetivo, Winnicott introduz o conceito de identificação primária: durante a

85 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 166. 86 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 167.

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experiência excitada da amamentação, o bebê torna-se o objeto, fazendo as sua primeiras experiências de identidade.87

O conceito de identificação primária, por sua vez, corrobora novamente a

frase “não há algo como um bebê”, já que no início o modo de relacionamento do

bebê com sua mãe é baseado na relação objetal em que o objeto é subjetivamente

percebido: o bebê se identifica com a mãe ao ponto que é o seio, dentro de sua área

de onipotência, e a mãe por sua vez se adapta de tal modo ao bebê que atende a

seu termo suas necessidades. O primeiro mundo habitado pelo bebê deve ser um

mundo subjetivo e um mundo subjetivo implica uma temporalidade subjetiva.

Somente aos poucos o bebê é capaz de se reunir numa identidade própria, com a

identidade de si o bebê é capaz de ter experiências e guardar memória das mesmas.

O cuidado ambiental mais importante a ser fornecido à criança, para que a capacidade de “acreditar em ...” seja estabeleça, é ela poder “viver, durante o tempo adequado, num mundo subjetivo, no qual não se interrompe o mundo da realidade externa”. O mundo que começa a ser constituído de início, é o mundo subjetivo, ou seja, uma ambiência confiável, feita da totalidade dos cuidados maternos.88

Percebemos que a temporalidade subjetiva é imensurável, ela é qualitativa e não

quantitativa. Quando Winnicott fala em tempo adequado, se refere a um tempo

adequado aquele sujeito. O tempo subjetivo é expressão, ao mesmo tempo, da

criatividade primária e do suporte ambiental. Quando a criatividade primária do

sujeito é respeitada ele pode experimentar o tempo em sua continuidade,

estabelecendo assim uma base fundamental para todas as experiências futuras,

decorrentes da temporalização, e é capaz de habitar num tempo próprio, o que

confere sentido à vida e garante um modo pessoal de se relacionar com o mundo: “A

criatividade é a manutenção, através da vida, de algo que pertence à experiência

infantil: a capacidade de criar o mundo.”89

O bebê que pôde ser onipotente e criar o mundo ao seu redor, pôde dar início

ao processo de temporalização já que seu ritmo foi respeitado pelo cuidador. Isto é

87 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 167. 88 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 168. 89 Winnicott: D. W.: Home is where we start from, p. 40.

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bastante importante já que as experiências, às quais o bebê está sujeito, são vividas

como algo externo. Sem uma presença externa capaz de aplacar a angústia, o bebê

poderia cair num vazio sem tempo, ou melhor, como sugere Safra: num vácuo da

eternidade.90

...os impulsos instintivos que o atravessam, como a fome, por exemplo, necessitam ser saciados num tempo limite para que o bebê não venha a ter de se ocupar com eles, de reagir a eles. O bebê que tiver de reagir à fome, a tomará como algo tão ameaçador e traumático quanto uma sensação cutânea muito intensa, que extravase as suas capacidades de integrá-la – rasgando o seu ser –, ou quanto um objeto físico que caia sobre ele e o esmague. A fome e a sensação cutânea demasiadamente intensas, de um lado, e o objeto físico esmagador, de outro, encontram-se numa relação de exterioridade equivalente, já que excedem os limites do bebê. Nesse sentido, as únicas formas de fome, de sensação cutânea ou de ameaça “externa” benignas serão aquelas que não atinjam uma intensidade suficiente que as faça aparecer ao bebê como entidades em si. Ou seja, que permaneçam como sensações capazes de se fundir e de desaparecer na sua área de onipotência, garantida e sustentada por um ambiente suficientemente bom.91

A mãe sustenta a área de onipotência do bebê. Deste modo, ele não é

exposto prematuramente à alteridade do outro e de si. A mãe doa tempo-presença

para que o bebê temporalize, crie seu próprio tempo. Vejamos a seguir, como Naffah

descreve este estado incipiente e frágil do sujeito no início da vida:

No plano psíquico, o bebê define-se como um vazio prenhe de possibilidades de vir-a-ser, que Winnicott denomina criatividade primária. Pura virtualidade, garantida – de um lado – pela gama maior ou menor de possíveis, fornecida por essa herança biológica, mas dependendo – de outro lado – do suporte ambiental que o recém-nascido tem à disposição, para vir a dar forma à mesma.92

A criatividade primária, como virtualidade, necessita de um ambiente

favorável ao seu desenvolvimento. Este ambiente favorável é expresso pelo holding

materno, que inclui a presença e o elemento feminino puro. Sem a presença viva

ancorada numa capacidade de ser, característica do elemento feminino puro não

90 Safra, G.: op. cit.. Unimarco Editora; São Paulo, 2005. 91 Naffah, A.: op.cit., 2010. 92 Naffah, A. : A elaboração imaginativa das funções corporais e o holding materno: Winnicott e a constituição do psicossoma, este artigo não havia sido publicado até o momento atual, 2010.

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haverá holding necessário para a expressão e o desenvolvimento da criatividade

primária.

O caráter ininterrupto do fluxo de experiência, sustentado pelo holding materno, é o que possibilita o que Winnicott denominou continuidade-de-ser do bebê. Quando essa experiência é interrompida por um falso self cindido – que isola o self verdadeiro de qualquer contato, e mimetiza traços humanos circundantes, para se adaptar às demandas ambientais –, o bebê perde a possibilidade de vir-a-ser, passando a simplesmente subsistir no “como se”. É o advento das psicoses.93

Percebemos aqui como a patologia em Winnicott é a interrupção do fluxo de

experiência, é a ruptura da continuidade de ser; é a defesa contra o trauma, contra o

imprevisível. Lembramos que enquanto um bebê está reagindo ele não está sendo e

fica impossibilitado de ter experiências.

Quando os cuidados adaptativos oferecidos pela mãe ao bebê acontecem de

maneira satisfatória, eles favorecem experiências fundamentais como a integração

no tempo e espaço. A experiência de integração no tempo e espaço garantida pelo

holding materno é o que possibilita a continuidade de ser. Deste modo percebemos

a íntima relação entre holding e tempo:

É, inicialmente, no ritmo que o recém-nascido tem a possibilidade de existir de maneira singular, caso a mãe-meio ambiente possa adequar seu cuidado ao interjogo de tensões característico do bebê. A organização da dupla mãe-bebê segundo este ritmo constitui um primeiro núcleo ao redor do qual se integram elementos sensoriais, tais como: sensações táteis, sonoras, gustativas, entre outras, que irão compor o self do bebê. Este núcleo sustentado pela mãe ao longo de um período dá ao bebê duração em qualidades, levando-o a eventualmente constituir o que poderíamos denominar tempo subjetivo.94

Safra, no trecho supracitado, nos revela a importância do ritmo estabelecido

entre mãe e bebê. Como uma dança, em que o ritmo é criado a partir do encontro de

cada dupla mãe-bebê. O ritmo é apresentado por Safra como a primeira expressão

93 Naffah, A.: op.cit., 2010. 94 Safra, G.: op. cit, 2005, pp. 61-62.

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de singularidade do recém-nascido e que eventualmente possibilitará ao bebê a

constituição do tempo subjetivo.

“No começo teórico existe o estado de não-integração, uma ausência de

globalidade tanto no espaço quanto no tempo.”95 Poderíamos pensar que a

integração só é passível de ocorrer no tempo e no espaço. Como vimos

anteriormente, não se trata de um tempo cronológico, e sim um tempo vivido na

presença de um outro atento à temporalidade singular de cada um. É um tempo que

dura, contínuo. Do estado de não-integração o bebê passa a experimentar uma série

de impulsos e sensações. Nestes picos de exigências instintivas o bebê produz

integrações momentâneas que ao serem saciadas possibilitam a vivência do estado

relaxado – complementar – de não-integração novamente. A tensão vai

aumentando até um novo pico e assim por diante. A identidade do bebê neste

momento é evanescente, uma hora é o seio, outra o leite. Somente aos poucos

poderá se identificar numa unidade em torno de si-mesmo.96

À medida que o self se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças do cuidado ambiental, e portanto cuidar de si mesmo, a integração se transforma num estado cada vez mais confiável.97

A conquista de um si mesmo integrado depende de cuidados contínuos num

tempo suficiente, tempo vivido na continuidade de seu relacionamento pessoal com

uma figura atenta às sua necessidades – no melhor dos casos a mãe – para

suportar a passagem dos estados integrados para os não-integrados, e assim

sucessivamente. Quando não houver sintonia entre a necessidade instintual do bebê

e o oferecimento do alimento por parte do ambiente haverá ausência do período de

descanso necessário entre as duas ondas de exigências. Ou seja, a satisfação

incompleta do instinto levará à impossibilidade de descansar. Sem a fidedignidade,

ou seja, confiabilidade do ambiente, o sujeito deverá retrair o verdadeiro self,

esperando por um momento em que possa sair e trocar experiências com o mundo.

O verdadeiro self espera enquanto o falso self se adapta para sobreviver. Por

95 Winnicott, D. W. : Natureza Humana; tradução Davi Litman Bogomoletz. Imago, Rio de Janeiro, 1990, p. 136. 96 Gostaríamos de destacar a importância da memória para o processo de integração, assunto que abordaremos no subcapítulo seguinte. 97 Winnicott, D. W. :op. cit., 1990, p. 136

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conseguinte, a troca de experiências com o ambiente favorece a conquista do eu

como unidade, fortalecendo o processo de integração que ocorre ao longo da vida:

Ou seja, a mãe facilita ao bebê ter experiências totais. Isto requer que ela tenha tempo suficiente para esperar, no ritmo do bebê, que ele vá de uma ponta a outra da experiência, que esta tenha começo, meio e fim. Quando estamos apressados ou preocupados, não podemos facilitar acontecimentos totais e o bebê fica mais pobre.98

Estas experiências totais são fundamentais para o fortalecimento do sentido

de si-mesmo e para o estabelecimento do tempo do sujeito. A tarefa da mãe

suficientemente boa será possibilitar que o bebê realize tais tarefas, garantindo a

continuidade – sustentando a situação no tempo – através do holding, handling e

object presenting e, neste sentido, apoiando o infante da dependência absoluta à

dependência relativa. É portanto da qualidade da relação pessoal do bebê com a

mãe que surge a base para toda possibilidade de ser no tempo, e depois continuar a

ser no tempo.

A experiência de continuidade do tempo, da possibilidade de ser no tempo,

enfim, de durar, é das mais importantes e essenciais ao sujeito, pois favorece a

integração e, quando impedida, gera sofrimento psíquico significativo. “A integração

provoca um sentimento de sanidade, enquanto a perda da integração que havia sido

adquirida produz uma sensação de enlouquecimento”.99

1.2.4. O tempo da memória

“Vivo em lembranças, morro de esquecido”100

Apesar de não ter sido diretamente abordado por Winnicott, é difícil pensar na

constituição do tempo sem contemplar o papel da memória. Ambos estão

intimamente ligados. É difícil, também, pensar na teoria de Winnicott sem ela já que

é dele a frase: “A partir de uma certa data anterior ao nascimento, nada daquilo que

98 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 201. 99 Winnicott, D. W.: op. cit., 1990, p. 138. 100 Camões, L. .: Sonetos, Editora Lacerda, São Paulo,1998.

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um ser humano vivencia é perdido.”101 Para que algo não seja perdido, deve ser

guardado, este é o papel da memória. No início existe apenas a memória corporal,

sem representação, Winnicott chama isto de elaboração imaginativa das funções

corporais. Somente depois é que podemos falar em memória como representação.

A memória é fundamental, já que é ela que articula passado, presente e

futuro. É ela que torna possível a continuidade entre passado, presente e futuro. Por

via da memória, somos capazes de nos organizar em torno de uma identidade. No

início da vida esta identidade é extremamente frágil; será por via do processo de

amadurecimento que ela se tornará mais “sólida”.

Fazer memória das experiências vividas denota o início do ser humano:

“Fazer experiências e ter memórias dessas experiências é o que demarca o início do

ser humano.”102 A memória possibilita que o bebê temporalize; porque ao guardar a

memória da satisfação proveniente de uma mamada, o bebê é capaz de descansar.

Fazendo isto, volta para um período de não-integração, até a próxima urgência

instintiva. Como vimos anteriormente, no início, as integrações são momentâneas, e

ocorrem somente nos picos de excitação. Posteriormente, com a repetição destes

ciclos sustentados pelo ambiente, a memória deste fluxo, que compreende estados

integrados e não integrados, passa a ser mais previsível. Com a previsibilidade

deste ciclo a integração passa, também, a ser menos ameaçadora.103A memória tem

um papel fundamental em todo o processo de integração, do início ao fim da vida. A

memória da presença da mãe e a memória da experiência inicial de ilusão, são a

base de uma vida saudável. Poderíamos compreender o delírio psicótico como uma

tentativa, artificial, de viver a experiência inicial de ilusão.

O início pessoal, ou seja, a base da existência implica o estabelecimento de um sistema de memórias e uma organização de lembranças. O apagamento da memória da presença é um dos

101 Winnicott, D. W.: Natureza Humana; tradução Davi Litman Bogomoletz. Imago, Rio de Janeiro, 1990, p. 147. 102 Dias, E. O. : op cit., 2003, p. 198. 103 O estado de integração gera ansiedade de perda da integração, isto muitas vezes é vivido na forma da paranóia. No estado não-integrado não há identidade sob ameaça de ser perdida, quando a integração já é uma realidade sim.

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traumas específicos que aparecem na etiologia das patologias psicóticas.104

Talvez a etiologia das patologias psicóticas esteja menos implicada no

apagamento da memória e mais ancorada na falta dela. Partindo do pressuposto de

que só há memória quando há experiência, e as experiências precisam de tempo

para serem vividas de “ponta a ponta”, sem pressa. Percebemos isto claramente nos

pacientes de tipo falso self patológico, que são incapazes de construir uma narrativa

das próprias experiências. São pacientes que contam os acontecimentos de sua

vida, inclusive situações íntimas, como se fossem dados. São capazes de lembrar

fatos específicos sobre determinada data, mas não contam com a memória de si. É

a memória de si que garante identidade ao sujeito,

Não há sentido de realidade possível – nem do corpo, nem do mundo, nem de si-mesmo – fora de um espaço e de um tempo; não há indivíduo se não houver uma memória de si, aquilo que mantém a identidade em meio às transformações.105

A terapia é, em muitos casos, uma nova chance do sujeito constituir seu

modo de ser contínuo através do encontro com a presença do analista, uma

presença-testemunha do nascimento da possibilidade do sujeito ter memória. Não

há memória de si sem a presença do outro. Lembramos novamente do paciente que,

ao olhar para seu passado, não via nada, dizia que tinha amnésia. Neste caso não

havia memória, pois não sentia-se vivo, vivera a partir de uma temporalidade

externa, falsa, por isto seu passado não lhe parecia real. Lembramos de outro

paciente que buscava a terapia como um meio de resgatar a memória de seu

passado, pois não a tinha. Da mesma maneira, não há possibilidade de um sujeito

ser no tempo, sem que cuidado (no tempo) lhe tenha sido dado: apenas com o

tempo, o tempo é conquistado.106

A memória tem um papel fundamental também na área intermediária da

experiência humana, no espaço potencial. O bebê que é capaz de manter viva a

104 Dias, E. O.: op cit., 2003, p. 198. 105 Dias, E. O.:op. cit., 2003, p. 197. 106 Elliot, T. S.: Poesia / T. S. Elliot; tradução e notas de Ivan Junqueira, 1ª edição especial, Rio de Janeiro; Nova Fronteira; 2006, p. 210.

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presença da mãe através da memorização dos cuidados recebidos e das

experiências vividas no período de dependência absoluta poderá usufruir do espaço

potencial através da criação do objeto transicional.

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CAPÍTULO II: TEMPO TRANSICIONAL OU TEMPO EM QUE O BEBÊ

É CAPAZ DE MANTER VIVA A MEMÓRIA DA PRESENÇA DA MÃE

“A passagem do mundo subjetivo, que nunca se perde, ao mundo transicional, só se dá no tempo, e requer tempo para estabelecer-se como

conquista.” 107

Considerando a temporalidade subjetiva do início da vida e a temporalidade

objetiva (cronológica) da vida adulta, nos deparamos com a seguinte indagação:

qual é experiência de tempo que o bebê, ou adulto, tem nesta área intermediária

denominada espaço potencial?

Como discutimos no capítulo anterior, o bebê está sustentado na

temporalidade subjetiva, ou da experiência. Após um tempo necessário108 de

relacionamento com objetos subjetivamente percebidos o bebê poderá criar a

primeira posse não-eu, o objeto transicional e “...no devido tempo esse espaço será

preenchido pelos fenômenos e objetos transicionais que são, simultaneamente,

parte do bebê e parte do ambiente.”109 O objeto não é transicional em si, mas ele

marca a transição do modo de se relacionar do bebê – que passa de um estado em

que está misturado com a mãe a um estado em que está separado. Poderíamos

compreender este processo como o acontecer humano no tempo que vai desde a

experiência do tempo subjetivo até a capacidade de compartilhar com outros o

tempo cronológico, mas : “o contato com a realidade depende fundamentalmente da

criatividade, sem a qual nenhuma realidade, nem mesmo a externa – e, talvez,

sobretudo, não a externa – pode ser alcançada ou ter significado.”110 O bebê deixa

de ter o objeto (mãe) como um objeto subjetivo, passa pelo período de desilusão,

pela transicionalidade, pelo uso do objeto, para finalmente ter a mãe como um objeto

objetivamente percebido. Ao final deste processo existem duas pessoas inteiras. Na

teoria winnicottiana este processo nunca é plenamente realizado, de modo que o

107 Dias, E. O.:op. cit., 2003, p. 239. 108 Variável para cada bebê. 109 Dias, E. O.:op. cit., 2003, p. 132. 110 Dias, E. O.:op. cit., 2003, p. 241.

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objeto deve sempre guardar algo de subjetivo para que a capacidade de se

relacionar de modo criativo seja preservada.

A criação, por parte do bebê, de um objeto transicional é de fundamental

importância. A passagem do mundo subjetivo para o mundo transicional depende da

vivacidade e da confiabilidade das experiências vividas com os objetos subjetivos no

tempo subjetivo e da continuidade dos cuidados maternos – depende da situação

ser mantida no tempo. Para a criação de um objeto transicional os objetos subjetivo

e objetivo devem permanecer vivos. Um bebê que não tenha tido a possibilidade de

ser no tempo subjetivo não poderá distrair-se com o objeto transicional, ao contrário,

ficará atento à futuras ameaças.

Gostaríamos de introduzir agora a ideia de uma temporalidade característica

do espaço potencial, uma temporalidade que inicia o sujeito num novo modo de ser

no ambiente através do uso da primeira posse “não-eu”, o objeto transicional: “Estou

interessado na primeira posse e na área intermediária entre o subjetivo e aquilo que

é objetivamente percebido.”111 A área intermediária da experimentação humana é

uma área em que contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Nas

palavras de Winnicott: “Reinvidico aqui um estado intermediário entre a inabilidade

de um bebê e sua crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade.”112 Na

área intermediária o bebê tem a difícil tarefa de manter as realidades interna e

externa separadas, porém inter-relacionadas.113 Manter estas realidades, implica,

segundo nosso entendimento na manutenção dos tempos característicos a cada

uma delas. Se a realidade subjetiva é experimentada, pelo bebê, a partir de um

tempo subjetivo temos motivo para acreditar que a realidade objetivamente

percebida é vivida numa dimensão temporal diferente da temporalidade subjetiva. E

mais, sendo que Winnicott foi o autor na psicanálise que introduziu uma terceira área

da experiência, que fica entre o subjetivo e o que é objetivamente percebido,

devemos considerar uma temporalidade característica e própria a esta área

incontestada da experiência humana.

111 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 15.

112 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 15.

113 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 15.

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Creio que há uso para um termo que designe a raiz do simbolismo no tempo, um termo que descreva a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a objetividade, e parece-me que o objeto transicional (ponta do cobertor, etc) é o que percebemos dessa jornada de progresso no sentido da experimentação. 114

Se o objeto transicional é o que podemos perceber desta transição,

gostaríamos de considerar também a dimensão temporal deste processo. A criação

de um objeto transicional, primeira posse não-eu, depende de uma temporalidade

subjetiva que sustente a memória viva da presença da mãe. O bebê precisa ter tido

boas experiências no período de dependência absoluta para que possa inaugurar o

espaço potencial com a criação do objeto transicional: “Para todo indivíduo, o uso

deste espaço é determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos estádios

primitivos de sua existência.”115 Poderíamos supor, portanto, que a temporalidade no

espaço potencial é marcada pela sustentação, pelo bebê, do valor simbólico do

objeto transicional. A eficácia simbólica do objeto transicional depende da presença

da mãe já que o bebê só poderá manter viva a memória da presença da mãe por um

determinado tempo. Este tempo é variável, sendo assim, cada bebê tem seu tempo

de eficácia simbólica.

Mesmo tendo sido iniciados o processo de separação e a atividade simbólica, isto não garante que a imagem e o significado do objeto transicional se mantenham vivos, a não ser que o cuidado materno concreto permaneça sustentando a continuidade do processo. Ou seja, o bebê pode utilizar o objeto transicional para fazer as vezes da mãe, enquanto o objeto subjetivo está vivo, é real, suficientemente bom e não muito persecutório.116

A temporalidade transicional é uma temporalidade criada no entre da relação

mãe-bebê, entre os períodos de presença e ausência da mãe e entre o eu e o não-

eu. Mas é importante lembrar que ainda não há relação com objetos objetivamente

percebidos:

Desde o início, o bebê tem experiências maximamente intensas no espaço potencial existente entre o objeto subjetivo e o objeto

114 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 19.

115 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 139.

116 Dias, E. O.:op. cit., 2003, p. 239..

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objetivamente percebido, entre as extensões do eu e o não-eu. Esse espaço potencial encontra-se na interação entre nada haver senão eu e a existência de objetos e fenômenos situados fora do controle onipotente.117

O tempo transicional dura enquanto a memória da presença da mãe durar,

neste tempo de eficácia simbólica do objeto transicional, o bebê pode se manter

entretido com o objeto transicional e, depois, perder-se no brincar. O tempo

transicional, sustentado no tempo subjetivo, marca o início de toda a atividade

criativa na vida do sujeito. O tempo da eficácia simbólica será a base para a criação

do objeto transicional e para o brincar. Uma criança com falhas no processo de

estabelecimento do tempo subjetivo terá falhas ou ausência na constituição de um

tempo transicional, que está entre a temporalidade subjetiva e a temporalidade

objetiva, cronológica. Estas falhas serão vividas como incapacidade de brincar ou

ausência de um objeto transicional.

2.1. A temporalidade transicional do brincar

“Se a gente não brinca o tempo não passa.” 118

Dificilmente discordaríamos da frase supracitada, ela carrega uma verdade

que conhecemos mesmo que não saibamos dar nome a ela. Com este capítulo

gostaríamos de, com Winnicott e a partir da clínica, compreender melhor a

importância da temporalidade para o estabelecimento do brincar criativo.

Começaremos com a seguinte indagação: “o que quer dizer: se a gente não brinca o

tempo não passa”?

Acreditamos que esta frase nos revela a diferença qualitativa que o sujeito

pode ter em relação ao tempo. Vejamos por que: o tempo objetivo, cronológico,

passa igual para todos mas a experiência que temos do tempo é algo absolutamente

pessoal. É no brincar que o sujeito mantém seu tempo subjetivo e tempo

117 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 139.

118 Ouvi esta frase de uma funcionária de uma rede de supermercados.

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cronológico, do mundo, separados ainda que inter-relacionados. É a partir da

temporalidade transicional, sustentada no tempo subjetivo que o sujeito poderá

brincar e aliviar-se do peso das horas. Poderíamos entender o temporalidade

transicional como a temporalidade criativa e saudável que estabelece o ritmo da

relação do sujeito com o mundo.

A criatividade está, portanto, a serviço do contato com a realidade; relaciona-se ao estar vivo e sentir-se real, à maneira pela qual o indivíduo permite à realidade aparecer, pela qual recepciona os acontecimentos, ou seja, ao modo como qualquer pessoa – bebê, criança, adulto ou velho – olha para algo ou realiza alguma coisa.119

O sujeito saudável pode se relacionar com o mundo,120 sem perder contato

com sua própria singularidade, marcada aqui, pelo seu próprio tempo. Esta é a

característica que gostaríamos de destacar do espaço potencial: um espaço que dá

lugar a um modo específico de temporalização: o tempo transicional ou o tempo em

que o bebê pode manter viva a memória da presença da mãe.

Percebemos que o desenvolvimento destas ideias nos coloca diante de um

assunto bastante privilegiado por Winnicott: o gesto espontâneo que ocorre no

espaço potencial – o brincar. Winnicott, em seu trabalho, além de tomar o brincar

como um dos aspectos centrais de sua teoria, aponta para o brincar no adulto e nas

crianças como um indicador de saúde mental.121 Ou seja, de uma maneira

simplificada: se um indivíduo é capaz de brincar, ele não está tão mal. Nas palavras

do próprio autor:”..o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de

trazer o paciente de um estado em que ele não é capaz de brincar para um estado

em que o é.”.122 Esta afirmação é, dentro da teoria winnicottiana, universal, ou seja,

vale para crianças e adultos.

119 Dias, E. O.:op. cit., 2003, p. 242.

120 Por outro lado, a capacidade de se relacionar com o mundo contempla, também, a dimensão do

tempo do outro, expresso em última instância pelo tempo cronológico (relação com objeto objetivamente percebido) mas esta será uma conquista após a fase do EU SOU. Antes desta aquisição o bebê deve ser preservado da dimensão do tempo objetivo, do outro ou cronológico. Discussão a ser continuada no sub-capítulo seguinte. 121 Lembramos o leitor da intenção deste trabalho de ler a psicopatologia winnicottiana à luz dos processos de temporalização do sujeito. Deste modo, caberá a nós a tarefa de relacionar capacidade de brincar e o tempo. 122 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 39.

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Ao introduzir o brincar como elemento importante da psicopatologia humana,

que define o que é saudável e o que é doente, Winnicott propõe um novo lugar ao

brincar. É em Playing and Reality (1971) que o autor diferencia sua compreensão do

brincar da concepção tradicionalmente apresentada pela psicanálise, principalmente

através dos trabalhos de Melanie Klein. Klein é conhecida por ter iniciado a

psicanálise com crianças e utilizava, durante as sessões, o brincar de maneira

análoga à linguagem do adulto no setting analítico. A partir do brincar buscava

compreender os conflitos da criança. Para Klein, através da brincadeira, a criança

poderia extravasar sua agressividade, elaborar situações e fantasias. Segundo

Winnicott, a psicanálise em geral, e a autora em questão, se preocuparam

principalmente com a função do brincar e não com o brincar em si. O autor enfatiza

que seu interesse é estudar o brincar em si e não o brincar a serviço da terapia; seu

argumento principal é de que a própria capacidade de brincar já é um excelente

indicativo de “saúde mental” do paciente, inclusive dos adultos. Sendo assim, em

situações em que o paciente for incapaz de brincar, a primeira tarefa do terapeuta é

trabalhar para que se estabeleça ou restabeleça a capacidade de fazê-lo. Sobre a

falta na psicanálise de um estudo acerca do brincar, Winnicott comenta:

Sinto-me incentivado pelo destino feliz concedido ao conceito dos fenômenos transicionais e inclino-me a pensar que minhas tentativas atuais de dizer o que penso sobre o brincar também possam ser prontamente aceitáveis. Existe algo sobre o brincar que ainda não encontrou lugar na literatura psicanalítica123.

A original contribuição do autor nesta questão diz respeito também à

localização do brincar. Tradicionalmente na psicanálise as experiências eram

pensadas sob a dicotomia interno-externo, dentro-fora. Winnicott propõe pensar

numa área intermediária da experiência humana, que não é nem dentro, nem fora. É

um espaço entre, uma área intermediária por ele nomeada de espaço potencial.

Dando continuidade a este raciocínio, o tempo do espaço potencial também deveria

ser pensado dentro de uma área intermediária da experiência humana. Seria o modo

de temporalização entre o tempo subjetivo, contínuo, primário, vivido no período de

depêndencia absoluta e o tempo objetivo, marcado pela alteridade. A

transicionalidade seria a característica do tempo que garante ao sujeito a

123 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 62.

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capacidade de brincar dentro do espaço potencial. Sabemos, inicialmente, que é

neste espaço-tempo potencial que para Winnicott se dá o brincar. Um espaço que

era inicialmente o espaço entre o bebê e sua mãe se expande para além da infância,

na vida adulta, tornando-se o espaço da cultura.

Como mencionamos anteriormente, o destaque conferido a Winnicott, dá-se

pelo fato deste autor nos proporcionar uma nova compreensão sobre os fatores

envolvidos no brincar e nos revelar que o brincar é não apenas importante, porém

fundamental por diversos motivos; entre eles, talvez os fundamentais seriam a

experiência de integração do self ou si-mesmo e o sentimento de que a vida vale a

pena ser vivida. Sem a capacidade criativa, o sujeito estaria preso a um sentimento

de inutilidade e de que nada vale a pena, já que estaria vivendo de maneira não

criativa e o mundo passaria a ser reconhecido apenas como um local ao qual é

necessário se adaptar. Segundo Winnicott, é a partir da expressão da criatividade

que integramos nosso self. Se a capacidade de brincar pode nos indicar o estado de

saúde mental de um indivíduo, temos bons motivos para estudar este tema em sua

relação com a temporalidade do sujeito. Para Winnicott o brincar, apesar de ser uma

atividade do dia-a-dia, corriqueira e natural, não é vivida verdadeiramente por todos.

O brincar verdadeiro, saudável, seria então aquele que surgisse do verdadeiro e não

do falso self patológico. Mas o que faria então um self ter estrutura suficiente para

brincar e outro não? Segundo Winnicott, é na experiência inicial da vida do indivíduo

e no sentimento de confiança estabelecido na relação primordial mãe-bebê, que está

a base de toda a possibilidade criativa e cultural no adulto. “Há uma evolução direta

dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado,

e deste para as experiências culturais.”124 O brincar é, portanto, herança da

experiência de confiança vivida a partir da relação inicial mãe-bebê.

No livro Playing and Reality (O Brincar e a Realidade) de Winnicott (1975)

encontrou-se muitas referências à idéia de “transicionalidade” entendida como o

conjunto de fenômenos que se dá ao longo do tempo no espaço potencial.

Poderíamos compreender a transicionalidade como um conjunto de fenômenos que

impulsiona o sujeito a sair de si em busca do mundo. Esta temporalidade é melhor

124 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p. 76.

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representada pelo brincar. A naturalidade com que isto se dá em casos saudáveis

nos faz perder dimensão da fragilidade de todo este processo e das enormes

conquistas que elas representam para o bebê ou para o paciente na clínica que terá

de reconstruir, com seu analista, a capacidade de experimentar o mundo a partir do

tempo transicional. E quem sabe assim o sujeito poderá, a partir de sua

temporalidade subjetiva, destinar-se ao futuro por meio de sua criatividade.125

2.2. Nota sobre a incapacidade de brincar

“Suponhamos que aquele bebê, separado com poucos dias de sua mãe, se torne uma criança incapaz de brincar espontanamente.”

Aparentemente teremos que fazer malabarismos teóricos para contemplar a

possibilidade de uma criança incapaz de brincar. Infelizmente, a clínica nos mostra

que há diferença entre o brincar espontâneo e o brincar reativo, por isto não é tão

distante a ideia de uma criança incapaz de brincar criativamente, ou seja, a partir de

uma temporalidade transicional, sustentada na temporalidade subjetiva. No caso de

um bebê separado aos poucos dias de sua mãe, supomos que ele não tenha tido

oportunidade de criar um tempo subjetivo que sustentasse o tempo transicional. Sem

estes tempos não há criação de espaço potencial ou do objeto transicional: “Se a

mãe ficar longe por um período de tempo além de certo limite medido em minutos,

horas ou dias, então a lembrança, ou a representação interna, se esmaece. À

medida que isso ocorre, os fenômenos transicionais se tornam gradativamente sem

sentido e o bebê não pode experimentá-los.”126

A influência da falha de cuidados precoces na capacidade de brincar

criativamente é enorme e pode revelar algo importante sobre a temporalidade. Por

que o brincar? Pois, "É com base no brincar, que se constrói a totalidade da

existência experimental do homem"127. Isto nos remete a uma resposta de Winnicott

a um grupo de padres anglicanos. Na ocasião eles perguntaram como poderiam

125 Safra, G.: op. cit. 2004, p. 76.

126 Winnicott. D. W.: op. cit., 1975, p. 31.

127 Winnicott. D. W.: op. cit., 1975, p.93.

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diferenciar uma pessoa que procura ajuda e está doente, precisando de tratamento,

e outra que pode ser ajudada por converas com os padres. Winnicott deu a eles uma

resposta muito boa: “Se uma pessoa fala com vocês e ao ouvirem, sentem que ela

os entedia profundamente, então ela está doente e precisa de tratamento

psiquiátrico. Mas se ela é capaz de sustentar seu interesse, não importa quão grave

é o problema ou conflito, vocês poderão ajudá-la"128. A criança que é incapaz de

perder-se no brincar, de se entregar à brincadeira, precisa de muita ajuda, e por este

motivo tal trecho de Winnicott relacionando o tédio faz sentido, já que revela o

contato com uma estrutura falsa, defensiva, que pode se manifestar na incapacidade

de brincar. Deste modo, o tédio do analista estaria de acordo com a falsidade

(doença) do paciente.

É através da apercepção criativa, mais do que qualquer coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um sentimento de submissão com a realidade externa em que o mundo [...] é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida [...] De uma ou de outra forma nossa teoria inclui a crença de que viver criativamente constitui um estado saudável, e de que a submissão é uma base doentia para a vida.129

Em ressonância com este trabalho a leitura que fazemos da frase de

Winnicott supracitada “submissão com a realidade externa” poderia ser substituída

por “submissão à temporalidade do outro”. Sabemos que quando um bebê é

invadido precocemente por falta ou excesso do ambiente ele tem que se adequar à

realidade externa. O bebê é obrigado a se submeter à realidade externa, deve

“parar” seu verdadeiro self no tempo, pois ele se vê implicado numa submissão

violenta e aniquiladora – a submissão ao tempo do outro.

Pensando no brincar como expressão da própria criatividade do sujeito e

enquanto afirmação do self verdadeiro que atribui sentido ao existir e contém algo da

própria temporalidade, percebemos em contrapartida, que muitos pacientes reagem

ao ambiente e são extremamente hábeis ao se adaptar: “A experiência clínica

mostra que, ao lado da desadaptação inicial mãe-filho, o medo de novamente ser

128 Este trecho está na introdução que Masud Khan faz ao livro Holding and Interpretation de Winnicott. 129 Winnicott. D. W.: op. cit., 1975, p.95, grifos meus.

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abandonado contribui para a formação de uma parte de si mesmo excessivamente

preocupada em ser aceita pelo ambiente.”130

A permanência (duração) do analista ao longo do tempo talvez seja o mais

reparador para estes pacientes. A sobrevivência das figuras cuidadoras é capaz de

diminuir a persecutoriedade da criança ao se deixarem ser reparadas na medida em

que sobrevivem às suas agressões. Este é um ponto importante, pois a integração

da agressividade depende de um ambiente que sobreviva aos ataques – ao longo do

tempo. Um bebê abandonado pela mãe, possivelmente em sua fantasia, "matou sua

mãe", já que ela não durou ao lado dele para mostrar que sua agressividade poderia

ser reparadora. Neste caso, a criança nunca teve a oportunidade de confiar na

própria capacidade reparadora.

Poderíamos pensar na oscilação entre submissão e agressividade, utilizando

a imagem do cachorro131, que a criança ao brincar na sessão é um cachorro doce,

manso, obediente ao dono, na medida em que quer agradar e brincar

adequadamente. Entretanto no momento seguinte é “desobediente” e parece testar

"se você ainda está lá", ou seja, a permanência daquele que está ao seu lado. Sobre

isto Levizon diz:

Pude observar que quando a criança adquire confiança suficiente no analista, passa a utilizar vários tipos de experimentações na busca de um contato com um self mais verdadeiro. Ela "testa" o analista, certifica-se de que sua instintualidade pode ser aceita e que ele sobrevive a ela, o que resulta em um verdadeiro sentimento de "adoção".132

Sabemos que o espaço potencial acontece apenas em relação a um

sentimento de confiança por parte do bebê, isto é, confiança relacionada à

fidedignidade da figura materna ou dos elementos ambientais, com a confiança

sendo a prova da fidedignidade que se está introjetando.133 A disparidade dos

cuidados que este “nosso bebê”134 recebeu comparados aos cuidados da mãe

130 Levizon, G. K.: Adoção, Casa do psicólogo, São Paulo, 2009, p. 112. 131 Imagem trazida por um paciente à sessão. 132 Levizon, G. K.: op. cit., p. 113. 133 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.139. 134 o bebê hipotético, citado no início no subcapítulo, separado de sua mãe aos poucos dias de idade.

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suficientemente boa definidos por Winnicott é enorme. A mãe desta criança não foi

aquela mãe que oferece cuidados do “holding” e “handling”, que se caracterizam

pela continuidade, previsibilidade de alimentação, higiene, colo, calor humano,

proteção, acolhimento. Uma mãe desinvestida e desinteressada do mundo externo

se adapta ao bebê e às suas necessidades. Só assim a mãe garante ao bebê a

ilusão necessária de que "os dois são um" e que o bebê controla onipotentemente a

mãe e seu seio. Esta experiência de ilusão, no primeiro momento de vida, é

absolutamente necessária para que a desilusão possa ser vivida posteriormente. No

estado de confiança que se desenvolve quando a mãe pôde desempenhar-se bem

dessa difícil tarefa (não se for incapaz de fazê-la), o bebê começa a gozar de

experiências baseadas num “casamento” de sua onipotência com o controle que tem

do real. A confiança na mãe cria aqui um playground intermediário, onde a idéia da

magia se origina, visto que o bebê, até certo ponto, experimenta a onipotência.

Chamo isso de playground porque a brincadeira começa aqui. O playground é um

espaço potencial entre a mãe e o bebê, ou que une mãe e bebê.135

Ainda com Winnicott podemos dizer que o primeiro ano de vida é de

fundamental importância para o estabelecimento da relação de confiança e

fidedignidade no ambiente. Aqui podemos destacar o início da possibilidade de

brincar na criança e no adulto, vivido no espaço potencial: “Onde há confiança e

fidedignidade há também um espaço potencial, espaço que pode tornar-se uma

área infinita de separação, e o bebê, a criança, o adolescente e o adulto podem

preenchê-la criativamente com o brincar, que, com o tempo, se transforma na fruição

da herança cultural"136. Destaca-se, assim, o caráter variável do espaço potencial:

"O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o

indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à

confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que

experimenta o viver criativo"137. Podemos dizer que em um caso o espaço potencial

existe de fato e no outro não, já que ele não é preenchido com a criatividade do

sujeito e sim com material injetado por outra pessoa, em geral o cuidador, a mãe.

135 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.71 (grifos meus). 136 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.150. 137 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.142.

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Enquanto um se baseia na experiência de confiança, o outro é fundamentado

na necessidade de se defender de um ambiente invasivo. O brincar criativo se

baseia na experiência de confiança e é a continuidade e a previsibilidade dos

cuidados maternos que possibilitam esta vivência. Como vimos anteriormente, é

deste sentimento de confiança neste estado relaxado que o brincar espontâneo

pode surgir, e é na sua ausência que não. A inibição do brincar ocorre quando o

fracasso da fidedignidade devido às falhas ambientais – falhas de sentir e atender às

necessidades do bebê – gera, ao contrário da experiência anterior, uma experiência

de ruptura, de não continuidade. Ruptura que caracteriza a vida de um bebê

separado precocemente da mãe.

O estudo dos efeitos da perda em qualquer estádio primitivo envolve-nos no exame dessa área intermediária, ou espaço potencial entre sujeito e objeto. O fracasso da fidedignidade ou perda do objeto significa, para a criança, perda da área da brincadeira e perda de um símbolo significativo. Em circunstâncias favoráveis, o espaço potencial se preenche com os produtos da própria imaginação criativa do bebê. Nas desfavoráveis, há ausência do uso criativo de objetos, ou esse uso é relativamente incerto. Já descrevi (Winnicott,1960a) o modo como a defesa do eu (self) falso e submisso aparece, quando se oculta o verdadeiro eu (self) com potencial para uso criativo dos objetos.138

A continuidade dos cuidados maternos ao longo do tempo garantem a

experiência de confiança, já que o bebê pode permanecer relaxado, tranqüilo e

seguro. Deste estado relaxado pode surgir a ação criativa do bebê – o gesto

espontâneo. Na sua capacidade adaptativa a mãe atribui importância e significado à

manifestação criativa do infante, garantindo assim ao bebê a possibilidade de

experimentar a confiança no próprio impulso criativo. Desta experiência resultaria o

senso de existir.

Quando o espaço potencial não existe não há lugar para o acolhimento do

impulso criativo e assim há descontinuidade da experiência de integração. O bebê,

por não se sentir visto nem ouvido por este ambiente que não acolhe seus gestos

espontâneos, aprende que não pode expressar sua criatividade e que a

manifestação criativa a partir do verdadeiro self não é bem vinda. Deixa assim de

138 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.141.

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reconhecer o ambiente como um lugar confiável para o seu desenvolvimento a partir

do verdadeiro self, entrando em ação um mecanismo de defesa conhecido como

estrutura de falso self. Nestes casos, há uma descontinuidade da existência e o

senso de existir e do self (si-mesmo) serão afetados. Na estrutura de falso self, a

ação criativa é substituída pela reação, pela adaptação ao ambiente, caracteristica

de nosso paciente. Nestas situações o espaço potencial foi preenchido por material

de outra pessoa e não com a própria criatividade do bebê. O ambiente não permitiu

a experiência ao bebê de criar o mundo e usufruir da própria criatividade no seu

próprio tempo. Ou seja:

De acordo com o que é descrito neste capítulo, há em primeiro lugar a necessidade de proteção do relacionamento bebê-mãe e bebê-genitor, no estádio primitivo do desenvolvimento de todo menino ou menina, de forma a que possa ser criado o espaço potencial em que, devido à confiança, a criança brinque criativamente.139

É, portanto, no espaço potencial que se dá o início da possibilidade criativa da

criança e do adulto. E é aqui que se desenrola o trabalho de análise, criando um

ambiente de confiança, que se configure como espaço-tempo potencial para o ato

criativo. Se as condições não foram as necessárias no início da vida, de modo a

impossibilitar a vivência deste sentimento de confiança em relação ao ambiente, o

desenvolvimento do sujeito será afetado na sua capacidade de brincar e no

sentimento de que a vida vale a pena ser vivida (entendidos como a mesma coisa).

Nos casos de falhas ambientais, em que há ausência deste espaço potencial, não

há possibilidade de erigir um brincar espontâneo, fruto da própria criatividade do

indivíduo. Tomemos como exemplo um bebê que precisou se defender logo cedo

acionando a estrutura do falso self para preservar o verdadeiro self das agressões /

invasões do ambiente.Este bebê não criou um objeto transicional porque os gestos

espontâneos não foram acolhidos pela mãe. Este bebê não pôde confiar em seu

impulso criativo, ao contrário, precisou escondê-lo de futuras ofensas. Aprendeu

também, em sua relação inicial com a mãe - incapaz de vê-lo naquilo que ele trazia

ao mundo - que ele não deve criar, ao contrário, deve se adequar, se adequar às

exigências da mãe ambiente que tão cedo impediram o desenvolvimento do espaço

139 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.152.

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potencial. É isto que pretendemos romper no processo de terapia, dar tempo a um

processo fundamental que não pôde ocorrer. A partir da relação de confiança com o

analista o paciente pode experimentar o tempo subjetivo, tempo que ficou cindido e

protegido pela estrutura falsa.

Vale destacar aqui o sentido da palavra playground em inglês, que na

tradução literal contém duas outras palavras play (brincar) e ground (chão),

literalmente significando o chão do brincar. Deste modo, podemos concluir com a

frase de Winnicott: A psicoterapia se realiza na sobreposição de duas áreas do

brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia tem a ver com duas pessoas

que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho do

terapeuta é dirigido no sentido de trazer o paciente de um estado em que ele não

consegue brincar para um estado em que ele é capaz de brincar.140Nosso trabalho

nos permite brincar com a frase de Winnicott: “O playground é um espaço

potencial”141 que nos diz que o espaço potencial é o chão do brincar. A base do

brincar, o playground, seria um tempo-espaço potencial, construído no tempo-

espaço da relação mãe-bebê ou na dupla paciente-terapeuta.

Deste modo, esperamos ter destacado a importância da temporalidade

subjetiva como uma temporalidade que sustenta o sujeito ao longo de sua vida e faz

com que o relacionar-se com o mundo seja criativo e não-submisso ou patológico.

Há muito destaque na literatura psicanalítica sobre a importância dos cuidados

maternos primários, da mãe suficientemente boa, para a saúde psíquica do bebê,

mas o tempo deste holding parece ter recebido destaque menor. Esperamos ter

dado devida ênfase ao que julgamos ser uma conquista importantíssima desta

relação mãe-bebê mas que em geral recebe menos atenção: a criação de um tempo

próprio que sustente o sujeito em direção aos objetos – e possibilite a criação dos

tempos subjetivo e transicional.

140 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.59. 141 Winnicott, D. W.: op. cit., 1975, p.71.

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CAPÍTULO III: O TEMPO OBJETIVO E O FALSO-SELF PATOLÓGICO

E O TEMPO NA CLÍNICA

3.1. O tempo objetivo ou cronológico e o falso self patológico

“seu verdadeiro self tem seu próprio tempo, ao contrário de seu

falso self que se mantém em contato com os relógios.”142

O que está por trás desta afirmação de Winnicott?143 O verdadeiro e o falso

self tem tempos diferentes? Acreditamos que sim, que neles se expressam modos

distintos de temporalização. O verdadeiro self tem um tempo próprio, o tempo

subjetivo da experiência que dura ao longo do tempo, demora, mora na experiência,

enquanto que o falso self assume uma temporalidade, externa, cronológica. O

indivíduo saudável tem conhecimento destes dois tempos, ele vive a vida e, deste

modo, atende e compartilha a uma ordem cronológica ao tempo, mas não deixa de

ter contato com um ritmo e uma cadência própria a tudo que faz. O sujeito saudável

vive no tempo transicional, ancorado no tempo subjetivo.

A patologia ocorre quando estas duas temporalidades não transitam entre si

no espaço potencial e ficam cindidas. O bebê que não constituiu um tempo próprio,

a partir da previsibilidade e confiabilidade dos cuidados maternos, que não pôde

viver um tempo de experiências na presença viva da mãe, e assim, ser a partir de

seu elemento feminino puro e integrar-se ao longo do tempo; viverá numa

temporalidade que não é sua. Neste caso é como se ele (bebê) precisasse desde

cedo deixar de viver no próprio ritmo e assumisse a temporalidade externa

(inicialmente de sua mãe) como própria. Naturalmente este bebê que não pôde viver

na continuidade do tempo subjetivo fica roubado desta experiência de temporalidade

própria e passa a “viver no tempo dos outros”. A mãe é inicialmente este outro e

viver na sua temporalidade significa se adaptar à ela. Isto significa a morte para o 142 Winnicott, D. W.: Holding and Interpretation. Grove Press; New York, 1987, p. 125. 143 Este trecho supracitado foi extraído do caso B., no livro Holding e Interpretação : são palavras

que Winnicott fala ao seu paciente.

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bebê que interrompe sua vivacidade em seu tempo para viver em uma

temporalidade externa. Podemos entender a fala de Winnicott ao seu paciente,

citada abaixo, como um exemplo claro disto que pretendemos explicitar:

Eu sinto que você não se dá tempo. Se você estiver se comunicando a partir de seu self intelectual, daí claro que não há sentido em esperar e é natural que você comece a falar imediatamente. Se, ao contrário, for seu self emocional que está aqui, então é improvável que você tenha o impulso de falar exatamente no mesmo momento em que eu me torno disponível.144

Winnicott estava, claramente, fazendo uma distinção do tempo objetivamente

percebido e do tempo subjetivamente percebido. Acreditamos que o autor não usou

verdadeiro e falso self por se dirigir a um paciente, mas é assim que devemos ler o

trecho supracitado: como uma distinção do tempo subjetivo do self verdadeiro e

objetivo do falso self. O falso self assume a temporalidade compartilhada, objetiva,

como própria. O tempo objetivo pode ser apreendido intelectualmente mas não

compreende a experiência do tempo subjetivo – de ser no tempo.

O que podemos observar em muitos pacientes que chegam ao consultório é

que esta temporalidade “do outro” passa a ser a única temporalidade a que eles tem

acesso. Como um paciente que, mencionado anteriormente, controlava o tempo da

sessão a cada instante. Sem o relógio ele se sentia absolutamente perdido, sem o

relógio que representaria um tempo do outro, este paciente entrava num vazio

existencial enorme. Não havia uma dimensão de tempo subjetivo que o

acompanhasse de um instante para o outro, e que transformasse estes instantes em

mera duração. A ausência desta temporalidade subjetiva sustentando a vida

humana pode ser vista por nós analistas em nosso consultório diariamente. São

pessoas que lidam com a vida prática de maneira adequada: cumprem prazos e

realizam tarefas; mas pouco sabem de si, pois não se sustentam a partir da própria

temporalidade. Não sabem viver o tempo natural dos afetos subjetivos pois se

acostumaram com a temporalidade objetiva. Respondem adequadamente às

situações mundanas sem serem capazes de sustentarem e imprimirem seu próprio

144 Winnicott, D. W.: op. cit., 1987, p. 135. A tradução deste trecho é da autora.

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ritmo à vida, o que leva a um sentimento de futilidade enorme. Como um pacientes

que, em sua meia idade, foi tomado por um sentimento de futilidade enorme. Este

paciente sentia que nunca havia existido, dizia não ter memória pois não era. Após

um acontecimento brusco em sua vida, pôde experimentar o desmoronamento do

que ele chamava de muralha e com este processo se deu a integração de seu

verdadeiro e falso-self e, consequentemente, de sua temporalidade subjetiva (ainda

precária) e objetiva. Acreditamos que recuperar ou criar esta dimensão de tempo

subjetivo e torná-lo vivo para o paciente pode ajudar muito, principalmente em casos

de falso-self patológico.

Ao desenvolvermos o trabalho clínico de investigação da primeira infância

destes pacientes, percebemos falhas no estabelecimento do tempo subjetivo

explicitado no capítulo I. Através da regressão o falso self patológico vai se

desmanchando com sustentação da relação analítica:

Pacientes com este tipo de problemática necessitam poder organizar o processo psicanalítico segundo seu ritmo pessoal. É este tipo de experiência que possibilita o surgimento do tempo subjetivo, que lhes dá acesso à vivência de duração de si mesmos e de sua existência.145

É no consultório que percebemos pacientes incapazes de sustentar a si

mesmos a partir do tempo subjetivo, um tempo próprio e contínuo, que como um

corrimão imaginário, dá apoio e sustentação ao ser. Como por exemplo uma

paciente que dizia interromper qualquer atividade que estivesse desenvolvendo para

atender solicitações de outros, mas que se sentia bastante angustiada ao não

conseguir dar continuidade ao que estava fazendo. Outra paciente na ocasião em

que aprendia um esporte novo dizia: “Eu não consigo ficar no meu ritmo quero fazer

tudo no ritmo dos outros”. Ela era incapaz de sustentar o seu ritmo naquele

determinado momento, quase como se ela se visse de fora de si. Sem a sustentação

advinda da temporalidade subjetiva, discutida no capítulo I, e a criação de uma

temporalidade transicional, discutida no capítulo II, o encontro com a realidade

externa se dá por via da submissão, pois perde-se a possibilidade de viver

criativamente. Possivelmente as patologias de tipo falso self expressam a 145 Safra, G.: op. cit, 2005, p. 62.

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prevalência de uma temporalidade objetiva sobre a temporalidade subjetiva. No falso

self patológico há uma adaptação excessiva à realidade:

É possível a pessoa esquizóide ou esquizofrênica levar uma vida satisfatória e mesmo realizar um trabalho de valor excepcional. Pode ser doente, do ponto de vista psiquiátrico, devido a um sentido debilitado de realidade. Como a equilibrar isso, pode-se afirmar que existem pessoas tão firmemente ancoradas na realidade objetivamente percebidas que são doentes no sentido oposto, dada a sua perda do contato com o mundo subjetivo e com a abordagem criativa dos fatos.146

Possivelmente pacientes esquizofrênicos sofreram uma ruptura na

continuidade de ser durante o período de dependência absoluta e ficaram “parados”

numa temporalidade subjetiva sem terem sido capazes de experimentar a

temporalidade transicional e a objetiva. São pacientes que não constituíram espaço

potencial e que não compartilham da temporalidade cronológica. São pacientes que

demandam um cuidado adaptativo do ambiente tal como um bebê no início da vida.

São pacientes que vivem num eterno presente.

No consultório recebemos, também, adultos e crinças, incapazes de brincar e

é por isto que iniciamos o supcapítulo (no capítulo anterior) com uma nota clínica

sobre uma criança separada precocemente de sua mãe. A separação precoce deste

bebê de sua mãe e a falha nos cuidados adaptativos subsequentes nos levam a

hipótese de que esta criança teve falhas no processo de temporalização subjetiva, e

por isso não constituirá objeto transicional, pelo não estabelecimento da

temporalidade transicional. A criança hipotética em questão chega ao consultório

com uma necessidade tão grande de agradar o ambiente (terapeuta) que tenta ser o

“paciente perfeito”, parece já saber o que deve acontecer ali. O problema aparece

logo, pois o terapeuta não faz exigências ao paciente apenas se dispõe a

acompanhá-lo na sua temporalidade.147O que se desdobra ao longo das sessões é a

incapacidade desta criança de iniciar uma brincadeira e permanecer nela, como se a

possibilidade de simplesmente ser no tempo estivesse ameaçada a todo momento.

As ameaças apareciam por meio de perigos iminentes e desastres que sempre

146 Winnicott. D. W.: op. cit., 1975, p. 97.

147 É claro que em algum nível o terapeuta sempre faz alguma exigência do paciente.

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interrompiam qualquer atividade lúdica. O contato com uma criança incapaz de

brincar pode ser bastante entediante já que muitas vezes as sessões são repetidas

sucessões de atos “brincantes”sem que, no entanto, se configurem numa

capacidade de brincar. O cansaço provocado pelo contato com uma estrutura falsa e

defensiva é enorme e a hora “custa a passar” para o analista. As sessões oscilavam

entre a vontade da criança se adaptar ao terapeuta, através de “atos brincantes”,

interrompidos pela iminência de desastres e, finalmente, a expressão de

agressividade. A agressividade desta criança era bastante real e também bastante

cindida. Entendemos que a questão principal, neste caso, foi a sobrevivência do

analista e a sua duração no tempo. A duração da relação de confiança pode permitir

à esta criança o reestabelecimento da temporalidade subjetiva. E o

reestabelecimento da temporalidade subjetiva poderá permitir que esta criança

simplesmente brinque.

3.2. Os tipos de transferência e o manejo clínico: questões sobre a

temporalidade e a interpretação.

O tempo presente e o tempo passado

Estão ambos talvez presentes no tempo futuro E o tempo futuro contido no tempo passado.

Se todo tempo é eternamente presente Todo tempo é irredimível.

O que poderia ter sido é uma abstração Que permanece, perpétua possibilidade,

Num mundo apenas de especulação. O que poderia ter sido e o que foi

Convergem para um só fim, que é sempre presente. Ecoam passos na memória

Ao longo de galerias que não percorremos Em direção à porta que jamais abrimos

Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras Em tua lembraça. Mas com que fim

Perturbam elas a poeira sobre uma taça de pétalas, Não sei.148

148 Elliot, T. S.: Poesia / T. S. Elliot; tradução e notas de Ivan Junqueira, 1ª edição especial, Rio de Janeiro; Nova fronteira; 2006, p. 207.

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Tomando como base a conferência XXVII – “Transferência” (Freud, 1916-17)

podemos definir transferência como a atualização e a repetição de relações

conflituosas passadas na relação paciente/analista. No mesmo texto é Freud quem

diz: “...suspeitamos que toda a presteza com que esses sentimentos se manifestam

deriva de algum outro lugar, que eles já estavam preparados no paciente e, com a

oportunidade ensejada pelo tratamento analítico, são transferidos para a pessoa do

médico...”149

Em seu artigo de 1955 intitulado Variações clínicas da transferência, Winnicott

aponta para o fato de que a teoria freudiana sobre os estágios primitivos do

desenvolvimento emocional foi formulada em um momento em que a teoria

psicanalítica era aplicada exclusivamente no tratamento de casos neuróticos. Ou

seja, eram pacientes cujas necessidades básicas haviam sido atendidas: “Esta

adaptação suficientemente boa à necessidade no início da vida havia possibilitado

que o ego individual viesse a ser, com o resultado que os estágios primitivos do

estabelecimento do ego poderiam ser tomados como garantidos pelo terapeuta”.150A

contribuição de Winnicott se faz ao incluir um modo distinto de transferência, ao

contemplar aqueles cuja adaptação às necessidades iniciais não foram atendidas:

pacientes de tipo psicótico e borderline:

Este trabalho amplia o conceito de transferência já que, no momento da análise destas fases, o ego do paciente não pode ser presumido como uma entidade estabelecida e não pode haver neurose de transferência para a qual, certamente, deve haver um ego e, sem dúvida, um ego intacto. 151

Ao inserir a variável supracitada na questão da transferência, Winnicott inclui

nela uma dimensão extremamente cara a ele: a do desenvolvimento. Ao presumir

estágios que se sucedem no desenvolvimento e amadurecimento humano Winnicott

coloca no centro de sua teoria a temática do tempo. Nas palavras de Safra:

149 Freud, S.: Conferências introdutórias sobre psicanálise, Volume XVI, Ed. imago, Rio de Janeiro p. 515. 150 Winnicott, D. W.: Clinical varieties of transference in Through paediatrics to psycho-analysis, 1955, p. 295. 151 Winnicott, D. W.: op.cit., 1955, p. 296.

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“A human being is a time-sample of human nature". É com esta frase que Winnicott inicia o primeiro capítulo de seu livro Human Nature (1988). Temos aqui um olhar que aborda o ser humano a partir da dimensão temporal. A singularização do homem é um fenômeno de temporalização. É no tempo e com o tempo que se dá o acontecer do homem. Enquanto nas teorias psicanalíticas anteriores a análise privilegiava o conteúdo de um psiquismo existente, na perspectiva winnicottiana o acontecer humano no tempo será o ponto de vista fundamental.152

Safra, em seu artigo A clínica em Winnicott, enfatiza o aspecto temporal como

o elemento central da clínica winnicottiana. Faz isto utilizando-se do jogo da espátula

de Winnicott presente no artigo intitulado: The Observation of Infants in a Set

Situation (1941). Para Safra, este jogo utilizado nas consultas pediátricas com

bebês, pode ser compreendido como o paradigma central da clinica Winnicottiana:

Os princípios da clínica winnicottiana, que encontraremos desenvolvidos, mais amplamente, ao longo de seus textos, de alguma forma, já estão presentes no artigo citado. Esta mesma matriz é reencontrada nas consultas terapêuticas, na psicanálise segundo a demanda, na maneira como Winnicott conduzia as sessões do processo analítico.153

A partir de observação de bebês e mães em situação estabelecida, Winnicott

pôde observar um certo padrão de comportamento de bebês em relação à espátula

que utilizava e sobre a temporalidade do sujeito. Num primeiro momento

denominado “período de hesitação” o bebê apenas observava a espátula apesar de

parecer interessado nela. No momento seguinte, se o bebê não tivesse sido invadido

pela mãe ou pelo médico, a hesitação era superada. O bebê podia agora brincar ou

realizar algum jogo com a espátula. Em seguida o bebê se desinteressava pela

espátula e iniciava um jogo de se livrar dela: “A espera de Winnicott nessa

observação, mostra-nos a importância da presença do analista intervindo com a

sustentação da situação clínica no tempo, dando as condições para o aparecimento

do gesto criativo do paciente.”154 Quando o bebê se livrava da espátula, Winnicott

sabia que poderia terminar a consulta, pois a criança estava pronta para ir embora:

152 Safra, G.: A clínica em Winnicott, Nat. hum. v.1 n.1 São Paulo jun. 1999. 153 Safra, G.: op. cit., 1999. 154 Safra, G.: op. cit., 1999.

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Ela já havia tido uma experiência completa. Segundo Winnicott, a experiência completa dava ao bebê o que ele denominou de lição de objeto. Desse modo, o fato de a criança querer, tomar e apropriar-se da espátula sem alterar o meio ambiente imediato situava-a de maneira distinta em seu sentido de self. Havia ocorrido uma experiência que a tinha transformado.155

Tendo em vista esta perspectiva que Safra nos aponta, em que coloca a

questão da temporalidade como fundamental na clínica, como pensar a

transferência? Se o ser humano é uma amostra temporal da natureza humana e

considerando os dois modos distintos de transferência, como proposto por Winnicott,

não teria o tipo de transferência alguma relação com o tempo? Ou no mínimo algo a

dizer sobre ele? Considerando o acontecer no tempo, poderíamos pensar que o tipo

de transferência que o paciente irá estabelecer com o analista diz algo sobre o seu

próprio tempo. Sobre seu acontecer no tempo. Em suma, sobre sua temporalização.

A temporalização do sujeito contém sua história, sua memória. A transferência é o

deslocamento desta história para a figura do analista. Portanto, a transferência é

temporal. O tipo de transferência estabelecido decorre de dois modos de

temporalização distintos, mas que podem ser concomitantes.

Winnicott, ao introduzir o ambiente como elemento fundamental para a

compreensão de patologias, nos abre dois caminhos. O primeiro diz respeito à

importância do ambiente no desenvolvimento do ser humano, e o segundo se refere

à possibilidade reparadora do ambiente em casos de fracasso ambiental anterior. Na

transferência há memória das falhas assim como existe a dimensão do que o sujeito

não viveu, revelando a falta de algo que era constitutivo. Deste modo, a

transferência que o paciente tem em relação ao analista está centrada na promessa

do analista ser um novo ambiente capaz de reparar as falhas anteriores. Está

implicado na temporalidade do sujeito. O tipo de transferência fala da experiência

que o paciente precisa viver. Se as falhas ocorreram num momento inicial da vida do

sujeito algumas experiências constitutivas não foram integradas. Nas palavras de

Winnicott: “uma das dificuldades da técnica psicanalítica é saber, a cada momento, a

idade do paciente na relação transferencial.”156

155 Safra, G.: op. cit., 1999. 156 Winnicott, D. W.: Through Paediatrics to Psycho-Analysis. Basic Books; New York, 1975, p. 181. Tradução da autora.

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O tipo de transferência estabelecida dirá ao analista se o paciente está num

“tempo subjetivo” ou num “tempo objetivo”. O “tempo subjetivo” se refere ao tipo de

relação objetal característica do início da vida. Uma relação objetal marcada pela

subjetividade, em que o objeto é subjetivo e assim deve ser. É por isso que a mãe

protege o bebê de descobrir, precocemente, sua alteridade, garantindo, portanto, a

possibilidade do bebê ser no tempo. As falhas, vividas como rupturas pelo bebê,

levariam neste “tempo subjetivo” aos quadros psicóticos, já que o self não estaria

suficientemente integrado e a continuidade não foi estabelecida. As falhas do “tempo

objetivo” seriam referentes ao período em que o objeto deixa de ser subjetivo e

passa a ser objetivamente percebido. Neste momento de processos secundários, as

falhas levariam à quadros neuróticos variados, dependendo do momento em que

ocorreram.157 Sabemos, com Winnicott, que nada é garantido no processo de

desenvolvimento. As conquistas anteriores podem ser perdidas ao longo do

processo de amadurecimento. Por isto, estas duas temporalidades (e

transferências), referentes à períodos distintos, são uma possibilidade para qualquer

sujeito, e de qualquer patologia, seja ela psicótica ou neurótica. O analista atento à

dimensão temporal presente nos dois modos de transferência e consciente de que

este modos não são incompatíveis poderá lidar melhor com as necessidades do

paciente. Transferencialmente isto aparece como uma necessidade de viver com a

figura do analista algo que não foi vivido no momento adequado e que impediu o

bom desenvolvimento de fases seguintes: “ Ao cuidar de crianças, ou realizar um

psicoterapia, é necessário estarmos sempre atentos à idade emocional do momento,

de modo a podermos fornecer o ambiente emocional adequado.”158 É aqui que se dá

a regressão. O paciente precisa viver um tempo no passado. Nas palavras de

Winnicott:

enquanto na neurose de transferência o passado entra no consultório, neste trabalho (lidando com a transferência psicótica) é mais verdade dizer que o presente volta ao passado e é o passado.159

157 Mas, infelizmente, não temos tempo para aprofundar este tópico. 158 Winnicott, D. W.: op cit., 1990, p. 179.

159 Winnicott, D. W.: op. cit., 1955, p. 297.

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Este é o sentido da regressão: um tempo regredido. Ou seja, um tempo vivido

sob o modo de relação objetal característico do início da vida. É como se o paciente

dissesse ao terapeuta: “preciso me relacionar com você de uma maneira muito

primitiva por um tempo”. Geralmente esta “pergunta” é seguida de: “você aguenta?”

– aqui o paciente testa a fidedignidade do terapeuta. Este temor à regressão revela

a consciência dos riscos envolvidos. Durante este período, devido à fragilidade

egoica do paciente, as interpretações devem ser mais cuidadosas e o manejo clínico

se torna prevalecente. Quando a regressão é uma possibilidade para o paciente, o

manejo por parte do terapeuta se torna fundamental. Na regressão ele não mais

representa uma figura substitutiva ao paciente, ele é esta figura de fato. A

dependência é máxima e há um risco grande envolvido já que o paciente se

encontra absolutamente regredido e frágil. Mas nem sempre estas modalidades

transferenciais são passíveis de serem discernidas por um simples diagnóstico. É

comum compreenderem a contribuição de Winnicott como uma ampliação do

conceito de transferência para o manejo transferencial em casos psicóticos, ficando

assim o modelo interpretativo inalterado nos casos neuróticos. Mas isto não é

verdade, já que muitas vezes o paciente oscila entre uma e outra forma de

transferência, o que requer do analista uma sensibilidade para estes dois modos

transferenciais. Entendemos que qualquer paciente, independentemente do

diagnóstico, poderá estabelecer os dois modos transferenciais ao longo na

análise.160 E, inclusive, ao mesmo tempo. Um tipo de transferência poderá

prevalecer durante um certo período, mas a outra pode estar presente de maneira

mais resguardada. “Por isso, em uma pessoa de qualquer idade, pode-se encontrar

todos os tipos de necessidades, das mais primitivas às mais tardias. As pessoas não

tem exatamente sua idade; em alguma medida, “elas têm todas as idades, ou

nenhuma.” 161

160 Naffah, A.: As funções da interpretação psicanalítica em diferentes modalidades de transferências contribuições de D.W. Winnicott, Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 43 (78),1-22, 2010. 161 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 101.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Ver um mundo em um grão de areia e um céu numa flor selvagem

é ter o infinito na palma da mão e a eternidade em uma hora."162

Na obra de Winnicott a criatividade individual recebe notável destaque, com

este presente trabalho pretendemos destacar a importância da temporalidade ao

longo do processo de amadurecimento humano e apontar para o aspecto temporal

que está subjacente à vida criativa. Sabemos que a vida criativa, na acepção

winnicottiana, é aquela que merece ser vivida, neste sentido, é também, aquela que

carrega e confere sentido à própria existência. Toda expressão criativa humana

encontra sua raiz nos primórdios da relação mãe-bebê, nesta especial relação o

gesto espontâneo pode ser encontrado por uma mãe que espera por ele.

Ao longo do trabalho destacamos os aspectos temporais da função materna

que possibilitam a temporalização do bebê. Entre eles destacamos: a capacidade da

mãe esperar; a capacidade de deixar seu bebê demorar na experiência; a

capacidade de ser uma presença viva e a previsibilidade dos cuidados maternos. Em

todos estes aspectos a mãe respeita o ritmo inicial de seu bebê – só assim o tempo

(para o bebê) poderá ser “vivo”, criativo e próprio.

Tendo em vista os capítulos anteriores em que discutimos a criação e o

estabelecimento da continuidade do tempo subjetivo, transicional e objetivo,

gostaríamos de concluir este trabalho evidenciando aspectos da clínica

winnicottiana, nas palavras de Dias: “creio ser oportuno notar que estas questões

muito básicas, relativas à constituição do tempo, servem para nortear o analista na

sua tarefa terapêutica.”163 Este trecho é importante pois evidencia o fato de que as

questões relativas à constituição do tempo auxiliam o analista em sua tarefa, já que

revelam algo sobre experiências primitivas na vida do sujeito: “de modo a podermos

fornecer cuidado concernente à necessidade específica que ele apresenta e que

162

Blake, W.: in "Auguries of Innocence" of the: "Songs and Ballads” 163 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 202.

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varia segundo a idade emocional em que se encontra.” 164 A idade emocional do

paciente será mais reveladora ao analista, sobre seu processo de amadurecimento,

do que a idade cronológica. Como vimos anteriormente, todos os pacientes tem

todas as idades ou nenhuma. Todas as idades pois não há linearidade no processo

de amadurecimento e nem do tempo.

A partir de nossas leituras percebemos que os comentadores de Winnicott

mais utilizados neste trabalho, Safra e Dias, concordam sobre a importância do

tempo na situação clínica. Para Dias o cuidado principal do analista deve se pautar

pela necessidade do paciente e evitar acontecimentos abruptos, para garantir a

previsibilidade dos acontecimentos:

Seja qual for a problemática que lidamos, não se pode terminar a sessão repentinamente, contando com o fato de o paciente ter um lado adulto, e de o horário ter sido combinado. Muitas vezes, em especial numa fase de regressão à dependência, a pessoa não está em contato com o tempo objetivo. [.. ]. É preciso ajudar o paciente, sinalizando com algum movimento, algum gesto, que a sessão está por terminar.165

Como vimos anteriormente Safra enfatiza o aspecto temporal como o

elemento central da clínica winnicottiana. Utilizando o jogo da espátula como seu

paradigma central, Safra destaca alguns elementos como fundamentais: o período

de hesitação, o período de encontro propriamente dito com o uso da situação

analítica e o período de finalização. A finalização deve estar submetida ao gesto do

paciente e não ao tempo do relógio. A sessão deverá ter começo, meio e fim,

sempre respeitando a temporalidade do paciente:

A sessão necessita de um começo, um meio e um fim, este é o ciclo da existência humana. Ele determina a condução das sessões e de todo o processo analítico. É por esta razão que a sessão analítica winnicottiana não tem uma duração convencional. Ela transcorrerá ao longo do tempo necessário, para que seja possível dar-se conta das questões com as quais se está trabalhando naquele período da análise. Assim como a espátula em um determinado momento da consulta é jogada fora, também será

164 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 103.

165 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 202.

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necessário que o paciente tenha caminhado o suficiente em sua sessão de análise para que possa se livrar do analista no final da hora. 166

Percebemos que a poposta de Safra é de que o tempo da análise seja guiado

pelo tempo subjetivo do paciente, enquanto que Dias aponta, também, para a

importância do analista assumir o papel daquele que toma conta do tempo: “... a

capacidade do analista encerrar a sessão dentro do combinado fornece segurança,

[...], por encarregar-se de manter contato com a realidade externa, libera o paciente

para ir constituindo seu mundo subjetivo.”167 Seja como for, acreditamos que ambos

concordariam com a seguinte constatação: “É pelo manejo do tempo que será

possível, para Winnicott, exercer a psicanálise.”168 Talvez por isto, para alguns,

Winnicott é considerado o psicanalista do tempo.

Ao final deste trabalho percebemos que não conseguimos, como propusemos

inicialmente, definir a psicopatologia winnicottiana tendo como parâmetro a noção de

temporalização. De todo modo, esperamos ter sido bem sucedidos na tarefa de

investigar a temporalidade a partir de Winnicott e seus comentadores, demonstrando

a importância da constituição do tempo subjetivo, transicional e objetivo, bem como

a fragilidade deste processo na fase de dependência absoluta. Como demonstramos

ao longo do trabalho, entendemos este tempo inicial como o tempo da experiência,

um tempo em que o bebê precisa se relacionar com objetos subjetivamente

percebidos. E aqui, o papel da mãe é crucial, pois é ela que cuida para que a

previsibilidade seja mantida e o bebê possa iniciar sua datação no tempo prevendo

acontecimentos futuros baseado nos cuidados recebidos no passado – a

temporalização inicial garante a continuidade de ser.

Este processo continua ao longo dos fenômenos transicionais, mas aqui, o

bebê já pode manter viva a memória da presença da mãe por um tempo. Durante o

tempo que puder “guardar a lembrança” da mãe ele poderá se interessar por objetos

e, eventualmente, atribuirá a um objeto escolhido um significado especial,

“transformando-o”, por conseguinte, em objeto transicional. É importante lembrar que 166 Safra, G.: op. cit. 1999.

167 Dias, E. O.: op. cit., 2003, p. 203.

168 Safra, G.: op. cit., 1999.

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o objeto transicional não tem valor por si só, ele precisa da presença viva da mãe

“de tempos em tempos”, para que a memória dos cuidados não se esmaeça.

Nomeamos este tempo de tempo transicional.

O tempo objetivo poderá adquirir diferentes significados para o sujeito

dependendo do seu modo de temporalização nos tempos anteriores. Se os tempos

subjetivo e transicional puderam ser constituídos sem interrupções ou traumas, o

sujeito poderá compartilhar do tempo cronológico sem perder contato com o tempo

subjetivo. O sujeito vive no mundo e compartilha um sentido comum de tempo – o

tempo cronológico – ao mesmo tempo que carrega um tempo próprio, fruto de suas

primeiras experiências.

Alguns pacientes que não puderam constituir um tempo próprio, subjetivo,

têm a temporalidade do relógio como o único tempo. São pacientes que sofrem

tremendamente, pois sentem que não podem “contar com o tempo” ou “não tem

tempo”. Aqui não há tempo para a duração, para a continuidade de uma experiência

ao longo do tempo, mas, antes, uma incapacidade de se distanciar das solicitações

externas ou do tempo cronológico. Por outro lado, existem pacientes que sentem o

tempo compartilhado como uma afronta, uma submissão intolerável. São pessoas

incapazes de cumprirem prazos ou chegarem no horário dos compromissos. Estes

são modos distintos de viver o tempo objetivo baseado nas experiências

constitutivas nos estágios anteriores.

Esperamos ter conseguido demonstrar que o tempo, para Winnicott, deve ser

“vivo” e próprio. Para não correr o risco de nos tornarmos repetitivos, recolocaríamos

da seguinte forma a questão do início do trabalho: ao invés de pensarmos algo como

as “patologias do tempo”, nos propomos a lançar um olhar sobre o que seria o

“tempo das patologias”. Dito de outra maneira, num próximo trabalho, poderíamos

explorar a relação do tempo com cada patologia. Existiria uma diferença entre o

modo como um paciente de tipo falso self patológico experimenta o tempo e o

paciente esquizóide? Quais as implicações destas diferenças para a clínica no

tocante às questões ligadas ao tempo e à temporalidade? São estas as perguntas

que gostaríamos de nos guiassem na elaboração de um futuro trabalho.

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Esperamos, deste modo, ter aberto um pouco o campo para futuras

discussões, e, inclusive, para uma próxima pesquisa, tendo em vista que este

trabalho foi uma tentativa de trazer um pouco de luz à nebulosa discussão sobre o

tempo. Nebulosa pois acreditamos ser difícil discordar da seguinte frase: “Todos nós

sabemos o que é tempo – desde que, é claro, ninguém nos faça esta pergunta.”169

169 Gondar, J.: Os tempos de Freud, Revinter; Rio de Janeiro, 1995, introdução. É evidente a alusão feita por Gondar ao célebre excerto de Agostinho contido nas Confissões: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei”. Santo Agostinho: Confissões. Editora Universitária São Francisco; Bragança Paulista, 2004; p. 278.

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