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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sheila Cristina Santos Tempo de reparação: história de resistências e o processo de anistia aos operários perseguidos em São Paulo (1964-1979) DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Sheila Cristina Santos

Tempo de reparação: história de resistências e o processo de anistia aos operários perseguidos em São Paulo (1964-1979)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Sheila Cristina Santos

Tempo de reparação: história de resistências e o processo de anistia aos operários perseguidos em São Paulo (1964-1979)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora

como exigência parcial para obtenção do

título de Doutor (a) em Ciências Sociais

pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra.

Vera Lúcia Michalany Chaia.

São Paulo 2015

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Banca Examinadora

________________________________________________________________________________________________________ __________________________

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A meu filho, João Pedro.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Dra. Vera Michalany Chaia, minha orientadora,

pelo apoio, por me acompanhar desde o Mestrado com paciência e

competência e, principalmente, por confiar em mim. Seu apoio foi decisivo para

a finalização deste trabalho.

A meus pais, Saulo e Maria Aldeir, pela paciência e por todo o amor

dedicados durante essa jornada.

Aos meus irmãos, Saulo e Vanessa que, mesmo distantes, foram meus

principais incentivadores durante esse período.

A minha cunhada Ana Paula por nossas conversas e motivação.

A Alexandre Charles Cassiano, pelo contínuo incentivo, carinho e

paciência, fundamentais nos momentos mais difíceis.

Aos professores Dra. Ana Amélia da Silva e Pós-Dr. Silvio Ferreira Pinto

Jr., pelas excelentes contribuições durante o exame de qualificação.

Meu reconhecimento em especial à equipe do Núcleo de Memória do

IIEP – Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas, pelas contribuições em

termos de pesquisa: o acesso aos arquivos, documentos, fotos e entrevistas

realizadas a partir do IIEP. Agradeço, imensamente, aos seguintes

profissionais: Carolina Alvim de Oliveira Freitas, Fabíola Andrade, Milena

Fonseca Fontes, Rodolfo Machado, Vanessa Miyashiro, e, em especial, a

Pedro Maurício Garcia Dotto e Sebastião Lopes Neto.

A Juliana Queiroz, pela disposição e competência na correção deste

trabalho.

A Nilmário Miranda, pela entrevista concedida durante o período do

Mestrado e, anos mais tarde, pelo feliz reencontro durante as Caravanas da

Anistia, em especial, na Caravana de Florianópolis.

Aos integrantes da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça: Paulo

Abrão, por sempre viabilizar o acesso às informações; Sueli Aparecida Bellato,

que me concedeu, entrevista, gentilmente, no Ministério da Justiça, no final de

2012; Andreia Valentim, chefe do setor de arquivos da Comissão de Anistia,

que me ajudou com todas as informações necessárias; Marcelo Torelly, pelas

orientações prestadas ao longo da pesquisa, e à toda equipe da C.A.

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Especial agradecimento as amigas que estiveram comigo durante este

período de estudos, com inúmeras palavras de incentivo, entre elas, Ana

Cristina Carvalho Nogueira, Patrícia Silva e Maria Carolina Bissoto.

As amigas do convívio diário e, também, colegas de profissão, Márcia

Alves e Lisiane Fiachinetto.

A Iria Molina, pela entrevista concedida em sua casa. onde relatou-me

toda sua história de militância, com muita disposição e carinho.

A Salvador Pires, pelos belíssimos depoimentos prestados.

A Surama Guimarães, pelo incentivo diário.

E a todos os amigos e colegas de trabalho que contribuíram de diversas

formas para a realização desta tese. Corro o risco de esquecer algum nome,

portanto, agradeço a todos.

Em especial a Carolina Boari, por caminharmos juntas no processo de

produção de nossas pesquisas, e por compartilhar inúmeros momentos de

dificuldade.

Ao CNPq, pelo apoio financeiro para a realização deste trabalho.

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RESUMO

Em 1985, o Brasil inicia um processo de retorno democrático após 21

anos de instauração da ditadura civil-militar (1964-1985). Durante esse período,

inúmeros cidadãos brasileiros tiveram seus direitos cassados, foram expulsos

do país, banidos dos seus postos de trabalho, vítimas de perseguições e,

muitas vezes, submetidos ao exílio forçado por conta de um aparato repressivo

que não ofereceu chances de defesa.

A ditadura agiu rapidamente para manter “sob controle” as oposições

políticas que se articulavam no país. Em princípio, com os decretos e leis que

legitimaram as ações do novo regime; posteriormente, com a edição do Ato

Institucional n. 5 (AI-5) que comprometeu de forma radical todos os setores da

vida pública, através do estabelecimento da censura plena que vetou o direito à

manifestação, à oposição e as liberdades individuais. As prisões aos que

resistiram no momento imediato ao Golpe, as intervenções nos meios sindicais,

a perseguição aos trabalhadores e estudantes, o aniquilamento aos grupos de

resistência armada, são características de um “tempo” da nossa história que

deixou muitas sequelas e que culminou, posteriormente, num longo processo

de reparação às vítimas.

Por meio da Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, o Estado brasileiro

estabeleceu condições de reparação financeira e moral aos cidadãos que

foram atingidos pela ação da forte repressão política desencadeada durante o

regime militar. Dentre os setores mais atingidos nesse período, destaca-se a

violência praticada ao movimento operário que, desde o início, adotou

diferentes formas de resistência.

Em dezembro de 2012, em audiência pública no Memorial de

Resistência de São Paulo, vários trabalhadores tiveram a oportunidade de ver

suas histórias contadas, de receber o pedido de desculpas oficiais do Estado,

através da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e, consequentemente,

serem “beneficiados” com as respectivas reparações financeiras por conta das

perseguições e prisões sofridas, pelo exílio e pelos danos causados na vida

pessoal e em suas trajetórias profissionais. Os registros e a memória do

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movimento operário irá compor uma das mais belas histórias de resistência da

recente história do nosso país.

Palavras-chave: ditadura, reparação, memória, operários.

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ABSTRACT

In 1985, Brazil started a process of returning to Democracy after 21

years of establishment of civil-military dictatorship (1964-1985). During this

period, numerous Brazilian citizens had their rights annulled, were expelled

from the country, banned from their jobs, victims of persecution and often

subjected to forced exile because of a repressive apparatus that offered no

possibility of defense.

The dictatorship acted swiftly to keep "under control" the political

opposition that were being organized in the country. First, with the decrees and

laws that legitimized the actions of the new regime, later with the publication of

Institutional Act no. 5 (AI-5) which compromised radically all sectors of public

life through the establishment of full censorship vetoed the right to protest,

opposition and individual freedoms. The arrests those who resisted in the

moment of the Overthrow, interventions in the labor unions, persecution of

workers and students, the annihilation of the armed resistance groups, are

characteristic of a "time" of our history that left many sequels and culminated,

later, in a long process of reparation to victims.

By the 10,559 Act, of November 13, 2002, the Brazilian State establishes

conditions for financial and moral reparation to citizens who were affected by

the strong action of political repression unleashed during the military regime.

Among the sectors most affected in this period, is notable the violence against

the labor movement that, from the beginning, adopted different ways of

resistance.

In December 2012, in open court in the Memorial de Resistência de São

Paulo, several workers had the opportunity to see their stories told, receiving

the official State's apology, through the Amnesty Commission of the Ministry of

Justice and hence be "benefit" with their financial reparations due to the

suffered persecution, imprisonment, exile and the damage caused in their

personal lives and in their professional careers. The records and the memory of

the labor movement will compose one of the most beautiful stories of resistance

in the recent history of our country.

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Keywords: dictatorship, reparation, memory, workers.

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SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................15

Capítulo 1 – Anistia no Brasil: significados e particularidades do processo no País .............................................................................................................18

1.1 Anistia no Brasil: breve histórico..................................................................20

1.2 A anistia durante a República...................................................................23

1.3 A concessão da anistia em 1979, e a gênese do processo de transição

democrática no Brasil........................................................................................26

1.3.1 Contexto histórico..............................................................................26

Capítulo 2 – A anistia hoje e os desdobramentos de um processo inacabado.........................................................................................................47

2.1 Contexto geral .............................................................................................47

2.2 A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP): início do

processo de reparação do Estado brasileiro.....................................................64 2.3 A atuação da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

(CEMDP) ..........................................................................................................79

2.4 As mudanças na Lei 9.140/1995 e o direito de acesso aos arquivos das

Forças Armadas................................................................................................93

Capítulo 3 – As origens da resistência do movimento operário no Brasil e o processo de reparação às vítimas...........................................................107

3.1 Histórico de lutas.................................................................................. 107

3.2 A repressão à classe operária nos chamados “Anos de Chumbo”...........119

3.3 A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo........................................134

Capítulo 4 – A Comissão de Anistia e o processo de reparação dos operários atingidos pelo estado de exceção (1964-1979).........................143

4.1 O processo de reparação histórica no País..............................................143

4.2 As Caravanas da Anistia: espaço de reparação e memória.....................152

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Considerações Finais ...................................................................................163

Bibliografia ....................................................................................................167

Anexos ...........................................................................................................175

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INTRODUÇÃO

Em 1995, o governo brasileiro promulgou a Lei 9.140, que visa à reparação

moral às vítimas da ditadura no país, por meio de indenização às suas famílias. Essa lei

estabeleceu, ainda, a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

Políticos (CEMDP), com o objetivo de promover o reconhecimento da responsabilidade

do Estado mediante aos crimes cometidos durante o período da repressão política.

Nesse momento, se inicia um processo de reparação às vítimas do sistema

autoritário deflagrado no país em 1964, e que irá perdurar por 21 anos. A atitude do

governo brasileiro, no sentido de reparar os que foram punidos pela ação do Estado,

representa um primeiro passo rumo ao processo de consolidação democrática em que

a anistia é parte integrante. A reparação com base no esquecimento tem sido a marca

do governo brasileiro, característica, portanto, de um período de intensas discussões

em relação à maneira como reconstruímos a nossa história.

Desde a sua concepção, em 1979, e, ainda na atualidade, a anistia, concedida

parcialmente aos cidadãos atingidos pelo “poder do arbítrio”, não corresponde as

necessidades da sociedade brasileira, pois desconsidera aspectos fundamentais de

acesso à verdade e à justiça.

Beneficiados pela Lei 6.683/1979 – que prevê anistia às vítimas e aos agentes

públicos que praticaram crimes em nome do Estado –, nenhum cidadão que atuou

diretamente no sistema repressivo teve passagem pelo banco dos réus. E, nesse

sentido, ações posteriores do governo brasileiro inviabilizaram essa possibilidade.

Nesse contexto, para que significativas mudanças ocorram, é preciso que a lei da

anistia seja revogada. Esse fato está diretamente relacionado à disposição política de

governo e governantes, tal como a iniciativa da própria sociedade.

A promulgação da conhecida “Lei dos Desaparecidos” e a criação da “Comissão

sobre Mortos e Desaparecidos Políticos”, refletem, pela primeira vez, as intenções do

Estado brasileiro em reparar o erro; no entanto, esse mesmo Estado permanece omisso

sobre as questões fundamentais para o avanço da democracia no país: a punição aos

algozes da repressão política e a localização dos restos mortais dos desaparecidos

políticos. Ainda não há solução para esses casos.

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A extensão do processo reparatório no caso brasileiro se faz por meio da

promulgação da Lei 10.559/2002, e a consequente criação da Comissão de Anistia, ou

seja, a segunda comissão de reparação do governo. Sua função é anistiar oficialmente

os brasileiros que foram atingidos de alguma forma pela intensa violência instaurada no

período da ditadura civil-militar.

A pesquisa sobre a Comissão de Anistia, sua atuação e as formas de reparação

representam a continuidade do trabalho desenvolvido no mestrado, cujo tema foi “A

Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e a reparação do Estado às vítimas

da ditadura militar no Brasil”.

Dessa vez, o foco das pesquisas foi a atuação da Comissão de Anistia, bem

como o processo de reparação aos brasileiros perseguidos e atingidos diretamente pelo

poder do “arbítrio” em todos os setores da vida pública. Cidadãos que foram banidos,

vítimas de exílio forçado, que sofreram demissões arbitrárias e que tiveram suas vidas

marcadas por rupturas, passaram a receber o “pedido de desculpas” oficiais do Estado

brasileiro. A indenização moral e financeira faz parte, portanto, de um processo que diz

respeito à anistia, iniciada em 1979. À época, a lei foi restrita, não viabilizou nenhum

tipo de indenização às vítimas, e não contemplou os anseios sociais que reivindicavam

uma anistia mais ampla, capaz de reparar os danos causados durante todo o período

militar e, principalmente, de acesso à verdade.

Após acompanhar inúmeras audiências da Comissão de Anistia, em Brasília, e

também através das Caravanas em alguns estados, principalmente, em São Paulo,

decidi estudar a história do movimento operário – especialmente, da Oposição Sindical

Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) por se tratar de um tema pouco explorado, embora

tenha encontrado duas teses sobre o assunto. No entanto, nenhum delas aborda

especificamente a reparação às vítimas por meio da Comissão de Anistia. Sendo assim,

tanto o processo de reparação aos militantes da OSM-SP, como as entrevistas com os

anistiados, entre eles, a Sra. Iria Molina e o Sr. Salvador Pires, revelam o caráter

inédito desta tese.

Em princípio, seriam abordados processos aleatórios, de brasileiros recém

anistiados, em diversos segmentos da sociedade. No entanto, resolvi eleger uma

categoria específica de anistiados – a exemplo dos operários da OSM-SP, dada a

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importância da luta desses trabalhadores na recente história de resistência durante a

ditadura civil-militar, sobretudo, no processo de abertura política.

A tese foi estruturada em quatro capítulos. No primeiro capítulo, sob o título

“Anistia no Brasil”, significados e particularidades do processo no País”, contextualizei o

conceito de anistia na sua origem, na sequência, o processo de anistia no Brasil

República até a concessão da anistia de 1979, e seus desdobramentos durante o

regime militar, origem de todo o conjunto temático deste trabalho.

No segundo capítulo, discuto a questão da anistia hoje e seus desdobramentos.

Também abordo aspectos do início do processo de reparação às vítimas da ditadura

militar, com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e

a luta dos familiares das vítimas por justiça no Brasil.

Na continuidade da tese, no terceiro capítulo, relato a história do movimento

operário no Brasil, a considerar suas origens e resistências. A repressão aos

trabalhadores durante a ditadura civil-militar também é retratada, com destaque para a

constante articulação política dos operários, exercida no interior das fábricas, e algumas

greves que ocorreram nesse período. No último tópico do capítulo, refiro-me à formação

da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, e sua atuação frente as conquistas e

aos embates dos operários.

No quarto e último capítulo, trato especificamente do processo de reparação dos

operários às vítimas da ação violenta do Estado, no período de 1964-1979,sendo este

último o ano da concessão da anistia política. A escolha do sub-título “O processo de

reparação histórica no País, que consta na parte inicial do capítulo, está relacionada ao

processo tardio das reparações no caso brasileiro, ou seja, mais de 10 anos após a

abertura política. Ao abordar as audiências das Caravanas da Anistia, resgato temas

importantes para compor o entendimento deste trabalho, tais como, justiça de transição

e memória, e exemplifico com a simbólica audiência da 66º Caravana, no Memorial de

Resistência em São Paulo, em que oito militantes da OSM-SP foram anistiados, entre

eles, Iria Molina e Salvador Pires, que tiveram suas vidas parcialmente relatadas nesta

tese.

A história do movimento operário no Brasil está diretamente associada a um

processo de lutas. Desde suas primeiras formações, ainda no final do século XIX, sob

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influência dos imigrantes e seus ideais anarquistas, os trabalhadores organizaram-se

continuamente na defesa dos seus direitos, buscando autonomia para suas práticas

políticas, sobretudo, nos sindicatos. Ao longo da trajetória de resistência dos operários,

destaca-se o trabalho de conscientização política desenvolvido, muitas vezes, no

ambiente de trabalho. Suas principais ideias e reivindicações foram registradas em

inúmeras publicações destinadas aos operários: Luta Operária, Luta Sindical, Notícias

Metalúrgicas, entre outros periódicos. O intuito era difundir e ampliar a causa dos

trabalhadores no Brasil, obter informações sobre os acontecimentos em outras

empresas, outras frentes de luta.

As ações de resistência dos trabalhadores foram reprimidas desde o Estado

Novo (1973-1945) de Getúlio Vargas, em que um expressivo número de operários foi

perseguido e preso; por essa razão, o governo brasileiro possibilita, nos dias atuais,

anistiar, também, brasileiros atingidos pós-ditadura varguista. Durante esse período, os

trabalhadores foram “beneficiados” com a consolidação dos direitos trabalhistas, o que

não impediu a intensa violência do Estado nas organizações sindicais e no meio

operário.

Mais tarde, essa violência se repetiu e se tornou ainda mais acentuada a partir

do Golpe de Estado, em 1964. Os sindicatos e organizações políticas foram um dos

setores mais atingidos, a exemplo da forte interferência aos sindicatos. Após o

estabelecimento da censura, a classe de trabalhadores passou a buscar novas

maneiras de atuação política, mas, desde o início, sofreu com a forte repressão política.

O resultado desse enfrentamento foi um saldo de inúmeros operários presos,

perseguidos, mortos e desaparecidos.

As comissões de reparação do Estado brasileiro buscam promover indenização

moral e financeira aos brasileiros oposicionistas do sistema autoritário. Por meio do

Estado, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, por exemplo, reconheceu

a culpa pela mortes de operários mortos em dependências policiais e manifestações de

rua, tais como: Manoel Fiel Filho, Santo Dias da Silva, Olavo Hansen, entre outros. A

comissão de anistia, por sua vez, busca reparar perdas financeiras em decorrência de

fugas do emprego, demissões sem justa causa, por conta do exílio. A reparação moral

às vítimas com o pedido de desculpas oficiais é uma tentativa de restaurar uma história

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inacabada, representa a continuidade a um processo de anistia ainda em trâmite. No

entanto, há importantes avanços nesse processo.

A Comissão de Anistia proporcionou o acesso à memória e a reconstrução da

história, através das sessões públicas das caravanas em todo o país. Somente através

do conhecimento dos fatos, da verdade e das consequências dos danos causados, é

possível avançarmos em termos democráticos, impedindo a repetição das tristes

histórias do passado.

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CAPÍTULO 1

ANISTIA NO BRASIL: SIGNIFICADOS E PARTICULARIDADES DO PROCESSO NO PAÍS

“Só vos peço uma coisa

Se sobrevide a esta época não nos esqueçais

não nos esqueçais nem dos bons, nem dos maus

juntai com paciência os testemunhos daqueles que tombaram por eles e por

nós

um belo dia, hoje será o amanhã

falarão numa grande época e nos heróis anônimos que criaram a história

gostaria que todos soubessem que não há heróis anônimos

eles eram pessoas, e tinham nomes, e tinham rostos, e desejos, e esperanças

e que a dor dos últimos entre os últimos não era menor do que a do primeiro,

cujo o nome há de ficar”.

JulioFucik,

ex-preso político.

Historicamente, há uma forte tendência por parte de algumas nações em buscar

soluções viáveis para o (res)tabelecimento da paz após longos períodos de conflitos e

instabilidades no campo político e social. O uso do perdão em determinadas

sociedades tem sido a prática adotada a fim de sanar, definitivamente, o legado dos

regimes autoritários, marcados por traumas e descontinuidades, sobretudo, no que se

refere aos governos democráticos. Desde então, a anistia tem sido instituída com o

objetivo de restaurar um ambiente pacífico nos países que protagonizaram conflitos

armados, lutas internas e revoluções.

A primeira experiência de anistia foi registrada ainda na Grécia Antiga, no

período de Sólon, em 594 a.C.: Sólon “(...) concede o ato de clemência, reintegrando

os direitos aos cidadãos perseguidos pelos regimes tirânicos que lhe antecede o

perdão a todos os perseguidos exceto aos condenados por traição ou

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homicídio”.Depois disso, a nação grega testemunhou a anistia de Petroceides, em 450

a.C, “onde promove-se a comunhão dos direitos civis e políticos a favor de numerosos

cidadãos processados e condenados, tendo ordenado a queima de todos os registros

(...).”1

A palavra anistia, na sua origem, está associada ao radical grego amnéstiae, e

também ao radical romano generalis abolitio. Seu significado está ligado a um conceito

eminentemente político, pois representa a concessão do perdão por parte de

autoridades de Estado com base no esquecimento dos crimes cometidos. A anistia,

portanto, surge como parte integrante de um processo de transição política que visa à

conciliação entre os povos.2 Passou a (con)figurar nas constituições democráticas a

partir da Revolução Francesa, em 1791. Antes disso, ficava a cargo dos monarcas

conceder ou não o perdão aos réus – ato que fora concebido como um estado de graça

que variava de acordo com o poder e as conveniências das autoridades locais. “(...) Em

certo sentido, quanto menor fosse a organização jurídica e as instituições de direito nos

Estados, mais o poder de graça era necessário (...).”3 Com o advento dos primeiros

tribunais, já a partir de Grécia e Roma, a graça institucionaliza-se:

(...) É então que aparecem o indulto e a anistia, o primeiro usado geralmente

para perdoar crimes comuns, e a segunda, para esquecer crimes políticos (...)

Isso indica que o instituto da graça evoluiu progressivamente com o avanço

das formas democráticas de governo e o conceito de crime político, até atingir

sua expressão mais importante, a anistia (...).4

1 “(...) Pela sua origem, a anistia é irmã gêmea da democracia. Surgiu a partir de necessidades políticas, com o estabelecimento da república grega, e suas primeiras experiências de vida democrática. A democracia grega veio estabelecer, pela primeira vez, a regra da conivência dos contrários, do respeito às minorias e à oposição, e da alternância de grupos no poder. Era a fórmula capaz de conciliar interesses políticos conflitantes e manter a unidade da nação (...)”. MARTINS, Roberto Ribeiro. Anistia ontem e hoje. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Brasiliense, 2010. p. 24-30. 2 “(...) Prevaleceu para as línguas latinas o grego amnéstia, do que veio a se originar a formação latina amnestia, a francesa amnestiea e até mesmo a forma inglesa amnesty, sendo a portuguesa amnistia simplificada no Brasil para anistia (...). A expressão “generalis abolitio”, presente em Roma, possui a mesma significação, ou seja, oesquecimento, o olvido, ou, no sentido mais amplo, a abolição geral (...)”. MARTINS, 2010, p. 24-30. 3 MARTINS, 2010, p. 24-30. 4 MARTINS, 2010, p. 24-30.

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Com a Revolução Francesa, portanto, a anistia passa a ser atributo do Poder

Legislativo e prerrogativa da sociedade, e não mais privilégio do chefe de Estado. Seu

conceito está atrelado ao estabelecimento da concórdia nas sociedades ocidentais e

passa a vigorar como tentativa de retorno à estabilidade social, visando, sobretudo, a

anulação de toda e qualquer consequência de punição aos que foram atingidos por

ações arbitrárias dos governos.

1.1 Anistia no Brasil: breve histórico

No Brasil, em princípio, perpetuou-se o ato da graça durante o início do processo

da colonização, entre os séculos XVI e XVII. O país fora dividido em capitanias

hereditárias, momento em que o rei de Portugal delegou poderes aos donatários que,

por sua vez exerceram forte domínio sobre a população local: “Portanto, nas sua

primeiras manifestações em território brasileiro, a graça era uma instituição tipicamente

feudal e expressava a extensão ilimitada de poder dos senhores donatários (...). Em

sua jurisdição competia-lhes,

juntamente com o ouvidor, que criassem e nomeassem o exercício pleno da

justiça penal, a coberto de qualquer recurso às suas sentenças, que podiam ir

à aplicação de pena de morte, mesmo aos homens livres, não importa o crime,

e até aos nobres, quando os delitos fossem de heresia, traição, sodomia e

moeda falsa.5

O abuso de poder e a autonomia em relação às decisões de justiça, precipitaram

a crise no sistema de capitanias, que passa a ser unificado e ligado a um Governo-

geral. Nesse momento, todas as decisões passam a ser tomadas entre o governador –

que irá tratar das questões administrativas e de julgamentos, e a Ouvidoria – que tem

por missão a aplicação da justiça, que consiste empunir e anistiar os réus. Em algumas

situações, os casos eram julgados concomitantemente.

5 MARTINS, 2010, p. 24.

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Durante todo o período colonial, a anistia esteve presente como medida de

conciliação política dos governos – a exemplo do episódio da insurreição

pernambucana, em 1654, por conta da expulsão dos holandeses. O mesmo aconteceu

com a Revolta de Beckman, em 1684, no Maranhão, e posteriormente, com a Guerra

dos Emboabas, em 1789.6 Nesses casos, as ações refletiram um acordo

preestabelecido por parte do governo.

Posteriormente, com o processo de emancipação política do país, a anistia

passa a integrar o texto da Constituição de 1824, mas, ainda sob influência do

imperador – cabendo concedê-la ou não mediante ao poder que exercia.(...) “os

constituintes tomavam-no como a chave de toda a organização política, incumbida de

patrocínio da harmonia e de equilíbrio (...)”. Nessas condições, “(...) O Poder

Moderador”, definia o dispositivo constitucional, “é a chave de toda a organização

política e é delegado privativamente ao imperador (...) para que incessantemente vele

sobre a manutenção da independência e harmonia dos mais poderes políticos (...)”.7

De acordo com Mercadante (2003), há uma tradição conservadora no Brasil,

desde o período da colonização, que resulta em processos conciliatórios com os

poderes e a sociedade:

(...) Sendo avesso a revoluções, desconfiado do Estado forte, propenso a

garantir as liberdades individuais contra o autoritarismo, inclinado a aceitar a

lógica gradualista da história e o lento evoluir da base de valores, o

conservadorismo “no” Brasil assumiu um perfil conciliatório. Pode haver

dificuldades à gênese de nosso desenvolvimento industrial mas garantiu uma

sociedade sem guerras civis, sem revoluções, acima de tudo sem

fragmentações (...).8

6 “(...) Em todo esse período vê-se aumentar flagrantemente a repressão do governo português, numa tentativa desesperada de prevenir o perigo dos ideais autonomistas. A dureza dos castigos infligidos aos movimentos populares pelo governo da Colônia chegou a preocupar a própria Coroa. Por essa razão, a maioria desses movimentos é agraciada, logo em seguida, com a anistia, salvo a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. MARTINS, 2010. p. 25. Ver também: <http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf>. Data de acesso: 14 jun. 2014. 7 MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil – Contribuição ao estudo da formação brasileira. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Universidade, 2003. p. 241. 8 MARTINS, 2010, p. 25.

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Esse aspecto conservador, assim como a “lógica do gradualismo”, se fez

presente em vários períodos da nossa história. Recentemente, em dois momentos: na

concessão parcial da anistia, em 1979, que não contemplou o projeto da “anistia ampla,

geral e irrestrita”, previsto pelos movimentos sociais e, posteriormente, na concessão

da Lei 9.140/1995, conhecida como a “Lei dos Desaparecidos”, em que o Estado “foi

omisso em relação aos crimes cometidos contra os brasileiros que fizeram oposição à

ditadura civil-militar – não caracterizando, portanto, uma anistia na sua totalidade,

reforçando-se a ideia de que as decisões políticas realizadas no Brasil possuem caráter

restrito.9

Fica a cargo das comissões de reparação do Estado, bem como a Comissão de

Anistia e a Comissão Nacional da Verdade, prosseguir com o projeto inacabado da

anistia e realçar os aspectos da memória em nosso país.10 E, ainda sim, estamos num

momento de reconstrução da nossa história, com profundas deficiências no que tange

às questões que envolvem o estabelecimento da verdade e da justiça. Este assunto, no

entanto, será abordado em profundidade ao longo deste trabalho.

Ainda no período das intensas rebeliões que marcaram o século XIX, inúmeras

prisões e condenações foram passíveis de anistia. O embate mais expressivo

aconteceu em Pernambuco, em 1824, e ficou conhecido como Confederação do

Equador: influenciados pelos ideais republicanos, líderes como Cipriano Barata e frei

Caneca foram executados por forças repressivas do governo.11 A anistia geral por

parte do imperador Pedro II só viria em 1840: “(...) Geral, sim, porém condicional: era

9 SANTOS, Sheila Cristina. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a reparação do Estado às vítimas da ditadura militar no Brasil. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2008. 10 Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, Ministério da Justiça, n. 1, jan./jun. 2009. 11 “(...) A propagação das ideias republicanas, antiportuguesas e federativas (opostas à centralização do poder) ganhou ímpeto com a presença no Recife de Cipriano Barata, vindo da Europa (...) A atividade de Cipriano, em Pernambuco, não demorou muito. Após a dissolução da Constituinte, foi preso e enviado para o Rio de Janeiro, onde ficaria detido até 1830. Como figura central das críticas do Império, passou, então, a destacar-se Frei Joaquim do Amor Divino – Frei Caneca, que participava ativamente da insurreição de 1817. (...) A Confederação do Equador deveria reunir sob forma federativa e republicana, além de Pernambuco, as províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e, possivelmente, o Piauí e o Pará. O levante teve conteúdo acentuadamente urbano e popular (...)”. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: Edusp, 1997. p. 152-153.

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concedida anistia aos envolvidos em quaisquer das rebeliões provinciais, o que

alcançava a Cabanagem, a Revolução Farroupilha, a Sabinada e a Balaiada (...)”.12

Nos anos de 1840-1889, período que corresponde ao Segundo Reinado,

prevaleceram as rebeliões e embates de cunho democrático. A Revolução Praieira

(1848), em Pernambuco, simbolizou alguns desses momentos e marcou o término de

protestos durante o Império. Seus principais líderes, entre eles, Felix Peixoto de Brito e

Pedro Ivo, foram presos e condenados, assim como tantos outros opositores desse

período. A diferença é que, dessa vez, a anistia não fora concedida pelo Imperador.13

1.2 A anistia durante a República Ao longo desse período, outros episódios de natureza política culminaram

em processos de “pacificação nacional”. A primeira anistia, concebida pelo então

presidente Prudente de Morais, beneficiou, basicamente, oficiais do Exército que se

rebelaram dentro da nova conjuntura de governo. Na história da República brasileira,

foram 48 anistias: o primeiro momento em 1895 e o último em 1979. No início, “(...)

possibilitou uma rearticulação conciliatória do pacto político anterior, quando o

conservadorismo até então presente possibilitou sua transfiguração em ideais liberais

com forte marca do ecletismo (...)”.14

O processo que envolveu a concessão da anistia em 1979 representou uma das

maiores mobilizações sociais já vistas em território nacional, responsável por

desencadear, anos mais tarde, o retorno à democracia. Seus reflexos se estendem até

hoje, com base nas discussões sobre justiça e reparação. 12 Depois, vieram várias rebeliões no período regencial (1831-1840), com características muito distintas, as quais se destacam a Cabanagem (Grão-Pará, l835-l840), Balaiada (Maranhão, 1838-1840), Sabinada (Bahia, l837-l838), Farroupilha (Rio Grande do Sul, l835-l845). Todas essas rebeliões foram reprimidas violentamente pelo Exército Imperial. Em todas elas, milhares de mortos, presos, condenados e, em todas, são concedidas anistia pelo Imperador. Em 1835, na Regência, é concedida anistia a "todas as pessoas envolvidas em crimes políticos até 1834 nas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro”. MARTINS, 2010. p. 26. Ver também: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthisbr/redemocratizacao1988/homero_anistia.html>. Acesso em: 10 jul. 2014. 13 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthistbr/redemocratizacao1988/homero_anistia.html>. Acesso em: 30 jul. 2014. 14 CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e Anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p.15-35.

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(...) Compreendo o tema da anistia como processo político historicamente

construído, fundamental para que possamos forjar uma cultura política baseada

no respeito aos direitos humanos e, nessa dimensão, continua em aberto como

alvo de intensas disputas no campo da memória histórica e da cultura jurídica

no Brasil (...).15

A “cultura da (re)conciliação” passa a ser uma característica da política exercida

no Brasil – marcada por acordos que irão garantir a continuidade dos processos

históricos. Na chamada “Era Vargas”, não foi diferente. Durante o Governo Provisório

(1930-1934), civis e militares receberam o benefício da anistia. Essa medida do

governo de Getúlio Vargas contemplou cidadãos envolvidos em movimentos

revolucionários durante as décadas de 1920 e 1930 – sobretudo, os adeptos ao

Movimento Constitucionalista de 1932.16

Num outro contexto, o pacto firmado com o fim do Estado Novo (1937-1945) não

previa fazer “as pazes” com todos os setores da sociedade. Os militares, por sua vez,

principalmente os envolvidos na Intentona Comunista de 1935 – entre eles, Luis Carlos

Prestes,17 não foram totalmente beneficiados pela anistia. Apesar de absolvidos pelo

Tribunal de Segurança Nacional (TSN), deixaram de ser incorporados às Forças

Armadas. “(...) A partir desse momento, a anistia, que expressava o conceito de 15 SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político em disputa. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. A Anistia na era da responsabilização: o Brasil em Perspectiva Internacional e Comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011. p. 190-210. 16 “(...) A Revolução de 1930 vai decretar uma das anistias mais amplas do período republicano. Fruto de uma revolução vitoriosa, não poderia ser de outra forma: beneficia todos que encarnavam o espírito revolucionário da década de 1920 – em especial, o fenômeno tenentista (...). A anistia decretada pelo Governo Provisório em 28 de maio de 1934 contém restrições. O decreto, depois de revogar as cassações de direitos políticos, isenta de responsabilidade criminal os participantes do surto revolucionário de 1932 (...). Determina a reintegração dos militares às Forças Armadas, porém condicionava a reintegração dos servidores civis a uma prévia audiência(...). Os constituintes fazem constar no artigo 19, das Disposições Transitórias da nova Carta: “É concedida anistia ampla a todos os quanto tenham cometido crimes políticos até a presente data”. MARTINS, 2010. p. 91-101. Ver também: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthistbr/redemocratizacao1988/homero_anistia.html>. Acesso em: 30 jul. 2014. 17 Luis Carlos Prestes foi anistiado pelo governo brasileiro em janeiro de 2010. Por causa da perseguição política sofrida junto com sua família, na União Soviética, por quase 10 anos (1970-1979),o ex-líder comunista recebeu declaração de anistiado político brasileiro (post mortem) através da Comissão de Anistia, a quantia de R$ 100 mil destinada à família, e os diplomas de graduação e mestrado em cinema e TV obtidos na União Soviética. Diponível em: <http://politica.estadao.com/br/noticias/geral>. 13 de jan. 2010. Acesso em: 15 ago. 2014.

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reintegração às Forças Armadas, adquire outro significado: reintegrar e reincorporar

passa a excluir a possibilidade de exercer e/ou voltar à ativa como militar (...)”. Antes

da deposição do presidente Getúlio Vargas, 565 presos políticos tiveram a liberdade

concedida pelo governo – no entanto, grande parte dos militares receberam a anistia

parcial.18

Além dos fatores de resistência e oposição direta aos governos, que favoreceu

processos de conciliação posteriores aos conflitos – grande parte deles envolvendo

militantes políticos, militares e exiliados –, registram-se, também, a anistia à classe de

trabalhadores punidos mediante ações grevistas. Durante as décadas de 1950 e 1960,

esses movimentos se intensificarão e atingirão o auge entre os anos de 1962-1964 –

momento anterior ao golpe de Estado. No campo das reivindicações constavam a

defesa dos direitos trabalhistas e questões de interesse nacional que, de certa forma,

foram incorporadas à luta dos trabalhadores, a exemplo da violência praticada pelo

Estado.

Em dezembro de 1961, meses após a renúncia de Jânio Quadros, o Congresso

promulga o Decreto legislativo n. 18, que significava anistiar “todos que participaram,

direta ou indiretamente, de fatos ocorridos no território nacional, desde 16 de julho de

1934 até a promulgação do Ato Adicional e que constituem crimes políticos definidos

em lei”.19 Inclui-se, nessa lista, todos os cidadãos envolvidos em atos tidos como

ilegais diante das práticas de “controle” do Estado.

Um dos fatores mais emblemáticos em torno dos processos de anistia diz

respeito à reintegração ao trabalho após longos períodos de reclusão daqueles que

tiveram que cumprir penas rígidas aplicadas pela justiça brasileira. Na prática, a anistia

que permite o “esquecimento” de processos e condenações mas não garante a

permanência, nem mesmo o retorno, aos postos de trabalho.

Com o golpe de Estado em 1964, a anistia só viria a acontecer no ano de 1979,

após intensas articulações e batalhas no campo político e social. A proposta da

sociedade objetivava o retorno da democracia pautada na liberdade de cidadãos

18 Disponível em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/anthistbr/redemocratizacao1988/homero_anistia.html>. Acesso em: 30 jul. 2014. 19 Trecho do Art. 1º, do decreto legislativo n. 18, de 15 de dezembro de 1961, Auro Moura Andrade- Vice Presidente em Exercício da Presidência. MARTINS, 2010, p. 91.

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punidos e perseguidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura civil-militar e no acesso

à justiça. Já a anistia concedida pelos militares revela-se no seu aspecto inacabado e,

sobretudo, reforça a tradição do esquecimento e da reconciliação.

1.3 A concessão da anistia de 1979, e a gênese do processo de transição democrática no Brasil

1.3.1 Contexto histórico

Após tumultuado período de repressão política no país desde o golpe de 1964, a

ascensão de Ernesto Geisel em março de 1974 deu-se em um momento em que a

imagem do governo estava totalmente desgastada perante a sociedade civil por

contados fatos que envolviam crimes e torturas no país.

Depois da vitória dos castellistas, Geisel assumiu o poder com intenção“ de

abrir, em algum grau, o regime”.20 É certo que, em algum momento, os militares

deixariam o poder; no entanto, isso só poderia ocorrer em condições propícias para a

Corporação. Para Bernardo Kucinski, “com a escolha do general Ernesto Geisel para

suceder o general Emílio Garrastazu Médici na presidência da República, a proposta

de institucionalização do regime ganha um impulso decisivo”.21

Nessa esfera, era preciso estabelecer o diálogo com outros setores do poder,

sobretudo com a linha-dura: “A oposição era mais forte naqueles setores das forças

armadas ligados ao aparelho de segurança, especialmente aqueles envolvidos

ativamente na campanha antiguerrilha (...).”22

Por conta disso, qualquer discussão sobre a possibilidade de iniciar um processo

de transição política deveria ser cuidadosamente acordado entre as bases militares.

Tornou-se, portanto, condição essencial o planejamento de situações seguras para o 20 SORJ, Bernardo; ALMEIDA, Maria Hermínia (Orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 47. 21 KUCINSKI, B. O fim da ditadura militar. São Paulo: Contexto, 2001. p. 10-11. 22 STEPAN, A. Os militares: da Abertura à nova República. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Política, 1986. p. 52.

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abandono do cenário político e a contenção de quaisquer focos de oposição, a fim de

efetuar a transição para a democracia de forma a não abdicar dos interesses dos

militares, interesses, por sua vez, calcados na transferência de poder para os civis, de

forma controlada, sob égide permanente do Alto Comando da Corporação:

(...) Esse movimento se inicia com o chamado projeto de “distensão”,

anunciado pelo governo Geisel em 1974, e se encerra com o fim do processo

de abertura, por meio da eleição indireta de Tancredo Neves para suceder o

general Figueiredo na Presidência da República, em 1985. O êxito desse

movimento garantiu a passagem lenta e gradual da forma ditatorial para a

forma democrática do Estado burguês no Brasil, completada posteriormente

com a substituição da institucionalidade política autoritária, vigente desde 1964,

pela institucionalidade democrática, através da Constituição de 1988 e das

eleições diretas para presidente da República, em 1989.23

Para isso, era preciso, entre outras medidas, estabelecer diálogo com os grupos

das Forças Armadas que eram contrários à abertura, e os setores da oposição

representados pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), à medida que buscavam

espaço para atuação no campo político.

O processo rumo à abertura, iniciado em 1974, se estendeu até 1985,

efetivamente, com a redemocratização do país. Esse período foi marcado

essencialmente pela afirmação de um poder instituído pela força desde 1964 e pela

utilização de mecanismos que legitimavam esse poder, a exemplo do AI-5, instrumento

utilizado pelo governo até o final de 1978, para consolidar o caráter autoritário do

regime.

As intenções políticas do mandato de Geisel supriram a necessidade de realizar

reformas políticas emergenciais com o intuito de garantir a credibilidade dos militares

juntos aos diversos setores da sociedade. A ação repressiva do Estado, sobretudo

entre os anos de 1968 a 1974, contribuiu para isso:

Os extremistas da comunidade de segurança, temendo perder a autonomia,

empreenderam um novo round no combate às organizações esquerdistas, 23 MACIEL, David. A Argamassa da ordem. Da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). São Paulo: Xamã, 2004. p. 22-40.

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tanto para eliminá-las como para convencer os ‘militares enquanto instituição’

de que a ameaça subversiva era real e a distensão, um perigo equívoco (...).24

A questão da segurança nacional sempre foi prioridade na agenda dos militares.

A essa altura, grande parte das organizações de esquerda, principalmente nos centros

urbanos, já havia sido desarticulada. No entanto, o controle à subversão foi a tônica

dos governos militares. Em princípio,

A normalização que se pretende é da ordem revolucionária. Mais que um

programa de transição, o que se esboça nas palavras de Geisel é um projeto

de institucionalização do regime autoritário, que prevê medidas liberalizantes,

mas apenas na medida em que sirvam a esse propósito.25

O quarto general-presidente se deparou, desde o início da sua gestão, com uma

forte oposição dentro e fora da instituição militar. O grande desafio do seu governo foi

realizar a manutenção dos órgãos de repressão política que atuavam de maneira

clandestina e incontrolável, impossibilitando qualquer chance de normalização

institucional. Por conta disso, Geisel buscou aplicar em seu mandato uma

política que tem como linha básica a revigoração do prestígio do regime, a

reativação da vida partidária, a reabertura do diálogo com setores

marginalizados das elites e a contenção da dinâmica oposicionista dentro de

limites que não ameaçassem a chamada Segurança Nacional.26

Mesmo com as intenções de liberalizar o regime, o Estado ainda promoveu, e

muito, a repressão aos opositores políticos. Os atos de violência praticados contra

cidadãos dentro do país distanciaram o governo de realizar a manutenção do sistema

instaurado em 1964. Os crimes de tortura, mortes e desaparecimentos persistiram

como prática exercida pela “comunidade de segurança”, em proporções ainda maiores,

pois os algozes da repressão, visando à abertura, deram início a um período em que se

24 STEPAN, 1986, p. 52. 25 STEPAN, 1986, p. 52. 26 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil nunca mais. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 64. Prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns.

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empenharam em fazer desaparecer cidadãos com o intuito de não deixar vestígios de

suas práticas ilegais. Para Couto: “A repressão política criara um poder militar paralelo,

praticamente autônomo, enfraquecendo os comandos, prejudicando a hierarquia e a

disciplina, ameaçando a ordem dentro das próprias Forças Armadas.”.27

A oposição também esteve presente nos partidos de representação política no

Congresso Nacional (como o MDB) denunciando crimes cometidos contra os direitos

humanos no país. Essa oposição tornou-se prejudicial ao governo, pois, fortalecendo-

se com a proposta de abertura, promoveu embate direto com a ditadura: “À oposição

não cabia aderir, sob pena de deixar de ser oposição. Seu papel, nem sempre

compreendido pelo governo militar, era principalmente o de fiscalizar e criticar. E no

caso da liberalização política, o de tentar acelerar o processo.”.28

No contexto social, o fim do “milagre” e a consequente crise econômica

aprofundaram as contradições sociais e políticas geradas pelo sistema capitalista e

pela ditadura. Garantir a continuidade do regime diante da situação de crise exigiu

algumas iniciativas políticas por parte dos militares e da burguesia que lhes

permitissem administrar a crise, os interesses da burguesia, o desgaste do governo,

que se mantinha à base da repressão e da censura, e a iminente oposição, que se

reorganizava no país paulatinamente.

Para Maria José de Rezende ficou “patente que os ‘estratos burgueses’,

insatisfeitos com os resultados da política econômica do governo e com o seu

esmagamento pelo capital financeiro imperialista, interpretavam corretamente a

situação: ruim com a ditadura, pior sem ela!”29 As políticas de distensão e de abertura

atendiam a essa necessidade, “suscitavam uma nova estratégia militar pela qual o

desengajamento do braço armado da burguesia seria gradual (...) e permitiria o

controle pelo topo de qualquer processo político que envolvesse uma ameaça à

estabilidade da ordem (...)”.30

27 COUTO, R. C. História indiscreta da ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 151. 28 COUTO, 1998, p. 151. 29 REZENDE, Maria José. A transição como forma de dominação política: o Brasil na era da abertura – 1980 a 1984. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1991. p. 73. 30 REZENDE, 1991, p. 73.

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As chances de uma transição controlada de cima para baixo foram sendo

questionadas devido à perda de legitimidade do regime militar no transcurso da década

de 1970, ao passo que as bases de expansão econômica se revelavam frágeis, e a

crise social voltava a se expandir. Paralelamente, o governo sinalizava para a

possibilidade de abertura “lenta, gradual e segura”, e, principalmente, sob controle:

(...) O caráter de “conciliação revolucionária” apresentado pelo governo, ou

seja, no campo dos partidários da chamada “Revolução de 1964”, fazia parte

da estratégia de recomposição do bloco do poder e de contenção da crise

conjuntural(...) e que teve como elementos políticos centrais o controle da

sucessão presidencial e a aprovação das reformas institucionais (...).31

É no governo Geisel que a ditadura dá sinais de “afrouxamento”, iniciando,

paulatinamente, um movimento que, mais tarde, representou a volta dos militares aos

quartéis, quando as Forças Armadas deixam de exercer seu papel de governo e

retomam suas funções dentro das instituições militares, em meados da década de

1980.

A todo instante, o regime demonstrava que a liberalização política se dava a

passos lentos, sob cuidados, e era realizada mediante as constantes negociações com

a oposição parlamentar, sendo pressionada por setores de representatividade da

sociedade civil, sobretudo as camadas mais populares, provenientes das fábricas,

através da organização dos operários, da ação das Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs) nas periferias e, também, da ação dos estudantes, artistas, intelectuais,

religiosos e demais organizações que pleiteavam mudanças na esfera política e social.

Mais tarde, esses movimentos irão impulsionar a luta pela anistia.32 “(...) O movimento

social era pensado basicamente enquanto pólo não-institucional em contraposição ao

31 MACIEL, 2004, p. 27. 32 “(...) O que ocorre são inúmeras pequenas reivindicações que se situam, de modo particular, nos bairros populares, nas periferias das cidades, principalmente em São Paulo (...) muitas manifestações que reivindicam melhoria da moradia, acesso à terra, transporte, creches, saúde etc., (...). A presença da Igreja Católica é muito forte nesses movimentos (...)”. KOWARICK, Lúcio. Os movimentos sociais dos anos 70. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel (Orgs.). Pela democracia, contra o arbítrio. A oposição democrática do golpe de 1964 à campanha das Diretas-Já. São Paulo: Perseu Abramo, 2006. p. 155-160.

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sistema institucional (...)”.33 A importância dessas organizações sociais irá se revelar

com o tempo, marcando, definitivamente, o curso da recente história do país: “(...) os

movimentos sociais têm seu caráter magnificado quanto ao nível de participação

popular, espontaneidade, sua independência das elites e o predomínio de uma

concepção igualitária (...)”.34

Apesar da abertura política representar um fato iminente dada as circunstâncias

políticas, a crise deflagrada no país em virtude do desaparecimento de militantes

políticos atingiu seriamente o governo. No ano de 1974, auge dos desaparecimentos

no país,35 o arcebispo de São Paulo, Dom Evaristo Arns, entregou ao governo uma

relação inicial com os nomes de 22 desaparecidos, solicitando esclarecimento sobre o

destino dessas pessoas.36

No entanto, a negligência dos órgãos de segurança impossibilitou o acesso a qualquer

tipo de informação sobre os presos.

A questão dos desaparecimentos por motivação política em nosso país

permanece como um dos grandes entraves rumo a uma efetiva política de transição

democrática e conciliação com a sociedade, sobretudo no que se refere aos familiares

das vítimas. Questões dessa natureza impossibilitam um “ponto final” na história. Não

há avanços porque, efetivamente, o Estado não puniu seus algozes e, inviabiliza, até

hoje, informações sobre cidadãos desaparecidos. Nesse sentido, a impunidade tem

sido a marca expressiva do governo brasileiro desde a concessão da anistia parcial,

em 1979.37

A morte do jornalista Wladmir Herzog nas dependências do DOI-CODI, em São

Paulo, em 1975, revelou como a repressão política se articulava. Esse episódio

suscitou uma crise no governo, pois sua execução comoveu a opinião pública e

mobilizou a sociedade para um culto ecumênico uma semana depois, na Catedral da

Sé, com a presença do arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns. A manifestação, com a 33 JACOB, Pedro R. Movimentos sociais urbanos numa época de transição: limites e possibilidades. In: SADER, Emir (Org.). Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo: Cortez, 1987. 34 MACIEL, 2004, p. 28. 35 Segundo dados contidos no Dossiê de mortos e desaparecidos políticos a partir de 64, no ano de 1974, todos os nomes de opositores que constam na listagem feitas pelos familiares são desaparecidos, ou seja, o Estado não reconhece o paradeiro das vítimas. 36 KUCINSKI, 2001, p. 32. 37TELES, Janaína. Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2000.

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presença de oito mil pessoas, “marca a grande virada da classe média e dos

profissionais liberais contra o regime”.38 Esse fato revelou ainda que “o choque entre

diferentes grupos militares acerca da necessidade de os organismos de segurança se

adaptarem aos novos tempos ficou bastante evidente com os assassinatos ocorridos

dentro do DOI-CODI.”.39

Na sequência das arbitrariedades cometidas pela repressão, o caso do operário

Manoel Fiel Filho também ganhou notoriedade pela brutalidade da ação do DOI-CODI:

em janeiro de 1976, o trabalhador foi morto nas mesmas condições, em mais uma ação

que fugiu do controle do Estado. Esses dois casos, de grande repercussão na época,

exerceram considerável influência para que fossem desencadeadas ações de

enquadramento desses órgãos de segurança que praticavam crimes hediondos.

À essa altura, o presidente Geisel adotou medidas emergenciais, sem respaldo

imediato do Comando Militar, atendendo, de certa forma, às pressões da população:

“(...) a reação da sociedade civil – e a habilidade de Geisel para se associar com ela –

fortaleceu imensamente o peso do governo contra seus mais perigosos adversários no

aparelho de segurança (...)”.40 Tais medidas não foram, porém, suficientes para que

outras ações abusivas da chamada “comunidade de segurança” fossem deflagradas no

país.

No final do ano de 1976, ocorreu outra ação dos órgãos de repressão, a

exemplo da repressão sem limites praticada na gestão Médici: dois membros da

Executiva do Partido Comunista do Brasil (PC do B) foram executados por agentes do

DOIC-CODI,41 em uma casa no bairro da Lapa, em São Paulo, onde eram realizados

encontros com membros do Comitê Central. Esse episódio, que ficou conhecido como

a “Chacina da Lapa”, foi mais um caso de impunidade daqueles anos de ditadura: “A

38 KUCINSKI, 2001, p. 36. 39 ARQUIDIOCESE de São Paulo, 2007, p. 66. 40 STEPAN, 1986, p. 50. 41 O Partido Comunista do Brasil era a única organização ainda estruturada àquela altura e teve sua direção destroçada pela delação de um veterano comunista. Foram executados, em 16 de dezembro de 1976, em decorrência da ação repressiva do Estado, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e, posteriormente, João Batista Franco Drummond, todos membros da Executiva. Para outras informações sobre o episódio, ver: POMAR, Pedro E. Rocha. Massacre na Lapa: como o Exército liquidou o Comitê Central do PC do B – São Paulo, 1976. 3. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 10.

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[chacina da] Lapa teve particularidade de ocorrer já na era da distensão, ascendente

direta da abertura e da ‘Nova República’.”.42

O comandante da operação, o general do II Exército, Dilermano Gomes

Monteiro, que assumiu o posto após a demissão de Ednardo D’Ávila, foi inocentado por

não ser considerado, propriamente, da linha-dura. A autoria da ação foi considerada

dos órgãos de segurança: “Sempre foi de total impunidade o sentimento dominante

entre os agentes de segurança do regime militar brasileiro”,43 o que contribuiu para que

a repressão agisse continuamente.

Em decorrência das inúmeras ações arbitrárias do governo, a segunda metade

da década de 1970 apontou para uma série de acontecimentos que aceleraram o

caminho para a abertura. Foram deflagrados vários atos de contestação no país,

revelando a crescente insatisfação da opinião pública com relação à permanência dos

militares no poder. A sociedade almejava mudanças no quadro político, e na pauta das

reivindicações estava o fim da censura prévia no país, sobretudo na imprensa e nas

organizações sociais que emergiram no universo da política, a exemplo do movimento

estudantil e operário, já em processo de reorganização. A revogação do AI-5, a

realização de eleições livres e a concessão da Anistia aos presos políticos também

fizeram parte desse conjunto de interesses que envolveram diversos setores da

sociedade civil.

No campo da política, as eleições diretas para o governo dos estados, previstas

para o ano de 1978, geravam especulações na cúpula do poder sobre a possibilidade

de vitória do partido de oposição. Considerando-se que a oposição avançara e passara

a ocupar espaço com reais chances de vitória nas eleições, Geisel utilizou o

instrumento do AI-5, ainda em vigor, para intimidar a oposição.

Com o intuito de fortalecer o partido do governo, a Arena, e garantir a

hegemonia no Congresso para realização de seus ideais políticos, o presidente adotou

uma medida arbitrária, que contradizia qualquer intenção liberalizante do regime. No

mês de abril de 1977, o Congresso Nacional fechou e anunciou uma série de medidas

extraordinárias, conhecidas como “Pacote de Abril”. A partir disso, as regras eleitorais

foram modificadas de modo a garantir a maioria parlamentar à Arena, o mandato 42 POMAR, 2006, p. 9. 43 POMAR, 2006, p. 29.

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presidencial passou de cinco para seis anos e foi criada a figura do “senador biônico”,

eleito indiretamente pelas Assembleias Legislativas de seus estados. Essa ação do

governo revelou a forma controladora de Geisel promover a transição política. Tal

medida “teve duro impacto nos ânimos de setores oposicionistas entusiasmados com

as promessas de reabertura democrática (...)”.44

O governo, por sua vez, recebeu severas críticas decorrentes do anúncio do

Pacote de Abril: “A intensidade da reação provocada por mais esse ato de força, que

por sua brutalidade rivalizava com as medidas mais duras até então impostas pelo

regime e que se chocava tão frontalmente com os proclamados intuitos de distensão e

de normalização institucional (...)”.45

Para Maciel,

comparando com os outros governos militares, o uso dos atos de exceção pelo

governo foi mais regular, pois não ocorreu somente em momentos críticos – em

que a ordem autoritária era ameaçada por grave crise política ou por ações

consideradas ‘subversivas’, como nos anos de 1968/69, e no combate à

esquerda armada –, mas como uma espécie de medida administrativa

corriqueira.46

E, embora não fossem utilizados com as mesmas justificativas, esses atos de

exceção não deixaram de ser aplicados nos momentos em que se visava o

restabelecimento de uma ordem vigente e de um governo caracterizado pelo controle

de suas ações. No governo Geisel, houve “repressão, sim, e dura, mas temperada com

medidas de abertura, mesclada com gestos de abrandamento, tudo visando, em última

instância, a manutenção do sistema instaurado em 1964”.47

Sabia-se que o projeto de descompressão do regime seria algo difícil de se

concretizar a curto e médio prazo, em um processo repleto de avanços e recuos por

parte do governo, e, principalmente, denotando uma constante relação de equilíbrio

entre Geisel, seus assessores e os representantes da linha-dura.

44 ARQUIDIOCESE de São Paulo, 2007, p. 65. 45 SORJ; ALMEIDA, 1983, p. 55. 46 MACIEL, 2004, p. 87. 47 ARQUIDIOCESE de São Paulo, 2007, p. 64.

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Em meados da década de 1970, o país acompanhou um paulatino processo de

reorganização da sociedade. “(...) Na literatura sobre os movimentos sociais, com a

crise do autoritarismo e a ascensão dos movimentos de oposição, privilegia-se mais o

que o Estado cede do que o que efetivamente controla e organiza (...)”.48 Nesse

momento, iniciou-se uma nova fermentação do movimento estudantil, marcada por

inúmeras manifestações contra o regime militar, que se intensificou, e suas ações de

luta se ampliaram:

(...) Os movimentos e organizações sociais emergentes a partir da segunda

metade dos anos 1970 combatiam não apenas o autoritarismo institucional,

mas construíram uma nova noção de cidadania, procurando superar também o

autoritarismo social (...)e o fortalecimento dos vínculos de solidariedade entre

os sujeitos sociais emergentes (...).49

Juntamente com os estudantes, o movimento operário também caminhou para

um processo de rearticulação política. Em 1978, os operários da fábrica Scania, em

São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, entraram em greve a partir de 12 de

maio. O movimento repercutiu em todo o país, reacendendo a luz do movimento

operário, fato que não era visto desde as manifestações de 1968.Paulatinamente, a

luta que se articula entre os operários em torno de melhores condições de trabalho irá

agregar-se a outras frentes de luta.

Nesse instante, várias ramificações sociais passam por um processo de

redefinição. As lutas isoladas deflagradas em vários setores se aglutinarão e, para

além das suas reivindicações, irão se incorporar à luta pela anistia. Essas

manifestações ocorrem numa plataforma política nada favorável ao embate – ao

contrário, são desencadeadas ainda sob forte censura aos segmentos oposicionistas.

Sader afirma que, “os mais diversos grupos populares irrompiam na cena pública

48 JACOB, 1987, p. 112. 49 PORTO, Fabíola Brigante Del. A luta pela anistia no regime militar brasileiro: A constituição da sociedade civil e a construção da cidadania. Perseu: história, memória e política, São Paulo, Perseu Abramo, p. 44-72, 2009.

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reivindicando seus direitos, a começar pelo primeiro, pelo direito de reivindicar seus

direitos”.50

A repressão e o cenário político nada propenso às negociações não impedem

que os grupos oposicionistas encontrem “brechas” para desencadear ações de

resistência. Tendo em vista que “a consolidação do regime militar no início da década

se fazia sobre a pulverização e o silêncio dos movimentos sociais”,51 o retorno desses

movimentos organizados contribuiu para a fase de descompressão do regime, e sua

rearticulação foi um fator decisivo no percurso da abertura, no entanto, apontando m

movimento essencialmente caracterizado pelo surgimento de “novos atores sociais no

cenário político”.52

À essa altura, os sindicatos estavam sob intervenção. Mesmo assim, a

emergência do novo sindicalismo revelou o aparecimento de novas lideranças políticas

e também o engajamento de outros setores da sociedade na luta contra a ditadura e

em prol a abertura política.

Nesse instante,

movidos pela solidariedade à greve formaram-se comitês de apoio em fábricas

e bairros da Grande São Paulo. Pastorais da igreja, parlamentares da

oposição, Ordem dos Advogados, sindicatos, artistas, estudantes, jornalistas e

professores assumiram a greve do ABC como expressão da luta democrática

em curso.53

Era um passo importante de mobilização nacional, que se refletiu em ações

posteriores do governo no que diz respeito aos rumos da democracia.

Apesar da significativa expressão do movimento estudantil que retorna ao

espaço público, sobretudo a partir de 1977 há um importante aspecto de articulação

política a ressaltar: o movimento desencadeado no interior das fábricas. Sendo assim:

50 SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 26. 51 SADER, 1988, p. 32. 52 Ibidem, p. 36. 53 Ibidem, p. 27; ARQUIDIOCESE de São Paulo, 2007, p. 65.

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(...) É então, também, que nos anos de 1973 e 1974, começam a aparecer as

formas de organização que vão desenvolver as pequenas lutas nas fábricas.

Como o controle sobre o sistema fabril era rígido, as ações planejadas para

ocorrer dentro das fábricas eram discutidas e organizadas nos bairros das

cidades. Ações como operações-tartaruga de 1974-1975, as paralisações-

relâmpago e mesmo distribuições de panfletos eram assim preparadas (...).54

A Igreja teve seu papel de destaque denunciando a violência e os assassinatos

contra presos políticos e defendendo os direitos humanos, em campanha organizada

pela Comissão de Justiça e Paz, pela OAB e representada pela Conferência Nacional

de Bispos do Brasil (CNBB), que, em 1964, “havia atendido a uma das necessidades

básicas dos organizadores do golpe militar, mobilizando a classe média contra o

governo por meio da Marcha da Família com Deus pela Liberdade”,55 e, até o ano de

1968, manteve uma posição política relativamente passiva, absorvendo as

reivindicações e lutas sociais em torno do fim do regime, opondo-se à situação de

repressão permanente no país. Com o avanço da repressão e as denúncias de

barbáries, a Igreja representa, naquele momento, “a única instituição que restava com

força o bastante para acolher os perseguidos políticos”.56

Nesse segmento, se destaca a atuação das Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs), que propagaram durante toda a década de 1970, atraindo para a Igreja

pessoas mobilizadas para a ação, fato que preocupou os militares mais conservadores:

“A CEB preenchia uma necessidade associativa dos trabalhadores e suas famílias,

muitos deles deslocados de suas regiões de origem. Centenas de comunidades

surgiram nos bairros periféricos das grandes cidades”.57Nesse sentido, reforça-se a

ideia de que as primeiras articulações de contestação ocorreram no interior das

cidades, efetivaram suas bases nas organizações comunitárias e, a partir de lutas

isoladas, atingiram uma outra dimensão – com a adesão à luta pela Anistia. Ainda na

análise de Sader, “foram descobertos movimentos sociais desde sua gestação(...). Eles

foram vistos, então, pelas suas linguagens, pelos lugares de onde se manifestavam,

54 MACIEL, 2004, p. 36. 55 KUCINSKI, 2001, p. 75. 56 SADER, 1988, p. 33. 57 KUCINSKI, 2001, p. 76.

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pelos valores que professavam, como indicadores de novas identidades

coletivas(...)”.58

A Igreja intensificou sua oposição à ditadura à medida que pessoas dentro e fora

da instituição se tornaram vítimas da violenta repressão política, prevalecendo,

portanto, um foco de tensão entre Igreja e Estado. “O Estado adota políticas contrárias

aos interesses da população; a Igreja descobriu na aproximação com esses interesses

a fórmula da sobrevivência em uma sociedade em violenta transformação.”59

Esse conflito ideológico deflagrado entre as duas instituições tornou-se latente

quando a Igreja passa a adotar em seu discurso questões políticas e de interesses

sociais: “No plano dos movimentos sociais, a intervenção da Igreja Católica tornou-se

decisiva no processo de avanço político e organizativo vivido no período,

particularmente no movimento popular e das comunidades eclesiais de base e no

movimento de luta pela terra.”.60

A presença da Igreja no campo das lutas populares promoveu

descontentamentos no meio militar:

A emergência do protesto popular nessa etapa foi resultado desse processo e

das próprias contradições do processo distensionista sob cesarismo militar, o

que levou às classes subalternas a transporem os limites econômicos-

corporativos de sua ação e assumirem uma perspectiva ético-política

claramente definida.61

Na sequência das articulações e posicionamentos políticos deflagrados pelos

movimentos populares no final de década de 1970, surgiu, a partir das CEBs, o

Movimento Custo de Vida62 como resultado também da insatisfação das camadas

58 SADER, 1988, p. 27. 59 KUCINSKI, 2001, p. 76. 60 MACIEL, 2004, p. 178. 61 Ibidem, p. 178. 62 “A partir das Comunidades Eclesiais de Base nasceu, em 1973, o primeiro movimento reivindicatório com apelo das massas e de caráter nacional, que ocupou imediatamente um espaço importante no cenário político: o Movimento Custo de Vida. Formado por famílias pobres da periferia das grandes capitais, mobilizava milhares de pessoas em comícios e campanhas de arrecadação de assinaturas e protestos. Dentre as reivindicações básicas do Movimento: um abono de emergência de 30% para todos os trabalhadores, congelamento dos preços de gêneros de primeira necessidade e aumento do salário de acordo com a dignidade humana do trabalhador e sua família (...)”. KUCINSKI, 2001, p. 78.

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populares com a política do regime militar, insatisfação que se estendeu a outros

setores da sociedade. Nota-se que a existência desses grupos sociais irá refletir numa

configuração social determinante para a construção de uma nova identidade. Para

tanto, “verifica-se, principalmente nos movimentos coletivos de caráter humanitário, que

dando ênfase à noção de coletividade produzem uma ruptura em relação aos padrões

tradicionais no plano da cultura política (...)”.63

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi outra instituição que, na segunda

metade dessa década, decidiu contestar a legitimidade da ditadura militar e, dentre

suas reivindicações, constavam o restabelecimento do habeas-corpus e a revogação

do AI-5, atos e decretos que fortaleceram o “estado de exceção”. Sendo assim,

conduziu seus esforços em defesa dos presos políticos torturados em dependências

policiais, denunciando as brutalidades que ocorriam nesses locais. Assim como a

Igreja, suas ações exerciam grande reflexo no país por ser uma instituição de grande

representatividade junto à sociedade e por estabelecer seu próprio canal de

comunicação, tendo em vista que a imprensa ainda estava sob a égide da censura.64

No ano de 1978, tanto o governo quanto a sociedade atuaram no novo quadro

político-social do país. Nesse período, o governo considerou que tinha condições de

revogar todos os atos institucionais e complementares que contribuíram para o

acirramento da ditadura, entre eles o AI-5. Portanto, esse ato institucional foi revogado

em dezembro de 1978, por meio da emenda constitucional n. 11, aprovada pelo

Congresso Nacional em 13 de outubro desse mesmo ano. A partir da abolição do AI-5,

o presidente ficou impedido de declarar recesso ao Congresso Nacional, cassar

parlamentares ou privar cidadãos de seus direitos políticos. O habeas-corpus foi

restabelecido para pessoas detidas por motivações políticas, as penas de morte e

prisão perpétuas foram extintas e a censura prévia para rádio e televisão foi

parcialmente suspensa. De certo modo, o fim do AI-5 sinalizou o surgimento de novas

63 MACIEL, 2004, p. 178. 64 “O Brasil possuía uma antiga e ilustre tradição jornalística, embora na seqüência do AI-5 os censores tivessem praticamente anulado a vinculação de informação. Os principais jornais eram o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, o Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde.”. No entanto, “a rigorosa censura à imprensa estimulou a criação de um novo gênero de publicações, o semanário político. Os mais conhecidos eram: Opinião e Movimento, o primeiro pertencendo à centro-esquerda e o segundo, à esquerda radical.”. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 368.

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“brechas” no processo de abertura política. Como estratégia política do governo, foi

necessário “abdicar” de alguns poderes para poder ainda se assegurar do controle das

questões políticas e do andamento da transição democrática.

Nesse contexto, intensificou-se no país o movimento pró-anistia, movimento que

foi agindo de forma paulatina e se alastrando por meio da interferência dos movimentos

democráticos e populares. Concomitantemente, os adeptos da anistia criaram, em todo

o país, os comitês brasileiros pela anistia (CBAs), unificando a luta entre as diferentes

correntes oposicionistas, e também proporcionando o encontro de gerações – os que

haviam resistido e organizado novos espaços de luta após intenso período de

repressão política e os jovens que vislumbravam o retorno à democracia. Para tanto,

(...) o Comitê Brasileiro de Anistia de São Paulo (CBA/SP), fundado em 1978,

teve suas primeiras reuniões dentro do Instituto Sedes Sapientiae, autorizadas

pela saudosa madre Cristina Sodré Doria,65 sua diretora. Os integrantes do

CBA, familiares de presos políticos e profissionais liberais, estudantes e artistas

foram incansáveis na edificação da entidade e do movimentos pela Anistia, que

se multiplicava por todo o país. Foi, talvez, a primeira experiência de um

movimento que hoje podemos entender como um movimento de rede (...).66

Além das CBAs, a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi articulada pelo

Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), contando com o apoio de várias frentes da

esquerda organizada, a Igreja e as entidades de profissionais, como a Associação

Brasileira de Imprensa e a OAB. O movimento feminino travou uma luta incessante em

prol da anistia, organização de importância extrema na orientação de futuros processos

rumo à abertura política.67O ex-preso político, Alípio Freire, relata a importância desses

movimentos:

65 Madre Cristina foi anistiada. 66 ARANTES, Maria Auxiliadora (Dodora). Prêmio Vladimir Herzog e a Anistia de 1979. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel (Orgs.). Pela democracia, contra o arbítrio. A oposição democrática do golpe de 1964 à campanha das Diretas-Já. São Paulo: Perseu Abramo, 2006. p. 231-233. 67 “(...) Em 13 de abril de 1975, um grupo de mulheres de São Paulo, lideradas pela advogada Therezinha Zerbine, lançou o ‘Manifesto da Mulher Brasileira’, que reivindicava anistia política. O documento era, antes de tudo, um chamado à organização política dos diferentes setores da sociedade civil, sobretudo, as mulheres, para que se engajassem nessa luta(...)”. PORTO, 2007, p. 43-63. Ver também: RAMOS, Andressa Maria Villar. A liberdade permitida. Contradições, limites e conquistas do

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(...) Eu acho que política é correlação de forças. Com a força que nós tínhamos

naquela época, a gente conseguiu o que conseguiu. O movimento que mais

aglutinou até aquele momento(...) o movimento que aglutinou os mais amplos

setores da esquerda, somente um setor do Partido Comunista Brasileiro não

quis participar – mas, não foi todo o PC do B, é bom deixar claro (...) ele

acertou as bases para uma série de atividades conjuntas que iríamos fazer

depois, tipo, a própria fundação do PT (...).68

O movimento pela anistia no país representou a união de interesses de cidadãos

brasileiros, que embora tivessem adotado estratégias variáveis, vislumbravam a anistia

e a redemocratização do país. Os atos políticos pela Anistia aconteciam nas escolas,

nas ruas, na imprensa alternativa, mesmo com a censura, nos teatros e nos espaços

culturais. Para Maciel: “(...) apesar da unidade em torno dessa proposta, as posições

do movimento pela anistia variavam quanto ao grau de pressão a ser exercido sobre o

governo (...)”.69

O movimento pró-anistia que atingiu as classes populares – principalmente após

os trabalhos das comunidades eclesiais de base – também atingiu a classe alta.

Militantes esquerdistas pertencentes às elites foram vítimas da repressão política,

justificando, portanto, a adesão de sua classe às pressões em torno da Anistia,

cobrando do governo militar uma solução para os casos de presos políticos e de

desaparecidos. Segundo Kucinski:

(...) os quadros das esquerdas e as guerrilhas incluíam muitos filhos diretos da

burguesia, a cobrança pelos crimes da repressão começa a ser feita no interior

das próprias classes dominantes (...) os crimes da repressão passam a ser

abominados de alto a baixo na sociedade e sua denúncia ou repúdio ganha

status de valor dominante (...).70

movimento pela Anistia 1975-1980. Dissertação (Mestrado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2002. 68 Depoimento de Alípio Raimundo Viana Freire concedido à autora desta tese, em agosto de 2014. Jornalista, escritor, artista plástico e cineasta, foi militante da Ala Vermelha do PC do B. Atualmente, integra o Conselho Editorial do Jornal Brasil – O Fato. Membro do Conselho Curador do Memorial de Anistia (MG), colabora com várias publicações de esquerda e movimentos populares. Ficou retido no Presídio Tiradentes, de 31 de agosto de 1969 a 02 de outubro de 1974. Foi anistiado pelo governo brasileiro em 26 de outubro de 2004. 69 MACIEL, 2004, p. 203. 70 KUCINSKI, 2001, p. 84.

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As pressões exercidas pelos diferentes setores da sociedade resultaram na

elaboração de uma carta apresentada no I Congresso Nacional pela Anistia, realizado

em São Paulo, em novembro de 1978, da qual se pode destacar:

A Anistia pela qual lutamos deve ser Ampla – para todas as manifestações de

oposição ao regime; Geral – para todas as vítimas da repressão; e Irrestrita –

sem discriminações e restrições. Não aceitamos a anistia parcial e repudiamos

a anistia recíproca. Exigimos o fim das torturas e do aparelho repressivo e a

responsabilização judicial dos agentes da repressão e do regime que eles

servem (...).71

Apesar das manifestações e de articulações feitas em torno da Anistia, setores

expressivos do governo militar não tiveram disposição para promover a anistia ampla,

geral e irrestrita, conforme reivindicações da sociedade. Durante todo o período de

exceção, vários projetos foram apresentados e, depois, esquecidos. No entanto, o

projeto de anistia proposto pelo regime militar em nenhum momento atendeu aos

anseios da sociedade civil. Nesse sentido, o governo propôs a anistia parcial e restrita

a todos os que cometeram crimes políticos e a todos que tiveram punição pelos AIs,

pelos Atos Complementares e pela Lei de Segurança Nacional. Porém,

ficaram excluídos da anistia todos os que cometeram “crimes de sangue”

(condenados pela LSN por terrorismo, assalto, sequestro ou atentado pessoal);

os militares afastados não seriam reintegrados; só os civis seriam readmitidos

nos cargos e funções que ocupavam, mediante apreciação de cada caso pela

autoridade e órgãos competentes.72

Em contrapartida ao projeto de Anistia apresentado pelo governo, os CBAs

articulavam continuamente questões de suma importância para futuros

desdobramentos em torno da Anistia e da redemocratização do país. Dentre os

principais pontos de discussão, segundo o Programa Mínimo de Ação do CBA, foram

apresentados:

71 GRECO, 2005, p. 85-111. 72 MACIEL, 2004, p. 204.

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(...) Fim radical e absoluto das torturas – denunciar as torturas e contra elas

protestar, por todos os meios possíveis. Denunciar à execração pública os

torturadores e lutar pela sua responsabilização criminal. Investigar e denunciar

publicamente a existência de organismos, repartições, aparelhos e

instrumentos de tortura e lutar pela sua erradicação total e absoluta. Libertação

dos Presos Políticos e volta dos cassados, aposentados, banidos, exilados e

perseguidos políticos – Levantar a identidade, a localização e a situação de

todos os presos, cassados, banidos, aposentados, exilados e perseguidos

políticos. Lutar pela sua libertação, pela sua volta ao país e pela retomada de

sua existência civil, profissional e política. Elucidação da situação dos

desaparecidos – Apoiar a luta dos familiares de demais setores interessados

na elucidação do paradeiro dos cidadãos que se encontram desaparecidos por

motivação política. Reconquista do Habeas-Corpus – Lutar pela reintrodução

do habeas-corpus para todos os presos políticos; denunciar todas as tentativas

de anulação ou obstrução desse direito e contra elas protestar por todos os

meios. Fim do tratamento arbitrário e desumano contra os presos políticos –

Investigar as condições a que estão submetidos todos os presos políticos.

Denunciar as arbitrariedades que contra eles se cometem e manifestar, por

todos os meios, o seu protesto e o seu repúdio. Exigir a liberalização da

legislação carcerária. Lutar contra a incomunicabilidade dos presos políticos.

Revogar a Lei de Segurança Nacional e fim da repressão e das normas

punitivas contra a atividade política (...).73

Essas questões, idealizadas e articuladas em meados da década de 1970,

ganharam impulso nos anos de 1978 e 1979. O debate a respeito da natureza e

alcance da anistia representou, no final da década, todas as tensões e divergências

decorrentes do processo de abertura política.

No jogo político, houve a intenção pacificadora por parte do governo em torno

da concessão da anistia: as medidas arbitrárias adotadas pelo regime e a aprovação

da Lei da Anistia pelo Congresso Nacional reforçaram a ideia de que o Estado deveria

ser preservado da responsabilidade dos crimes cometidos durante todo o período da

ditadura.

73 COMISSÃO Extraordinária e Permanente de Direitos Humanos e Cidadania. Anistia: 20 anos de luta! São Paulo: Câmara Municipal de São Paulo, 1999.

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Segundo a historiadora Heloisa Greco, há dois conceitos opostos e excludentes

nesse sentido: o primeiro, refere-se ao projeto do movimento pela anistia – “anistia

como resgate da memória e direito à verdade: reparação histórica, luta contra o

esquecimento e recuperação das lembranças”; e o segundo, refere-se ao próprio

projeto da Anistia do governo, “anistia como esquecimento e pacificação: conciliação

nacional, compromisso, concessão, consenso – leia-se: certeza da impunidade”.74

Portanto, para a historiadora, a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979,75Lei da Anistia

Parcial, é a representação positivada da anistia, da estratégia do esquecimento. Nesse

sentido, ressaltamos a questão dos desaparecidos políticos: não pode haver

conciliação com a sociedade sem que sejam apurados os crimes de mortes de

opositores ao regime em virtude de ações repressivas do Estado.

Essa foi uma séria questão levantada durante o processo de negociação em

torno da anistia, que perpetuou mesmo após a promulgação da lei, pelo fato de não ter

resolvido questões latentes, como a punição aos crimes cometidos contra ativistas

políticos desaparecidos. A Lei 6.683/1979 possibilitou o entendimento de que a Anistia

representava um perdão de “mão dupla”: assim como eram anistiados os que tinham

sido punidos por crimes políticos, também estavam perdoados os representantes do

Estado que haviam cometido qualquer espécie de violência política.

[Essa] reciprocidade constitui balão de ensaio que acabou se tornando senso

comum: a anistia – parcial e condicional para os opositores do regime – foi total

para os torturadores e agentes da repressão antes mesmo de qualquer

julgamento, apesar de evidente aberração histórica e jurídica aí contida; a

cultura da impunidade e a consolidação da tortura como instituição são seus

subprodutos mais importantes.76

74 GRECO, 2005, p. 85-111. 75 Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, que concede Anistia e outras providências, promulgada na gestão do presidente João Batista Figueiredo (1979-1984), último presidente militar. Foram beneficiados com a medida todos os presos e exilados por crimes políticos de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e foram excluídos dos benefícios da lei os culpados por atos de “terrorismo” e de resistência armada ao governo. Essa Lei também reestabeleceu os direitos políticos daqueles que os haviam perdido nos termos dos atos de institucionalidade. Ver: SKIDMORE, 1988, p. 423. 76 GRECO, 2005, p. 91.

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A concessão da anistia política no Brasil no ano de 1979, a partir da

promulgação da Lei 6.683, ainda no contexto de uma sociedade que vivia em pleno

regime ditatorial, representou, em termos jurídicos, um primeiro passo rumo ao

processo de transição democrática no país, e que obedeceu, inevitavelmente, a um

modelo que privilegiava uma abertura supervisionada por parte dos militares e setores

mais conservadores do poder, possibilitando certo avanço democrático no período,

uma vez que o governo avançou significativamente para a abertura política, mantendo,

porém, o caráter centralizador da transição, ou seja, os militares permaneceram no

controle contínuo do processo.

A própria concessão da anistia foi acordada entre a cúpula militar e as bases de

apoio no Congresso. No que se refere à manipulação do governo na transição política,

o historiador David Maciel salienta: “sua estratégia de transição à democracia

continuava informada por uma perspectiva autocrática, além das limitações impostas à

ação política de inúmeros ativistas vinculados à oposição antiautocrática”.77 A Lei da

Anistia, portanto, ainda na análise do historiador, “(...) garante a preservação do

aparelho repressivo e de informações e a sobrevivência política dos setores duros do

governo e das Forças Armadas (...)”.78

Por conta dessa reflexão, vale ressaltar que a Anistia e os acontecimentos que

sucederam esse momento reafirmaram o caráter inacabado de um processo que

pretendia reparar danos causados durante todo um período de exceção. A Anistia, na

recente história do país, não representou apenas a permissão para que exilados

retornassem e cidadãos restabelecessem seus direitos civis e políticos cassados, mas

refletiu, essencialmente, a necessidade da sociedade no reencontro com os fatos do

passado. Na interpretação de Janaína Teles sobre esse processo, “a lei instituiu um

‘atestado de morte presumida’ para os familiares dos desaparecidos políticos

introduzindo outra lacuna na narrativa da nação reconciliada, ‘presumindo’ mortes sem

qualquer explicação ou investigação”.79

Em contrapartida, os setores mais moderados da oposição acreditavam que

não haveria abertura política ao se colocar os militares no banco dos réus, e a Anistia,

77 MACIEL, 2004, p. 205. 78 Ibidem, p. 205. 79 TELES, 2005, p. 22.

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portanto, foi concedida a partir do esquecimento dos fatos que comprometeram a

imagem da Corporação Militar.

Na concepção dos grupos mais conservadores, “o passado ressurge como um

fantasma que por si só, mesmo que não existissem outros fatores, impede, bloqueia o

processo de mudança”.80 No entanto, associa-se o fato de que a Anistia realizada pelos

militares deixou um vácuo na história por não permitir o acesso à verdade. Na análise

desse período, feita por Heloisa Greco,

A produção de esquecimento e a consequente manifestação da memória

coletiva são levadas às máximas consequências nos 21 longos anos de

ditadura militar e têm sido devidamente sedimentadas nestes longos 20 anos

de transição controlada. (...) Sua efetivação é a estratégia do esquecimento,

dispositivo de denominação adotado pela ditadura (...).81

Nessa perspectiva, se reforçou a ideia de que o Estado deveria ser preservado

da responsabilidade dos crimes hediondos cometidos durante todo o período militar,

uma vez que a anistia beneficiou, sobretudo, os agentes públicos que praticaram

crimes de lesa humanidade contra cidadãos que resistiram ao sistema arbitrário.

Desde a sua concepção, o processo de transição política desencadeado no país

a partir de 1979, segue uma lógica que contempla a prática contínua do esquecimento,

como parte integrante e fundamental de um modelo exclusivamente pautado em não

trazer à tona os acontecimentos do passado. Esse pensamento difundido à época,

entre os segmentos mais conservadores da sociedade, permanece atual, interferindo e

inviabilizando uma proposta democrática de acesso à verdade histórica.

80KUCINSKI, 2001, p. 88. 81 GRECO, 2005, p. 91.

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CAPÍTULO 2

A ANISTIA HOJE E OS DESDOBRAMENTOS DE UM PROCESSO INACABADO

“A anistia não foi um favor, mas uma exigência da sociedade brasileira.

Nenhum de nós quer remexer o passado, mas apenas que se faça uma

reflexão sobre uma pacificação que não houve (...) É tempo de encontrarmos a

paz que só a verdade sedimenta. Enquanto não chegarmos a antever que o

futuro é o resultado do passado e que é preciso restabelecer a verdade

histórica, não conseguiremos estancar os ressentimentos, que depois de tantos

anos, estão aí aos olhos de todos, mais vivos do que nunca (...)”.82

2.1 Contexto geral

Em 01 de junho de 2012, um Ato na Assembleia Legislativa de São Paulo

trouxe, mais uma vez, à tona um tema que o governo brasileiro há 50 anos não

conseguiu tratar com a devida atenção e responsabilidade: a causa dos desaparecidos

políticos. Sob o título: Desaparecidos – Onde estão nosso filhos? Vamos acabar com

essa tortura?, os familiares das vítimas receberam apoio de uma parcela da sociedade

que, assim como eles, não pretende deixar que essa história seja esquecida. O ato em

solidariedade aos familiares das vítimas reforça e integra uma luta que se estende

durante décadas – iniciada oficialmente em 1979, com a anistia e o retorno dos

exilados. E justamente nesse momento, com a liberação de grande parte dos presos

políticos, que a temática dos desaparecidos se apresenta como um importante

componente na agenda da transição política.

Nesse contexto, se configura a ineficiência política de um Estado que privilegiou

uma anistia com base no esquecimento dos crimes do passado, e essa questão se faz

82 BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2000. p. 73-75.

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presente até os dias atuais. A causa dos desaparecidos políticos no Brasil, portanto,

compõe um dos mais tristes episódios da nossa história recente, revelando um entrave

para qualquer tentativa de avanço democrático no País. A impossibilidade de

consolidarmos a nossa democracia reside, principalmente, no fato de que continuamos

sem solução para os crimes de desaparecimento, assim como a impunidade que se

traduz nos termos da Lei 6.683/1979, que garante anistia aos algozes do sistema

repressivo instaurado após os acontecimentos de 1964. Na prática, a anistia articulada

pelo governo brasileiro desconsiderou os atos de violência que o Estado praticou

preservando-se, assim, a autoria dos crimes e a consequente punição aos agentes

públicos envolvidos no processo.

Inseriu no mesmo contexto político todos os atos tidos como ilegais e mediante

ao texto da lei considerou, “(...) anistia a todos quantos, no período compreendido entre

2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou

conexos (...)”.83 E, acrescenta, “consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os

crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por

motivação política”.84 Dessa forma, não houve critérios para a definição dos crimes,

não houve sequer o entendimento de que os crimes realizados pela ditadura não

poderiam estar em situação de igualdade com os crimes que fizeram oposição ao

sistema – ou seja, passíveis de “perdão”. A anistia bilateral, portanto, favoreceu a

omissão do Estado no que se refere aos abusos realizados dentro e fora do País.

Assim, prevalece uma cultura que contempla a “prática contínua do esquecimento”

como elemento fundamental para o restabelecimento da concórdia e normalidade

política, considerando-se a perspectiva do poder. Na ótica do Estado, “o passado

ressurge como um fantasma que, por si só, mesmo que não existissem outros fatores,

impede, bloqueia o processo de mudança”.85 Esse pensamento difundido à época

83 Lei 6683/1979. Segue o texto na íntegra, conforme o Artigo 1º da referida Lei: “Art. 1º. – É concedida a anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos como esses, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativos e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. 1. Consideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. 84 Idem. 85 KUCINSKI, 2001, p. 88

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permanece atual, e simboliza a negação de uma política de acesso à verdade histórica,

não se restringindo, somente, ao militares.

De certo modo, outros segmentos da sociedade também compactuam com essa

prática do silêncio. As resistências partem dos setores mais influentes: na esfera do

Poder Judiciário, por exemplo, com os debates realizados em torno da revisão da lei da

anistia; no empresariado que financiou as ações de repressão política no país; e nos

setores mais conservadores do poder, muitos deles, comprometidos com o golpe de

Estado em 1964. Mesmo após 35 anos do processo deflagrado em 1979, o Brasil ainda

caminha a passos lentos no que se refere à promoção da justiça. Um fato jurídico, no

entanto, interrompeu a continuidade desse processo: a Lei 6.683/1979. Sendo assim,

continuamos sem saber, ao certo, como lidar com a herança do regime ditatorial.

Nesse sentido, de acordo com Fabio Comparato:

(...) tem-se afirmado que o Estado brasileiro encontra-se dispensado do

cumprimento do dever de apurar a verdade e de punir os autores dessas

violações de direitos humanos em razão da anistia concedida em 1979. Mas tal

afirmação é juridicamente insustentável(...) Ora, nenhum agente estatal do

regime militar chegou a ser processado como autor de desaparecimentos

forçados de opositores políticos, crime que os governos militares sempre

negaram que tivessem cometido (...).86

As reivindicações em torno de uma lei de anistia mais abrangente são

articuladas pela sociedade civil desde meados dos anos 1970 – quando da formação

dos primeiros movimentos pró-anistia e dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s);

no entanto, pela primeira vez, desde a abertura política, discute-se, no âmbito do Poder

Judiciário, a possibilidade de modificação da referida lei. Esse processo foi

desencadeado por uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2010, por

meio da ADPF 153,87 em que o Supremo Tribunal Federal (STF) teve que julgar a

86 COMPARATO, Fabio Konder. Que fizeste do teu irmão? In: TELES, 2000, p. 57-59. 87 A ADPF 153 – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – Distrito Federal, foi protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2 de outubro de 2008. De acordo com o documento: “2.2 – Relevância do Fundamento da Controvérsia Constitucional sobre a Lei Federal Anterior à Constituição: A sociedade brasileira acompanhou o recente debate público acerca da extensão da Lei n. 6.683/79 (“Lei da Anistia”). É notória a controvérsia constitucional sugerida a respeito do âmbito de aplicação desse diploma legal. Trata-se de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos

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aplicação da anistia aos agentes do Estado que torturaram na ditadura civil-militar.

Segundo a OAB, a anistia não pode ser estendida aos agentes públicos que praticaram

crimes comuns, e, nesse sentido, a tortura é considerada um crime comum e

imprescritível.88 A anistia, portanto, só pode ser concedida aos crimes políticos.

A ação da OAB reflete a necessidade por mudanças no campo jurídico e,

também, o sentimento de justiça no que se refere à punição aos algozes do regime

militar. Somente a alteração da Lei 6.683/1979 possibilitará que decisões sejam

tomadas nesse sentido. Sabe-se, ainda, que muitos agentes da repressão política

estão em pleno exercício de suas funções públicas e exercendo cargos de confiança, o

que reafirma o caráter de impunidade no país. Na ocasião, o jornal Folha de S.Paulo

destacou a seguinte notícia sobre a decisão do STF:

(...) O STF (Supremo Tribunal Federal), decidiu ontem que a Lei da Anistia não

poder ser alterada para possibilitar a punição dos agentes do Estado que

praticaram tortura durante a ditadura militar (1964-1985). Os ministros

negaram, por 7 votos a 2, um pedido da OAB que questionou a extensão da

legislação, editada em 1979, pelo governo João Figueiredo. O julgamento, responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar, que vigorou entre nós antes do restabelecimento do Estado de Direito com a promulgação da vigente Constituição”. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/.../586_ADPF%20153>. Acesso em: nov. 2014. O documento destinado ao Presidente do Supremo, Eros Graus, foi elaborado pelos membros do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e constam as seguintes representações da sociedade: Fabio Konder Comparato, Rafael Barbosa de Castilho, Presidente da República, Advogado Geral da União, Congresso Nacional, Associação Juízes para a Democracia, Pierpaolo Cruz Bottini e outros (a/s), Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL, Helena de Souza Rocha e outro (a/s), Associação Brasileira de Anistiados – ABAP, Anderson Bussinger Carvalho e outro (a/s), Associação democrática e nacionalista de militares, EgonBockmann Moreira e outro (a/s). Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiasstf/anexo/adpf153.pdf>. Acesso em out.2014. 88 (...) A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabeleceu que “ninguém será submetidoà tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. A Convenção de Genebra de 1949, proibiu, contra prisioneiros de guerra, qualquer ato de ‘violência’ à vida ou à pessoa, em particular qualquer espécie de homicídio, mutilação, tratamento cruel ou tortura”. Em 1984, aAssembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que entrou em vigor no plano internacional em 1987, e foi aprovada no Brasil em 1991(...). Desde 1988, a Constituição brasileira afirma a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, proibindo expressamente a prática de tortura, o tratamento desumano ou degradante (art.5.III) e considerando sua prática de crime inafiançável (art. 5, XLIII). De acordo com a legislação brasileira (Lei 9455/1997), constitui crime de tortura: “(...)constranger alguém com o uso da violência ou grave ameaça causando-lhe sofrimento físico ou mental com o objetivo de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; para provocar ação ou omissão de natureza criminosa (...)”. Campanha de Informação TORTURA É CRIME. Coordenação Geral de Combate à Tortura. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Comissão de Anistia e Ministério da Justiça.

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considerado histórico pelos próprios ministros, encerra uma polêmica que

dividiu o governo Lula. Após dois dias de julgamento e de dez horas de

discussão, o tribunal entendeu que a Lei da Anistia foi “bilateral” e fruto de uma

acordo político resultado de “amplo debate” travado pela sociedade brasileira

(...).89

Há dois polos distintos no campo da interpretação sobre a anistia no Brasil. O

primeiro, está associado à anistia que favoreceu o retorno de exiliados e a liberação de

parte dos presos políticos e, consequentemente, desencadeou um sentimento de

resolução política que contribuiu para o posterior processo de redemocratização no

país. De certo modo, esse sentimento se mantém atual. Há um consenso sobre anistia

nesse sentido: a anistia como resultado de um acordo que favoreceu as partes

envolvidas no embate político – ou seja, governo e oposição –, realça, também, a

anistia como fruto de intensas manifestações populares que culminou num grande

ganho para a democracia, portanto, algo benéfico para a sociedade. A partir dessa

análise, qualquer tentativa de mudança em torno das decisões políticas de 1979

representa, na atual conjuntura social, um retrocesso – ou seja, prejudicaria a

continuidade de uma democracia (re)instaurada em 1985.

Considerando-se, ainda, o parecer do STF sobre mudanças na Lei da Anistia,

vale ressaltar as palavras do então deputado federal, Aldo Rebelo, do Partido

Comunista do Brasil (PC do B), na ocasião: “O Supremo interpretou a vontade

nacional, que é a vontade de conciliação da construção do futuro”.90 Tal afirmativa

sustenta a ideia de não ruptura do pacto firmado em 1979, e sugere que o conteúdo da

história seja mais uma vez vetado – quer dizer, uma censura implícita que inviabiliza o

acesso aos fatos históricos.

Sobre a ação da OAB e as discussões suscitadas em torno da questão, Deisy

Ventura sustenta:

(...) Começo por esclarecer que a OAB não requereu ao STF nem uma

“revisão”, nem a declaração de “nulidade” da chamada Lei da Anistia(...) Aliás, 89 SELIGMAN, Felipe; FERRAZ, Lucas. Por 7 votos a 2, STF mantém Lei da Anistia sem alteração. Folha de S.Paulo, São Paulo, Caderno 1, p. A4, 30 abr. 2010. 90 CANTANHÊDE, Eliane. Militares recebem com alívio decisão do STF. Folha de S.Paulo, São Paulo, Caderno Brasil, p. A12, 01 maio 2010.

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o Direito Internacional, em princípio, nada tem a opor às leis nacionais que

anistiam crimes políticos. Por meio da ADPF 153, proposta em outubro de

2008, o que pede a OAB é “uma interpretação conforme a Constituição, de

modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia

concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos

crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores

políticos durante o regime militar. O alvo é, portanto, o 1. do artigo 1. da

referida Lei(...) A tendência à omissão no julgamento de autores de crimes

contra a humanidade contradiz, todavia, tanto a nova ordem institucional

brasileira, humanista e democrática, quanto o teor das obrigações

internacionais paulatinamente assumidas pelo Brasil (...).91

A exemplo da ação proferida pela OAB, outros segmentos da sociedade civil e

diversos setores da vida pública passaram a adotar o discurso sobre a amplitude da

anistia no Brasil, sobretudo, as universidades. As audiências públicas da Comissão de

Anistia que, desde 2008, desenvolvem um trabalho educativo e de Memória, conta com

registros de imagens e apresenta uma narrativa que favorece a compreensão dos fatos

históricos. Essas “sessões de memória” antecedem o julgamento dos processos e

serve para orientar, principalmente, o público mais jovem acerca do período da

repressão política. Nesse aspecto, o tema anistia (re)surge constantemente no plano

das discussões políticas por se tratar de um tema ainda pendente.

Em 2011, o II Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição92 reuniu

diversas autoridades no assunto, e permitiu amplo debate sobre os rumos da justiça de

transição nos países da América Latina que vivenciaram modelos autoritários. Nesse

encontro, a temática da reparação esteve acompanhada de aspectos fundamentais na

luta dos países que passaram pela experiência da ditadura, sobretudo, no contexto da

Guerra Fria, tais como: a reparação com verdade, e justiça e construção da memória,

91 VENTURA, Deisy. A interpretação judicial da Lei da Anistia brasileira e o Direito Internacional. In: ABRÃO, Paulo; TORRELY, Marcelo D.; PAYNE, Leigh A. (Orgs). A Anistia na era da responsabilização - O Brasil em Perspectiva Internacional e Comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia,Oxford, 2011. p. 312. 92 O II Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição ocorreu em Brasília, no Auditório Externo do Superior Tribunal de Justiça, entre os dias 7 e 8 de julho de 2011. A parceria da Comissão de Anistia, Instituto de Relações Internacionais - USP, Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Direitos Humanos e Universidade Católica de Brasília, reuniu autoridades importantes, como: José Eduardo Cardoso (Ministro de Justiça), Paulo Abrão (Presidente da Comissão de Anistia), Marco Antônio Barbosa (Comissão sobre Mortos e Desaparecidos), Juan Faroppa (.....), entre outros.

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elementos prioritários para o restabelecimento da normalidade política. Durante o

evento, o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, discursou sobre as

dificuldades e complexidades que envolvem uma transição política, dada a cultura e a

história de cada país, e destacou os traumas que envolvem o processo. Suas palavras,

portanto, reforçam a importância do momento: “(...) Lembrar o passado para que ele

não mais se repita é indispensável (...) Direito à memória é um direito fundamental para

a democracia (...)”.93

As ditaduras na América Latina foram favorecidas pelo conflito político-ideológico

entre Estados Unidos e União Soviética, no contexto do pós-guerra. O Socialismo que

ocupou espaço em grande parte dos países do leste-europeu, representou uma

ameaça concreta na América Latina, sobretudo, após a Revolução Cubana de 1959.

Os norte-americanos, com o intuito de garantir a hegemonia capitalista no mundo,

apoiaram a instauração de regimes militares em vários países latino-americanos. O

Brasil foi o primeiro país a sofrer um golpe de Estado, prevalecendo-se da ideologia

difundida nos quartéis: capturar o inimigo externo – no caso, representada pelo

comunismo. Dessa forma, o governo brasileiro justificou suas práticas, durante todo o

período da ditadura civil-militar, com base na Doutrina de Segurança Nacional,

amplamente divulgada dentro das Forças Armadas – o que legitimou as ações

violentas praticadas pelo Estado naquele período. Sendo assim,

(...) a construção do Estado de Segurança Nacional, tentativa de engenharia

política dos governos militares para combater fundamentalmente o que

percebiam como o perigo interno representado pela ameaça comunista (...).94

Essa ideologia, incorporada ao pensamento militar, permaneceu dominante

entre os segmentos das Corporações Militares, sobretudo, entre o setores da linha-

dura que almejavam o controle e a permanência no poder. Evaldo Sintoni destaca

esse momento:

93 Palestra proferida pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, em 07 de julho de 2011, no II Seminário Latino Americano de Transição Política conforme nota anterior. 94 D’ARAÚJO, M. C.; SOAREA, G. A.; CASTRO, C. (Orgs.). Visões do golpe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.7.

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(...) Desde a sua fundação, a ESG, era anticomunista e tornou-se centro do

pensamento ideológico relativo à estratégia contrarrevolucionária no Brasil.

Golbery do Couto e Silva argumentava que a guerra interna era uma ameaça

muito mais palpável ao país do que a guerra direta. A atenção deveria estar

voltada para a agressão comunista indireta que capitalizava

descontentamentos locais, frustrações resultantes da miséria e da fome e

manobrava com habilidade – para atingir seus “nefastos” propósitos – as

ansiedades nacionalistas. A América Latina, depois dos acontecimentos de

Cuba, no final de 1960 e em 1961, estava sujeita ao risco de ver implantados

outros governos favoráveis “à ideologia comunistas, constituindo um perigo

grave e urgente para a unidade e a segurança do mundo americano e ocidental

(...).95

Recentemente, a participação dos EUA na implantação da ditadura civil-militar

no Brasil foi retratada no documentário 1964 – Um golpe contra o Brasil,96 do jornalista

Alípio Freire. Esse episódio veio à tona num momento em que há uma expressiva

preocupação de alguns setores da sociedade em revelar a verdade dos

acontecimentos desse período da história do Brasil – a exemplo da equipe do Núcleo

de Memória de São Paulo, que elaborou o documentário. O filme dedicado à memória

do então presidente deposto João Goulart, aponta os desdobramentos do processo

deflagrado em 1964. O documentário foi exibido pela primeira vez no Memorial de

Resistência de São Paulo, em 2013, e sinaliza uma importante etapa de revisão da

nossa história – configurando, portanto, o segundo polo de interpretação sobre a anistia

no Brasil, com base em novos significados históricos e mediante o amplo debate

público. Em vez de “anulação” e esquecimento do passado, promove-se o debate

mediante o esclarecimento dos fatos. Maria Rita Kehl aponta o gradualismo desse

processo:

(...) Nos últimos trinta anos, não faltaram iniciativas de debater o período 1964-

1979 nas universidades e em outros espaços públicos, assim como não

faltaram textos de reflexão, denúncia e/ou resgate da memória, de autoria de

sobreviventes da luta armada, de parente de desaparecidos e das próprias

95 SINTONI, E. Em busca do inimigo perdido. São Paulo: Cultura Acadêmica, 1999. p. 106. 96 1964 –Um golpe contra do Brasil. Direção: Alípio Raymundo Freire, Tânia Gerbi Veiga e Maria da Penha Silva. 2012.

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vítimas de abusos sofridos nos porões do regime. No cinema, a década de

1980 viu surgirem os primeiros filmes de crítica ao período militar, como o

corajoso Pra Frente Brasil, (Roberto Farias, 1982), ou a atualização

cinematográfica da peça de Guarnieri, “Eles não usam black-tie”, (Leon

Hirszman, 1981), período concluído com o assassinato do operário Santo Dias,

em São Paulo. Nos últimos vinte anos, tivemos uma produção expressiva de

filmes que levaram para um público mais numeroso, do que jovens que

resistiram à ditadura, de suas (poucas) vitórias e muitas derrotas, com cenas

violentas retratando a tortura e o assassinato de muitos heróis brasileiros

daquele período (...).97

Atualmente, a luta tem se ampliado e atingido outras dimensões do poder e da

sociedade civil. Desde 1995, após a promulgação da Lei 9.140, conhecida como “Lei

dos Desaparecidos”, notam-se consideráveis avanços na luta pela anistia. Apesar do

Estado não ter estabelecido condições de localização dos desaparecidos, o tema

passa a compor um importante espaço na pauta dos direitos humanos no Brasil –

juntamente com a revisão da Lei da Anistia e a punição aos algozes – conforme já

citado neste capítulo.

Há, oficialmente, no país cerca de 200 desaparecidos políticos – de acordo com

informações da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.98 Desse

número, cerca de 70 desapareceram, em condições ainda não esclarecidas, no conflito

do Araguaia,99 em que as Forças Armadas executaram todos os militantes do PC do B.

Com exceção de Maria Lúcia Petit,100 não se sabe o paradeiro de nenhum deles.

97 KEHL, Maria Rita. Tortura e Sintoma Social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 127. 98 A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos foi formada logo após a concessão da anistia no Brasil, “a partir das experiências de organização política de grupos de familiares que denunciavam mortes, desaparecimentos forçados, torturas e condições carcerárias dos presos políticos durante o regime militar. Em janeiro de 1993, criou o Instituto de Estudos sobre Violência do Estado, cujo objetivo é promover a continuidade das investigações sobre as circunstâncias das mortes e localização dos restos mortais das vítimas da ditadura civil-militar, identificar seus responsáveis e incentivar medidas judiciais para a reparação integral das vítimas da repressão política”. KRSTICEVIC, Viviana; AFFONSO, Beatriz. A dívida histórica e o Caso Guerrilha do Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos impulsionando o direito à verdade e à justiça no Brasil. In: ABRÃO; TORRELY; PAYNE, 2011, p. 347. 99 A respeito da Guerrilha do Araguaia ver: MORAIS, Tais; SILVA, EUMANO. Operação Araguaia – Os arquivos secretos da Guerrilha. São Paulo: Geração Editorial, 2005. CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia:A esquerda em armas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2012. 100 “Maria Lucia Petit foi a única guerrilheira do Araguaia que teve seus restos mortais resgatados pela família. Sua trajetória política começou cedo: influenciada pelos irmãos Jaime e Lúcio – ambos também combatentes da Guerrilha do Araguaia –, logo seguiu rumo ao interior do país para se engajar na luta

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Grande parte das informações acerca dos desaparecidos foram obtidas através do

empenho dos familiares das vítimas, que desenvolvem, há anos, um trabalho de

buscas.101 Em 1995, foi publicado o “Dossiê de Mortos e Desaparecidos a partir de

64”,102fruto dessas investigações. O documento foi elaborado de forma autônoma, sem

apoio do governo brasileiro, e serviu de base para os trabalhos da Comissão Especial

sobre Mortos e Desaparecidos. Na ocasião, além da divulgação da lista dos

desaparecidos – que consta no Anexo I, da Lei 9.140/1995,103 os familiares puderam

“derrubar” as versões oficiais dos crimes divulgadas à época e comprovar o

envolvimento do Estado nos casos. Sendo assim, “(...) ainda que lei nenhuma

houvesse, seria confortador conhecer as circunstâncias em que as prisões e mortes se

operaram, para que não seja fragmentada a história de suas vidas(...)”.104Atualmente, o

drama vivido por essas famílias não representa apenas uma luta isolada e, sim, um

fundamental aspecto a ser considerado na luta por justiça no Brasil. Rever esses fatos,

reconstruir a história compõem um processo digno de reparação moral às vítimas. “(...)

Justo é pedir a localização dos filhos, irmãos, pais e esposos que, notoriamente, foram

presos pelos órgãos de segurança e encontraram a morte pelo “desaparecimento” para

dar-lhes sepultura(...)”.105

Em 2014, as investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) trouxeram

ao centro do debate político o caso do ex-deputado Rubens Paiva. Retirado à força de

casa em janeiro de 1971, o político permaneceu por dois dias nas dependências do

Destacamento de Operações de Informações (DOI), do I Exército, no bairro da Tijuca, junto com os outros membros do PC do B. Após uma armadilha feita por um companheiro da comunidade, chamado João Coioió, foi executada pelas forças da repressão política”. SANTOS, Sheila Cristina. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e a reparação do Estado às vítimas da ditadura militar no Brasil. Mestrado em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica, 2008, p. 108. 101 Importantes relatos dos familiares das vítimas podem ser vistos em: 15 filhos. Direção: Marta Nehring. 1996. 102 Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 64. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Instituto de Violência do Estado de São Paulo – IEVE, Grupo Tortura Nunca Mais – RJ e PE. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995. 103 Após a promulgação da Lei 9.140/1995, o governo brasileiro indenizou 136 famílias, de acordo com uma lista fornecida pelos familiares, que passa a integrar o Anexo I da referida lei. Vale ressaltar que o Estado reconheceu a culpa pelas mortes, no entanto, não orientou as famílias em relação ao paradeiro das vítimas. Sendo assim, cada família recebeu um cheque no valor de 100 mil reais. Ver em: Direito à Memória e à Verdade. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007. MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. 104ARQUIDIOCESE de São Paulo, 2001, p. 272. 105 Ibidem, p. 272.

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zona norte do Rio de Janeiro, de onde desapareceu há 43 anos. De acordo com

informações apuradas pela CNV e divulgadas oficialmente em fevereiro de 2014,106

através dos meios de comunicação, o ex-deputado foi assassinado em dependências

do Exército após sessões de tortura realizadas sob o comando do então tenente

Antônio Fernando Hughes de Carvalho – já falecido. A comissão apurou, ainda, a

participação de mais cinco agentes do Estado no desaparecimento do deputado: José

Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza,

JacyOchsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos. Por intermédio de uma ação

penal, que tramitou no Tribunal Regional Federal da 2. Região (TRF2), no Rio de

Janeiro, os cinco militares foram acusados de homicídio doloso – quando há a intenção

de matar –, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual. A

ação penal, no entanto, foi suspensa pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),

Teori Zavascki, em setembro de 2014,107 após atender a um pedido do advogado dos

militares. Nesse sentido, manteve-se a interpretação da Lei 6.683/1979, que considera

anistia recíproca – estendendo-se, portanto, aos agentes do Estado que praticaram o

delito.

O coronel reformado, Raymundo Ronaldo Campos, um dos cinco acusados da

morte e do desaparecimento do ex-deputado, revelou, em depoimento ao Ministério

Público Federal (MPF), em maio de 2014, detalhes da farsa montada pelos militares

para “simular” a fuga do político no dia seguinte à sua prisão no DOI. Durante o

interrogatório, o militar denunciou fatos importantes para a reconstrução do caso: (...)

diga que o prisioneiro fugiu, metralhe o carro para parecer que ele fugiu (...),108 disse,

se referindo a Rubens Paiva.

106 GOMES, Marcelo. Comissão da Verdade aponta assassino de Rubens Paiva. Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 fev. 2014. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,comissao-da-verdade-aponta-assassino-de-rubens-paiva,1135496>. Acesso em:22 nov. 2014. O relatório do casoRubens Paiva foi apresentado à sociedade em 27 de fevereiro de 2014. Baseado em pesquisa documental e provas testemunhais, o documento aponta o envolvimento de cinco militares na morte e no desaparecimento do ex-deputado. Disponível em: <http://cnv.gov.br/index.php/publicacoes/443-relatorio-parcial-da-cnv-sobre-o-caso-rubens-paiva>. Acesso em: 22 nov. 2014. 107 PASSARINHO, Nathalia. STF suspende ação contra militares acusados de matar Rubens Paiva. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/09/ministro-suspende-acao-contra-militares-acusados-de-matar-paiva.html>. 29 set. 2014. Acesso em: 22 nov. 2014. 108 LEAL, Luciana Nunes. Coronel revela farsa para simular fuga de Rubens Paiva. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,coronel-revela-farsa-para-simular-fuga-de-rubens-paiva,1171984>. 26 maio 2014. Acesso em: 22 nov. 2014. Sobre o desaparecimento de Rubens Paiva,

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Um das estratégias utilizadas pela repressão política durante a ditadura militar

era negar a passagem dos presos pelos órgãos de segurança. Para isso, criavam-se

“versões oficiais”109 a fim de confundir a opinião pública e os familiares sobre o

paradeiro das vítimas. As informações sobre os presos eram manipuladas em ações

conjuntas entre a Polícia e as Forças Armadas. Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-

deputado, chama a atenção para a causa dos desaparecidos no País:

(...) Existem desaparecidos e desaparecidos, dos que combateram no Araguaia

aos que morreram nos porões da rua Tutóia e da Barão de Mesquita, dos que

pegaram em armas aos que apenas faziam oposição: como meu pai, que não

era filiado a qualquer organização, preso em 71. Cada corpo tem uma história:

uns foram enterrados numa vala comum do Cemitério de Perus, outros foram

deixados na floresta amazônica, uns decapitados, outros jogados ao mar

(...).110

Além dos trabalhos das Comissões de Reparação do Estado brasileiro – a

exemplo da CEMDF, da Comissão de Anistia e da Comissão da Verdade – que tem

permitido, com base em documentos, testemunhos das vítimas e investigações mais

apuradas, a reconstituição dos acontecimentos e, de certa forma, promovem um certo

conforto moral às vítimas, a sociedade conta, ainda, com alguns depoimentos que

podem auxiliar a redefinir a história. As declarações do coronel Raymundo Campos,

por exemplo, reforçam a ideia de que a reconstituição das circunstâncias dos crimes

ocorridos durante o regime militar possam por um fim a muitos casos que ainda estão

sem solução – como o dos desaparecidos políticos. A reconstrução desse passado

depende de relatos de “personagens” que vivenciaram de perto essa história – e dessa

vez, não só na perspectiva das vítimas. Pequenos resquícios ou fragmentos de

informações podem sinalizar a localização dos restos mortais de cidadãos que fizeram

oposição ao regime militar. Nessa condição, Carrillo registra que,

ver: <https://www.youtube.com/watch?v=2QZLn01Uigw>; e site Memórias Reveladas do Governo Federal. Disponível em: <http://www.memoriasreveladas.gov.br>. 09 set. 2009. 109 Foram criadas várias versões para encobrir os crimes praticados pelos órgãos de repressão, tais como: suicídio, mortes por atropelamento, fugas da prisão, morte em tiroteio, confronto com a polícia, entre outras. Detalhes em: MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 5. 110 PAIVA, Marcelo Rubens. Brasil procura superar “solução final”. In: TELES, 2000, p. 45.

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as relações entre narrativa e memória apresentam um tema de reflexão crucial

para as políticas culturais em uma sociedade que tenta construir democracia

depois de haver atravessado um período de violência com massivas violações

de direitos humanos.111

Sendo assim, o Brasil, ainda, se encontra numa importante etapa de transição

política, ao considerarmos as pendências que envolvem o processo. A Lei da Anistia

não alcançou, em termos políticos e sociais, condições para o pleno restabelecimento

da democracia no País – e o fez com imperfeição, transparecendo suas lacunas, assim

como as leis editadas posteriormente: a Lei 9.140/1995, a Lei 10.559/2002 e a Lei

12.528/2011, que não atenderam a todas as reivindicações da sociedade no plano

político, e favorecem a contínua espera por um projeto mais amplo que corresponda

as reais necessidades por justiça.

Fatos dessa natureza comprometem a imagem do Brasil junto aos organismos

internacionais no que tange as graves violações no âmbito dos Direitos Humanos. Dos

emblemáticos casos investigados pelas famílias das vítimas da ditadura, o primeiro a

chegar a um Tribunal Internacional foi o episódio da Guerrilha do Araguaia. Pela

primeira vez, em 1996, um caso brasileiro dessa dimensão atinge a esfera

internacional. Recorrer a outras instâncias do poder global112 está relacionado ao fato

de que,

são muitos casos do passado e do presente, que buscam nos organismos

internacionais a garantia dos compromissos que seu respectivo país assumiu

ao ratificar os tratados e convenções, uma vez que os mecanismos internos

não têm resultado nessa proteção e se esgotaram os recursos internos. 111 CARRILLO, Félix Reátegui. Memória histórica:O papel da cultura nas transições. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, n. 2, jul./dez. 2009. 112 Flávia Piovesan destaca os diferentes âmbitos de aplicação do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Sendo assim, “o campo de incidência do aparato global de proteção não se limita a determinada região, mas pode alcançar, em tese, qualquer Estado integrante da ordem internacional, a depender do consentimento do Estado no que se atém aos instrumentos internacionais de proteção(...). Ao lado do sistema global, surge o sistema regional de proteção, que busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional, particularmente na Europa, América e África(...). Consolida-se, assim, a convivência do sistema global – integrado pelos instrumentos das Nações Unidas, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e as demais Convenções internacionais – como instrumentos do sistema regional de proteção, integrado por sua vez pelo sistema interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos”. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 221-222.

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Com base em normas estabelecidas nos tratados internacionais, sobretudo, na

Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, de San José da Costa Rica – na

qual o Brasil se tornou signatário –, entidades como: Comissão de Familiares de

Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, Centro

de Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e HumanRights/Americans,

formalizaram uma denúncia à Corte do Sistema Interamericano de Proteção aos

Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), referindo-se,

especificamente ao conflito deflagrado no Araguaia (1972-1975), e aos

desaparecimentos ocasionados no período em decorrência da ação violenta das

Forças Armadas na região. A questão central se baseia na localização dos restos

mortais das vítimas. De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos

Humanos,113 o Estado brasileiro não só praticou violação dos direitos humanos, como

não atendeu à solicitação dos familiares num processo que tramitou na justiça

brasileira entre os anos de 1982 a 1996. Assim, a Convenção solicitou à Corte

averiguação do caso diante das denúncias apresentadas – a considerar os seguintes

artigos da Convenção Americana:

(...) Artigo 3. Direito ao reconhecimento da pessoa jurídica. – Toda pessoa tem

direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Artigo 4. Direito à vida. – Toda pessoa tem o direito de que se respeite uma

vida. Esse direito de ser protegido por lei, em geral, desde o momento da

concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Artigo 5. Direito à integridade pessoal. Toda pessoa tem o direito que se

respeite a sua integridade física, psíquica e moral.

113 Consta o “Sistema Interamericano de Direitos Humanos como SIDH, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos como CmIDH, a Corte Interamericana de Direitos Humanos CrIDH e a Convenção Americana de Direitos Humanos simplesmente como Convenção (...). Uma Comissão, sediada em Washington (Estados Unidos),que funciona em parte como órgão político e em parte como órgão quase-judicial, encarregado do controle do comportamento dos Estados, aos quais pode endereçar recomendações; e uma Corte, sediada em São José (Costa Rica), como órgão judicial, a quem a Comissão encaminha casos persistentes de violação da Convenção dos Estados. A Corte também responde a consultas dos Estados sobre a interpretação do direito americano (...)”. VENTURA, Deisy; CETRA, Raíza Ortiz. O Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos – De Maria da Penha a Belo Monte. In: ABRÃO, Paulo; TORRELY, Marcelo D.; SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Justiça de Transição nas Américas – Olhares Interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 344.

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Artigo 7. Direito à liberdade pessoal – Toda pessoa tem direito à liberdade e à

segurança pessoal.

Artigo 8. Garantias judiciais – Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as

devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal

competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na

apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na

determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal,

ou de qualquer outra natureza.

Artigo 13. Liberdade de pensamento ou expressão. – Toda pessoa tem o direito

à liberdade de pensamento e expressão. Esse direito inclui a liberdade de

procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem

considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa

ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.

Artigo 25. Proteção judicial. – Toda pessoa tem o direito a um recurso simples

e rápido ou qualquer recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais

competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais

reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo

quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no

exercício de suas funções. 114

Embora o Brasil tenha ratificado sua participação na Convenção Americana, em

1992,115 somente em 1998 o País reconheceu a competência da Corte Interamericana

de Direitos Humanos (CIDH), para, então, julgar os crimes praticados no Araguaia.

Sendo assim, “o processamento do Caso Guerrilha do Araguaia vs. Brasil no Sistema

Interamericano busca, finalmente, alcançar direitos inalienáveis dos familiares dos

mortos, por meio da publicização da verdade histórica”.116No campo das reivindicações

e lutas de entidades de direitos humanos e, principalmente, para as famílias dos

mortos, consta a busca por informações que possam conduzir a “localização,

identificação e entrega dos restos mortais dos desaparecidos políticos e da punição 114ABRÃO; TORRELY;PAYNE, 2011, p. 221-250. 115 Não é a primeira vez que o Brasil busca um posicionamento ao tratar do tema direitos humanos. Em 1948, mediante a IX Conferência Internacional Interamericana, o “Brasil propôs a criação de um órgão judicial internacional que promovesse os direitos humanos no continente; ou da ousada tese que esposou, em 1954, na X Conferência Interamericana, em Caracas, em favor do reconhecimento da personalidade jurídica do indivíduo no plano internacional. Porém, das décadas seguintes, o regime ditatorial então vigente (1964-1985) impingiu um grave retrocesso às posições brasileiras”. ABRÃO; TORRELY, 2013, p. 344. 116 Ibidem, p. 345.

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dos agentes públicos e privados envolvidos nos crimes cometidos contra civis sob a

diretriz do governo militar”.117 Nessa perspectiva, o Estado brasileiro sempre contestou

sua responsabilidade mediante o amparo legal estabelecido pela Lei da Anistia –

requerendo, até mesmo, o arquivamento do processo. Após a admissão do caso pela

Convenção Americana e, posteriormente, a apresentação de um relatório, em 31 de

outubro de 2008, o Brasil é submetido à jurisdição da Corte Interamericana para fins de

esclarecimentos sobre o desaparecimento forçado de pessoas e a aplicação da Lei da

Anistia. De acordo com o relatório emitido pela Corte Americana, em 2010:

a demanda se refere à alegada “responsabilidade [do Estado] pela detenção

arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do

Partido Comunista do Brasil […] e camponeses da região, […] resultado de

operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o

objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do

Brasil (1964–1985)”. A Comissão também submeteu o caso à Corte porque,

“em virtude da Lei n. 6.683/79 […], o Estado não realizou uma investigação

penal com a finalidade de julgar e punir as pessoas responsáveis pelo

desaparecimento forçado de 70 vítimas e a execução extrajudicial de Maria

Lúcia Petit da Silva […]; porque os recursos judiciais de natureza civil, com

vistas a obter informações sobre os fatos, não foram efetivos para assegurar

aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada o acesso à

informação sobre a Guerrilha do Araguaia.118

Sobre o caso, o governo brasileiro contrargumentou à Corte Americana que, no

país, havia uma lei de reparação aos familiares das vítimas e o reconhecimento e

responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos, referindo-se à Lei dos

Desaparecidos. No entendimento dos membros da Corte Americana,

a reparação não podia se restringir ao pagamento em dinheiro, mas envolvia,

necessariamente, a prestação de informações sobre as circunstâncias dos

desaparecimentos e mortes, bem como a localização dos corpos e a

117 Ibidem, p. 355-356. 118 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) VS. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em:02 dez. 2014.

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responsabilização cabível aos perpetradores de todas aquelas violações de

Direitos Humanos.119

Ainda segundo afirmativa da Corte Americana de Direitos Humanos, sobre os

desaparecimentos forçados e a consequente lei de indenização às vítimas, “primeiro se

investiga, depois determina-se as responsabilidades e punições, e, por último se paga

uma indenização.120

No âmbito das famílias, “não se avançou muito além de um discreto

constrangimento político e moral enfrentado pelo Estado brasileiro”.121

O embate jurídico estabelecido no Brasil está centrado no julgamento das

responsabilidades dos agentes estatais que cometeram crimes contra cidadãos durante

o regime ditatorial. Ações movidas internamente – como no caso da ADPF 153 e da

Corte Interamericana, sugerem a não “aderência” à Lei 6.683/1979 para aqueles que

praticaram crimes de tortura, seguidos de morte e desaparecimentos. Ainda sim,

referindo-se às recomendações da Corte Interamericana, a Lei da Anistia no Brasil não

pode valer para os algozes, tendo em vista que houve violação dos diversos preceitos

relacionados aos direitos humanos (vida, integridade pessoal, liberdade de expressão).

No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do qual o Brasil faz parte por

decisão soberana, são reiterados os pronunciamentos sobre a

incompatibilidade das leis de anistia com as obrigações convencionais dos

Estados, quando se trata de graves violações dos direitos humanos.122

O processo relacionado ao Caso Araguaia tramitou durante 13 anos, desde a

denúncia inicial, em 1996, pelos familiares das vítimas, até o envio da Demanda da

CIDH à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2009. Beatriz Affonso e Viviana

Krsticevic retratam esse processo:

119 COMISSÃO Especial de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 201. 120 Ibidem, p. 201. 121TELES, Janaína de Almeida. Os familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e a luta por verdade e justiça no Brasil. In: TELES; SAFATLE, 2010, p. 127. 122 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) VS. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2014.

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A lei da Anistia no Brasil, apesar de ter sido elaborada para anistiar os civis que

praticaram resistência à ditadura, na prática também beneficiou os agentes da

repressão. Esse, talvez, tenha sido um fator que acarretou a demora no órgão

internacional, tendo em vista que, aparentemente, a situação brasileira era

diferente das anistias vivenciadas pelos demais países da região. Somado a

isso, o Estado brasileiro, desde o início da sua defesa, por diversos anos, não

admitiu nos fatos a existência de violação da Convenção Americana sobre

Direitos Humanos, e questionou os requisitos que permitem a admissibilidade

do caso, vinculados ao esgotamento dos recursos internos e a argumentação

peremptória da negativa de responsabilidade no caso.123

Em dezembro de 2010, o Relatório Oficial da Comissão Nacional da Verdade,

em seu Capítulo 18, que se refere às recomendações e conclusões existentes,

expressa que, a Lei da Anistia não deve se estender aos agentes públicos que

praticaram crimes comuns à época da repressão política. Sendo assim, a CNV

considerou:

que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções

ilegais e arbitrarias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados, e

ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem

jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com

que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e

passíveis de anistia.124

2.2 A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP): início do processo de reparação do Estado brasileiro

Após a concessão da Anistia, no ano de 1979, e os desdobramentos por ela

causados, como a abertura política, os movimentos sociais e de direitos humanos

123 AFFONSO, Beatriz; KRSTICEVIC, Viviana. A dívida histórica e o Caso Guerrilha do Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos impulsionando o direito à verdade e à justiça no Brasil.In: ABRÃO; TORRELY;PAYNE, 2011, p. 356-386; PIOVESAN, 2006, p. 221-250. 124 Relatório Oficial sobre os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade apresentado em 10 de dezembro de 2014, em Brasília. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/relatorio_final/Relatorio_Final_CNV_Parte_5.pdf.> Acesso em: out. 2014.

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passaram por um momento de reorganização no campo político que promoveu o

fortalecimento da sociedade em relação a importantes conquistas para a democracia.

No transcurso da década de 1980, o movimento pelas “Diretas” (eleições

diretas), e a posse de um presidente civil, mesmo que eleito de forma indireta, compôs

um cenário favorável para a atuação desses grupos com o fim da ditadura militar:

A campanha das Diretas Já consolidou o processo de crise do cesarismo

militar e eliminou qualquer possibilidade de o campo governista preservar sua

unidade e conquistar legitimidade, entre as diversas frações do bloco do poder,

para mais um governo militar (...). O caráter de massas da campanha, com a

participação de milhões de pessoas nos comícios e manifestações, mobilizou

diversos setores sociais ainda ausentes da disputa política, atraindo as massas

populares, principalmente urbanas, para uma posição anticesarista explícita.125

De certo modo, a partir da redemocratização, foi possível estabelecer canais de

comunicação com a sociedade que permitiram a discussão sobre o tema dos mortos e

desaparecidos políticos, trazendo à tona fatos amplamente censurados durante a

gestão dos militares. A década de 1990 foi um marco nesse processo. Nesse período,

a luta dos familiares ganhou notoriedade a partir da descoberta da vala de Perus, da

consequente CPI da Câmara Municipal de São Paulo e da liberação dos arquivos do

DOPS, através da promulgação da Lei 8.159/1991, no governo do presidente Fernando

Collor de Mello, conforme mencionado no capítulo anterior.

Tais medidas favoreceram a busca de informações pelos familiares, mas não

solucionaram totalmente o problema. Todavia, nenhuma possibilidade de negociação

com o governo foi descartada, e quando havia um espaço para discussão sobre o

tema, os interessados sempre procuravam formas de chamar a atenção da opinião

pública e difundir a causa.

O dia 28 de agosto de 1991, data de comemoração dos 12 anos da anistia,

representou um momento de muita importância na caminhada de luta dos familiares. O

encontro realizado na Câmara Federal foi o cenário apropriado para consolidar futuros

acordos com o governo. O discurso do deputado federal Haroldo Lima, na época, líder

do PC do B na Câmara, relembrou parte das conquistas realizadas após a anistia e 125 MACIEL, 2004, p. 298-299.

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prestou a devida homenagem aos parentes e às vítimas da ditadura militar. A seguir,

um trecho de seu pronunciamento:

Vemos, aqui, familiares de mortos e desaparecidos. Temos que realçar que um

dos efeitos dessa luta foi ter trazido à tona um grupo de pessoas que

demonstrou uma audácia, uma determinação, uma clarividência e uma

perseverança que não podem ser obscurecidas. O Brasil não tem as mães da

Praça de Maio, porque não estamos em Buenos Aires, na Argentina, mas tem

as mães da Pátria brasileira, senhoras que estão lutando para saber onde

estão enterrados seu filhos, sua filha, seu marido, onde estão os mortos e

desaparecidos de uma resistência gloriosa (...). E temos a responsabilidade de

apoiar essa luta e fazer todos os esforços para que a Pátria esclareça, afinal,

onde estão aquelas pessoas que resistiram ao arbítrio. Onde estão?.126

Nessa ocasião, representantes da Comissão de Familiares solicitaram, por meio

de uma reunião com os deputados Nilmário Miranda (PT-MG) e Sigmaringa Seixas

(PSDB-DF), uma ação que mobilizasse a causa em favor dos mortos e desaparecidos

políticos no país. Em resposta às reivindicações, o deputado Nilmário Miranda elaborou

um requerimento ao presidente da Câmara Federal, Ibsen Pinheiro, propondo a criação

de uma Comissão Externa para os desaparecidos políticos. Sobre esse momento, o

deputado cita:

O que é uma Comissão Externa? Ela é formada com um objetivo concreto, a

comissão sai daqui, digamos, para o Pará investigar Eldorado dos Carajás,

uma chacina, foi lá, volta faz um relatório, dissolve um tema específico (...) Eu

pedi uma comissão para auxiliar as famílias dos mortos e desaparecidos

políticos que estavam trabalhando, já tinham informações, ou seja, não tinha

um objetivo concreto, determinado, mas o Ibsen Pinheiro aceitou, era uma

coisa estranha, a única comissão externa da história da Câmara que durou 3

anos, em geral, dura 2 semanas, 3 semanas. Ela não tinha um objetivo de ir ali,

126 Trecho do pronunciamento de Haroldo Lima (PC do B), em 21 de Agosto de 1991, em sessão solene em comemoração aos 12 anos de Anistia, em que estiveram presentes representativas lideranças do Movimento em Defesa dos Direitos Humanos, a prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, congressistas e membros da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. Nesse dia, foram homenageados: Irene Correa e Cirene Moroni Barroso (mães de desaparecidos), Oswaldo Orlando Costa (líder da guerrilha do Araguaia), Maurício Grabois (dirigente político e guerrilheiro do Araguaia), entre outros.

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fazer uma determinada ação e voltar (...) ela ficou ali para apoiar as famílias

(...).127

Essa Comissão de Representação Externa da Câmara Federal128 desenvolveu

um trabalho de apoio às famílias durante três anos (1991-1994), acompanhou as

buscas no cemitério de Perus, contribuiu no esclarecimento de casos de desaparecidos

brasileiros no Chile e na Argentina, realizou audiências públicas nos Estados, analisou

documentos sobre as vítimas da repressão e entrevistou familiares e ex-presos

políticos. Vale ressaltar que a Comissão Externa foi o primeiro apoio efetivo aos

familiares, no que se refere às ações do governo federal. Na condição de comissão

institucional, foi composta por representantes de vários partidos políticos, entre eles o

PT, o PC do B, o PSDB e o PMDB. Atuou em uma sala fixa na Câmara Federal,

fornecendo assistência às famílias durante todo o período, até a finalização dos seus

trabalhos, no final da gestão do presidente Itamar Franco (1992-1994): “Apesar de não

ter o poder de uma CPI, a Comissão Externa funcionou durante três anos, valendo

como espaço de debate em torno da questão e contribuindo para que o assunto

ganhasse ainda mais divulgação.”.129 O fato de ter permanecido na Câmara durante

três anos possibilitou um espaço para futuras reivindicações por parte dos familiares.

Mediante a repercussão dos trabalhos da Comissão Externa, em 1993, pela

primeira vez foi possível realizar discussões mais concretas em torno de uma lei de

reparação às famílias e, principalmente, sobre o reconhecimento do Estado brasileiro

de sua responsabilidade durante os crimes cometidos na ditadura militar. Na ocasião, o

deputado Nilmário Miranda realizou uma viagem ao Chile e à Argentina como membro

da Comissão Externa, em busca de conhecimento sobre as leis de reparação do Chile

para trazer essa experiência ao Brasil.

127Entrevista realizado com Nilmário Miranda, em agosto de 2000, na época em que desenvolvia a pesquisa do mestrado. Não casião, era presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Ex-preso político, foi eleito deputado federal pelo PT-MG, e reeleito em 1994 e 1998. Foi autor do projeto de lei que criou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, e atuou como membro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, no período de 1995 a 2002. Em 2003, foi eleito Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, entre 02/01/2003 e 21/07/2005. Foi candidato ao governo do Estado de Minas Gerais, em 2006, mas perdeu para Aécio Neves. Hoje, é conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. 128 Entre os deputados que integraram a Comissão Externa, destacaram-se: Nilmário Miranda (PT-MG), Roberto Valadão (PMDB) e Sigmaringa Seixas (PSDB-DF). 129 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 32.

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O Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em audiências realizadas com membros da

Comissão Externa, se comprometeu a estudar uma lei de reparação às vítimas.

Durante esse processo, o ministro solicitou a lista dos familiares com os nomes de

mortos e desaparecidos políticos e a enviou à Marinha, à Aeronáutica e ao Exército, a

fim de obter indícios sobre a localização dessas pessoas.

De acordo com Nilmário Miranda, a solicitação do ministro foi atendida através

de um documento de caráter confidencial e houve um consenso entre os membros da

Comissão Externa em romper com essas informações confidenciais e torná-las

públicas. No que diz respeito aos documentos,

eles traziam informações, sobretudo, da guerrilha do Araguaia, e muitas

informações permitiram ver que vários, dezenas e dezenas do pessoal do

Araguaia, foram presos vivos e depois foram mortos, pelos documentos da

Marinha, nos arquivos da Marinha, mostravam que eles foram presos vivos e

depois que morrem. E mostravam também que eles tinham informações,

apesar que negavam que tinham informações, mas eles tinham, tinham, não,

eles têm informações, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica.130

Nesse momento, após inúmeras tentativas, foi possível estabelecer um acordo

entre o Ministério da Justiça e a Comissão Externa em relação a uma minuta de um

projeto de lei de reparação às vítimas da ditadura. Esse projeto de lei foi elaborado por

membros da Comissão de Familiares, Grupo Tortura Nunca Mais, entidades

defensoras dos direitos humanos e representantes da Comissão Externa. Além da

proposta de uma lei de reparação às vítimas, os familiares também reivindicaram a

formação de uma comissão com representantes da sociedade civil para apurar os

casos de mortes e desaparecimentos ocorridos no período de 1964 a 1985.

Embora esse período tenha sido muito importante para a luta dos familiares, as

discussões em torno da lei, o apoio efetivo de representantes da Comissão Externa e a

tentativa do Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em dar andamento a esse projeto, as

negociações não prosperaram com o governo. Ainda não foi na gestão do presidente

Itamar Franco que os familiares tiveram suas reivindicações atendidas.

130 Entrevista cedida pelo deputado Nilmário Miranda à autora desta tese.

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Segundo Nilmário Miranda:

Houve uma divisão dentro do governo Itamar Franco; pelo que fomos

informados, o José de Castro, que era o advogado geral da União, era um

conselheiro muito próximo do Itamar e a assessoria militar do Itamar

desaconselhou a tocar para frente esse projeto, então, ele tirou o respaldo do

Maurício Correia. Foi um desalento muito grande para os familiares (...).131

Nas eleições presidenciais de 1994, os candidatos Fernando Henrique Cardoso

e Luís Inácio Lula da Silva firmaram um compromisso com representantes da

Comissão de Familiares. Caso eleitos, reconheceriam os mortos e os desaparecidos

políticos e tomariam providências em torno dessa questão. Essa carta-compromisso foi

divulgada durante o período de campanha presidencial, conforme segue:

1. Reconhecimento público formal do Estado brasileiro de sua responsabilidade

plena na prisão, na tortura, na morte e no desaparecimento de opositores

políticos entre 1964 e 1985.

2. Imediata formação de uma Comissão Especial de Investigação e Reparação,

no âmbito do Poder Executivo Federal, Integrada por Ministério Público, Poder

Legislativo, Ordem dos Advogados do Brasil, representantes de familiares e

dos grupos Tortura Nunca Mais, com poderes amplos para investigar, convocar

testemunhas, requisitar arquivos e documentos, exumar cadáveres, com a

finalidade de esclarecer cada um dos casos de mortos e desaparecidos

políticos ocorridos, determinando-os as devidas reparações.

3. Compromisso de não indicar para cargos de confiança pessoas implicadas

nos crimes da ditadura militar e de afastá-los do serviço público.

4. Compromisso de abrir irrestritamente os arquivos da repressão política sob

sua jurisdição.

5. Compromisso de anistiar plenamente cidadãos vítimas da ditadura e reparar

os danos causados a ele e seus familiares.

6. Edição de lei incriminadora, assegurando o cumprimento do artigo 5º,

parágrafo III, da Constituição Federal, que proíbe a tortura e o tratamento

desumano e degradante.

131 Entrevista cedida pelo deputado Nilmário Miranda à autora desta tese.

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7. Desmilitarização das Polícias Militares estaduais e sua desvinculação do

Exército.

8. Aprovação do projeto Hélio Bicudo, que retirava da Justiça Militar a

competência para julgar crimes praticados contra civis.

9. Desmantelamento de todos os órgãos de repressão política.

10. Revogação da chamada Doutrina de Segurança Nacional.132

No ano seguinte, com a vitória de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) para

a presidência da República e a consequente renovação do Congresso Nacional, foi

instituída uma Comissão Permanente de Direitos Humanos, presidida pelo deputado

Nilmário Miranda. Essa comissão, de certo modo, deu continuidade aos trabalhos da

Comissão Externa que foram concluídos com o final do mandato do presidente Itamar

Franco.

A Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara Federal representou

a possibilidade de firmar canais de comunicação com o governo, sobretudo, o

Ministério da Justiça, para elaboração de uma lei de reparação às vítimas da ditadura.

E, por conta disso, “assumiria como primeira bandeira o reconhecimento, pelo Estado

Brasileiro, de sua responsabilidade quanto às torturas e assassinatos de opositores do

regime de 1964”.133

De acordo com Nilmário Miranda, em março de 1995, o Ministro da Justiça,

Nelson Jobim, declarou que o governo iria reconhecer a causa dos desaparecidos

políticos, e alguns fatos contribuíram para essa decisão do governo. Além do

comprometimento do presidente Fernando Henrique Cardoso com as famílias durante

a campanha presidencial, houve também cobranças internacionais sobre o assunto.

Durante passagem pelo Brasil, o secretário-geral da Anistia Internacional, Pierre

Sane, pressionou o governo acerca de soluções para o problema dos desaparecidos

políticos. No mesmo ano, durante coletiva de imprensa em Washington, nos Estados

Unidos, o presidente Fernando Henrique foi questionado por uma jornalista brasileira,

irmã de Pedro Alexandrino de Oliveira, desaparecido no Araguaia, sobre os 132 “Em encontro realizado em São Paulo, em maio de 1994, os familiares lançaram uma ‘Carta-Compromisso’ aos candidatos à Presidência da República, insistindo na proposta apresentada ao presidente Itamar Franco. Em agosto, para lembrar os 15 anos da Lei da Anistia, a Comissão de Familiares organizou um ato de entrega da carta aos representantes dos principais candidatos à Presidência.”. TELES, 2000, p. 162. 133 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 32.

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desaparecidos, o que fez o presidente comprometer-se diante da imprensa brasileira e

internacional a resolver o problema. Teles relata que,

A partir da pressão da Anistia Internacional, da HumanRightsWatchs, da

Federação de Familiares de Desaparecidos da América Latina (Fedebam), das

entidades nacionais em defesa dos direitos humanos, da Comissão

Permanente de Direitos Humanos da Câmara Federal e dos familiares, o

Ministro da Justiça, Nelson Jobim, marcou uma audiência durante a Semana

Mundial do Preso Desaparecido.134

Através desses encontros, passaram a ser fixadas as bases da lei dos

desaparecidos. Familiares puderam entregar, pessoalmente, ao Ministro Nelson Jobim,

o “Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos”. A partir desse momento, o chefe do

gabinete do Ministério da Justiça, José Gregori, foi encarregado de preparar um projeto

de lei que atendesse às solicitações dos familiares.

O processo de negociação em torno dessa lei foi marcado por

descontentamento por parte dos representantes da Comissão de Familiares. O projeto

apresentado inicialmente por José Gregori135 foi insatisfatório e desagradou as famílias

(ver o depoimento de Maria Amélia Teles a seguir), que exerceram uma influência

muito grande em torno dessas negociações.

A representante da Comissão de Familiares, Maria Amélia de Almeida Teles,

recorda o momento de entendimento entre familiares e representantes do governo:

Por que nós aceitamos? Porque a gente podia não ter aceitado. Existiam

dúvidas quanto a aceitação dessa lei ou não. E eu fui uma das pessoas que

defendi que dependia muito de nós. Porque nós temos autoridade nesse

assunto, o que nós falamos acaba repercutindo; a gente tem até que tomar

cuidado com o que fala, porque se for coisa boa repercute bem, se for mal

prejudica também (...). Então, por isso, nós pensamos, discutimos, choramos e

sofremos juntos até ser aprovada a lei. Nós tentamos, até o fim, negociar

alguns pontos, entregamos esses documentos para todas as lideranças de

134 TELES, 2000, p. 163. 135 José Gregori contribuiu na elaboração da Lei 9.140/1995 a pedido do então Ministro da Justiça, Nelson Jobim. Entre 1997 e 2000, exerceu o cargo de Secretário Nacional de Direitos Humanos e também de Ministro da Justiça, entre 2000 e 2001.

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partidos no Congresso Nacional, no Senado. Nós fomos de porta em porta, nós

conversamos não sei com tantos deputados e senadores explicando porque

nós queríamos as mudanças (...).136

O ano de 1995 foi decisivo para o movimento de familiares. Do início das

negociações até a promulgação da Lei dos Desaparecidos, no mês de dezembro,

essas pessoas travaram uma batalha muito grande com o governo para que mudanças

fossem feitas em relação ao projeto de lei:

Os familiares dos mortos e desaparecidos políticos, os ex-presos políticos, os

movimentos de direitos humanos em níveis nacional e internacional, muitos

juristas, vários parlamentares e outros representantes de setores organizados

da sociedade queriam uma lei abrangente.137

O caráter restrito da lei incomodou os familiares, pois desconsiderava questões

fundamentais no que se refere às responsabilidades do Estado em relação aos crimes

cometidos aos opositores políticos da ditadura militar. A expectativa era de uma lei que

possibilitasse um esclarecimento maior sobre os fatos ocorridos naqueles anos, que

promovesse mais comprometimento do governo em relação à apuração das

circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos e, sobretudo, que as pessoas que

praticaram esses crimes fossem julgadas, e não beneficiadas, pela Lei da Anistia.

O projeto de lei apresentado pelo governo, em 1995, não atendeu às famílias,

pois excluía os casos de pessoas mortas em manifestações de rua, casos de suicídio,

brasileiros mortos fora do país, como na Argentina, no Chile e na Bolívia, devido à

repressão articulada na Operação Condor, entre outros tópicos reivindicados pelos

representantes dos familiares.

No final de agosto, o projeto foi enviado à Câmara Federal, com a

recomendação de que nenhuma alteração fosse feita em torno desse projeto. Apesar

das tentativas de negociação com o governo e das emendas apresentadas por

membros da Comissão Permanente de Direitos Humanos e, principalmente, diante da

136 Entrevista com Maria Amélia de Almeida Teles, representante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, à autora desta tese, durante o período de desenvolvimento da pesquisa do mestrado. 137 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 14.

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interferência dos familiares, o Projeto de Lei 869, que resultaria na Lei 9.140, seguiu

para aprovação dos deputados sem modificações.

Segundo Nilmário Miranda, “eles concordavam com as nossas emendas, mas

depois veio a orientação de que não podia mexer, que tinha um acordo com os

militares, em que a lei não poderia ser mexida”.138

Durante esse processo, os familiares redigiram um documento em que

afirmavam que é “direito de toda a sociedade brasileira, e não exclusivamente das

famílias, resgatar a verdade histórica. Essa não é uma questão humanitária entre os

familiares e o governo, é uma exigência e um direito da sociedade.139 De acordo com

os principais tópicos abordados pelos familiares nesse documento, foram apresentadas

as seguintes críticas ao projeto de lei:

1. Esclarecimento detalhado (como, onde, porque e por quem) das mortes

e dos desaparecimentos ocorridos.

2. Reconhecimento público e inequívoco pelo Estado de sua

responsabilidade em relação aos crimes cometidos.

3. Direito de as famílias enterrarem condignamente seus entes queridos,

visto caber ao Estado, e não a elas, a responsabilidade pela localização e

identificação dos corpos.

4. Inversão do ônus da prova: é dever do Estado, e não dos familiares,

diligenciar as investigações cabíveis, buscando provar não ser ele o

responsável direto pelos assassinatos.

5. Abertura incondicional de todos os arquivos da repressão sob jurisdição

da União.

6. Compromisso de não nomear e de demitir de cargos públicos todos os

envolvidos nos crimes da ditadura.

7. Inclusão de todos os militantes assassinados por agentes do Estado no

período de 1964 a 1985.

8. Indenização como direito e, principalmente, efeito de todo o processo de

luta.140

138 Entrevista concedida pelo deputado Nilmário Miranda à autora desta tese. 139 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 37. 140 Ibidem, p. 37.

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Apesar das resistências, a Lei 9.140, também chamada de Lei dos

Desaparecidos, foi aprovada pelo Congresso Nacional em caráter ultra urgente, sem

nenhuma emenda, em 4 de dezembro de 1995, na qual foram estabelecidas, desde

então, condições para reparação moral dos opositores mortos por motivos políticos,

bem como a reparação financeira a seus familiares.

No momento imediato à promulgação dessa lei, o governo brasileiro

reconheceu (em seu Anexo I) como mortos 136 desaparecidos políticos,141 de acordo

com lista fornecida pelos familiares. Estabeleceu, também, a criação da Comissão

Especial sobre Mortos e Desaparecidos, vinculada ao Ministério da Justiça.

Para os representantes da Comissão de Familiares, a Lei 9.140, sancionada

pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, apresentava inúmeros problemas e,

assim, redigiram documento com críticas à referida Lei dos Desaparecidos, conforme

segue:

1. Eximir o Estado da obrigação de identificar e responsabilizar os agentes

que estiveram ilegalmente envolvidos com a prática da tortura, morte e

desaparecimento de opositores ao regime ditatorial. A impunidade aos crimes

cometidos no passado em nome do Estado é um passaporte para a

impunidade no presente.

2. O Estado não assumiu a responsabilidade pela apuração das

circunstâncias das mortes e desaparecimentos, cabendo aos familiares o ônus

da comprovação das denúncias apresentadas. Isto significa que os atestados

dos desaparecidos são vagos, não contendo data, local e causa mortis, e

apenas declaram que o desaparecido morreu no ano mencionado no anexo I

da Lei 9.140/95.

3. Não promoveu a localização dos corpos de desaparecidos, somente

agindo a partir dos indícios apresentados pelos familiares. Se o Estado assume

a responsabilidade pela morte dessas pessoas e indeniza os familiares, deveria

localizar, identificar e entregar os corpos, direito e a principal reivindicação dos

familiares. Bastaria, para isso, que os principais arquivos da repressão, os do

Exército, Marinha, Aeronáutica, SNI e Polícia Federal fossem abertos,

141O Dossiê de mortos e desaparecidos políticos listava 152 nomes de desaparecidos, mas, nesse primeiro momento, não estavam incluídos os que desapareceram em outros países, como Argentina, Chile e Bolívia, e havia três pessoas referidas apenas por apelidos. MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 35.

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4. A lei exclui brasileiros que morreram após 1979, restringindo-se a

mesma abrangência da Lei de Anistia.Excluiu também os brasileiros que,

forçados à clandestinidade e ao exílio, foram assassinados em ações conjuntas

das ditaduras do Cone Sul.

5. A exigência de que o requerimento de reconhecimento da

responsabilidade do Estado pelas mortes à Comissão Especial seja

apresentada somente pelos familiares, tratando a questão dos mortos e

desaparecidos unicamente como uma “questão familiar” e não uma exigência e

um direito de toda a sociedade.142

Assim como a Lei de Anistia,143 a Lei dos Desaparecidos apresentou

deficiências diante da possibilidade de promover um “ajuste de contas” com a

sociedade, sobretudo, com aqueles que sofreram direta ou indiretamente a ação da

repressão política.

Um aspecto que merece ser destacado diz respeito à punição das pessoas que

praticaram crimes de torturas e assassinatos dentro dos órgãos de segurança: elas

foram, na verdade, beneficiadas pela anistia que se constituiu no Brasil.

De acordo com o art. 1º, da Lei 6.683/1979, “É concedida anistia a todos

quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de

1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais (...)”.Dessa

forma, prevaleceu a ideia de impunidade aos crimes cometidos por militares ou civis

que atuaram nos órgãos de segurança.

A Lei dos Desaparecidos, por sua vez, também não garantiu punição aos

responsáveis por esses crimes:

Os parlamentares que participaram das discussões na Comissão Especial que

analisou o Projeto de Lei 869 se recordam das fortes resistências apresentadas

pelos segmentos que entendiam a exigência de apuração e punição como

revanchismo. Para estes, só seria possível apontar culpados se fosse

revogada, antes, a parte da Lei da Anistia que oferecia cobertura aos que

violaram Direitos Humanos no exercício da repressão política (...). Nunca

142 TELES, 2000, p. 163-164. 143 Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, que concede Anistia e outras providências, sancionada pelo Presidente João Baptista de Figueiredo (1979-1984).

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houve consenso ou maioria no Congresso Nacional para introduzir mudanças

desse teor.144

Para Miguel Reale Jr., o fato de a Lei 9.140/1995 não estabelecer as devidas

apurações dos fatos e não promover a responsabilização penal dos autores dos

assassinatos, está diretamente associada a um impedimento efetivo que é a Lei da

Anistia.

A Lei da Anistia estabelece extinção da punibilidade como direito adquirido. Há

uma dificuldade de ordem técnica e jurídica decorrente da Lei da Anistia.

Portanto, a única forma de se aproximar da responsabilização do Estado por

esses crimes é com a publicação de todos os processos, nos quais constam,

na sua maioria, os nomes dos torturadores, os nomes daqueles responsáveis

pelas mortes.145

A discussão desse tema é vista até os dias atuais como tabu entre alguns

setores do meio militar. No período de elaboração da Lei 9.140/1995, o presidente

Fernando Henrique e o Ministro Nelson Jobim se reuniram com representantes das

Forças Armadas para anunciar a decisão de criar uma lei de caráter indenizatório, por

meio do qual o Estado brasileiro assumiria a culpa pelos crimes cometidos durante o

regime militar.

De acordo com José Gregori, dois militares considerados importantes no

processo apoiaram, na ocasião, a decisão do governo: o ministro da Aeronáutica,

brigadeiro Mauro Granda, e o general-de-divisão, Tamoyo Pereira das Neves, ex-chefe

de gabinete do Ministro da Segurança Institucional, general Alberto Cardoso.

Nesse momento, o governo procurou esclarecer que o motivo de criação dessa

lei “tratava-se de uma obrigação do Estado Democrático de Direito (...). Não era um

ataque ao governo A ou B”.146 Mesmo assim, para que essa lei pudesse de fato ser

sancionada, “nenhum parágrafo ou inciso poderia propiciar acusações particulares”.147

144 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 36. 145 REALE JR., Miguel. A Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos. In: TELES, 2000, p. 187-192. 146 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 37. 147 Ibidem.

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Na concepção dos representantes do governo que formularam a Lei dos

Desaparecidos, entre eles, José Gregori, esse momento representou um grande ganho

para a democracia. Segundo ele, “havia feridas profundas, de ambos os lados.

Precisávamos encontrar uma saída favorável para todos”.148

O governo brasileiro buscou, com a promulgação da Lei 9.140/1995, atender a

uma reivindicação da sociedade que aguardava soluções há anos, o que,

inevitavelmente, deveria ser discutido amplamente dentro do regime democrático. Além

disso, procurou não criar embate com as Forças Armadas, garantindo uma relação de

equilíbrio em torno das negociações, e buscando mediar eventuais conflitos com os

militares.

Essa base de equilíbrio foi fundamental para o andamento do processo no

Congresso Nacional. No entanto, o governo deixou à margem questões cruciais para o

avanço da democracia: reconheceu a culpa pelas mortes de todos os desaparecidos

políticos apontados pelos familiares (conforme Anexo I), mas não forneceu meios para

a localização dessas pessoas. Uma das atribuições da CEMDP previa um trabalho de

investigação de pessoas desaparecidas mediante a indicação dos próprios familiares.

Nos termos dessa lei, coube à Comissão “envidar esforços para a localização dos

corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em

que possam estar depositados”.149

De acordo com o movimento de familiares, cabia ao governo, naquele

momento, indicar o paradeiro dos desaparecidos políticos no período da ditadura

militar, tendo em vista sua responsabilidade quanto a tais desaparecimentos. Para isso,

uma das medidas necessárias do governo seria viabilizar o acesso aos arquivos das

Forças Armadas, pois nesses arquivos constam informações de interesse das famílias,

principalmente, os arquivos do Exército.

Outra questão intrigante trata do ônus da prova: mesmo com acesso

impossibilitado aos arquivos das Forças Armadas, ficou a cargo das famílias a

construção de provas para que os casos pudessem ser julgados pela CEMDP. Esse foi

um ponto extremamente debatido pelos familiares, mesmo antes da aprovação da Lei,

pois condicionou todo o trabalho de investigação, uma difícil tarefa, às famílias, 148 Ibidem, p. 35. 149 Trecho do Art. 4º, Inciso II, da Lei 9.140/1995.

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considerando-se, também, o fato de que muitas fontes de informações já tinham sido

esgotadas, como os arquivos do DOPS.

Apesar das dificuldades de acesso às informações, foi papel de cada família

apresentar provas suficientes para a CEMDP, a fim de comprovar a responsabilidade

do Estado nas mortes: “Ficava para eles a tarefa de convencer a Comissão Especial de

que as versões de suicídios e tiroteios encobriam assassinatos por tortura”.150Esse fato

gerou desconforto para as famílias.

O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso possibilitou, por meio da

Lei dos Desaparecidos e de seus desdobramentos, que a discussão sobre a causa dos

mortos e desaparecidos fosse realizada em todo o país, principalmente após a

cobertura da mídia com relação aos trabalhos da CEMDP. Esse fato, importante,

sobretudo, por fortalecer o movimento dos familiares, não isentou, no entanto, o

governo de ter elaborado um lei limitada, ou seja, de caráter restrito e inacabado.

Nilmário Miranda recorda que José Gregori teve um papel muito importante

nesse processo, e que este acreditava que as mudanças em torno da lei deveriam

ocorrer de forma gradativa; no entanto, esse longo tempo de espera era inviável para

as famílias. Um dos reflexos mais importantes causados pela Lei 9.140/1995 reside no

fato de tornar o debate público. Maria Amélia Teles aponta outras questões:

Quando discutimos sobre aceitar ou não essa lei e resolvemos aceitar, foi

justamente para divulgar, para dar visibilidade à questão dos desaparecidos.

Nós achamos que era importante. Além do que era um conforto, havia famílias

que se sentiam confortáveis pelo fato de verem o nome de seus filhos

reconhecidos pelo Estado. Isso era um conforto para eles (...). Porque a

importância dessa lei para nós é o resgate histórico (...). A importância política

para nós deixou muito a desejar, porque o Estado reconheceu 136 pessoas, as

outras nós tivemos que provar.151

Foram frequentes os debates em relação ao conteúdo da Lei 9.140/1995, que

sofreu emendas nos respectivos anos de 2002 e 2004,152 em que novos casos

puderam ser reconhecidos pelo Estado. No entanto, ainda há problemas no tratamento 150 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 35. 151 Entrevista cedida por Maria Amélia Teles à autora desta tese. 152 Essa questão será abordada na continuidade deste capítulo.

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dado à causa dos desaparecidos pelo Estado: da listagem fornecida ao governo

brasileiro pelos familiares, um número ínfimo de vítimas foram localizados em

consequência da ação dos familiares.

A CEMDP, criada a partir da Lei dos Desaparecidos, vem realizando debates

importantes durante seus 11 anos de atuação no Ministério da Justiça. A seguir, serão

destacados os principais momentos dos trabalhos realizados por essa comissão.

2.3 A atuação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP) Pela primeira vez, após dez anos de retorno à democracia no país, o Estado

brasileiro estabeleceu condições de reparação pelos danos causados pela ditadura

militar, dando início a um longo período de discussões, vitórias, descontentamentos e,

sobretudo, de resgate histórico. A formação da Comissão Especial sobre Mortos e

Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída pela Lei 9.140/1995, representou o ponto

de partida para a reconstrução de fatos recentes da nossa história e, apesar dos limites

impostos por ela, foi possível identificar as falhas, investigar os crimes, apurar

irregularidades e, dessa forma, provar a responsabilidade do Estado nos assassinatos

dos opositores políticos.

A CEMDP iniciou suas atividades logo após a edição dessa Lei, em 9 de

janeiro de 1996.153 Para compor essa Comissão, o presidente Fernando Henrique

Cardoso designou três nomes: Eunice Paiva (viúva do desaparecido político Rubens

Paiva), Miguel Reale Jr. (advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP) e

João Grandino Rodas (consultor jurídico do Itamaraty). A Comissão de Direitos

Humanos da Câmara indicou Nilmário Miranda; das Forças Armadas, seguiu a

indicação do general Oswaldo Gomes; do Ministério Público Federal foi indicado Paulo

153 Durante todo o período, a CEMDP realizou seus trabalhos na sala 621, do prédio anexo ao Ministério da Justiça.

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Gustavo Gonet Branco; e da Comissão de Familiares foi indicado Suzana Keniger

Lisboa.154 De acordo com a Ata de reunião de instalação sobre essa comissão:

Às quinze horas do dia nove de janeiro de 1996, na Sala de Reuniões do 2.

andar do Edifício Sede do Ministério da Justiça, reuniu-se a COMISSÃO

ESPECIAL, criada pela Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995, que reconhece

como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação

de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961

a 15 de agosto de 1979, com a finalidade de proceder ao reconhecimento de

pessoas não relacionadas no anexo I da citada lei, e de pessoas que, face à

situação política, tenham falecido por causa não natural, em dependências

policiais ou assemelhadas; esforços de localização de corpos de pessoas

desaparecidas e emissão de provas sobre requerimentos relativos a

indenizações previstas na referida lei.155

A partir desse momento, coube aos membros da CEMDP examinar caso a

caso os processos e decidir sobre a responsabilidade do Estado mediante as

denúncias apresentadas pelas famílias por meio dos requerimentos, que“foram

distribuídos entre os integrantes que tinham a missão de montar os processos,

anexando documentos e um relatório com explicações sobre as circunstâncias da

morte”.156 O primeiro passo, portanto, para que uma pessoa solicitasse indenização ao

Estado no caso de ter perdido um familiar em decorrência da ação repressiva do

Estado, era a elaboração de um requerimento.

Nesses documentos constava um histórico de vida das vítimas, normalmente

relacionado à militância política e às circunstâncias de sua morte ou desaparecimento.

Além disso, as famílias deviam anexar, sempre que possível, arquivos de jornais,

154 Essa composição da CEMDP seguiu os termos da Lei 9.140/1995, conforme Art. 5º: “Dos sete membros da Comissão, quatro serão escolhidos: I – dentre os membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados; II – dentre as pessoas com vínculo com os familiares das pessoas referidas na lista constante do Anexo I; dentre os membros do Ministério Público Federal; e IV – dentre os integrantes das Forças Armadas. 2. A Comissão Especial poderá ser assessorada por funcionários públicos federais, designados pelo Presidente da República, podendo, ainda, solicitar o auxílio das Secretarias de Justiça dos Estados, mediante convênio com o Ministério da Justiça, se necessário.”. Nessa primeira formação da CEMDP, a advogada Eunice Paiva foi substituída por Luís Francisco da Silva Carvalho Filho. 155 Ata de reunião de instalação, Ministério da Justiça, Gabinete do Ministro, cujo assistente da Comissão Especial foi Cristiano Morini. 156 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 38.

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laudos periciais, depoimentos ou qualquer tipo de prova que pudesse responsabilizar o

Estado nos crimes. Há uma orientação sobre esses requerimentos na ata de reunião

de instalação da CEMDP: “Decidiu-se que os requerimentos deverão conter provas

mínimas que confirmem ou dêem mecanismos para que as diligências possam ser

efetuadas.”.157

Após a reunião de instalação da CEMDP, o governo estabeleceu o prazo de

120 dias para que os familiares apresentassem os requerimentos, portanto, em 15 de

maio de 1996.158 Os requerimentos apresentados a partir dessa data automaticamente

eram indeferidos pela Comissão e não chegaram a ser apreciados,159 fato atribuído à

falha do governo brasileiro no esquema de divulgação sobre a existência da Comissão

Especial no Ministério da Justiça. Não houve nenhuma campanha do governo para

localizar famílias ou divulgar as informações através dos principais meios de

comunicação, como o rádio e a televisão. Isso dificultou muito o acesso às famílias,

ficando, mais uma vez, sob responsabilidade dos representantes da Comissão de

Familiares essa difícil tarefa.

Para o auxílio no trabalho de montagem dos processos, os familiares contaram

com a orientação de Criméia de Almeida, Suzana Lisboa e principalmente, Iara Xavier

Pereira, que forneceu assistência permanente aos familiares durante todo o período de

elaboração dos processos, participando, até mesmo, de exumações e análise de

laudos cadavéricos.

Além dos processos que não puderam ser examinados pela CEMDP, em

virtude do prazo estipulado pelo governo, também ficaram sem apreciação pela

comissão os processos de pessoas mortas ou desaparecidas após o ano de 1979; isso

significa que ficaram fora do período de abrangência da Lei 9.140/1995 os casos de

157 PIOVESAN, 2006. 158 Esse prazo foi estipulado pela Lei 9.140/1995, Art. 7º, “Para fins de reconhecimento de pessoas desaparecidas, não relacionadas no Anexo I desta Lei, os requerimentos, por qualquer das pessoas mencionadas no art. 3º, serão apresentados perante a Comissão Especial, no prazo de cento e vinte dias, contado a partir da data da publicação desta Lei, e serão instruídos com informações e documentos que possam comprovar a pretensão.”. As provas do requerimento poderiam ser anexadas posteriormente. 159 Na ocasião, nove processos foram protocolados fora do prazo, ficando excluídos do exame da CEMDP, são eles: Mirian Lopes Verbena, Manoel José M. N. de Abreu, Gerson Theodoro de Oliveira, Raimundo Nonato da Fonseca, João Roberto Borges de Souza, Nilda Carvalho Cunha, Raul Amaro Nin, David de Souza Meira, Jonas José de Abreu Barros. Para mais informações, ver: MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 634.

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pessoas mortas em manifestações de rua ou fora do país, casos de suicídio e também

de pessoas que foram mortas em locais diferentes das dependências policiais.160

Um dos aspectos mais polêmicos da Lei dos Desaparecidos diz respeito à

expressão “dependências assemelhadas”.161 Na época em que o projeto de lei foi

discutido com as famílias, houve uma batalha muito grande para que essa expressão

fosse incorporada à Lei, no entanto, gerou diversas controvérsias durante o período de

análise dos processos na CEMDP.

A Lei 9.140/1995 prevê, por exemplo, indenização para os casos de pessoas

que “tenham falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou

assemelhadas”162. A Comissão esteve dividida durante vários momentos devido as

diferentes interpretações desse Inciso, o que desencadeou a primeira crise na CEMDP,

no julgamento da Chacina da Lapa, com os dirigentes do PC do B.

Em dezembro de 1976, policiais do DOPS invadiram uma casa no bairro da

Lapa, em São Paulo, local em que aconteciam, frequentemente, reuniões com os

integrantes da Executiva do partido. O resultado da ação foi a execução de Ângelo

Arroyo e Pedro Pomar. Um terceiro integrante, João Baptista Drummond, foi capturado

e morto nas dependências do DOI-CODI. Conforme versão oficial divulgada pelos

órgãos de segurança sobre o episódio:

Morreram ontem, pela manhã, após violento tiroteio com agentes do

Departamento de Operações Internas (DOI) do II Exército, nesta capital. A

operação de cerco à casa, iniciada às 6h50, e o tiroteio duraram 20 minutos,

conforme informações dos moradores da movimentada Rua da Lapa. Os

160 Dos processos indeferidos pela CEMDP: mortos em passeatas – Ivan da Rocha Aguiar, Labid Abduch, Cloves Dias Amorin, Jorge Aprígio de Paula, José Carlos Guimarães, Manoel Rodrigues Ferreira, Orcílio Martins Gonçalves, Benedito Gonçalves; mortos em confronto com a polícia – Arno Preis, Mario de Souza Prata, Antônio de Sérgio Matos, Carlos Schirmer, Antônio Raymundo Lucena; casos de suicídio – Luiz Antônio Santa Bárbara, Iara Iavelberg, Edu Barreto Leite, Antogildo Pascoal Viana; mortos fora do país – Jane Vanini, Túlio Roberto C. Quintilano, Wanio José de Matos, Jorge Alberto Basso; fora do período de abrangência da lei – Lydia Monteiro. Tais processos indeferidos constam no Dossiê dos familiares de mortos e desaparecidos políticos. MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 634. 161 Após inúmeras discussões entre juristas, determinou que “dependência assemelhada” não é um conceito territorial, físico, referente a determinado local, mas, sim, um conceito jurídico-político. Mesmo em caso de guerra, sempre há regras que obrigam o respeito à integridade física dos prisioneiros. Mesmo em um regime ditatorial, os agentes públicos têm o dever de guardar quem está sob sua responsabilidade. Ibidem, p. 17. 162 Lei 9.140/1995, Art. 4º, Inciso I, b.

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agentes de segurança apreenderam no ‘aparelho subversivo’ armas e material

de propaganda política (...).163

Essa versão foi contestada durante o período de análise dos processos, pelos

membros da CEMDP, que alegaram que o conteúdo dessas informações não

correspondiam à realidade dos fatos: Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, porexemplo, foram

mortos em ação repressiva dos órgãos de segurança sem chances de defesa.

Segundo Pomar:

Num primeiro momento, eles não entendem o que acontece, o estrondo, o

reboco caindo. A Arroyo não lhe dão sequer esta chance. Sai do banheiro,

“Que é isso?”, e então é atingido pelas costas com tal impacto que o corpo

parece saltar para a frente. “Que desgraça! Nos pegaram”, grita Pomar.164

Os casos de Ângelo Arroyo, Pedro Pomar e João Baptista Drummond foram

examinados pela CEMDP mediante relatório apresentado por Nilmário Miranda. O

processo de João Baptista Drummond foi julgado de forma unânime pela Comissão,

pois ficou clara a condição de que foi executado nas dependências do DOI-CODI:165

Todos os elementos dos autos, bem analisados, levam à conclusão de que (...)

faleceu nas dependências da prisão onde se encontrava sendo torturado, após

sua detenção, na oportunidade em que realizou operação determinada.166

Já os casos de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar foram aprovados com

dificuldades devido as diferentes opiniões sobre o conceito de “dependências

assemelhadas”.167

163 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 206. 164 POMAR, 2006, p. 18. 165 De acordo com a versão oficial, João Baptista Drummond “teria morrido como resultado de atropelamento por um veículo não identificado. Essa versão fora derrubada posteriormente, onde se comprovou que o militante do PC do B morreu sob torturas no DOI-CODI”. COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 424. 166 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 207-208. 167 Na conclusão dos trabalhos da CEMDP, o processo de Pedro Pomar foi aprovado por 5 contra 2, sendo que os dois votos contra foram de Oswaldo Pereira Gomes e Miguel Reale Jr. No caso de Ângelo Arroyo, o resultado final foi de 4 contra 3, sendo que Oswaldo Gomes Pereira, Eunice Paiva e Miguel Reale Jr., apresentaram voto contra. COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 421-426; MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 205-211.

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Para Eunice Paiva, o general Oswaldo Gomes Pereira e o presidente da Comissão,

Miguel Reale Jr., a casa no bairro da Lapa não parecia com uma dependência policial,

fato que afetou o reconhecimento do caso.

Nilmário Miranda recorda esse momento:

Dona Eunice votou contra o reconhecimento do caso de Ângelo Arroyo

considerando que lá não era uma dependência assemelhada ou policial (...).

Houve uma desavença com os familiares (...). Ela sabia que as pessoas foram

mortas por agentes do Estado, mas achava que ali não era dependência

policial ou assemelhada (....). Ela tinha uma posição jurídica e por honestidade

intelectual e pessoal ela revolveu sair da comissão.168

A expressão “dependência assemelhada” foi motivo de polêmica durante todo o

período de análise dos processos na CEMDP. Sempre que uma vítima era morta por

agentes da repressão fora das dependências policiais ou dos órgãos de segurança

gerava-se, automaticamente, discussão. Ao término da apreciação de cada processo,

os membros da CEMDP votavam, mas como regra geral, o veredicto final não era

decidido por consenso, mas por votação dos representantes da Comissão.

O segundo momento de crise da CEMDP foi pela mesma razão do caso da

Chacina da Lapa, ou seja, quanto ao local em que as vítimas foram mortas pelos

agentes do Estado. O caso de Lamarca e Marighella chamam atenção: “Os envolvidos

na criação da CEMDP e seus integrantes são unânimes em afirmar que o momento de

maior exasperação foi quando se decidiu acatar os pedidos das famílias de Carlos

Lamarca e Carlos Marighella.”.169

Por conta da formação mista da Comissão, sobretudo, com representação das

Forças Armadas, o processo de Carlos Lamarca, examinado juntamente com o de

Carlos Marighella, foi alvo de muitas críticas e teve uma grande repercussão na época,

conforme segue:

O Exército reagiu ontem à possibilidade de o Estado reconhecer a

responsabilidade pela morte do capitão Carlos Lamarca. Nota oficial do

168 Eunice Paiva foi representante da sociedade civil na CEMDP, onde permaneceu até 03/04/1996. Em seu lugar entrou o também advogado Luís Francisco Carvalho Filho. 169 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 40.

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Ministério do Exército refere-se a Lamarca como ‘terrorista’, acusa-o de

‘traição’ e rejeita discutir uma nova versão para a morte, ocorrida em 1971 (...).

O representante das Forças Armadas na comissão, general Oswaldo Gomes,

disse haver intranquilidade quanto à possibilidade de a família de Lamarca

receber a indenização do Estado (...): ‘Os militares estão acompanhando. Eles

não se manifestam porque não podem, mas certamente não gostarão de uma

medida neste sentido.’ (...). Gomes disse que os defensores do

reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte ‘têm finalidade

ideológica de desmoralizar as Forças Armadas’.170

O julgamento desses dois processos foi marcado por um importante debate

nacional sobre o assunto e, a partir desse momento, a CEMDP esteve dividida: para

quatro ou cinco de seus membros,171 a expressão “dependências assemelhadas”

tratava de qualquer forma de custódia do Estado, ou seja, se o Estado estabeleceu

domínio sobre a vítima e ela veio a falecer em decorrência de sua ação, cabia a ele a

responsabilidade sobre essa morte, mesmo em caso de suicídio. O representante do

Ministério Público Federal, Paulo Gonet Branco, e o general Oswaldo Gomes Pereira

discordaram desse entendimento da Lei e votaram a favor da reparação do Estado

somente quando o local se assemelhava a um distrito policial.

Apesar das resistências, os processos de Lamarca e Marighella foram

aprovados pela CEMDP, cedendo espaço para novas discussões sobre o tema dos

mortos e desaparecidos políticos no país.

O assessor administrativo da Comissão, Francisco Helder Macedo Pereira, que

atuou na Comissão entre 1996 e 2004, apontou, entre as principais dificuldades

enfrentadas, a ausência de documentos, devido à impossibilidade de acesso aos

arquivos das Forças Armadas e da Polícia Federal, e também o curto prazo para o

exame dos processos, o que causou muita tensão durante a execução dos trabalhos.

170 MOSSRI, Sônia. Exército reage à indenização por Lamarca. Folha de S.Paulo, São Paulo, Caderno 1, p. 9. 9 jul. 1996. 171 Votaram favoravelmente à indenização nesses casos: Suzana Keniger Lisboa (representante dos familiares), Nilmário Miranda (representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara), Luís Francisco da Silva Carvalho Filho (advogado e representante da sociedade civil), Miguel Reale Jr. (presidente da CEMDP, em grande parte das vezes votou favoravelmente a esse conceito), e João Grandino Rodas (Ministro das Relações Exteriores) em alguns casos votou a favor e em outros contra.

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Os primeiros casos a serem indenizados pela CEMDP foram os dos

desaparecidos políticos que constavam no Anexo I, da Lei 9.140/1995.172

A Comissão prevista na lei não recebeu instrumentos ou plenos poderes para

apuração das circunstâncias dos óbitos, embora adquirisse autoridade para realizar

diligências em busca dos corpos, desde que fossem apresentados indícios pelos

parentes.173

Na sequência, a Lei previa reparação indenizatória às famílias, mediante a

apresentação de requerimento ou atestado de óbito. Havia uma séria questão a ser

resolvida, uma vez que as famílias não dispunham de informações, devido à total

indisponibilidade de acesso aos principais arquivos, e pelo fato de não haver registro

oficial das mortes. Nesses casos, o Ministério da Justiça precisou intervir, solicitando

que os atestados de óbito fossem encaminhados conforme os “termos da lei, a morte

presumida da pessoa em questão”.174O Estado, portanto, reconheceu que todos os

nomes citados no Anexo Ida Lei, eram de pessoas mortas em determinadas

circunstâncias, mediante ação repressiva, e buscou fornecer atestado de óbito às

famílias. Esse fato contribuiu para que muitos familiares pudessem recorrer, por

exemplo, a problemas de heranças e, também, previdenciários.

É de consenso do movimento de familiares e dos representantes da CEMDP a

denominação “desaparecido político”, tratando-se, portanto, daquele cujo o Estado

nega a prisão ou a responsabilidade pela morte e, em consequência, nega informar

sobre seu paradeiro. Portanto, o termo

desaparecido é usado para definir a condição daquelas pessoas que, apesar

de terem sido sequestradas, torturadas e assassinadas pelos órgãos de

repressão, as autoridades governamentais jamais assumiram ou divulgaram

suas prisões e mortes. Foram consideradas pelo Estado pessoas foragidas até

a publicação da Lei 9.140/95.175

O primeiro pagamento indenizatório foi feito em maio de 1996, à família de

José Huberto Bronca, desaparecido do Araguaia. De acordo com a Lei 9.140/1995, as 172 Ver Anexo II, deste trabalho. 173 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 35. 174 Ibidem. 175 TELES, 2000, p.140

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indenizações não ocorriam automaticamente. Os familiares deveriam solicitá-las

através de requerimentos. Na lei, consta “O pedido de indenização poderá ser

formulado até cento e vinte dias a contar da publicação desta Lei. No caso de

reconhecimento pela Comissão Especial, o prazo se conta a partir da data do

reconhecimento.”.176

Vale ressaltar que a Comissão pôde examinar e julgar somente os processos

das pessoas mortas pela ação do Estado, aqueles casos em que foram criadas as

versões oficiais e coube às famílias apresentar documentos probatórios – aqueles que

comprovam a responsabilidade do Estado nos crimes. E os casos dos desaparecidos

foram, automaticamente, reconhecidos pelo Estado, sem que fossem apuradas as

circunstâncias das mortes, portanto, não havia a necessidade de elaboração de

processos por parte das famílias.

Durante o período de apreciação dos processos, houve situações mais difíceis

para a CEMDP, como o julgamento do caso da estilista Zuleika Angel Jones, conhecida

como Zuzu Angel: sua morte ocorreu em um acidente automobilístico à saída do túnel

Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, em 14 de abril de 1976, e ficou a cargo dos familiares a

difícil tarefa de comprovar a responsabilidade do Estado nesse crime.

Desde a morte do filho, Stuart Edgard Angel Jones, em 1971, a estilista sempre

buscou maneiras de denunciar os crimes ocorridos no país durante o regime militar,

atingindo, até mesmo, a esfera internacional, o que incomodou muito os setores mais

conservadores do poder. Zuzu Angel passou a receber ameaças de morte por telefone,

ao ponto de ela dizer aos amigos, com frequência: “Se algo acontecer comigo, se eu

aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos

mesmos assassinos do meu amado filho.”.177

Há várias versões para o acidente. Segundo o laudo pericial,

o carro de Zuzu Angel vinha na pista certa, a uma velocidade de cerca de 100

km/h, ao se aproximar do Viaduto Mestre Manuel, inexplicavelmente, teria

sofrido um desvio à esquerda (...) e percorrido mais de 9 metros até o choque

176 Lei 9.140/1995, Art. 10, Parágrafo 1. No caso dos desaparecidos políticos, a partir da data publicação da Lei, os familiares poderiam solicitar indenização ao Estado. 177 Trecho da carta escrita por Zuzu Angel a Chico Buarque, em 23/04/1975. Consta em: COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 35.

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da parte esquerda da frente do carro com a mureta do viaduto e o capotado

sucessivas vezes até a parada 6, 40 metros abaixo, na Estrada da Gávea.178

Seu processo foi aprovado pela CEMDP, em 25 de março de 1998, mas, em

um primeiro momento, o relator do caso, Luís Francisco Carvalho Filho, recomendou o

indeferimento. Na ocasião, houve apenas dois votos a favor, o que obrigou a família a

pedir revisão do processo, para que novas provas fossem incorporadas.179 A partir de

então, foram anexados novos dados, tais como, depoimentos e a exumação dos restos

mortais, realizada pela Equipe Argentina de Antropologia Forense.180

O exame do caso de Zuzu Angel foi marcado por inúmeras contradições nas

informações levantadas e nos depoimentos prestados. Em fevereiro de 1998, se iniciou

uma nova fase de apreciação do processo. O testemunho de Marcos Pires, por

exemplo, contradizia as informações do laudo pericial da polícia e apresentou uma

nova versão para o caso: “Estava à janela do seu apartamento no Edifício Tiberius

quando viu um carro, em alta velocidade, ultrapassar pela esquerda e forçar o carro,

que depois soube ser, de Zuzu Angel, ao sair da estrada, tombando na Estrada da

Gávea.”.181

O laudo técnico dos peritos Valdir Florenzo e Raphael Martello Filho também

contesta a versão da polícia:

o carro, ao chocar-se com o meio-fio, se projetaria dali e não a 9 metros depois

de bater na mureta do Viaduto Mestre Manuel (conforme versão oficial). Ainda

que desviasse, apenas para efeito de raciocínio, para que o carro chocasse

seu lado dianteiro esquerdo contra a mureta do viaduto, teria de ir com as

rodas do lado direito no ar.182

178 Ver detalhes em: MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 591-597. 179 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 592. 180 Prestaram depoimento à CEMDP, nesse segundo momento de investigação do caso Zuzu Angel: Carlos Machado Medeiros (testemunhou que dois carros colidiram com o carro de Zuzu na estrada); a psiquiatra Germana Lamare (a quem Zuzu confidenciou estar sendo ameaçada); e Marcos Pires (também testemunha do acidente). Dois peritos de trânsito, Valdir Florenzo e Ventura Raphael Martello, analisaram os documentos policiais. 181 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 594. 182 Ibidem, p. 591-597.

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A CEMDP esteve prestes a arquivar o recurso da família devido aos intensos

debates no exame do processo. As dificuldades em derrubar as versões oficiais e o

fato da estilista ter morrido dirigindo seu próprio carro em uma estrada, ou seja, em um

local que não se assemelha a uma dependência policial, favoreceram os votos

contrários de Oswaldo Gomes Pereira, João Grandino Rodas e Paulo Gonet Branco.

Nesse caso, a hipótese de atentado não foi descartada pelos representantes da

Comissão, mas não pôde ser enquadrada nos parâmetros da Lei 9. 140/1995.

O relator, Luís Francisco da Silva Carvalho Filho, pôde reavaliar sua posição

mediante a apresentação de novos dados, e votou a favor da indenização: “Não estava

detida em estabelecimento prisional, contudo, a rede de indícios demonstrava que seu

veículo foi interceptado e ela, em consequência, eliminada (...). Zuzu Angel estava na

esfera de domínio dos autores do delito.”.183 Suzana Lisboa e Nilmário Miranda

também votaram favoravelmente. Estabelecido o empate, o presidente da CEMDP,

Miguel Reale Jr., decidiu pôr fim ao caso, votando a favor do reconhecimento do

Estado na morte de Zuzu Angel, o que representou uma grande vitória para as famílias.

A Ata da XXV Reunião Ordinária descreve o julgamento desse caso:

Dando prosseguimento à sessão, o conselheiro LUÍS FRANCISCO

CARVALHO FILHO solicitou para análise de pedido de reconsideração do caso

ZULEIKA ANGEL JONES, a leitura de parecer técnico elaborado pelos peritos

(...) bem como a exibição de vídeo demonstrativo da dinâmica do acidente que

causou a morte de Zuleika, feita a partir do parecer dos peritos, pelo

especialista em vídeo animação DANILO N. NUNES. Com base nos fatos

trazidos pelo parecer dos peritos, o conselheiro LUÍS FRANCISCO

CARVALHO FILHO votou pelo deferimento do pedido de reconsideração (...) A

pedido do conselheiro OSWALDO PEREIRA GOMES, faço constar em ata seu

voto pelo indeferimento do pedido de reconsideração: ‘não havia cerco, nem

tampouco domínio. A Constituição Federal assegura a integridade física e

moral do preso, que é a base da Lei 9.140/95. Como não houve prisão, nem

cerco, acredito não ser competência desta Comissão o julgamento do caso em

tela’ (...) Passada a palavra ao conselheiro NILMÁRIO MIRANDA, o mesmo

acompanhou o voto do relator pelo deferimento do pedido de reconsideração

(...) A pedido do conselheiro JOÃO GRANDINO RODAS, faço constar em ata

183 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 591-597.

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sua manifestação de voto: ‘Voto contrariamente ao relator por considerar que a

estrita tipificação da Lei não permite que se considere as possíveis

circunstâncias desse abalroamento como dependência policial ou

assemelhada’. Em obediência ao artigo 5. da Lei 9.140/95, o presidente

MIGUEL REALE JÚNIOR votou pelo deferimento do pedido de reconsideração

(...) acreditando se tratar de atentado a pessoa de ZULEIKA ANGEL JONES,

que vinha sendo perseguida, estando portanto sob domínio (...).184

Em grande parte das vezes, a CEMDP atuou a favor do reconhecimento do

Estado no que diz respeito aos processos apresentados pelas famílias, sendo que

esses processos já constavam no “Dossiê dos familiares de mortos e desaparecidos” a

partir de 1964. Mas também houve muitos casos indeferidos, conforme Anexo V.

Geralmente, esses processos não eram aprovados pela Comissão quando a família

não conseguia reunir provas em tempo hábil para que fossem julgados. O prazo de 120

dias, estipulado pelo governo após a promulgação da Lei, contribuiu, muitas vezes,

para isso, além dos casos de pessoas mortas em manifestações públicas e suicídio

decorrente da ação repressiva do Estado, conforme já citado neste capítulo.

Para esses processos, houve a possibilidade de uma nova apreciação pela

CEMDP, a partir do ano de 2002, quando ocorreram mudanças na Lei 9.140/1995 que

permitiram que os casos até então indeferidos fossem mais uma vez examinados. Na

fase inicial dos trabalhos, foram protocolados pela CEMDP 373 processos,

relacionados a 366 pessoas,185 sendo 132 desaparecidos políticos de acordo com o

Anexo I.186 Dos 234 restantes a serem analisados, 166 já constavam no Dossiê dos

familiares, e 68 casos eram novos. Até a reunião do dia 05 de maio de 1998, dos 166

processos de vítimas relacionadas no Dossiê, 130 foram aprovados e 16 indeferidos.

184 Trecho da ATA DA XXV Reunião Ordinária da CEMDP, de 25 de março de 1998, cujo assistente foi Rodrigo MazoniCúrcio Ribeiro. 185 “A diferença numérica ocorreu pela duplicidade de pedidos ou pela existência de processos repetidos, quando duas pessoas solicitavam indenização pela mesma vítima, ou uma única pessoa solicitava duas ou mais indenizações porque em sua família havia mais de uma vítima.” COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 40. 186 De acordo com o Dossiê de familiares de mortos e desaparecidos, dos 136 desaparecidos políticos, Joaquinzão, Pedro Carretel e Antônio Alfaiate não foram incluídos no Anexo I, da Lei 9.140/1995, pois seus verdadeiros nomes não eram conhecidos, e Manoel Alexandrino teve morte natural.

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Dos 68 novos casos, 18 foram aprovados e 50 indeferidos.187 O Quadro 2.1 representa

esses resultados.

Quadro 2.1 – Total de processos apreciados pela CEMDP

Situação dos

processos

Processo do

dossiê

Processos novos

que constam do

dossiê

Total

Aprovados 130 18 148

Indeferidos 36 50 86

Total 166 68 234

Fonte: MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, Anexo II, p. 633.

Conforme previsto na Lei, as indenizações às famílias foram concedidas após o

parecer favorável da CEMDP e o decreto do Presidente da República publicado no

Diário Oficial da União. Em todas as publicações constavam o número do decreto, a

data e a lista dos nomes dos mortos ou desaparecidos, juntamente com o nome dos

familiares beneficiários e os respectivos valores a serem pagos pelo governo com o

seguinte registro: “Concede indenização à família de pessoa desaparecida ou morta

em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas, no

período de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.”.188

O valor dessas indenizações foi calculado mediante a expectativa de vida de

cada um dos mortos e desaparecidos políticos,189 conforme mostra o Quadro 2.2:

187 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, Anexo II, p. 633. 188Diário Oficial, 16 out. 1996, no qual foram publicados os nomes dos familiares que receberam indenização do Estado. 189 De acordo com o Art.11, da Lei 9.140/1995, “A indenização, a título reparatório, consistirá no pagamento de valor único igual a R$ 3.000,00 (três mil reais) multiplicado pelo número de anos correspondente à expectativa de sobrevivência do desaparecido, levando-se em consideração a idade na época do desaparecimento e os critérios e valores traduzidos na tabela constante do Anexo II da Lei”. O piso para o pagamento das indenizações foi fixado de acordo com a Lei emR$ 100.000,00 (cem mil reais). A maior indenização paga pelo governo brasileiro foi de R$ 152.250,00, aos familiares de Nilda Carvalho Cunha, assassinada em 14/11/1971 com 17 anos de idade.

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Quadro 2.2 – Tabela de cálculo de indenização (Art. 5º)

Idade na data do

desaparecimento

Expectativa média de

sobrevivência

Homens Mulheres

16-20 45,74 50,75

21-25 41,37 46,1

26-30 37,12 41,53

31-35 32,96 37,06

36-40 28,93 32,7

41-45 25,06 28,48

46-50 21,37 24,38

51-55 17,9 20,45

56-60 14,66 16,73

61-65 11,67 13,27

Fonte: Anexo II, da Lei 9.140/1995.

As indenizações concedidas às famílias pelo governo não foi o aspecto mais

importante do processo de reparação do Estado. Segundo Miguel Reale Jr.: “o

pagamento da indenização é a fase final; no entanto, mais importante do que o

pagamento da indenização, mais importante para as famílias (...) é verificar que há um

refazimento da verdade”.

A CEMDP concluiu, no final de 2006, um longo período de atuação de 11 anos,

no qual puderam ser analisados vários processos. Durante esse tempo, foram

realizadas investigações que permitiram apurar as circunstâncias das mortes de muitas

vítimas da ditadura militar, possibilitando a descoberta de fatos reais e, ainda, o Estado

reconhecer a responsabilidade pelos seus atos criminosos durante a ditadura militar.

Para os familiares, essa foi a principal reparação.

A partir de 2002, a Lei 9.140/1995 passou por alterações que permitiram a

ampliação dos trabalhos da CEMDP e, consequentemente, facilitaram o acesso de

outras famílias às indenizações do governo.

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2.4 As mudanças na Lei 9.140/1995 e o direito de acesso aos arquivos das Forças Armadas

A Lei 9.140/1995 e a atuação da CEMDP do Ministério da Justiça tiveram um

papel importante para a democracia no País, pois permitiram que os acontecimentos

durante os 21 anos de ditadura militar pudessem ser amplamente debatidos por

diversos setores da sociedade civil, e a história pudesse ser revista com o

esclarecimento dos crimes realizados pelos órgãos de repressão política.

O atual presidente da CEMDP, Marco Antônio Rodrigues Barbosa,190 considera

a importância dessa Lei:

A Lei n. 9.140, de 4 de dezembro de 1995, foi um passo fundamental para a

história dos direitos humanos no Brasil. Tão importante como a Lei da Anistia,

de 1979. Em certo sentido, constituiu passo mais à frente (...) A Lei n. 9.140

reconheceu os crimes praticados pela ditadura militar e seus métodos. É a

primeira lei a falar em desaparecidos políticos. Pela primeira vez, o Estado

curvou-se ao trabalho feito pelos Familiares de Mortos e Desaparecidos, e

transformou o Dossiê dos Familiares no Anexo 1 da Lei. Ou seja, o Estado

reconheceu como mortos todos os desaparecidos políticos arrolados pelos

familiares. É o reconhecimento de que a administração anterior do Estado

havia procedido com violação à lei e à Constituição. Daí o pagamento das

indenizações, pelo reconhecimento da responsabilidade (...) A lei era

suficientemente ampla para permitir - como permitiu - reconhecer a

responsabilidade do Estado em mortes em enfrentamentos forjados ou

atropelamentos inventados (...).191

Mesmo após o avanço que essa Lei permitiu, os familiares permaneceram na

luta para que outras questões essenciais fossem esclarecidas pelo governo brasileiro,

entre elas, as informações sobre os desaparecidos. Ainda não foram esclarecidas, por

exemplo, as condições em que foram mortos os guerrilheiros do Araguaia, todos

190 Marco Antônio Rodrigues Barbosa é o atual presidente da CEMDP. Presidiu a Comissão de Justiça e Paz em São Paulo, e o Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (CONDEP). Foi um dos responsáveis pela elaboração do processo de Carlos Marighella, muito antes de se tornar presidente da Comissão. Concedeu entrevista à autora desta tese. 191 Entrevista de Marco Antônio Rodrigues Barbosa.

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desaparecidos. Seus restos mortais ainda não foram devolvidos às famílias, o que

dificulta a proposta de reconciliação com a sociedade prevista desde a Lei da Anistia.

Segundo Marco Antônio Rodrigues é“difícil falar em pacificação, quando a verdade e a

justiça sobre o período da ditadura militar ainda não foram suficientemente

restabelecidas.”.192

Somente em 2002, ainda na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso,

ocorreu a primeira alteração na Lei dos Desaparecidos, após uma série de

reivindicações da Comissão de Familiares. Mudanças necessárias e previstas desde a

elaboração do projeto anterior a essa Lei. Portanto, a Lei 10.536/2002193 alterou os

dispositivos da Lei 9.140/1995, ampliando o período de abrangência de 15 de agosto

de 1979 para 05 de outubro de 1988, e permitiu, ainda, reabrir o prazo para a

apresentação dos requerimentos das famílias em 120 dias, a partir da data de sua

publicação no Diário Oficial, possibilitando o reconhecimento da responsabilidade do

Estado em casos que foram indeferidos anteriormente.

A posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, reacendeu as

esperanças dos familiares: “A expectativa em torno do tema é grande. Muitos dos

desaparecidos eram pessoas próximas a Lula e a outros petistas que hoje estão no

primeiro escalão do governo”.194 Ao mesmo tempo, houve uma efetiva cobrança por

parte do movimento das famílias para que fossem feitas mudanças imediatas na Lei

dos Desaparecidos.

A primeira ação de repercussão de Lula referente às vítimas da ditadura militar

foi anunciada no primeiro ano de seu governo, com a formação de uma Comissão

Interministerial para apurar as mortes na Guerrilha do Araguaia. Essa Comissão foi

criada para responder aos protestos que se seguiram ao recurso impetrado pelo

governo contra a determinação da juíza Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça

Federal, de quebrar o sigilo dos arquivos militares e a imediata localização dos

desaparecidos no conflito do Araguaia. Essa ação movida pelos familiares para a União

192 Idem. 193 Lei n. 10.536, de 14 de agosto de 2002, decretada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. 194 CHRISTOFOLETTI, Lílian; DANTASGO, Iuri. Lula sofre pressão por lei dos desaparecidos – Lei atual só considera vítima quem morreu em dependências policiais no regime militar; famílias querem ampliá-la. Folha de S.Paulo, Caderno A-6, 24 mar. 2003.

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tramitava desde 1982 – conforme já citado anteriormente – em que foram apresentadas

provas de que os militantes do PC do B haviam desaparecido naquela região.195

A representante da Comissão de Familiares, Laura Petit da Silva, descreve a

importância dessa ação para os parentes:

Em 20 de junho, passados 21 anos, a juíza deu a sentença de que a União

deveria localizar os corpos e devolver às famílias para que houvesse

sepultamento digno, chamar para depor pessoas que estivessem envolvidas

(...). Porque nós ficamos muito contentes, a primeira juíza da história, um fato

histórico. Uma juíza diz 120 dias para o governo ter que dar conta, uma

satisfação para essa ação – é direito das famílias, eles tem o direito de saber

(...).196

O governo brasileiro, no entanto, recorreu da sentença: a União entrou com um

recurso parcial contra a ação dos familiares alegando que a juíza Solange Salgado

extrapolou as solicitações feitas pelos familiares na época da ditadura militar.197 Laura

Petit da Silva, porém, explica:

Porque na época nós não pedimos que ouvissem os responsáveis. Seria

colocar os militares para dar esclarecimentos, abrir os arquivos para saber o

que realmente aconteceu (...). A própria evolução histórica não tinha apontado

esse caminho que se faz necessário (...). Para nós foi uma decepção. Nós

estávamos esperando que este governo não colocasse nenhum empecilho

para que a ação dos familiares tivesse sucesso (...)..198

195 Foram autores dessa ação para a União, na época: sra. Helena Pereira dos Santos (mãe de Miguel Pereira dos Santos), sra. Alzira Costa Reis (mãe de André Grabois e esposa de Maurício Grabois), a sra.Cyrene Moroni Barroso (mãe de Jana Moroni Barroso), entre outros, em um total de 22 famílias. Essas três mães já faleceram. Laura Petit da Silva, representante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, concedeu entrevista à autora desta tese em fevereiro de 2008. 196 Laura Petit da Silva é representante da Comissão de Familiares, irmã de Maria Lúcia Petit, Jaime Petit da Silva e Lúcio Petit da Silva, que estiveram no conflito na região do Araguaia e constam na lista do Anexo I, da Lei 9.140/1995. Somente Maria Lúcia teve seus restos mortais localizados e identificados, enquanto Lúcio e Jaime permanecem desaparecidos. 197 O objetivo da ação movida pelos familiares, em 1982, era a localização dos guerrilheiros mortos na Guerrilha do Araguaia. Ver: COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 43. 198 Entrevista com Laura Petit da Silva, em fevereiro de 2008.

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Em seguida a essa ação do governo, foi criada a Comissão Interministerial,

instituída pelo Decreto n. 4.850, de 2 de outubro de 2003, com a função de buscar

informações que levassem à localização dos restos mortais dos participantes da

guerrilha. Essa Comissão foi composta dos seguintes membros: os ministros Márcio

Thomas Bastos (Justiça), José Viegas (Defesa) e José Dirceu (Casa Civil); do

advogado-geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, e do ministro da Secretaria

Especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda. Os trabalhos dessa Comissão foram

acompanhados pelos representantes das Forças Armadas: o almirante Roberto de

Guimarães Carvalho, o general do Exército Francisco Roberto de Albuquerque e o

tenente-brigadeiro Luiz Carlos da Silva Bueno.

Na ocasião, representantes dos familiares acusaram o governo de tirar poderes

da CEMDP por ter criado a Comissão Interministerial, e de não cumprirem a promessa

de abrir os arquivos pertencentes às Forças Armadas. Esse fato ocasionou a saída de

Suzana Lisboa da CEMDP,199 e de representante dos familiares, para quem

o governo Lula esvaziou a comissão. O pouco que tínhamos foi tirado. Dessa

forma, o governo tirou os poderes da CEMDP, que ficou capenga. O grupo

interministerial procedeu as buscas das ossadas e nós nem ficamos sabendo o

resultado disso. Nós não tivemos acesso a nenhuma informação que eles

produziram, o relatório sobre as buscas no Araguaia”.200

Ainda em 2003, com a saída de Nilmário Miranda para assumir a pasta da

Secretaria de Direitos Humanos do governo de Lula, a deputada federal pelo Rio

Grande do Sul, Maria do Rosário, passa a integrar a CEMDP como a representante da

Câmara Federal. Com sua entrada, houve um trabalho de articulação realizado para

que novas mudanças fossem feitas na Lei 9.140/1995. Essas articulações resultaram

na Medida Provisória 176/2004, que antecedeu a Lei 10.875/2004,201 que estabeleceu

199 Suzana Lisboa permaneceu na CEMDP durante praticamente 10 anos (1996-2005). Sua saída foi anunciada em 02/08/2005, após dois anos da criação da Comissão Interministerial do governo Lula. 200 Entrevista da representante dos familiares na CEMDP, Suzana Lisboa. Ver: Suzana Lisboa decide abandonar a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/jornal/pais> . Acesso em: 03 maio 2006. 201 Lei 10.875, de 1º de junho de 2004, decretada pelo Senador José Sarney, então Presidente da Mesa do Congresso Nacional.

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condições para o reconhecimento da responsabilidade do Estado nos casos de

pessoas mortas em

repressão policial sofrida em manifestações públicas ou conflitos armados com

agentes do poder público (...) e os suicídios cometidos na iminência de serem

presas ou em decorrência de sequelas psicológicas resultantes de atos de

tortura praticados por agentes do poder público.

Dessa forma, ampliou-se a possibilidade de novos casos serem examinados

pela CEMDP e, ainda, que aqueles que foram em um primeiro momento indeferidos,

fossem novamente apreciados. Um desses casos foi o processo de Iara Iavelberg.

De acordo com a versão oficial divulgada pelos órgãos de repressão da época,

Iara Iavelberg se suicidou após cerco policial no apartamento onde morava em

Salvador, na Bahia. Há várias contradições em relação às circunstâncias de sua morte:

O Relatório do Ministério da Marinha diz que ela foi morta em Salvador/BA, em

ação de segurança, o relatório do Ministério da Aeronáutica diz que ‘suicidou-

se’ em Salvador/BA, em 6 de agosto de 1971, no interior de uma residência,

quando foi cercada pela polícia.202

Durante os trabalhos da CEMDP, muito se pesquisou para obter informações

concretas relativas à morte de Iara e provas para responsabilizar. No relatório

apresentado, porém, consta que não há registros de documentos referentes à Iara no

IML de Salvador.203 O processo referente a seu caso foi julgado na última reunião, em

05 de maio de 1998, para que fossem reunidas provas suficientes para garantir sua

aprovação.

A morte de Iara é mencionada no Relatório da Operação Pajussara,– operação

cujo principal objetivo era capturar Carlos Lamarca –, elaborado pelo Exército,

conforme trecho a seguir: 202 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 405. 203 Segundo Parecer Criminalístico da Polícia do Distrito Federal – Coordenação de Polícia Técnica do Instituto de Criminalística, Folha 2/8, assinado por Celso Menevê (perito criminal e assessor da CEMDP), “no processo de Iara Iavelberg, não consta o Laudo de necropsia e sim cópias reprográficas de anotações manuscritas, em formulários do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, da Secretaria de Segurança do Estado da Bahia.”.

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Fruto de intensas buscas de informe e após várias tentativas sem sucesso,

graças à persistência e ao trabalho meticuloso realizado, foi levantado o

endereço do apartamento da Rua Minas Gerais, n. 125/201 –- Pituba (...). No

dia 19 de agosto de 1971, foi montada uma operação pelo CODI/6 para

estourar este aparelho, o que ocorreu ao amanhecer do dia 20, resultando na

prisão de Jaileno Sampaio Filho, Raimundo, Orlando e de Nilda Carvalho

Cunha, Adriana. Iara Iavelberg a fim de evitar sua prisão e sofrendo a ação dos

gases lacrimogêneos, suicidou-se (...).204

No ano de 1998, durante o período dos trabalhos da CEMDP, o jornal Correio

Brasiliense publicou reportagem com o título “As mortes de Iara”,205 na qual há

depoimentos de moradores que testemunharam o cerco policial realizado no prédio

onde Iara morava. Através desses depoimentos, constatou-se que foram disparados

vários tiros no local em que foi capturada, contradizendo a versão oficial sobre o caso,

que menciona apenas um disparo.

A versão do suicídio permaneceu durante muito tempo como verdadeira, e,

ainda hoje, não foi totalmente esclarecida. Nilmário Miranda também ouviu os

moradores daquele prédio e sobre isso comenta:

Após minha viagem a Salvador e do trabalho de reportagem de Ana Julia

Pinheiro para o Correio Brasiliense, vários fatos novos obrigam-nos a

questionar a versão do suicídio. (...) Não é possível saber o que realmente

aconteceu. Os documentos relativos à morte de Iara – sobretudo o laudo

necroscópico – não foram entregues a família e à Comissão Especial..206

Pela ausência de provas concretas, o processo de Iara foi indeferido pela

CEMDP, em 05 de maio de 1998. Suzana Lisboa apresentou voto favorável, junto com

Nilmário Miranda. O general Oswaldo Gomes manifestou por escrito o indeferimento do

processo. João Grandino Rodas, Paulo Gonet Branco e Luís Francisco da Silva

Carvalho Filho também votaram pelo indeferimento do processo. O presidente da 204 MINISTÉRIO do Exército. Suicídio de Iara Iavelberg. Relatório Da Operação Pajussara. Brasília, IV Exército, 6ª Região Militar, 2ª Seção, 1971. p. 2. 205PINHEIRO, Ana Júlia.As mortes de Iara. A guerrilheira do MR-8 cometeu suicídio ou foi assassinada? Novos depoimentos e exames dos restos mortais podem esclarecer o caso.Correio Brasiliense, Brasília, p. 10, 18 mar. 1998. 206 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 406.

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CEMDP, Miguel Reale Jr., votou a favor e usou como argumento que “não havia cerco,

existiam policiais jogando bombas, há testemunhas de que Iara teria se rendido, não

houve confronto e ela pode ter sido induzida ao suicídio”.207 Na ocasião, o processo foi

indeferido por quatro votos a três.208

No segundo relatório sobre o caso de Iara, elaborado por Suzana Lisboa,

consta:

A Lei 9.140/1995 foi promulgada na busca da pacificação, na busca de corrigir

os desmandos do Estado. E esta Comissão Especial já examinou mais de 100

casos de versões oficiais falsas, muitos deles de suicídios. Falsa pode ser

também essa versão, mas se provas não há, por ora, é inegável que a morte

de Iara está perfeitamente enquadrada dentre os preceitos da Lei 9.140/1995,

morta que foi sob a guarda do Estado, em cerco indiscutível, e por causa não

natural (...).209

Com a ampliação da Lei dos Desaparecidos, o caso de Iara pôde ser novamente

examinado. Seu processo foi aprovado pela CEMDP em 1º de dezembro de 2004,

após ter sido enquadrado nos critérios da lei que prevê indenização para os casos de

suicídio.210 Durante a reapresentação desse caso, seus familiares tentaram derrubar a

versão de suicídio e, após várias ações judiciais, em setembro de 2003, conseguiram,

com o apoio do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que fosse realizada a exumação

do corpo da militante: “Na medida em que o Poder Judiciário curvou-se aos

argumentos jurídicos ressaltando as inúmeras contradições presentes na versão oficial

dos órgãos de segurança, bem como no suspeito desaparecimento de laudos

referentes a sua morte.”211

Apesar dos esforços dos familiares e da tentativa de alguns membros da

CEMDP, as circunstâncias da morte de Iara continuam indefinidas. A CEMDP aprovou,

207 MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 406. 208 O requerimento apresentado pela família à CEMDP está em nome de Raul Iavelberg. 209 Relatório sobre o caso Iara Iavelberg, apresentado à CEMDP, em 02 de dezembro de 1997, lavrado por Suzana Lisboa. 210Outros casos de suicídio foram acatados pela CEMDP, após ampliação da Lei 9. 140/1995, como os de Luís Antônio Santa Barba, Frei Tito de Alencar Lima e Gustavo Buarque Schiller. 211 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 174.

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na segunda votação realizada em 2004, por unanimidade, a responsabilidade do

Estado pela sua morte; no entanto, a versão de suicídio permanece.

As ações do governo Lula para dar solução à questão dos mortos e

desaparecidos no País, mesmo após a ampliação da Lei dos Desaparecidos, não

foram suficientes para estabelecer um clima favorável com os familiares. As queixas

são muitas e a discussão mais recente trata da liberação dos arquivos das Forças

Armadas. Há expectativas de que, nesses arquivos, constem informações sobre os

desaparecidos, sobretudo, os da Guerrilha do Araguaia.

No mês de maio de 2005, o presidente Lula sancionou a Lei 11.111, decorrente

da Medida Provisória 228/2004, estabelecendo que os documentos cujo sigilo é

“imprescindível” à “segurança da sociedade e do Estado” possam ficar indefinidamente

vetados à consulta, e atribui, ainda, “a formação de uma Comissão de Averiguação e

Análise de Informações Sigilosas, o poder de administrar os documentos

ultrassecretos”.212

Essa ação do governo suscitou diversas reações na sociedade, principalmente,

para os movimentos organizados interessados na questão. Com amparo da Lei

11.111/2005, o governo brasileiro passou a determinar quando e quais documentos

podem ser liberados para a consulta, garantindo, portanto, o sigilo eterno desses

documentos.

A polêmica sobre a abertura dos arquivos das Forças Armadas teve início em 17

de outubro de 2004, quando o jornal Correio Brasiliense publicou fotos que seriam do

jornalista Wladimir Herzog durante sua passagem no DOI-CODI no dia em que teria

sido assassinado.213 A única foto divulgada até então mostrava o jornalista pendurado

pelo pescoço por uma corda em uma cela, fotografia suspeita de forjar um suicídio e

acobertar a morte causada por torturas nas dependências do órgão de segurança.

Embora não tenha tido a confirmação de que as fotos sejam realmente de Herzog,

esse fato serviu de alerta sobre a existência de arquivos do período militar.

212 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 44. 213 “As fotografias estavam em posse do cabo José Alves Firmino, ex-araponga do serviço do Exército, que disse ter tido acesso a documentos reservados do Exército – que, em geral, sempre negou a existência de arquivos secretos”. MOREIRA, João Carlos. Os arquivos da ditadura devem ser abertos – fotos reviveram a polêmica. Diário de S. Paulo, São Paulo, p. A-11, 21 nov. 2004.

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Cerca de um mês após a publicação na imprensa das supostas fotos de

Wladimir Herzog, o juiz federal Paulo Alberto Jorge destacou a importância de abertura

desses arquivos para a sociedade. Para ele, essa ação “não fere ou põe em risco a

sociedade e o Estado e, por isso, os arquivos não estariam sujeitos ao sigilo legal.”.214

A primeira grande manifestação organizada nesse período ocorreu no dia 28 de

abril de 2005, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), menos de

um mês antes de a Lei ser sancionada pelo presidente Lula. O Ato “Desarquivando o

Brasil” foi realizado no Tuca Arena, onde mais de 350 pessoas puderam acompanhar a

discussão sobre o assunto:215 “O grande objetivo do debate era trazer a público a

discussão sobre a manutenção do ‘sigilo eterno’ referente aos documentos dos

arquivos da ditadura militar em todas as suas dimensões, sob o ponto de vista jurídico,

histórico, dos familiares, entre outros.”216

Em dezembro de 2005, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,

anunciou, por determinação do governo federal, a transferência dos arquivos,

então em poder da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), para o Arquivo

Nacional, na sede de Brasília.

O material pertencia ao Serviço Nacional (SNI), pelo Conselho de Segurança

Nacional (CSN) e pela Comissão Geral de Investigação (CGI), no período de 1964 e

1990. Foram transportados 13 arquivos de aço, com fotos, cartazes, filmes, livros,

panfletos e revistas, 220 mil microfichas, além de 1.259 caixas-arquivo.217

Mediante a criação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações

Sigilosas,218 as decisões sobre os arquivos públicos foram concentradas “nas mãos”do

214 MOREIRA, 2004, p. A-11. 215 O evento aconteceu sob coordenação do Prof. Dr. Maurício Broinizi Pereira (História/PUC-SP), com a participação de Criméia de Almeida, ex-guerrilheira e membro da Comissão de Familiares; Jacob Gorender, historiador; Hélio Bicudo, jurista; Marlon Weichert, Procurador Regional da República; e do Prof. Dr. Marcelo Ridenti, sociólogo da Unicamp. 216 O debate e a reflexão sobre o sigilo. Movimento Desarquivando o Brasil, Boletim n. 1, jul. 2005. Disponível em: <http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_desarquivando.html>. Acesso em: 03 maio 2006. 217 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 44. 218 A Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas é composta pelos seguintes representantes: Chefe da Casa Civil e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Ministros da Defesa e das Relações Exteriores, Advogado-Geral da União e Secretário Especial de Direitos Humanos. Pela Abertura dos arquivos públicos. Moção da Associação Nacional de

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poder Executivo, e, dessa forma, a manutenção do sigilo ficou sob a tutela exclusiva

dos representantes do governo. Cabe a essa Comissão o poder de administrar os

documentos ultrassecretos e, ainda, determinar o prazo para sua liberação.219

Ao inviabilizar o acesso aos arquivos,o governo brasileiro impossibilitou o direito

de acesso à informação, previstos na Constituição Federal.220 A atual presidente da

Comissão de Familiares e Mortos e Desaparecidos Políticos, Diva Santana, acredita

que informações de interesse dos familiares possam estar na ABIN, conforme trecho a

seguir:

A grande dificuldade é saber a verdade. Continuamos batalhando pela abertura

dos arquivos das Forças Armadas. Na minha opinião, pouca coisa dos arquivos

que foram gerados em todo o período do regime militar estava na ABIN. Ali

estavam arquivos de informações. Não são os processos nem os inquéritos,

nos quais se descrevem as prisões, torturas e mortes. Para esclarecer os

casos, se faz necessário abrir todos os arquivos das Forças Armadas. E esses

arquivos estão aí. Volta e meia nos deparamos com declarações públicas e

com livros feitos com informações de militares. Portanto, os arquivos das

Forças Armadas existem (...).221

História – ANPUH, 21 jul 2005. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/lastro/sociologia/memorial/serieaber.htm>. Acesso em nov. 2014. 219 “Com a Lei dos Arquivos (Lei 8.159/1991), que ratificou os dispositivos constitucionais relacionados com o direito de acesso pleno aos documentos, ficaram estabelecidas as categorias e fixados os prazos máximos de sigilo aplicáveis aos órgãos públicos: 30 anos, prorrogáveis uma única vez por igual período, para os documentos que afetam a segurança da sociedade e do Estado; e 100 anos, para aqueles que afetam a intimidade da pessoa (...). A responsabilidade pela política nacional de arquivos foi atribuída a um Conselho vinculado ao Arquivo Nacional (...). Onze anos depois, o Decreto n. 4533, de 27 de dezembro de 2002, disciplinou a tramitação, a guarda e a publicidade de documentos sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da administração pública federal, fixando gradações (ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados) e prazos de classificação para cada categoria (50, 30, 20 e 10 anos respectivamente) (...). A medida provisória n. 228 do presidente Lula, em 2004, anunciou algumas modificações em relação ao direito de acesso a esses documentos (...) os prazos de restrição dos documentos ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados baixaram para 30, 20, 10 e 5 anos respectivamente, com um única prorrogação por idêntico período (...)”. Pela Abertura dos arquivos públicos. Moção da Associação Nacional de História – ANPUH, 21 jul 2005. Disponível em:<http://www.cfh.ufsc.br/lastro/sociologia/memorial/serieaber.htm> . Acesso em nov. 2014. 220 Conforme Constituição Federal de 1988, art. 5º, incisos XIV e XXXIII. 221 Trecho da entrevista concedida por Diva Santana para Carta Maior, 2 fev. 2006. Ver: Pouca coisa dos arquivos da ditadura estava na Abin. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/lastro/sociologia/memorial/entrev.htm>. Acesso em nov. 2014. Diva Santana é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e atual representante dos familiares na CEMDP desde 06/05/2005. Sua irmã, Dinaelza Santana Coqueiro, e a cunhada, Vandick Coqueiro, são desaparecidas da Guerrilha do Araguaia.

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Além dos arquivos das Forças Armadas, familiares dos desaparecidos políticos

alimentam a esperança de que arquivos “pessoais” de militares possam contribuir com

informações. No ano de 1996, um militar que preferiu manter sua identidade sob sigilo,

entregou à redação do jornal O Globo um Dossiê com registros feitos durante as

campanhas deflagradas no conflito do Araguaia. O jornal publicou uma série de

reportagens entre os dias 28 de abril e 03 de maio com informações e fotos dos

guerrilheiros e, através das fotos publicadas, os familiares puderam identificar Maria

Lúcia Petit.

Para os familiares, a luta para resgatar a verdade é contínua. No entendimento

de Belizário dos Santos Jr., que já atuou como presidente da CEMDP,

os trabalhos e as manifestações da Comissão Especial contribuíram para

amenizar, em certa medida, a dor das famílias que tiveram membros mortos e

desaparecidos (...) A família vê justificado todo o período de busca, sente a

resposta do Estado, que vale como se fosse um pedido formal de desculpas.222

Em 2007, foi lançado o livro-relatório Direito à memória e à verdade, em que há

registros dos 11 anos de atuação da CEMDP no Ministério da Justiça. Esse livro, que

serviu de base para realização desta pesquisa,descreve todos os casos apreciados

pela CEMDP durante seu período de atuação, e atualiza informações do livro Dos filhos

deste Solo,223 primeiro livro lançado sobre os trabalhos da Comissão Especial, no ano

de 1999.

Nessa ocasião, o presidente Lula firmou, em reunião com representantes dos

familiares, o compromisso de criar uma comissão para obter dos militares informações

sobre os restos mortais de opositores da ditadura militar. Em entrevista coletiva após o

lançamento do livro-relatório, o presidente declarou:

Queremos colaborar e contribuir para que a sociedade feche a vire a página

desta história de uma vez por todas. Há disposição para isso (...) A Comissão

222 COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 45. 223Dos filhos deste Solo, publicado em 1999, por Nilmário Miranda e o jornalista Carlos Tibúrcio como o resultado dos trabalhos realizados pela CEMDP até aquele momento. Embora detalhe os trabalhos da Comissão Especial, foi lançado pela editora Boitempo, e não pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, como o livro-relatório lançado em 2007.

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vai ser ampliada, vai colocar mais gente. É debate que precisa ser feito pela

sociedade, e vamos fazê-lo.224

No entanto, ainda há uma grande insatisfação por parte das famílias em relação

à forma como o governo resolveu e tratou a causa. A Lei 9.140/1995 não reparou,

completamente, os danos. Há uma lacuna e uma sensação de impunidade sobre essas

questões, principalmente, no caso dos desaparecidos. Quanto a isso, Laura Petit da

Silva comenta:

A grande mágoa, aquilo que os familiares vêm buscando há tanto tempo, o

objetivo da nossa luta de tantos anos, até hoje não foi concretizado. Desde

1970, para mim, no meu caso que soube das mortes dos meus irmãos (...) já

são mais de 35 anos. Eu ainda estou procurando saber onde estão os meus

irmãos, o que foi feito deles, como eles morreram, existe esse desejo. Minha

mãe morreu e ela queria sepultar os filhos. Eles saíram de casa com uma mãe

que fica esperando (...) Minha mãe todo o Natal ela lembrava e chorava pelos

filhos (...) ela não teve resposta de governo nenhum. Ela morreu sem que

nenhum arquivo fosse aberto, essa é a grande mágoa. Esse país podia ser

bem melhor depois que estas questões fossem resolvidas, nós teríamos mais

confiança no país, a certeza de que isso não aconteça mais (...) Eram

brasileiros, tinham histórias, histórias bonitas (...) Esse país podia ser mais rico

– tenho a certeza, se eles estivessem vivos.225

Atualmente, a CEMDP iniciou uma segunda fase de atuação com a finalização

do exame dos processos. No total, foram apreciados 475 casos, em que 136 já

constavam no Anexo I, da Lei 9.140/1995. Segundo o atual presidente da Comissão,

Marco Antônio Rodrigues Barbosa, as reuniões da CEMDP serão mensais, com o

intuito de dar continuidade aos trabalhos: “Independentemente, continuaremos a luta

pela abertura total dos arquivos da ditadura militar, assim como continuaremos a busca

dos restos mortais de pessoas desaparecidas.”.226 224 Lula promete a famílias que Comissão vai ouvir militares. Folha de S.Paulo, São Paulo,Caderno A12, p. 12, 30 ago. 2007. (Da sucursal de Brasília) 225 Laura Petit da Silva, representante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, concedeu entrevista à autora desta tese. 226 Entrevista de Marco Antônio Rodrigues Barbosa.

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Em 2006, foi criado o projeto de construir um banco de DNA com o objetivo de

agilizar as identificações de pessoas desaparecidas no período da ditadura

militar.227 Para tanto, foi firmado um contrato com a empresa Genômica –

Engenharia Molecular. Esse trabalho teve início em 25 de setembro, com a

coleta de sangue dos familiares, em um evento realizado na antiga Faculdade

de Filosofia da USP, na rua Maria Antônia, em São Paulo. Estiveram presentes

membros da Comissão de Familiares, do Grupo Tortura Nunca Mais, e da

Secretaria Especial de Direitos Humanos.

A presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de Pernambuco, Amparo Araújo, foi

uma das primeiras pessoas a recolher material para o banco de DNA: ela é irmã de

Luiz Almeida Araújo, morto pela repressão política em 1971, e um dos prováveis casos

a serem identificados pelo Instituto Oscar Freire, na USP, onde, atualmente, se

encontram as ossadas da Vala de Perus.

Esse trabalho já começou a surtir os primeiros resultados. Em 2006, os testes de

DNA conseguiram identificar os restos mortais de Luiz José da Cunha. Sua família

aguardava a identificação há anos, e tal processo de identificação até então fora muito

lento. O ex-dirigente da ALN, “teve seu traslado de São Paulo a Recife e sepultamento

realizado em 1º e 2 de setembro”.228Para as famílias, esse é um momento importante

“considerando que alguns dos familiares dos desaparecidos já morreram e muitos

ultrapassam os 80 anos de idade.229 Os trabalhos da CEMP só estarão concluídos,

portanto, após a identificação do último desaparecido.

Em 2007, foi estabelecida como prioridade da CEMDP sistematizar todo o

conteúdo de seu arquivo, como depoimentos de familiares, publicações sobre os casos

investigados, pesquisas que tenham sido realizadas sobre os mortos e desaparecidos

e os processos apreciados, ou seja, toda a documentação acerca dos trabalhos dessa

Comissão.

227 “O material colhido de pessoas com parentesco próximo e consanguíneo permitirá gerar um perfil genético dos desaparecidos, que ficará disponível para comparações. Cada perfil genético é distinto, praticamente individual, como se fosse uma impressão digital. Extraindo-se DNA dos restos mortais encontrados sem identificação, é possível fazer a comparação com as informações do banco e excluir ou encontrar o vínculo genético”.COMISSÃO Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007, p. 47. 228 Ibidem. Essa informação consta também nositedo movimento oficial dos familiares. Disponível em <http://www.desaparecidospoliticos.org.br/principal>. Acesso em nov. 2014. 229 Ibidem.

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O atual presidente da Comissão comenta sobre esse momento: “Pretendemos

digitalizar todo o arquivo da Comissão, como forma também de preservação da

memória.”.230

230 Entrevista de Marco Antônio Rodrigues Barbosa.

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CAPÍTULO 3

AS ORIGENS DA RESISTÊNCIA DO MOVIMENTO OPERÁRIO NO BRASIL E O PROCESSO DE REPARAÇÃO ÀS VÍTIMAS

“Linha linha de montagem. A cor e a coragem. Cora coração. Abecê

abecedário. Ópera operário. Pé no pé do chão (...) Na mão, o ferro e a

ferragem. O elo, a montagem do motor. E a gente dessa engrenagem. Dessa

engrenagem (...) Gente que carrega a tralha. Aí, essa tralha imensa, Chamada

Brasil (...)”.

Chico Buarque e Novelli231

3.1 Histórico de lutas

A história de lutas e articulações políticas dos operários no Brasil está,

inicialmente, associada à influência dos ideais anarquistas, que foram trazidas pelos

operários imigrantes e, também, por intelectuais232 já no final do século XIX. Nesse

período, por incentivo dos chamados

Barões do Café, e de uma política que favoreceu a vinda dos estrangeiros para

trabalhar no País, uma grande massa de trabalhadores foi se formando,

231Linha de Montagem. Composição de Chico Buarque de Holanda e Novelli. Compacto para o Show de 1º de Maio. Philips, 1980. 232 Dentre os intelectuais que atuaram na época, podemos destacar: José Rodrigues Leite Oticica,filósofo e professor. Militante anarquista, colaborou para a imprensa operária nas primeiras décadas do século XX; Everardo Dias, operário e jornalista. Destacou-se por sua militância no meio operário brasileiro; Edgard Leuenroth, jornalista. Foi um dos principais anarquistas do Brasil na República Velha. Em 1905, esteve presente na fundação da Federação Operária de São Paulo,órgão ligado aos anarquistas da capital paulista. Ajudou a fundar a Plebe (1917) e A Lanterna (1933). Disponívelem:<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/edgard_leuenroth>. Acesso em: nov.2014.

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sobretudo, na cidade de São Paulo, onde concentravam-se as grandes

propriedades de café.233

Segundo Ferreira, “o processo de politização ocorrido com o operariado

brasileiro teve por base a participação do operário imigrante”.234

A efervescência política deflagrada no meio operário durante esse período, foi

sinalizada pela vitória comunista na Revolução Russa, em 1917, e da repercussão

desse acontecimento mundo afora. Entre o operariado brasileiro, se fortalecia o

sentimento de construção de uma nova sociedade com base na crítica à exploração

capitalista. Nesse cenário, a imprensa exerce papel de destaque: atua na constituição

de uma formação ideológica para a classe dos trabalhadores, assim como na

organização do movimento.235 Ainda na análise de Ferreira:

(...) os inúmeros jornais lançados por iniciativas dos intelectuais foram armas

importantes que levaram as ideias à discussão, criaram o hábito de leitura e

prepararam o terreno para o surgimento da imprensa operária na virada do

século, que, com a presença dos operários imigrantes, em outra conjuntura, iria

produzir frutos da luta social. Essa etapa foi fortemente marcada pela

orientação anarcossindicalista (...).236

Os ideais anarquistas237 se expandiram rapidamente entre as principais cidades

brasileiras no início do século, principalmente em São Paulo. Em 1917,238 a cidade

233 “Em 1900, o Brasil possuía em torno de 55 mil operários. As primeiras indústrias surgiram no final do século XIX e a classe operária era composta, em sua maioria,– cerca de 90% – por imigrantes europeus, principalmente italianos, espanhóis e portugueses, e outros em número bem menos expressivo, como alemães, austríacos e poloneses”. Disponível em: <http://www.pco.org.br/historia/o-movimento-operario-brasileiro-das-origens-ao-estado novo/ieaz,i.html>. Acesso em: nov. 2014. FAUSTO,Boris. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: Edusp, 1997, p. 296-297. 234 FERREIRA, Maria Nazareth. Imprensa Operária no Brasil. São Paulo: Ática, 1988, p. 9-10. 235 Os jornais foram apontados na época como instrumento de politização entre a classe operária. “O ponto alto da atividade dos militantes anarquistas no Brasil foi a proliferação da imprensa operária”. FERREIRA, 1988, p. 13. Dentre os principais jornais em circulação da época, podemos destacar: O Libertário, de 1904, e Terra Livre, de 1905. Em São Paulo,havia a maior concentração de periódicos socialistas, como O Socialista, órgão do Centro Socialista de São Paulo, que iniciou suas atividades em 1886, dentre tantas outras publicações. Disponívelem:<http://www.pco.org.br/historia/o-movimento-operario-brasileiro-das-origens-ao-estado-novo/ieaz,i.html>. Acesso em: nov.2014. 236 FERREIRA, 1988, p. 9. 237 Em São Paulo, predominou o anarcossindicalista – uma corrente do movimento operário que teve seu apogeu na Europa e nos Estados Unidos entre as últimas décadas do século XIX e o início da Primeira Guerra Mundial. Tinha por objetivo a transformação radical da sociedade e a implantação do socialismo.

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vivenciou uma das greves mais importantes do período. Cerca de 70 mil trabalhadores

interromperam suas atividades, exigindo melhores condições de trabalho, sobretudo,

aumentos salariais.239Embora reprimido pelo governo local, os operários conseguiram

obter êxito no movimento com um representativo aumento de cerca de 20% nos

salários. Aos poucos, a noção de classe240 foi se constituindo entre o operariado

brasileiro. No início do século, em que prevalece a economia agrária, grande parte da

mão-de-obra que era formada pelos imigrantes contribuiu efetivamente para

acumulação de capital e para o posterior processo de industrialização no país. Para

Ferreira, as condições de luta e organização da classe de trabalhadores no Brasil serão

determinadas, desde o início, pela decorrente industrialização. E justifica:

Ela (a industrialização) se inicia muito atrasada em relação aos pólos mais

avançados do mundo, um século depois da Inglaterra e pelo menos 50 anos

após os Estados Unidos. Enquanto em outros países haviam-se industrializado

na época da livre concorrência e de forma mais ou menos isolada, o Brasil o

faz na época do imperialismo, ou seja, no interior de um sistema mundial de

capitalismo ao qual se integra de forma dependente sofrendo forte

condicionamento para atingir as fontes de capitais, mas com pouco controle

sobre o seu mercado exterior (...). Os patrões das fábricas muitas vezes são

donos ou ex-donos de escravos, e, como tal, se comportam com os

trabalhadores dos seus estabelecimentos (...). No momento da proclamação da

FAUSTO, 1997,p. 296-297. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_anarco_sindicalismo.htm>. Acesso em: nov. 2014. 238 Sem representação de partido ou sindicato, os trabalhadores paulistas tomaram as ruas da capital paulista em protesto contra as precárias condições de trabalho. Dentre as reivindicações,constavam: aumento salarial, jornada de trabalho de 8 horas de trabalho, entre outras. O movimento, iniciado em São Paulo, se expandiu pelas cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre. Logo, teve adesão de outros centros urbanos no país. Revoltas Populares, saiba mais: Greve Geral de 1917 e jornadas de junho de 2013. Caros Amigos, 12maio 2014. Disponível em : <http://www.carosamigos.com.br/index.php/revoltas-populares/4096-revoltas-populares-greve-geral-de-1917-e-jornadas-de-junho-de-2013>. Acesso em: 20 nov. 2014. 239Disponívelem:<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/edgard_leuenroth>. Acesso em: nov. 2014. 240 O conceito de classe, amplamente discutido por Karl Marx em O capital,determinará o funcionamento da sociedade para o autor. Para Marx, o conceito de classe surge associado a todo um processo de produção. O pensador abordará classes sociais a partir do processo de produção, da produção do capital, do processo de circulação do capital e do processo de produção capitalista. Disponível em:<http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt4/sessao2/Juliana_Santos.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2014.

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República (1889), a condição do trabalhador era muito simples. Não possuía

direito algum. Não havia limite de horas de trabalho, aposentadoria, salário

mínimo, estabilidade, seguro contra acidentes etc.241

Na sequência desses acontecimentos, em 1922, será criada uma das mais

influentes organizações políticas para o movimento dos operários no Brasil: o Partido

Comunista do Brasil(PCB), em que grande parte das inspirações dos trabalhadores

provém das doutrinas socialistas. Esses ideais serão difundidos entre o meio operário

durante toda sua existência e determinará, até mesmo, muitas das suas ações no

campo político. A criação do PCB pôs fim à corrente anarquista que predominou no

Brasil durante algumas décadas e que se configurou através dos sindicatos e com

respaldo dos anarcossindicalistas. A organização do partido de representação dos

operários teve como protagonismo os dirigentes que atuavam na vanguarda do

movimento desde o final do século XIX – que articularam as greves mais expressivas e

exerceram papel revolucionário frente às lutas sociais.242 Assim sendo,

(...) Propondo uma organização centralizada, os comunistas, após a fundação

do PCB, intensificaram sua atuação nos sindicatos operários, sustentando uma

luta ideológica com os anarquistas e lutando pela unidade social do sindicato

como condição básica para o êxito nas ações de massa. A luta contra a

herança anarquista no movimento operário foi muito difícil, não só pela

importância que havia adquirido o anarquismo, mas também porque alguns dos

militantes do PCBh aviam pertencido àquela corrente (...).243

Durante grande parte do seu período de atuação, o PCB esteve na

clandestinidade.244 Até 1930, prevaleceu em seu quadro militantes-operários. Com a 241FERREIRA, 1988, p. 9-10. 242 “Nos dias 25, 26 e 27 de março de 1922, reuniram-se em Niterói nove delegados que representavam 73 militantes, decinco estados do País, entre outras cidades. Os delegados nomeados foram: Abílio de Mesquita – barbeiro, Astrojildo Pereira – jornalista, Cristiano Cordeiro – contador, Hermogêneo Silva – eletricista, João Jorge da Costa Pimenta – gráfico, Joaquim Barbosa – alfaiate, José Elias da Silva – funcionário público, Luis Peres – operário, Manoel Cendón – alfaiate”. Disponível em: <http://www.pco.org.br/historia/o-movimento-operario-brasileiro-das-origens-ao-estado-novo/ieaz,i.html>. Acesso em: nov. 2014. 243 FERREIRA, 1988, p. 30-31. 244 “Até 1945, o PCB vivenciou dois momentos na legalidade: entre março e julho de 1922, e entre janeiro e agosto de 1927”. FAUSTO, Boris. A revolução de 30. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 22. “Os primeiros anos, que vão da fundação do Partido a 1930, assinalam o esforço de criar no país uma cultura

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ascensão de Getúlio Vargas, inaugurou-se uma política de reformas no campo

trabalhista. No entanto, a repressão se abateu sobre os partidos e organizações de

esquerda, sobretudo, o PCB, imediatamente ao movimento de 1930. Um novo tipo de

sociedade irá se configurar a partir dessas reformas, simbolizando a modernização do

Estado. Nesse momento, o governo anuncia a criação do Ministério do Trabalho,

Indústria e Comércio,245 que contempla a ascensão de um Estado forte, capaz de inibir

a ação da classe trabalhadora. “Um Estado interventor, apaziguador e controlador da

luta de classes”.246 A promoção dos benefícios à classe trabalhadora, de certo modo,

representou uma forma de “negociação” entre o governo e os operários afim de garantir

estabilidade política e social. E ainda, “não poupou esforços para promover reformas e

leis que vinham ao encontro das reivindicações dos trabalhadores: eram aquelas

reivindicações pelas quais muitos haviam dado avida, em longos anos de

luta”.247Otávio Pinto e Silva estudou a relação existente entre a Revolução de 1930248 e

o surgimento de um novo Estado, com forte característica para o intervencionismo no

que se refere ao Direito do Trabalho. Nas suas palavras:

(...) Trata-se de uma proposta de reordenação da sociedade, em que patrões e

trabalhadores formam um só grupo, cujo superior interesse é a defesa da

profissão. O regulamento das condições de trabalho dessa profissão, assim,

deve ser definido tendo em vista laços de solidariedade, harmonia e

colaboração, visando com isso resolver todos os conflitos que possam surgir

dentro do grupo (...).249

socialista e um modo proletário de fazer política. Recorde-se que, ao contrário de outros países, o Brasil não teve, antes de 1922, qualquer experiência partidária anticapitalista de alguma significância (exceção feita à pioneira ação dos anarquistas, cujo protagonismo esgotou-se com a greve geral de 1917 e a algumas tentativas malogradas de se constituir no Brasil um partido de matiz operária)”. Disponível em: <http://pcb.org.br/portal/docs/historia.pdf>. Acesso em: nov. 2014. 245 O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi criado através do Decreto n. 19.433, de novembro de 1930, ainda sob o Governo Provisório. Disponível em : <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67462/70072> . Acesso em: 22 nov. 2014. 246 FERREIRA, 1988, p. 33. 247 FERREIRA, 1998, p. 33-34. 248“O Decreto n. 19.938, de 11 de novembro de 1930, instituiu o Governo Provisório da República, em que se investiu nas atribuições do Poder Executivo e do Poder Legislativo, até que se organizasse o País para a eleição de uma Assembléia Constituinte. Uma das primeiras medidas desse governo foi a criação do Ministério do Trabalho”. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67462/70072>. Acesso em: 22 nov. 2014. 249SILVA, Olavo Pinto. A revolução de 1930 e o Direito do Trabalho no Brasil. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67462/70072>. 2000. Acesso em: nov.2014.

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Esse novo governo apresentou características de um Estado corporativista, à

medida que, também, atuava na repressão à oposição da classe operária. O Governo

Provisório irá estabelecer condições para uma nova estrutura nas relações de trabalho.

Apesar dos significativos avanços para os trabalhadores, o governo adotou medidas de

caráter centralizador, atrelando, por exemplo, os sindicatos ao Estado,o que traduz a

maneira como o governo planejava sua ações, baseado na intervenção e no total

controle das questões de ordem política e social. Em decorrência da criação do

Ministério do Trabalho e das medidas de cunho social, foram estabelecidas, entre

outras ações: “as funções de elaboração, aplicação e fiscalização das novas leis

trabalhistas, (...) nacionalização do trabalho, carteira de trabalho, trabalho de mulheres

e menores, férias, criação dos primeiros Institutos de Previdência(...)”.250

Mesmo após as vantagens oferecidas à classe de trabalhadores, a gestão do

presidente Vargas encontrou resistências por parte dos sindicalistas. Algumas ações

do governo vieram a corroborar com esse processo, entre elas, a Lei de

Sindicalização251 – que foi mais uma das medidas que refletiu o controle do Estado

sobre as organização políticas. Os sindicatos que, antes de 1930, eram constituídos

como pessoas jurídicas e autônomas, a partir de 1931, passam a ser considera dos

órgãos de colaboração do Governo Federal. Nessa esfera, há “uma evidente

publicização, tanto que dependiam do reconhecimento do Estado para seu

funcionamento, e podiam se organizar mediante a um rígido plano de enquadramento

sindical”.252

Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o movimento

operário se articulava com certa autonomia em relação à figura do Estado. Apesar de

agir de forma violenta no que diz respeito às ações dos operários, o governo não

intervia, por exemplo, nos sindicatos. A Era Vargas, no entanto, será marcada por

250 MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1986. p.161. In: SILVA, 2000. 251Através do Decreto n. 19.770, de março de 1931, a Lei da Sindicalização consistia na ação do governo em estabelecer uma função colaborativa entre organizações sindicais, trabalhadores e o Estado. A intenção era colocar em prática um modelo sindical baseado no ideário corporativista. O princípio da unidade sindical foi restabelecido, e apenas os sindicatos legalizados poderiam defender os direitos da categoria que representavam perante o Estado(..).Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-37/PoliticaSocial> e em:<http://www.ligaoperaria.org.br/documentos/congresso2-1.htm>. Acesso em: nov.2014. 252SILVA, 2000, p. 184.

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mudanças nesse aspecto. Dessa forma, “A intervenção do Estado nos sindicatos, mais

as características de um proletariado de origem rural-patriarcal, facilitaram o

desenvolvimento do paternalismo, a personalização das relações de trabalho”.253As

ações desencadeadas pelo governo reforçaram a ideia de um sistema político

centralizador, autoritário e repressivo que se mantém por meio de ações de cunho

popular– a exemplo das leis trabalhistas consolidadas a partir da Constituição de 1934.

Durante o Estado Novo (1937-1945),254 a política exercida por Vargas, cada vez mais,

busca sistematizar, à sua maneira, as políticas sociais, com o fortalecimento do

Ministério do Trabalho e o projeto de unidade sindical. Nesse sentido, novas medidas

foram adotadas a fim de consolidar essa estrutura baseada no corporativismo. Dessa

forma, “tratou-se de dar garantias de sobrevivência aos sindicatos através da instituição

de uma contribuição sindical compulsória – o imposto sindical que possibilitou a

manutenção dos sindicatos”.255 Como forma de manter sob controle a atuação dos

sindicatos, o governo conta com a colaboração dos seus dirigentes – também

conhecidos como “pelegos”.256 Assim, será constituída uma base de articulação direta

com setores do poder central, a fim de apaziguar eventuais conflitos decorrentes da

ação do movimento operário.

Com a ditadura imposta pelo Estado Novo, o governo irá exercer uma forte

repressão sobre os movimentos oposicionistas – são vários os setores afetados, entre

eles: a classe de trabalhadores e, consequentemente, os membros do Partido

Comunista. Embora a violência tenha se instaurado de forma alarmante no país, será o

populismo de Vargas o responsável por sua manutenção no poder ao longo dos quinze 253FERREIRA, 1988, p. 38-39. 254 Vale ressaltar que “partes enormes da Constituição de 1937, especialmente os itens relativos ao trabalho, são – o que é bastante constrangedor literalmente da Carta Del Lavoro (conjunto de leis trabalhistas do governo Benito Mussolini que limitavam, por exemplo, o direito à greve e a atuação dos sindicatos”. HALL, Michael. Corporativismo e Fascismo. In: FORTES, Alexandre. O Estado Novo e os trabalhadores: a construção de um corporativismo latino-americano. Disponível em: <http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/1237/983>. 2007. Acesso em: nov.2014. O Estado atrela ainda mais o movimento sindical ao governo, além de suprimir toda e qualquer liberdade de manifestação e organização. Os operários não podem se filiar aos sindicatos livres, somente aos sindicatos ligados ao governo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=okVB4wfaaq8>. Acesso em: nov. 2014. 255Disponívelem:<http://www.ligaoperaria.org.br/documentos/congresso2-1.htm>. Acesso em: nov.2014. 256A expressão “pelego” passou a representar a figura do”dirigente sindical que na direção do sindicato atua mais no interesse próprio e do Estado do que no interesse dos trabalhadores, agindo como amortecedor dos conflitos. O imposto garantiria a sobrevivência da organização, sendo o número de sindicalizados, sob esse aspecto, um fator de importância secundária”. FAUSTO, 1997, p. 374.

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anos em que esteve na Presidência da República (1930-1945), e, depois, no retorno,

de forma democrática, em 1950.

Fortes,ao analisar a relação entre o movimento operário e o Estado Nacional,

chama a atenção para um importante aspecto desse “movimento populista”: “O

populismo foi universalmente condenado com o desvio ou maldição que teria anulado

os potenciais de desenvolvimento da classe trabalhadora com força social e política

autônoma, reduzindo-a à condição de “massa de manobra” manipulada por lideranças

carismáticas(...)”.257

No período que corresponde ao final da II Guerra Mundial (1945), e a

consequente deposição do presidente Vargas, o movimento operário encontra

“brechas” para se reorganizar após anos de perseguições políticas. Sob influência dos

acontecimentos no mundo – sobretudo a visibilidade da União Soviética e do

Socialismo, a participação política de setores oposicionistas avança em decorrência da

abertura democrática. A sociedade passa por um processo de mudanças com a anistia

aos que foram atingidos pelas ações do Estado de exceção. A legalização dos partidos

e as reeleições a uma nova Constituição sugerem um aparente estado de normalidade

política. O Partido Comunista, por sua vez, busca se alinharão os ideais

revolucionários. Esse posicionamento será decisivo para a orientação de algumas das

ações no movimento operário que promoveu forte articulação política com o fim da

ditadura, organizando greves, dando “voz” aos sindicatos.258 “Não foram poucas as

manifestações por liberdade sindicais, contra a presença das forças imperialistas, em

defesa das riquezas nacionais”.259 Os jornais e periódicos que circulavam à época,

mesmo os clandestinos, reforçavam seu papel na formação ideológica da classe

trabalhadora:

A imprensa operária de partidos, portanto, ganha importância com relação à

imprensa operária ligada aos sindicatos. O auge desta imprensa de partidos, 257 FORTES, Alexandre. O Estado Novo e os trabalhadores: a construção de um corporativismo latino-americano. Disponível em:<http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/1237/983>. Acesso em: nov.2014. 258 Entre o fim do Estado Novo, em 1945, e o ano de 1946, o número de sindicalizados no Brasil aumenta de 475 mil para 800 mil operários. MACHADO, Alexandre Paulo. Breve histórico sobre o movimento grevista e operário no Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=okVB4wfaaq8>. Acesso em: nov.2014. 259Disponível em: <http://www.ligaoperaria.org.br/documentos/congresso2-1.htm>. Acesso em: nov.2014.

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especialmente, o PCB, acontece no pós-45, com a redemocratização do país.

Neste momento, o PCB possui nove jornais diários, nas principais cidades

brasileiras, inúmeros semanários, diversas revistas, duas editoras.260

Nessa nova conjuntura, irão surgir novas e antigas lideranças operárias na

reformulação dos partidos. Além do PCB, compõem a agenda democrática do novo

sistema: o PSB (Partido Socialista Brasileiro), o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), a

UDS (União Democrática Socialista), a Vanguarda Socialista (trotskista), o PDC

(Partido Democrata Cristão) e a própria esquerda democrática”.261 Embora o governo

do general Dutra (1946-1950) tenha assumido a presidência já nos moldes

democráticos, essa não será uma característica que permeará o seu governo,

principalmente, no que se refere à atuação do movimento operário. Nos primeiros

meses de 1946, inúmeras greves aconteceram no país. Na cidade de São Paulo, os

bancários conquistaram um piso mínimo para a categoria após 20 dias de

paralisação.262 Além dos trabalhadores da capital, os metalúrgicos do ABC realizaram

greves e passaram a se organizar através das comissões de fábricas – pode-se dizer

que, o movimento embrionário, as primeiras manifestações políticas passam a ocorrer

no interior das fabricas, no chamado “chão de fábrica”, sendo, inclusive, uma das

características que irá reascender o movimento no final da década de 1970.

A política exercida pelo presidente Dutra, assim como ocorreu na gestão Vargas,

intervirá fortemente nos sindicatos por meio do Estado, representado pelo Ministério do

Trabalho. No primeiro ano do seu mandato, as manifestações grevistas e as

organizações sindicais serão atingidas com repressão. O governo atua com rapidez em

torno das resistências da classe operária. Nesse momento, o governo baixa o Decreto

n. 9.070, em queas manifestações grevistas passam a ser proibidas em todo o país. Na

sequência, no ano de 1947, será a vez do Partido Comunista passar a atuar na

260 FERREIRA, 1988, p. 41. 261 Ibidem, p. 34-35. 262VELHO, Ricardo Scopel. O movimento operário no Brasil: elementos cíclicos e possibilidades históricas. Disponível em: <http://www.revistaovies.com/colaboradores/2012/05/movimento-operario-no-brasil/>. Acesso em: nov. 2014.

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clandestinidade.263 Além disso, o governo manda fechar a recém-criada Confederação

Geral dos Trabalhadores(CGT) e adia as eleições por dois anos.

Em consequência do conflito da Guerra Fria, o governo brasileiro busca se

alinharaos ideais imperialistas. Nesse contexto, a perseguição à classe operária se

torna ainda mais acentuada, em decorrência da ligação com o Partido Comunista.

Mesmo sob forte intervenção, os sindicatos e o movimento dos operários

demonstravam insatisfação com a política econômica praticada pelo governo. Em

1948, ferroviários de Minas Gerais e São Paulo, metalúrgicos, médicos, engenheiros,

entre outras categorias, reivindicavam aumento salarial em greves deflagradas em todo

o país. No total, cerca de 250 mil trabalhadores buscavam reajustes salariais. Contudo,

o governo Dutra promove, ao longo do período, cassações de políticos do PCB,

fechamento de centrais sindicais, manutenção de uma estrutura sindical atrelada ao

governo, arrocho salarial – ou seja, se contrapondo a toda e qualquer possibilidade de

retorno dos princípios democráticos. Somente em 1950, há uma considerável queda do

número de trabalhadores sindicalizados.264À essa altura, o PCB permanece com suas

atividades, orientando os trabalhadores dentro das fábricas, articulando greves e

mantendo a resistência.

O retorno de Vargas ao poder, em 1951, também coincidirá com a volta do

populismo ao cenário político. As bases do novo governo, agora com o presidente

eleito de forma democrática, serão reafirmadas a partir de práticas adotadas em

mandatos anteriores, o que corresponde ao estabelecimento de uma política que

favorece a proximidade com a classe operária com o intuito de mantê-la sobre

“controle”. Em seu discurso nas comemorações do 1º de Maio, Vargas propõe um

governo forte e coeso, com participação das organizações operárias, baseado na

solidariedade e cooperação dos trabalhadores. Sendo assim, “o movimento operário e

sindical atingiu novamente grande dimensão – em virtude do afrouxamento do governo 263Vale ressaltar que, mesmo com a ilegalidade do partido, os comunistas continuavam a propagar seus ideais através dos veículos de comunicação. “Dos jornais lançados nessa época, estreitamente ligados a partidos políticos operários, vale destacar: A Terra Livre, lançado pelo PCB, em 1950, em circulação nacional, dirigido aos camponeses. Também aparecem a Tribuna Popular, no Rio de Janeiro, em 1945, e a Voz Operária, também no Rio de Janeiro, que sobreviveu até 1955 sendo, aparentemente, substituída pelo semanário Novos Rumos, que foi tirado de circulação pelo golpe militar, em 1964”. FERREIRA, 1988, p. 44. 264 MACHADO, Alexandre Paulo. Breve histórico sobre o movimento grevista e operário no Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=okVB4wfaaq8>. Acesso em: nov. 2014.

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na aplicação da legislação repressiva”.265 Dessa maneira, o movimento operário

encontra brechas para dar continuidade ao histórico de lutas. No período de 1951-

1952, os trabalhadores realizaram greves e, dentre inúmeras reivindicações, exigiram

melhores salários e abono de Natal – que só viria acontecer em 1962, sob forma de

décimo terceiro salário. Somente em São Paulo, no ano de 1953, trabalhadores de

várias categorias paralisaram suas atividades por 27 dias com o objetivo de pressionar

o governo a libertar companheiros presos em ações de resistência e, também, por

aumento salarial. Essa paralisação, que ficou conhecida como “Greve dos 300 mil”,

aglutinou operários da indústria têxtil, metalúrgicos, marceneiros, vidreiros, entre

outros.

Na sequência desses acontecimentos, entre os anos de 1954 e 1955, mais de

300 greves ocorrem no país. As reinvindicações permaneceram as mesmas que

caracterizaram o movimento operário: combate ao arrocho salarial, aumento dos

ganhos no exercício do trabalho, melhores condições para o desempenho das funções,

e questões relacionadas ao exercício das políticas governistas. Porém, é nesse período

que o salário mínimo atinge seu maior valor, reflexo do enorme capital estrangeiro

investido na indústria.

No prazo de 10 anos (1954-1964), houve um expressivo acirramento das lutas

de classe no país, pautadas nas críticas aos mecanismos de desenvolvimento

econômico. Nesse período, as resistências partem das cidades e do campo – os

trabalhadores buscam, constantemente, a reorganização do movimento. Na zona rural,

destacam-se, sobretudo no Nordeste, a ação das ligas camponesas com forte

inclinação aos princípios comunistas. Desde “o final da década de 40, anos 50, e o

início da década de 60, trabalhadores do campo buscam visibilidade na luta pela

conquista da terra e combate a exploração do trabalho.”266 Não é à toa que o país

mergulha numa intensa crise econômica. Herbert Klein e Francisco Luna chamam a

atenção para as disparidades sociais que traduzem o Brasil da época:

265 BATISTELLA, Alessandro. O movimento operário e sindical em Passo Fundo (RS): 1920-1964. Disponível em: <http://www.eeh2010.anpuhrs.org.br/resources/anais/9/1279393448_ARQUIVO_ArtigoAnpuh2010_AlessandroBatistella_.pdf>. Acesso em: nov.2014. 266 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Modo capitalista de produção, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: FFLCH, 2007. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dg.gesp>. Acesso em: nov.2014.

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(...) Em 1960, o Brasil era ainda uma sociedade predominantemente rural, com

altas taxas de mortalidade e de natalidade e perfil demográfico pré-moderno,

tradicional (...). Apesar de já existirem alguns centros urbanos modernos e de

grande porte, a maioria da população vivia na zona rural, em moradias

precárias, sem água potável nem saneamento básico (...). O Brasil era um país

dividido não apenas entre uma minoria urbana moderna e uma maioria rural

tradicional, mas também apresentava diferenças profundas por região, classe

social e raça (...).267

Por essa razão, o início da década de 1960 será marcado por muitas

contestações por parte da classe de trabalhadores. O movimento sindical se encontra

dividido: de um lado, o setor mais esquerdista, ligado ao PCB – que se mantém “fiel” as

origens e as reivindicações de classe–, e na contrapartida, os sindicalistas, que

representam o movimento sindical democrático – ligados a uma ala do Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB), que, de certo modo, promovem a continuidade de uma

política de colaboração com o Estado, exercida desde o período Getulista.

Num ambiente de intensas agitações políticas, é criado, em 1962, o Comando

Geral dos Trabalhadores (CGT), que tem como objetivo central a unificação do

movimento operário. E, nesse sentido, “mobilizavam-se, especialmente, por

reivindicações como o aumento de 100% do salário mínimo, o novo ajuste desse

salário, com a aproximação dos níveis salariais em todo o país, a aplicação do salário-

família, o direito de greve, as lutas camponesas, e o pagamento do 13.

salário”,268sendo esta última reivindicação já citada neste capítulo. No mês de outubro

de 1963, o CGT comanda duas grandes greves somente no Estado de São Paulo. O

primeiro movimento ocorre na cidade de Santos, com a paralisação dos enfermeiros da

Santa Casa e, na sequência, outra mobilização ocorre na capital paulista, onde 700 mil

grevistas, organizados em 14 categorias, buscam aumento para seus respectivos

267 KLEIN, Herbert S; LUNA, Francisco Vidal. Mudanças sociais no Brasil, 1960-2000. In: REIS, Daniel Aarão (Coord.). Modernização, Ditadura e Democracia (1964-2010). Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 31. 268 RELATÓRIO da Comissão Nacional da Verdade. Violação de Direitos Humanos dos Trabalhadores. Volume II – Textos Temáticos, dezembro de 2014. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571>. Acesso em: dez. 2014.

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salários. “Pela primeira vez, 78 sindicatos se unem em uma campanha salarial

unificada e exigem negociação direta com a Federação das Indústrias (FIESP).” 269

3.2 A repressão à classe operária nos chamados “Anos de Chumbo”

“É uma época marcada pelo silêncio operário, o silêncio nas fábricas”.

Raymundo Périllat270

Os momentos que antecederam a ruptura do sistema democrático por meio de

um golpe de Estado, em 1964, sinalizaram um grande colapso no universo político e

social. Os últimos meses da gestão do presidente João Goulart foram marcados por

desajustes no cenário político-democrático. O plano de ação do governo se baseava

em uma série de alianças com a esquerda, fato que gerou descontentamentos de

componentes do bloco militar do poder. As raízes estruturais da crise social que

culminou com a deposição de Goulart, em 31 de março, estão calcadas na aparente

quebra da hierarquia militar, na imagem desgastada do presidente diante das

diferentes facções do poder, na movimentação da esquerda nas camadas populares e

na disseminação do anticomunismo pelas corporações militares. Segmentos mais

conversadores das Forças Armadas já haviam articulado um golpe, impedindo a posse

do presidente Goulart, ainda em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. Para Caio

Navarro Toledo, o governo Goulart, “nasceu, conviveu e morreu sob o signo do golpe,

pois o presidente não conseguia o pleno respaldo das forças populares e trabalhadoras

nem se legitimava face ao conjunto das classes dominantes”.271

Após a tomada do poder por parte dos militares, as resistências partiram de

vários setores da sociedade. Evidente que, nesse processo, as principais lideranças

políticas foram imediatamente atingidas. Foram inúmeras intervenções em sindicatos,

depredações em sedes e entidades, prisões, mortes e torturas – meio de intimidação 269 Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014. p.45. 270 Raymundo Périllat é membro da Pastoral Operário. É metalúrgico aposentado. 271 TOLEDO, Caio Navarro. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo P. Sá. (Orgs). Revista Brasileira de História. Bauru, Edusc, p. 20, 2004.

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utilizado pelo Estado para obter confissões dos presos. Embora o movimento operário

não estivesse alinhado para atuar com forte resistência, assim como grande parte da

população, os trabalhadores, já no dia 1º de abril, passaram a sofrer as consequências

da recém-ditadura instaurada. A violência atingiu um número bastante expressivo da

classe de trabalhadores, os sindicatos eram todos controlados e dirigidos pelo PCB – o

que fez acentuar a repressão à classe. De acordo com informações da Comissão

Nacional da Verdade:

(...) A ditadura começou efetivamente no dia 1º de abril, no meio sindical. Suas

ações visavam a um só tempo quebrar a linha dorsal do pujante movimento

organizacional dos trabalhadores, em ascensão desde os anos 1950, e impedir

que nas organizações sindicais se estruturasse qualquer possibilidade de

resistência contra o golpe. A intervenção da ditadura nos sindicatos, entre

março e abril de 1964, contou com a nomeação de 235 interventores. A

repressão militar sobre a classe começou, assim, com a prisão e fuga forçada

de líderes sindicais, e com o empenho do Estado de retomar o controle sobre

os trabalhadores. Somente em 1964, 409 sindicatos e 43 federações sofreram

intervenção do Ministério do Trabalho. Entre 1964 e 1970, foram efetuadas 536

intervenções sindicais – das quais 483 em sindicatos, 49 em federações e

quatro confederações. Do total de intervenções realizadas pelo Ministério do

Trabalho durante este período, 19% foram efetuadas em 1964 e 61% em1965

(80,6% do total), isto é, uma marca de 433 intervenções em apenas dois anos,

aliada à cassação de 63 dirigentes sindicais (...).272

Embora o não protagonismo do movimento operário tenha se revelado nos

primeiros momentos de 1964, a ditadura civil-militar tratou de apressar medidas para

reprimir a ação da classe trabalhadora.273 Em 1º de junho de 1964, o governo editou a

Lei 4.330, a conhecida lei antigreve, que impossibilitou a organização dos operários e,

a partir desse momento, seriam considerados “criminosos” com base na Lei de

Segurança Nacional (LSN), em caso de manifestações políticas. Além da proibição das

272Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Violação de Direitos Humanos dos Trabalhadores. Volume II – Textos Temáticos, dezembro de 2014. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571>. Acesso em: dez.2014. 273A primeira medida com o intuito de reprimir a ação da classe de trabalhadores foi a edição do Ato Institucional n.1 (AI-1), que estabeleceu, num primeiro momento, a cassação de todos os líderes sindicais, sobretudo os que apoiaram o presidente João Goulart.

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greves, outras ações do governo vieram a colaborar com o recuo do movimento

operário. Os sindicatos perderam autonomia diante das reivindicações legais de classe.

Dessa forma, “surge uma ‘liderança’ composta por interventores, pelegos e dirigentes

despolitizados; os sindicatos transformaram-se em instrumentos passivos,

desmobilizadores e assistencialistas”.274

A política salarial da ditadura fixou o índice do reajuste anual dos salários

visando a desarticulação dos sindicalistas.275 Tão logo essas medidas foram sendo

consolidadas, ainda havia a preocupação de manter sob controle as ações políticas

desencadeadas dentro das fábricas por meio de suas lideranças. “Centenas de

sindicatos tiveram a diretoria cassada e presa. Interventores foram nomeados e listas

de militantes eram procuradas nas sedes, para vigiá-los e prendê-los”.276

No campo econômico, a política exercida pela ditadura afetou diretamente os

operários com o arrocho salarial – uma das razões que promoverá,inúmeras vezes ao

longo do período, a rearticulação dos trabalhadores. David Maciel sustenta que:

(...) o controle do movimento operário e das classes trabalhadoras, a política de

arrocho salarial e a preservação da concentração fundiária favoreceram

segmentos subordinados do bloco do poder, como o médio e o pequeno

capital, distribuídos pelos setores industrial e comercial, e os grandes e médios

proprietário rurais (...).277

Não há dúvida de que setores da classe média e do empresariado foram

favorecidos pela política econômica do governo, que garantia alta produtividade e lucro

para os empresários diante de uma aparente situação de crescimento econômico.

Desde o início, esses setores se manifestaram favoravelmente em relação ao Golpe de

Estado. Essa fração da sociedade visava, em princípio, a não continuidade das 274 FERREIRA, 1988, p. 49. 275 A política salarial da ditadura civil-militar se consolidou-se através dos Decretos 54.018/1964 e 54.228/1964,das Leis 4.725/1965 e 4.903/1965, e dos respectivos Decretos 15/1966 e 17/1966. CARVALHO, Yuri Rosa de. O movimento operário e a ditadura civil-militar: resistências, luta armada e negociação. Revista Latino Americana de História. v. 1, n. 3, mar. 2012. Disponível em:<http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/111/89>. Acesso em: dez.2014. 276 Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014. p. 46. 277 MACIEL, David. De Sarney a Collor -Reformas Políticas, Democratização e Crise (1985-1990). São Paulo: Funape, 2012.p . 51.

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políticas econômicas e sociais praticadas pelo presidente Goulart – a exemplo das

Reformas de Base. A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que mobilizou a

classe média, em 1964, demonstrava claro apoio ao regime que, por sua vez, atendia

aos interesses do imperialismo. Ainda na perspectiva de David Maciel:

(...) As frações do grande capital (capital estatal, capital privado nacional e

capital externo), pela ordem de importância localizadas na grande indústria, no

setor bancário, no grande comércio e na nascente agroindústria, foram as

principais beneficiadas pela política de concentração e centralização de capital,

que deu origem ao capitalismo monopolista no país (...), eles apoiaram os

governos militares, mas não se inseriram no bloco do poder, figurando muito

mais como base de apoio (...).278

Além de desestruturar todo o setor sindical, uma das tendências da ditadura foi

eliminar a garantia de emprego. No ano de 1966, o governo editou a Lei 5.170, que

criava o Fundo de Garantia por tempo de Serviço (FGTS). De certo modo, tal medida

surtiu impacto sobre a classe trabalhadora, pois gerou uma certa instabilidade pelo fato

de incentivar a rotatividade da mão-de-obra assalariada. As ações da ditadura, desde o

imediato pós-golpe, tinham como objetivo principal intimidar a ação dos trabalhadores

e, sobretudo, desorganizar o movimento. Além das intervenções, o governo buscou

reafirmar a repressão ao movimento operário através de leis e decretos – a exemplo de

outros setores da vida pública. Afonsso Delleles, ex-presidente do sindicato dos

metalúrgicos entre os anos de 1963 e 1964, narra esse momento:

(...) É lógico que vi no 64, eu chamo atenção disso, se modificaram todas as

questões. Se interveio em dezenas, em centenas, ou milhares de Sindicatos,

se interveio em Federações, etc. etc. etc. Se modificou com um “bocado” de lei

também em cima do golpe de 64, mas, também não se mexeu uma vírgula na

estrutura sindical, quer dizer, a estrutura sindical continua servindo em todos os

regimes, em todas as oportunidades, porque é uma estrutura que nós não

discutimos, os trabalhadores não discutiram, os trabalhadores não propuseram,

nós é que tivemos que entrar dentro disso que nós herdamos. É lógico que vai

278MACIEL, 2012, p. 50-51.

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passar a redemocratização, vai vir golpe. Se modifica tudo, se prende gente, se

intervém mas ninguém mexe na estrutura sindical, por que isso serve

perfeitamente para explorar nosso trabalhadores, para tirar mais valia dos

trabalhadores, para arrancar o lucro e para até fazer milagre se quiser (...).279

Apesar da ditadura ter contido a ação dos trabalhadores com violência e ter

adotado medidas de caráter intervencionista, atingindo, principalmente, sua

organização nas bases, ou seja, através dos sindicatos, uma característica do

movimento será mantida e determinante para futuras articulações políticas: o trabalho

político desenvolvido no interior das fábricas, que se expande, agrega outras categorias

de operários no país, e atinge outra dimensão no âmbito político. No que se refere às

movimentações políticas desenvolvidas no interior das fábricas, Vito Giannotti,

metalúrgico e militante à época, sustenta:

(...) Quando se fala da ditadura, se fala do golpe, evidentemente (...) da

repressão, de todas as forças progressistas, fala-se muito dos estudantes que

tentaram resistir, da UNE, etc., etc.; das prisões, daí, maio de 68, as grandes

manifestações(...) daí, a resistência armada, o forte quando se fala da ditadura

militar e da resistência, dos grupos armados para tentar derrubar aquela

“desgraceira” que se implantou em 31 de março de 64(...), quase nunca se fala

da resistência que foi feita dentro das fábricas, pelos operários. É claro, óbvio.

Porque? Por que operário não escreve livro, não conta história, não faz peça

de teatro, não se apresenta na televisão pra falar. Quem conta a história é a

história do outro lado, de quem tem chance de poder contar a história (...) que

teve a chance devido aos seus estudos, suas histórias, de poder estudar, de

poder divulgar a história deles, a história da resistência à ditadura (...).280

279Afonsso Delleles foi cassado, preso político e exilado. Disponível em: <https://iiepmemoriaoperaria.wordpress.com/fotos/>. Acesso em: dez. 2014. Ver também: Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014. p. 87. 280 Vito Giannotti, metalúrgico e escritor sobre a causa operária no país. Juntamente com jornalistas e o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) – entidade que realiza cursos para sindicalistas e jornalistas sobre comunicação sindical e popular. Membro da CUT desde 1983. Durante o período em que foi operário, foi uma dos responsáveis por publicações dirigidas aos trabalhadores, tais como: Luta Sindical, Luta Operária, Luta Metalúrgica, entre outros. Esses jornais eram distribuídos aos trabalhadores dentro das fábricas e difundia as recentes greves no Brasil e no mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FvlQsm1oSfs> e em:

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Por conta da intensa violência policial, os diálogos entre os operários, mesmo no

interior das fábricas, eram realizados “sob cuidados”. Com o tempo, passaram a adotar

códigos e formas particulares de expressão. As informações eram transmitidas através

de “jornais”/periódicos que difundiam a causa operária. Geralmente, abordavam

situações de greves dos trabalhadores pelo Brasil e, também, experiências no exterior.

Apesar das tentativas de resistência, as ações do movimento operário não atingem

considerável expressão. Com a presença dos chamados “interventores” nas fábricas,

os espaços de discussão política dos trabalhadores se tornam cada vez mais restritos,

consequentemente, a organização do movimento passa a ser desmembrada –

principalmente, após a prisão dos principais líderes sindicais. “Em toda fábrica com

mais de 200 pessoas tinha um cara lá dentro infiltrado (...). Toda fábrica, todo

escritório, toda universidade, tinha gente da polícia. E nas fábricas o terror era

grande.”281Além da repressão instaurada no ambiente de trabalho, e com a proibição

do direito à greve, o movimento operário demonstra sinais de enfraquecimento. As

manifestações públicas, constantes no cenário político, sobretudo nas décadas de

1950 e 1960, nesse momento são “abafadas”. O medo de represália por parte da

polícia e dos órgãos de segurança, pôs fim à continuidade das lutas operárias no país.

Nos primeiros três anos pós-golpe, não há registros de nenhuma grande manifestação

política por parte dos trabalhadores com repercussão nacional. As ações políticas e as

reivindicações em torno de melhorias eram “negociadas” entre os próprios operários,

no ambiente de trabalho, na pausa para o almoço ou até mesmo em pequenos

intervalos.

É nesse exato momento que os operários passam a adotar um discurso menos

político, se limitando a reivindicações por atrasos salariais. Nessa conjuntura política, a

imprensa operária passa a realinhar o seu discurso:

(...) Os temas predominantes vinculavam-se a denúncias de irregularidades,

principalmente atraso de pagamento ou não recebimento de salários de firmas

que faliam. Grandes espaços eram ocupados com artigos sobre

<http://www.carosamigos.com.br/index.php/economia-2/209-revista/edicao-187/2626-vito-giannotti-a-democratizacao-da-comunicacao>. Acesso em: dez.2014. 281 Entrevista de Vito Giannotti ao programa “Quintas Resistentes”. Transmitido ao vivo em 12 set. 2013. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=FvlQsm1oSfs>. Acesso em: dez. 2014.

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assistencialismo, lazer, textos de leis, notícias diversas, algumas recortadas de

jornais da grande imprensa (...)”.282

A maior parte dos operários que desempenhava funções políticas dentro das

fábricas provinha do PCB e de movimentos deflagrados em comunidades católicas. A

formação da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSMSP) é um exemplo

disso. Embora tenha sido originária de diversas frentes de luta da classe operária, teve

forte influência de trabalhadores oriundos da Juventude Operária Católica (JOC), e da

Ação Católica Operária (ACO) do Brasil. Já no final dos anos 1950, integrantes da JOC

dedicaram grande parte de seu tempo a atividades para a compreensão da história do

Movimento Sindical no Brasil e, igualmente, as influências externas.283 Nas palavras do

ex-operário Waldemar Rossi:

(...) Percebemos que a estrutura sindical brasileira era de caráter fascista,

inspirada na “Carta de Lavoro”, de Benito Mussolini(...), que para funcionar

tinha que ser autorizado pelo Ministério do Trabalho, que, segundo a

Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), deveria ser um instrumento de

colaboração do Estado; que não reconhece a organização dos trabalhadores

na empresa, negando-lhes a garantia no exercício de sua atividade sindical;

que fora concebida e implantada de cima para baixo, à revelia do próprio

movimento sindical brasileiro, tendo por finalidade instituir o peleguismo oficial,

isto é, criar e garantir um grupo de “dirigentes sindicais” atrelados ao governo e

a serviço do capital.e anular a influência dos movimentos anarquistas e

comunistas no seio da classe operária (...).284

A experiência dos jovens, militantes do JOC, exercerá forte influência na

orientação política dos operários ainda nos momentos que antecedem o Golpe de

1964. Através de práticas estabelecidas nas fábricas, que envolvem, sobretudo, um

282 FERREIRA, 1988, p. 49-50. 283 Serviu de base para o operariado brasileiro, entre várias experiências: A Comuna de Paris, em 1817, onde ocorreu a eleição da direção de fábrica pelos operários, passando pela Rússia, em 1905, quando surgiram nas fábricas e nos bairros os soviets (conselho). E, ainda, os conselhos operários de Turim, em 1919 e 1920, quando os trabalhadores ocuparam as fábricas e controlaram a produção. BOMBARDI, Hélio. Comissões de Fábricas. Revés do Avesso. Revista do CEPE,abr./maio 2006, ano 15. 284 ROSSI, Waldemar. Um longo processo – Origens e História da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo. Revés do Avesso. Revista do CEPE, p. 3-4,abr./maio 2006, ano 15. Waldemar Rossi é operário metalúrgico aposentado como líder sindical.

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trabalho de conscientização e organização dos operários, irá se constituir, mais tarde,

um trabalho de extrema relevância para a história do movimento operário no país: o

trabalho das Comissões de Fábricas. Essa experiência nas fábricas resultará,

efetivamente, na organização dos operários in loco – ou seja, a partir do local do

trabalho. E, segundo Hélio Bombardi:“Com muito cuidado, começava o trabalho de

base: observar o companheiro durante um tempo, ver se ele se abria com você(...)o

trabalho formiguinha crescia, três, quatro, cinco companheiros, pronto: já existia um

possível grupo de fábrica”.285

No auge da repressão política, a primeira experiência de Comissão de Fábrica

bem-sucedida ocorreu em São Paulo, no município de Osasco, na fábrica Cobrasma,

em meados da década de 1960. Osasco tinha uma tradição de luta com influência do

Partido Comunista, e por conta da violência instaurada nas fábricas, apresentou recuo

em relação as práticas políticas dos trabalhadores. João Batista Cândido, militante da

JOC, foi um dos idealizadores do movimento no interior da Cobrasma. “Quando iniciei o

trabalho, com muito entusiasmo e sonhos, não via a hora de obter resultados. Comecei

a perceber, então, que os sonhos não eram tão fáceis, pois a dura realidade do dia a

dia nos mostrava o outro lado da vida operária”.286 Entre o meio operário se difundia a

necessidade de unir patrões e trabalhadores, num momento em que os ideais

comunistas representavam “perigo” à sociedade, aos interesses dos empresários, e, de

certo modo, promoviam “desequilíbrio’ social” à medida que a oposição avançava. E,

nesse sentido, o movimento operário oferecia riscos por conta da forte ligação com o

PCB, que, historicamente, está diretamente ligado ao movimento operário.

Além do trabalho desenvolvido dentro das fábricas, os operários expandiam a

luta para outros espaços, organizavam greves e buscavam a sobrevivência do

movimento mesmo sob intenso aparato policial. Nesse contexto, o ano de 1968 será

marcado por grandes manifestações. O movimento estudantil, em particular, constituiu

uma parcela da sociedade mobilizadora dos demais setores sociais, ou seja, a sua 285Depoimento do operário consta em: Revista Revés do Avesso. Revista do CEPE, p. 35, abr./maio 2006, ano 15. 286João Batista Cândido é metalúrgico aposentado, membro do Movimento do Trabalhadores Cristãos (MTC). Em seu depoimento, retrata os objetivos da Comissão da Cobrasma – dentre os principais, destacam-se: o fortalecimento dos sindicatos, conquistas nas fábricas e a ampliação de novas comissões em outros espaços de trabalho. Revista Revés do Avesso. Revista do CEPE, abr./maio 2006, p. 7-8 e 15, ano 15.

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ação política incentivou a organização de outros movimentos organizados, a exemplo

dos operários. Simultaneamente aos protestos dos estudantes, os trabalhadores

organizaram duas greves significativas nesse ano. A primeira delas ocorreu em 22 de

abril, em Contagem, Minas Gerais, onde os metalúrgicos ocuparam a fábrica em que

trabalhavam, protestando contra a constante queda de salários e reivindicando 25% de

aumento para a classe. Marcelo Ridenti e Ricardo Antunes destacam a importância de

reorganização do movimento operário naquele momento:

(...) Depois de alguns anos de resistência, foi nos inícios de 1968 que a luta

operária voltou com mais força e ofensividade. Em abril, setores sindicais à

esquerda do Partido Comunista Brasileiro, lideraram uma greve em Contagem,

cidade industrial próxima a Belo Horizonte, que teve um resultado positivo, uma

vez que a ditadura militar acabou fazendo concessões frente as reivindicações

trabalhistas, ao ser surpreendida pelo ressurgimento do movimento operário,

silenciado e reprimido desde o golpe de 1964. Foi, então, a primeira vitória de

uma greve operária depois de 1964. Organizados em Contagem e em Osasco,

articulavam-se novos núcleos de esquerda, principalmente vinculados ao

movimento operário católico de esquerda e militantes e simpatizantes de

organizações políticas mais radicalizadas e críticas, à esquerda do PCB (...). 287

É fato que a movimentação política no setor operário partiu de setores mais

esquerdistas do Partido Comunista, que exerceu, ao longo do processo, domínio sobre

a ação do operariado. As forças políticas se articulavam de forma contínua,

pressionando o governo no que se refere as reivindicações trabalhistas. Também havia

uma necessidade de tornar público o movimento de contestação, afim de difundir e

estender a luta operária a outros setores da vida pública. À medida que a sociedade e,

no caso dos operários, protestavam, a ditadura acentuava a violência nas ruas e dentro

das fábricas. No caso de Contagem, uma brutal repressão, com prisões, intervenções

no sindicato e demissões sumárias davam o “tom” do que estava por vir. O governo

287 ANTUNES, Ricardo; RIDENTI, Marcelo. Dossiê: 40 anos de maio de 68. Os operários e estudantes contra a ditadura: 1968 no Brasil. Revista Mediações, n. 2, v.12, p. 85, jul./dez. 2007.

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brasileiro ainda não havia editado o AI-5, mas, mesmo assim, a repressão crescia num

ritmo alarmante no país.288

Cerca de dois meses depois, uma greve semelhante eclodiu em Osasco, em 16

de julho,atingindo uma repercussão ainda maior no país. Dessa vez, os operários

pleitearam 35% de aumento salarial, contrato de trabalho de dois anos e reajustes

trimestrais. O governo não teve particular interesse de negociação com os

trabalhadores, e, mais uma vez, utilizou da força militar e policial para intimidar os

manifestantes. Essa movimentação em Osasco refletiu em outras fábricas,

desencadeando, na sequência, greves nas empresas Barreto Keller, Braseiros,

Granada, Lonaflex e Brown Boveri. O governo brasileiro determinou, através do

Ministério do Trabalho, a ilegalidade das greves e intervenção imediata das

organizações sindicais. A paralisação dos operários durou cerca de quatro dias, e

resultou em um cerco policial que bloqueou as saídas da cidade de Osasco e em

invasão dos policiais à empresa.

À época desse fato, o presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo,

José Ibrahim, foi preso juntamente com cerca de 600 trabalhadores. “O movimento de

Osasco trouxe novos tipos de lutas, que marcaram o movimento operário brasileiro;

entre eles, a ocupação de fábrica e detenção da diretoria dentro da empresa.”289

Durante esse período, grande parte dos líderes operários atuavam, simultaneamente,

em organizações sindicais e estudantis – em sua maioria, membros do Centro de

Estudantes de Osasco (CEO). Assim como ocorreu no movimento estudantil, o

movimento operário também teve representantes que partiram para a luta armada.

Juntamente com José Ibrahim, José Campos Barreto, conhecido como Zequinha

Barreto, foi eleito para compor a Comissão de Fábrica da Cobrasma, ainda em 1967.

288 De acordo informações do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, volume II, Eixos temáticos- violações de Direitos Humanos dos Trabalhadores de dezembro de 2014, somente no episódio de Contagem-MG, centenas de operários foram presos, no entanto, oficialmente, constam 64 prisões reconhecidas nos documentos do DOPS depositados no Arquivo Público de Minas Gerais. Sabe-se que a ditadura tratou de criar versões oficiais para os casos de prisões, mortes e desaparecimentos. E para compor as “fraudes” , os agentes dos órgãos de repressão criavam versões oficiais para cada caso. Detalhes em: Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. p. 24. Ver também: MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999. 289 Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014. p.49.

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No episódio de Osasco, “Barreto”, como era conhecido na empresa, exerceu

importante liderança junto aos operários. Na ocasião, “discursou aos soldados,

explicando as razões do movimento: chegou a paralisar a tropa por um momento”.

Detido por forças da repressão política, permaneceu cerca de 90 dias entre os cárceres

do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) e do Departamento de

Ordem Política e Social (DOPS). Da experiência de Osasco partiu para a região de

Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia. Desde então, aderiu à luta armada, filiou-se

à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), e junto com Carlos Lamarca protagonizou

uma das mais conhecidas perseguições políticas do regime militar. Após uma

emboscada no sertão baiano, em setembro de 1971, foi executado com Lamarca sem

direito à defesa. Sua trajetória foi retratada em livros e filmes.290 É conhecido pelos

antigos companheiros operários como sinônimo de coragem e resistência.

A greve de Osasco se tornou uma importante referência de luta da classe dos

trabalhadores, num momento em que os canais de resistência tinham se desarticulado

devido à repressão no trabalho e nos sindicatos. Nessa conjuntura, foi preciso

estabelecer medidas de manutenção para as organizações políticas. Desde que foi

instituída a ditadura no Brasil, coube à classe operária buscar melhores condições para

a organização do trabalho político desenvolvido entre os operários, considerando-se as

reivindicações pertinentes à classe. Assim sendo, em recente depoimento à Comissão

Nacional da Verdade, José Ibrahim fez uma análise sobre a movimentação dos

trabalhadores naqueles anos:

(...) Comecei a trabalhar muito cedo, com 14 anos, em 1961, no setor

metalúrgico, na Cobrasma. Peguei o golpe como trabalhador de base, fazendo

SENAI(...). Para nós, trabalhadores, naquela época, nós sentimos nitidamente

que o golpe era contra nós, fundamentalmente contra nós(...). Tanto é que não

foi a segunda e não foi uma das primeiras, foi a primeira medida dos militares,

intervir nos sindicatos, foi prender as lideranças (...). A primeira limpeza tinha

290 O Estado brasileiro reconheceu a culpa pela morte de José Campos Barreto em 11. Set. 1996 – através da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP. Detalhes em: Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. p. 179-182. Ver também: MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 415-424. Longa Metragem: Lamarc a-o capitão da guerrilha, 1994. Direção: Sérgio Resende. Roteiro: Sérgio Resende e Alfredo Oróz.

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que destruir, aniquilar o movimento dos trabalhadores e sindical. Depois, veio

o movimento camponês, veio a UNE, os estudantes. Mas, primeiro, fomos nós.

Essa história que os trabalhadores acordaram muito tarde e que Osasco foi só

o lampejo, não é verdade. Os trabalhadores nunca aceitaram o golpe militar e

sempre resistiram. Sempre estiveram na luta, claro que é luta de vanguarda,

não estou falando de massa. Mas, muitos filhos da classe de trabalhadores

foram para luta como nós, lá em Osasco, como os companheiros do ABC, de

várias regiões, como os companheiros de Contagem, os de Volta Redonda,

foram para a luta, foram para a resistência. Não aceitamos a antidemocracia, o

regime autoritário, opressivo (...).291

No ambiente das empresas, dentre os operários que representavam os

“companheiros” nas comissões de fábrica e, também, nos sindicatos, a busca pelo

aumento dos rendimentos mensais, melhores condições para atuar no ambiente de

trabalho, e liberdade nas ações de caráter político estavam entre as principais

reivindicações da categoria. A possibilidade de expressar as lutas dos trabalhadores,

juntamente com a autonomia dos sindicatos, se caracterizou como uma contínua

batalha do movimento operário, que perdurou durante várias décadas, desde a sua

concepção. As comissões de fábricas simbolizavam uma força política, atuante nos

interior das empresas, com expressivas representações que mantinham especial

preocupação em estender o trabalho para outros espaços: “Fortalecemos a comissão

de fábrica da Cobrasma e colaboramos para a organização de comissões em outras

fábricas. Ajudamos a organizar o MIA (Movimento Intersindical Anti-Arrocho), que

envolvia Osasco, ABC, Campinas e São Paulo”.292

As greves de Contagem e Osasco simbolizaram um importante momento de

resistência dos operários após os acontecimentos de 1964. Aos poucos, buscavam

formas de atuação dentro de um desfavorável cenário político. Com a promulgação do 291 José Ibrahim foi cassado na condição de presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco. Foi um dos líderes da Comissão de Fábrica da Cobrasma, em 1968. Prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade em 02de abril de 2013, e na ocasião relatou as resistências do movimento operário na ditadura civil-militar. Integrou os quadros da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e do grupo de sindicalistas que apoiou os trabalhos da GT – Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical da Comissão Nacional da Verdade. Faleceu em 02 de maio de 2013, aos 66 anos, um mês depois de prestar esse depoimento. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FVStMWmIlr0>. Acesso em: jan.2015. 292 SILVA, João Joaquim. As greves de 68 – Intervenção em Osasco. Revista Revés do Avesso.Revista do CEPE, p. 15, abr./maio 2006, ano 15.

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Ato Institucional n. 5 (AI-5), e o estabelecimento pleno da censura no país, se configura

um novo período de lutas: era preciso reorganizar as bases. O ex-líder sindical,

Waldemar Rossi, retrata o impacto do AI-5 para a classe dos trabalhadores:

(...) Em fins de 68 tivemos a implantação do AI-5, com a suspensão de todos

os direitos políticos individuais e coletivos – que permitia a intervenção de

qualquer força de repressão, em qualquer lugar, sem necessidade de

autorização judicial, pela simples suposição de haver algo “ilegal”. Neste

contexto em 69, o pessoal do PCB propôs a formação de uma Chapa de

Oposição em São Paulo, incluindo parcela de pelegos ligados ao sindicalismo

anterior ao golpe. Retomava, claramente, a ideia de direção do sindicato, nos

moldes do sindicalismo populista dos tempos getulistas(...).293

O início dos anos 1970 será marcado pela intensificação da violência no país. A

partir da ascensão do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) à presidência, e

os poderes atribuídos ao AI-5, fecham-se todos os canais de comunicação e

negociação política no país. A repressão se estende a diversos segmentos da

sociedade, das universidades as fábricas, nas cidades e no campo, se esgotam todas

as possibilidades de resistência. Os trabalhadores no interior do país também serão

atingidos. A disputa por terra e pela propriedade também irá deflagrar a violência nas

zonas rurais. O governo estimulará a ida de trabalhadores nordestinos para regiões do

interior do país, normalmente em áreas de posses, sem nenhum tipo de

documentação. Ao mesmo tempo, ocorria a expansão do latifúndio pelas grandes

empresas agropecuárias, a partir da expulsão desses trabalhadores rurais que sofriam

com as perseguições dos jagunços e da própria polícia militar a serviço das

autoridades locais. Romualdo Pessoa Campos Filho estudou os conflitos e a

resistência no campo:

É grande a violência que marca esses conflitos. No período de 1971 a 1976,

um em cada dois conflitos noticiados teve vítimas (mortos e feridos), e mais de

50% correspondem aos casos de morte(...), Posseiros que tiveram suas casas

queimadas por jagunços a serviço dos grileiros, fazendeiros e grandes 293 ROSSI, Waldemar. A primeira batalha. As eleições sindicais em São Paulo e Oposição. Revista Revés do Avesso. Revista do CEPE, p. 19, abr./maio 2006, ano 15.

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empresas ou multinacionais; os que têm sido despejados, quase sempre

violentamente, por equipes combinadas de jagunços e policiais, com base em

decisões policiais; os que são presos, quase sempre arbitrariamente até

submetidos a torturas, como às vezes acontece no Mato Grosso e no sul do

Pará; os que adoecem ou morrem, especialmente crianças, após a expulsão,

por falta de recursos; e até mesmo os que, lançados fora da terra, deslocam-se

mais para dentro da mata, à procura de terras ainda não disputadas pelas

grandes fazendas e empresas e ali sucumbem vitimados pela malária.294

Paralelamente à violência instaurada no campo, o país vive com otimismo o

período do chamado “Milagre Econômico”, que se estende, aproximadamente, entre os

anos de 1968 a 1973, fato que casou uma aparente situação de normalidade e

crescimento econômico com base em projetos grandiosos e um acelerado crescimento

na economia. Na esfera política, a ditadura reforçava essa ideia através dos slogans

“Ninguém segura este país”, “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, com o claro objetivo de

promover uma propaganda ideológica do regime e, por meio de uma implacável

censura, se estabeleceu um clima de ufanismo em toda a nação. “Não resta dúvida de

que as taxas de desenvolvimento foram fundamentais para a ditadura acalmar os

setores descontentes e consolidar sua hegemonia na sociedade”.295O crescimento do

proletariado nesse período acompanha o desenvolvimento do processo de

industrialização que o país vivenciou com as políticas econômicas adotadas durante a

primeira década do regime.

Apesar do clima de entusiasmo registrado em alguns segmentos sociais, a

exemplo do empresariado, o setor operário foi duramente atingido. Do final dos anos

1960 e praticamente durante toda a década de 1970, houve uma efetiva diminuição em

relação aos protestos da classe dos trabalhadores. As greves se tornaram

praticamente impossíveis durante esse período. Com amparo legal da Lei Antigreve,

editada em 1964, o Estado encontrou meios de desarticular a ação dos operários.

Praticamente todas as greves realizadas após 1964 foram consideradas ilegais. 294 MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 106. In: CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia – A esquerda em armas. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Anita Garibaldi, 2012. p.103. 295 Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014. p.51.

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“Constatou-se um declínio abrupto no número de greves nos anos 1960 e 1970: 154;

em 1962: 302; em 1963: 25; em 1965:15; em 1962: 12; em 1970 e 1971: nenhum

registro”.296

A comunicação entre os operários era estabelecida até nos momentos mais

difíceis da repressão política. Os boletins da Oposição Sindical Metalúrgica (OSM)não

deixavam de circular, mesmo que de maneira clandestina. A publicação com o nome

“Luta Operária”297 eram passados de “mão em mão” dentro das fábricas, o que garantiu

a contínua representação política do operariado no ambiente das empresas. Embora os

trabalhadores não estivessem efetivamente nas ruas, não abdicaram das práticas

políticas e reivindicatórias para a categoria.

Entre 1971 e 1973, o período em que o regime com os seus mais ferrenhos

inimigos, levando ao arrefecimento da oposição, o que persiste é a existência

de pequenos núcleos clandestinos, editando jornais próprios, panfletos e teses

políticas, mas nas mais precárias condições materiais.298

É fato que, a pressão política exercida pelo Estado naqueles anos, a censura

presente em todo e qualquer setor social, o medo de uma demissão arbitrária e uma

eventual denúncia aos órgãos de segurança, dificultou, parcialmente, a movimentação

dos operários, que, historicamente, sempre recriou suas frentes de luta. Com a

vigilância nas fábricas,

alguns grupos de liderança iam nos horários de refeições nas portas das

empresas para conversar com os trabalhadores fazendo um intercâmbio dos

problemas apontados. Também passavam filmes em salões de Igrejas ou

escolas, com debates como meio de formação política.299

296 COMISSÃO Nacional da Verdade, 2014, p. 67. 297 Por conta do aparato repressivo, os trabalhadores buscavam maneiras de driblar a repressão. Os jornais clandestinos alternavam os nomes: O Metalúrgico, Luta Operária, Luta Metalúrgica, Notícias Metalúrgicas, foram algumas dessas publicações. Revista Campanha 2011 “Contemos nossa História”. Banco de Dados on-line dos jornais e publicações do arquivo da OSMSP – IIEP – Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas. Projeto Memória da Oposição Metalúrgica de SP, 2011. p.7. 298 FERREIRA, 1988, p. 55. 299 ANDRADE, Antônio Prade de. Um tempo para não esquecer - ditadura: anos de chumbo. Rio de Janeiro: NPC Piratininga Cursos Livres e Editora Ltda, 2014. p.156.

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A oposição que se constituiu nas fábricas por parte dos operários surgiu da

necessidade de implantação de melhorais para a classe – desde a sua concepção.

Esses operários buscavam alinhar suas necessidades ao que era oferecido em termos

de benefícios e condições para atuarem nas empresas, promoviam a conscientização

política de seus “companheiros”. A partir de 1964, com a intervenção nos sindicatos, a

ditadura nomeia sindicalistas-interventores, os chamados “infiltrados”, que passam a

denunciar os trabalhadores “oposicionistas”. A partir desse momento, a oposição dos

operários passa a atuar de forma mais decisiva e irá exercer um papel fundamental de

resistência durante o regime militar.

3.3 A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo

“A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo nasceu de um longo processo

de acumulação de forças”.

Waldemar Rossi

Foi diante de um cenário de acirrada disputa política no interior das fábricas e

dos sindicatos que nasceu a Oposição Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP). A

formação dessa organização político-operária representa uma resposta à presença dos

pelegos e interventores da ditadura, sobretudo, na diretoria dos sindicatos. A

movimentação dos trabalhadores, suas reivindicações e propostas políticas eram

supervisionadas pela ação desses interventores do Estado, o que afetou diretamente a

condução das práticas políticas realizadas pelo operariado. “Pode-se imaginar os

obstáculos que enfrentamos para desenvolver o trabalho de organização e

conscientização dos companheiros metalúrgicos”.300 A fala de Elias Stein, ex-

sindicalista, reflete o ambiente que se instaurou nas fábricas, obedecendo a um intenso

sistema de controle sobre os operários desde o momento da chegada até o horário de

saída.

As prisões deflagradas nos locais de trabalho se tornaram constantes durante

todo o período da ditadura civil-militar. Com o amparo legal do AI-5, não havia mais

300 STEIN, Elias. Seis anos de aprendizado – uma oposição sindical e um sindicato combativos.Revista Revés do Avesso. Revista do CEPE,p. 26, abr./maio 2006, ano 15.

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critérios para o estabelecimento da violência em todos os segmentos da sociedade. Os

operários passaram a sofrer com perseguições nas ruas, em suas casas e no próprio

ambiente de trabalho:

(...) Era mais ou menos umas dezessete horas. Nós saíamos às dezoito horas

do trabalho. Era dezessete, mais ou menos. Ele chegou dizendo: “Olha, a

polícia está aí para pegar você”. Eu falei: “Vai me prender trabalhando?”

Vieram os seguranças da empresa e aí vieram com escolta da polícia militar.

Eu falei: “Não vou sair, resisti. Estava com meu instrumento de trabalho na

mão. Eu resisti e disse: “Eu não vou sair daqui. Aí, eles me pegaram cada um

de um lado. E esse chefe oportunista pegou por trás o meu cabelo e eu caí. Fui

sendo arrastada e com o martelo na mão.301

Mesmo sob vigilância policial, os trabalhadores foram, aos poucos, recriando

espaços de organização e conscientização política. O processo embrionário que

envolveu as atividades da OSM-SP se traduziu num amplo trabalho dirigido aos

operários. Seu posicionamento político refletiu na adesão de vários setores da

esquerda, sobretudo, do PCB. “Seu método foi o intenso investimento no trabalho de

base e no poder de decisão dos próprios trabalhadores, configurando-se como uma

frente de trabalhadores”.302 Das mais significativas vertentes da esquerda que

contribuíram para a formação da OSM-SP, pode-se destacar a participação da

militância cristã da Juventude Operária Católica (JOC) e da Ação Católica Operária

(ACO), organizações já citadas neste capítulo,que influenciaram ideologicamente o

movimento operário desde o início dos anos 1960. Os militantes da ala mais radial da

esquerda também estiveram presentes nas ações do movimento operário. A prática da

OSM-SP foi aglutinar toda a pluralidade de grupos e concepções de esquerda que

existiam na categoria metalúrgica, em consequência de seu método de organização,

amplamente democrático.303

301 Vídeo com depoimento Alves, operária aposentada,na apresentação dos resultados da Investigação Operária, em 14 dez. 2013. Disponível em: <https://iiepmemoriaoperaria.wordpress.com/fotos/>. Acesso em:08jan. 2015. 302 Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014. p. 67. 303 Ibidem, p. 69.

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Juntamente com diferentes segmentos da esquerda, a composição da OSM-SP

contou com a presença dos operários que atuavam diretamente nas fábricas,

desempenhando funções políticas e de auxílio aos “companheiros” afetados por

questões ligadas às condições de trabalho. As reivindicações se ampliavam no sentido

de garantir respaldo as necessidades da classe dos trabalhadores, o que inclui, ainda,

uma ativa participação política dos seus integrantes. “As teses e polêmicas sobre o

caráter da revolução no Brasil, entre outras discussões dos grupos de esquerda,

estavam presentes nas conversas da direção da Oposição Sindical Metalúrgica”.304

Desde as primeiras formações do movimento operário no Brasil, dentre as

principais preocupações constavam a autonomia dos sindicatos em relação ao Estado.

Com a intervenção e censura promovidas pelos órgãos de repressão no pós-1964, a

movimentação política, partindo das bases, no ambiente interno das empresas, passa a

ser comprometido. Tomando como referência esse aspecto, reafirmou-se,

continuamente, um trabalho de construção de orientação política associado a

propostas e experiências revolucionárias. A experiência trazida pelos membros do PCB

foi fator determinante nessa atual conjuntura. David Maciel reforça essa ideia:

as organizações da esquerda marxista procuravam se refazer do processo de

desagregação sofrido no período anterior, desenvolvendo um trabalho de base

junto às classes subalternas, particularmente a classe operária, contribuindo

para sua organização e politizando sua inserção social.305

Com o intuito de elaborar efetivas condições para o enfrentamento político com a

ala intervencionista dos sindicatos, líderes operários oposicionistas planejam concorrer

às eleições para o comando do Sindicato dos Metalúrgicos– até então, dirigido por

pelegos –, nas eleições de 1967. Os oposicionistas pretendiam combater a estrutura

vigente no Sindicato dos Metalúrgicos, que atendia exclusivamente aos interesses

capitalistas. Estabeleceu-se, portanto, um contraponto diante da postura

“assistencialista” dos sindicatos oficiais, praticada antes mesmo de 1964.

De acordo com Teones França,

304 Ibidem, p. 69. 305 MACIEL, 2004, p.106.

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a Oposição Metalúrgica de São Paulo, um dos baluartes do chamado novo

sindicalismo, fazia nos anos 70 um discurso bastante crítico à estrutura e aos

mecanismos assistencialistas contidos nesta para atrair os trabalhadores e

transformar os sindicatos em organismos pouco combativos.306

Sendo assim, surgiram ao mesmo tempo na grande São Paulo, duas chapas de

oposição metalúrgica: a de Osasco e a de São Paulo. Sob liderança de José Ibrahim,

experiente dirigente da Comissão de Fábrica da Cobrasma, a chapa que contemplava

integrantes da esquerda católica foi vitoriosa, e passou a conduzir os futuros trabalhos

da Oposição Metalúrgica na cidade de Osasco. Já em São Paulo, os oposicionistas

não tiveram o mesmo êxito. Segundo Waldemar Rossi:

(...) A chapa de São Paulo, composta por militantes cristãos, membros do PCB

e um grupo de “independentes”, foi derrotada porque não pediram a

recontagem dos votos. Isto é, fomos roubados pela chapa dos interventores,

que, por sinal, contavam com o apoio explícito das forças de repressão (DOPS,

Polícia Federal, SNI), infiltrados no sindicatos(...) Com essa primeira chapa

oposicionista já defendíamos a organização nas fábricas, a formação e

reconhecimento das Comissões de Fabricas (CFs) e a luta pela construção de

uma Central Sindical autônoma. Essa primeira disputa em São Paulo contou

com o apoio político de alguns grupos de esquerda, que começaram a

frequentar os sindicatos, e de gente das comunidades, principalmente, de

religiosas e padres – que acompanhavam nosso trabalho, atuando como

mesários (...). 307

Numa tentativa de resgatar forças políticas, até então dispersas por conta do

aparato repressivo, os operários resolveram retomar o movimento de resistência –

inicialmente restrito às fábricas e arriscar numa representação mais ofensiva, a

exemplo do comando dos sindicatos. A OSM-SP, que teve destacável influência sobre

os operários, buscava o reposicionamento da classe frente à crescente desvantagem

dos operários diante das condições de trabalho, do arrocho salarial e da violência 306 FRANCA, Teones. Novo sindicalismo no Brasil – histórico de uma desconstrução. São Paulo: Cortez, 2013. p.105. 307 ROSSI, Waldemar. A primeira batalha. As eleições em São Paulo e a Oposição. Revista Revés do Avesso. Revista do CEPE,abr./maio 2006, ano 15.

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praticada pelo Estado. Nesse sentido, visava-se o alinhamento da estrutura sindical a

uma nova ordem de cunho político e reivindicatório.

O resultado das eleições de 1967 entre “Chapa Verde”, representada por

membros da Oposição Metalúrgica, liderados por Waldemar Rossi, e da “Chapa dos

Pelegos”, comandada por Joaquim dos Santos Andrade, favoreceu os interventores do

governo com mais de 50% dos votos, numa eleição que não apresentou caráter

democrático. Uma manobra da ditadura promoveu mudanças no estatuto dos

sindicatos, e o mandato da diretoria passa a ser de três anos.

Nos bastidores tinha apoio dos empresários e de políticos da direita detentora

do poder. Montavam um esquema de fraude nas apurações dos votos. Tanto

que, durante todo o período militar, a oposição não conseguia ganhar as

eleições.308

Essa situação irá perdurar durantes muitos anos, pois, nas eleições de 1969,

1972, 1974 e 1975, a Oposição Metalúrgica não apresentou candidatos.

Como forma de garantir interesses particulares e, de certo modo, a hegemonia

capitalista no mundo, o empresariado brasileiro não esteve à margem de todo sistema

de repressão política instaurado no país a partir de 1964, e antes disso. Com efeito,

colaborou diretamente com os órgãos de segurança durante o período militar, até

mesmo por meio de recursos financeiros.

As empresas brasileiras funcionavam como fonte de informação sobre operários

e sindicalistas, divulgavam, constantemente, lista com nomes de trabalhadores tidos

como “subversivos”. Esse forte esquema de segurança se consolidou por meio de um

acordo entre empresários e organismos de repressão do Estado. De acordo com o

depoimento de Therezinha Bispo:

(...) Os recursos humanos nesta época, nós nos reunimos, através de uma

entidade chamada AAPSA (Associação dos administradores de Pessoal de

Santo Amaro) e lá se partilhava os conhecimentos e informações da área de

recursos humanos e, também, vinha informações da época da ditadura sobre a

lista de pessoas que a gente devia ter cuidado para contratar porque eram 308 ANDRADE, 2014, p. 157.

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pessoas ditas como ativistas, pessoas que iam articular dentro das fábricas

(...).309

Durante todo o período de resistências nas fábricas, os operários foram vítimas

de um sistema de colaboração entre empresários e setores públicos vinculados ao

governo. Essa estrutura obedeceu a um forte esquema de controle e repressão, em

que se destacavam os trabalhos das “comunidades” civis e militares no âmbito estadual

e federal. Nesse contexto, “havia as comunidades complementares, que eram os

governos estaduais, municipais e entidades privadas”.310Em relação aos Estados,

coube administrar o aparato repressivo que foi montado através da ação das polícias

civis, militares, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)e,dependendo da

circunstância, envolvia até o Instituto Médico Legal (IML). Em recente depoimento,

Rosa Cardoso revelou esse esquema:

(...) A colaboração dos empresários que articularam o golpe com os militares

foi posteriormente intensa com os órgãos de repressão. Eles planejavam,

armaram e nutriam a Operação Bandeirantes (Oban), que foi a semente dos

DOI-CODIs implantados em todo o país. Eles estimularam e produziram

equipamentos para a indústria bélica que os militares tentaram desenvolver

durante a ditadura. As elites empresariais tiveram negócios muito articulados

com os negócios que os militares expandiram, como por exemplo, na área de

infraestrutura (...). 311

Apesar da constante violência registrada aos operários, o movimento ganhou

força a partir da formação da Oposição Metalúrgica de São Paulo e de manifestações

“pontuais’ que refletiam a continuidade da luta.No entanto, alguns integrantes da OSM- 309 Depoimento de Therezinha Bispo, ex-auxiliar de Recursos Humanos da empresa Sulzer, na apresentação dos resultados da Investigação Operária, em 14 de dezembro de 2013. Disponível em: <https://iiepmemoriaoperaria.wordpress.com/fotos/>. Acesso em:8jan. 2015. 310 SEIXAS, Ivan. A relação promíscua entre os empresariado e a repressão política.Investigação Operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores/Conselho Político do Projeto Memória da OSM-SP. São Paulo: IIEP – Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo/Projeto Memória, 2014, 311 Entrevista de Rosa Cardoso, que integrou a Comissão Nacional da Verdade e foi uma das responsáveis em emitir relatórios sobre a repressão ao movimento operário no País. Documentos comprovam: Empresas colaboraram com repressão militar. Punição Já!, Revista do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região, p. 15, 2014. Disponível em: <http://nucleopiratininga.org.br/carta-capital-registra-descoberta-da-comissão-da-verdade/>. Acesso em: 10 jan. 2015.

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SP foram atingidos fatalmente pela repressão contida nas ruas. O primeiro caso

ocorreu nas manifestações de 1º de maio, em 1970, com o assassinato de Olavo

Hansen – que integrava a OSM-SP e militava no Partido Operário Revolucionário dos

Trabalhadores (PORT), uma dissidência do PCB.

De acordo com informações do Livro-Relatório da Comissão Especial de Mortos

e Desaparecidos (CEMDP), o operário que trabalhava na indústria química IAP, em

Santo André, foi morto sob torturas no DOPS, em São Paulo, após ser preso e passar

por diversos presídios da capital. Em 29 de fevereiro de 1996, já no início dos trabalhos

da CEMDP, o Estado brasileiro reconheceu a culpa pela morte de Olavo Hansen. O

relator do processo n. 082/1996 concluiu que a versão oficial de suicídio apresentada

pelos órgãos de segurança da época, não condizia com a realidade dos fatos. Na

conclusão dos relatórios constam as seguintes informações:

É inaceitável a versão de suicídio e encontro do cadáver em via pública, devido

ser reconhecido por esta Comissão, o falecimento de Olavo Hansen em

09/05/1970, por causa não natural, em dependência hospitalar militar, para

onde foi levado em estado de coma.312

No ano seguinte, em dezembro de 1971, outro operário foi vítima da repressão

política em São Paulo. Luiz Hirata morreu em consequência de torturas em 20 de

dezembro de 1971, pela equipe do delegado Sérgio Fleury. No relatório final da

CEMDP consta a trajetória de militância do operário e a maneira como foi executado

pelos órgãos de segurança:

(...) As peças do processo dão a plena convicção de que Luiz Hirata estava

preso na polícia paulista e foi conduzido ao Hospital das Clínicas em estado

terminal irreversível(...) o professor universitário Heládio José de Campos

Leme, companheiro de prisão de Hirata testemunha a progressiva deterioração

do estado físico dele em consequência dos maus-tratos, depois das sessões

de “interrogatórios” era trazido carregado pela polícia(...). 313

312 Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. p. 126-127. 313 Ibidem, p. 193-194.

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Mais tarde, em 1976 e 1979, foram assassinados Manoel Fiel Filho e Santo Dias

da Silva. O primeiro, retirado de casa e assassinado nas dependências do DOPS-SP.

Já Santos Dias foi morto nas manifestações grevistas, em 1979. Nesses casos, não

restam dúvidas da violência praticada pelo Estado brasileiro, desencadeando uma

sequência de crimes.

Após um longo período de estagnação, principalmente, após os acontecimentos

de 1964, o movimento operário passa a se (re)estruturar de forma mais expressiva no

final dos anos 1970, concomitantemente ao processo de distensão política

desencadeado pelos militares. Reprimido pela forte presença da ação policial imposta

pela ditadura, o movimento operário encontra, sobretudo no interior das fábricas,

impulso para o posicionamento político que irá se reafirmar nas manifestações

grevistas no período (1978-1988). O final dos anos 1970 será marcado pelo

fortalecimento do movimento operário no Brasil.

Mesmo sob égide dos militares e do modelo autoritário vigente, uma expressiva

greve aconteceu em 12 de maio de 1978, na fábrica da Saab-Scania. As

manifestações, até então proibidas pela ditadura, encontram “brechas” para atuar

dentro de um cenário político com poucas possibilidades de protestos. “Em outras

ocasiões, o regime aniquilara greves mediante a repressão(...) Mas, dessa vez, isso

não aconteceu porque o recurso à violência poderia indicar à opinião pública que a

abertura não era pra valer, em particular para os trabalhadores.”314

O ano de 1979 assistiu à generalização das manifestações grevistas por parte

dos operários. Foram inúmeras greves de categorias, reivindicando melhorias para a

classe: aumento salarial, jornada de trabalho de 40 horas semanais, direito à greve,

autonomia dos sindicatos, atingidos pela repressão política durante todo o regime

militar e, principalmente, a adesão aos movimentos pró-anistia que dominaram o

cenário político no final dessa década. Na concepção de Eder Sader, “entre as rupturas

que marcaram todas as transições, uma das mais impressionantes é certamente a que

cruza a história do movimento operário, ou das “classes populares”.315 E, acrescenta:

314 SINGER, Paul. O processo econômico – A ressurreição do movimento operário. In: REIS, Daniel Aarão. Modernização, Ditadura e Democracia (1964-2010). Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 209. 315 SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 26.

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“atores sociais e intérpretes, no próprio calor da hora, se aperceberam de que havia

algo de novo emergindo na história social do país”.

Nesse mesmo ano, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo realiza seu

primeiro Congresso. O evento, que propôs a formação de uma única central dos

trabalhadores, inaugura uma nova fase do movimento sindical, adotando uma linha

Sindical Classista - que impulsionará a formação de diversas oposições sindicais pelo

Brasil e, principalmente, trará mudanças na presença dos pelegos ao meio operário.

Todas essas articulações serão determinantes para o futuro da organização dos

trabalhadores no Brasil.

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CAPÍTULO 4

A COMISSÃO DE ANISTIA E O PROCESSO DE REPARAÇÃO DOS OPERÁRIOS ATINGIDOS PELO ESTADO DE EXCEÇÃO

(1964-1979)

“Anistiar não é esquecer, anistiar é reconhecer o erro. Quem errou? Aqueles

que lutaram para ver os seus direitos protegidos ou quem aviltou esses

direitos? Por isso a gente entende que é dever do Estado brasileiro que não

protegeu esses direitos,pedir perdão”.316

4.1 O processo de reparação histórica no País

Somente em 1995, o governo brasileiro reconhece oficialmente a

responsabilidade pelos crimes cometidos durante os anos de repressão política. Após

dez anos do fim do regime militar no país (1964-1985), o governo viabilizou, com a

promulgação da Lei 9.140/1995, conhecida como a “Lei dos Desaparecidos”, a

reparação àqueles que foram vítimas da violência do Estado durante a ditadura

militar.317 Com base nessa lei, foi possível assumir a culpa pelos assassinatos

praticados contra opositores políticos por meio de indenização moral às vítimas e

financeira a seus familiares, conforme abordado em detalhes nesta tese.

Apesar da importância histórica das reparações concedidas pelo governo

brasileiro, há fatos que ainda não foram amplamente discutidos e, principalmente, não

316 Entrevista concedia à autora desta tese em Brasília, no Ministério da Justiça, no dia 10 de novembro de 2012. Depoimento de Sueli Aparecida Bellato,conselheira e vice-presidente da Comissão de Anistia. Trabalhou com Hélio Bicudo na Procuradoria da República, na Comissão de Direitos Humanos. Em 2007, passa a integrar a Comissão de Anistia por convite do presidente Paulo Abrão, onde se encontra até os dias atuais. 317 SANTOS, Sheila Cristina. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a reparação do Estado às vítimas da ditadura militar no Brasil. 2008. Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP.

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foram absorvidos por diversos setores da sociedade. O principal deles está relacionado

à punição de torturadores e agentes públicos que praticaram crimes não previstos pelo

Estado de exceção. Com o amparo da Lei da Anistia, os autores desses crimes jamais

foram a julgados, revelando o caráter inacabado do processo, iniciado em 1979.

Os debates públicos realizados sobre o tema anistia no Brasil reafirmam a

necessidade de revisão da Lei 6.683/1979, para que sejamos contemplados com um

processo de reparação mais justo e de acesso à verdade – e, nesse aspecto, inclui-se

a punição aos algozes. Vale ressaltar que nenhuma lei posterior a essa, a exemplo da

Lei 9.140/1995, dispõe de mecanismos legais a fim de garantir punição para os crimes

de tortura praticados no período da repressão política. Por essa razão, se torna

fundamental a abordagem desse tema em profundidade com participação ativa da

sociedade. Sobre a lei de anistia, editada em 1979, Edson Claudio Pistori e José Carlos

Moreira da Silva Filho refletem a respeito:

(...) Não foi diferente com a anistia que veio com a Lei 6.683/79. É bem

verdade que ela marcou o início da redemocratização do país, permitindo o

retorno de intelectuais, artistas, militantes políticos e demais pessoas

perseguidas politicamente que se encontravam no exílio. É verdade também

que ela surgiu a partir de uma intensa e ampla mobilização nacional, como há

muito tempo não se via no Brasil. Contudo, não se pode ignorar que essa

anistia veio ainda na vigência da ditadura militar brasileira e que, em

decorrência disso, além de deixar de fora uma boa parte dos que eram

perseguidos políticos, como aqueles que se envolveram na resistência armada,

foi recebida e interpretada como um apelo ao esquecimento, inclusive das

torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados realizados pelo governo

ditatorial (...).318

E é nesse sentido que os propósitos de pacificação e conciliação nacional,

almejados por diversos segmentos da sociedade e amplamente discutidos à época da

anistia, passam a ocupar, na atual conjuntura política, significativo espaço na pauta das

discussões sobre direitos humanos no Brasil, pelo fato do País não ter promovido as

devidas reparações às vítimas e por não considerar aspectos fundamentais de justiça – 318 PISTORI, Edson Claudio; SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Memorial da Anistia Política do Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de transição, Brasília, Ministério da Justiça, n. 1, p. 121, jan./jun.2009.

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a exemplo do julgamento aos que protagonizaram crimes de assassinatos, tortura e

desaparecimentos nos anos de repressão.

No entanto, há um consenso por parte de membros das corporações militares e

de setores mais conservadores da sociedade: não há como retroceder na história. O

governo brasileiro desempenhou o seu papel com a edição da lei da anistia de 1979 e

não faz sentido retomar essa discussão319 – o que revela o sentido do esquecimento

dos episódios da ditadura.

Há, portanto, contradições no sistema reparatório das vítimas do regime militar

no Brasil. De certo modo, a possibilidade de revisão, ou mesmo ampliação, da lei da

anistia representa a continuidade de um processo que privilegia as indenizações

financeiras. De acordo com Glenda Mezarobba:

(...) Partindo da constatação de que o investimento principal do Estado

brasileiro foi feito em justiça administrativa, voltada à compensação financeira,

sem nenhum empenho na busca por punição ou verdade, ao tratar da prática

predominante no processo de acerto de contas com as vítimas do regime

militar (...) no Brasil predominaram as reparações e não outras formas de

resposta à herança do período autoritário (...).320

Nesse aspecto, é possível que a Lei 10.559/2002,321 que estabeleceu bases

para a criação da segunda comissão de reparação do Estado brasileiro, a Comissão da

319 Militares rebatem declarações de Tarso Genro em ato no Rio. Fonte: Globo.com – G1. 07 ago. 2008. No mês de agosto de 2008, militares da reserva estiveram reunidos na sede do Clube Militar no Rio de Janeiro, no Seminário “A Lei da Anistia – alcance e consequências”. A motivação do encontro foram as declarações do Ministro da Justiça, Tarso Genro, que defende a punição para os agentes que praticaram tortura durante o regime militar. 320 MEZAROBBA, Glenda. O preço do esquecimento: as reparações pagas às vítimas do regime militar (uma comparação entre Brasil, Argentina e Chile). Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. 321 Promulgada a 13 de novembro de 2002, a Lei 10.559/2002 dá as seguintes providências: “(...) Art. 1o O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos: I - declaração da condição de anistiado político; II - reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade,nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1oe 5o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; III - contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias; IV - conclusão do curso, em escola pública, ou, na falta, com prioridade para bolsa de estudo, a partir do período letivo interrompido, para o punido na condição de estudante, em escola pública, ou registro do respectivo diploma para os que concluíram curso em

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Anistia do Ministério da Justiça, nos permita avançar consideravelmente em relação ao

processo de reparação às vítimas. Por meio dessa Comissão, o Estado promoveu, e

ainda promove, reparação moral e financeira aos cidadãos perseguidos durante a

ditadura civil-militar: aqueles que deixaram de exercer suas funções profissionais por

conta da repressão política, que foram banidos do País, vítimas de exílios forçados,

expulsos das universidades, aqueles que foram demitidos de forma arbitrária e que, de

alguma forma, sofreram abuso ou qualquer tipo de violência praticada pelo Estado.

Criada a partir da Medida Provisória 2.151, a Comissão de Anistia foi instalada

pelo Ministério da Justiça em 2003. Com base na Lei 10.559/2002, essa Comissão é

responsável por analisar os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que

foram impedidas de exercer suas atividades econômicas por motivação exclusivamente

política, de 18 de setembro de 1946 até 05de outubro de 1988. Para tanto, os

requerentes têm de comprovar não só a perseguição política, mas também os prejuízos

financeiros que sofreram. Atualmente, a comissão é composta de 25 conselheiros,322

nomeados pelo seu presidente, Paulo Abrão Pires Jr.323

Das competências estabelecidas a essa Comissão:

I - Examinar os requerimentos de anistia e assessorar o ministro de Estado da

Justiça em suas decisões, nos termos da Lei 10.559/02, de 13 de novembro de

instituições de ensino no exterior, mesmo que este não tenha correspondente no Brasil, exigindo-se para isso o diploma ou certificado de conclusão do curso em instituição de reconhecido prestígio internacional; e V - reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em serviço público e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional por motivo político (...)”. Essa lei é apresentada na íntegra em anexo neste trabalho. 322De acordo com o Regimento Interno da Comissão de Anistia, Artigo 2º, a Comissão será composta de no mínimo 20 conselheiros. Comissão de Anistia – cartilha informativa. Brasília: Comissão de Anistia/MJ, 2010, p. 8. 323Os conselheiros nomeados pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, trabalham voluntariamente. Tratam-se, geralmente, de profissionais da área do Direito. Dos conselheiros que compõem esta Comissão do Estado: Sueli Aparecida Bellato (também desempenha a função de vice-presidente da Comissão de Anistia), José Carlos Moreira da Silva Filho (também exerce função de vice-presidente), Egmar José de Oliveira (vice-presidente e conselheiro), Ana Maria Guedes, Ana Maria Lima de Oliveira, Aline Sueli de Salles Santos, Carolina de Campos Melo, Carol Proner, Cristiano Paixão, Eneá de Stutz e Almeida, Henrique de Almeida Cardoso, Juvelino José Strozake, Lucina Silva Garcia, Manoel Severino Moraes de Almeida, Márcia ElayneBerbich de Moraes, Marina da Silva Steinbruch, Mário Albuquerque, Marlon Alberto Weichert, Narciso Patriota Fernandes Barbosa, Nilmário Miranda, Prudente José Silveira Mello, Rita Maria de Miranda Sipahi, Roberta Camineiro Baggio, Rodrigo Gonçalves dos Santos, Vanda Davi Fernandes de Oliveira, Virginius José Lianza da Franca. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/anistia política>. Acesso em: 10 dez.2014.

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2002; II - Implementar e manter o Memorial de Anistia Política do Brasil e seu

acervo; e III – Formular e promover ações de projetos sobre reparação e

memória, sem prejuízos das competências de outros órgãos. Competência

estabelecida pelo Decreto n. 6.601, de 15 de março de 2007, anexo I.324

Entre o período de 2001, quando é iniciado o trabalho da Comissão de Anistia,

até 2007, foram protocolados no Ministério da Justiça 57.637 requerimentos de

cidadãos que solicitavam indenização do Estado. Dois anos mais tarde, ou seja, em

2009, houve um aumento considerável, e o número aumentou para 64.151.325 O

julgamento desses processos são realizados publicamente, com a presença do

anistiando, de seus familiares e aberto também a todos os cidadãos interessados.

Geralmente, ocorrem em Brasília, onde ficam centralizados todos os processos e os

arquivos, com a presença do presidente da Comissão e dos conselheiros, ou em

diversas regiões do País, através do trabalho itinerante das Caravanas da Anistia.

Cada conselheiro fica responsável em apreciar um determinado número de processos

e se revezam na realização dos julgamentos. Em cada sessão são apreciados

aproximadamente de 10 a 15 processos,326 em que os conselheiros analisam

individualmente cada caso; normalmente, nas audiências, os conselheiros relatam a

trajetória política dos cidadãos, analisam os documentos incorporados aos processos,

e, por fim, sugerem ou não o deferimento dos casos. É, portanto, dever da Comissão

de Anistia, através dos poderes legais que lhe são atribuídos, promover reparação às

vítimas. E, nesse contexto, “opinar pela declaração de anistiado político ao cidadão

perseguido, oficializando por este ato o pedido de desculpas em nome do Estado

brasileiro”.327 Paulo Abrão e Tarso Genro, ao abordarem o aspecto dos programas de

comissões e indenizações, afirmam que as reparações podem ser analisadas mediante 324 Disponível em: <http://www.mj.gov.br/anistia>. Acesso em: 15 dez. 2014. 325 ABRÃO, Paulo. Justiça de Transição no Brasil: O papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Revista Anistia Política e Justiça de transição, Brasília, Ministério da Justiça. n. 1, p. 17, jan./jun.2009. 326 Em audiência realizada no dia 22 de junho de 2012, no Complexo Superior de Santa Catarina -CESUSC, em Florianópolis, através das Caravanas da Anistia, foram julgados na mesma sessão os seguintes processos: Paulo Marcomini, Luiz Ernesto Reis Quaresma, Luiz César Leite Assis, Emílio Bonfante de Maria, Ludmila dos Santos de Maria, Osni Rocha, Carlos Correa David, Altamiro da Luz Andrade Neto, Manoel de Oliveiro Martins, José Roberto de Lima, Amilton Alexandre, LannyLoeschnerOlinger, Divo Fernandes de Oliveria, Alba Valéria de Oliveira Reis. A autora desta tese acompanhou pessoalmente o julgamento dos processos nessa data. 327 ABRÃO; TORRELY, 2010, p. 127.

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a um processo de resgate social dos cidadãos atingidos pela repressão política e,

ainda, que,

(...) As comissões de reparação como iniciativas patrocinadas pelo Estado que

ajudam na reparação material e moral dos danos causados por abusos do

passado (...) Em geral envolvem não somente indenizações econômicas, mas

também gestos simbólicos de reconhecimento das vítimas(...) A reparação

envolve, entre outras medidas, o reconhecimento público do direito de

resistência dos que lutaram contra a opressão e sofreram consequências

físicas e psicológicas em razão dessa luta (...).328

No caso brasileiro, baseados nos termos da Lei 10.559/2002, será passível de

anistia todo cidadão que sofreu dano do Estado brasileiro à época do regime militar

(1964-1979) e do Estado Novo (1937-1945), num período que compreende entre 18 de

setembro de 1946 a 05 de outubro de 1988, ano da promulgação da última

Constituição Federal. Após a concessão da anistia pelo governo brasileiro, em 1979, e

as manifestações pelas Diretas-Já, em 1984, a promulgação da Constituição Federal

de 1988 representou um dos momentos mais importantes da recente história, o que, de

fato, representa, em termos jurídicos, a consolidação do sistema democrático no Brasil.

“Para mim o marco é 88. Acho que é o momento que a sociedade proclama por uma

nova Constituição Federal, não quer mais aquela Constituição cheia de emendas

praticadas pelos militares”.329

No período que corresponde ao Estado Novo, o governo brasileiro irá

contemplar os casos de cidadãos que foram perseguidos por conta de suas

participações políticas, sobretudo, os constituintes do Partido Comunista – todos

cassados em 1946, juntamente com a ilegalidade do partido. A maioria dos processos

apresentados junto ao Ministério da Justiça tratam das indenizações relativas ao

período do regime militar, no entanto, há casos que antecedem esse momento,

328 ABRÃO; GENRO, 2012, p. 40. 329 Entrevista concedia à autora desta tese em Brasília, no Ministério da Justiça, no dia 10 de novembro de 2012. Depoimento de Sueli Aparecida Bellato,conselheira e vice-presidente da Comissão de Anistia. Trabalhou com Hélio Bicudo na Procuradoria da República, na Comissão de Direitos Humanos. Em 2007, passa a integrar a Comissão de Anistia por convite do presidente Paulo Abrão., onde encontra-se até os dias atuais.

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conforme previsto na respectiva Lei 10.559/2002. Sueli Bellato,vice-presidente da

Comissão de Anistia, elucida esse fato:

(...) Não é raro encontrar pessoas, por exemplo, que na década de 50, tiveram

participação na luta pelo “Petróleo é Nosso”. Assim como aconteceu com

Monteiro Lobato foi um dos presos do regime autoritário (...) Também no

termos da Comissão de Anistia há vários casos de processos de viúvas que

muitas vezes entraram na Comissão pleiteando seus direitos à reparação deste

período, principalmente, da década de 50.330

Vale ressaltar que, nesse processo, o governo brasileiro realiza, por meio da

Comissão de Anistia, dois tipos de indenizações: reparação econômica em prestação

única, e reparação em prestação mensal permanente e continuada. Consta no Artigo 4º

da Lei 10.559/2002: “A reparação econômica em prestação única consistirá no

pagamento de trinta salários mínimos por ano de perseguição e será devida aos

anistiados políticos que não puderem comprovar vínculos com a atividade laboral”.331

Já a reparação por prestação mensal permanente continuada se destina aos brasileiro

sque comprovarem, através de documentos e meios legais, que foram impedidos de

exercer suas funções laborais por conta do exílio ou até mesmo das violências sofridas.

Sendo assim, nos termos da lei, “o valor da prestação mensal, permanente e

continuada será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa

estivesse”.332 Para que sejam efetuadas as indenizações, funcionários e conselheiros

da Comissão de Anistia se baseiam nas informações do Salariômetro,333 do Instituto de

Valores de São Paulo, por onde são estabelecidos os “tetos salariais” de cada

categoria de trabalhador.

No Brasil, o direito constitucional à reparação foi instituído a partir da

Constituição de 1988, nas condições estabelecidas no caput do art. 8º, Do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias, que trata especificamente da anistia política: 330 Idem. 331 COMISSÃO de Anistia. Cartilha informativa. Brasília: Comissão de Anistia/MJ, 2010. p. 25. Ver também a Lei 10.559/2002, na íntegra, no Anexo III deste trabalho. 332 COMISSÃO de Anistia, 2010. Art. 6º, Seção II – Da Reparação Econômica em Prestação Mensal, Permanente e Continuada. 333 As pesquisas sobre a média do salário dos trabalhadores estão disponíveis em: <http://www.salariometro.sp.gov.br/>. Acesso em: 10 jan. 2015.

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(...) É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a

data de promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de

motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou

complementares, aos que foram atingidos pelo Decreto Legislativo n. 18, de 15

de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei n. 864, de 12 de

setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo,

emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço

ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e

regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das

carreiras dos servidores públicos, civis e militares e observados os respectivos

regimes jurídicos. (Regulamento)

Esse dispositivo constitucional veio a ser regulamentado somente em2001,

através da Medida Provisória 65, transformada, posteriormente,na Lei 10.559/2002,

com votação unânime do Congresso Nacional. A promulgação dessa lei reflete um

projeto de continuidade das políticas de reparação por parte do governo brasileiro.

Nesse contexto, as reparações serão destinadas aos cidadãos que foram atingidos

moralmente por conta das ações arbitrárias do governo e na sua integridade física de

cidadão:

Se a reparação econômica oriunda desta Lei baseia seus critérios

primariamente em um eventual dano à atividade laboral, ensejando distorções,

a reparação moral fundamenta-se exclusivamente no direito à resistência e na

violação da dignidade humana ofendida pelo ultraje do arbítrio, que separou o

perseguido político daquilo que deveria ser um universo político compartilhado,

negando-lhe o direito a ter e repartir convicções e opiniões políticas no espaço

público.334

A busca pela verdade histórica é um dos pilares do processo de transição

política idealizado nos países democráticos. O Brasil vem caminhando a passos lentos

nesse sentido, pois o país ainda não resolveu parte dos problemas de seu legado

autoritário. Nos últimos anos, o tema “justiça de transição” – ou “justiça transicional”,

vem ocupando um papel importante na agenda política nacional. É certo que esse

334 ABRÃO; TORRELY, 2010, p. 139.

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conceito, “refere-se a um conjunto de medidas estabelecidas durante e/ou após um

contexto de transição de regimes autoritários para regimes democráticos (...) em

momentos pós-violência ou pós-conflito”.335

Tais medidas estão diretamente relacionadas ao sistema de reparação dos

governos após o restabelecimento dos regimes democráticos e, consequentemente, a

dimensão subjetiva e moral dos processos reconciliatórios. No Brasil, a efetivação do

direito constitucional à reparação se estrutura em quatro eixos políticos da Justiça de

Transição: “promoção da reparação às vítimas; fornecimento da verdade e construção

da memória; regularização das funções de justiça e restabelecimento da igualdade

perante à lei; e, por fim, reforma das instituições perpetradoras de violações contra os

direitos humanos”.336

Em termo políticos e sociais, o termo Justiça de Transição está diretamente

ligado à maneira de como diferentes culturas promovem seus processos transitórios

com base no estabelecimento da justiça. É de fundamental importância que esse

processo esteja atrelado à construção da verdade, que as sociedades possam

reconstruir suas histórias, avançar em termos democráticos e, sobretudo, renovar no

campo das ações políticas, elaborando novas formas de direito. Sem a efetivação

dessas práticas, “a gente corre o risco de deixar a porta aberta para a repetição”.337

335 SANTOS, Cecília Macdowell. Questões de Justiça de Transição: a mobilização dos direitos humanos e a memória da ditadura na ditadura apud Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Americano: Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília:Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro e Estudos Sociais, 2010. 336 ABRÃO; TORRELY, 2010. 337 Comentários da Dra. Sueli Bellato na entrevista que concedeu à autora desta tese.

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4.2 As Caravanas da Anistia: espaço de reparação e memória

“O trauma, o medo que nós sentimos, marcou pelo resto da vida. Até hoje não

posso ouvir uma sirene policial que meu c oração dispara”.

(Iria Molina)

No dia 29 de agosto de 2008, membros da Comissão de Anistia do Ministério da

Justiça (MJ) estiveram reunidos na Universidade de Brasília (UnB), para julgar 14

processos de perseguidos políticos da ditadura militar brasileira. O local não foi

escolhido à toa. Há exatos 46 anos, a Universidade foi palco de manifestações de

estudantes que protestavam contra a política educacional adotada pelo governo militar.

Na ocasião, agentes de segurança invadiram o campus da Universidade rendendo

estudantes e professores. Um desses estudantes era Marco Antônio Maranhão da

Costa.338 Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Costa foi torturado nas

dependências do Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de

Defesa Interna(DOI-CODI), e depois disso, viveu cerca de dez anos fora do país.

Nesse evento da UnB, sob o título “29 anos da Lei da Anistia e 40 anos de

resistência estudantil na Universidade de Brasília (UnB)”, Costa pôde, juntamente com

outros treze brasileiros, ver seu processo julgado pela Comissão de Anistia, e o mais

importante: receber o pedido de desculpas do Estado Brasileiro pelas perseguições,

pelos maus-tratos e torturas sofridas e, principalmente, pelos anos no exílio. Esse

pedido de desculpas era esperado desde a concessão da anistia, em 1979.

Tais iniciativas fazem parte do Projeto Anistia Cultural, atividade da Comissão de

Anistia, integrante do Projeto Educativo Anistia Política: Educação para Cidadania,

Democracia e os Direitos Humanos.339 Trata-se de um projeto educativo do Governo

Federal, que tem por objetivo difundir informações sobre o período da ditadura militar

no país, principalmente, para a população mais jovem. Nas palavras de Sueli Bellato: 338 O economista e ex-preso político Marco Antônio da Costa teve seu processo apreciado pela Comissão de Anistia, e receberá R$100 mil reais em parcela única do governo brasileiro por ter sido perseguido e banido do país durante a ditadura militar. 339 Inaugurado em abril de 2008, o Projeto Anistia Cultural da Comissão de Anistia visa levar sessões reais de julgamento a universidades e locais de representação histórica, através de caravanas que percorrem os estados. De acordo com a coordenadora do projeto, Flávia Carlet, a intenção é levar conhecimento dos trabalhos da Comissão aos jovens e, acima de tudo, proporcionar um contato maior com a história do Brasil.

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(...) Foi iniciativa do Paulo Abrão em dizer: “Nós temos que tirar de dentro do

Palácio da Justiça essas sessões de julgamento porque senão a população

não se apodera desse conhecimento que está restrito aos nossos arquivos, as

nossas gavetas, aos nossos espaço(...).340

O principal evento desse projeto cultural é a realização das Caravanas da

Anistia. Essas caravanas percorrem o país realizando sessões públicas de julgamentos

de perseguidos políticos, acompanhadas por atividades pedagógicas eculturais. Os

processos encaminhados ao Ministério da Justiça passam a ser examinados

publicamente – geralmente, em locais de representatividade histórica. Essas sessões

são realizadas com a presença de conselheiros da comissão, lideranças do movimento

estudantil, do meio sindical, professores, membros de associações de anistiados

políticos, trabalhadores e cidadãos que, tendo ou não sido presos à época da ditadura,

sofreram significativos prejuízos em decorrência do arbítrio. Dessa forma, é possível

garantir ampla participação social.

Nesse contexto, há dois aspectos importantes a serem observados: o primeiro

diz respeito à maneira inédita de como esses processos estão sendo examinados – em

audiências públicas, com a presença dos próprios requerentes341–,o que permite à

vítima acompanhar a análise do seu processo em tempo real, e o segundo, em relação

à forma de como essas audiências vem sendo estruturadas.342 No exemplo específico

da audiência realizada na UnB, foi possível discutir sobre acontecimentos da ditadura

militar, acompanhar relatos de pessoas torturadas à época e reviver as memórias do

movimento estudantil. Em nenhum momento da recente história do país – sobretudo,

após o processo de reabertura democrática–,a reconstituição desses fatos esteve tão

presente. Nesse momento, “a reparação moral individual ganha um inegável aspecto

coletivo, pois aos anistiar publicamente um percebido, pedir-lhe desculpas e dar-lhe a

340 Comentários da Dra. Sueli Bellato na entrevista que concedeu à autora desta tese. 341 Com base na Lei 10.559/2002, a reparação econômica de caráter indenizatório aos perseguidos políticos tem ocorrido da seguinte forma: “(...) Parcela única de trinta salários mínimos por ano de perseguição política até R$100 mil reais (...) ou prestação mensal – que corresponde ao posto, cargo, graduação ou emprego que o anistiado ocuparia se estivesse na ativa (...)”. 342 Desde sua inauguração, as Caravanas da Anistia estiveram em diferentes regiões do país realizando sessões de julgamento. Entre eles: Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em abril de 2008, Arquivo Público do Estado de São Paulo – Estação Pinacoteca, em agosto de 2008, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em setembro de 2008, entre outros locais.

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palavra, o Estado permite que toda uma nova geração se integre ao processo de

construção democrática”.343

De acordo com o relatório de gestão (2007-2010)344 das Ações Educativas da

Comissão de Anistia, a primeira Caravana ocorreu na Associação Brasileira de

Imprensa, na cidade de Rio de Janeiro, no dia 04 de abril de 2008, ano de início desse

projeto cultural do governo. Até dezembro de 2010, foram realizadas cerca de 47

audiências itinerantes em todo o País, contemplando, nesse processo, cerca de 18

estados brasileiros e 30 cidades. Nesse período, foram julgados, através das

Caravanas, aproximadamente mil processos de brasileiros.

No entendimento de Michael Pollak,345“a memória é um fenômeno

construído”.Portanto, são fatores indispensáveis nesse processo: os acontecimentos,

as personagens e os lugares.

(...) Além dos acontecimentos e das pessoas, podemos finalmente arrolar os

lugares. Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma

lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter

apoio no tempo cronológico (...) Na memória mais pública, nos aspectos mais

públicos da pessoa, que são lugares de comemoração (...).

Esse momento coincide com o que Danyelle Gonçalves346 aponta como “a

busca da ‘publicização do ocorrido’”. Nesse sentido, se prioriza o trabalho de

divulgação e luta pelo não-esquecimento. As recentes ações do Governo Federal têm

realçado esse aspecto. De acordo com informações divulgadas pela própria Comissão

de Anistia, além das caravanas, está prevista a inauguração do Memorial da Anistia

Política no Brasil,347 que será sediado na cidade de Belo Horizonte e contará com todo

o acervo da Comissão de Anistia, ou seja, os cerca de 70 mil processos já

343 ABRÃO; TORRELY, 2010, p. 134. 344 Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão – 2007-2010. Brasília, 2010. p. 15. 345 POLLAK, 1992, p. 202-203. 346 GONÇALVES, Danyelle Nilin. O preço do passado – anistia e reparação de perseguidos políticos no Brasil. Tese. 2006. Departamento de Ciências Sociais e Filosofia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza, Ceará. 347 Criado a partir da Portaria GM n. 858, de 13 de maio de 2008, e Portaria 203, de 09 de fevereiro de 2010. Consta em: Relatório Anual da Comissão de Anistia. Brasília: Comissão de Anistia, 2010. p. 49.

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apreciados.348 Trata-se do reflexo de uma política de memória que tem sido implantada

no País.

A inauguração do Memorial de Anistia Política estabelece uma parceria entre o

Ministério da Justiça e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), firmada em

2009. O projeto, que foi idealizado para ser inaugurado em 2010, agora conta com uma

nova data: dezembro de 2015.349 Nesse espaço, ficarão registradas as memórias de

inúmeros brasileiros perseguidos pelo regime militar. A iniciativa tem por finalidade

preservar o acervo da Comissão de Anistia e, principalmente, proporcionar à sociedade

um local onde parte da nossa história seja preservada. Nesse aspecto, Aleida

Assmannse refere aos arquivos como “testemunhos do passado”. Assim,“como os

documentos escritos não se decompunham naturalmente após o seu uso, eles

constituíram um resíduo que podia ser especialmente coletado e preservado”.350

Além do Memorial de Anistia Política, o Estado, por iniciativa da Comissão de

Anistia, instituiu, em 2008, o projeto “Marcas da Memória”. Essa ação tem como

principal objetivo a reconstrução da história de brasileiros que resistiram ao sistema

repressivo instaurado com a ditadura civil-militar, assim como, dar visibilidade

àmemória daqueles que perderam suas vidas no engajamento político. Das recentes

ações desse projeto, podemos destacar o documentário Repare Bem,351 de 2012, que

relata, a partir de depoimentos, a trajetória política e o assassinato de Eduardo Leite, o

Bacuri, pelos órgãos de segurança. Inclui-se, ainda, o lançamento do livro

“Investigação Operária – Empresários, Militares e Pelegos contra os trabalhadores,352já

citado nesta tese, que destaca os principais momentos da luta do movimento operário

no Brasil, sobretudo, da Oposição Metalúrgica de São Paulo durante o regime militar.

Ao abordar o conceito de Memória, Alfredo Santiago Culleton, destaca: 348 Disponível em: <http://www.mj.gov.br/anistia>. Acesso em: jan. 2015. 349 ODILLA, Fernanda. Memorial da Anistia continua sem data definitiva para inauguração. Folha de S.Paulo, Caderno 1, 11. out. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1530903-memorial-da-anistia-continua-sem-data-definitiva-para-inauguracao.shtml>. Acesso em: jan.2015. 350 ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e Transformações da Memória Cultural. São Paulo: Editora da Unicamp, 2013. p. 367. 351 Documentário Repare Bem. Direção: Maria de Medeiros, 2012. Duração: 105 min. Elaborado a partir da iniciativa do Projeto “Marcas da Memória”. 352 O presente projeto foi apresentado no ano de 2011 à II Chamada Pública do Projeto “Marcas da Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

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(...) Do ponto de vista conceitual, a memória parece referir-se a algo que

permanece, que de alguma maneira se mantém intacto, tal como é, por sua

vez, a reminiscência(...) diz respeito à capacidade de recuperar algo que

possuía anteriormente e que foi esquecido (...).353

E nesse sentido, os espaços utilizados pela Comissão de Anistia têm auxiliado

acompor essas memórias. Ao ouvir o relato das vítimas, é possível (re)criar situações

no campo do imaginário, reconstituir a história.

Na 66º Caravana da Anistia, realizada em São Paulo, em 08 de dezembro de

2012, oito operários da Oposição Metalúrgica de São Paulo354 recontaram suas

histórias de vida, registraram suas memórias. Entre eles, Iria Molina, que jamais

pensou em ser indenizada pelos danos sofridos, recebeu o pedido de desculpas oficiais

por parte do Estado, conforme fotos em Anexo neste trabalho. A trajetória de Iria

Molina não difere dos muitos brasileiros que foram atingidos por atos de violência em

decorrência de uma repressão política instaurada a partir do Golpe de Estado em 1964,

que colocou em risco, sobretudo, as liberdades individuais, o direito à resistência e à

oposição política.

Nascida em 10 de maio de 1952, na cidade de São Paulo, começou a trabalhar

muito cedo, em 1966, na empresa Tecelagem Calux S/A, na capital paulista. No início,

foi contratada como Aprendiz de Fiandeira, e ao término de sua passagem por essa

empresa, que durou aproximadamente cinco anos(1967-1971), já exercia a função de

Maquinista de Ordideira.

Durante esses anos, filiou-se ao Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de

Fiação e Tecelagem de São Paulo para usufruir do departamento médico. Num

primeiro momento, não tinha nenhuma pretensão política. Esse desejo se manifestou

mais tarde, através das reuniões que ocorriam em sua casa por iniciativa de seu irmão,

Irineu Molina, militante sindical filiado ao Partido Operário Revolucionário dos

353 CULLETON, Alfredo Santiago. A vida entre a Lembrança e o Esquecimento (ou a lembrança como virtude). In: CUREAU, Sandra et al. (Coord). Olhar multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do patrimônio cultural. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p.33. 354 Nessa Caravana foram anistiados pelo Estado Brasileiro os seguintes operários: Iria Molina, João Prado de Andrade, Luiz Carlos Prates, Jorge Luiz dos Santos Oliveira, Antônio Fernandes Neto, Maria Arleide Alves, Salvador Pires e Alexandre Gardini Fusco. Informações obtidas através do IIEP -Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas. Acervo do Projeto de Memória da OSM-SP.

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Trabalhadores (PORT). A essa altura, a Oposição Metalúrgica Sindical já se articulava

junto ao movimento operário, desenvolvendo um trabalho político nas fábricas. Entre os

anos de 1970 e 1972, a Ação Popular (AP) foi a organização esquerdista mais influente

na OSM-SP.

Iria passou a se engajar nessas lutas e a se envolver nas causas dos

trabalhadores, participando de assembleias para a campanha salarial da categoria. No

exercício das atividades políticas, conheceu Franco Farinazzo, militante político dos

meios sindicais, com quem, em dezembro de 1971, se casou e teve três filhos.

Juntamente com o marido, foi protagonista de uma história de perseguições e

incertezas que perdurou, aproximadamente, por seis anos (1972-1978).

Por conta de sua participação no sindicato e no PORT, a operária teve

decretada, em 1972, sua prisão preventiva pelo Estado: “sendo este apresentado, indo

devidamente assinado, que em seu cumprimento, prenda e recolha ao xadrez Iria

Molina Farinazzo, vulgo ‘Clarice’”.E,ainda,“em virtude de haver este Juízo, nos autos do

processo n. 764/72, em despacho desta data, decretado sua prisão preventiva, com

fulcro nos arts. 254, letras “a e b” e 255, letras “a”, “b”, “c” e “d”, do Código de Processo

Penal Militar”.355

A partir desse momento, se inicia um processo de “fuga”, que obriga o casal a

percorrer algumas regiões do País. Assim, Iria e Franco partiram em direção ao Rio

Grande do Sul, em busca de segurança. O medo de serem capturados motivou o casal

a abandonar tudo: trabalho e famílias. As notícias que vinham através dos

“companheiros” não eram animadoras. Vários colegas foram presos, mortos sob

tortura, a exemplo de Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter e Olavo Hansen. Em

entrevista, a ex-operária narra sua experiência no sul do País:

(...) Assim que chegamos no Rio Grande do Sul fomos para casa de um

simpatizante, não tínhamos um “tostão”. Até um certo ponto a pessoa

consegue te manter, depois não consegue mais (...) As pessoas que saíram

daqui (refere-se à cidade de São Paulo), para lá (RGS), foram meio fugidas,

também não tinha emprego. Você se sente humilhada, você não tem

condições de trabalhar, se sente meio escondida (...) Logo depois, comecei a

355Conforme Anexo V desta teste.

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trabalhar na Tecelagem Renner – onde fiquei cerca de um mês e meio.O chefe

do escritório me chamou e perguntou: “Quanto tempo você está aqui?”, “Por

que veio para o Rio Grande do Sul?”.356

Em meio a um período de intensa repressão, seus familiares também foram

atingidos. Narcisa Gonçalves Molina, mãe de Iria, e seu irmão, Ilzo, foram levados ao

DOI-CODI para prestar depoimento sobre os filhos militantes sindicais. Ilzo fora

torturado de forma física e psicológica. A Sr. Narcisa passou por constrangimentos em

vários momentos durante o interrogatório.

O ano de 1974 será marcado por inúmeras prisões dos militantes da OSM-

SP.357 No mês de janeiro, mais de 50 operários foram presos pelo DOPS-SP, e

mediante ao enquadramento das Leis de Segurança Nacional, seus nomes passaram a

constar em inquéritos policiais no País. A prisão dos operários, como a de qualquer

cidadão opositor à época, obedeceu a todo um esquema de segurança que envolveu a

ação de agentes civis e militares. Desde o início do regime militar, o movimento

operário estava sendo investigado pelos órgãos de segurança. Com a acentuada

repressão pós-AI-5, a ditadura perseguiu de forma violenta os líderes sindicais, o que

veio a atingir todo o movimento operário.

Os registros da luta dos trabalhadores eram feitos através de documentos

oficiais do Estado, o que legitimava o controle sobre as ações dentro das fábricas e nas

manifestações grevistas. No caso Iria Molina, as informações sobre sua militância

constavam nos autos dos documentos da 1º Auditoria da 2º Circunscrição Judiciária

Militar, conforme segue:

(...) Iria Molina Farinazzo, (fls.997), esposa de Franco Farinazzo, militante da

célula do setor têxtil do PORT, mantendo contato com os militantes do partido e

participava das reuniões com seus membros. Referida por: Guaracira Gouvea,

vulgo “Julia ou Maria” – fls. 863 e 74; Barnabé Medeiros Filho, vulgo “Laerte,

356 Entrevista com a ex-metalúrgica Iria Molina, concedida a autora desta tese em 27 de novembro de 2014. Na ocasião, a autora foi recebida pela anistiada em sua casa, onde ela relatou detalhes da sua trajetória de vida. 357 Dos militantes da OSM-SP, presos em janeiro de 1974, podemos destacar os seguintes nomes: Waldemar Rossi, Vito Giannotti, Cleodon Silva, Anízio Batista, Aurélio Peres, Santo Dias da Silva, Sebastião Neto, Raimundo de Oliveira, entre outros. Tais lideranças exerceram papel fundamental de conscientização da classe operária nas Comissões de Fábrica. ANDRADE, 2014, p. 157.

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Guimarães ou Ernesto” – fls. 219v; José Amélio de Paula, vulgo “Amilcar” – fls.

93v; Maria do Socorro Cunha Campos, vulgo “Marisa ou Sofia” – fls. 990 e

990v e Almerio Melquíades de Araújo, vulgo “Fabiano” – fls. 988 e 989”(...).358

A sprisões de companheiros do sul e intimidações de parentes conhecidos,

fizeram que Iria abandonasse seu trabalho na Renner. A partir desse momento, passou

a viver da solidariedade de colegas – até mesmo em relação à moradia e alimentação.

E, ainda na narrativa de Iria Molina: “Eu estava trabalhando quando veio orientação do

partido me pedindo pra sair da fábrica(...) a maioria do PORT foi preso, era um partido

pequeno(...) Saí da fábrica porque “eles” já sabiam que eu estava no Rio Grande do

Sul. Pedi a conta no desespero”.359

Ainda no ano de 1972, no mês de dezembro, Iria retorna sozinha à São Paulo, já

que seu marido, Franco, mais “visado” pelos órgãos de repressão, teve de permanecer

no RGS. Em São Paulo, vai trabalhar em São Bernardo do Campo, na Fiação e

Tecelagem Tognato, como ajudante de fábrica, onde precisou tirar uma nova carteira

profissional. Com a mudança de emprego, teve novas perdas salariais, o que afetou

aspectos morais e financeiros da sua vida, fato que justificará, anos mais tarde, a

responsabilização do Estado brasileiro pelos danos causados à operária.

Através da audiência do Memorial de Resistência de São Paulo, Iria Molina

tornou pública sua trajetória de resistência, prestou seu testemunho, e, com

fundamento no art. 1º da Lei10.559, incisos I e II, teve declarada sua condição de

anistia política do Estado brasileiro. Nas suas palavras:

(...) Então, o dia que eu fui anistiada na Caravana foi muito emocionante

porque tinha várias pessoas sendo anistiadas, e as histórias contadas

pessoalmente, embora soubesse dos casos, mas, quando a pessoa conta

pessoalmente como foi torturado a gente sente na “pele”. Achei muito

emocionante quando o Paulo Abrão pede perdão, foi uma emoção muito

grande. Em princípio achei meio ironia pedir perdão. Quando eu fui pra lá achei

que fosse até sorrir invés de ficar emocionada. Eu fui a última, fui ouvindo

358Documento cedido pessoalmente por Iria Molina, que consta no processo n. 2007/01.59453da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Esse e outros documentos relativos à ex-operária encontram-se no Anexo V desta tese – “Documentos do caso Iria Molina”. 359 Entrevista com Iria Molina, concedida à autora desta tese.

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todos os “perdões” (refere-se aos companheiros) e cada um que era anistiado

eu ficava bastante emocionada. Eu me senti melhor. Foi uma recompensa.360

Na mesma audiência, no Memorial de Resistência, Salvador Pires pode

igualmente receber o pedido de desculpas do Estado brasileiro. Durante o regime

militar, exerceu a função de torneiro mecânico em várias empresas da Grande São

Paulo. Durante muito tempo, participou ativamente das atividades do Sindicato dos

Metalúrgicos de São Paulo. Membro da Ação Operária Católica (AOC), desenvolveu

um trabalho de conscientização política e organização da classe operária. Foi preso em

dois momentos: em 1975, quando voltava de uma viagem à Buenos Aires, e no ano de

1979, na greve dos Vigilantes Bancários de São Paulo. Seu depoimento simboliza o

sentimento que atinge toda a classe dos trabalhadores vítimas da ditadura civil-militar

no Brasil:

No decorrer da minha militância, com destaque durante a ditadura civil militar

em nosso país, o que constatei como regra, foi uma perseguição política

constante, onde os repressores tinham absoluta certeza de que não sofreriam

qualquer forma de punição, cumpriam ordem de um Estado repressivo. Era

repressão na rua , no emprego e até em nossas casas. Minha casa foi invadida

pelo pessoal do DEOSP em minha busca, para me prender em 1980, porque

eu fazia parte da coordenação do fundo de greve, em apoio aos metalúrgicos

do ABC. Eu representava a Frente Nacional dos trabalhadores. (FNT). Foram

confrontados corajosamente por minha saudosa esposa,porém, não impediu

que revistassem toda a casa, incluindo o nosso quarto de dormir. Graças à

intervenção de Dom Paulo Evaristo Arns, atendendo pedido de socorro da

minha esposa, a situação não foi pior. Naqueles tempos, nunca imaginei poder

ser anistiado politicamente pelo Estado brasileiro. A minha militância significava

uma ação politica comprometida em defesa dos interesses dos trabalhadores,

da classe operária como um todo. Por muito tempo recusei abrir o meu

processo. Fui anistiado no dia 08-12-2012, em concorrida plenária de velhos

militantes da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo(OSMSP), seus filhos

e simpatizantes da nossa luta, organizada pelo nosso projeto, Memória

Operária. considero uma grande vitória politica, que só está sendo possível

360 Entrevista com Iria Molina concedida à autora desta tese.

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pela conquista que conseguimos com nossa luta, do restabelecimento do

Estado de Direito Democrático em nosso Pais.361

361 Depoimento prestado à autora desta tese, em 18 de janeiro de 2015. Documentos sobre sua militância política seguem em anexo neste trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de reparação às vítimas do Estado brasileiro começou tardiamente,

após 11 anos da redemocratização do País, por meio da Lei 9.140/1995 e da criação

da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Essa

condição foi estabelecida com base em muita luta dos brasileiros, sobretudo, de

inúmeras organizações ligadas aos Direitos Humanos, exemplifico apenas duas: o

Grupo Tortura Nunca Mais, com sede em alguns estados do País, e a Comissão de

Familiares de Mortos e Desaparecidos. Desde o momento da concessão da anistia,

vários cidadãos, principalmente, aqueles que perderam seus parentes mediante a ação

da repressão política, travam uma luta contínua com o governo brasileiro em busca de

soluções concretas para as pendências relacionadas ao passado, sobretudo, o

episódio mais emblemático: a causa dos desaparecidos políticos.

Uma das condições articuladas entre militares e os setores da base governista à

época do “acordo político”, em 1979, diz respeito ao estabelecimento de uma anistia

pautada no esquecimento. A Lei 6.683/1979, que favoreceu vítimas e algozes,

representa um dos maiores entraves políticos da recente história do País, por impedir e

desconsiderar, em termos legais, punição aos agentes de segurança que praticaram

crimes contra cidadãos durante o período da ditadura civil-militar.

Desde a implantação da CEMDP, em 1996, o sistema reparatório no Brasil

segue um ritmo lento, com conquistas pontuais, negociadas a fim de não comprometer

os setores mais conservadores do poder, sobretudo, aqueles diretamente ligados ao

período da repressão política. Essa lentidão, por parte do governo brasileiro, tem sido

inevitável para os familiares das vítimas que, por conta da idade avançada e do próprio

falecimento, deixam de vivenciar o devido processo de reparação às vítimas.

A concessão da anistia, promovida pelo Estado em 1979, se caracterizou por

seus aspecto parcial, incompleto. Não promoveu acesso à verdade a partir do

esclarecimento dos crimes – fato que só passa a ocorrer em 1995, com a publicação

do “Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos”, a partir de 1964, fruto de um trabalho

de pesquisas e investigações realizado pelos familiares das vítimas, fundamental para

os futuros trabalhos da CEMDP. O documento tornam públicas as “farsas” montadas

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pela repressão política para acobertar os assassinatos cometidos. Durante anos, esses

familiares tiveram acesso a poucos arquivos, mas, conseguiram, paulatinamente,

derrubar as “versões oficiais” difundidas à época – uma das razões que acelerou o

processo indenizatório no País. Além disso, o governo brasileiro negligencia até hoje as

informações sobre os desaparecidos, tais como: localização dos restos mortais, a

maneira como foram praticados os crimes, quem os praticou, numa sucessão de

crimes hediondos. Não há, portanto, comprometimento com a verdade, impossibilitando

a consolidação democrática no Brasil.

Em 2007, foi publicado através do Ministério da Justiça, o Livro-Relatório “Direito

à Memória e à Verdade”, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência

da República, resultado de um trabalho institucional que apresentou em detalhes cada

caso julgado por essa comissão – o que representou um importante avanço rumo à

construção da verdade histórica.

No que se refere ao universo das reparações, o Estado brasileiro tratou,

inicialmente, os casos de cidadãos mortos e desaparecidos em consequência da

violência praticadas em todos os segmentos da sociedade. O caso dos desaparecidos

está sem solução na atualidade, e se limitou ao campo financeiro das reparações.

A promulgação da Lei 10.559/2002 e a criação da Comissão de Anistia, anos

mais tarde, diz respeito a um segundo momento em relação ao reconhecimento dos

crimes no passado. Dessa vez, a reparação se estende aos cidadãos perseguidos

durante o Estado de exceção, no período de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro

de 1988, ou seja, do final do Estado Novo até a promulgação da Constituição Federal,

o que representou um marco na história da democracia no Brasil. Cabe, portanto, à

Comissão de Anistia indenizar os brasileiros que deixaram de exercer suas atividades

profissionais, foram presos, exilados, sofreram perseguições e de inúmeras maneiras

foram atingidos, diretamente, pela violência do Estado. Para isso, a lei estabelece dois

tipos de reparações: a econômica e a moral.

No que se refere à indenização moral, cidadãos brasileiros podem receber,

através da Comissão de Anistia e suas audiências públicas, o pedido de desculpas em

nome do governo brasileiro, o que revela uma importante etapa no processo de

reconstrução da nossa história, de acesso à memória. O “ritual de perdão” da

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Comissão da Anistia configura uma nova postura do governo brasileiro: em 1979, o

Estado concede “perdão” aos cidadãos que fizeram oposição durante a ditadura,

permitindo-lhes, de certo forma, o retorno ao convívio social. Esse primeiro momento

da anistia no País teve como característica principal uma política que favoreceu a

impunidade e o esquecimento. Dessa vez, o Estado pede perdão oficialmente, assume

a culpa pelo erro e promove a reparação, realçando importantes aspectos na

construção da memória.

As Caravanas da Anistia, com um trabalho itinerante, permitem que muitos

brasileiros tenham o direito de conhecer a sua história através do julgamento dos

processos realizados em diferentes estados do país. Essas sessões públicas contam

com a presença dos anistiados, que prestam seus testemunhos, ajudam a recriar os

fatos do passado e recebem o reconhecimento por suas trajetórias de luta. A exemplo

disso, a 66º Caravana, realizada em dezembro de 2012, no Memorial de Resistência,

em São Paulo, retratou a história do movimento operário na capital, com destaque para

a atuação da Oposição Metalúrgica Sindical, que exerceu significativa influência sobre

os trabalhadores durante o período militar, com papel de destaque nas lutas operárias,

rompendo barreiras importantes no que se refere à nova configuração do movimento

sindical, num momento em que havia total interferência dos interventores do regime, o

que veio a prejudicar muitas das práticas políticas realizadas pela categoria dos

trabalhadores.

Aos serem anistiados, esses operários puderam comprovar seu protagonismo na

história, a importância da resistência dos operários que se fez por meio das

articulações políticas dentro das fábricas, no meio sindical, em importantes

manifestações por aumento de salários, melhores condições de trabalho e liberdade de

atuação através da representação dos sindicatos. A trajetória do movimento operário

no Brasil está diretamente ligada a um contexto de perseguições e injustiças. O período

da ditadura civil-militar representou o ápice dessas questões. O evento do Memorial de

Resistência, pode ressaltar a relevância histórica do movimento operário no Brasil, que,

ao contrário do que acredita o senso comum, não esteve à margem das lutas durante

os momentos mais difíceis da repressão política e, sim, reorganizando novas frentes de

atuação, sobretudo, no contexto da abertura política, ao incorporar a questão da anistia

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à causa dos trabalhadores, ampliando, de maneira significativa, seus histórico de

reivindicaões..

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ANEXOS

ANEXO I - LEI N. 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979 Concede anistia e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, Faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro

de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (Vetado).

§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

§ 3º Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.

Art. 2º (Revogado pela Lei nº 10.559, de 13/11/2002) Art. 3º O retorno ou reversão ao serviço ativo somente será deferido para o mesmo cargo ou

emprego, posto ou graduação que o servidor, civil ou militar, ocupava na data de seu afastamento, condicionado, necessariamente, à existência de vaga e ao interesse da Administração.

§ 1º Os requerimentos serão processados e instruídos por comissões especialmente designadas pela autoridade à qual caiba apreciá-los.

§ 2º O despacho decisório será proferido nos cento e oitenta dias seguintes ao recebimento do pedido.

§ 3º No caso de deferimento, o servidor civil será incluído em Quadro Suplementar e o militar de acordo com o que estabelecer o Decreto a que se refere o art. 13 desta Lei.

§ 4º O retorno e a reversão ao serviço ativo não serão permitidos se o afastamento tiver sido motivado por improbidade do servidor.

§ 5º (Revogado pela Lei nº 10.559, de 13/11/2002) Art. 4º (Revogado pela Lei nº 10.559, de 13/11/2002) Art. 5º (Revogado pela Lei nº 10.559, de 13/11/2002) Art. 6º O cônjuge, qualquer parente, ou afim, na linha reta, ou na colateral, ou o Ministério

Público, poderá requerer a declaração de ausência de pessoa que, envolvida em atividades políticas, esteja, até a data de vigência desta Lei, desaparecida do seu domicílio, sem que dela haja notícias por mais de 1 (um) ano.

§ 1º Na petição, o requerente, exibindo a prova de sua legitimidade, oferecerá rol de, no mínimo, 3 (três) testemunhas e os documentos relativos ao desaparecimento, se existentes.

§ 2º O juiz designará audiência, que, na presença do órgão do Ministério Público, será realizada nos 10 (dez) dias seguintes ao da apresentação do requerimento e proferirá, tanto que concluída a instrução, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, sentença, da qual, se concessiva do pedido, não caberá recurso.

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§ 3º Se os documentos apresentados pelo requerente constituírem prova suficiente do desaparecimento, o juiz, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, proferirá, no prazo de 5 (cinco) dias e independentemente de audiência, sentença, da qual, se concessiva, não caberá recurso.

§ 4º Depois de averbada no registro civil, a sentença que declarar a ausência gera a presunção de morte do desaparecido, para os fins de dissolução do casamento e de abertura de sucessão definitiva.

Art. 7º É concedida anistia aos empregados das empresas privadas que, por motivo de

participação em greve ou em quaisquer movimentos reivindicatórios ou de reclamação de direitos regidos pela legislação social, hajam sido despedidos do trabalho, ou destituídos de cargos administrativos ou de representação sindical.

Art. 8º São anistiados, em relação às infrações e penalidades decorrentes do não

cumprimento das obrigações do serviço militar, os que, à época do recrutamento, se encontravam, por motivos políticos, exilados ou impossibilitados de se apresentarem.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se aos dependentes do anistiado. Art. 9º Terão os benefícios da anistia os dirigentes e representantes sindicais punidos pelos

Atos a que se refere o art. 1º, ou que tenham sofrido punições disciplinares ou incorrido em faltas ao serviço naquele período, desde que não excedentes de 30 (trinta) dias, bem como os estudantes.

Art. 10. Aos servidores civis e militares reaproveitados, nos termos do art. 2º, será contado o

tempo de afastamento do serviço ativo, respeitado o disposto no art. 11. Art. 11. Esta Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive

aqueles relativos a vencimentos, soldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos.

Art. 12. Os anistiados que se inscreveram em partido político legalmente constituído

poderão votar e ser votados nas convenções partidárias a se realizarem no prazo de 1 (um) ano a partir da vigência desta Lei.

Art. 13. O Poder Executivo, dentro de 30 (trinta) dias, baixará decreto regulamentando esta

Lei. Art. 14. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. Art. 15. Revogam-se as disposições em contrário. Brasília, em 28 de agosto de 1979; 158º da Independência e 91º da República. JOÃO FIGUEIREDO Petrônio Portella Maximiano Fonseca Walter Pires R. S. Guerreiro Karlos Rischbieter Eliseu Resende Ângelo Amaury Stabile E. Portella Murillo Macêdo Délio Jardim de Mattos Mário Augusto de Castro Lima João Camilo Penna Cesar Cals Filho

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Mário David Andreazza H. C. Mattos Jair Soares Danilo Venturini Golbery do Couto e Silva Octávio Aguiar de Medeiros Samuel Augusto Alves Corrêa Delfim Netto Said Farhat Hélio Beltrão

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ANEXO II - LEI N. 9.140, DE 4 DE DEZEMBRO DE 1995 Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências, O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º São reconhecidas como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas relacionadas no Anexo I desta Lei, por terem participado, ou terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, desde então, desaparecidas, sem que delas haja notícias. Art 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo principio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683 de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia. Art 3º O cônjuge, o companheiro ou a companheira, descendente, ascendente ou colateral até quarto grau, das pessoas denominadas na lista referida no art. 1º, comprovando essa condição, poderão requerer a oficial de registro civil das pessoas naturais de seu domicilio a lavratura do assento de óbito, instruindo o pedido com original ou cópia da publicação desta Lei e de seus anexos. Parágrafo único. Em caso de dúvida, será admitida justificação judicial. Art. 4º Fica criada Comissão Especial que, face à situação política mencionada no art. 1º e, em conformidade com este, tem as seguintes atribuições: I - proceder ao reconhecimento de pessoas: a) desaparecidas, não relacionadas no Anexo I desta Lei; b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, tenham falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas; 11 - envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados; e 111 - emitir parecer sobre os requerimentos relativos à indenização que venham a ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta Lei. Art 5º A Comissão Especial será composta por sete membros, de livre escolha e designação do Presidente da República, que indicará, dentre eles, quem irá presidi-la, com voto de qualidade. § 1º Dos sete membros da Comissão, quatro serão escolhidos: I - dentre os membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados; II- dentre as pessoas com vínculo com os familiares das pessoas referidas na lista constante do Anexo I; III - dentre os membros do Ministério Público Federal; e IV - dentre os integrantes das Forças Armadas. § 2º A Comissão Especial poderá ser assessorada por funcionários públicos federais, designados pelo Presidente da República, podendo, ainda, solicitar o auxílio das Secretarias de Justiça dos Estados, mediante convênio com o Ministério da Justiça, se necessário. Art. 6º A Comissão Especial funcionará junto ao Ministério da Justiça, que lhe dará o apoio necessário. Art 7º Para fins de reconhecimento de pessoas desaparecidas não relacionadas no Anexo I desta Lei, os requerimentos, por qualquer das pessoas mencionadas no art. 3º, serão apresentados perante a Comissão Especial, no prazo de cento e vinte dias, contado a partir da data da publicação desta Lei, e serão instruídos com informações e documentos que possam comprovar a pretensão. § 1º Idêntico procedimento deverá ser observado nos casos baseados na alínea b do inciso I do art. 4º § 2º Os deferimentos, pela Comissão Especial, dos pedidos de reconhecimento de pessoas não mencionadas no Anexo I desta Lei instruirão os pedidos de assento de óbito de que trata o art 3º, contado o prazo de cento e vinte dias, a partir da ciência da decisão deferitória.

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Art 8º A Comissão Especial, no prazo de cento e vinte dias de sua instalação, mediante solicitação expressa de qualquer das pessoas mencionadas no art 3º, e concluindo pela existência de indícios suficientes, poderá diligenciar no sentido da localização dos restos mortais desaparecido. Art 9º Para os fins previstos nos arts. 4º e 7º, a Comissão Especial poderá solicitar: I - documentos de qualquer órgão público; 11 - a realização de perícias; 111 - a colaboração de testemunhas; e IV - a intermediação do Ministério das Relações Exteriores para a obtenção de informações junto a governos e a entidades estrangeiras. , Art. 10º A indenização prevista nesta Lei é deferida às pessoas abaixo das, na seguinte ordem: I - ao cônjuge; 11 - ao companheiro ou companheira, definidos pela Lei no. 8.971, de 2 dezembro de 1994; 111 - aos descendentes; IV - aos ascendentes; V - aos colaterais, até o quarto grau. § 1º O pedido de indenização poderá ser formulado até cento e vinte dia contar da publicação desta Lei. No caso de reconhecimento pela Comissão Espec o prazo se conta da data do reconhecimento. § 2º Havendo acordo entre as pessoas denominadas no caput deste artigo, a indenização poderá ser requerida independentemente da ordem nele prevista. § 3º Reconhecida a morte, nos termos da alinea b do inciso I do Art. 40º, poderão as pessoas mencionadas no caput, na mesma ordem e condições, requerer Comissão Especial a indenização. Art. 11º A indenização, a título reparatório, consistirá no pagamento de valor único igual a R$ 3.000,00 (três mil reais) multiplicado pelo número de ano correspondentes à expectativa de sobrevivência do desaparecido levando-se e consideração a idade à época do desaparecimento e os critérios e valores traduzidos na tabela constante do Anexo II desta Lei. § 1º Em nenhuma hipótese o valor da indenização será inferior a R$ 100.000,00 (cem mil reais). § 2º A indenização será concedida mediante decreto do Presidente da República, após parecer favorável da Comissão Especial criada por esta Lei. ; Art. 12º No caso de localização, com vida de pessoa desaparecida, ou de existência de provas contrárias às apresentadas, serão revogados os respectivos atos decorrentes da aplicação desta Lei, não cabendo ação regressiva para o ressarcimento do pagamento já efetuado, salvo na hipótese de comprovada má-fé. Art. 13º Finda a apreciação dos requerimentos, a Comissão Especial elaborará relatório circunstanciado, que encaminhará, para publicação, ao Presidente da República, e encerrará seus trabalhos. Parágrafo único. Enquanto durarem seus trabalhos, a Comissão Especial deverá apresentar trimestralmente relatórios de avaliação. Art. 14º Nas ações judiciais indenizatórias fundadas em fatos decorrentes dá situação política mencionada no art. 1º, s recursos das sentenças condenatórias serão recebidos somente com efetivo devolutivo. Art. 15º As despesas decorrentes da aplicação desta Lei correrão à conta dotações consignadas no orçamento da União pela Lei Orçamentária. Art. 16º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 4 de dezembro de 1995, 174º da Independência e 107º da República. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Presidente da República NELSON A. JOBIM

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ANEXO III – LEI N. 10.559, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2002

Regulamenta o art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências.

Faço saber que o PRESIDENTE DA REPÚBLICA adotou a Medida Provisória nº 65, de 2002, que o Congresso Nacional aprovou, e eu, Ramez Tebet, Presidente da Mesa do Congresso Nacional, para os efeitos do disposto no art. 62 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda constitucional nº 32, de 2001, promulgo a seguinte Lei:

CAPÍTULO I DO REGIME DO ANISTIADO POLÍTICO

Art. 1o O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos: I - declaração da condição de anistiado político; II - reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal,

permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

III - contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias;

IV - conclusão do curso, em escola pública, ou, na falta, com prioridade para bolsa de estudo, a partir do período letivo interrompido, para o punido na condição de estudante, em escola pública, ou registro do respectivo diploma para os que concluíram curso em instituições de ensino no exterior, mesmo que este não tenha correspondente no Brasil, exigindo-se para isso o diploma ou certificado de conclusão do curso em instituição de reconhecido prestígio internacional; e

V - reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em serviço público e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional por motivo político.

Parágrafo único. Aqueles que foram afastados em processos administrativos, instalados com base na legislação de exceção, sem direito ao contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e fundamentos da decisão, serão reintegrados em seus cargos.

CAPÍTULO II DA DECLARAÇÃO DA CONDIÇÃO DE ANISTIADO POLÍTICO

Art. 2o São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram:

I - atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exceção na plena abrangência do termo;

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II - punidos com transferência para localidade diversa daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de residência;

III - punidos com perda de comissões já incorporadas ao contrato de trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas;

IV - compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada, para acompanhar o cônjuge; V - impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias

Reservadas do Ministério da Aeronáutica no S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e no S-285-GM5; VI - punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam,

bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

VII - punidos com fundamento em atos de exceção, institucionais ou complementares, ou sofreram punição disciplinar, sendo estudantes;

VIII - abrangidos pelo Decreto Legislativo no 18, de 15 de dezembro de 1961, e pelo Decreto-Lei no 864, de 12 de setembro de 1969;

IX - demitidos, sendo servidores públicos civis e empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações públicas, empresas públicas ou empresas mistas ou sob controle estatal, exceto nos Comandos militares no que se refere ao disposto no § 5o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

X - punidos com a cassação da aposentadoria ou disponibilidade; XI - desligados, licenciados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas

atividades remuneradas, ainda que com fundamento na legislação comum, ou decorrentes de expedientes oficiais sigilosos.

XII - punidos com a transferência para a reserva remunerada, reformados, ou, já na condição de inativos, com perda de proventos, por atos de exceção, institucionais ou complementares, na plena abrangência do termo;

XIII - compelidos a exercer gratuitamente mandato eletivo de vereador, por força de atos institucionais;

XIV - punidos com a cassação de seus mandatos eletivos nos Poderes Legislativo ou Executivo, em todos os níveis de governo;

XV - na condição de servidores públicos civis ou empregados em todos os níveis de governo ou de suas fundações, empresas públicas ou de economia mista ou sob controle estatal, punidos ou demitidos por interrupção de atividades profissionais, em decorrência de decisão de trabalhadores;

XVI - sendo servidores públicos, punidos com demissão ou afastamento, e que não requereram retorno ou reversão à atividade, no prazo que transcorreu de 28 de agosto de 1979 a 26 de dezembro do mesmo ano, ou tiveram seu pedido indeferido, arquivado ou não conhecido e tampouco foram considerados aposentados, transferidos para a reserva ou reformados;

XVII - impedidos de tomar posse ou de entrar em exercício de cargo público, nos Poderes Judiciário, Legislativo ou Executivo, em todos os níveis, tendo sido válido o concurso.

§ 1o No caso previsto no inciso XIII, o período de mandato exercido gratuitamente conta-se apenas para efeito de aposentadoria no serviço público e de previdência social.

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§ 2o Fica assegurado o direito de requerer a correspondente declaração aos sucessores ou dependentes daquele que seria beneficiário da condição de anistiado político.

CAPÍTULO III DA REPARAÇÃO ECONÔMICA DE CARÁTER INDENIZATÓRIO

Art. 3o A reparação econômica de que trata o inciso II do art. 1o desta Lei, nas condições estabelecidas no caput do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, correrá à conta do Tesouro Nacional.

§ 1o A reparação econômica em prestação única não é acumulável com a reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada.

§ 2o A reparação econômica, nas condições estabelecidas no caput do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, será concedida mediante portaria do Ministro de Estado da Justiça, após parecer favorável da Comissão de Anistia de que trata o art. 12 desta Lei.

Seção I Da Reparação Econômica em Prestação Única

Art. 4o A reparação econômica em prestação única consistirá no pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição e será devida aos anistiados políticos que não puderem comprovar vínculos com a atividade laboral.

§ 1o Para o cálculo do pagamento mencionado no caput deste artigo, considera-se como um ano o período inferior a doze meses.

§ 2o Em nenhuma hipótese o valor da reparação econômica em prestação única será superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Seção II Da Reparação Econômica em Prestação Mensal, Permanente e Continuada

Art. 5o A reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada, nos termos do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, será assegurada aos anistiados políticos que comprovarem vínculos com a atividade laboral, à exceção dos que optarem por receber em prestação única.

Art. 6o O valor da prestação mensal, permanente e continuada, será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse, considerada a graduação a que teria direito, obedecidos os prazos para promoção previstos nas leis e regulamentos vigentes, e asseguradas as promoções ao oficialato, independentemente de requisitos e condições, respeitadas as características e peculiaridades dos regimes jurídicos dos servidores públicos civis e dos militares, e, se necessário, considerando-se os seus paradigmas.

§ 1o O valor da prestação mensal, permanente e continuada, será estabelecido conforme os elementos de prova oferecidos pelo requerente, informações de órgãos oficiais, bem como de fundações, empresas públicas ou privadas, ou empresas mistas sob controle estatal, ordens, sindicatos ou conselhos profissionais a que o anistiado político estava vinculado ao sofrer a punição, podendo ser arbitrado até mesmo com base em pesquisa de mercado.

§ 2o Para o cálculo do valor da prestação de que trata este artigo serão considerados os direitos e vantagens incorporados à situação jurídica da categoria profissional a que pertencia o anistiado político, observado o disposto no § 4o deste artigo.

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§ 3o As promoções asseguradas ao anistiado político independerão de seu tempo de admissão ou incorporação de seu posto ou graduação, sendo obedecidos os prazos de permanência em atividades previstos nas leis e regulamentos vigentes, vedada a exigência de satisfação das condições incompatíveis com a situação pessoal do beneficiário.

§ 4o Para os efeitos desta Lei, considera-se paradigma a situação funcional de maior freqüência constatada entre os pares ou colegas contemporâneos do anistiado que apresentavam o mesmo posicionamento no cargo, emprego ou posto quando da punição.

§ 5o Desde que haja manifestação do beneficiário, no prazo de até dois anos a contar da entrada em vigor desta Lei, será revisto, pelo órgão competente, no prazo de até seis meses a contar da data do requerimento, o valor da aposentadoria e da pensão excepcional, relativa ao anistiado político, que tenha sido reduzido ou cancelado em virtude de critérios previdenciários ou estabelecido por ordens normativas ou de serviço do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, respeitado o disposto no art. 7o desta Lei.

§ 6o Os valores apurados nos termos deste artigo poderão gerar efeitos financeiros a partir de 5 de outubro de 1988, considerando-se para início da retroatividade e da prescrição qüinqüenal a data do protocolo da petição ou requerimento inicial de anistia, de acordo com os arts. 1o e 4o do Decreto no 20.910, de 6 de janeiro de 1932.

Art. 7o O valor da prestação mensal, permanente e continuada, não será inferior ao do salário mínimo nem superior ao do teto estabelecido no art. 37, inciso XI, e § 9o da Constituição.

§ 1o Se o anistiado político era, na data da punição, comprovadamente remunerado por mais de uma atividade laboral, não eventual, o valor da prestação mensal, permanente e continuada, será igual à soma das remunerações a que tinha direito, até o limite estabelecido no caput deste artigo, obedecidas as regras constitucionais de não-acumulação de cargos, funções, empregos ou proventos.

§ 2o Para o cálculo da prestação mensal de que trata este artigo, serão asseguradas, na inatividade, na aposentadoria ou na reserva, as promoções ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teria direito se estivesse em serviço ativo.

Art. 8o O reajustamento do valor da prestação mensal, permanente e continuada, será feito quando ocorrer alteração na remuneração que o anistiado político estaria recebendo se estivesse em serviço ativo, observadas as disposições do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Art. 9o Os valores pagos por anistia não poderão ser objeto de contribuição ao INSS, a caixas de assistência ou fundos de pensão ou previdência, nem objeto de ressarcimento por estes de suas responsabilidades estatutárias.

Parágrafo único. Os valores pagos a título de indenização a anistiados políticos são isentos do Imposto de Renda. (Regulamento)

CAPÍTULO IV DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS

Art. 10. Caberá ao Ministro de Estado da Justiça decidir a respeito dos requerimentos fundados nesta Lei.

Art. 11. Todos os processos de anistia política, deferidos ou não, inclusive os que estão arquivados, bem como os respectivos atos informatizados que se encontram em outros Ministérios, ou em outros órgãos da Administração Pública direta ou indireta, serão transferidos para o Ministério da Justiça, no prazo de noventa dias contados da publicação desta Lei.

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Parágrafo único. O anistiado político ou seu dependente poderá solicitar, a qualquer tempo, a revisão do valor da correspondente prestação mensal, permanente e continuada, toda vez que esta não esteja de acordo com os arts. 6o, 7o, 8o e 9o desta Lei.

Art. 12. Fica criada, no âmbito do Ministério da Justiça, a Comissão de Anistia, com a finalidade de examinar os requerimentos referidos no art. 10 desta Lei e assessorar o respectivo Ministro de Estado em suas decisões.

§ 1o Os membros da Comissão de Anistia serão designados mediante portaria do Ministro de Estado da Justiça e dela participarão, entre outros, um representante do Ministério da Defesa, indicado pelo respectivo Ministro de Estado, e um representante dos anistiados.

§ 2o O representante dos anistiados será designado conforme procedimento estabelecido pelo Ministro de Estado da Justiça e segundo indicação das respectivas associações.

§ 3o Para os fins desta Lei, a Comissão de Anistia poderá realizar diligências, requerer informações e documentos, ouvir testemunhas e emitir pareceres técnicos com o objetivo de instruir os processos e requerimentos, bem como arbitrar, com base nas provas obtidas, o valor das indenizações previstas nos arts. 4o e 5o nos casos que não for possível identificar o tempo exato de punição do interessado.

§ 4o As requisições e decisões proferidas pelo Ministro de Estado da Justiça nos processos de anistia política serão obrigatoriamente cumpridas no prazo de sessenta dias, por todos os órgãos da Administração Pública e quaisquer outras entidades a que estejam dirigidas, ressalvada a disponibilidade orçamentária.

§ 5o Para a finalidade de bem desempenhar suas atribuições legais, a Comissão de Anistia poderá requisitar das empresas públicas, privadas ou de economia mista, no período abrangido pela anistia, os documentos e registros funcionais do postulante à anistia que tenha pertencido aos seus quadros funcionais, não podendo essas empresas recusar-se à devida exibição dos referidos documentos, desde que oficialmente solicitado por expediente administrativo da Comissão e requisitar, quando julgar necessário, informações e assessoria das associações dos anistiados.

CAPÍTULO V DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E FINAIS

Art. 13. No caso de falecimento do anistiado político, o direito à reparação econômica transfere-se aos seus dependentes, observados os critérios fixados nos regimes jurídicos dos servidores civis e militares da União.

Art. 14. Ao anistiado político são também assegurados os benefícios indiretos mantidos pelas empresas ou órgãos da Administração Pública a que estavam vinculados quando foram punidos, ou pelas entidades instituídas por umas ou por outros, inclusive planos de seguro, de assistência médica, odontológica e hospitalar, bem como de financiamento habitacional.

Art. 15. A empresa, fundação ou autarquia poderá, mediante convênio com a Fazenda Pública, encarregar-se do pagamento da prestação mensal, permanente e continuada, relativamente a seus ex-empregados, anistiados políticos, bem como a seus eventuais dependentes.

Art. 16. Os direitos expressos nesta Lei não excluem os conferidos por outras normas legais ou constitucionais, vedada a acumulação de quaisquer pagamentos ou benefícios ou indenização com o mesmo fundamento, facultando-se a opção mais favorável.

Art. 17. Comprovando-se a falsidade dos motivos que ensejaram a declaração da condição de anistiado político ou os benefícios e direitos assegurados por esta Lei será o ato respectivo tornado nulo pelo Ministro de Estado da Justiça, em procedimento em que se assegurará a plenitude do direito de

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defesa, ficando ao favorecido o encargo de ressarcir a Fazenda Nacional pelas verbas que houver recebido indevidamente, sem prejuízo de outras sanções de caráter administrativo e penal.

Art. 18. Caberá ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão efetuar, com referência às anistias concedidas a civis, mediante comunicação do Ministério da Justiça, no prazo de sessenta dias a contar dessa comunicação, o pagamento das reparações econômicas, desde que atendida a ressalva do § 4o do art. 12 desta Lei.

Parágrafo único. Tratando-se de anistias concedidas aos militares, as reintegrações e promoções, bem como as reparações econômicas, reconhecidas pela Comissão, serão efetuadas pelo Ministério da Defesa, no prazo de sessenta dias após a comunicação do Ministério da Justiça, à exceção dos casos especificados no art. 2o, inciso V, desta Lei.

Art. 19. O pagamento de aposentadoria ou pensão excepcional relativa aos já anistiados políticos, que vem sendo efetuado pelo INSS e demais entidades públicas, bem como por empresas, mediante convênio com o referido instituto, será mantido, sem solução de continuidade, até a sua substituição pelo regime de prestação mensal, permanente e continuada, instituído por esta Lei, obedecido o que determina o art. 11.

Parágrafo único. Os recursos necessários ao pagamento das reparações econômicas de caráter indenizatório terão rubrica própria no Orçamento Geral da União e serão determinados pelo Ministério da Justiça, com destinação específica para civis (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão) e militares (Ministério da Defesa).

Art. 20. Ao declarado anistiado que se encontre em litígio judicial visando à obtenção dos benefícios ou indenização estabelecidos pelo art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é facultado celebrar transação a ser homologada no juízo competente.

Parágrafo único. Para efeito do cumprimento do disposto neste artigo, a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias Jurídicas das autarquias e fundações públicas federais ficam autorizadas a celebrar transação nos processos movidos contra a União ou suas entidades.

Art. 21. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. Art. 22. Ficam revogados a Medida Provisória no 2.151-3, de 24 de agosto de 2001, o art. 2o, o §

5o do art. 3o, e os arts. 4o e 5o da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e o art. 150 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991.

Congresso Nacional, em 13 de novembro de 2002; 181o da Independência e 114o da República. Senador RAMEZ TEBET

Presidente da Mesa do Congresso Nacional Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 14.11.2002.

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ANEXO IV

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ANEXO V

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ANEXO VI