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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO –
PUC-SP
Bruna Oliveira Fernandes
PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E A NORMA GERAL ANTIELISIVA
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2014
BRUNA OLIVEIRA FERNANDES
MESTRADO EM DIREITO
PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E A NORMA GERAL ANTIELISIVA
Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Renato Lopes Becho.
SÃO PAULO
2014
Banca Examinadora
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_________________________________________
_________________________________________
ABREVIATURAS
ADI – Ação Direita de Inconstitucionalidade
Art. – Artigo
CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
CCB – Código Civil Brasileiro
CF – Constituição Federal
Cf. - conferir
COFINS – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
CP – Código Penal
CSRF – Câmara Superior de Recursos Fiscais
CTN – Código Tributário Nacional
DL – Decreto-Lei
DOCD – Diário Oficial da Câmara dos Deputados
EC – Emenda Constitucional
EM – Exposição de Motivos
HC – Habeas Corpus
II – Imposto sobre Importação de produtos estrangeiros
ISS – Imposto Sobre Serviço
IR – Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza
LAF – Lei de Adaptação Fiscal
LC – Lei Complementar
LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
N. - Número
P. – página
QO – Questão de Ordem
RE – Recurso Extraordinário
Resp – Recurso Especial
RG – Repercussão Geral
Rjt – relação jurídico-tributária
RMIT – Regra-Matriz de Incidência Tributária
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
V.g. – verbi gratia, por exemplo
RESUMO
FERNANDES, Bruna Oliveira. Planejamento tributário e a norma geral antielisiva. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2014.
A obrigação tributária é compulsória e decorre de lei, dessa forma,
praticado o fato imponível, o sujeito passivo não pode eximir-se do pagamento do
tributo. Visando diminuir o ônus tributário, muitos contribuintes têm programado suas
ações licitamente para optar por condutas alternativas às hipóteses de incidência
tributária, evitando a ocorrência do fato imponível. É o que se tem chamado de
elisão fiscal ou planejamento tributário. Elisão fiscal não se confunde com evasão
fiscal, conduta ilícita que suprime o pagamento do tributo devido. Para evitar o
planejamento, que reduz a arrecadação tributária, o Fisco e parte da doutrina
defendem a possibilidade de desconsideração dos atos e negócios alternativos para
que seja possível caracterizá-los como fatos imponíveis por possuírem manifestação
de capacidade econômica. Tal pretensão do Fisco, que resultou no parágrafo único
do art. 116 do CTN – a norma geral antielisiva –, quer tornar infrutífera qualquer
prática de planejamento tributário, revigorando a teoria germânica da interpretação
econômica das leis tributárias. O referido dispositivo legal autoriza a
desconsideração dos atos e negócios jurídicos que se desvinculem da hipótese de
incidência tributária, permitindo a tributação pelos aspectos econômicos da
transação realizada pelo contribuinte, e ainda que sejam negócios diferentes, se os
efeitos forem os mesmos, a tributação deverá ser realizada. A utilização da
interpretação econômica para a tributação dos casos de planejamento tributário é a
introdução, disfarçada, do método analógico do ordenamento jurídico tributário e a
flexibilização do princípio da legalidade tributária. A Constituição Federal de 1988, ao
consagrar a segurança jurídica e a legalidade tributária, vedou a utilização da
analogia para a exigência de tributo, que somente decorre da lei. Não basta que haja
a demonstração de riqueza apta a ser tributada, é preciso que haja,
cumulativamente, a previsão legal. O Fisco não possui a competência de equiparar
negócios jurídicos distintos para tributá-los igualmente, ainda que seja com o
pretexto de realização da justiça fiscal. O combate à elisão fiscal deve ser feito pelo
Poder Legislativo e de forma específica, e onde houver capacidade contributiva o
legislador está autorizado a instituir tributo. O direito de efetivação do planejamento
tributário é fundado na liberdade, na livre iniciativa e na autonomia privada e
resguardado pela legalidade tributária.
Palavras-chave: planejamento tributário; licitude; liberdade de ação; legalidade
tributária.
ABSTRACT FERNANDES, Bruna Oliveira. Planejamento tributário e a norma geral antielisiva. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2014.
The tax obligation is compulsory and arises out of law, thus, on the taxable fact being carried out, the taxpayer cannot refuse to pay the charge or tax. Aiming to reduce the tax burden, many taxpayers have programmed their actions on a lawful basis in order to opt for the alternative conducts to the event of tax incidence, avoiding the occurrence of the taxable fact. This practice has been called tax avoidance or tax planning. Tax avoidance is not to be mistaken by tax evasion, which is an unlawful conduct to avoid the payment of the tax due. To avoid planning, which reduces tax revenue, the tax authorities and part of the doctrine or legal writings defend the possibility of disregarding the acts and alternative business so that one can characterize them as taxable facts because they have levied pronouncement of economic capacity. This attempt by the tax authorities, which gave rise to the sole paragraph of article 116 of CTN (the anti-tax planning general rule), intends to render any practice of tax planning fruitless by enhancing the German theory of economic interpretation of tax laws. Said legal provision authorizes disregarding legal acts and business that unbind the hypothesis of tax incidence, allowing taxation by the economic aspects of the transaction made by the taxpayer, and even though they are different businesses, the effects are the same, and taxation shall be performed. The use of economic interpretation for taxation of cases of tax planning is the introduction, in disguise, of the likewise method in tax law and the relaxation of the principle of tributary legality. Brazilian Constitution, on setting forth the legal security and the tributary legality, prohibited the use of analogy to the exigency of tribute, which only resulted from the law. Evidence wealthy condition to be taxed is not sufficient; there must be the legal provision on a cumulative basis. Tax authorities do not have the competence to equate distinct legal transactions to tax them equally, albeit under the pretext of promoting of fiscal justice. Fighting tax planning should be done by the legislative branch and through specific manner, and where capacity to pay is found, the lawmaker is authorized to introduce taxes. The right to effectiveness of tax planning is based on freedom, free enterprise and private autonomy and it is safeguarded by the principle of tributary legality. Keywords: tax Planning; lawful acts; freedom of action; tributary lawfulness.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8
1 NORMA JURÍDICA E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ........................................... 13
1.1 Norma jurídica................................................................................................. 13
1.1.1 Norma jurídico-tributária ......................................................................... 15
1.1.2 Princípios e regras .................................................................................. 17
1.1.3 Regra-Matriz de Incidência Tributária .................................................... 20
1.2 Interpretação jurídica ..................................................................................... 21
1.2.1 Interpretação das normas tributárias ...................................................... 23
1.2.2 Normas de interpretação no Código Tributário Nacional ........................ 27
2 LIBERDADE FISCAL E A LEGALIDADE TRIBUTÁRIA ........................................ 35
2.1 A liberdade e o tributo .................................................................................... 35
2.2 Legalidade ...................................................................................................... 38
2.3 Estrita legalidade tributária ............................................................................. 40
2.3.1 Tipicidade tributária ................................................................................. 42
2.3.2 Os momentos do direito tributário e o positivismo jurídico ..................... 50
3 EVASÃO FISCAL .................................................................................................. 53
3.1 Conceito de evasão fiscal............................................................................... 54
3.2 Das modalidades de evasão tributária ........................................................... 58
3.2.1 Simulação fiscal ...................................................................................... 59
3.2.2 Sonegação fiscal ..................................................................................... 68
3.2.3 Fraude em geral – outras fraudes ........................................................... 69
3.2.3.1 O mero inadimplemento ................................................................ 70
4 ELISÃO FISCAL .................................................................................................... 72
4.1 Conceito ......................................................................................................... 72
4.2 Distinção entre elisão e evasão tributária ...................................................... 75
4.3 Teoria do propósito negocial .......................................................................... 78
4.3.1 Ausência de propósito negocial na incorporação de empresa superavitária
por empresa deficitária – ―Incorporação às avessas‖ ...................................... 87
4.4 Teorias antielisivas ......................................................................................... 92
4.4.1 A interpretação econômica da lei tributária ............................................. 93
4.4.2 Teoria do abuso das formas jurídicas ou adaptação das formas
jurídicas........................................................................................................... 102
4.4.2.1 Contrato de franquia – franchising uma nova figura
contratual.................................................................................................. 108
4.4.3 Violação da justiça fiscal: princípios da igualdade e da capacidade
contributiva ..................................................................................................... 112
4.4.3.1 Princípio da igualdade tributária .................................................. 113
4.4.3.2 Princípio da capacidade contributiva ........................................... 117
4.4.4. Conclusões das teorias antielisivas ......................................................124
4.5 Licitude da elisão tributária .......................................................................... 127
4.6 Analogia e elisão tributária ........................................................................... 129
5 PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E A NORMA ANTIELISIVA BRASILEIRA ....... 132
5.1 A Lei Complementar 104, de 2001 – art. 116, parágrafo único do CTN ...... 133
5.1.1 Normas antielisivas anteriores .............................................................. 134
5.1.2 A norma geral antielisiva ....................................................................... 136
5.1.2.1 Tentativa de regulamentação – Medida Provisória 66 de 2002... 142
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 145
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 150
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INTRODUÇÃO
O ―planejamento tributário‖ ou ―elisão fiscal‖ é um tema muito polêmico no
meio jurídico-tributário brasileiro e apresenta divergências que vão desde o termo
utilizado para sua denominação, como também sua classificação e até em suas
consequências jurídicas.
Sua relevância jurídica se dá por envolver princípios, direitos e garantias
fundamentais, como a segurança jurídica, a legalidade, a liberdade, a isonomia e a
capacidade contributiva. A relevância do planejamento tributário não é apenas
jurídica, mas também economicamente ele também se destaca pelas interferências
no montante tributário arrecadado que custeia as despesas públicas do Estado. Por
diminuir a arrecadação fiscal, o planejamento desperta o repúdio do Fisco.
A elisão fiscal divide a doutrina pátria entre os que a defendem e os que a
condenam. Para compreender as divergências devemos destacar que o
planejamento tributário explicita dois direitos opostos e conflitantes: o direito de
tributar e o direito de não ser tributado.
Esses direitos antagônicos, de tributar e de não ser tributado, circundam
sempre a relação jurídico-tributária existente entre o Fisco e o contribuinte e são
estruturados e limitados fundamentalmente pela Constituição Federal de 1988.
A principal discussão da elisão tributária está em se definir o que é
possível ou não ser realizado pelo contribuinte e pelo Fisco a partir da interpretação
jurídica e do texto constitucional. A depender da interpretação que se faz das
normas jurídicas e da Carta Magna, é possível identificar o direito do Fisco de
tributar e, consequentemente, o direito do contribuinte de não ser tributado.
O planejamento tributário ou elisão fiscal é a conduta do sujeito passivo
que visa reduzir licitamente o ônus tributário mediante supressão ou alteração do
próprio fato gerador do tributo, não suprimindo o pagamento de tributo devido,
porque não há tributo devido.
É nesse contexto, de possibilidade de se evitar a exação, que
visualizamos com maior nitidez a contraposição dos interesses de quem exige o
tributo – Fisco, e de quem o paga – o contribuinte.
Os defensores da prática do planejamento tributário entendem que a
interpretação jurídica realizada pelo Fisco no momento do lançamento do tributo,
9
deve possibilitar ao agente fiscal que efetue o lançamento com base apenas no que
está expresso em lei, na hipótese de incidência tributária. Tal interpretação jurídica é
uma forma de evitar a tributação de fatos que não foram previstos pelo legislador
competente, o que violaria o princípio da legalidade tributária em seus aspectos
formal e material.
Os doutrinadores que condenam o planejamento tributário entendem que
o Fisco pode interpretar a lei tributária para possibilitar a tributação de atos e
negócios jurídicos que, mesmo não previstos diretamente na lei, atingem o mesmo
resultado dos fatos tributáveis descritos na hipótese de incidência, desconsiderando-
se o negócio pactuado para atingir os efeitos econômicos gerados.
Há, ainda, uma corrente doutrinária que, apesar de não repudiar a prática
do planejamento tributário, limita sua utilização para evitar a frustação da justiça
fiscal e da capacidade contributiva. Essa corrente aduz que a conduta do
contribuinte não pode ser motivada exclusivamente pela obtenção da diminuição do
ônus tributário, ainda que seja concretizada por meios lícitos.
O interesse pelo tema abordado originou-se pela insegurança e
dificuldade de identificação do que é possível, ou não, ser realizado pelo contribuinte
para obter a economia tributária no âmbito do direito brasileiro.
Para tentar reduzir a nossa insegurança gerada pela ausência de
uniformidade no tratamento da elisão fiscal, tanto pela doutrina, quanto pela
jurisprudência, optamos por pesquisar a origem, o conceito e os fundamentos dessa
prática de planejamento tributário. Propomo-nos a estudar as correntes jurídicas que
a criticam, que são as teorias antielisivas e também as normas jurídicas antielisivas
que combatem a elisão fiscal, tornando-a ilícita.
Após o estudo dos fundamentos do planejamento e das teorias que o
repreendem, analisamos se há algum comando normativo no ordenamento jurídico
pátrio que impeça generalizadamente a conduta lícita do contribuinte de tentar
diminuir seus gastos com tributos.
Analisamos especificamente o art. 116, parágrafo único do Código
Tributário Nacional, conhecido como norma geral antielisiva, e verificamos se esse
dispositivo guarda consonância com a Constituição.
Neste estudo sobre a elisão tributária e a norma geral antielisiva não há
qualquer pretensão de esgotar o tema, pois cremos que tal tema, além de ser
teoricamente bastante rico, torna-se inesgotável na realidade prática.
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Não temos, também, a pretensão de tachar a priori uma determinada
conduta de proibida ou permitida no âmbito do planejamento, pois sabemos que o
resultado lícito ou ilícito poderá depender das circunstâncias do caso concreto.
O que pretendemos é identificar as estruturas jurídicas que envolvem o
planejamento tributário. Estruturas essas que devem existir e ser constantes para
proporcionar um mínimo de segurança e previsibilidade no relacionamento entre o
Fisco e o contribuinte.
A não distinção rigorosa do lícito e ilícito e o desconhecimento dos pontos
comuns das teorias antielisivas no tema planejamento tributário acabam por levar ao
surgimento de opiniões generalistas que negam todo e qualquer planejamento, ou
que, ao contrário, o permitem.
A visão negativa enfraquece e obscurece a estrutura que resguarda o
contribuinte, e a visão excessivamente positiva que permite qualquer conduta
aparentemente lícita, sob o fundamento genérico do direito de não ser tributado, é
irrealista.
Para situar o planejamento tributário no atual ordenamento jurídico
brasileiro, é necessário compreender a própria norma jurídica tributária e a partir
dela várias questões surgem: Como essa norma deve ser interpretada para que haja
a obrigação do contribuinte de pagar o tributo? O Fisco pode utilizar como parâmetro
para o lançamento tributário apenas a realidade econômica ou os efeitos
econômicos decorrentes do fato abstratamente previsto na hipótese de incidência? A
conduta elisiva frauda a norma jurídica tributária ou a sua finalidade? A conduta lícita
do sujeito passivo da obrigação tributária, ao visar unicamente à economia tributária,
torna-se ilícita por configurar abuso de direito do contribuinte?
Os argumentos do Estado Fiscal tendem ao aumento do poder de tributar
para aumentar também a arrecadação, já os argumentos do contribuinte que
praticam o planejamento tributário objetivam o menor gasto tributário possível.
Chegamos a uma conclusão sobre o atual tratamento do planejamento
tributário no ordenamento jurídico nacional, identificando a sua estrutura jurídica e o
parâmetro de aferição da conduta do contribuinte e do Fisco. Para tanto, esta
dissertação foi disposta em cinco capítulos: (i) interpretação jurídica e norma jurídica;
(ii) liberdade fiscal e legalidade tributária; (iii) evasão fiscal; (iv) elisão fiscal; e (v)
planejamento tributário e a norma antielisiva brasileira.
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O primeiro capítulo trata da norma jurídica e da interpretação jurídica,
pontos essenciais para todo estudo sobre o direito, já que este é formado por
normas jurídicas. As normas são construídas a partir do processo interpretativo, que
é um procedimento mental criativo de um significado. Destacamos nesse capítulo,
ainda, a norma jurídica tributária, dentre elas a regra-matriz de incidência tributária
que possibilita a imposição da exação fiscal ao contribuinte.
No segundo capítulo discorremos sobre a liberdade fiscal, o princípio da
legalidade e da tipicidade tributária, que são os nortes para a exigência da obrigação
tributária e a constituição do crédito tributário e que representam no Estado
constitucional o autoconsentimento do povo para a tributação.
O planejamento tributário baseia-se na segurança jurídica fornecida pelo
princípio da legalidade, ao passo que ciente do que ensejará a tributação, o
contribuinte tem liberdade para evitar tais situações, optando por condutas
alternativas que não consistam nas hipóteses de incidência elencadas na lei.
A legalidade tributária em seu aspecto formal impõe limites à tributação
protegendo o contribuinte, é uma garantia constitucional de que o tributo somente
será instituído por lei pelo Poder Legislativo. Mas imprescindível também é o
aspecto material da legalidade, que limita substancialmente a lei, impondo o
conteúdo mínimo do tributo a ser previsto pelo Poder Legislativo, evitando a
delegação inconstitucional da instituição do tributo ao Poder Executivo.
Para saber quais as condutas que o contribuinte pode praticar, é
necessário saber, antes, quais lhe são defesas. Para sistematizarmos as condutas
proibidas, reservamos o terceiro capítulo, onde conceituamos e classificamos a
evasão fiscal, condutas que notadamente são ilícitas.
Dentre as condutas evasivas, acentuamos a simulação que
corriqueiramente é realizada no âmbito das práticas tributárias, sob o rótulo de
planejamento tributário, mas que com ele não se confunde.
Cientes de quais são as condutas ilícitas, passamos ao quarto capítulo
que aborda a elisão fiscal. Nessa parte, após a conceituação da conduta elisiva,
estudamos as principais teorias antielisivas, ou seja, as teorias que se propõem a
combater a elisão tributária, bem como os temas relevantes que se relacionam à
elisão fiscal, como o propósito negocial e o abuso de direito.
Dentre as teorias que combatem o planejamento, destacamos três: a
interpretação econômica da lei tributária; a tese da predominância da substância
12
sobre a forma do negócio jurídico; e a teoria da concretização da justiça fiscal, que
repudia o planejamento por violar os princípios da igualdade e da capacidade
contributiva. Tais doutrinas antielisivas são aplicadas pelo Fisco para realizar o
lançamento tributário das condutas lícitas que ensejam a economia tributária.
No último capítulo, tratamos do planejamento tributário, denominação
moderna da elisão fiscal, e da norma antielisiva brasileira, que positivou as teorias
antielisivas. Abordamos especificamente o dispositivo que se tem chamado de
norma geral antielisiva, art. 116, parágrafo único do CTN, apurando se ela combate
a evasão ou o planejamento tributário.
O estudo do posicionamento jurisprudencial, realizado paralelamente com
as teses doutrinárias, não dissolveu a sensação de insegurança jurídica que existia
no início da pesquisa causada pela indeterminação do que é possível ou não ser
feito pelo contribuinte para redução do ônus tributário dentro do campo da licitude.
A indeterminação que circunda atualmente o sujeito passivo da relação
jurídico-tributária pode ser sistematizada em um conflito de dois grandes valores:
segurança jurídica na tributação, consagrada pela legalidade que garante ao
contribuinte o conhecimento prévio do que dará origem à obrigação tributária, e a
igualdade, pois os contribuintes que possuírem a mesma capacidade contributiva
deveriam ser tributados igualmente.
A prevalência de um ou outro valor – segurança ou igualdade – fará surtir
efeitos distintos no processo interpretativo e construtivo da norma jurídica tributária
que impõe o pagamento do tributo. Mas acreditamos a Constituição determina a
compatibilização dos princípios da legalidade e da capacidade contributiva, pois não
pode haver tributação de riqueza sem lei, assim como a lei não pode tributar onde
não há capacidade contributiva.
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1 NORMA JURÍDICA E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
1.1 Norma jurídica
O ponto nevrálgico do planejamento tributário gira em torno da norma
jurídico-tributária que cria o tributo, e de como ela deve ser composta e interpretada.
Antes de enfrentarmos tais questões, é preciso conhecer a norma jurídica e a
interpretação jurídica, que ao longo da história do direito, com as variações das
premissas filosóficas, foram compreendidas de formas diferentes, como veremos
adiante.
E a partir do conceito de direito como um conjunto de normas jurídicas
que regulam a vida em sociedade (BECHO, 2014, p. 27), é imprescindível o
conhecimento do que seja a norma jurídica.
Tal tarefa, de antemão já avisamos, não é fácil. Esse é um dos temas
mais polêmicos na doutrina jurídica, porém é necessário que fique claro o sentido
utilizado de agora em diante.
Hans Kelsen (1939, p. 5), jurista austríaco, almejou no início do século XX
o isolamento do direito positivo como critério metodológico, delimitando-o como
único objeto da ciência jurídica, restringindo seus estudos ao direito que é, e não
como ele deve ser. Pretendia fazer, e fez, uma teoria pura do direito para romper o
que ele denominou de política do direito.
Desde sua primeira edição da teoria pura, Kelsen (1939, p. 10) afirmou
que a norma é ―um esquema de interpretação‖ que atribui sentido e significados
jurídicos aos fatos.
Para o autor (KELSEN, 1939, p. 19), por vezes o termo ―justiça‖ é
utilizado para exprimir ―legalidade‖ e ―juridicidade‖, mas em seu verdadeiro sentido, a
justiça é um valor absoluto independente do direito, sendo em suas palavras um
―ideal irracional‖ ―não acessível ao conhecimento‖.
A norma jurídica para Kelsen (1939, p. 26) desprende-se da norma moral
e passa a se apresentar como um juízo hipotético, condicional, coativo e estatal,
cujo objeto é a conduta humana. A norma jurídica converte-se, então, em ―preceito
ou proposição jurídica, que representa a forma fundamental da lei‖.
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Ao considerar a norma jurídica como a forma da lei, a validade desta
independe de qualquer conteúdo, e assim a considerava Kelsen (1939, p. 61) ao
afirma que ―uma norma vale como norma de direito unicamente porque nasceu de
certa maneira, porque foi criada de harmonia com determinada regra, porque foi
produzida de acordo com um método específico‖.
Ao afirmar que uma norma jurídica vale, Kelsen está afirmando que ela
existe. Para o autor (1986, p. 11), ―‗validade‘ é a específica existência da norma‖.
Kelsen (1939, p. 21) assevera que a teoria pura do direito é anti-
ideológica e não fornece argumentos legitimadores, ou ilegitimadores, para
interesses políticos de uma determinada ordem jurídica. E por isso ela presta-se a
validar qualquer ordem jurídica, ainda que totalitária e opressora, bastando ser ela
posta pela autoridade estatal competente.
Kelsen filosoficamente era positivista e isso influenciou seu conceito
formalista de norma jurídica ao considerar como norma válida o ato mandamental da
autoridade competente dotado de coercibilidade.
O positivismo jurídico foi levado às últimas consequências no governo
nacional-socialista alemão, quando sob o manto da legalidade formalista e vazia
foram praticadas as maiores atrocidades da humanidade. De acordo com Radbruch
(1965, p. 94-95),
A hecatombe do injusto Estado nacional-socialista coloca a judicatura alemã permanentemente diante da questão que o positivismo superveniente não consegue responder: devem ser mantidas as sanções aplicadas em decorrência das leis raciais de Nuremberg? Permanecem ainda válidos os confiscos de bens de judeus determinados com fundamento na legislação nacional-socialista vigente naquela época? Devemos aceitar como juridicamente válido o julgamento que, em conformidade com a jurisprudência nacional-socialista, condenou à morte, por delito de alta traição, um ouvinte de emissora de rádio estrangeira? Devemos ainda considerar legal a denúncia que levou a tal julgamento? Mantém valor de lei, para nós, o pedaço de papel informal através do qual Hitler, sob compromisso de sigilo absoluto, desencadeou assassinatos em massa? Estamos obrigados a continuar considerando impuníveis crimes amparados por anistia concedida pelo Partido que se encontrava no Poder, exatamente porque eles foram perpetrados por seus membros? Considera-se Estado, em sentido jurídico, aquele que é dominado por um Partido único e elimina todos os demais?
O positivismo jurídico não satisfaz nossos anseios e expectativas
jurídicas. A norma jurídica não é necessariamente o texto de lei posto pelo
legislador, ela é o mandamento estatal que, prescrevendo condutas proibidas,
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permitidas ou facultadas, visam efetivar os valores constitucionalmente
estabelecidos. E seu conteúdo é construído mediante a conjunção de três fatores
essenciais ao direito: lei, jurisprudência e interpretação (BECHO, 2014, p. 163).
Assentimos com Robert Alexy (2008, p. 54) para quem a norma é o
significado do enunciado normativo. Isso explica a possibilidade de uma mesma
norma ter vários enunciados correspondentes, ou não ter nenhum expressamente.
Dessa forma, adverte o autor (2008, p. 54) que o conceito de norma não deve ser
buscado exclusivamente no nível do enunciado.
A norma não é apenas forma, ela é também conteúdo, a significação
obtida mediante interpretação, uma construção mental realizada a partir dos textos
jurídicos, da legislação e da jurisprudência. Interpretar é ―atividade complexa,
técnica, em que o operador extrai, dos textos legais, o conteúdo das normas
jurídicas, ou seja, o comando a que nos referimos‖ (BECHO, 2014, p. 160).
A norma jurídica não é mais considerada apenas pela sua estrutura
formal, ela também deve ser vista sob o ponto de vista substancial ou material e
também sob o ponto de vista finalista.
Todos os aspectos – forma, conteúdo e finalidade, integram a unidade da
norma jurídica que consiste em um mandamento estatal que obriga, permite ou
proíbe uma determinada conduta. Da mesma maneira também deve ser entendida a
norma jurídico-tributária que aborda uma relação jurídica específica, a relação
jurídico-tributária.
1.1.1 Norma jurídico-tributária
No conceito de norma jurídica é possível ser feito um corte metodológico,
didático, para delimitarmos um conjunto de normas jurídicas específicas. Enfatize-se
que tal técnica deve ser feita apenas para fins de facilitar a apreensão do conteúdo
das normas, jamais se deve perder de vista a unidade do direito.
Feita essa ressalva, podemos afirma que sendo o direito o conjunto de
normas jurídicas que regulam a vida em sociedade, o direito tributário é o conjunto
de normas que regem a relação jurídico-tributária existente entre o contribuinte (lato
sensu) e o Fisco.
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O que caracteriza uma norma como tributária é a relação material sobre a
qual a norma se ocupará e a que conduta ela se dirigirá, esse é o parâmetro para
realização do corte metodológico. As normas tributárias regulam o nascimento, a
constituição, a fiscalização, a arrecadação e a extinção da obrigação tributária,
incluindo as normas da Administração Tributária.
No contexto da formação e interpretação das normas tributárias surgem
alguns dos problemas que nos interessam no planejamento tributário,
especificamente as normas que contém a disciplina do nascimento, da constituição
da obrigação tributária, e da identificação do que essa norma precisa conter para ser
apta para obrigar o contribuinte a entregar a prestação pecuniária ao Fisco.
As normas tributárias devem ser consideradas em seu aspecto formal,
substancial e teleológico. O direito tributário, ao regular a relação específica
existente entre o Fisco e o contribuinte, visa a um fim que tradicionalmente é
compreendido como sendo a arrecadação de recurso financeiro pelo Estado para o
financiamento das necessidades coletivas.
Nessa linha de entendimento clássica, Ruy Barbosa Nogueira (1990, p.
30) expõe que o ―Direito Tributário é assim um direito de levantamento pecuniário
entre os jurisdicionados, porém, disciplinado sobre a base dos princípios do Estado
de Direito‖.
Nesse mesmo sentido, Dino Jarach (1989, p. 46-47) destaca que a
arrecadação de receitas é a finalidade do direito tributário e que o direito tributário
constitucional é um conjunto de normas que disciplina a soberania fiscal.
Também integram a corrente clássica, centralizando o direito tributário em
torno do tributo e da arrecadação, autores como Geraldo Ataliba (2012, p. 37);
Rubens Gomes de Sousa (1952, p. 22); Paulo de Barros Carvalho (2012, p. 47);
José Eduardo Soares de Melo (1998, p. 77); Kyioshi Harada (2004, p. 308); Mauro
Luís Rocha Lopes (2009, p. 03) e Hector Villegas, (1980, p. 61).
Parece-nos que a linha tradicional de conceituação do direito tributário
identifica as normas tributárias com o seu próprio objeto – o tributo, e assim os
autores dessa corrente concluem que a finalidade do direito tributário é a mesma
finalidade do tributo.
O objeto da relação jurídica instaurada pelo direito tributário, pelas
normas tributárias, é o tributo, considerado como a prestação pecuniária que leva
17
receita aos cofres públicos nos termos da definição do art. 3º do CTN, e a finalidade
do tributo é a arrecadação.
Mas não se deve confundir a finalidade do tributo, com a finalidade do
direito tributário. De fato o tributo visa à arrecadação, a transferência de parcela da
riqueza dos súditos ao Estado para prover os gastos públicos e promover a justiça
distributiva. Porém, acreditamos que a finalidade do direito tributário é outra, e tal
entendimento decorre do retorno às origens e ao surgimento da codificação das
normas tributárias que tinha como objetivo limitar o poder tributário estatal que
desregradamente extorquia os seus administrados.
Nessa nova corrente, preleciona Renato Lopes Becho (2014, p. 47) que a
existência do direito tributário destina-se ―para proteger o contribuinte, o cidadão, da
força do Estado. As normas exacionais, antes de serem autorizações para tributar
(sentido positivo), são proteções contra a tributação sem limites (sentido negativo)‖.
Enquanto o tributo objetiva a arrecadação, o direito tributário almeja a
proteção do contribuinte, restringindo o campo de abrangência do tributo, e, diante
da voracidade arrecadatória do Estado, tal função é imprescindível para o controle
estatal.
Cooperam para a formação da norma jurídico-tributária duas categorias
jurídicas distintas: os princípios e as regras, cada uma com características e funções
próprias, que interagem isolada ou cumulativamente para a apreensão do conteúdo
normativo.
Passemos à análise das distinções existentes entre regras e princípios,
para posteriormente analisarmos uma regra jurídico-tributaria específica e
fundamental para a compreensão dos problemas do planejamento tributário, a RMIT
– Regra-Matriz de Incidência Tributária.
1.1.2 Princípios e regras
Para se alcançar o conteúdo das normas, é fundamental a observação
dos textos jurídicos, que podem ser especificados como princípios ou regras.
Atualmente a juridicidade dos princípios é pacífica, mas até o século XX
um dos maiores juristas, Hans Kelsen (1986, p.148), afirmava que eles não
18
integravam o direito. Em sua obra póstuma, Teoria geral da norma jurídica, o autor
chega até a aceitar que os princípios da moral, da política ou dos costumes possam
influenciar a produção e o conteúdo do direito, mas ele assevera que
Como princípios do ―Direito‖, podem-se indicar os princípios que interessam à Moral, Política ou Costume, só enquanto eles influenciem a produção de normas jurídicas pelas competentes autoridades do Direito. Mas eles conservam seu caráter como princípios da Moral, Política ou Costume, e precisam ser claramente distinguidos das normas jurídicas, cujo conteúdo a eles corresponde. Que eles são qualificados como princípios de ―Direito‖, não significa – como a palavra parece dizer – que eles são Direito, que têm o caráter jurídico.
A exclusão dos princípios e valores faz parte da teoria pura de Kelsen que
não se atem ao conteúdo do mandamento jurídico, nesse ponto, hoje, felizmente
superada. Mas, ao reconhecer a juridicidade dos princípios, houve sem dúvida uma
alteração do que se entende por norma jurídica e por direito.
Com esse reconhecimento não mais somente regras podem conter
comandos coercitivos, obrigatórios, mas também os princípios passam a ter
observância cogente.
Muito se debate sobre a distinção das duas categorias. Ronald Dworkin
(2002, p. 39-40) afirma que as regras são aplicadas na base do tudo-ou-nada,
enquanto os princípios não apresentam consequências jurídicas que se seguem
automaticamente, pois variam caso a caso a depender das condições dadas.
Podemos citar como exemplo de regra o art. 145, § 2º CF que proíbe a
instituição de uma taxa que possua a base de cálculo própria de imposto, e sempre
que a taxa tiver base cálculo idêntica de um imposto ela será inconstitucional. Já o
princípio, como o art. 150, II, CF, princípio da igualdade que proíbe o tratamento
desigual entre contribuinte em situações equivalente, é um mandamento bem mais
abrangente que precisa ter as condutas individualizadas para que se possa aferir
seu cumprimento ou descumprimento.
Ronald Dworkin (2002, p. 42) diferencia ainda ambas as categorias pela
dimensão de peso que os princípios têm, ao contrário das regras. Segundo esse
autor (2002, p. 42), ―se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser
válida‖, já os princípios podem coexistir.
Robert Alexy (2008, p. 87) além da diferença quantitativa, notou uma
distinção qualitativa entre princípios e regras. Segundo Alexy (2008, p. 90) os
princípios são normas que ―ordenam que algo seja realizado na maior medida
19
possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes‖, são ―mandamentos
de otimização‖ satisfeitos em graus variados. Já as regras, sempre são ou não
satisfeitas, não havendo grau de satisfação.
Concebendo a norma jurídica como a significação dos textos jurídicos,
não aderimos ao entendimento de Robert Alexy (2008, p. 91) para quem ―toda
norma é ou uma regra ou um princípio‖, pois admitimos que uma norma pode ser
cumulativamente composta por regras e princípios.
Renato Lopes Becho (2014, p. 357) destaca que os princípios são pontos
fundamentais para o sistema jurídico, são os referenciais ―imprescindíveis para a
compreensão de uma ordem, de uma sistematização‖, eles precedem e determinam
a interpretação das regras jurídicas. Ainda que indiretamente, haverá a influência de
um princípio para a construção de uma norma jurídica.
E prossegue esse autor (2014, p. 358) afirmando que existem princípios
que integram o sistema porque assim o legislador decidiu – são princípios por
decisão, que devem estar expressos nos textos jurídicos. E existem os princípios
que são naturalmente reconhecidos no direito, princípios por natureza que não
precisam estar explicitados nesses textos.
Também assegura Renato Becho (2014, p. 363) que enquanto os
princípios possuem maior grau de abstração, generalidade e representam um valor a
ser fomentado pelo sistema jurídico, as regras são dotadas de maior concretude e
são menos gerais.
Notadamente por sua função valorativa, hermenêutica e organizadora do
sistema jurídico, os princípios se sobrepõem às regras e devem ser considerados na
interpretação destas últimas para a construção das normas jurídicas.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 56) esclarece, porém, que a influência dos
princípios na interpretação não significa dizer que eles são normas de interpretação,
mas sim que eles orientam o intérprete na consideração dos valores perseguidos
pelo ordenamento jurídico.
Os princípios poderão ser explícitos ou implícitos. Aurora Tomazini de
Carvalho (2009, p. 481) assevera que eles serão explícitos quando possuírem
identidade com um texto jurídico, um enunciado, um dispositivo específico. Ou serão
implícitos, quando inexistir essa identidade. Nesse caso, a norma principiológica
será construída de vários textos jurídicos de forma sistemática, com utilização de um
ou vários enunciados.
20
A segurança jurídica e a proporcionalidade são exemplos de princípios
constitucionais implícitos no ordenamento jurídico, os dois de extrema relevância
para a correta aplicação do direito.
Hoje, felizmente, houve uma grande redução na tradição juspositivista de
somente aceitar a norma que esteja formalmente escrita nos textos jurídicos postos
pelo legislador, isso é um avanço significativo que diminui a visão instrumentalista e
formalista do direito. Portanto, com relação aos princípios e regras, eles podem
isoladamente ou juntamente compor os textos jurídicos que formarão o conteúdo da
norma jurídica apreendido mediante interpretação jurídica.
Na realidade tributária a obrigação do contribuinte de pagar o tributo
advém de uma norma jurídica que é construída com base no sistema jurídico
tributário e na Regra-Matriz de Incidência Tributária sobre a qual discorreremos.
A partir das várias interpretações que podem ser feitas da RMIT surgem
grande parte das divergências do planejamento tributário e da possibilidade ou não
de o contribuinte direcionar sua conduta para a obtenção da economia fiscal.
1.1.3 Regra-Matriz de Incidência Tributária
Para a formação da norma jurídico-tributária que obriga o contribuinte a
pagar o tributo, há uma regra imprescindível: a RMIT – Regra-Matriz de Incidência
Tributária.
A RMIT é um comando jurídico que define as circunstâncias específicas
em que ocorrendo dará origem à obrigação tributária. Estruturalmente ela possui
uma hipótese/antecedente, com os aspectos do fato jurídico tributário e um
consequente/prescritor, com os aspectos da relação jurídico-tributária a ser
instaurada, após a ocorrência do fato hipoteticamente descrito (Cf. CARVALHO,
2012, p. 417-418).
A hipótese da RMIT descreve o fato jurídico tributário determinando seu
(i) critério material, que é a conduta do contribuinte que ensejará a obrigação de
pagar o tributo, v.g. auferir renda, (ii) critério especial e (iii) critério temporal, esses
dois últimos são as coordenadas de tempo e espaço necessárias para delimitar a
conduta que será apta a ser tributada.
21
O consequente da RMIT, por sua vez, determina a relação jurídico-
tributária que haverá entre os sujeitos ativo e passivo, especificando o (iv) critério
pessoal, e (v) critério quantitativo, o quantum do tributo, que é identificado pela base
de cálculo e alíquota.
Esses critérios são essenciais para que a norma tributária obrigue ao
pagamento do tributo: critério material, temporal, espacial, pessoal e quantitativo e
veremos mais adiante que todos devem estar prescritos em lei, caso contrário, a
norma jurídica não obrigará o contribuinte.
O planejamento tributário consiste em realizar condutas diversas,
alternativas, das prescritas em lei, que tenha resultado prático idêntico ou
assemelhado, mas sem dá ensejo à tributação, gerando uma economia fiscal.
O Fisco, direta ou indiretamente, para coibir tal diminuição da
arrecadação, tentar provar a ilicitude da conduta que não foi tributada por ocultar o
fato gerador, ou ainda, ampliar a interpretação da norma tributária para que ela
passe a alcançar tais fatos pelos resultados que eles geram, situações que também
veremos nos próximos capítulos.
1.2 Interpretação jurídica
Todo texto jurídico, por mais claro que possa parecer, deve passar pelo
processo interpretativo. A interpretação jurídica não é apenas a leitura do texto e
nem a mera busca do significado das palavras, a interpretação é a compreensão da
íntegra do texto e do seu respectivo contexto.
Rubens Gomes de Sousa (1975a, p. 364) refere-se à interpretação
jurídica como um ―elemento integrante da metodologia aplicativa do direito‖, e, para
aplicá-lo, é preciso antes interpretar.
Para Renato Lopes Becho (2014, p. 160), a interpretação jurídica é a
atividade mental e intelectual de formação da ideia sobre um texto jurídico
(legislação, jurisprudência ou sobre a doutrina).
Hans Kelsen (1939, p. 75) já destacava que a interpretação é ―uma
atividade intelectual que acompanha todo o processo de criação jurídica no seu
22
desenvolvimento, desde o grau superior até aos inferiores – determinados pelos
superiores‖.
É por meio da interpretação que se constrói a norma jurídica, não basta a
leitura dos textos escritos, sempre será necessário uma atividade intelectual para
aplicar a norma ao caso concreto.
Não se sustenta mais o tradicional brocado ―interpretatio cessat in claris‖
de que se a lei é clara ela dispensa interpretação (MAXIMILIANO, 2003, p. 27), pois
todos os textos devem ser interpretados para serem compreendidos e aplicados.
Diante da noção construtivista da interpretação, os intérpretes destacam-
se no âmbito do direito, pois eles são responsáveis pela construção das normas
jurídicas. São eles: os membros do Executivo, do Judiciário, do Legislativo, os
advogados, contribuintes e demais particulares.
Dentre os intérpretes, se sobressai o Poder Judiciário, pois a sua
interpretação é a única dotada de executoriedade, coercibilidade e de definitividade,
já que suas decisões são acobertadas pela coisa julgada.
No Estado Constitucional Democrático, fundado na separação harmônica
das funções legislativa, executiva e judicial, o Poder Judiciário não detém poder
absoluto e ilimitado na sua função de intérprete do direito. Em regra, ele não pode
inovar primariamente a ordem jurídica, ignorando os textos legais ao construir a
norma, salvo se estes forem inconstitucionais ou ilegais, ou, ainda, nos casos de
omissão legislativa que gere grave dano a direito fundamental.
Com a evolução do direito vários métodos interpretativos se
desenvolveram, como o gramatical, lógico, histórico e sistemático (Cf.
MAXIMILIANO, 2003, p. 87-106). Hoje se sabe que não há um único método
interpretativo correto, todos são válidos e cada um tem sua própria utilidade.
Prevalece o método sistemático, porque realiza a interpretação
contextualizada do texto, recusando a consideração isolada de um dispositivo, já
que este, sempre estará inserido no sistema jurídico. Porém, não se pode afirmar
que ela, a interpretação sistemática, será sempre utilizada, desconsiderando os
outros métodos que também possuem relevância.
Com a evolução da ciência das finanças e do direito fiscal também é
possível perceber as variações na utilização de tais métodos interpretativos e da sua
interferência na aplicação do direito tributário.
23
1.2.1 Interpretação das normas tributárias
Ao longo do desenvolvimento do direito tributário, Rubens Gomes de
Sousa (1975b, p. 76-9) identifica três fases de interpretação: (i) interpretação
apriorística; (ii) interpretação literal ou estrita; e (iii) interpretação teleológica.
Os critérios apriorísticos, como ―in dubio pro fisco‖ ou ―in dubio pro
contribuinte‖, segundo Renato Lopes Becho (2014, p. 164), vincularam-se às
primeiras exações que eram baseadas unicamente na vontade do soberano, muito
embora nunca tenham sido pacificamente aceitos, ainda podem ser percebidos
atualmente na cultura jurídica.
Sousa (1975b, p. 77) afirma que a primeira fase, a dos princípios
apriorísticos, durou até a Revolução Francesa em 1789, com alguns períodos de
exceção, como na Inglaterra em 1215 com a Carta Magna e, em 1688, com a
Declaração dos Direitos.
Sobre a interpretação literal que é a segunda fase, Rubens Gomes de
Sousa (1975b, p. 78) afirma que ela reduzia a intepretação a mera análise
gramatical da lei, apresentando alguns problemas e distorções, pois o legislador
pretendia objetividade na identidade entre o texto da lei e as circunstâncias reais do
mundo fenomênico, a fim de suprimir a subjetividade do intérprete.
Sousa (1975b, p. 78) destaca, ainda, que o sistema legal que pretenda
descrever todas as atividades humanas de forma rígida é típico de governos
autoritários e totalitários.
Hans Kelsen (1939, p. 79) identifica outro problema relativamente ao
método gramatical: ―o sentido da norma não é unívoco; quem tem de executá-la
encontra-se ante multíplices significações dela‖.
Ezio Vanoni (1932, p. 190) destaca a utilização do método histórico-
evolutivo na interpretação das normas tributárias em substituição ao método literal,
porque nem sempre a formulação da lei era realizada de forma feliz. Para o autor ―as
leis tributárias surgem em função de necessidades imprevistas, que não permitem
uma perfeita elaboração formal do preceito legislativo‖.
Para Vanoni (1932, p. 190), diante dessas circunstâncias de imperfeição
da redação jurídica, o intérprete não deve se prender a uma interpretação rígida,
24
voltada para a vontade do legislador, mas sim deve considerar além da certeza do
direito, ―a necessidade de realizar outros princípios tributários, entre os quais
especialmente o da facilidade e comodidade da arrecadação, e o da igualdade em
face do tributo‖.
Atualmente é cediço que não somente pela falha redacional dos textos
jurídicos deve se utilizar também outros métodos interpretativos, além do gramatical.
Na última fase interpretativa narrada por Rubens Gomes de Sousa, fase
teleológica – moderna em 1952, a interpretação deveria ser realizada levando em
consideração a realização prática das finalidades que a lei pretendia alcançar.
E, para o autor (1975b, p. 79), a finalidade do direito tributário era a
arrecadação, portanto, deveriam ser observados os efeitos econômicos dos atos e
negócios jurídicos. A tributação de dois negócios distintos que produzam os mesmos
efeitos econômicos deveria ser feita igualmente, mesmo que ambos possuam
formas diferentes e que uma delas não estivesse prevista expressamente em lei
(SOUSA, 1975b, p. 80).
O pensamento teleológico de Rubens Gomes de Sousa representa o
núcleo da teoria da interpretação econômica que irá ser explorada mais a frente.
Com ela o Fisco amplia, através da interpretação, a hipótese de incidência tributária
para alcançar mais fatos imponíveis e diminuir ou até extirpar a possibilidade do
contribuinte de realizar o planejamento tributário, sem a necessidade de alteração
legislativa.
Frente à suposta autonomia do direito tributário, surge uma questão sobre
a interpretação das normas tributárias, se estas deveriam ou não, passar pelo
mesmo processo interpretativo das demais normas jurídicas, ou se elas possuem
critérios próprios de hermenêutica.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 52) afirma que não há motivo, ou
especificidade que diferencie a interpretação do direito tributário dos outros ramos
do direito. Nesse mesmo sentido, Renato Lopes Becho (2014, p. 164) ensina que a
interpretação das normas jurídico-tributárias deve ser realizada nos mesmos termos
das normas jurídicas não tributárias.
Considerando que a doutrina de Rubens Gomes de Sousa sobre as três
fases interpretativas data de 1952, acreditamos ser possível a inclusão de uma
quarta fase na interpretação do direito tributário.
25
A fase que iremos nos referir é a atual fase de interpretação do direito,
tomado em sua unidade, já que assentimos com Becho ao sustentar a não
diferenciação da interpretação do direito segundo os ramos didáticos. Nesse sentido,
essa parece ser a fase da interpretação constitucional do direito tributário.
O momento atual sofreu influência do movimento neoconstitucionalista. À
Constituição foi reconhecida sua força normativa e sua superioridade em relação
aos demais textos jurídicos, que não eram obrigados a observar dos valores
constitucionais. As normas constitucionais priorizam a proteção das pessoas, de
suas garantias e liberdades e elas passaram a assumir função de destaque na
criação, interpretação e aplicação do direito, inclusive no direito tributário.
Antes da edição do CTN – Código Tributário Nacional, Ruy Barbosa
Nogueira (1965, p.15) já ensinava que para a realização da interpretação do direito
tributário deveria haver o exame da Constituição e de todo o resto do sistema
jurídico-tributário.
Para o referido autor, as normas gerais e os princípios inscritos na
Constituição são a base não apenas para a criação, mas também para a
interpretação e aplicação das leis tributárias e deles se deve partir.
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 24) ensina, ainda, que, dentre o
arcabouço normativo constitucional tributário, dois possuem maior relevância: o
princípio da igualdade e o princípio da estrita legalidade tributária que é uma das
pilastras para que se alcance a segurança jurídica e assim aduz:
Em face desse princípio [segurança jurídica], em nosso sistema não pode ser aplicado método interpretativo de construção, integração, analogia ou extensão, de que resulte a criação ou modificação do tributo, pois se a lei não o previu, ele não pode surgir ou tornar-se maior ou menor, por outra via. O tributo só existe se criado por lei e na medida por ela criada.
Ao afirmamos que atualmente, em consonância com o
neoconstitucionalismo, estamos na fase da interpretação constitucional, não
estamos querendo dizer que as normas constitucionais são bastantes e suficientes
para que se atinjam a correta interpretação e sua aplicação ao caso concreto.
Ao falarmos de interpretação constitucional, também não estamos nos
referindo ao método de interpretar a Constituição de acordo com os cânones
tradicionais da hermenêutica jurídica.
26
De acordo com Willis Santiago Guerra Filho (2009, p.178-179), a atual
interpretação deve iniciar a partir das bases e dos fundamentos constitucionais,
considerando alguns princípios específicos da hermenêutica constitucional como o
princípio da unidade da Constituição, da máxima efetividade e da força normativa
das normas constitucionais.
No mesmo sentido, destaca-se a doutrina de Roque Antonio Carrazza
(2012, p. 37-8), que afirma que ―as normas constitucionais devem receber a
interpretação que maior efetividade lhes empreste‖, isso porque elas são os limites
do Poder Público e o fundamento de todo o sistema jurídico.
Roque Carrazza (2012, p. 55) acentua ainda que os princípios
constitucionais exercem função importantíssima dentro do ordenamento, pois
orientam, condicionam e iluminam a interpretação das demais normas, inclusive as
individuais.
Não se pode estabelecer um único método de interpretação que se
aplicará sempre, no direito tributário prevalece um pluralismo metodológico a
depender do caso ao qual será aplicada a norma e também dependerá da relação
intersubjetiva de que trata a norma jurídica.
Dentre as técnicas de hermenêutica, a sistemática se destaca. Como
assevera Renato Becho (2014, p. 174) a técnica sistemática ―privilegia o aspecto de
unidade do direito, sua sistematização e organização, que parte dos princípios mais
superiores, indo até as regras mais próximas ao fato concreto‖. Mas, ainda sim, não
podemos afirmar que ela sempre será a mais adequada para interpretar qualquer
texto e em qualquer caso.
Dentre os métodos de interpretação, o teleológico foi inserido no art. 5º da
LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, determinando ao juiz a
consideração dos fins sociais a que a lei se dirige.
Tal dispositivo também deve ser considerado na interpretação das
normas jurídico-tributárias pelos magistrados, mas a nosso ver o fim social da lei
tributária não é meramente propiciar a arrecadação, como se aduz genericamente.
Parece-nos que é mais coerente com a evolução e positivação do arcabouço
jurídico-tributário que se enfatize sua face negativa, de delimitação do que não pode
ser tributado pelo Fisco, para proteger o contribuinte das tentativas de aumentar a
tributação, pelo tradicional argumento de necessidade de obtenção de mais recursos
financeiros.
27
1.2.2 Normas de interpretação no Código Tributário Nacional
A primeira codificação tributária nacional, que regulou o Sistema
Tributário Nacional e dispor sobre as normas gerais tributárias, trouxe um arcabouço
de regras de interpretação das normas tributárias, que pretendeu vincular o
intérprete e impor modelos rígidos de hermenêutica jurídica.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 3) assenta que as normas sobre
interpretação jurídica são antigas, existem desde o direito romano, e geralmente
determinando a proibição de interpretar, como o fez Constantino que reservava para
si a função interpretativa.
Criticando a positivação dessas normas, o autor (2000, p. 21) afirma que
elas são ambíguas, insuficientes ou redundantes, necessitando elas próprias de
interpretação.
Especificamente sobre o direito tributário brasileiro, o legislador positivou
no CTN normas de interpretação e de integração da legislação tributária. Tais
dispositivos, para sua compreensão e correta aplicação, devem também passar por
um processo interpretativo.
Muitas são as críticas à positivação dessas normas, e a maior parte da
doutrina as julga desnecessárias. Ricardo Torres (2000, p. 25-26) entende que elas
trouxeram mais dúvidas e insuficiências que solução aos problemas existentes e seu
principal objetivo era a separação da interpretação e da aplicação do direito
tributário.
Relativamente às normas positivadas no CTN, Torres (2000, p. 35)
registra a diferença entre a interpretação e a integração é que
[...] na primeira, o intérprete visa a estabelecer as premissas para o processo de aplicação através do recurso à argumentação retórica, aos dados históricos e às valorizações éticas e políticas, tudo dentro do sentido possível do texto; já na integração o aplicador se vale dos argumentos de ordem lógica, como a analogia e o argumento a contrario, operando fora da possibilidade expressiva do texto da norma.
Atualmente, a afirmativa de que a integração é um processo construtivo
da norma já não é suficiente para distingui-la do processo interpretativo, pois se
28
sabe que a interpretação jurídica também é um processo criativo em que a
literalidade do texto jurídico é o início de criação da norma.
O CTN possui um capítulo específico para tratar do tema. O Capítulo IV
do Título I, Segundo livro, do art. 107 ao art. 112 se ocupa da interpretação e
integração. Não analisaremos todos os textos legais deste Capítulo, apenas os que
influenciaram no desenvolvimento deste estudo.
Por aderir às críticas feitas a respeito do art. 107 do CTN, que dispõe que
―a legislação tributária será interpretada conforme o disposto neste Capítulo‖, iremos
nos limitar a afirmar sua inutilidade, de acordo com Renato Becho (2011, p. 160) e
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 51).
O próprio autor do projeto desse Código (SOUSA, 1975a, p. 376), após
acompanhar os primeiros anos de sua aplicação, afirmou que em uma atualização
do CTN o referido dispositivo deveria ser simplesmente suprimido.
O art. 108 do CTN determina uma ordem sucessiva de métodos a serem
utilizados quando da ausência de disposição expressa. Trata-se da integração da
legislação tributária nos casos de lacuna. Vejamos:
Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia; II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade. §1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 106) adverte para o tratamento das lacunas
no direito, aduzindo que elas nem sempre justificam ou requerem a aplicação dos
métodos de integração, por vezes elas apenas caracterizam uma ―incompletude
insatisfatória do direito‖. Dessa forma, nem toda ausência de disposição jurídica
expressa significa uma lacuna na lei ou no direito, o silêncio por vezes pode
significar a não norma.
Renato Lopes Becho (2014, p. 176) afirma que com esse art. 108 o
legislador quis impor a interpretação gramatical, pois a possibilidade de utilização de
outros recursos se dá apenas nos casos de lacuna.
29
Becho (2014, p. 177) critica ainda a ordem de preferência dos recursos
interpretativos do artigo, pois sendo a analogia o primeiro recurso, certamente não
precisaria dos demais, já que analogia é suficiente para resolver todos os casos em
que haja ausência de lei.
Ao utilizar a analogia, o aplicador identifica uma ausência de norma
específica em um determinado caso e para solucioná-lo, aplica uma norma que cabe
em outro diferente e semelhante.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 119) destaca que a analogia demorou a
ingressar no direito tributário e depois, ao ingressar, passou a não ser vista com
bons olhos para exigir tributo não previsto em lei – analogia gravosa.
Essa vedação da utilização da analogia para exigir tributo foi logo
assentada no §1º, do art. 108 e consagra o princípio da estrita legalidade. Fato que é
atacado por Torres, ainda na mesma obra (p. 136-137), que flexibilizando essa
imposição, assevera que é ―tese positivista, ligada à defesa do liberalismo
individualista, a da absoluta proibição da analogia na exigência dos tributos‖.
O autor (2000, p. 120) observa que a analogia deve se ater a alguns
parâmetros como utilização apenas nos casos de insuficiência da expressão das
palavras, necessidade de semelhança notável entre os casos, mas que, ainda sim,
ela beneficia mais o Fisco que o contribuinte.
E mesmo reconhecendo os benefícios exclusivos do uso da analogia à
Administração, Torres (2000, p. 141-142) afirma que ela deve atuar no espaço de
indeterminação, nas imprecisões do direito tributário, uma vez que o princípio da
legalidade é incapaz de sozinho dar nascimento a uma ordem tributária plena e
completa.
Para o autor (2000, p. 142), que adere à tipicidade tributária aberta, como
veremos mais a frente, pela impossibilidade do fechamento das normas tributárias e
pela impossibilidade de perfeição da lei, o princípio da legalidade deve ser
interpretado juntamente com outros princípios, como o da isonomia e o da
capacidade contributiva, estes últimos devem ser considerados na utilização da
analogia.
Nessa linha de raciocínio, o campo de possibilidade de realização do
planejamento tributário fica bastante reduzido, pois sempre que houver uma conduta
semelhante à que estiver hipoteticamente prevista na RMIT, o Fisco irá tributá-la
30
pela analogia, desamarrando-se da lei e, por critérios próprios, definir o que e quem
deve sofrer a tributação.
É verdade que a lei em sentido estrito não pode sozinha criar toda uma
ordem jurídica tributária. Nesse aspecto, é de alta relevância a atuação do Poder
Executivo que no exercício do Poder Regulamentar completa a ordem tributária e
facilita sua compreensão, tanto para o cumprimento por parte dos funcionários
públicos, quanto por parte dos contribuintes.
Mas não compete ao Poder Regulamentar criar ou majorar tributo e nem
determinar a regra-matriz tributária. Essa estrutura é reserva absoluta da lei, o que
veremos mais detidamente no capítulo seguinte.
Não obstante o art. 108 considerar primeiramente os princípios
específicos do direito tributário em relação aos princípios gerais do direito, Renato
Becho (2014, p. 177) ressalta o caráter positivo do reconhecimento legislativo dos
princípios e da equidade, sinônimo de justiça.
Talvez uma explicação, mas não justificação, para a priorização dos
princípios específicos sobre os gerais seja uma tentativa de garantir a autonomia do
direito tributário que ganhava força na década de 60 do século passado.
Andou mal o legislador ao restringir a utilização dos princípios jurídicos
aos casos de ausência de disposição expressa, pois como vimos anteriormente, eles
possuem função relevante para a interpretação, orientando o sentido dado ao texto
pelos valores jurídicos.
O dispositivo seguinte, art. 109 do CTN, trata da utilização dos princípios
de direito privado na definição dos seus institutos, mas não para a definição dos
efeitos tributários e envolve a relação de interdependência entre os dois ramos do
direito. E assim esse artigo dispõe: ―Os princípios gerais de direito privado utilizam-
se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos,
conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários‖.
O direito tributário ao determinar, por exemplo, que há tributação sobre a
circulação de mercadorias estará limitado ao conceito de mercadoria previsto já no
direito privado empresarial? O Fisco pode por analogia tributar um bem que não seja
uma mercadoria, objeto do ato de comércio?
O art. 109 CTN, não está subordinando o direito tributário ao direito
privado ou vice-versa. Ele está disciplinando a relação entre ambos, ao passo que,
caso o direito tributário necessite de efeitos específicos aos institutos já previstos no
31
direito privado ele poderá prevê-los, desde que o legislador não ultrapasse sua
competência constitucional.
Não significa que o direito tributário não possui independência em relação
aos institutos do direito privado, mas sim, que, ao utilizá-los, será vinculado a eles,
salvo se por lei tais institutos forem adaptados às necessidades da realidade
tributária.
Para Renato Becho (2014, p. 177) esse art. 109 permite que ―a legislação
conceda efeitos especificamente tributários, sem ter, necessariamente, que seguir
todos os rigores do direito privado‖.
A concessão dos efeitos tributários ou a modificação dos institutos de
direito privado tem um limite inarredável. O Constituinte, ao eleger os critérios
materiais que serão tributados pelos entes, escolheu alguns institutos de direito
privado, essa definição faz parte da divisão da competência tributária, alterá-la,
ainda que por lei, pode ocasionar a sobreposição de tributação e até a
desestabilização do pacto federal, pelo conflito de competência.
Para Gomes de Sousa (1975a, p. 378) esse texto tem utilidade na
distinção entre evasão e elisão, fornecendo ao aplicador do direito um mecanismo
que possibilite combater as manobras de evasão.
Nesse sentido, Dória (1977, p. 99) defende que ―a lei tributária pode
expressamente alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e
formas de direito privado‖. No entanto, se a lei tributária não alterar ela estará
vinculada ao regime jurídico que o direito privado lhe confere. Mas essa
possibilidade de conceder efeitos próprios tributários é restringida logo pelo artigo
seguinte do Código.
O art. 110 veda a possibilidade de alteração da definição, conceitos,
alcance e formas de direito privado, previstos na Constituição Federal que definem
ou limitam a competência tributária, justamente para evitar o conflito de competência
entre os entes federados. Vejamos:
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
32
A Constituição, ao determinar minuciosamente aos entes federados as
suas possibilidades de criação de tributos a partir de fatos e acontecimentos,
distribuiu a cada um os critérios materiais dos seus respectivos impostos,
delimitando a competência a fim de assegurar o equilíbrio e coexistência harmônica
entre eles.
A expansão desses critérios pode ensejar o desvio e usurpação da
competência, por isso o CTN proíbe a alteração dos conceitos constitucionais, já que
foi com base neles que o Constituinte repartiu a competência tributária.
O art. 110 do CTN, de acordo com Ricardo Lobo Torres (2003, p. 81) fixa
um limite para a competência legislativa relativamente à sua liberdade de dispor
sobre os efeitos tributários a fim de preservar a repartição da competência tributária.
O art. 111 do CTN, por sua vez, determina a interpretação literal da
legislação tributária que disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário,
outorga de isenção ou dispensa do cumprimento de obrigações acessórias.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 236) afirma que as proibições de interpretar
os textos jurídicos sempre objetivaram a vinculação do intérprete à letra da lei para
evitar interpretações extensivas e passíveis de conotações políticas, o que reduz a
valoração jurídica e faz predominar a forma jurídica sobre o conteúdo das normas.
Para o autor carioca (2000, p. 236) a interpretação literal teve muito
prestígio até o advento do Código Tributário Alemão de 1919 e do surgimento das
ideias de consideração econômica do fato gerador disseminadas por Enno Becker,
ideias que serão exploradas em momento oportuno quando tratarmos das teorias
antielisivas.
Ao tratar dos artigos que versam sobre interpretação da legislação
tributária no CTN – art. 107 ao art. 112, Rubens Gomes de Sousa faz uma crítica
relativamente à eventual contradição existente entre o art. 112 e 118 do CTN, mas
ele afirma que para a comissão de elaboração do projeto de lei ambos cuidam de
assuntos diferentes: o primeiro, da interpretação da legislação, e o segundo, da
interpretação do fato imponível, pois este último dispositivo está situado no título II
do Código que trata sobre a obrigação tributária. E nessa oportunidade esse autor
(1975a, p. 380) faz a seguinte ressalva relativamente ao art. 118:
Seria, no pensamento da maioria da Comissão, uma norma de interpretação do fato gerador e não uma norma de interpretação da lei. A diferença é, se não impossível, pelo menos irrelevante, porque o fato gerador tem que estar
33
definido na lei, por força do próprio Código (art. 97) e por sua vez por força da Constituição (art. 18, §1º) [atual art. 5º, II e 150, I]. De maneira que uma dicotomia entre a interpretação do fato gerador e a interpretação da lei não tem sentido: o fato gerador está na lei, ou não está na ordem jurídica.
O art. 118 do CTN cuida da interpretação do fato gerador (fato imponível),
ou melhor, da qualificação do fato. Assim, dispõe este artigo:
Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.
Para Ricardo Lobo Torres (2000, p. 261-2) o dispositivo supracitado cuida
propriamente da interpretação econômica dos fatos, uma das teorias antielisivas que
iremos abordar. Tal dispositivo teve como paradigma o art. 1º, inc. III da Lei de
Adaptação da Alemanha, de 1934, que serviu para a manipulação política e fiscal do
direito tributário. O dispositivo germânico foi revogado após a Segunda Guerra
Mundial, por ser contrário à legalidade já que admitia a cobrança do tributo a partir
do fato e não da lei.
Torres (2000, p. 272) entende que os incisos I e II, art. 118 são a
autorização para a realização do lançamento pela Administração sem a investigação
da validade jurídica ou dos efeitos dos fatos, sendo estes lícitos ou não.
Os dispositivos do Código acima tratados, art. 107 ao art. 112, que
abordam a interpretação e a integração da legislação são de utilidade duvidosa e
geram mais divergências do que orientação uniforme à aplicação do direito tributário.
Parece ser mais segura a aplicação do método hermenêutico sistemático com a
consideração do princípio da unidade e a máxima efetividade das normas
constitucionais.
A compreensão do que seja a norma jurídica e a atividade de
interpretação é fundamental para o conhecimento e aplicação da legislação tributária
e principalmente aplicação da RMIT ao caso concreto, já que o fato gerador, do qual
surge a obrigação tributária, é uma a obrigação legal.
A lei tributária se destaca como garantia constitucional de limitação ao
poder de tributar, é dela que o intérprete extrairá os critérios essenciais para a
construção das normas que instaurarão as relações jurídico-tributárias.
34
Passaremos, então, à análise do princípio da legalidade, que disciplina o
relacionamento entre o contribuinte e o Fisco e determina que o tributo seja criado
ou majorado por lei.
35
2 LIBERDADE FISCAL E A LEGALIDADE TRIBUTÁRIA
2.1 A liberdade e o tributo
A liberdade é um requisito para a existência do próprio direito. Com base
na doutrina de Kant, Renato Becho ressalta que ela funda uma lei universal ―age
externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a
liberdade de todos de acordo com uma lei universal‖ (KANT, A metafísica dos
costumes, 2003, p. 77 apud BECHO, 2009, p. 240-241).
Não se deve confundir a máxima kantiana que é uma norma metafísica e
prévia ao ordenamento jurídico, com o direito subjetivo de liberdade, que é garantido
constitucionalmente. Com isso não se quer diminuir a importância desse direito
constitucional.
O direito constitucional da liberdade está inserido num Estado que
promove os meios de convivência e coexistência da coletividade, e que se propõe a
assegurar, além de sua própria manutenção, a manutenção de serviços básicos à
população, que também são garantidos constitucionalmente.
Para arcar com seus gastos, o Estado possui várias fontes de receita.
Atualmente, sem dúvida, a mais importante é a receita tributária, que retira
compulsoriamente do particular uma parcela de seu patrimônio.
Cumpre ao direito e especificamente ao direito tributário limitar essa
retirada compulsória da parcela da riqueza dos administrados, contendo o Estado e
permitindo a liberdade individual dos contribuintes e a proteção aos seus bens.
Alberto Xavier (2001, p. 13) destaca a relevância que a liberdade possui no direito
tributário e a íntima relação desta como o tema objeto desse estudo, o planejamento
tributário:
A liberdade individual de os particulares se organizarem e contratarem de modo menos oneroso do ponto de vista fiscal é um dos temas mais nobres do Direito Tributário, intimamente ligado, como está, às garantias constitucionais que a visam proteger e que consistem nos princípios da legalidade e da tipicidade da tributação.
36
A liberdade que o contribuinte possui relativamente aos seus bens e
negócios jurídicos e o direito do Fisco de tributar são limítrofes: o Fisco só pode
tributar por lei – nesse campo o contribuinte tem o dever de pagar, mas o que a lei
não tributa está dentro da esfera do contribuinte de não poder ser tributado, mas há
uma tensão na demarcação da linha limítrofe.
A tensão entre o Estado soberano e o contribuinte envolve basicamente a
relação de interesses opostos existentes: o de tributar e o de não ser tributado.
Fábio Fanucchi (1979, p. 301) relata que esse embate é eterno, ―um, desejoso de
arrecadar receita para seus cofres em porções cada vez maiores, e, o outro,
tentando subtrair-se às imposições redutoras do seu patrimônio‖.
A liberdade fiscal é delineada pelo alcance do tributo instituído por lei,
este é o ―preço da liberdade‖, ―que distancia o homem do Estado, e pode implicar na
opressão da liberdade, se não o contiver a legalidade‖ (TORRES, 1991, p.3).
A questão da liberdade fiscal e da legalidade tributária atualmente é
pouco explorada, provavelmente em virtude dos resquícios da postura juspositivista
que desprestigia a filosofia e axiologia jurídica, conforme assenta Ricardo Lobo
Torres (1991, p. 5):
No Brasil a meditação filosófica sobre o tributo desapareceu também aproximadamente em meados do século passado [XIX] e até hoje não retornou, prejudicada pelo cientificismo, pelo positivismo e pelo autoritarismo político, que esvaziaram o discurso da liberdade.
Destacamos que de 1964 até 1985, o Brasil viveu em regime de ditadura
militar, com forte repressão e pouca margem para desenvolvimento e divulgação de
estudos e pensamentos filosóficos sobre os direitos individuais. Porém, é necessário
saber da liberdade que o contribuinte possui, quais seus limites, direitos e
obrigações e quais os limites que cercam o Estado na atividade de fiscalização e
tributação. Cremos que definidos estes limites a situação do planejamento tributário
pode igualmente ser definida.
Nessa toada surge o princípio da legalidade, fruto de revoluções
históricas para dar segurança às relações sociais e proteger as pessoas da
voracidade e da força estatal, para que elas tenham pelo menos o mínimo de
previsibilidade sobre quanto irão pagar, quando, para quem, etc.
37
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 94-95) afirma que antes de haver a
noção de Estado de Direito o tributo decorria do ―poder de fato do soberano,
manifestava-se na tributação uma simples relação de poder‖, período em que
inexistia o direito tributário.
Ainda na opinião desse autor (1965, p. 95), com a concepção de Estado
de Direito, o tributo tornou-se relação jurídica, obrigação legal, que somente existia
se e quando estivesse legislado, havia limite nos termos do direito objetivo.
Marco Aurélio Greco (2008, p. 23) expõe a diferença do direito no período
da sociedade clássica (considerada por ele, como o período antes da Revolução
francesa) e no período da sociedade moderna (pós-Revolução Francesa),
associando respectivamente o direito natural e o direito posto. Na sociedade
clássica, o direito era fruto do passado, ―a constância das coisas que produzia o
Direito. Era a permanência que levava à ideia de que algo configurava uma norma
jurídica‖. Surge a ideia de constância, de estabilidade e de segurança.
Para o autor (2008, p. 30) a sociedade moderna quebra essa ideia,
porque as normas passam a ser postas de determinada maneira, ―não é mais
porque ‗sempre foi assim‘, não é mais um direito que vinha de uma constância do
passado‖ e, dessa forma, o direito começa a olhar para o futuro e sem o mesmo
grau de segurança e certeza, princípios estes que entram em crise.
Na sociedade moderna o direito posto passou a ser amplamente
predominante frente ao direito costumeiro, e houve períodos, como o do nazismo,
que se permitia tudo ao direito posto, até a autorização para assassinatos. Mas na
sociedade pós-moderna não se admite qualquer direito posto, como outrora se fazia,
ele deve estar em consonância com os valores supremos.
O Estado de Direito fez aflorar a segurança jurídica que foi consolidada no
Estado Constitucional. Esse valor é promovido e protegido até hoje, pela nossa atual
Constituição, o que se percebe pela eleição da legalidade, irretroatividade,
anterioridades e coisa julgada, indicando a objetivação da proteção das pessoas de
eventos futuros ou imprevisíveis e visando manter uma estabilidade.
As mudanças das relações sociais acarretarão a necessidade de
alteração e atualização do direito, sem dúvida, mas tais mudanças jurídicas devem
ser subordinadas à Constituição, ressaltando que até mesmo o Poder Constituinte
Derivado é subordinado a ela.
38
Dentre outros valores, é a segurança jurídica que se busca com a lei
constitucional, por isso a lei deixa de ser um mero ato normativo vinculante que foi
aprovado pelo Poder Legislativo em obediência ao processo legislativo, o princípio
da legalidade é acrescido de um aspecto substancial, não mais meramente formal.
2.2 Legalidade
O princípio da legalidade impõe genericamente que ―ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei‖ (art. 5º,
inc. II, CF).
Podemos destacar dois fundamentos nesse mandamento: (i) prevenir a
imposição de obrigações arbitrárias e despropositadas, pois ele é uma forma de
promoção da liberdade e contenção do Poder Público e também das demais
pessoas nas relações entre particulares; e além de representar uma limitação ao
Poder Público, (ii) a legalidade representa uma legitimação da imposição pela
representatividade popular que a lei indiretamente possui.
Por influência do positivismo, a legalidade foi bastante difundida como o
requisito procedimental para a imposição de uma obrigação, destacando o mero
processo legislativo das casas legiferantes. Sem desconsiderar a importância do
processo legislativo, hoje ele foi superado – mas não afastado, pois além do trâmite
regular, há que se verificar a consonância da matéria legislada com o sistema
jurídico já existente.
Para Renato Lopes Becho (2014, p. 388), não há apenas uma vertente do
princípio da legalidade, ela pode ser vista como o maior instrumento de proteção das
pessoas e pode também ser vista como uma regra.
Segundo o autor (2014, p. 389), há uma versão principiológica da
legalidade que enfatiza o caráter de limitação formal e material ao poder de tributar.
E há outra versão que discute a legalidade como regra lógica, possui um enfoque
formalista, analisando apenas os requisitos formais.
Enquanto a análise formal da legalidade observa os aspectos
procedimentais da produção legislativa, a análise material limita o conteúdo da lei,
39
verifica a correlação dos valores perseguidos pela lei com os valores da sociedade
contidos na Constituição. Nesse sentido Renato Becho (2014, p. 391) destaca que,
O princípio da legalidade é um valor constitucional, acima da disponibilidade do legislador, que controla a produção legislativa em sua substância, em sua materialidade, impondo que as leis veiculem comandos normativos que atendam aos anseios de paz social, protegendo os diversos grupos, quer majoritários, quer minoritários, quer de conflitos de natureza privada, quer protegendo os sócios do imenso poder do próprio Estado. O controlador da legalidade será, sempre, o Poder Judiciário.
Também aderimos à linha principiológica da legalidade por entender que
existe neste princípio valores que ao longo dos séculos foram se consolidando, ou
seja, a segurança e a liberdade.
Esse princípio começa a aflorar com a tentativa de limitação do poder
estatal. Um marco histórico se deu com a imposição, pelos barões, ao Rei João Sem
Terra da assinatura da Carta Magna na Inglaterra, em 1.215, a fim de resguardar
suas propriedades e liberdades e conter a tributação.
Outro marco histórico relevantíssimo para a legitimação das decisões
estatais pelo povo ocorreu já no Estado Moderno, em 1789, com a Revolução
Francesa que iniciou a decadência da teoria da divindade dos poderes dos Reis pela
luta da burguesia contra o absolutismo monárquico que privilegia o clero e a
nobreza, a fonte de poder deixa de ser Rei e passa a ser o povo.
Com o fim do período das monarquias absolutistas, adveio o Estado de
Direito instaurando um período eminentemente legal, que ressaltava, porém, apenas
o caráter formalista da lei como ato jurídico legislativo geral e abstrato. Em
substituição ao Estado de Direito, surgiu o Estado Constitucional que implicou em
alterações substanciais e restritivas do poder Legislativo, que antes tinha liberdade
quanto ao conteúdo legislado, já que a lei se subordinava apenas aos critérios
formais e procedimentais de elaboração.
A legalidade está genericamente prevista no art. 5º, inc. II CF, que é
consagrado como cláusula pétrea do ordenamento, não podendo ser abolido nem
por Emenda Constitucional, conforme art. 60, §4º, inc. IV CF. A lei é o instrumento
jurídico emanado do Poder Legislativo, que representa o povo brasileiro, impondo-
lhes obrigações, proibições ou faculdades às pessoas visando concretizar as
normas constitucionais.
40
Ao disciplinar as condutas humanas, Marco Aurélio Greco (2008, p. 40)
afirma que o legislador pode fazê-la de duas formas: (i) adotando o modelo
causalista, que estipula legalmente as causas, pressupostos e eventos imputando-
lhes consequências, e outra forma (ii) adotando o modelo finalista, prospectivo, que
não regula as causas, mas sim os objetivos, a finalidade.
Esclarece o autor (2008, p. 41) que ao adotar o primeiro modelo,
causalista, o legislador exime o aplicador de responsabilidade quanto aos efeitos da
norma jurídica. No modelo finalista ocorre o contrário, o aplicador escolherá os
meios para alcançar certo fim e, por isso, para evitar excessos e arbitrariedades
devem-se criar mecanismos de controle da execução.
Entende José Afonso da Silva (2010, 235) que esse dispositivo é basilar
da República Democrática e contêm duas dimensões: (i) o tradicional princípio da
legalidade e outra, pouco explorada, que liga a liberdade com a legalidade, (ii) o
mandamento da ―liberdade geral de ação‖ que impõe a restrição de qualquer
liberdade somente pela legalidade legítima.
Do aspecto da liberdade geral de ação, ponto fundamental no estudo do
planejamento tributário, cumpre anotar, com base em José Eduardo Soares de Melo
(1998, p. 72), que ao administrador público é permitindo fazer apenas o que está em
lei, enquanto, às pessoas privadas, é permitido fazer tudo o que a lei não proíba.
Afonso da Silva (2010, p. 422-423) destaca também, reserva relativa de
lei e a reserva absoluta da lei. No primeiro caso, a matéria pode ser tratada
parcialmente por veículo normativo diverso da lei, infralegal conforme os ditames
legais, já no segundo caso (reserva absoluta) a matéria deverá estar integralmente
disciplinada na lei, e não em ato inferior.
Uma das matérias que são especificamente imputadas pela Constituição
à lei é a criação ou majoração dos tributos, é uma reserva legal específica que é
reforçada pelo art. 97 do CTN.
2.3 Estrita legalidade tributária
41
Especificando o princípio da legalidade no direito tributário o constituinte
insculpiu no art. 150, inc. I da CF/88 que é vedado à União, aos Estados, Distrito
Federal e Municípios ―exigir tributo ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça‖.
É a legalidade tributária que insere na relação tributária o valor, a
segurança jurídica, liberdade e a consequente proteção ao contribuinte, vedando a
utilização de critérios subjetivos e relativos na cobrança do tributo.
A obrigação tributária principal é uma obrigação legal, e não natural. Ela
não se instaura unicamente pelo acontecimento de um fato qualquer no mundo
fenomênico, nem tão pouco pela existência de lei. É imprescindível que haja
previsão legal, pois a ―fonte de tal obrigação, a energia ou força que a cria ou gera é
a própria lei. O fato gerador é, apenas, o pressuposto material que o legislador
estabelece para que a relação obrigacional se instaure‖ (FALCÃO, 1997, p. 4).
Não se deve compreender o dispositivo constitucional 150, inc. I, apenas
como uma repetição do artigo 5º, II CF/88, se assim fosse ele seria despiciendo. A
legalidade tributária exige mais do que a legalidade geral. Enquanto a legalidade
determina uma obrigação em virtude de lei, a legalidade tributária impõe a obrigação
tributária pela lei, como bem assevera Roque Antonio Carrazza (2012, p. 272):
Este dispositivo, ao prescrever não ser dado às pessoas políticas ―exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça‖, deixou claro que qualquer exação deve ser instituída ou aumentada não simplesmente com base em lei, mas pela própria lei. Não se admitindo, de forma alguma, a delegação ao Poder Executivo da faculdade de instituí-lo ou, mesmo, aumentá-lo.
É através da legalidade tributária que o velho brocado “no taxation without
representation” se faz presente até hoje, pois o tributo é uma imposição autorizada
pelo Poder Legislativo que representa o povo e com o consentimento (ainda que
teórico) deste edita a lei em sentido estrito. Nesse sentido argumenta José Afonso
da Silva (2010, p. 90):
O mais universal desses princípios, o da legalidade dos tributos, prede-se à própria razão de ser dos Parlamentos, desde a penosa e longa luta das Câmaras inglesas para efetividade da aspiração contida na fórmula ―no taxation without representation‖, enfim, o direito de os contribuintes consentirem – e só eles – pelo voto de seus representantes eleitos, na decretação ou majoração de tributos.
Para Alberto Xavier (2001, p. 17) a reserva de lei faz com que surja o
princípio da tipicidade tributária. A lei deve conter mais do que o fundamento da
42
atuação do Poder Público, deve conter também o próprio critério de decisão do
órgão competente para constituir o crédito tributário e por isso a reserva de lei
tributária é absoluta.
A estrita legalidade garante a proteção do contribuinte, O Fisco não tem
competência para preencher lacuna do ordenamento jurídico tributário, nem
interpretar por analogia ou extensão, no intuito de ampliar os aspectos da RMIT.
Mas não basta apenas a lei formal para legitimar a exação, essa lei deve
ter sido produzida com a observância das normas constitucionais e do sistema
constitucional tributário que já trás ínsito em seu texto, boa parte do próprio
conteúdo que preencherá a moldura legal.
2.3.1 Tipicidade tributária
A tipicidade tributária, corolário da legalidade tributária é um dos pontos
fundamentais do direito tributário. Decorrência da estrita legalidade, ela remete ao
conteúdo das normas tributárias, à criação ou alteração substancial do tributo na lei.
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 88) faz distinção entre a teoria dos tipos
e a tipicidade legal, ambas desenvolvidas no sistema jurídico germânico e
introduzidas no Brasil. A teoria dos tipos formula uma padronização dos fatos e
enquadramento da realidade econômica na legislação tributária realizada pelos
doutrinadores e julgadores. Já a tipicidade legal é a padronização e o
enquadramento dos fatos pelo legislador.
O tipo tributário brasileiro somente pode ser criado pelo legislador, isso é
garantia de segurança jurídica e de proteção das pessoas contra os arbítrios do
Estado-Fisco.
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 89) afirma que a teoria dos tipos gera
insegurança porque o tributo passa a ser determinado por métodos analógicos e
extensivos de interpretação que são incompatíveis com o princípio da legalidade e
com o sistema jurídico brasileiro.
A tipicidade tributária é a determinação constitucional de que o tributo
será criado, não apenas formalmente por lei, mas também, materialmente.
43
Ricardo Lobo Torres (2006, p. 2 e 9) possui entendimento diverso sobre a
tipicidade tributária, afirma que é preciso distinguir tipificação e tipicidade: a
tipificação é a formação do tipo tributário, a atividade legislativa, já a tipicidade é a
própria qualificação do tipo, é o que é típico.
Segundo Torres (2006, p. 1) princípio da tipicidade remete às noções de
tipo e de tipificação estudadas profundamente pelo direito alemão e introduzidas no
Brasil com a confusão das fontes ibéricas gerando contradições na doutrina pátria.
Marco Aurélio Greco (2008, p. 39) aborda a noção de tipo sob duas óticas
no decorrer da história do direito: tipo consolidado, constante e bem definido na
sociedade clássica, caracterizado pela constância das relações jurídicas e outro tipo
que, segundo o autor, se adequa mais à sociedade moderna, marcada pela
volatilidade das relações que requer sempre o acompanhamento do ordenamento
jurídico. Vejamos:
O tipo estava incorporado na norma nascida numa sociedade clássica era apenas a fotografia do passado, a fotografia do conhecido. Então, numa visão, que estou chamando aqui de moderna (ou pós-moderna), o que é tipo? Aquilo que a norma descreve correspondente ao que ―era‖ Ou o que ela quer que seja? Ela está descrevendo algo conhecido, porque o passado é conhecido? Ou será que ela está descrevendo algo para frente, e portanto em certa medida desconhecido a ser construído no processo de tomada de decisão jurídica?
Também de acordo com Greco (2008, p. 43) essa mudança de referência
na identificação do que é típico para fins de normatização gera um dilema: ―Se o
ordenamento quiser prever todas as situações novas (construindo uma nova
tipologia) vai ser superado mais dia menos dia; por outro lado, se deixar a disciplina
em aberto, há risco de fluidez e de flexibilidade sem controle‖.
Há autores que sustentam que a tipicidade tributária é fechada, cerrada
como, por exemplo, Alberto Xavier (2001 p. 19), Roque Antonio Carrazza (2012, p.
280), Renato Becho (2014, p. 392). Outros autores sustentam ser a tipicidade
aberta, flexível (Ricardo Torres, 2006). E há, ainda, quem sustente que o tipo é
sempre aberto, mas que o tributo não é um tipo, mas sim um conceito e sempre será
fechado (DERZI, 1988, p. 71).
Em torno da qualidade do tipo está uma das maiores polêmicas questões
tributárias e que influencia diretamente a possibilidade ou não de realização do
planejamento tributário e da busca da econômica fiscal.
44
Para Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 61) a definição dos tipos pode ser
feita mais tipologicamente ou mais conceitualmente, a depender do que se quer
privilegiar, a plasticidade ou a certeza e segurança.
Os tipos e conceitos possuem relação intrínseca e que ―sem os tipos, os
conceitos esvaziam-se; sem os conceitos, os tipos quedam-se esfumaçados e
indefinidos‖, assim para ele a realidade jurídica é formada pelos dois (TÔRRES,
2003, p. 59).
Então é preciso saber o que é tipo e conceito. Para Ricardo Lobo Torres
(2006, p. 2-3) o tipo é o que é típico, ―é a ordenação dos dados concretos existentes
na realidade segundo o critério de semelhança‖, ―ele representa a média, a
normalidade de uma determina situação‖. Já o conceito ―é a representação abstrata
de dados empíricos, podendo de certa forma violentar a realidade‖.
Misabel de Abreu Machado Derzi (1988, p. 23), que possui o estudo mais
aprofundado sobre o tipo e a tipicidade tributária na doutrina pátria, constatou que o
sentido originário da palavra tipo, de origem grega, nunca se perdeu, ela
corresponde a uma forma básica, um modelo.
Misabel de Abreu Derzi (1988, p. 44) afirma que como sinônimo de
―Tatbestand, de fato gerador ou hipótese, o impropriamente chamado tipo não é uma
ordem gradual, uma estrutura aberta, mas, ao contrário, um conceito que guarda a
pretensão de exatidão, rigidez e delimitação (em especial, no Direito Penal)‖.
Também para essa autora (1988, p. 45-46), no direito tributário o tipo, ou
―pensar tipificante‖ adquiriu contornos específicos, viabilizando simplificar (para a
Administração Tributária, é claro) a execução da lei tributária que passou a utilizar o
que é frequente, o médio, como padrão, ou parâmetros, pondo de lado as
características individuais, deixando de ser o tatbestand e passando a ser uma
hipótese fluida e graduável.
Assim, a autora constatou que, antes de trazer segurança e certeza, o
pensamento tipológico, nesses termos expostos, estabelecia legalmente apenas
parâmetros para a aplicação da lei pela Administração, flexibilizando o princípio da
legalidade. E mais, a autora (DERZI, 1988, p. 71) considera que para fornecer
segurança e certeza, os pressupostos configuradores dos tributos, assim como os
das penas, devem ser conceitos fechados, classificatórios determinados – rígidos e
exatos e assim o princípio da tipicidade deve ser denominado de especificidade
conceitual.
45
Para Ricardo Lobo Torres (2000, p. 141) da tipicidade não implica
necessariamente o fechamento das normas tributárias e nem a adoção de
enumerações casuísticas e exaustivas dos fatos geradores. Ele entende que a
tipicidade tributária não pode ser fechada, pois a norma tributária não foge das
imprecisões e de indeterminações dos textos jurídicos e para suprir essa zona
nebulosa deve-se usar a analogia.
Acreditar que o ordenamento jurídico pode existir sem essas zonas de
penumbras é similar a crença do dogma da completude e perfeição do sistema, não
se sustenta. Ainda que existam meios de fechamento dos conceitos reguladores das
condutas humanas, sempre haverá a margem de indeterminação criada no mínimo
pela própria plurivocidade dos vocábulos.
Mas e a quem compete o esclarecimento das chamadas ―zonas
cinzentas‖ que, por vezes, existem nas leis tributárias? Cumpre à Administração no
exercício do seu Poder Regulamentar?
Para Ricardo Lobo Torres (2000, p.79) essas zonas de imprecisão abrem
à Administração o poder de complementar a regra de imposição tributária. Utilizando
o direito comparado, Torres afirma que na Alemanha o Tribunal Constitucional
reconhece o ―regulamento concretizador de normas‖, ―regulamentos tipificadores‖,
sendo uma ―complementação do fato gerador definido na lei‖.
Outros exemplos de países em que há possibilidade de complementação
pela Administração são os Estados Unidos e Inglaterra. Já no Brasil, para Ricardo
Lobo Torres (2000, p. 80-81), essa faculdade é minimizada devido ao positivismo
que defende uma tipicidade fechada – locução que nada mais é do que uma
contradição terminológica, já que todo tipo é necessariamente aberto.
O autor (2000, p.80) expõe, ainda, que tais ―regulamentos tipificadores‖
concretizam a linha de valoração da lei formal, e que decorrem do processo de
flexibilização da legalidade e simplificação do direito tributário. Torres (2006, p. 33)
adverte também que o descrédito atribuído à tipificação administrativa se deve à sua
larga utilização durante a vigência do Código Alemão de 1919, com a adaptação
sofrida em 1934.
Amílcar de Araújo Falcão (1997, p. 15) admite a possibilidade da previsão
de hipóteses de incidências de forma exemplificativa, cumprindo ao intérprete
encontrar o conceito ao qual o legislador pretendia fazer alusão, a intenção do
legislador, e aplicá-la na prática.
46
Também advoga pela possibilidade de ampliação da função do intérprete
para complementar e especificar as hipóteses de incidências, Ricardo Lobo Torres
(2006, p. 16) que aduz que é ―inevitável a utilização de enumerações
exemplificativas, abertas para a interpretação extensiva e, não raro, para a analogia,
diante da presença das lacunas intra legem”.
Para nós, a previsão de hipóteses de incidência exemplificativa, aplicável
mediante interpretação extensiva, fere a estrita legalidade e permite ao agente fiscal
a tributação com subjetividade abrindo grandes espaços para distinções ilegítimas,
além de prejudicar a previsibilidade e a segurança jurídica.
Fere também a legalidade a admissão de que a descrição incompleta do
tributo possa ser passível de complementação pela Administração Tributária ou
outro aplicador da norma.
Sem nos ater a uma categoria específica, tipo ou conceito, o tributo deve
ter todos os critérios descritos em lei nos termos constitucionais. Isso assegura ao
contribuinte a segurança e reforça o Estado Constitucional Democrático de Direito.
Nesse sentido é assenta Roque Antonio Carrazza (2012, p. 466-467):
A hipótese de incidência tributária – sempre veiculada por meio da lei – deve conter uma exaustiva descrição dos pressupostos tributários, apta a permitir que todos eles sejam perfeitamente reconhecidos, quando ocorrerem, no mundo fenomênico. Quando a hipótese de incidência é incompleta, ou seja, não descreve, de modo exaustivo, o ―tipo tributário‖, a exação não poderá ser exigida.
Misabel Derzi e Alberto Xavier partindo de premissas diferentes concluem
que a estrutura do tributo prevista em lei deve ser fechada, descrita completamente.
Alberto Xavier (2001, p. 26) destaca a relação do princípio da tipicidade
não apenas com a segurança jurídica, mas também com a separação de poderes ao
passo que subtrai do Executivo e do Judiciário qualquer técnica direita ou indireta de
criação ou majoração de tributos. Assim, para o autor (2001, p. 31), os objetos de
proteção da tipicidade tributária são a propriedade e a liberdade econômica, a livre
iniciativa e a liberdade de contratar.
Os conceitos indeterminados, segundo Torres (2000, p. 15), estão cada
vez mais presentes no direito tributário, por exemplo, renda, circulação de
mercadoria, grandes fortunas.
47
De fato, é inegável a presença desses ―conceitos indeterminados‖ no
direito tributário, porém entendemos que eles devem ser especificados por lei para
que seja possível a incidência tributária ou, então, que o legislador não os preveja.
Seria incompatível com a atividade vinculada de constituição do crédito
tributário pelo Fisco se ele próprio tivesse a tarefa de dizer, por exemplo, o que é
renda ou o que é grandes fortunas (ainda que não existisse a determinação
constitucional para sua definição por lei complementa). O Fisco estaria vinculado a
ele próprio e não a lei como determina a Constituição.
A estrutura normativa fechada enseja a descrição do tributo em seus
aspectos essenciais completamente em lei, ou seja, impõe que todos os critérios da
regra-matriz de incidência tributária estejam previstos na lei tributária para que possa
haver a cobrança da exação.
Tal mandamento expresso art. 150, inc. I da CF não é uma simples regra
que atende aos caprichos do legislador atual brasileiro, ele é uma garantia
constitucional do contribuinte de que o Fisco não cobrará tributo além do permitido
democraticamente, dando-lhe segurança jurídica e confiabilidade do direito. De
acordo com Heleno Tôrres (2003, p. 86),
Por isso a tipicidade, pelo papel de estabilização de expectativas que cumpre no contexto do direito, impõe uma vinculação material aos aplicadores do direito, de tal modo que as qualificações e limites semânticos não poderão vir a ser suplantados pelas autoridades administrativas nos atos de interpretação, mediante valorações políticas, econômicas ou sociais.
Se fosse admitido ao Administrador instituir por regulamento, v.g., a base
de cálculo sobre a qual recairia o tributo, haveria uma burla ao princípio da
legalidade, pois quem determinaria quanto o contribuinte deveria pagar seria o
próprio Fisco.
As leis tributárias são hierarquicamente inferiores às normas
constitucionais e até as normas infraconstitucionais possuem restrições para
especificar esses conceitos indeterminados, e com mais propriedade ainda são as
limitações ao regulamento.
Para ilustrar a limitação da qual estamos nos referindo, podemos citar o
caso do alargamento da base de cálculo da COFINS – Contribuição para o
48
Financiamento da Seguridade Social, pela Lei 9.718, de 27.11.1998 que não
encontrava amparo constitucional na data de sua promulgação.
O art. 3º, § 1º desse diploma legal que pretendeu a ampliação da
incidência tributária para abranger a totalidade das receitas foi declarado
inconstitucional em diversos julgados, por exemplo, o RE 346.084 e o RE 585235
QO-RG, por conflitar com o art. 195, inc. I, CF/88 (redação original) que não incluía
receitas, mas apenas faturamento. Vejamos:
TRIBUTÁRIO – INSTITUTOS – EXPRESSÕES E VOCÁBULOS – SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito provado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto forma o princípio da realidade, considerados elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PIS – RECEITA BRUTA – NOÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE DO §1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de renda bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada. RECURSO. Extraordinário. Tributo. Contribuição social. PIS. COFINS. Alargamento da base de cálculo. Art. 3º, § 1º, da Lei nº 9.718/98. Inconstitucionalidade. Precedentes do Plenário (RE nº 346.084/PR, Rel. orig. Min. ILMAR GALVÃO, DJ de 1º.9.2006; REs nos 357.950/RS, 358.273/RS e 390.840/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ de 15.8.2006) Repercussão Geral do tema. Reconhecimento pelo Plenário. Recurso improvido. É inconstitucional a ampliação da base de cálculo do PIS e da COFINS prevista no art. 3º, § 1º, da Lei nº 9.718/98. (RE 585235 QO-RG, Relator: Min. CEZAR PELUSO, julgado em 10/09/2008, DJe-227 DIVULG 27-11-2008 PUBLIC 28-11-2008 EMENT VOL-02343-10 PP-02009 RTJ VOL-00208-02 PP-00871).
Ciente de tal entendimento e ainda com a intenção de efetivar o aumento
da arrecadação, o constituinte derivado promoveu alteração no texto original do
artigo 195 da CF para possibilitar o aumento da base de cálculo e a legitimidade da
cobrança, o que fez através da Emenda Constitucional nº. 20, de 15.12.1998.
Parece-nos que permitir ao administrador a definição dos critérios, ou
algum dos critérios, da incidência tributária seria derrubar a determinação
constitucional de que o tributo somente poderá ser criado ou aumentado por lei,
esta, por sua vez, também deve seguir os parâmetros constitucionais.
49
E se para se criar um tributo é imprescindível a descrição dos critérios
material, temporal, espacial, pessoal e quantitativo, todos eles deverão estar
previstos em lei, ou seja, o constituinte determinou não apenas a forma ―lei‖, mas
também o conteúdo dessa ―lei‖.
O aspecto material do princípio da legalidade é o verdadeiro limite ao
poder de tributar, pois considerando apenas o aspecto formal a autoridade
competente, pela função legislativa, pode tudo, porém, felizmente, isso não coaduna
com o nosso Estado Constitucional Democrático de Direito.
Não nos incomoda que originariamente pela doutrina germânica, como
bem ressalta Misabel Derzi e Ricardo Lobo Torres, o termo tipicidade, typus,
requeira necessariamente um delineamento aberto. Não visualizamos problemas em
―importar‖ uma teoria e transformá-la ou adaptá-la ao ordenamento jurídico nacional.
E se em outros países a estrutura normativa tributária é aberta e
preenchida pelo próprio Fisco, no Brasil, com o atual ordenamento jurídico, não é
assim, mesmo que isso seja uma postura tupiniquim.
Discordamos de Ricardo Lobo Torres (2000, p. 168-169) que critica o
isolamento da doutrina e o direito brasileiro, afirmando que
[...] passaram a prevalecer princípios tupiniquins, como os da legalidade absoluta, tipicidade fechada, proibição da analogia, ao mesmo tempo em que se ausentavam, inclusive do texto constitucional, os princípios vinculados à justiça, principalmente o da capacidade contributiva. Só agora com a globalização, é que se procura acertar o passo com a doutrina estrangeira, o que se faz sentir com maior intensidade no campo do direito internacional tributário.
Heleno Tôrres (2003, p. 18) esclarece que a legalidade não tem a mesma
feição na Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Espanha, Portugal. E também é
diferente no Brasil, aqui ela se ordena pela rígida discriminação de competência, o
que faz com fatos reveladores de capacidade contributiva objetiva e prévia definição
da tipologia dos tributos.
A Assembleia Nacional Constituinte explicitou minuciosamente os limites
da possibilidade de a Administração dispor sobre algum dos critérios da regra-matriz
e o fez excepcionalmente, v.g., possibilitou à União o poder de determinar a alíquota
de alguns impostos específicos e, ainda sim, de forma limitada aos termos da lei
conforme o art. 153, § 1º da Constituição Federal.
50
Então enfatizamos: o tributo deve estar completamente previsto em lei
stricto sensu, sendo esse tópico fundamental, pois parte-se dessa premissa para
concluir que não é admissível a tributação de fatos que não estejam integralmente
previstos na lei tributária, o que consequentemente, possibilita que o contribuinte
planeje seus atos e negócios jurídicos para que, dentro das possibilidades legais,
opte pela que lhe é menos onerosa tributariamente.
A zona cinzenta da hipótese de incidência, também, deve ser esclarecida
por lei. Se algum dos critérios da regra-matriz de incidência não estiver descrito
legalmente, ou estiver escrito de forma insatisfatória, será necessária a alteração da
lei para a cobrança da exação.
A possibilidade de abertura da estrutura tributária leva à incerteza e
insegurança jurídica, o que não se coaduna com a determinação constitucional de
que os tipos tributários, ou conceito tributário, devem ser estipulados legalmente, e
se a decorrência de tal mandamento é a necessidade de constante atualização da
lei, isso não nos incomoda, já que a própria Constituição Federal impõe a
irretroatividade e a anterioridade mínima da lei, possibilitando maior segurança ao
contribuinte.
2.3.2 Os momentos do direito tributário
Ao tratarmos da legalidade, da estrita legalidade e da tipicidade chegando
à conclusão de que a tributação requer a descrição dos critérios para a instituição do
tributo em lei stricto sensu, não se admitindo no Brasil os regulamentos tipificadores,
pode parecer que estamos expulsando totalmente os aspectos valorativos e
humanísticos do direito tributário e nos apegando aos formalismos e ao
juspositivismo. Não é o que estamos fazendo.
A tributação que se admite no Estado Constitucional Democrático de
Direito é aquela que guarde consonância com o sistema constitucional tributário. A
limitação da tributação não é apenas formal (processo legislativo de lei). Para que o
Estado possa cobrar o tributo, deve também ser observado todo o arcabouço da
Carta Magna que promove os valores sociais e as garantias individuais. Assim, de
acordo com Renato Lopes Becho (2009, p. 335),
51
O Estado não pode tributar livremente, pois sua liberdade de tributação tem que coexistir com a liberdade de existência do contribuinte (que inclui a liberdade de ser proprietário, de decidir como será seu desenvolvimento econômico, que permita sua subsistência e outras necessidades desse jaez). A visualização de um conjunto protetivo do contribuinte, no Brasil, é significativamente fácil, posto haver, em nossa Constituição Federal, um plexo de dispositivos que conferem proteção ao contribuinte.
Renato Lopes Becho (2009, p. 339) verifica a existência de três
momentos distintos do direito tributário. Tal distinção é um excelente exercício
didático para compreendermos o processo de aplicação da norma tributária, que
varia conforme o momento da realidade jurídico-tributária. São eles: (i) momento pré-
exacional; (ii) momento exacional; e (iii) momento executivo.
Segue o autor à página seguinte, da mesma obra, afirmando que a fase
pré-exacional é aquela da divisão e controle da competência tributária, nela também
está o processo legislativo de produção da legislação. Nesse momento, tanto a
divisão de competências, quanto o processo legislativos ―são parcelas
eminentemente positivistas‖, disciplinadas por regras constitucionais.
Nesta fase há também um destaque pós-positivista quando da realização
do controle da competência tributária em que ocorre a verificação da consonância do
tributo com o sistema constitucional tributário, analisando a compatibilidade das
regras de imunidades e os princípios tributários. Esse controle é realizado tanto
pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, quanto pela sociedade civil
(BECHO, 2009, p. 339).
O momento exacional é a segunda etapa da formação do tributo e
necessita da regularidade da fase pré-exacional. Nele há a intensificação do
positivismo com a ―explicação dos critérios da regra-matriz constitucional tributária,
enquanto a aplicação dos atos normativos pela Administração Pública informa a
concretização do tributo, através do ‗lançamento tributário‖.
Esse segundo período tem como centro a constituição do crédito
tributário, regido pela legislação infraconstitucional.
Uma última etapa que se visualiza na concretização do direito tributário é
exacional, momento do processo judicial de execução do tributo, nela é possível que
se faça ―importantes ponderações humanísticas, como, por exemplo, na
impenhorabilidade dos bens de família, que cumpre o princípio da dignidade da
pessoa humana na figura de devedor‖.
52
Diante da complexidade do direito tributário, e dos momentos
identificados por Renato Becho (2014, p. 227), a ―legalidade, a tipicidade, as fontes e
a interpretação da legislação tributária sofrerão variações‖.
A grande discussão do planejamento tributário relaciona-se diretamente à
constituição do crédito tributário para fins de exigibilidade, momento exacional, que é
realizada tanto pelos contribuintes, quanto pelos agentes fiscais com predominância
do texto legal, já que é a lei que cria o tributo.
O Fisco no lançamento do tributo tem sua atuação vinculada à lei – ato
administrativo vinculado, sem margem de discricionariedade para cogitações sobre a
oportunidade e conveniência desse lançamento.
Nessa etapa, a atividade interpretativa para aplicação da legislação
tributária não pode cogitar aspectos de inconstitucionalidade (o que é possível nos
outros momentos) e nem utilizar critérios analógicos para enquadramento do fato
imponível, já que o fato gerador é ―a situação definida em lei como necessária e
suficiente à sua ocorrência‖ (art. 114, CTN).
Os agentes tributários que constituem o crédito tributário em sua grande
maioria não possuem formação profissional jurídica e ao construírem a norma
individual do lançamento são orientados pela legislação e principalmente pelos atos
infralegais que tornam a linguagem da lei mais clara, como os regulamentos, as
instruções normativas e portarias.
Quais critérios esses agentes podem utilizar na interpretação da
legislação? Deve ele limitar-se à interpretação literal? Pode utilizar a interpretação
econômica do direito tributário? Ou deve utilizar teorias como a da prevalência da
substância do negócio jurídico sobre a forma e o propósito negocial? Ou, ainda,
pode efetuar o lançamento porque há nítida caracterização de capacidade
econômica no fato que se pretende tributar?
São essas algumas das principais questões que envolvem o tema da
elisão fiscal (modernamente também chamado de planejamento tributário). Mas para
enfrentá-las é necessário antes conhecer o que é elisão fiscal e o que é outra figura
que, por muito tempo, relacionou-se com ela: a evasão fiscal.
53
3 EVASÃO FISCAL
O planejamento tributário é a conduta do contribuinte que tem o objetivo
de redução da carga tributária. Mas muitos outros métodos podem ser utilizados
para evitar o pagamento do tributo e nem todos são legítimos.
Há condutas direcionadas à obtenção de economia fiscal que são
expressamente reprimidas pelo ordenamento jurídico, ao ponto que para esses
casos a própria lei imputa uma consequência drástica, nulidade do negócio jurídico,
imputação de multas pecuniárias ou até mesmo a privação da liberdade em casos
tipificados criminalmente.
Tendo como parâmetro a liberdade do contribuinte e o princípio da
legalidade, é possível identificar o que lhe é permitido e o que lhe é vedado, bem
como o que dará origem à obrigação tributária, e o que não será tributado. É sob
esse enfoque que analisaremos o tema da evasão fiscal para diferenciá-la,
posteriormente, do instituto da elisão fiscal, que mais nos interessa.
É cediço que durante muito tempo o tributo foi fruto de uma relação de
força, poder, servidão e submissão das pessoas ao Estado cultivando um rótulo
negativo na tributação.
Segundo Hector Villegas (1974, p. 19) nesse período em que não havia o
autoconsentimento do tributo, a prática de se esquivar do ônus tributário era
socialmente aceita e até invejada. Já modernamente, o tributo passou a ser
decorrente uma relação jurídica, com caráter de distribuição de riqueza e custeio de
serviços essenciais para o bem-estar da sociedade, legitimando assim a atividade
tributária.
Antônio Roberto Sampaio Dória (1977, p. 22-23) afirma que desde
sempre a evasão fiscal coexiste com os sistemas tributários e possui diversas
causas, desde a (i) concepção estigmatizadora do tributo, passando pelo (ii)
argumento de corrupção, desvio e desperdício do dinheiro público, ou também (iii)
devido à alta complexidade do conjunto de normas jurídicas tributárias.
Há um motivo que exerceu papel mais relevante na gênese da evasão
fiscal e de acordo com Sampaio Dória (1977, p. 24) esse motivo é a resistência à
―contração compulsória do patrimônio do particular‖ e foi essa resistência que
54
gradativamente desencadeou o arcabouço jurídico de proteção ao contribuinte e
limitação aos poderes tributários do Fisco.
Ainda para o mesmo autor (DÓRIA, 1977, p. 26), as consequências da
evasão são gravíssimas: onera os contribuintes diligentes, reduz as receitas
públicas, diminui o orçamento do Estado, e afeta o princípio da igualdade e da
capacidade contributiva. Por tais consequências a evasão fraudulenta deve ser
rigorosamente reprimida.
À ―evasão fiscal‖ é preciso que haja um tratamento rígido da matéria para
distingui-la da ―elisão fiscal‖, fixando tais conceitos que, embora sejam conexos, são
diferentes e implicam regimes jurídicos, também, diferentes.
A identificação das características da evasão é essencial para que não se
recaia em proibições generalizadas que possam vir a prejudicar o contribuinte e ferir
o sistema constitucional tributário.
3.1 Conceito de evasão fiscal
O conceito de evasão fiscal é inicialmente fundado na ilicitude da conduta
do agente, e sempre envolve tributo devido, assim entendido como aquele surgiu da
ocorrência concreta do fato descrito, hipoteticamente, por lei.
Por vezes, a conduta ilícita é patente e a classificação dela como evasão
também, o que facilita a aplicação do direito e a punição do comportamento do
agente. Porém, existem casos em que o ato ou negócio são revestidos de aparência
lícita, o que dificulta o trabalho da autoridade tributário responsável pelo lançamento
ou fiscalização do contribuinte. Essa dificuldade de identificação e elucidação dos
fatos tumultuam a conceituação e classificação da evasão e elisão tributárias.
Antônio Roberto Sampaio Dória (1977, p. 21), autor que possui a
classificação mais completa sobre o assunto ―elisão e evasão‖, conceitua a evasão
fiscal lato sensu como sendo ―toda e qualquer ação ou omissão tendente a elidir,
reduzir ou retardar o cumprimento de obrigação tributária‖. Tal conduta sempre
visará, direta ou indiretamente, uma receita tributária.
A evasão fiscal lato sensu, segundo Sampaio Dória (1977, p. 32) abrange:
(i) evasão omissiva, subdividida em (i.a) imprópria e (i.b) por inação;
55
(ii) evasão comissiva, subdividida em (ii.a) lícita ou legítima (evasão stricto
sensu, ou elisão) e (ii.b) ilícita.
Nessa classificação o autor ( DÓRIA, 1977, p. 32) conceitua como evasão
imprópria a abstenção da prática dos fatos imponíveis, por exemplo, deixar de
importar um produto para evitar o pagamento do II – Imposto sobre Importação de
produtos estrangeiros.
Tal situação para Renato Lopes Becho (2014, p. 183) deve ser
denominada de elisão imprópria tendo em vista a abstenção não é conduta ilícita.
O próprio Sampaio Dória afirma que talvez seja inexato estender o termo
evasão para abranger essa mera ―abstenção de incidência‖, mas justifica
diferentemente de Becho. Para o autor (1977, p. 34), além de evitar o ônus tributário,
o contribuinte deve, com a conduta evasiva, obter um resultado econômico, e este
resultado não é obtido com a não realização intencional do fato previsto na lei
tributária, por isso ele a denomina de imprópria.
Na evasão por omissão imprópria, o autor também inclui inicialmente a
transferência do ônus tributário do contribuinte de direito ao contribuinte de fato, v.g.,
a inclusão do ISS – Imposto Sobre Serviços no valor pago pelo consumidor do
serviço.
Com a transferência econômica do ônus fiscal o pagamento do tributo por
si só, em regra, não é suprimido, postergado ou reduzido. Há na verdade uma
operação contábil para composição do preço do produto ou bem vendido. E por isso
Sampaio Dória (1977, p. 35) afirma que nesse caso não se constata uma evasão, e
que ele apenas configura um problema de justiça fiscal.
A evasão por inação (outra subespécie da evasão por omissão) pode
ocorrer intencionalmente, quando há sonegação fiscal, falta ou atraso no
recolhimento do tributo, ou pode ocorrer não intencionalmente, quando o contribuinte
não tem ciência do seu dever fiscal. Ambas as condutas são demasiadamente
danosas ao Estado e são consideradas evasão em sentido próprio (ibid, p. 36).
Já a evasão por comissão é a ação voluntária e consciente que visa não
realizar, reduzir ou diferir o pagamento do tributo. Para Sampaio Dória tal ação pode
ser lícita, também chamada de evasão stricto sensu ou elisão, ou ainda ilícita –
fraude em sentido genérico (ibidem, p. 39).
A ação lícita do contribuinte se concretizará antes da ocorrência do fato
imponível – ―conduta individual preventiva‖, e ainda que vise a obtenção do
56
resultado econômico e elisão do crédito tributário não infringirá nenhuma norma
jurídica. Ao contrário da evasão ilícita (ibid, p. 38).
Deste tipo de conduta iremos tratar de forma mais aprofundada no
próximo capítulo.
Ainda dentre as condutas comissivas ilícitas existe três subespécies: (a) a
fraude propriamente dita em que os meios ilícitos são evidentes, (b) simulação fiscal,
caracterizada pela aparência, prima facie, de meios lícitos que ocultam o real efeito
produzido e (iii) o conluio consistente no ajuste firmado entre duas ou mais pessoas
para prática de fraude lato sensu (ibidem, p. 40).
De acordo com o autor (1977, p. 40), tanto na evasão ilícita, quanto na
elisão (evasão lícita), as intenções e os fins são idênticos, diferenciando-se apenas
os meios e o momento de sua efetivação.
A intenção comum é a supressão, redução ou diferimento do recolhimento
do tributo, e o fim é a obtenção do resultado econômico. O mesmo autor (1977, p.
39) destaca ainda que o meio elisivo utilizado sempre será lícito e será efetivado
preventivamente em relação ao fato imponível, na evasão ilícita o meio sempre será
fraudulento e ocorrerá concomitante ou posterior a ocorrência do fato.
Não obstante a exposição de sua classificação inicial, o autor critica a
confusão e falta de rigor terminológico dado a matéria. Ele condena a atribuição
simultaneamente à mesma unidade conceitual de qualificativos contraditórios, como
por exemplo, evasão legal e evasão ilegal.
Para Dória (1977, p. 45), muito embora o termo latino evadere na sua
utilização clássica admitisse a duplicidade, hoje este termo não admite mais. Um
―ato lícito não se nivela a uma infração, causando a confusão taxonômica, que
insinua tal nivelamento, embaraços à própria diferenciação jurídica das espécies em
exame (ou seja, entre fraude fraudulenta e fraude não fraudulenta!)‖.
José Eduardo Soares de Melo (2002, p. 172) denomina de forma mais
objetiva a ―evasão fiscal‖ como a ação ou omissão ilícita que reduz ou elimina a
obrigação tributária, caracterizada por vício de consentimento como dolo, erro,
coação, ou vícios sociais como a simulação ou fraude.
Concordamos com a confusão taxonômica e também com a confusão
classificatória a exemplo da própria divisão realizada por Sampaio Dória e
verificamos a doutrina tem dificuldade de caracterização, conceituação e separação
dos dois institutos distintos: evasão e elisão.
57
Verificamos, porém, que essas questões, de imprecisão terminológica,
não são adstritas apenas à doutrina nacional. Para Eusébio González, catedrático
da Universidade de Salamanca, esse tema é um dos que mais necessidade de
organização conceitual (1999, p. 59). E prossegue o autor afirmando que
Com o termo ―fraude‖ geralmente designa-se tanto a violação aberta, clara e direta da lei, dando assim entrada a conceitos tais como os de transgressão, omissão, evasão, defraudação e delitos fiscais; como a infração encoberta, oculta, indireta das normas, acolhendo, então, figuras tais como a de elisão (impropriamente), abuso de Direito, abuso de formas jurídicas, fraude a lei, negócio indireto e simulação (1990, p. 60)¹.
Por isso restringiremos o nosso conceito de evasão fiscal. Não
incluiremos nele qualquer hipótese de conduta lícita do contribuinte que vise a
economia fiscal. Dessa forma, consideraremos por evasão fiscal, inicialmente,
apenas a conduta do contribuinte em que após a concretização do fato imponível
age ilicitamente, almejando o retardamento, redução ou supressão do crédito
tributário devido.
O nexo de ilicitude da conduta existente entre o fato imponível (que deve
efetivamente ocorrer) e a não realização do pagamento do tributo correspondente, a
sua postergação, ou redução é, portanto, imprescindível para que se configure a
evasão.
Identificamos a evasão fiscal com a fraude descrita no artigo 72 da Lei
4.502/64:
Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto [tributo] devido a evitar ou diferir o seu pagamento.
Fábio Fanucchi (1979, p. 299) faz uma anotação peculiar e pertinente
sobre o texto acima, chamando a atenção para a importância do termo ―dolosa‖,
devendo ser entendido como:
__________________________ ¹ No original: Com el término ―fraude‖ suele designarse tanto la violación aberta, clara y direta de la ley, dando asi entrada a conceptos tales como los de transgresión, omisión, evasión, defraudación y delito fiscales; como la infracción encubierta, solapada e indirecta de las normas, albergando em su seno, entoces, figuras tais como las de elusión (impropriamente), abuso del Derecho, abuso de las formas jurídicas, fraude a la ley, negócio indirecto y simulación (GONZÁLEZ, 1999, p. 60).
58
[...] o dolo aí imanente, no sentido de vontade consciente e livre dirigida a um resultado ilegítimo. É de se esclarecer o detalhe para que, por precipitação, ninguém possa concluir que qualquer ação ou omissão tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou mesmo qualquer tentativa de excluir ou modificar suas características essenciais, se constitua numa fraude e, portanto, num ilícito tributário. É claro que o sujeito passivo potencial de uma obrigação tributária não está obrigado à prática de um fato gerador. Ele não só poderá ordenar sua conduta no sentido de retardar o nascimento da obrigação como pode, inclusive, evitar que ocorra tal nascimento, praticando o que se chama de evasão legal e não o que se afigure como sonegação tributária. Desde que o sujeito passivo utiliza formas legítimas, juridicamente admitidas para obter os resultados da exclusão, retardamento, modificação ou diminuição de resultados tributários, não se cogitará de fraude (negritos do original).
Incorrendo na confusão terminológica que estamos evitando, Fanucchi
denomina de evasão legal o que chamamos de elisão tributária a qual iremos
conceituar e delimitar mais profundamente no próximo capítulo.
Fixado o nosso conceito preliminar de evasão, que utiliza como parâmetro
a ilicitude da conduta do agente, ou seja, a lei (em sentido amplo) é preciso que
identifiquemos os tipos de condutas evasivas que podem ocorrer para elucidar ainda
mais a distinção entre a conduta elisiva que será analisada no próximo capítulo.
2.2 Das modalidades de evasão tributária
Buscando simplificar a classificação de Sampaio Dória, dentre as
condutas evasivas distinguimos três modalidades: (i) simulação fiscal; (ii) fraude; e
(iii) sonegação fiscal.
Ressaltamos que tanto a simulação fiscal, quanto a sonegação são
fraudes, mas que por possuírem peculiaridades relevantes, que serão adiante
expostas, trataremos separadamente das outras fraudes – fraudes em geral.
2.2.1 Simulação fiscal
59
Dentre as modalidades de evasão tributária, a simulação é a que mais
requer nossa atenção, porque ela se enquadra nas situações que dificultam o
reconhecimento da conduta evasiva pela aparente ilicitude no ato ou negócio
jurídico.
A simulação é um vício do negócio jurídico previsto no art. 167, § 1 do
CCB – Código Civil Brasileiro que gera a nulidade do pacto firmado. Vejamos:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1
o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
Tal vício falseia a realidade e esconde um negócio jurídico real. O negócio
jurídico verdadeiro é o que está escondido, chamado pelo CCB de negócio
dissimulado, e este não será nulo se for válido formal e substancialmente. Para
Sampaio Dória (1977, p.64),
na simulação concorrem os seguintes elementos: (a) deformação consciente e desejada da declaração de vontade, (b) levada a efeito com o concurso da parte à qual se dirige e (c) tendo por objetivo induzir terceiros em engano, inclusive, do ponto de vista tributário, o próprio Estado.
Marco Aurélio Greco (1998, p. 31) aduz que em sua caracterização
existem pelo menos duas condutas cada qual com uma norma diferente. Há a
conduta aparente e a norma que fundamenta essa conduta e há a conduta real,
querida, praticada e escondida e sua própria norma.
Na prática a simulação ocorre um embate entre uma conduta que o
contribuinte afirma que praticou licitamente e outra que o Fisco assegura que ele
praticou de forma ilícita. Há uma amplitude no campo de verificação da consonância
da conduta com o sistema jurídico e o enfoque das provas ganha relevo.
Essa modalidade de evasão tributária, simulação, é classificada pela
doutrina em simulação absoluta e relativa. Sampaio Dória (1977, p. 65) denomina
simulação absoluta quando não houver nenhum negócio real, ou seja, quando houve
apenas a aparência de uma transação, não há negócio dissimulado, oculto; e
simulação relativa ocorre com a existência de um negócio simulado, falso,
encobrindo outro negócio real que por algum motivo o agente quer disfarçar.
60
Roque Antonio Carrazza (2012, p. 542) assevera que não distinção entre
a simulação civil e a simulação tributária, porém, nesta, o terceiro prejudicado é
sempre o Fisco.
A simulação fiscal pode atingir o fato imponível, a base calculada ou o
sujeito passivo da relação jurídica tributária. E como adverte Ricardo Lobo Torres
(2013, p. 123) ela sempre se dá relativamente ao fato gerador concreto, ou seja, não
se opera relativamente à hipótese de incidência.
No que diz respeito à simulação do fato gerador Alberto Xavier (2001, p.
56) assevera que sempre deverá haver um negócio encoberto que se enquadra na
hipótese de incidência tributária, a simulação sempre será relativa.
Marco Aurélio Greco (2008, p. 273) questiona-se se é possível haver
outras hipóteses de simulação em termos fiscais que não as previstas no CC/02, e
também se é possível enquadrar na figura civil de simulação ao invés de um único
negócio jurídico, uma sequência de atos ou negócio, já que na prática isso
comumente ocorre.
O autor (2008, p. 273) ao concluir que a figura batizada pelos tributaristas
não é propriamente a simulação da teoria geral do direto privado, assenta que existe
uma figura própria no direito tributário, chamada de dissimulação.
Porém, analisando a jurisprudência dos Tribunais Superiores, não
visualizamos nenhuma situação que não se enquadre em um dos três incisos do art.
167 do CCB. Isso, em nossa opinião, inviabiliza a existência de uma categoria
própria de simulação tributária. Ainda que a situação tributária seja formada por
vários negócios ou atos, ela continua sendo abrangida pelo dispositivo da lei civil.
As simulações de operações comerciais podem ser enquadradas, a
depender da prática utilizada, ou no inc. I do art. 167 do CC, quando utilizar
empresas ou pessoas ―laranjas‖, de fachadas, o que recairá no ato de pretender
―conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se
conferem, ou transmitem‖.
E podemos exemplificar esse tipo de simulação com a prática julgada no
RHC 28.104/MG em que se identifica uma série de atos e negócios que vão desde a
criação da empresa fictícia, até a realização de transações em seu nome, quando na
verdade correspondiam a transações da empresa real:
61
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, QUADRILHA, FALSIDADE IDEOLÓGICA, FALSIFICAÇÃO E USO DE DOCUMENTO PÚBLICO FALSO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. LANÇAMENTO DEFINITIVO DE CRÉDITO FISCAL. CONDUTAS TÍPICAS SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADAS. FALTA DE JUSTA CAUSA NÃO EVIDENCIADA DE PLANO. TESE DE CONSUNÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO. [...] 2. Os Recorrentes e outros réus foram denunciados por suprimir e reduzir tributos e contribuições sociais de pessoas jurídicas, fraudando a fiscalização tributária mediante simulação de operações comerciais envolvendo empresa fictícia, para quem era transferida toda a carga tributária, imunizando o patrimônio dos verdadeiros devedores. [...] 6. Recurso ordinário em habeas corpus desprovido. (RHC 28.104/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 16/08/2012, DJe 27/08/2012) (grifos inexistentes no original).
Esses julgados resumem-se as circunstâncias em que o contribuinte
confere direito à pessoa diversa das quais ele realmente se conferem e que para
isso vários ilícitos são cometidos como a utilização de empresas laranjas e fraude
dos documentos fiscais, mas deste complexo de ações que restaram judicialmente
provadas sobressai-se a simulação que acarreta a desconsideração dos negócios
por serem nulos.
Ressalta-se que não se está desconsiderando os negócios reais e lícitos
que objetivavam a economia tributária, está reconhecendo a inexistência desse
complexo de negócios entre a empresa fictícia e a empresa real para tributar
corretamente a empresa real.
No entanto, a simulação comercial também pode decorrer de outra forma,
da situação prevista no inc. II do art. 167 do CCB, quando o ato praticado envolver a
falsidade da documentação fiscal, como nota fiscal, declaração de créditos e fatores
que reduzem os tributos existentes, e resumem-se em declaração não verdadeira.
Vejamos o HC 113.554/MG:
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. SONEGAÇÃO FISCAL, LAVAGEM DE DINHEIRO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA EM 04.12.07 NO ATO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. GARANTIA DA ORDEM ECONÔMICA, CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL, CESSAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA. PACIENTE NÃO ENCONTRADO PARA SER CITADO. FUGA. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR JUSTIFICADA. LEGITIMIDADE DO MPF PARA CONDUZIR INVESTIGAÇÃO. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA, CASSANDO-SE A LIMINAR ANTERIORMENTE CONCEDIDA. [...]
62
2. Segundo a denúncia, trata-se de sofisticada organização envolvendo empresas do ramo de cereais voltada para a prática de crimes de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, que, utilizando-se de esquemas previamente definidos e controlados por integrantes específicos da quadrilha, por meio de diversas operações ilícitas (utilização de laranjas, notas fiscais falsas, simulação de exportação, etc), causou prejuízo de R$ 241.000.000,00 (duzentos e quarenta e um milhões de reais) aos cofres públicos. [...] 6. Ordem denegada, cassando-se a liminar anteriormente concedida. (HC 113.554/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 14/04/2009, DJe 01/06/2009) (grifo nosso).
Quando a situação simulada envolver uma complexidade de atos ou
negócios, ainda sim, visualizamos seu enquadramento do art. 167 do CC, como por
exemplo, no caso Grendene, relatado por Leonardo Freitas de Moraes e Castro
(2014, p. 34) em que a empresa criou, no mesmo dia, oito empresas, com o mesmo
objeto social, os mesmos sócios, com a mesma sede (que também era a sede da
Grendene), algumas com um único empregado, outras sem nenhum, tudo para se
enquadrar no regime simplificado de lucro presumido, fracionando o faturamento.
A conduta adotada pela empresa foi caracterizada no Acórdão 103-
05.942 de 1983 como simulação, pois as oito empresas eram ―empresas de papel‖,
sem existência própria, decisão mantida pelo extinto Tribunal Federal de Recursos
(CASTRO, 2014, p. 34-35).
Os casos de simulação fiscal envolvem a utilização de declarações falsa
para obtenção de crédito de ICMS ou de dedução do IR, cisões e incorporações que
na prática não ocorreram, declaração de domicílio falsa para fins de pagamento de
IPVA, etc.
Segundo Dória (1977, p. 70), há simulação fiscal quando o agente
pretendendo evitar a incidência tributária ludibria o Fisco alterando a forma aparente
do negócio oculto que é a realidade econômica ensejadora da obrigação tributária.
Há fraude a lei civil ou comercial e indiretamente a lei tributária.
Ressalta-se que, na simulação relativa, o fato imponível ocorre
efetivamente, porém ele está falseado, dissimulado, escondido sob outra forma.
Em se tratando de simulação a questão probatória é fundamental. A prova
da simulação fiscal e do negócio dissimulado são incumbências da Administração
Tributária para que possa haver a constituição do crédito tributário, visando à
arrecadação do tributo evadido. Não pode haver a decretação da nulidade com base
em meros indícios de simulação ou em presunção de simulação pela anormalidade
63
dos negócios que, tendo o mercado econômico como parâmetro, não se apresente
como um negócio eficiente para empresa.
Roque Carrazza (2012, p. 542) adverte que o Fisco não pode reconhecer
pelo lançamento de ofício a nulidade do negócio e a simulação, ele precisa pedir ao
Judiciário a decretação da nulidade e aguardar o trânsito em julgado da decisão.
Tal entendimento é condizente com o art. 168, parágrafo único do CC,
que determina que as nulidades do art. 167 sejam pronunciadas pelo juiz. Porém,
esse não é o entendimento do próprio Poder Judiciário, que não repudia as diversas
autuações fundadas na alegação de simulação realizada pelo Fisco sem a decisão
judicial prévia.
Vejamos o acórdão abaixo em que houve a autuação fiscal por simulação,
o procedimento foi impugnado pelo contribuinte judicialmente e foi anulada por falta
de prova e não por ter sido realizada sem decisão judicial:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. ARTS. 118, II, E 123 DO CTN. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. ICMS. OPERAÇÃO INTERESTADUAL. AUTUAÇÃO FISCAL. ACÓRDÃO ESTADUAL CONSIGNA QUE SIMULAÇÃO ENSEJADORA DA AUTUAÇÃO NÃO FOI PROVADA PELO FISCO. REVISÃO DESSE ENTENDIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. (AgRg nos EDcl no REsp 991.063/AM, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Rel. p/ Acórdão Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/02/2013, DJe 12/06/2013).
Em outro julgado, abaixo citado, o contribuinte foi autuado por simulação,
também sem prévia decisão judicial, e tal ato foi mantido no âmbito judicial com base
em indícios.
TRIBUTÁRIO. AUTO DE INFRAÇÃO. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. O ato questionado declinou substancialmente as circunstâncias fáticas que levaram à retenção das mercadorias importadas em virtude de simulação - ocultação do real importador -, não merecendo prosperar a tese desenvolvida no recurso especial de que o auto de infração deveria ser declarado nulo por ausência de motivação. [...] 3. Recurso especial não provido. (REsp 1269132/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/05/2012, DJe 24/05/2012)
A autuação e retenção das mercadorias importadas que deram origem ao
processo foram realizadas por ter o Fisco encontrado indícios de ocultação do real
64
importador, e o inteiro teor do julgado especifica o trecho do auto de infração que
fundamenta a decisão judicial de manutenção da simulação:
[...] O importado registrou, em 3 de novembro de 2006, a Declaração de Importação (DI) nº 05/1187692-5, para nacionalização de 3.636 aparelhos DVD modelos DVD - 1122 e PR - DVD 2011. Segundo as informações prestadas no corpo desta DI a adquirente da mercadoria supostamente seria a própria Mercotex do Brasil Ltda. [...] Em que pese o importador alegar que "Não há contrato de conta e ordem, uma vez que a importação é própria", bem como apresentar documentos que o vinculam diretamente à importação (contrato de câmbio e a comprovação do pagamento dos tributos), tudo leva a crer que o real adquirente das mercadorias é a empresa PRINCIPAL COMÉRCIO E DISTRIBUIÇÃO DE APARELHOS ELETÔNICOS LTDA (CNPJ 06.234.788/0001-87). [...] Diante disso, lavra-se o presente auto de infração uma vez que, mediante simulação, foi ocultado o real importador das mercadorias, nos termos do inc. V, do art. 23, do Decreto-Lei nº 1.455/76, com redação dada pela Lei nº 10.637/02. [...]
Dos trechos acima, se desprende que muito embora a pessoa que se
afirmou importador tenha apresentado documentos que o vinculam diretamente à
importação, o Fisco acreditou que ―tudo leva a crer‖ que o real importador é outra
pessoa caracterizando a simulação.
A jurisprudência não repreende a atuação do Fisco de caracterizar o fato
como simulado e, independente de decisão judicial prévia, de autuar o fato
supostamente ocultado. Vejamos:
TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. VEÍCULOS. SUPOSTA REDUÇÃO ILEGAL DA BASE DE CÁLCULO DO TRIBUTO. CLÁUSULAS CONTRATUAIS. FATOS. REEXAME. INVIABILIDADE. SÚMULAS 5 E 7/STJ. 1. Hipótese em que se discute a base de cálculo do ICMS – substituição tributária, nas vendas de veículos realizadas por Brazil Trading Ltda. (antiga Kia do Brasil Veículos Ltda.) para a concessionária Sun Motors Comércio de Veículos Ltda. [...] 5. Caso se verifique simulação nas operações empresariais, com redução artificial do preço por meio de pagamento da diferença a título de serviços não prestados, o Fisco estadual pode e deve autuar a contribuinte e cobrar o valor correto de ICMS. 6. No entanto, o Tribunal de origem, soberano na análise dos contratos e fatos, aferiu a higidez das relações empresariais e a autonomia dos acordos, tendo indeferido a pretensão do Fisco estadual. 7. Para afastar o entendimento do TJ-RS, seria preciso reexaminar os diversos contratos, as relações empresarias e os pagamentos realizados
65
pela concessionária de veículos, o que é inviável em Recurso Especial, nos termos das Súmulas 5 e 7/STJ [...] 9. Recurso Especial não conhecido. (REsp 932.014/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/09/2009, DJe 30/09/2009)
E o próprio Fisco consolida o entendimento de que deve desconsiderar o
ato/negócio e autuar o contribuinte se houver prova da simulação, como pode se
desprender dos julgados administrativos abaixo:
FATO GERADOR - OCORRÊNCIA - COMPROVAÇÃO - O ônus da comprovação da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária é da autoridade lançadora. Não merece prosperar a exigência se não resta comprovada nos autos a ocorrência de operações que ensejariam a incidência tributária. SIMULAÇÃO - NECESSIDADE DA PROVA - DESCONSIDERAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS - A acusação fiscal de prática de negócios jurídicos simulados deve estar amparada em provas inequívocas da ocorrência do vício, sem o quê não poderá prevalecer a pretendida desconsideração de tais negócios. Recurso de ofício negado.
(CARF – Acórdão nº. 104-20364. Processo 11516.001730/00-90.
RECURSO DE OFÍCIO. Data da Sessão 02/12/2004). DESCONSIDERAÇÃO DE ATO JURÍDICO — Devidamente demonstrado nos autos que os atos negociais praticados deram-se em direção contrária a norma legal, com o intuito doloso de excluir ou modificar as características essenciais do fato gerador da obrigação tributária (art. 149 do CTN), cabível a desconsideração do suposto negócio jurídico realizado e a exigência do tributo incidente sobre a real operação. SIMULAÇÃO/DISSIMULAÇÃO Configura-se como simulação, o comportamento do contribuinte em que se detecta uma inadequação ou inequivalência entre a forma jurídica sob a qual o negócio se apresenta e a substância ou natureza do fato gerador efetivamente realizado, ou seja, dá-se pela discrepância entre a vontade querida pelo agente e o ato por ele praticado para exteriorização dessa vontade, ao passo que a dissimulação contém em seu bojo um disfarce, no qual se encontra escondida uma operação em que o fato revelado não guarda correspondência com a efetiva realidade, ou melhor, dissimular é encobrir o que é. IRPJ — GANHO DE CAPITAL — Considera-se ganho de capital a diferença positiva entre o valor pelo qual o bem ou direito houver sido alienado ou baixado e o seu valor contábil, diminuído, se for o caso, da depreciação, amortização ou exaustão acumulada. MULTA AGRAVADA — Presente o evidente intuito de fraude, cabível o agravamento da multa de ofício prevista no inciso II, art. 44, da lei n° 9.430/96. LANÇAMENTOS DECORRENTES — CSLL - A solução dada ao litígio principal, relativo ao Imposto de Renda Pessoa Jurídica aplica-se, no que couber, ao lançamento decorrente, quando não houver fatos ou argumentos novos a ensejar conclusão diversa. Recurso provido parcialmente. (CARF – Acórdão nº. 101-94.771. Processo 10935.001212/2003-78. RECURSO VOLUNTÁRIO. Data da Sessão 11/11/2004).
Dessa forma, mesmo que o Código Civil seja expresso na determinação
da competência para afirmar a nulidade do negócio pela simulação, o Fisco entende,
66
com o aval do Judiciário, que havendo prova da simulação ele pode desconsiderar o
negócio e tributar o negócio oculto.
Dória (1977, p.70) ressalta a necessidade de decisão judicial para a
decretação de simulação. Afirma que o Fisco ao provar a simulação não visa validar
o negócio jurídico dissimulado para recompor direitos de outros terceiros
prejudicados, não sendo importante o efeito civil da nulidade do negócio simulado. O
que o fisco pretende é exclusivamente a arrecadação do crédito tributário.
Em oposição a Sampaio Dória e Roque Carrazza, Alberto Xavier (2001, p.
69) afirma que o interesse de declarar a nulidade da simulação não é desfazer o
negócio, mas apenas de tributar e assim o negócio simulado deve ser somente não
oponível ao Fisco que tributará normalmente, sem a necessidade de decisão judicial.
Para Alberto Xavier (2001, p. 73) antes da inclusão do parágrafo único do
art. 116 do CTN a simulação fiscal deveria seguir o regime da simulação previsto no
direito civil, ou seja, devendo ser declarada por norma do Poder Judiciário. Situação
que foi alterada após edição do artigo que autoriza o Fisco a desconsiderar o
negócio dissimulado.
A nosso ver, essa espécie de evasão tributária é uma infração específica
que pode ocorrer antes do surgimento da obrigação tributária, ou durante a
concretização do fato imponível e pode, ainda, ocorre após o surgimento da
obrigação. Para simular a não ocorrência do fato imponível, o agente pode agir
antes, ―preventivamente‖.
A constatação de que essa modalidade evasiva pode ocorrer antes da
concretização do fato imponível, tem implicações na identificação e distinção que
existem entre a elisão e evasão, pois a conduta evasiva, assim como a elisiva,
também pode ser realizada antes do nascimento da obrigação tributária.
A simulação tributária mantém uma relação íntima com a sonegação
fiscal, pois, muitas vezes, para omitir informação e ocultar o fato imponível da
obrigação tributária e do crédito tributário o agente utiliza-se da simulação.
Rubens Gomes de Sousa (1975, p. 378) distingue a simulação de outra
figura jurídica, o negócio indireto, categorias distintas que por vezes a doutrina
equipara. Para ele enquanto ―a simulação é negócio mentiroso visando resultados
diferentes, e, o negócio indireto é verdadeiro, embora as partes, aceitando suas
consequências, visem obter outros resultados além daqueles que o negócio produz‖.
67
Emílio Betti (2003, p. 277) esclarece que nos negócios jurídicos o normal
é que haja a correspondência entre a intenção prática e o tipo do negócio escolhido,
mas que tal correspondência não é sempre necessária. Por vezes é possível que o
fim almejado seja atingido com um tipo diverso, havendo um ―abuso da função
instrumental‖, mas que, ainda sim, não se configura simulação.
O que caracteriza a simulação para Betti (2003, p. 278) é a
incompatibilidade entre a causa típica da forma escolhida e a intenção pretendida.
Caso elas sejam compatíveis, ainda que inadequadas, ou incongruentes, haverá um
negócio indireto, vejamos:
A incompatibilidade exclui qualquer verdadeira correspondência entre a causa típica do negócio e a determinação causal da parte: pelo que, neste caso, pode parecer que o negócio não é querido na realidade, mas apenas na aparência; não é o que, pelo contrário, sucede com a simples incongruência. Convém, todavia, acrescentar que a incompatibilidade não é uma coisa absoluta e exteriormente verificável, mas é, antes, o produto, essencialmente relativo, de uma avaliação contingente e dependente das concepções dominantes na consciência social.
Daniel Schnnider (2008, p. 15), analisando as doutrinas judiciais
tributárias dos Estados Unidos (originadas dos tribunais), também identificou duas
formas de simulação nos julgados, que podem ser identificadas com o que
chamamos de simulação absoluta e relativa, são elas: a simulação de fato e a
simulação substancial. Na primeira, o negócio não ocorre; na segunda, a transação
ocorre, porém sua forma não é compatível com a substância.
Schinnider (2008, p. 15) ensina que para caracterizar simulação, a
jurisprudência norte-americana utiliza dois critérios para testar a transação negocial.
Os critérios passaram a ser levantados a partir do caso ―Frank Lyon Co. v. United
States‖, julgado pela Suprema Corte em 1978 e que não acatou a alegação de
simulação do contrato de leasingback – contrato de arrendamento com cláusula de
recompra.
Os critérios utilizados pelo Judiciário para verificar a regularidade da
transação foram: (i) a existência de outro propósito negocial que não seja
exclusivamente a obtenção da economia tributária; e (ii) e a existência de substância
econômica pela possibilidade razoável de obtenção de lucro na transação
(SCHINNIDER, 2008, p. 16).
Daniel Schnnider (ibidem, p. 16) observa ainda em sua pesquisa que
68
esses critérios, apesar de continuar sendo parâmetros para enquadramento como
simulação, não são aplicados uniformemente pelos tribunais, já que alguns
observam apenas a substância econômica, outros os efeitos econômicos e o
propósito negocial, e outros exigem, ainda, os dois fatores para que não se configure
a simulação.
No Brasil, também notamos uma enorme proximidade entre os temas
planejamento tributário, simulação e as doutrinas do propósito negocial e da
substância sobre a forma. Estas últimas doutrinas serão estudadas no próximo
capítulo, oportunidade em que aprofundaremos o tema.
2.2.2 Sonegação fiscal
A sonegação fiscal é modalidade que também se relaciona com a figura
da simulação vista no tópico anterior, porém há na sonegação fatores relevantes que
o distinguem da simulação.
A sonegação fiscal é uma conduta criminosa, com utilização de meios
ardilosos para evadir-se do pagamento do tributo devido. A Lei 4.502/64, no art. 71,
tipifica como sonegação não apenas a omissão, mas também a ação:
Art. 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I - da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II - das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.
A sonegação fiscal é conceituada por Sampaio Dória (1977, p. 36) como a
―inação consciente e voluntária do devedor, não saldando, no prazo e forma
determinados, suas obrigações fiscais já verificadas, ou abstendo-se de fornecer
elementos às autoridades para que estas procedam ao lançamento cabível‖.
O mesmo autor (1977, p. 36) afirma que os fins da sonegação são
condenáveis, mas os métodos, os meios, são lícitos e até recomendáveis, pois não
possuem conotação delituosa no sistema jurídico brasileiro.
69
Discordamos do autor quanto à licitude dos métodos para a prática da
sonegação. Os meios empreendidos são fraudulentos e defesos pelo ordenamento.
A sonegação pode ser efetivada mediante simulação, quando se altera
algum elemento do negócio jurídico a fim de reduzir ou suprimir indevida e
dolosamente o crédito tributário.
Ela também pode ser efetivada por outros meios ilícitos, como a total
omissão de declaração de rendas, vendas, serviços e patrimônio, situações em que
se ocultam as transações que dariam origem ao tributo, mas sem a tentativa de
falsear o negócio jurídico.
Tal conduta está prevista na Lei de Crimes contra a Ordem Econômica
nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/1990, configurada pela omissão de informação visando
à supressão ou à redução do tributo.
Equiparamos, pela gravidade social, o crime de sonegação ao crime de
corrupção e desvio de dinheiro público. Não nos aprofundaremos nessas categorias
por entender suficiente o seu enquadramento como ―tipo‖ penal de altíssima
reprovabilidade e prejudicialidade à sociedade que, inclusive, desvia do objeto de
estudo desta dissertação.
2.2.3 Fraude em geral: outras fraudes
A fraude é uma modalidade de evasão tributária cometida pela via
comissiva alterando a realidade econômica já concretizada. Os meios utilizados são
ilícitos e sua finalidade é alterar a relação jurídico-tributária, suprimindo, reduzindo
ou diferindo o pagamento do tributo devido.
A fraude em geral viola diretamente a lei tributária que impõe o
nascimento e recolhimento do tributo (DÓRIA, 1977, p. 70). Teoricamente, esse é o
critério que justifica a necessidade de uma categoria própria para ―outras fraudes‖.
José Eduardo Soares de Melo (2002, p. 173) exemplifica como fraude,
violação ao comando normativo, as situações de omissão de receita, adulteração de
documentos, indicação de valores divergentes dos escriturados, manutenção de
duplicatas a pagar, quando elas já foram pagas.
70
Mas, se analisarmos cada situação destas poderemos enquadrá-las nas
hipóteses de simulação (adulteração de documentos, indicação de valores
divergentes dos escriturados, manutenção indevida de duplicatas a pagar) ou na
hipótese de sonegação (omissão de receita).
Eusébio Gonzalez (1999, p. 63) afirma que devido à necessidade de
maior rigidez da questão probatória para se enquadrar uma conduta na categoria de
fraude a lei, a doutrina administrativa reiteradamente refugiam-se em uma figura
mais flexível como o negócio indireto ou a simulação previstos no art. 25 da LGT –
Ley General Tributária da Espanha.
Importante destacar que nas três modalidades de evasão tributária o que
se suprime, se reduz ou se difere propositadamente é o pagamento do tributo
devido. E essa supressão é feita por meios ilícitos, que infringem o ordenamento
jurídico.
Não visualizamos uma conduta especificamente que não se enquadre na
modalidade de simulação ou na modalidade de sonegação, porém, manteremos
essa modalidade para casos residuais que eventualmente não se enquadrem em
ambas as hipóteses vistas anteriormente.
Cumpre, ainda, destacar uma conduta que nos parece não ser nem
simulação, nem sonegação e nem se encaixar eventualmente na hipótese de outra
fraude, ou seja, tal conduta não é modalidade de evasão tributária: o mero
inadimplemento do tributo.
2.3.1 O mero inadimplemento
Ao caracterizarmos a categoria ―outras fraudes‖ como aquela que viola
por via comissiva diretamente a lei tributária, poderia ser enquadrado nessa
modalidade o fato do inadimplemento do tributo que fere a legislação tributária no
que concerne à data estipulada para o cumprimento da obrigação de pagar.
No entanto, existem duas situações de inadimplemento que devem
receber tratamento distinto, são elas: (i) o inadimplemento da obrigação tributária
proposital e com a finalidade evasiva e (ii) o mero inadimplemento, em que não há
71
dolo e omissão do débito, mas por motivos alheios o pagamento não ocorre no
prazo estipulado.
A primeira situação pode ser configurada como sonegação tributária
ensejando a responsabilidade criminal e também a responsabilidade tributária
pessoal do agente infrator se incorrer nos termos do art. 135 do CTN.
Já a segunda situação, o mero inadimplemento, sem intenção evasiva,
não pode ser configurado como crime sem que haja a prova do dolo. Há
entendimento pacificado nos tribunais, de que essa conduta não enseja a
responsabilidade tributária do agente, pois não recai nas hipóteses de excesso de
poderes, infração à lei ou estatuto, contrato social, ou na hipótese de dissolução
irregular da empresa, conforme a Súmula 430 do STJ: ―O inadimplemento da
obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária
do sócio-gerente‖.
Dessa forma, o mero inadimplemento não deve ser considerado como
uma categoria de evasão tributária, pois nesta, sempre haverá o intuito fraudulento,
ardiloso de furtar-se intencionalmente e indevidamente do pagamento ao tributo
devido.
A evasão fiscal é a conduta, propositadamente planejada pelo
contribuinte, para omitir, total ou parcialmente, a ocorrência do fato imponível da
obrigação tributária o que acarreta a supressão ou redução do valor devido a pagar.
Este cenário de conduta ilícita, que pode ou não ser caracterizada como
crime, muda no caso da elisão tributária, pois não há simulação, sonegação ou outro
tipo de fraude. A conduta elisiva também enseja a redução ou supressão do valor a
pagar, mas é uma conduta substancialmente diferente, que evita que o tributo se
torne devido. É o que passaremos a discorrer no próximo capítulo.
72
4. ELISÃO TRIBUTÁRIA
4.1 Conceito
O termo elisão tributária foi adotado na IV Jornada Luso-Hispana-
Americana de Estudos Tributários que se realizou no ano de 1970 em Portugal como
proposta de modificação terminológica do que até então se chamava de ―evasão
legal‖ (FANUCCHI, 1979, p. 300).
Muito embora o termo seja relativamente novo, a prática é muito antiga,
talvez por causa do eterno embate Fisco versus contribuinte. Marco Aurélio Greco
cita um caso bastante antigo documentado da conduta elisiva praticada já no Século
XIV:
Bártolo Salsoferrato, glosador que viveu de 1310 a 1360 aproximadamente, portanto há mais de 650 anos, relata nos seus anais, nos seus trabalhos - digo até onde: havia uma determinada comuna que tinha criado uma taxa pelo uso do solo onde se instalava a feira para a venda dos produtos e das peles de animais que tinham sido caçados. Relata que determinados caçadores chegavam àquela praça local e, ao invés de colocarem aquelas peças no chão, carregavam-nas nos braços, dizendo: ―se não estou ocupando o terreno da praça do mercado, em termos atuais, não estou praticando fato gerador, estou evitando a sua ocorrência, portanto não devo pagar a taxa pelo uso da praça da comuna onde se realizava a feira.‖ Portanto, essa é a primeira hipótese documentada de elisão fiscal há 650 anos. O interessante é que a conclusão de Bártolo foi de que a taxa era devida, porque, se aquele caçador tinha se dirigido à praça para vender a pele, havia a incidência, uma vez que a finalidade daquela exigência era atingir a mercancia daqueles determinados bens. (Bártolo Salsoferrato, Concilium 135, apud GRECO, 2002, p. 20).
Vê-se, então, que as práticas que tentam reduzir o montante do
pagamento do tributo sem infração jurídica é antiga e talvez tão antiga quanto à
própria tributação.
Ainda hoje a utilização indiscriminada do termo ―elisão‖ assimilando-a a
condutas ilícitas é deveras prejudicial para a diferenciação dos institutos e correta
compreensão dos alcances e limites da tributação.
Para esclarecer o assunto, faremos uma rigorosa determinação
terminológica, distinguindo a conduta lícita e ilícita do contribuinte, dando-lhes
tratamentos diferentes, já que são substancialmente diferentes.
73
Conceituaremos a elisão fiscal partindo da conduta do agente, da licitude
dos meios utilizados e do relacionamento deste com o Fisco. Para realizá-la, como
assevera Sampaio Dória (1977, p. 39),
o agente visa a certo resultado econômico mas, para elidir ou minorar a obrigação fiscal que lhe está legalmente correlata, busca, por instrumentos sempre lícitos, outra forma de exteriorização daquele resultado dentro do feixe de alternativas válidas que a lei lhe ofereça, prevendo não raro, para fenômenos econômicos substancialmente análogos, regimes tributários diferentes, desde que diferentes as roupagens jurídicas que os revestem.
Fábio Fanucchi (1979, p. 300) identifica a elisão como a ―escolha do
caminho mais econômico, sob o aspecto tributário, pelo qual o particular conduz os
seus procedimentos potencialmente tributáveis‖, optando por uma forma jurídica
legítima e não tributada, antes da ocorrência do fato imponível.
Elisão fiscal enquadra-se na classificação inicial de Antônio Roberto
Sampaio Dória como sendo evasão comissiva lícita, também chamada de legítima
ou evasão stricto sensu. Terminologias que não adotaremos por correlacionar a
elisão à evasão.
Sampaio Dória (1977, p. 49) subdivide elisão fiscal em: (i) elisão induzida
pela lei; (ii) e elisão resultante de lacunas da lei.
Por elisão induzida pela lei, o autor (ibid, p. 49) aduz aquele benefício que
o legislador faz conscientemente por motivos extrafiscais, reduzindo ou excluindo o
âmbito de incidência da norma tributária. É a elisão imprópria.
Essas situações induzidas pela lei configuram hipóteses de redução do
valor do tributo a pagar, isenção, não incidência, ou seja, benefícios fiscais em
sentido amplo. Por não entendermos a elisão como um ―benefício fiscal‖, ainda que
tomada em sentido largo, não consideraremos o gozo pelo contribuinte desses
benefícios legais como conduta elisiva.
O que Sampaio Dória (ibid, p. 54) denomina de elisão decorrente de
lacunas na lei é um dos objetos de nossas pesquisas. Nesse tipo de elisão o agente
utiliza as brechas e fissuras deixadas pelo legislador no sistema tributário, ―das quais
se aproveitam licitamente os contribuintes, com certa disposição de sua vida
econômica, aceitando a premissa de que, se o legislador não a quer, pelo menos
não a vedou expressamente‖.
74
E nessa modalidade de elisão, pelas brechas e lacunas legais, que se
destaca o problema da interpretação, da competência da Administração Tributária e
da formação legal do tributo – legalidade, vistos nos capítulos 1 e 2.
A formação legal do tributo pode permitir ou não a ampliação das funções
administrativas no momento exacional da realidade tributária. Se for admitido que a
Administração Tributária complete ou especifique a estrutura normativa posta pelo
legislador em termos genéricos e abrangentes (tipo tributário aberto), determinando
o que é passível, ou não, de tributação, a possibilidade de lacunas e brechas é
consideravelmente reduzida, reduzindo, também, a possibilidade da prática da
conduta elisiva.
O nível legal do sistema jurídica não é autossuficiente, completo e
perfeito, é impossível que o legislador de hoje preveja e normatize todas as
condutas humanas futuras, já as determinando como será seu tratamento jurídico.
Admitimos lacunas e admitimos, também, o preenchimento dessas
lacunas por meio dos métodos de integração do ordenamento, como a analogia, os
princípios gerais do direito. Mas, não admitimos a utilização desses métodos para
completar a regra-matriz tributária a fim de permitir a incidência tributária.
Também não admitimos que o administrador edite regulamentos
completando a norma de incidência no que diz respeito aos critérios material,
espacial, temporal, quantitativo e pessoal, salvo se expressamente previsto pela
Constituição Federal.
Aderimos à linha tradicional do princípio da especificação conceitual, ou
da tipicidade fechada, termo mais difundido no Brasil e isso nos permite aceitar que
se a conduta do contribuinte não tiver abstratamente descrita na lei tributária, com
identidade nos seus aspectos mínimos, não haverá a exação, possibilitando o
planejamento da economia tributária lícita, ou seja, a elisão fiscal.
Por opção terminológica não trataremos como sinônimo de elisão fiscal o
termo economia fiscal, este será tratado como a intenção comum entre a evasão e
elisão, ou seja, será a intenção de suprimir, reduzir ou postergar o pagamento do
tributo.
A elisão tributária, portanto, é a conduta lícita, de livre escolha do
contribuinte, no gerenciamento de seus bens e negócios, que de forma preventiva
evita a hipótese de incidência, evitando consequentemente a ocorrência do fato
75
imponível, ou ainda, diminuindo sua dimensão econômica a fim de reduzir o valor
tributário devido a pagar.
4.2 Distinção entre elisão e evasão tributária
Tanto a evasão, vista no capítulo 3, quanto a elisão, sob o ponto de vista
econômico, são semelhantes, pois diminuem a arrecadação e são obstáculos ao
atingimento das metas arrecadatórias do Fisco e esse pode ser o maior motivo para
a pretensa equiparação jurídica de ambos os institutos. Fixados os conceitos de
elisão e evasão, é possível já perceber suas principais diferenças.
Conforme indicamos na conceituação de elisão e evasão fiscal, tomamos
por característica crucial distintiva entre os dois institutos a licitude, ou não, das
condutas empreendidas visando à economia fiscal.
A conduta do contribuinte é o foco principal da diferenciação entre as
duas categorias. Mas existem outros aspectos distintivos que podemos enfocar.
Sampaio Dória (1977, p. 57) afirma que os elementos comuns a ambos os
institutos são: a ação; a intenção; a finalidade; e o resultado. Para o autor (1977, p.
58) a elisão tributária é condicionada à utilização de meios lícitos, em momento
anterior ao acontecimento da realidade econômica, alterando sua forma antes da
concretização do fato imponível.
A elisão ocorre quando o contribuinte escolhe uma forma alternativa para
obter o resultado elisivo, mantendo a compatibilidade da conduta com seus efeitos,
ainda que essa compatibilidade possa ser anormal pelo entendimento do Fisco, não
será ilícita.
São exemplos de conduta elisiva, o estudo realizado por pessoas
casadas, ou em união estável, relativamente às hipóteses de declaração do IR –
Imposto de Renda, de forma conjunta ou separada, visando à redução do valor a ser
pago pelo casal.
Outra exemplificação da elisão é a programação sucessória do patrimônio
familiar, através do qual a família verifica a forma menos onerosa de transmissão
dos bens dos antecedentes pelos descendentes e herdeiros, realizando a
76
transmissão dos próprios direitos hereditários, antes do óbito do proprietário, para
optar pagar o ITBI e não ITCMD.
Já evasão tributária, os meios utilizados são sempre ilícitos e não evitam
a efetiva ocorrência do fato imponível, como, por exemplo, quando o contribuinte
deixa de informar ao Fisco uma venda que efetivamente se concretizou para diminuir
sua apuração do quantum de ICMS, ou ainda, na simulação de despesas dedutíveis
para diminuir ou suprimir o valor devido de IR.
Entendemos que há três características cruciais na distinção entre elisão
e evasão nos termos em que nos conceituamos: (i) a licitude ou não da conduta; (ii)
o acontecimento ou não do fato imponível; e um elemento subjetivo (iii) a vontade, a
consciência do agente.
Na evasão, a conduta sempre será ilícita e a incidência da norma
tributária sempre ocorre, ainda que esta seja dissimulada, ou seja, na evasão há a
concretização do fato imponível e, assim, haverá tributo devido. Nela, o agente tem
a intenção de não pagar a exação que sabe ser devida e por isso usa
maliciosamente de artifícios.
Notamos que as condutas ilícitas podem ser realizadas antes do
nascimento da relação tributária, por exemplo, na pactuação de um contrato
simulado que futuramente lhe dará o falso direito a dedução do IR. Mas, também
elas podem ser praticadas concomitantemente ou após o nascimento da obrigação
tributária como a sonegação de vendas.
Situação diferente se dá com a elisão que é marcada pela licitude do
comportamento do agente. E quando a finalidade da conduta elisiva for supressão
do tributo, não haverá a concretização do fato imponível e da incidência tributária.
Tal ênfase se dá por discordarmos da adoção do fator temporal do
momento utilização dos meios como o ponto mais seguro para distinguir ambos os
institutos. Frequentemente encontramos a generalização de que a evasão se
caracteriza pela utilização dos meios durante ou após a realização do fato gerador.
No entanto, conforme demonstrado no capítulo 3, a evasão na
modalidade simulação pode ser articulada anteriormente ao nascimento da
obrigação tributária e, ainda sim, será fraudulenta. A simulação mesmo que
realizada antes do fato imponível não impedirá o surgimento do tributo.
Vários autores como Sampaio Dória (1977, p. 58), Fábio Fanucchi (1979,
p. 300), Renato Becho, (2014, p. 182), Sacha Calmon Navarro Coelho (1998, p. 74),
77
utilizam como critério distintivo entre elisão e evasão o momento da conduta que
visa à economia fiscal.
Rubens Gomes de Sousa (1975b, p. 138), que também utilizava o tempo
como critério de discernimento entre as práticas, afirmava, inclusive, que este era o
único critério seguro de distinção, já que a intenção é a mesma, e a natureza do ato
praticado (se lícita ou ilícita) era irrelevante. O autor aduzia que, se a conduta ocorria
antes da concretização do fato imponível, haveria elisão fiscal, e se ocorrida após o
fato imponível, evasão.
Para tais autores, se a conduta for realizada antes do nascimento da
obrigação tributária haverá elisão fiscal, e caso a conduta seja concomitante ou
posterior à realização do fato imponível se configurará evasão – fraude.
No entanto, após analisarmos a simulação fiscal percebemos que essa
conduta dissimuladora da realidade pode ser empreendida tanto antes, quanto
durante, ou ainda, após a ocorrência do fato imponível, e isto nos leva a crer que a
conduta evasiva pode se concretizar preventiva ou repressivamente.
Talvez haja uma confusão entre o momento da conduta elisiva/evasiva e
a concretização do fato jurídico tributário, explicamos: a conduta elisiva tem por
objetivo a não ocorrência ou a alteração da relação jurídico-tributária, já na conduta
evasiva sempre ocorrerá o fato imponível e a relação entre o Fisco e o contribuinte,
o sujeito agirá ilicitamente para esquivar-se do crédito tributário devido e não para
evitar o próprio fato imponível.
Por tal observação pensamos que na evasão sempre ocorrerá o fato
imponível, já na elisão este nem sempre ocorrerá.
Na elisão, em que se almeja a supressão total do crédito tributário, a
conduta do agente evitará a concretização do fato que dará origem à relação
jurídico-tributária, não havendo que se falar em tributo devido, pois o sujeito suprime
o próprio fato gerador in concreto.
Já na evasão, seja a intenção de suprimir, postergar ou reduzir o valor da
obrigação tributária, sempre ocorrerá o fato imponível, e ainda sim o agente persiste
na intenção de suprimir o crédito tributário do respectivo fato gerador in concreto.
Quanto maior a precisão na diferenciação, melhor será o reconhecimento
na prática de qual conduta foi praticada. Parece-nos demasiadamente agressiva a
tentativa de dar tratamento jurídico igual ao sonegador de tributos, juridicamente um
78
criminoso, e o contribuinte que organiza seus negócios e desvia a incidência
tributária não concorrendo para o nascimento da obrigação tributária.
Feitas as devidas distinções entre evasão e elisão é necessário que se
analisem os temas relacionados à conduta elisiva para que possamos conhecer seu
regramento jurídico e suas consequências práticas. Nessa oportunidade trataremos
sobre o propósito negocial, que impõe uma limitação à prática elisiva, e também às
teorias antielisivas que afastam a possibilidade de realização da elisão tributária.
E ao utilizar a ilicitude ou licitude dos atos praticados pelo contribuinte
como ponto fundamental para tal diferenciação impõe-se saber o que é ilícito
segundo o ordenamento jurídico vigente, o que não for ilícito será permitido
juridicamente.
A realização de conduta que objetive a redução do ônus tributário é, ou
deve ser, censurada pelo ordenamento jurídico? Analisaremos tal questionamento
no âmbito da teoria do propósito negocial que exige outra motivação para os atos e
negócios empresarias, que não a fiscal, para a escolha de via alternativa àquela que
ordinariamente daria nascimento à obrigação tributária.
4.3 Teoria do propósito negocial
É lícito ao contribuinte empreender uma conduta negocial com o único
propósito de reduzir o seu ônus fiscal? A teoria do propósito negocial exige que as
transações empresariais devam possuir uma motivação coerente, que justifique a
sua prática segundo a função empresarial, entretanto, essa motivação não pode ser
exclusivamente a obtenção da redução do custo tributário.
Tal doutrina do propósito negocial, também conhecida como utilidade
negocial, ou ainda, como denominado nos EUA ―business purpose” restringe a
possibilidade do contribuinte de organizar seus negócios de forma a não praticar
aquelas situações ou articular transações legais que desviam da hipótese legal que
daria origem ao crédito tributário se elas forem aparentemente infundadas sob o
aspecto empresarial.
Ao analisar essa teoria, Sampaio Dória (1977, p. 75) assevera que seu
desenvolvimento se deu tanto no direito suíço e quanto no norte-americano, e possui
79
como objetivo exigir ―um propósito ou utilidade, de natureza material ou comercial, e
não puramente tributária, que induza o indivíduo à prática de determinados atos de
que resulte economia fiscal‖.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 159) expõe que essa teoria se difundiu por
dois caminhos: por normas judiciais, a partir das decisões do Judiciário, no caso dos
Estados Unidos e na Inglaterra; ou por normas legais do Legislativo, como no
Canadá, Austrália, e Suécia.
Sampaio Dória (1977, p. 75) ressalta que a construção jurisprudencial
suíça qualifica a elisão fiscal se houver cumulativamente (i) a compatibilidade entre a
forma de direito civil escolhida e a relação econômica a que se refere –
correspondência entre a forma e a substância do negócio jurídico; (ii) e a existência
de outro motivo, que não seja a economia fiscal.
Dessas teorias, no Brasil, a doutrina da utilidade negocial norte-americana
é mais difundida. Arthur Michaelson (1952, p. 1078-1079) aduz que a teoria norte-
americana é fruto de entendimento jurisprudencial que surgiu nos casos de
reorganização societária, como fusão, cisão, incorporação e transformação, mas foi
rapidamente estendida para todas as outras transações comerciais, porém ainda
com controvérsia sobre quando e como deve ser utilizada.
Daniel Schnnider (2008, p. 13), analisando as decisões judiciais das
cortes federais tributárias, expõe que o leading case (caso paradigmático) dessa
doutrina judicial tributária, o caso ―Gregory versus Helvering‖ decidido em 1935. A
prática de Evelyn Gregory lhe permitiu obter a economia fiscal e, apesar de não
poder ser enquadrada em evasão fiscal, foi repudiada judicialmente.
O caso Gregory é narrado minuciosamente por Assaf Likhovski em texto
que faz um paralelo com outro caso ocorrido na Inglaterra, segundo o autor (2004, p.
9), a senhora Evelyn Gregory era a única proprietária da United Mortgage
Corporation, empresa que detinha algumas ações de outra empresa, a Monitor
Securities Corporation. Em 1928, quando as ações da empresa ―Monitor‖
alcançaram um bom valor de mercado a sra. Gregory decidiu vendê-las.
A fim de evitar tributação na venda das ações da Monitor pela United e
posteriormente tributação no recebimento dos dividendos pela United, ou seja,
objetivava ser tributada sobre ganhos de capital apenas uma vez e em montante
menor. Para tanto, Gregory criou uma nova empresa, Averill, cujo único propósito
80
era reduzir a tributação total do valor que Gregory receberia com a venda das ações
da Monitor (LIKHOVSKI, 2004, p. 10).
Então a empresa United transferiu as suas ações da Monitor para a nova
empresa, a Averill, e como reorganização empresarial tal operação era isenta. As
ações da Monitor passaram a ser o único bem ativo de Averill, que dias depois foi
totalmente liquidada e assim Gregory recebeu todas as ações Monitor, que logo em
seguida foram vendidas (LIKHOVSKI, 2004, p. 11).
Assaf Likhovski (2004, p. 11) relata que o Comissário (the Commissioner
– agente tributário do governo) entendeu que Averill deveria ser desconsiderada e
que o recebimento de ações da Monitor pela Sra. Gregory deve ser tratado como se
a empresa United tivesse vendido diretamente as ações do Monitor e depois
distribuído o ganho como um dividendo para a Sra. Gregory (o que acarretava um
ônus tributário maior).
O Conselho de Recursos Fiscais aceitou a posição da Sra. Gregory que
era fundada em uma abordagem literal da interpretação do termo "reorganização" no
Revenue Act (Ato da Receita – legislação tributária) de 1928. Mas no Segundo
Circuito, o Juiz Learned Hand, que proferiu o parecer, neste caso, reverteu a decisão
do Conselho de Recursos Fiscais e a decisão do Juiz Hand foi mantida pela
Suprema Corte em 1935 (LIKHOVSKI, 2004, p. 11).
O autor relata (2004, p. 11-12) que o julgado no Segundo Circuito contém
fundamentos contraditórios que apesar de ter anulado a reorganização empresarial
o Juiz Hand chegou a afirmar o seguinte:
Qualquer um pode organizar seus negócios de modo que os seus impostos sejam os mais baixos possíveis; ele não é obrigado a escolher a opção que arrecade mais para o Tesouro; não há nem mesmo um dever patriótico de cada um pagar o máximo de imposto possível
1.
Learned Hand entendeu que apesar da transação praticada por Gregory
se enquadra literalmente como uma reorganização, nos termos definidos no Ato da
Receita de 1928, a isenção deveria se aplicar, porque o sentido da palavra
―reorganização‖ que a legislação prevê é diferente do que foi praticado pela autuada.
______________________________________ 1 Trecho no original: ―Any one may so arrange his affairs that his taxes shall be as low as possible; he
is not bound to choose that pattern which will best pay the Treasury; there is not even a patriotic duty to increase one's taxes‖ (Helvering v. Gregory, 69 F. 2d 809, 810 (2nd Cir. 1934) apud Assif Linkvski, 2004, p. 11-12).
81
Afirmou Hand que assim "como uma melodia é mais do que as notas" o
"significado de uma frase pode ser mais do que das palavras isoladas‖2, deixando de
considerar a literalidade do texto para considerado por sua finalidade, o que foi
mantido pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
Daneil Schnnider (2008, p. 14-16) afirma que Gregory fez uma
reorganização empresarial técnica e formalmente possível, mas não foi considerada
válida por dissonância com a substância dos atos praticados que não demonstravam
uma real reorganização, mas sim, mero benefício fiscal, sem outro propósito
negocial.
Arthur Michaelson (1952, p. 1079-1080) aduz que essa teoria, do
propósito negocial, é frequentemente associada com a doutrina da prevalência da
substância sobre a forma e que muitos tribunais norte-americanos fazem confusão
no momento de aplicá-las.
Ainda nos Estados Unidos, Arthur Michaelson (1952, p. 1087) destaca
que em virtude da incerteza e indefinição das doutrinas judiciais, o Congresso
aprovou testes que dão maior objetividade a aplicação da doutrina do propósito
negocial.
O mesmo autor anota que além da vantagem tributária, o negócio deve
possuir outra utilidade, e para averiguar essa outra utilidade fazem-se três testes
que limitam a possibilidade do contribuinte se programar para a elisão fiscal, são
eles:
(i) o teste da economia fiscal, que pressupõe a
desconsideração da transação caso seu único intuito tenha sido diminuir o gasto
tributário – deve haver substância econômica (1952, p. 1091).
(ii) teste da vantagem societária, o negócio deve trazer
benefício à empresa. Para Michaelson (1952, p. 1092) o suporte legal para esse
teste é ambíguo e alguns tribunais a utilizam para validar e outros para rejeitar o
propósito negocial, sendo entendido por uns como uma variação da doutrina da
substância sobre a forma;
___________________________________________________
2 Trecho no original: ―Thus, despite the fact that Mrs. Gregory‘s transaction fell literally within the
meaning of the term ―reorganization‖ as it was defined in the Revenue Act of 1928, that provision would not apply since just ―as a melody is more than the notes‖ so the ―meaning of a sentence may be more than that of the separate words.‖ (Helvering v. Gregory, 69 F. 2d 809, 810 (2nd Cir. 1934) apud Assif Linkvski, p. 12)
82
(iii) o teste de permanência, a reorganização empresarial deve
ser duradoura, entendimento fruto do caso ―Helvering versus Clifford‖ 1940 (ibidem,
p. 1093 – nota de rodapé n. 130);
Luís Eduardo Schoueri (2010, p. 15) afirma que no Brasil até meados de
1990 somente se coibiam as práticas evasivas; a partir dessa década a
jurisprudência administrativa começou a admitir as autuações dos fiscais que
desconsideravam algumas estruturações empresarias que, segundo o Fisco, não
possuíam objetivo outro, além da economia tributária – sem utilidade negocial.
No entanto o autor (2010, p. 15) destaca que não houve nenhuma
alteração legislativa a respeito da obrigatoriedade da existência do propósito
negocial que consentisse com a mudança na postura dos julgadores administrativos
ao desconsiderem as transações empresariais. A alteração legislativa somente
adveio em 2001 houve a inclusão do parágrafo único do art. 116 do CTN, conforme
veremos adiante.
A doutrina diverge sobre a possibilidade de aplicação dessa teoria no
Brasil como fundamento para limitar a elisão tributária.
Repudiando-a do nosso ordenamento, Schoueri (2010, p. 18) adverte do
perigo da importação de uma doutrina estrangeira oriunda de um sistema common
Law, diferente do sistema pátrio. Já para Ricardo Lobo Torres (2000, p. 157), o
argumento de distinção destes sistemas jurídicos – common law e civil law – não
deve ser utilizado para permitir ou não a elisão tributária.
Afirma ainda Ricardo Lobo Torres (2000, p. 158) que esse tipo de norma,
que limita ou veda a elisão, poderia ser adotada pelo Fisco ou pelo Judiciário com
base nos princípios constitucionais da tributação justa e isonômica sem necessidade
de norma específica. Cita como exemplo dessa possibilidade, inclusive, a decisão do
STF sobre responsabilidade dos sócios no caso de dissolução irregular da
sociedade por cotas no RE 110.597 e RE 107.848.
Para o autor (TORRES, 2000, p. 154-155) a desconsideração da
personalidade jurídica do contribuinte é uma norma antielisiva que atua para atingir a
relação econômica, a substância do negócio jurídico e que a impossibilidade de
aplicação dessa teoria no Brasil formou-se pela doutrina formalista e positivista,
assim como no caso da utilização da doutrina do propósito negocial.
O entendimento dos tribunais sobre a responsabilidade dos sócios põe o
responsável tributário na posição de garantidor da obrigação tributária (BECHO,
83
2013, p.128). Tal postura se consolidou e o STJ editou a Súmula 435 para os casos
de não localização do devedor e imputação da responsabilidade a terceiro com o
seguinte teor: "Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de
funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes,
legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente".
A imputação de responsabilidade tributária a terceiro deve ser imposta por
lei, bem como, a vedação ao contribuinte de realizar transações que visem
exclusivamente a economia tributária.
De acordo com o ordenamento jurídico atual, a atribuição de
responsabilidade tributária decorre da lei, especificamente do CTN, que dispõe no
art. 135 sobre a responsabilidade pessoal de terceiro pelos fatos geradores
resultantes de atos praticados com excesso de poder, infração à lei, ao contrato
social ou ao estatuto.
Dessa forma, deveria ser responsabilizado com base nesse dispositivo o
sócio específico que agiu nessas circunstâncias, mas não é o que ocorre. Renato
Becho (2013, p. 128) assevera que por interpretação jurídica entende-se a
dissolução irregular da empresa como fraude ou como sonegação, dando ensejo à
quebra da limitação da responsabilidade dos sócios por dívidas da empresa.
Renato Lopes Becho (2012, p. 128) esclarece também que ―um fato
gerador posterior (dissolução irregular) substitui o contribuinte pelo responsável em
relação aos créditos tributários não pagos no passado‖.
Esse caso específico da desconsideração da personalidade jurídica, da
forma como está decidida atualmente, rompe com a norma que resguarda o
patrimônio do sócio nas empresas de responsabilidade limitada para fins
arrecadatórios sem o necessário fundamento legal utilizando somente o
entendimento jurisprudencial.
No entendimento de Ricardo Lobo Torres (2000, p. 157-158) é possível a
tributação dos responsáveis tributários, com a desconsideração da personalidade
jurídica, pelos critérios da justiça e da isonomia ainda que inexista regra expressa, a
partir de construção jurisprudencial fundada na tributação justa, o que para o autor
também deveria ocorrer no caso propósito negocial.
Aderimos às críticas feitas por Renato Becho (2012, p. 137) de que é
necessária a alteração do entendimento jurisprudencial sobre o art. 135 do CTN.
Não visualizamos possibilidade de construção judicial de normas que imputem à
84
alguém o pagamento do crédito tributário com base nos princípios da justiça e
isonomia sem a observância da lei de incidência tributária, como o que ocorre nas
hipóteses de responsabilização dos sócios pela Súmula 435 ou com a aplicação da
doutrina do propósito negocial sem suporte legal.
Se o Fisco e até mesmo o Judiciário fossem competentes para tributar
com base exclusivamente na promoção da tributação justa e igualitária, sem outro
parâmetro, ao contrário de resguardar a segurança jurídica se estaria extirpando-a.
Os critérios legais não seriam mais limitadores da tributação, a lei seria apenas
informativa e não mais vinculativa e provavelmente o sistema constitucional tributário
seria outro.
A teoria do propósito negocial é uma construção da jurisprudência
alienígena e por não termos encontrado fundamento legal no Brasil que permita o
uso dessa teoria, entendemos que ela não deve ser utilizada para limitar as
condutas elisivas até que haja legislação sobre o assunto e tal legislação ainda
deverá guardar consonância com o sistema jurídico constitucional.
Nos Estados Unidos, como vimos, ela é uma doutrina judicial, o que é
perfeitamente possível naquele país. A atual Constituição Norte-Americana, de
1787, é bastante sintética, possui apenas sete artigos, compete à Suprema Corte a
delimitação da sua própria competência, bem como a competência dos demais
poderes, portanto, o Judiciário poder impor, v.g., a doutrina do propósito negocial
(Cf. BARROSO, 2009, p. 20-21).
Não obstante a inexistência de norma legal brasileira que consubstancie a
teoria do propósito negocial, percebemos que o CARF – Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais a utiliza constantemente, como se pode perceber no Acórdão 103-
23290 e Acórdão n. 1402-001.141, inclusive com referência aos critérios da doutrina
norte-americana. Vejamos:
INCORPORAÇÃO DE EMPRESA. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO. NECESSIDADE DE PROPÓSITO NEGOCIAL. UTILIZAÇÃO DE ―EMPRESA VEÍCULO‖. Não produz o efeito tributário almejado pelo sujeito passivo a incorporação de pessoa jurídica, em cujo patrimônio constava registro de ágio com fundamento em expectativa de rentabilidade futura, sem qualquer finalidade negocial ou societária, especialmente quando a incorporada teve o seu capital integralizado com o investimento originário de aquisição de participação societária da incorporadora (ágio) e, ato contínuo, o evento da incorporação ocorreu no dia seguinte. Nestes casos, resta caracterizada a utilização da incorporada como mera ―empresa veículo‖ para transferência do ágio à incorporadora. (Acórdão 103-23290. Publicado
85
no D.O.U. nº 87 de 08/05/2008. Data da Sessão: 05/12/2007; Relator: Aloysio José Percínio da Silva) Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ Ano-calendário: 2005 PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO. OPERAÇÕES ESTRUTURADAS EM SEQUÊNCIA. Nas operações estruturadas em sequência, deve a fiscalização apurar se cada uma das etapas realizadas tem propósito negocial. Caso não tenham, deve-se considerar, para fins tributários, o conjunto das operações como um todo e não as etapas isoladas (Acórdão n. 1402-001.141. Processo n. 16327.001725/2010-52, Relator(a) Antonio Jose Praga de Souza, pub em 23.04.2013).
Para entender as premissas teóricas do Conselho Administrativo – órgão
de cúpula do julgamento administrativo, dotado de alta especificidade técnica, Luís
Eduardo Schoueri (2010, p. 16), em estudo que tenta catalogar os julgados que
tratam do propósito negocial, afirma que os conselheiros não utilizam os critérios
uniformemente, dando aplicabilidade diferente aos critérios a variar conforme o caso.
Na análise dos julgados o Schoueri (2010, p. 18) constatou que embora a
falta de propósito negocial fosse a efetiva razão para a desconsideração do negócio
jurídico, os julgadores justificavam suas decisões em outras teorias como a do
abuso do direito, fraude ou simulação, o que demonstra o desconforto da aplicação
de uma teoria alienígena.
Mas os critérios utilizados pelos julgadores para aceitar ou não a
transação por ausência de utilidade negocial têm pontos comuns, e segundo
Schoueri (2010, p. 19) são eles: ―intervalo temporal entre as operações, a
independência das partes e a coerência entre a operação e as atividades
empresarias das partes envolvidas‖.
Comparando os critérios adotados pelo CARF para analise do propósito
negocial e os utilizados na doutrina dos Estados Unidos, percebermos que há
bastante semelhança entre os parâmetros utilizados. Porém, Daniel Schnnider
(2008, p. 16) afirma que na doutrina norte-americana o propósito negocial constitui
um ponto para apuração da simulação.
No Brasil a simulação tem um regramento próprio, como visto no item
3.2.1. A ligação entre o propósito negocial e o negócio simulado no cenário jurídico
brasileiro não é clara e pode levar ao alargamento da doutrina americana para
aplicá-la aos casos em que não há simulação ou ainda, para modificar o tratamento
jurídico existente para os negócios simulados.
Dos critérios identificados por Luís Eduardo Schoueri, tempo da
sequência de transações, independência entre as partes envolvidas no negócio e
86
coerência do negócio com a atividade desenvolvida, é pelo o critério temporal que
muitas vezes se consegue demonstrar o nítido intuito da diminuição da carga
tributária. Schoueri (2010, p. 19) exemplifica com os casos em que vários
documentos de transações diferentes são assinados no mesmo instante ou no
mesmo dia, por vezes um desfazendo o outro que acabou de ser firmado e
demonstrando que um negócio não seria feito se não houvesse a certeza de que o
outro logo depois seria concretizado como é o caso do Acórdão n. 1402-001.141
citado anteriormente.
Mas os critérios de ―tempo entre as transações‖ e coerência dos negócios
são muito subjetivos e variam de caso a caso, bem como as decisões variam de
julgador para julgador, tais fatores não podem, por si só, levar à desconsideração da
conduta elisiva.
Em 2001 o Poder Executivo tentou inserir tal norma no ordenamento
jurídico quando foi editada a MP – Medida Provisória 66 de 2001, que
regulamentava o art. 116, parágrafo único do CTN. A MP possuía o seguinte
dispositivo:
Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. § 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de: I - falta de propósito negocial; ou [...]
Este texto normativo autorizaria o fisco a desconsiderar os negócios
realizados sem propósito negocial, porém todo esse capítulo da MP não foi
aprovado, e por isso, a teoria continua sem tratamento legal, conforme veremos no
capítulo 5.
No entanto, conforme os acórdãos citados, no CARF essa teoria continua
sendo aplicada, dividindo a opinião dos doutrinadores, se é possível ou não sua
aplicação pelos julgadores.
Em sintonia com a complexa realidade tributária brasileira, Sacha Calmon
Navarro Coelho (2002, p. 302) aponta alguns motivos para a rejeição do propósito
negocial no âmbito jurídico tributário, são os seguintes: (i) o princípio da tipicidade
cerrada, visto no item 2.3.1; (ii) o common law admite a livre interpretação e
aplicação do direito, o civil Law não; (iii) a Fazenda Pública brasileira ―é
87
atrasadíssima, invasiva, desrespeituosa, injusta, preconceituosa e tirânica‖; e por
último, (iv) ―diante das desigualdades criadas pela própria administração tributária,
sem falar nas deseconomias por ela própria patrocinada, é muito difícil distinguir o
objetivo fiscal do objetivo negocial‖.
Não vislumbramos a teoria do propósito negocial como teoria antielisiva,
porque ela não extirpa a possibilidade de planejamento tributário, porém põe limite à
pretensão de se obter a economia fiscal, exigindo que tal redução da carga tributária
seja consequência de uma opção negocial fundada e plausível segundo um conceito
formado pelo mercado econômico.
No decorrer do estudo sobre o tema concluímos que o contribuinte pode
obter a economia tributária, mas ela tem que ser uma consequência indireta de uma
opção negocial que traga outro benefício para a empresa, segundo um conceito de
eficiência empresarial que justifique a conduta que ocasionou o benefício fiscal.
Os pontos nevrálgicos da utilização dessa teoria são a ausência de
fundamento legal e, a subjetividade da noção de transação com propósito
empresarial para permitir, ou não, a validação da elisão tributária.
Cremos que é difícil objetivar e definir essa noção de ―transação
empresarial propositada‖ no texto legal, mas também entendemos que a
jurisprudência, principalmente a administrativa, não possui competência para tal
definição livre, essa é uma questão problemática que surge da tentativa de utilização
de uma doutrina surgida no sistema common Law em um país com sistema civil
Law.
4.3.1 Ausência de propósito negocial na incorporação de empresa superavitária por
empresa deficitária – ―Incorporação às avessas‖
A exigência de uma justificativa plausível, um propósito negocial, a
formação de um padrão de eficiência empresarial para a validação, ou não, sob a
ótica tributária, de transações e negócios econômicos nos faz lembrar uma situação
específica que utilizaremos para ilustrar a aplicação da teoria da utilidade negocial
pelo CARF, é o que se tem chamado de ―incorporação às avessas‖.
88
―Incorporação às avessas‖, assim se tem denominado a situação em que
uma empresa deficitária, com prejuízo fiscal, incorpora empresa(s) superavitária(s).
Dessa forma, a empresa que possui o prejuízo fiscal poderá compensá-lo com o
lucro da incorporada, fato que não poderia ocorrer se a empresa lucrativa
incorporasse a empresa deficitária.
O CARF analisando esse tipo de conduta desconsidera as incorporações
realizadas e o gozo dos prejuízos fiscais quando entende que o único propósito da
transação foi o de eliminar ônus tributário.
É juridicamente ilícita a incorporação de uma empresa superavitária por
outra que não possui lucro, ainda que empresarialmente possa parecer inviável?
O caso marcante que mudou o entendimento do Conselho Administrativo
foi julgado em 1996, cujo acórdão é o de número 01.02-107 envolvendo uma
empresa chamada de ―Rexnord‖ que realizou uma sucessão de incorporações,
precedidas de cisões de empresas deficitárias incorporando as superavitárias. Após
os procedimentos a empresa incorporadora alterava sua razão social e objeto social,
para voltarem a se transformar na empresa que desapareceu pela incorporação, a
incorporada.
Um dos ciclos relatado no inteiro teor do Acórdão é o seguinte: em
01.08.1983 a empresa Rexnord Brasil Indústria LTDA, com prejuízo fiscal, cindiu-se
criando a Racine do Brasil Ind. Com. Part. LTDA, empresa constituída em boa
situação econômica por ficar com os benefícios e aspectos negociais positivos que a
originária possuía.
Após a cisão, a Rexnord Brasil torna-se a controladora da Racine e da
Rexnord Correntes, ambas as empresas de alta rentabilidade, enquanto a
controladora somente se presta a acumular prejuízo fiscal.
Em 21.09.1983, a Rexnord Brasil incorpora a Rexnord Correntes e logo
no dia seguinte altera sua razão social para voltar a se denominar como a empresa
incorporada, passando a ter a mesma sede, mesma atividade econômica desta.
O contribuinte em sua impugnação confirma todas as etapas e transações
realizadas, alegando que todas foram realizadas em conformidade com o direito
vigente, e objetivando, sim, os benefícios econômicos para usufruir a compensação
dos prejuízos fiscais próprios (a incorporadora era a deficitária) com os lucros que
obtinham após adquirir as empresas superavitárias.
89
O julgamento administrativo decidiu pela incorporação de fato da empresa
―incorporadora‖ (Rexnord Brasil) pela ―incorporada‖ (Rexnord Correntes), ou seja, ao
contrário do que se formalizou juridicamente e por isso a empresa que realmente
incorporou não podia utilizar o prejuízo fiscal da incorporada.
O recurso do contribuinte aduziu que os autos de infração e a decisão em
primeira instância administrativa se fundaram em elementos estranhos ao direito, e
que houve a desconsideração do enquadramento jurídico e a consideração apenas
da realidade econômica.
No entanto, a Primeira Câmara do Conselho dos Contribuintes e depois, a
Câmara Superior de Recursos Fiscais decidiram pela artificialidade da incorporação
jurídica realizada, que resultou em simulação, e com fundamento nos arts. 109 e 118
do CTN rejeitaram as alegações de defesa para manter a tributação, deixando claro
que as incorporações e cisões praticadas tinham o único objetivo de não pagar o
imposto devido. Vejamos a ementa do indigitado julgamento:
IRPJ – ―INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS‖ – MATÉRIA DE PROVA – COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS – A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados. Se a documentação acostada aos autos comprova de forma inequívoca que a declaração de vontade expressa nos atos de incorporação era enganosa para produzir efeito diverso do ostensivamente indicado, a autoridade fiscal não está jungida aos efeitos jurídicos que os atos produziram, mas à verdadeira repercussão econômica dos fatos subjacentes (Acórdão CSRF -01-02.107 da sessão de 02.12.1996, processo 11065/001.736/89-26).
Esse julgado apontou a ausência de propósito negocial das incorporações
e as relacionou com a simulação – evasão fiscal. Configurou-se a simulação do
negócio com fundamento na falta de utilidade da transação à empresa e nos
aspectos que indicavam a vontade da empresa de realizar a incorporação de forma
diferente do que formalmente foi feito.
A ligação entre a teoria da utilidade negocial e da simulação, que é
evidente na doutrina norte-americana do ―business purpose‖, não é mais evidente
nos julgados de ―incorporação às avessas‖.
Tal entendimento de impossibilidade de incorporação de uma empresa
que está em boa condição econômica por empresa deficitária atualmente é utilizado
isoladamente, como no trecho do Acórdão n. 1401.001.059 do processo
16327.001331/2009-61 decido pelo CARF em 09.10.2013, que enfatiza o seguinte:
90
[...] ―INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS‖ Não existe realidade negocial quando uma empresa com registro de prejuízo fiscal, mas sem atividade efetiva e sem operação, incorpora outra empresa operacional, ainda que do mesmo grupo. Hipótese em que todo o ativo operacional da empresa foi transferido por meio de cisão seguida de incorporação, ficando na empresa original apenas o registro de prejuízo. Assim, não restou justificado ou comprovado qual o sentido e realidade negocial em se esvaziar o ativo operacional de uma empresa, deixando a apenas e tão somente com seu prejuízo fiscal. Na verdade, ao fazê-lo, criou-se uma empresa fictícia, de fachada, cujo único objetivo era carregar o prejuízo fiscal acumulado. [...]
O Tribunal Administrativo pacificou o entendimento de que se a empresa
for criada ou extinta unicamente para possibilitar o aproveitamento do prejuízo fiscal,
ainda que se obedeça a todas as normas do direito civil e comercial, não terá
validade para fins tributários.
A fundamentação jurídica da simulação, por ausência de propósito
negocial, não é condizente com o sistema jurídico brasileiro atual. Caso o Fisco
efetivamente tenha prova de que a incorporação às avessas pretende transmitir o
direito de compensação à empresa que foi incorporada, a nulidade poderia ser
baseada no inc. I do art. 167 do CC que determina a nulidade dos negócios que
―aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais
realmente se conferem, ou transmitem‖.
Parece-nos que há uma relação entre a teoria que veda a atitude do
contribuinte de pactuar negócio jurídico com a única finalidade de redução da carga
tributária, sem justificação devida e coerente com os interesses negociais e a teoria
do abuso de direito, prevista no art. 187 do Código Civil de 2002 dispõe que
―também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e
pelos bons costumes‖.
Pugna pela utilização do abuso de direito na relação jurídico-tributária
Marco Aurélio Greco (2010, p. 200), para quem o Fisco pode desqualificar e
requalificar ato abusivo se houver prova inequívoca de que sua única ou principal
finalidade foi conduzir a um menor ônus tributário, com base na ausência de
propósito negocial. Para o autor por ser o abuso de direito um ilícito civil ele
desqualifica a conduta elisiva, tornando não imponível o planejamento perante o
Fisco.
91
O abuso de direito torna ilícito o gozo de um direito que extrapola seu fim
social ou econômico, de forma a causar prejuízo a terceiro e sem lhe proporcionar
nenhum benefício ao titular do direito.
A ligação possível existente entre a ausência de propósito negocial e a
figura abusiva se dá com o uso pelo contribuinte de seu direito de liberdade
negocial, autonomia privada e a máxima da liberdade geral de ação dos particulares
para diminuir seu gasto com tributo.
Mas, nos parece que não devamos considerar a economia obtida como
prejuízo ao Fisco, pois sendo uma transação lícita, não haveria direito de
constituição do crédito tributário e, portanto, não haveria prejuízo ao Fisco. Também
não se pode dizer que o uso da autonomia privada tenha sido abusivo somente
porque atingiu a economia fiscal.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2008, p. 465) o fundamento dos
excessos e abusos de direito cometidos em Roma era um princípio utilizado na
regência das relações pessoais que dizia Nemine laedit qui jure suo utitur, aquele
que age dentro de seu direito a ninguém prejudica. Tal dito se mostrava injusto em
certos casos pelo nítido caráter de causar dano a outra pessoa, e são esses casos
que o abuso de direito pretende combater, situações em que não há violação da lei,
mas sim dos fins sociais ao qual ela se destina.
Essa doutrina do abuso de direito serve para subsidiar a indenização de
dano causado à terceiro por ato de pessoa que exorbite os fins sociais do direito, o
abuso de direito também é ilícito civil. Parece-nos que não há como transportá-la
para o direito tributário para fundamentar a tributação, nem mesmo se
correlacionada à teoria do propósito negocial, porque o valor pago em decorrência
de exigência do Poder Tributário não pode ser tratado como indenização por ato
ilícito.
Sacha Calmon Navarro (2002, p. 298) destaca que em Direito tributário
não há que se falar em abuso de direito, reservando este para o campo dos direitos
privados potestativos.
Também afastando o abuso do direito do direito tributário, Alberto Xavier
(2001, p. 107) adverte sobre o risco de incluir tal doutrina civilista, que pressupõe
paridade das partes no âmbito do direito público, que inegavelmente tem o Estado
no polo mais forte.
92
Para Xavier (2001, p. 107) a teoria do propósito negocial gera alto grau de
subjetivismo ao passo que os aplicadores da norma tributária – órgãos do Poder
Executivo e os particulares – serão os responsáveis por definir o que é adequado,
qual o negócio normal e razoável para aquela estruturação empresarial, etc.
Ainda que seja editada legislação que imponha a necessidade de
utilidade negocial nas transações empresariais e negociais, será imprescindível
cuidado redobrado em sua aplicação. Somente no momento da constituição do
crédito tributário ou da fiscalização será possível a verificação de critérios e
circunstâncias que indiquem a ausência, ou não, de fundamento legítimo para a
conduta do contribuinte.
Será se nossos fiscais estão prontos para a análise dos propósitos nos
planejamentos tributários? Ou será se sempre restará ao contribuinte o ônus de
suportar processos longos e custosos para defender cada uma de suas transações?
4.4 Teorias antielisivas
A elisão tributária é a conduta do agente que previamente e por meios
lícitos articula seus negócios e atividades objetivando não pagar, ou pagar menos
tributos, pela não ocorrência do fato imponível ou a diminuição de sua repercussão
econômica.
Não encontramos fundamento jurídico que impedisse essa programação
nos casos em que o propósito tributário seja o único motivo da transação, como o
pretende a teoria do propósito negocial, porém, caso a transação seja simulada, ela
não surtirá efeitos e não possibilitará a economia fiscal.
Ainda nesses termos, com a licitude da conduta elisiva, sua admissão no
ordenamento não é pacífica na doutrina, existem teorias que permitem ao Fisco
manter a tributação.
Várias são as críticas e teses existentes que pugnam pela tributação
dessas condutas que visam à economia fiscal, dentre elas destacamos: (i) a
interpretação econômica da lei tributária; (ii) a teoria do abuso das formas jurídicas;
e (iii) a violação da justiça fiscal – princípio da igualdade e princípio da capacidade
contributiva.
93
4.4.1 A interpretação econômica da lei tributária
A teoria da interpretação econômica é uma teoria de interpretação das
normas jurídicas que utiliza o método teleológico, finalístico, considerando a
finalidade da norma em seu aspecto econômico.
Difundido na Alemanha, por influência de Enno Becker, a teoria da
interpretação econômica passou a integrar o R.A.O. – Código Alemão de 1919
(Reichzsfinanhof), que influenciou a edição do CTN em 1966, especialmente no art.
109 do Código (TORRES, 2000, p. 198). Tal teoria influenciou, também, a edição do
parágrafo único do art. 116 em 2001, como veremos no próximo capítulo.
No Direito germânico o tema se originou do debate entre dois princípios
que determinavam a exteriorização do fato gerador: a partir do (i) principio negocial
segundo o qual o fato gerador é considerado independentemente da sua forma de
exteriorização, ou pelo (ii) princípio documental, um plus, que exige além da
caracterização substancial, também uma forma determinada documental de
exposição. Tanto no Código de 1919, quanto na LAF – Lei de Adaptação Fiscal de
1934, prevaleceu o princípio negocial (FALCÃO, 1997, p. 38).
Segundo Ezio Vanoni (1932, p. 201), ex-ministro das Finanças da Itália, o
direito tributário alemão e principalmente a jurisprudência, até a reforma que
culminou no Código de 1919, se inspirava nos critérios tradicionais de interpretação
rígida da lei, com pouca liberdade para o intérprete. Mas no novo diploma foi
inserido um dispositivo específico que alterou esse quadro.
O novo método foi inserido no § 4º do Ordenamento Tributário do Reich, e
autorizou a utilização de três critérios interpretativos das normas jurídicas: (i) fim ou
objeto da lei; (ii) significação econômica da mesma; (iii) os fatos tal como tenham
sucedido realmente (VILLEGAS, 1980, p. 70).
Segundo Dória (1977, p. 91), posteriormente à edição do R.A.O. na
Alemanha, a utilização da interpretação econômica foi ampliada com a LAF de 16 de
outubro de 1934, editada pelo governo nacional-socialista que dispunha no §1, 2 e 3
o seguinte:
94
§1 Interpretação (1) [Revogado] (2) Para isso devem ser tomadas em consideração as concepções do povo, a finalidade e o significado econômico das leis fiscais e o desenvolvimento das relações. (3) O mesmo se dá com a apreciação dos estados de fato. (DINIZ, 1963, p. 220)
O direito vigente no período ditatorial nazista determinou que a
interpretação das leis tributárias fosse feita conforme a finalidade, significado
econômico e concepções do próprio regime nacional-socialista, que tinha como
princípio fundamental a vontade de Hitler.
Discorrendo sobre o dispositivo alemão do R.A.O, Ezio Vanoni (1932, p.
202) afirma que o escopo da norma era evidentemente a imposição da integração da
letra lei, do seu alcance econômico, e de sua relação com o desenvolvimento das
situações práticas.
Vanoni (1932, p. 202) destaca ainda que Enno Becker – autor do
anteprojeto do R.A.O. – pretendia superar a escola da exegese, evitando a chamada
escola da livre investigação do direito, cuja função do intérprete era propriamente
criar o direito. Assim dispunha Becker (BECKER, Enno, 1919, p. 36 apud VANONI,
1932, p. 202) sobre a interpretação econômica:
A norma proposta visa tão somente impor ao juiz, com a máxima evidência, o dever de desenvolver completamente o pensamento jurídico contido no direito tributário, e, assim fazendo, levar em conta os fins das leis tributárias e o seu alcance econômico, assim como as formas de que se revistam, no momento, as situações da vida prática. Desse modo se poderá conseguir aquilo que desejava um dos nossos grandes juristas (Bolze), isto é, que a sentença seja justa e sensata.
Neste trecho específico, notamos a ênfase que Becker deu ao juiz,
atribuindo a ele a atividade de desenvolver o direito, com base no aspecto
econômico. Tal pensamento sem dúvida foi estendido à Administração tributária e
seus agentes fiscais, o que talvez tenha sido fruto de conotação política que ampliou
a pretensão do autor.
Vanoni (1932, p. 203) afirma, ainda, que na prática a jurisprudência
parecia aderir à escola da livre indagação do direito e conta um caso interessante
ocorrido na Alemanha e julgado pela Corte Suprema que envolvia a aplicação de
imposto de vendas sobre o pescado apanhado por pescadores alemães em águas
extraterritoriais.
95
Segundo a legislação específica alemã, eram livres do imposto de vendas
as aquisições de mercadorias no estrangeiro e a sua primeira venda no país, tais
mercadorias deveriam ser produzidas no estrangeiro e vendidas no atacado dentro
da Alemanha. Pela letra da lei, então, os pescados apurados em águas estrangeiras
e vendidos no atacado não deveriam ser tributados. Mas a Corte entendeu que os
pescadores nacionais que assim procedesse deveriam ser tributados, ainda que os
pescadores estrangeiros não fossem (VANONI, 1932, p. 204).
Porém, tal jurisprudência causou perplexidade e reação política e
doutrinária, o próprio Poder Legislativo resolveu intervir alterando a legislação e
eximindo expressamente o pescador nacional do tributo, da mesma forma que o
estrangeiro (VANONI, 1932, p. 205).
Em defesa de sua proposta que ampliou os poderes do juiz para
considerar o viés econômico da norma jurídica, contrapondo-se à jurisprudência dos
conceitos, Becker (1919, p. 54 apud, VANONI, 1932, p. 206) declarou que
ameaça-nos o perigo de que, num período no qual o direito tributário se encontre em suas primícias, num período em que tudo está em movimento, em que concepções profundamente enraizadas caem por terra, e outras novas se impõem pela força...uma profunda delimitação de conceitos, de modo algum claramente definidos, seja por demais prematura, e venha a produzir um anquilosamento do direito tributário. Por isto considero natural e justo que as leis tributárias, quando não se trate de definir o alcance das palavras usadas, limitem-se ao indispensável: tudo quanto há além disso é perigoso. Onde tais leis procurem fixar conceitos, dever-se-ão limitar, via de regra, às linhas gerais, aos princípios orientadores, aos pontos de referência. [...] compete à Corte Suprema financeira completar as linhas mestras com base nos casos práticos – únicos capazes de indicar o caminho a seguir – e dar à prática administrativa uma diretriz segura. Compete à lei tornar possível, com largueza de vistas, este exame pela Corte Suprema.
Enno Becker rompia com a tradição normativista fundada na plenitude
das leis e na onipotência do legislador que impunham como único método
interpretativo o lógico-gramatical. Ao julgador cabia a função de completar a lei
tributária, que era naturalmente incompleta, mas não só ao Juiz cumpria essa
função, esta também era imputada aos membros do Executivo – ministro das
Finanças, e para tanto, tais intérpretes deveriam levar em consideração não apenas
o texto legal, mas também aspectos econômicos no caso a ser decidido.
A teoria da interpretação econômica é fruto desse entendimento, que
possibilita ao julgador e ao Fisco a possibilidade de completar a lei tributária para
96
viabilizar a tributação, considerando outros aspectos que não os exclusivamente
jurídicos, resultando, na maioria das vezes, na ampliação da incidência legal
inicialmente prevista.
A interpretação econômica, ao considerar a finalidade econômica da
norma tributária, guarda nítida compatibilidade com os propósitos arrecadatórios do
Fisco, mas, tal método não pode ser recepcionado onde vige a legalidade tributária
formal e material.
Sobre a correlação entre o referido método interpretativo e a finalidade
arrecadatória, Moris Lehner (1998, p. 147-148) destaca o contexto histórico-social do
surgimento da teoria da interpretação econômica das leis tributárias, que coincidiu
com um período de extrema necessidade financeira, após o fim da primeira Guerra
Mundial, em que a Alemanha havia sido derrotada e sobrecarregada com
obrigações financeiras.
A intenção arrecadatória pode ser percebida na justificação de Enno
Becker (apud LEHNER, Moris, 1998, p. 147) para inserir no RAO 1919 o dispositivo
que impunha a interpretação econômica, aduzindo tal norma que seria,
―Diante da importância para a coletividade do procedimento de tributação‖, (...) ―um requisito de primeiríssima ordem que, pouco importando a forma escolhida pelas partes, (...) ou a roupagem de qualquer caso, fosse encontrada, pelo imposto, seu significado econômico (...) A valorização da situação fática conforme seu significado econômico e a interpretação da lei tributária conforme sua finalidade se encontram em casos como esses‖.
Hector Villegas (1980, p. 70), ao discorrer sobre o fundamento da
utilização do método econômico, esclarece que nele ―o critério para a distribuição da
carga tributária surge de uma valoração política da capacidade contributiva, que o
legislador efetuou tendo em conta a realidade econômica‖. O autor entende que na
análise dos fatos se deve considerar a substância econômica, uma vez que esta
pode indicar qual a realidade que o legislador objetivou tributar, ou seja, a
capacidade econômica visada pelo legislador.
Para Villegas (1980, p. 70) o direito tributário não se vincula ao regime
jurídico escolhido pelas partes, sob pena de possibilitar que estas escolham se
querem ou não se submeter ao regime tributário fixado pelo legislador para aquela
operação econômica e a interpretação econômica possibilita aos juízes a reparação
97
dessa possibilidade de escolha do contribuinte. Nas palavras de Villegas (1980, p.
72):
Mediante a aplicação deste método, os juízes dispõem da ferramenta necessária para se apartarem do formalismo conceitual e, prescindindo das formas e aparências jurídicas, aplicarem a legislação fiscal, segundo a realidade dos fatos econômicos, sem necessidade de demonstrarem a nulidade do ato jurídico aparente ou sua simulação.
No entanto, Villegas (1980, p. 74) faz uma restrição à aplicação desse
método, para que ele somente possa ser aplicado quando envolver tributos cuja
hipótese de incidência descreva a realidade econômica, como no caso do imposto
sobre os ganhos de capital, não se aplicando aos que forem definidos pela sua
forma jurídica. Nesse último caso, o legislador abre mão do princípio da realidade
econômica.
O maior ponto de resistência da teoria da interpretação econômica é o
princípio constitucional da legalidade tributária, especificamente da tipicidade, que
determina a obrigatoriedade de lei para impor a exação fiscal, ao passo que, se a lei
estiver incompleta, o tributo não poderá ser exigido, ainda que a Administração edite
norma corrigindo a deficiência do texto legal.
Como foi visto no capítulo 2, o intérprete não pode estender o significado
da lei para realizar a incidência tributária que imputará débito ao contribuinte, e nem
utilizar a analogia, ainda que os fatos sejam semelhantes, ou ainda que os fatos
apresentem igualmente capacidade econômica, se um deles não estiver descrito na
lei, não poderá ser tributado.
É neste ponto que a elisão fiscal se funda, na certeza de que somente o
que está posto pelo legislador será tributado. Se o agente conseguir obter o
resultado econômico visado por caminho jurídico alternativo, lícito, que não esteja
arrolado como hipótese de incidência, não ocorrerá a tributação.
A interpretação econômica, teoria antielisiva, pretende evitar a fuga da
incidência tributária, almejando a tributação dos fatos que produzam os mesmos
resultados e que se demonstram economicamente tributáveis, ainda que
formalmente eles sejam diferentes.
Para Amílcar de Araújo Falcão (1997, p. 17) tal método exegético não
viola o princípio da legalidade tributária, ao contrário, é dele uma consequência.
Afirma o autor, em defesa da teoria da intepretação econômica, que este método dá
98
à lei ―na sua aplicação às hipóteses concretas, inteligência tal que não permita ao
contribuinte manipular a forma jurídica para, resguardando o resultado econômico
visando, obter o menor pagamento ou não pagamento de determinado tributo‖.
Ao tratar sobre a interpretação econômica difundida no III Reich pela LAF,
Renato Lopes Becho (2009, p. 303) sintetiza a utilização de tal teoria, vejamos:
Em poucas palavras, a interpretação econômica autoriza que um contribuinte seja tributado não pelo que está expresso nas leis, mas pelo que a autoridade administrativa entende que deve ser a carga tributária a ser suportada por referida pessoa. Se sua atividade econômica é forte e lucrativa, o contribuinte deve recolher proporcionalmente muito tributo. Ou, por outro giro verbal, se o contribuinte que detenha visível capacidade contributiva valer-se de leis expressas para recolher o que a autoridade fiscal entende como pouco ou nenhum tributo, o agente do Fisco afasta a interpretação jurídica da lei e aplica uma interpretação econômica à lei: quem tem mais dinheiro deve pagar mais tributos.
O direito tributário brasileiro sofreu forte influência dessa teoria de
interpretação econômica, já na exposição de motivos do projeto do CTN o seguinte
texto foi encaminhado ao Congresso Nacional para justificar e esclarecer os
dispositivos de interpretação que versam sobre as normas tributárias:
Finalmente [o projeto] enfrenta o debatido problema da interpretação da lei tributária, adotando decisivamente a orientação moderna da hermenêutica integrativa e finalística, traduzida na rejeição de quaisquer limitações apriorísticas da função de aplicador da lei. Em decorrência desse critério básico, e da sua vinculação ao conteúdo econômico afetivo dos atos ou fatos tributados traça regras especiais, complementares da norma geral, ou excepcionais em relação a ela, quanto a determinadas situações particulares. (Mensagem 373-54 do Presidente da República que encaminha a EM – Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda n. 1.250 publicada no Diário Oficial do Congresso Nacional, Ano IX nº. 149, 7 de setembro de 1954, Seção I, p. 6081)
Felizmente a doutrina majoritariamente ainda é contra o uso desse
método finalístico de interpretação por ser incompatível com o sistema jurídico
brasileiro, que tem em sua base a estrita legalidade tributária, não podendo haver
desconsideração da forma e para tributar um fato por que simplesmente há
conteúdo econômico, sem qualquer prova de evasão fiscal, como se percebe na
opinião de Sampaio Dória (1977, p. 94-95), Alberto Xavier (2001, p. 40), Renato
Lopes Becho (2014, p. 171), José Eduardo Soares de Melo (2002, p. 179).
Para esclarecer a consideração econômica da interpretação finalística no
âmbito do direito tributário, o que a faz denominá-la de ―interpretação econômica‖,
99
Rubens Gomes de Sousa (1975a, p. 371) expõe que a finalidade do direito tributário
―é fornecer ao sujeito ativo, ou seja, ao Estado, meios cogentes de forçar ao
pagamento de prestações pecuniárias‖.
Em 1953, ao elaborar o Anteprojeto de Código Tributário, Rubens Gomes
de Sousa (1975a, p. 372) incluiu na proposta de lei um dispositivo que autorizava a
interpretação finalística pelo conteúdo econômico com o seguinte texto: ―o aplicador
da lei agirá de forma que a situações econômicas iguais corresponda tratamento
tributário igual‖.
Porém, o autor (1975a, p. 373) ressalta que a sua intenção seria a criação
de uma regra complementar de interpretação para os casos de infrações e sanções
e não uma regra geral: ―a este campo específico do direito tributário das infrações e
sanções é que ficaria, em última análise, restrita a aplicabilidade, como regra
auxiliar, do preceito da interpretação econômica‖.
Esse mesmo sentido de método interpretativo complementar que
pretendia Rubens Gomes de Sousa já era enunciado por Ruy Barbosa Nogueira
(1965, p. 71) que aduzia a validade da interpretação econômica somente como
auxiliar da interpretação, não podendo jamais resultar em exigência do tributo não
previsto na lei.
Para Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 93) a interpretação econômica,
exceto para criação, alteração ou extinção do crédito tributário, poderia ser usada de
forma criteriosa em função da tipicidade tributária, para esclarecer a apuração do
fato gerador e do texto da norma.
Interessante anotar que parece ter havido uma mudança no entendimento
de Rubens Gomes de Sousa, um dos principais autores do anteprojeto do CTN, que
pugnou pela ―subsidiariedade‖ da interpretação econômica em aula proferida na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1971 e publicada em 1975.
No entanto, em sua obra Compêndio de legislação tributária datada de
1975, ele afirma que ―atos, contratos ou negócios cujos efeitos econômicos sejam
idênticos devem produzir efeitos tributários também idênticos, muito embora as
partes lhes tenham atribuído formas jurídicas diferentes‖ (SOUSA, 1975b, p. 80).
A interpretação que desconsidera a forma dos negócios e tributa
exclusivamente pela realidade econômica manifestada rompe com o sistema jurídico
brasileiro e gera insegurança jurídica e subjetividade na aplicação da norma.
100
Conforme assenta Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 52) ―os tributos são
formalmente categorias jurídicas e são substancialmente fenômenos econômicos‖.
Há uma necessidade de configuração do aspecto formal e material do fato
para a possibilidade da exação, ressaltando que o conteúdo econômico somente se
torna relevante ao campo jurídico se estiver insculpido em norma jurídica, caso
contrário tal conteúdo será juridicamente irrelevante. Muito pertinente é a lição de
Sampaio Dória (1977, p. 105) que aduz o seguinte:
O Direito pressupõe para sua realização um mínimo irredutível de formas, porque estas também integram a realidade da vida, e só reduzindo as estruturas reais a categorias formais é que o Direito pode adequada e suficientemente discipliná-las. A forma é suscetível de definição e nitidez de contornos, ao passo que a massa crua dos fatos é quase sempre imprecisa, fugida, cambiante, rebelde à sistematização e unificação conceptuais, enquanto assim permanece. Arrasar as formas é destruir o Direito, relegando a tutela das relações sociais ao arbítrio, incerteza e casuísmo das decisões do poder em casos isolados; convém ademais ressaltar que a tributação constitui modernamente um capítulo do Direito (tutela objetiva e coercitiva das relações sociais).
Interessante retornarmos ao argumento utilizado por Rubens Gomes de
Sousa para explicar a consideração do aspecto econômico na interpretação
finalística do Direito, qual seja, o objetivo do direito tributário, que, segundo o autor,
em termos simples é levar dinheiro para o Estado, forçar o pagamento do tributo.
Mas devemos considerar a origem das codificações e da positivação
jurídico-tributária, fruto de inúmeras revoluções que pretendiam limitar o abuso de
poder do soberano e proteger as pessoas e seus bens.
Devemos considerar, também, a nova fase de direito tributário, que
ressuscita o caráter protetivo do direito e das normas jurídicas, este que havia sido
enterrado pelo juspositivismo e pelo formalismo levado às últimas consequências
como no direito do período nacional-socialista alemão.
Considerando essa linha valorativa e a quebra do dogma de pureza da
ciência do direito não valorativa, constatamos que o objetivo do direito tributário é a
proteção do contribuinte e a limitação da fúria arrecadatória do Estado, é a
imposição de limites à tributação como ensina Becho (2009, p. 341). E é esse norte
que deve guiar o direito tributário e não os fins meramente econômicos e
arrecadatórios.
Aderimos ao posicionamento de Renato Lopes Becho (2014, p. 171) para
quem a ―interpretação econômica, sem subterfúgios de linguagem, significa autorizar
101
os Fiscos a cobrarem os tributos de acordo apenas com suas expectativas de
arrecadação‖.
A interpretação econômica tem latente em si o método analógico a fim de
alcançar a tributação. Não passa de uma interpretação em causa própria, em que
sempre que o Fisco quiser tributar poderá utilizá-la e por isso a renegamos.
José Eduardo Soares de Melo (2002, p. 177) aduz que o debate sobre o
fundamento da interpretação econômica decorre do desvirtuamento dos princípios e
institutos do direito privado, uma dissonância entre conteúdo e forma dos atos e
negócios num contexto de abuso de formas e uso de figuras artificiosas, como é o
caso da simulação.
É financeiramente favorável para o Fisco a extensão da utilização da
teoria da interpretação econômica, desvirtuando sua aplicação, para os casos em
que não há o uso pelo contribuinte de figuras artificiosas e evasivas, como é o caso
da simulação.
Após a análise da doutrina, José Eduardo Soares (2002, p. 179) conclui
que o abuso de forma não obriga, necessariamente, a adoção da interpretação
econômica, esta, inclusive, que não foi acolhida pelo direito tributário brasileiro.
O autor (2002, p. 179) lembra ainda que a interpretação jurídica, como foi
visto no capítulo I, deve ser sistemática e compreendida dentro do sistema
constitucional, ―a lei não pode fixar ou induzir a utilização de exclusivo método de
interpretação‖.
Objetivando unicamente a tributação, a teoria da interpretação econômica
torna desnecessária a apuração de nulidade, simulação ou anulabilidade do ato,
basta que se demonstre aptidão econômica para a tributação da situação.
A tributação com base no resultado econômico do ato impede qualquer
tipo de elisão fiscal, já que não adiantará a programação e opção por um meio
alternativo, tributariamente menos oneroso, ainda que ele não configure hipótese de
incidência, se por meio de interpretação, o Fisco poderá equipará as duas situações
distintas.
A interpretação econômica do direito tributário é uma vertente que
combate a elisão fiscal, mas não é a única. Mas existe outra que afirmar ser a
conduta elisiva um abuso de forma jurídica, para obter a economia fiscal. É o que
passaremos a ver no próximo tópico.
102
4.4.2 Teoria do abuso das formas jurídicas ou adaptação das formas jurídicas
Outro argumento utilizado favoravelmente à tributação das condutas
caracterizadas como elisão fiscal – conduta lícita, preventiva do contribuinte para
obtenção da economia tributária pela inocorrência na hipótese de incidência ou pela
diminuição das proporções econômicas do fato imponível – é a teoria do abuso das
formas jurídicas.
Essa teoria antielisiva sustenta que comumente a conduta elisiva abusa
das formas previstas no direito privado, alterando a realidade aparente do fato
econômico, devendo prevalecer o conteúdo do ato ou negócio jurídico e não a forma
adotada pelo agente.
Também é uma tese disseminada no direito germânico, a teoria do abuso
das formas constava na LAF no § 6, 1 como forma de repreensão do abuso de
direito: ―Por abuso de forma e das possibilidades de configuração do direito civil, não
se pode tornar inexistente ou diminuída a obrigação fiscal‖ (DINIZ, 1965, p. 225).
Para essa teoria da adaptação das formas jurídicas o contribuinte modula
a forma jurídica típica de um referido negócio para outra que, mesmo não sendo
defesa em lei, é nitidamente anormal e tal alteração não impede os efeitos
econômicos do negócio que devem ser normalmente tributado.
Para Ezio Vanoni (1932, p. 191) a ideia de rigidez interpretativa das
normas jurídicas, é o que possibilita essa capacidade de as pessoas atribuírem
novas formas desconhecidas pela lei tributária, tendentes a elidir o dever de pagar
tributo, tornando a lei impotente contra o indivíduo e ferindo o princípio da igualdade
tributária.
Para evitar a violação ao princípio da igualdade, Ezio Vanoni (1932, p.
278) propõe que sejam interpretadas as normas de direito tributário segundo sua
finalidade, procedendo à exata verificação da função econômica dos fatos materiais
referidos na lei – através da interpretação econômica, vista no tópico anterior.
Hector Villegas (1974, p. 157-158) caracteriza a conduta elisiva, de
recorrer a formas ou estruturas jurídicas discordantes das que razoavelmente
deveriam ser utilizadas, com o propósito de reduzir o ônus tributário, como uma
103
conduta antijurídica, ilícita, uma modalidade de fraude fiscal geral com presunção de
dolo.
A conduta elisiva pode atuar na margem deixada pelo legislador que ao
enquadrar como hipótese de incidência determinadas formas de uma situação
específica, omite outras; ou ainda, a conduta elisiva pode abranger novas relações
sociais, ante o dinamismo do mundo globalizado, que não foram previamente
vislumbradas pelo legislador, este último caso, impõe ao legislador tributário o dever
de se manter atento à sociedade.
Sampaio Dória (1977, p.117) sugere que a questão crucial dessa teoria
do abuso das formas é o desvirtuamento da forma jurídica escolhida, para o autor o
abuso se dá quando a forma não guardar relação real com o conteúdo, com a
realidade e com o negócio em si, vejamos:
O que no fundo a teoria do abuso das formas propõe é uma falsa opção entre forma jurídica e substância econômica, quando se trata de uma alternativa autêntica entre forma JURÍDICA aparente (ou simulada) e forma JURÍDICA real.
Esse entendimento de que a teoria do abuso da forma jurídica deve ser
aplicada aos casos de simulação é plenamente admitida no ordenamento jurídico
pátrio. Nesses casos, o que ocorre é evasão fiscal e não elisão, e a
desconsideração da forma forjada, traz à tona o real negócio.
No entanto, parece-nos que essa teoria do abuso das formas, no âmbito
tributário, não visa somente ao combate à simulação e à distorção da forma
exteriorizada em relação à praticada. Ela visa atingir o fato que, independente de
sua roupagem, apresentou-se economicamente passível à tributação e assim, tal
teoria acaba por recair na interpretação econômica do fato.
Hector Villegas (1980, p. 72) afirma que a maior vantagem dessa teoria,
entretanto, é a desnecessidade do Fisco de promover ação própria para anular o
negócio simulado ou o negócio aparente.
É imprescindível para entender a tese do abuso das formas jurídicas e a
possibilidade, ou não, de elisão por escolha de negócio alternativo para obter a
economia tributária, a análise da relação entre o direito privado e o direito tributário,
já que este utiliza muitas vezes na criação dos seus tributos institutos e formas
daquele.
104
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 55) analisando as interpretações do
direito tributário trata dessa relação interdisciplinar com o direito privado,
especificamente da relação entre a utilização das formas privadas pelo direito
tributário.
Nesse inter-relacionamento, ele distingue três situações baseadas na
natureza das coisas: (i) utilização de um instituto puramente de direito privado; (ii)
um instituto de direito privado alterado pelo direito tributário; (iii) e um instituto puro
de direito tributário.
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 56) esclarece que no primeiro caso (i), o
―typus tributário‖ é o próprio ―typus” do direito privado, devendo o intérprete apurar
as características do tributo observando a forma do instituto no direito privado.
O direito tributário ao se apropriar das formas civis ou comerciais na
descrição da hipótese de incidência tributária deve limitar-se a elas, e não
meramente desconsiderá-las posteriormente para atingir a realidade econômica
vestida de outra roupagem.
Para Nogueira (1965, p. 58) a forma privada, nesse caso, é vinculante
dentro do direito tributário porque ele a adota, e ilustra com o seguinte exemplo,
[...] para tributar a operação econômica ou a circulação das mercadorias, já categorizada pelo Direito Privado como compra e venda ou consignação, a lei fiscal declara como fato gerador a venda ou a consignação de mercadorias, feita por comerciantes, industriais inclusive produtores. Naturalmente, citando essas categorias do Direito Comercial, o Direito Tributário manda que o intérprete se dirija a esse ramo quando necessite conhecer as características ou contornos desses institutos.
Nessa hipótese o agente pode, ao escolher dentro das possibilidades
legais do direito privado, optar por um meio alternativo para realizar a elisão fiscal e
eliminar o tributo, caso não se enquadre no âmbito de incidência tributária.
A segunda situação possível do relacionamento entre o direito privado e o
direito tributário (ii) é quando o direito tributário modifica as estruturas do direito
privado, adaptando-as às necessidades da realidade tributária. Nogueira (1965, p.
58) a exemplifica com o balanço comercial, regido por normas contábeis, sob tal
instituto as normas tributárias fazem as alterações que precisam para atingir os
efeitos tributários desejados. Assim apenas as alterações deverão ser desvinculadas
do direito comercial. Haverá integração das normas do direito privado com o direito
tributário, ambas regerão o instituto.
105
E por último, se o instituto privado não for suficiente para o direito
tributário (iii) este criará o ―typus tributário‖ desvinculado do direito civil ou comercial
com características próprias. O exemplo que Nogueira (1965, p. 61) fornece é a
capacidade para figurar como sujeito passivo, que expressamente se desvinculou da
capacidade civil e da regularidade civil da constituição da pessoa jurídica, dispostos
no art. 126 do CTN.
Porém, essa criação das categorias autônomas ou modificação das
categorias existentes somente poderá ser feita por lei, pois ―somente por meio da lei
pode ser criado o tributo. Logo, também por meio da lei, pode traçar os institutos que
hão de configurar a tributação‖ (NOGUEIRA, 1965, p. 60).
Interessante sistematização doutrinária realizada por Ruy Barbosa
Nogueira sobre a interdependência entre os ramos didáticos do direito. Ressaltamos
que tal doutrina foi proposta antes mesmo da edição do CTN, mas, ainda sim, nela
percebemos que o direito tributário é relativamente livre para criar suas próprias
categorias por lei, mas caso ele opte por apropriar-se das categorias do direito civil,
comercial, trabalhista deve então observar as normas de configuração dos
respectivos institutos.
O direito tributário não pode considerar abusiva uma forma jurídica de
direito privado, sem que haja alguma das hipóteses de simulação ou fraude à lei.
Quando permitido, com base na unidade do direito, o contribuinte pode utilizar
formas negociais diferentes que levem ao mesmo resultado prático, ainda que estas
formas ensejem uma tributação menor.
A desconsideração da forma jurídica negocial lícita, não defesa em lei, de
um negócio jurídico para que haja a tributação sobre os efeitos econômicos implica
na tributação sem lei.
Há autores que são favoráveis à aplicação da desconsideração por abuso
de forma, como Amílcar de Araújo Falcão (1997, p. 13) que entende que o intérprete
deverá utilizar na compreensão das categorias de outros ramos do direito os
princípios fundamentais de direito tributário, dentre eles a interpretação econômica
da lei tributária.
Vai ao encontro do entendimento de Falcão o posicionamento de Rubens
Gomes de Souza (1975b, p. 64) ao alegar que o direito tributário encara os atos e
fatos jurídicos considerando-os apenas como fatos econômicos, extraindo os efeitos
econômicos.
106
Ezio Vanoni (1932, p. 160) em estudo sobre a natureza e interpretação
das leis tributárias, afirma que o direito tributário se firmou como independente dos
outros ramos jurídicos, inclusive do civil, podendo formular seus próprios institutos.
Porém, tal independência não impede de recorrer à terminologia do direito privado,
isto porque ―a expressão não tem, no direito tributário, o mesmo significado que
tinha no direito privado, mas adquire um valor particular, ligado à função econômica
normal do instituto a que se refere‖.
Para Vanoni (1932, p. 167) o direito tributário ao utilizar instituto e
conceitos de outros ramos jurídicos retira-lhe qualquer característica de direito
privado:
O instituto perde com essa incorporação, qualquer função de tutela de um interesse individual, para transformar-se num conceito concernente à tutela do interesse do Estado em obter os meios necessários para fazer frente às necessidades públicas.
Aqui cabe uma indagação realizada por Paulo de Barros Carvalho (s/d(a),
p. 5): ―o fato antecedente da norma individual e concreta pode ser entendido como
fato econômico, contábil, político, ou mesmo fato histórico?‖. Ou seja, a constituição
do crédito tributário pode ser fundada em fato não descrito em lei tributária?
O autor (s/d-a, p. 9) então identifica que o fato jurídico sofre uma
qualificação jurídica, que produz um recorte na realidade social e a contrário sensu
esse corte identifica também o que não é jurídico, assim,
[..] o termo ou expressão ao adquirir o qualificativo ―jurídico‖ não somente será representativo de uma unidade do universo do direito, como também denotará seu contraponto, isto é, todos os outros fatos linguisticamente possíveis de serem construídos a partir daquele mesmo evento, mas que não se enquadram às regras sintáticas e semanticamente dadas pelo sistema de linguagem do direito.
No âmbito da categoria de fatos não jurídicos estão os fatos econômicos,
contábeis, históricos, e outros sem a qualificação jurídica. E em resposta ao seu
próprio questionamento, Paulo de Barros Carvalho (s/d-a, p. 11) afirma que o fato
descrito no antecedente sempre será um fato jurídico, já que o fato econômico,
contábil, político se não estiver qualificado juridicamente não fará parte da realidade
jurídica.
107
Amílcar de Araújo Falcão (1997, p. 13) também entende que sem a
previsão legal na hipótese de incidência tributário o fato econômico, ou outro fato
qualquer, será irrelevante no que diz respeito ao nascimento da obrigação tributária.
No entanto, o autor (1997, p. 13) admite a previsão exemplificativa do fato na lei
tributária e a utilização da interpretação econômica dos fatos.
Misabel Abreu Machado Derzi (2002, p. 208) aponta para o art. 116 do
CTN, que relaciona os fatos geradores em situações de fato e situações jurídicas,
cada qual com seus efeitos e cada qual com a compatibilidade ou não de aplicação
da teoria do abuso das formas. Vejamos este dispositivo:
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
A autora (2002, p. 208) destaca que no inciso I o legislador elegeu as
situações de fato que se originam de fatos jurídicos, e a relevância não está apenas
no negócio originário, mas está também na execução ou efeitos resultantes dele, e
nas circunstâncias materiais indicativas da execução do ato ou negócio.
Misabel Derzi exemplifica (2002, p. 209) essa hipótese de situação fática
com a saída da mercadoria do estabelecimento comercial (fato gerador do ICMS),
sendo uma situação de fato necessária para produção dos efeitos tributários, pois
configura ―circunstância material como execução e indício dos efeitos normais de
atos translativos da titularidade do domínio da mercadoria‖.
Segundo Misabel Derzi (2002, p. 209), relativamente ao inciso II do art.
116 do CTN, o legislador escolheu situações jurídicas como hipótese de incidência
tributária, é o caso da propriedade, posse ou sua transmissão e, nessas situações, o
próprio legislador remete ao momento de constituição do direito aplicável aquela
situação específica.
Adverte a autora (2002, p. 211) que nas situações de fato, os atos de
execução são disciplinados por outros ramos do direito e devem necessariamente
guardar coerência com estes, assim, v.g., o ICMS que incide sobre a saída da
mercadoria, refere-se a um negócio de transferência de titularidade do domínio,
então não pode incidir sobre o contrato de arrendamento, comodato, locação, etc.
108
Concluímos que não pode o intérprete e aplicador do direito tributário
desconsiderar a forma eleita, se ela for real, e realizar um lançamento com base
unicamente na manifestação de riqueza do fato, tornando-o apto a ser tributado,
ainda que a hipótese de incidência tenha elegido uma situação de fato ou situação
jurídica.
Advindo novas relações sociais e negociais, o que é natural no mundo
globalizado, antes do tributo alcançá-las por meio da interpretação do fisco é preciso
que o legislador as preveja para que seja possível identificar sua natureza jurídica.
Se não houver vedação em relação à utilização de uma ou outra forma
jurídica, se uma forma não for defesa por lei, julgamos incoerente considerá-la
irrelevante somente sob o ponto de vista fiscal para que ela seja desconsiderada a
fim de que se atinja seu conteúdo econômico.
Com a dinamicidade das relações sociais, destacamos relação uma
específica, franchising, que se difundiu recentemente e em pouco tempo o fisco
almejou sua tributação por meio do ISS, mas sem a necessária previsão legal, sob o
argumento de cabimento de interpretação extensiva do rol do antigo DL 406/68 que
vigeu até 2003. Porém, o Poder Judiciário assentou que tal contrato tem um
delineamento próprio e que não poderia ser equiparado com nenhuma outra
atividade prevista na lista que indicava os serviços a serem tributados, vejamos.
4.2.1 Contrato de franquia – franchising uma nova figura contratual
O contrato de franquia é um contrato peculiar que envolve uma série de
características de outros contratos, como a autorização de uso da marca, a
prestação de assistência técnica e organizacional, treinamento da mão de obra, e a
compra e venda de produtos.
Com a sua difusão na realidade empresarial e com a visualização de uma
atividade econômica potencialmente tributável o Fisco iniciou a exigência de ISS, e
ele se tornou um exemplo concreto da tentativa de desconsideração da forma
própria do negócio para equipará-lo com outros tipos de serviços, tributando pelos
efeitos práticos do contrato de franquia – franchising, que foi disciplinado em 1994
através da Lei 8.955 de 1994, portanto, iremos analisá-lo.
109
Waldírio Bulgarelli (1993, p. 45) na sua obra sobre os contratos mercantis
de edição anterior à vigência da lei de franchising ressaltava a existência de
contratos típicos, com disciplina legal específica, e contratos atípicos sem disciplina
legal.
O autor (1993, p. 520) referia-se ao franchising como uma ―figura
contratual, atípica, decorrente das novas técnicas negocias, no campo da
distribuição e venda de bens e serviços‖, uma cessão do uso da marca com outras
atividades, em um determinado território.
Orlando Gomes (1998, p. 467) designa com a palavra franchising a
―operação pela qual um empresário concede a outro o direito de usar a marca de
produto com assistência técnica para a sua comercialização, recebendo em troca,
determinada remuneração‖.
E nesse diapasão é o art. 2º da Lei 8.955/94 que dispõe sobre a
caracterização do contrato analisado:
Art. 2º. Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício
Fran Martins (2010, p. 441) analisando essa nova modalidade contratual
ressalta a existência do franqueador, uma empresa concedente que dispõe da
comercialização de seu produto e recebe pagamento em troca – taxa de filiação e
percentagem sobre as vendas (royalty), e do franqueado, outra empresa, que recebe
a permissão para dispor da marca e da técnica.
A dificuldade após o surgimento de tal modalidade empresarial foi saber
como tributá-la, já que era uma atividade econômica lucrativa e em expansão. Tal
pagamento recebido pelo franqueador não se refere à comercialização em uma
mercadoria, não incidindo, assim, o ICMS.
Porém, o contrato de franquia não se trata de mera assistência técnica ou
serviços publicitários que um presta ao outro, e o franqueado não é filial do
franqueado e também não é apenas o fornecimento de bens e serviços para
comercialização. O contrato compreende prestação de serviço e distribuição de
produtos, é um contrato híbrido, bilateral, oneroso e de execução continuada que
110
atualmente, por ter disciplina legal, tornou-se um contrato típico (MARTINS, 2010, p.
445).
O Fisco então sob o argumento de que o referido contrato era uma
locação de bens móveis, desconsiderando o contrato de franquia, tributava os fatos
efetuando o lançamento de ISS, utilizando interpretação extensiva das atividades já
previstas na lista das hipóteses de incidência do referido imposto.
No entanto, por ser um contrato peculiar, uma situação diferente das que
estavam previstos no DL 406/68, o contrato de franquia não sofria incidência do
imposto e a jurisprudência do STJ, com firme apoio doutrinário, consolidou tal
entendimento.
Somente após a previsão da referida modalidade contratual – franchising
– na nova lei do ISS, LC 116/2003, no anexo que contém o rol de serviços – item
17.08 é que o STJ passou a aceitar a tributação.
Assim, a jurisprudência era pacífica em decidir pela não incidência do
imposto, rejeitando a tentativa do Fisco de enquadrar tal o contrato de franquia sob o
rótulo de locação de bem móvel. Vejamos:
RECURSO ESPECIAL - CONTRATO DE FRANCHISING - NÃO INCIDÊNCIA DE ISS - PRECEDENTES. "O contrato de franquia não se confunde com nenhum outro contrato, porquanto possui delineamentos próprios que lhe concederam autonomia. Ainda que híbrido, não pode ser configurado como a fusão de vários contratos específicos" (voto-vista proferido por este signatário no julgamento do REsp 189.225/RJ, in DJ de 03.06.2002). Dessa forma, o contrato de franquia não pode ser qualificado como uma espécie de contrato de locação de bem móveis, consoante entendeu a Corte de origem, pois que configura um contrato complexo, autônomo e não subordinado a nenhuma outra figura contratual. Assim, "em obediência ao princípio tributário que proíbe a determinação de qualquer tipo de fato gerador sem apoio em lei, não incide o ISS sobre as atividades específicas do contrato de franquia" (REsp 189.255/RJ, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 03.06.2002). Recurso especial provido (Resp 403.799-MG Rel. Min. Francilli Netto, jul. 19.02.2004 e pub DJ 26.04.2004) (grifos nossos).
A inclusão do item – franquia – teve sua constitucionalidade atacada por
meio do RE 603.136, sob o fundamento de que a atividade fim não é prestação de
serviço, e a atividade meio – franquia, não pode ser tributada separadamente, pois
não é abrangida pelo conceito constitucional de ―serviço‖. O RE teve repercussão
geral reconhecida, mas ainda não foi decido.
Partindo da unidade do direito e da ciência do direito, da concepção de
ramificação em disciplinas apenas para fins didáticos que facilitam a aprendizagem,
111
aderimos à doutrina de Ruy Barbosa Nogueira. Nesse sentido, nos parece correta a
distinção de situações elencada pelo autor.
Nesse sentido também é a doutrina de Heleno Taveira Tôrres (2003, p.
50) que afirma que ―não se pode deixar de reconhecer ao legislador tributário
autonomia de qualificação, nos limites do quanto o ordenamento lhe autorize‖.
O direito tributário pode modificar e adaptar por lei os institutos privados
para adequá-los aos seus interesses, desde que respeite os limites constitucionais,
principalmente as regras de imunidades, de competência e os princípios.
Em sentido contrário, Hector Villegas (1980, p. 52) destaca que a
possibilidade de desconsideração das formalidades dos contratos e negócios
jurídicos é a primordial consequência do caráter coativo do tributo. Entende que a
vontade das partes é condicionante das consequências jurídicas de direito privado,
mas não interfere no reflexo dos efeitos jurídicos tributários, ao passo que o Estado
somente se vincula à intenção de fato das partes.
Para Villegas (1980, p. 59) a independência do direito tributário frente ao
direito civil se dá pelo ―princípio da realidade econômica‖ que ―explica porque a
hipótese condicionante tributária descreve uma situação fática de substância
econômica e, não, um ato jurídico de conteúdo negocial, ou negócio jurídico‖.
Se tal doutrina prevalecesse na jurisprudência brasileira, a alteração
legislativa – inclusão da atividade ―franquia‖ da Lei do ISS – teria sido desnecessária
para que se pudesse tributá-la. Felizmente, não é o que prevalece, e isso nos
levando ao entendimento de que o Fisco não pode desconsiderar a forma, caso ela
seja verídica, para interpretar extensivamente as condutas praticadas para realizar o
lançamento com base em outra conduta.
Nesse sentido, entendemos legítima a decisão de não tributar o contrato
de franquia com o imposto sobre serviços por ausência de fundamento legal, já que
tal contrato não estava previsto na norma geral e abstrata do ISS. Tal decisão levou
o Poder Legislativo a incluir o franchising dentro das hipóteses de incidência
tributária.
Atualmente a teoria do abuso das formas na Alemanha consta no § 42 do
Abgabenordnung – AO (Código Tributário de 1977) e Gerd Willi Rothmann (2014, p.
23) afirma que pela dificuldade de aplicação da norma, a tendência naquele país é
oposta a que se observa no Brasil. O autor enfatiza que o legislador alemão está
112
reduzindo a aplicação do dispositivo mesmo com a persistência de autoridades
fiscais e alguns doutrinadores em defendê-la veementemente.
Acreditamos que a utilização da teoria da adaptação das formas jurídicas
não pode extrapolar os negócios artificiosos e fraudulentos, que devem ser
desconsiderados para que vigore o negócio real. Dessa forma, o contribuinte pode
optar por negócios jurídicos que sejam tributariamente menos onerosos, a elisão
fiscal um direito do contribuinte, que não é obrigado a pagar o máximo de tributo que
ele pode, mas sim, é obrigado a pagar o tributo que a lei determina.
4.4.3 Violação da justiça fiscal: princípios da igualdade e da capacidade contributiva
Dos argumentos que combatem a elisão tributária, um tem ganhado força
por envolver princípios fundamentais da Constituição brasileira: a violação da justiça
fiscal e dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
Sob esse enfoque de violação da justiça fiscal, o contribuinte ao diminuir
sua carga tributária, ainda que licitamente, fere a justiça fiscal, pois ao possuir
capacidade econômica, deveria ser tributado igualmente aos outros contribuintes,
porém ele não é. Tal argumento considera a repercussão econômica da elisão fiscal
e o seu impacto na arrecadação tributária.
Além de destacar os efeitos econômicos da elisão, o fundamento de
violação da justiça fiscal também tenta coibir os aspectos negativos da conduta
elisiva e os seus desequilíbrios concorrenciais já que o contribuinte que consegue
diminuir seu ônus tributário consegue reduzir o preço repassado ao consumidor.
Em Seminário Internacional sobre elisão tributária realizado em 2001 em
Brasília, o então Secretário da RFB – Receita Federal do Brasil Everardo Maciel
(2002, p. 11) colocou como questão central do evento os seguintes
questionamentos:
E a questão central é esta: a elisão fiscal tem limites? A elisão fiscal é um instituto que aproveita a justiça fiscal? Podemos ter a possibilidade de a própria lei estabelecer situações de desvantagens competitivas entre contribuintes em virtude de um maior ou menor conhecimento daquele contribuinte diante da lei?
113
A teoria da violação da justiça fiscal envolve dois princípios basilares do
sistema jurídico tributário brasileiro: a igualdade tributária e a capacidade
contributiva, que muito embora sejam conexos, não são equivalentes e não se
confundem.
Essa teoria alega que a prática da elisão fiscal implica na transgressão à
justiça tributária, por desigualar contribuintes que possuem a mesma condição
econômica e poderiam contribuir igualmente com os gastos públicos. Para confirmá-
la, ou infirmá-la, é necessário que apure o conteúdo da igualdade tributária e da
capacidade contributiva.
4.4.3.1 Princípio da Igualdade tributária
A elisão fiscal desiguala os contribuintes? Ela privilegia
indiscriminadamente o contribuinte que a pratica? Os demais contribuintes ficam
prejudicados quando um realiza a conduta elisiva? Ao obter uma economia
tributária, licitamente, a pessoa interfere no tratamento isonômico que o Fisco deve
promover entre todos os contribuintes?
Indiscutivelmente a igualdade é um princípio fundamental inato à própria
forma de governo adotada pelo Brasil, republicana e está prevista nas Constituições
brasileiras desde 1824. Mas o que impõe a igualdade? Qual seu reflexo no
relacionamento entre o Fisco e os contribuintes?
Atualmente a igualdade está expressa na Constituição Federal de 1988
em vários artigos, mas o dispositivo que mais a enfatiza é o art. 5º, caput, CF/88:
―Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes‖.
Além da norma insculpida no caput do art. 5º, ela está prevista em vários
outros dispositivos reforçando a intenção do Constituinte de protegê-la e efetivá-la. A
Constituição não só iguala as pessoas, mas também as desiguala quando
necessário, como, por exemplo, no art. 7º, incs. XVIII e XIX, em que é
expressamente previsto o prazo de duração da licença maternidade de cento e vinte
dias, enquanto o prazo da licença paternidade deixa ao critério da lei.
114
Também prevê tratamento desigual no art. 151, inc. I CF/88 ao vedar
tributação não uniforme, exceto pela concessão de incentivos fiscais destinados a
promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes
regiões do País.
José Afonso da Silva (2010, p. 214) destaca dois aspectos da igualdade:
igualdade formal, perante a lei, aquela que implica que todos sejam submetidos
igualmente à lei geral e abstrata; e igualdade na lei, que impõe a inexistência de
distinções não autorizadas constitucionalmente.
Celso Antônio Bandeira de Melo (2012, p. 9) leciona que o alcance do
princípio da igualdade não se limita ao tratamento igual das pessoas, ele
fundamenta principalmente que a própria lei tem que ser editada de forma a
promover a isonomia.
Mas para Celso Antônio Bandeira de Melo tal enunciado é
excessivamente genérico e muito embora seja essencial a noção aristotélica (1991,
p. 101) de que ―se não são iguais, não receberão coisas iguais‖, ela não é suficiente.
Ainda que das lições de Aristóteles já se destacasse a igualdade justa
como a igualdade proporcional, ainda se fazem imperativas as seguintes perguntas:
Quem são os iguais e quem são os desiguais? E qual o critério distintivo que
autoriza a lei dar tratamento jurídico diferente?
Ao iniciar a resposta de tais questionamentos sobre quando a lei poderá
diferenciar Melo (2012, p. 17) afirma que
as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.
E adverte ainda o autor (2012, p. 22) que a existência da correlação
lógica entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico distinto deve ser
apurada não apenas abstratamente, mas também no caso concreto.
Alexandre de Moraes (2008, p. 36) destaca que as diferenciações
somente são vedadas se forem arbitrárias e absurdas, pois as diferenciações
justificadas são decorrência do próprio conceito de justiça, almejando com a
distinção a equiparação.
115
Direcionada tanto ao legislador, quanto aos aplicadores, a igualdade é
―signo fundamental da democracia‖ (SILVA, 2010, p. 211). Aos legisladores cumpre
editar leis que adequem devidamente o tratamento dos iguais igualmente e dos
desiguais desigualmente. E aos aplicadores, v.g., a Administração Tributária no
exercício de suas funções deve, também, aplicar a lei de forma igualitária.
A igualdade, ao irradia efeitos na tributação, estipula que os contribuintes
não podem receber tratamentos distintos pelo Fisco. A distinção deve,
necessariamente, ser justificada e deve haver uma correlação lógica entre o fator
que impôs a distinção das pessoas e o tratamento recebido.
Então voltamos a nos questionar: a prática da elisão tributária e obtenção
da economia fiscal faz surgir tratamento distinto pelo Fisco aos contribuintes? Caso
positivo, há algum critério distintivo que justifique a situação? Vejamos as
implicações da igualdade tributária.
José Afonso da Silva (2010, p. 221) assenta que a igualdade tributária
entrelaça-se com a justiça fiscal, justiça distributiva e a repartição do ônus tributário,
tendo assumido duas vertentes doutrinárias: as teorias subjetivas e a teoria objetiva.
As teorias subjetivas remetem ao princípio do benefício pelo qual a carga
fiscal deve ser distribuída conforme a fruição dos serviços e benefícios disfrutados
da atividade governamental, que apenas agrava a desigualdade e conduz a real
injustiça (SILVA, 2010, p. 221).
Essas teorias, subjetivas, também compreendem o princípio do sacrifício
igual que exige a contribuição do indivíduo sempre que o Estado tiver custos em
favor dos particulares e assim ―cada contribuinte suporta um sacrifício igual ao
suportado por qualquer outro como consequência do pagamento do imposto‖. Esse
princípio também conduz a situação de injustiça diante da imprevisibilidade dos
contribuintes que se beneficiarão com a atividade governamental (SILVA, 2010, p.
221).
Acreditamos que os critérios de sacrifício e benefício não são critérios
plausíveis para formação de um parâmetro da igualdade tributária, pois a simples
divisão igual das despesas públicas entre os contribuintes agravará excessivamente
uns em detrimento dos outros, assim como também há inviabilidade prática de saber
quem gozou de mais benefícios disponibilizados pelo Governo.
116
Já a teoria objetiva, assevera Silva (2010, p. 221), refere-se ao princípio
da capacidade contributiva que impõe a divisão da carga tributária segunda a
capacidade econômica dos contribuintes.
É comum a identificação do princípio da igualdade tributária com o
princípio da capacidade contributiva. Porém, os conteúdos de ambos os princípios
não são coincidentes, muito embora sejam inter-relacionados. Faremos a análise do
princípio da capacidade contributiva e sua distinção da igualdade no próximo tópico.
O art. 150, inc. II da CF expressamente determina a proibição de
tratamento diferente entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: III - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
Sobre o início da redação do inc. I do art. 150 CF, cumpre anotar, ainda,
que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituem o tratamento
dos contribuintes por meio de lei, através da lei e segundo a lei. Os entes
competentes para legislar em matéria tributária não podem instituir leis
discriminatórias sem que se atenha aos critérios constitucionais, assim como os
aplicadores não podem aplicar a norma violando a igualdade.
Renato Lopes Becho (2014, p. 412) esclarece que por ―situação
equivalente‖ deve-se entender a situação econômica, já que é sobre ela que o
tributo vai incidir.
Diante da utilização da situação econômica dos contribuintes como
parâmetro para aferir a relação de igualdade entre uma pessoa que pratica a elisão
e outra que não pratica, podemos concluir que de fato, ambas serão tratadas de
forma distinta pelo Fisco: a pessoa que praticou a elisão será tributada menos que a
outra.
Mas o tratamento desigual, a tributação diferente dos contribuintes que
estão na mesma situação econômica, é justificável por algum favor discriminatório
apto a legitimar tal discrímen? A prática da conduta elisiva por um contribuinte é uma
fator hábil a permitir a diferenciação? Ou a conduta elisiva não pode justificar tal
desigualdade?
117
O entendimento de que é ilegítima a diferenciação da tributação entre o
contribuinte que realizou a conduta elisiva e o outro que não praticou, refletiria na
possibilidade do Fisco de interpretar as leis tributárias pelos critérios econômicos, ou
seja, ao construir a norma jurídica que obrigará o contribuinte a pagar o tributo, o
Fisco poderia interpretar economicamente a hipótese de incidência.
Acreditamos que existe o fator discriminatório apto a permitir a distinção
dos contribuintes. Tal fator é elisão tributária, a não realização intencional do fato
imponível ou a diminuição de suas proporções econômicas que implicará na redução
do quantum do tributo.
Não aceitamos que haja interpretação econômica, extensiva ou analógica
das hipóteses de incidência tributária para que o tributo alcance os negócios
jurídicos não previstos como fato gerador, ainda que estes possuam efeitos
econômicos iguais aos que estão previstos na lei tributária.
A prática da conduta elisiva impõe ao Fisco a tributação diferente de
contribuintes que se encontram na mesma situação econômica, ela é um fator
discriminatório apto a tal façanha distintiva, fundada na impossibilidade de tributação
por interpretação econômica, extensiva ou analógica.
O princípio da isonomia não é violado com a elisão tributária por haver
fundamento que justifique o tratamento diferente. Mas, a análise da isonomia, uma
questão comparativa entre contribuintes não deve ser confundida com a análise da
capacidade contributiva, a situação do próprio contribuinte relativamente à sua
condição econômica.
4.4.3.2 Princípio da capacidade contributiva
A capacidade contributiva é um padrão de referência que a Constituição
impõe para a tributação tendo em vista a promoção da justiça fiscal, segundo o qual,
os impostos, quando possível, observarão a capacidade econômica das pessoas.
Pelo dever de solidariedade da construção de uma sociedade livre e justa,
quando houver capacidade econômica, haverá aptidão para contribuir com os gastos
públicos.
118
Será o princípio constitucional da capacidade contributiva uma
autorização para o Fisco tributar segunda a situação econômica do contribuinte? Se
tal questão for verdade, há uma drástica redução das hipóteses de realização de
elisão tributária, vez que o Fisco poderia tributar a capacidade econômica, utilizando
métodos para apurar a realidade econômica dos fatos, atos e negócios, ainda que
estes tenham o objetivo de economia tributária.
O Fisco sempre deverá tributar quando houver capacidade econômica, ou
o Fisco somente pode tributar se houver capacidade econômica?
Como asseveramos no início deste tópico, a capacidade contributiva,
muito embora guarde relação com o princípio da isonomia, não se identifica com
este. É equívoco afirmar que a capacidade contributiva equivale à igualdade no
âmbito do direito tributário, como o faz Hector Villegas (1980, p. 87). Se assim fosse,
o art. 145, § 1º da CF seria esvaziado e despiciendo.
A Constituição dispõe o seguinte, enfocando a capacidade econômica do
contribuinte:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: § 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Marco Aurélio Greco ensina que esse princípio historicamente previsto em
1946 na Constituição do Brasil e em 1947 na Constituição da Itália perdurou muito
tempo sem aplicação.
O princípio da capacidade contributiva, previsto pela primeira na
Constituição do Brasil de 1946, foi retirado do texto constitucional pela Emenda
Constitucional n. 18/65 que criou e estruturou o Sistema Tributário Nacional.
Posteriormente foi reinserido na Constituição de 1988.
Marco Aurélio Greco (1998, p. 45) destaca que somente na década de 60
do século passado a capacidade contributiva começou a ser estudada e inicialmente
era aplicada com uma versão negativa, refletindo a impossibilidade de tributação
onde não houvesse capacidade contributiva, para se resguardar o mínimo
existencial. Num segundo momento, a discussão passou a abordar um caráter
119
positivo do princípio, pelo qual onde houvesse a capacidade contributiva a lei
tributária deverá alcançá-la.
Greco (1998, p. 46) questiona que se esse é um princípio geral do direito
tributário e não está incluso nas limitações ao poder de tributar, ele seria pré-
requisito à legalidade, ou a legalidade seria pré-requisito dele? A ―capacidade
contributiva teria uma feição estruturante do sistema, dentro da qual (estrutura) a
legalidade iria condicionar a ação do Fisco, ou seria o inverso?‖.
O autor (ibid, p. 47) afirma que o legislador deve atingir isonomicamente a
capacidade contributiva, fazendo com que todas as manifestações de riquezas
sejam alcançadas pelo mesmo tributo, mas a captação da manifestação pode ser
feita a partir da vontade da lei, o que o tributo visa atingir.
Dessa forma, o autor julga não estar fugindo da legalidade, pois a
intenção legal estará sendo o referencial para a análise e verificação das situações
de existência da capacidade econômica para se tributar o fato, isso seria a busca da
plena eficácia da lei tributária.
Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 26), referindo-se ao art. 202 da CF de
1946 que também previa o mesmo princípio, destaca a natureza jurídica da
capacidade contributiva ao afirmar que essa norma não é dirigida diretamente ao
intérprete, mas sim ao legislador que instituirá tributação proporcional. Nogueira
(1965, p. 26) afirma que ―em nosso sistema se presume, pois, que a lei já foi
elaborada considerando esses fatores e portanto, em princípio, resta aplicá-la, a não
ser que contenha vício de inconstitucionalidade‖.
Aqui cumpre destacar que o mandamento constitucional não se destina
apenas ao legislador, mas também aos aplicadores, principalmente o Poder
Judiciário que pode realizar controle de legalidade e de constitucionalidade sob a
ótica desse princípio.
Para Ricardo Lobo Torres (2000, p. 222) esse princípio ético-jurídico
representa uma ―equação axiológica‖ entre a liberdade sob o enfoque do mínimo
existencial e o confisco.
Com entendimento semelhante ao de Ricardo Lobo Torres, Renato Lopes
Becho (2014, p. 413) ensina que o princípio da capacidade contributiva determina a
cobrança de tributos de contribuintes que possam pagá-los sem sacrifício
desmedido, sendo decorrência tanto do princípio republicano, quanto do princípio da
justiça.
120
Renato Lopes Becho em análise do relacionamento entre a igualdade
tributária e a capacidade contribuinte traça distinções que julgamos imprescindíveis
para a compreensão do real conteúdo da capacidade contribuinte. O autor (BECHO,
2014, p. 418) afirma que enquanto a igualdade requer um elemento comparativo,
para se aferir a capacidade contributiva esse outro elemento, o parâmetro, é
desnecessário, pois o que estará em análise são as características do próprio
contribuinte.
A capacidade contributiva, então, é um limite mínimo da igualdade tributária, demonstrando qual o espaço que o legislador não pode violar, ao tributar os contribuintes, sob pena de inviabilizar, em análise sociológica, sua manutenção. A partir daí, o princípio da igualdade tributária reina, em busca do equilíbrio entre os contribuintes, sempre quanto ao grau de sacrifício econômico suportado pelo recolhimento de tributos (BECHO, 2014, p. 405).
Ponto relevante no conteúdo desse princípio é saber como é feita a
apuração desse limite mínimo, da parcela mínima do patrimônio que garante a
subsistência do contribuinte com dignidade, ou seja, como saber qual é a
capacidade contribuinte de cada pessoa. Apura-se a capacidade contributiva pelas
circunstâncias pessoais do contribuinte, tendo natureza subjetiva ou pelos signos
presuntivos de riqueza fixados na lei, com natureza objetiva?
Na linha de Renato Becho (2014, p. 424) e também de Roque Carrazza
(2012, p. 103), entendemos que a capacidade contribuinte tem natureza objetiva, a
lei tributária elege hipóteses de incidência que apresentam uma presunção de
riqueza. A ―lei deve tratar de modo igual os fatos econômicos que exprimem igual
capacidade contributiva e, por oposição, de modo diferenciado os que exprimem
capacidade contributiva diversa‖ (CARRAZZA, 2012, p. 101).
Destacamos as palavras de Regina Helena Costa (1993, p. 41) sobre o
relacionamento do princípio da legalidade e o princípio da capacidade contributiva:
―É a lei, pois, que vai estabelecer as hipóteses de incidência dos impostos,
observadas as regras-matrizes já colocadas pela Constituição, sempre atendendo
àquela ideia de que a tributação deve relacionar-se com a riqueza dos particulares‖.
Concluímos que o princípio da capacidade contributiva, juntamente com a
legalidade, são limitações complementares ao poder de tributar. A capacidade
contributiva limita o alcance do conteúdo da norma jurídica, da lei, limita a
121
substância do tributo, o quantum a lei poderá tributar, resguardando o mínimo
existencial das pessoas.
A consideração isolada da capacidade contributiva, ou sua
supervalorização, pode levar ao entendimento de que ao intérprete, no momento
exacional, de lançamento do tributo, cumpre a graduação o quantum do tributo ou a
eleição das situações que exprimem riqueza e que, portanto, devem ser tributadas.
A segunda parte do dispositivo 145 § 1º da CF reafirma a necessidade de
observação da lei para a identificação da capacidade econômica ao afirmar que é
―facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte‖.
Talvez essa parte final do dispositivo rebata o argumento de Marco
Aurélio Greco de que a capacidade contributiva ―precede‖ à lei. Verificamos, ainda,
que por esse texto constitucional que o Fisco ao investigar a capacidade econômica
das pessoas, identificando o patrimônio, rendimentos e atividades, deve não apenas
está limitada aos termos da lei, como também respeitar os direitos individuais, como
por exemplo, o direito à liberdade negocial e a autonomia privada.
O Fisco somente pode tributar se houver lei instituidora de tributo, e a lei
somente pode tributar se houver capacidade contributiva, assim considerada, a
riqueza excedente ao mínimo necessário para a existência e manutenção digna das
pessoas.
A elisão tributária viola o princípio da igualdade tributária e o princípio da
capacidade contributiva? Temos, então, duas questões diferentes. A primeira é uma
análise comparativa entre dois contribuintes, se estão, ou não, na mesma situação;
e a segunda é a verificação individual da tributação de um contribuinte em relação
com sua própria capacidade econômica.
Ao afirmar que a elisão tributária põe em cheque o princípio da tributação
isonômica, os autores devem observar que a isonomia possui duplo objetivo:
propiciar garantia individual contra perseguições e contra favoritismos (MELLO,
2012, p. 23).
O conflito que circunda a possibilidade de elisão tributária diante dos
princípios da igualdade e da capacidade contributiva pode ser resumido ao do
choque entre a liberdade de autodeterminação e a obrigação de contribuir para os
gastos públicos.
122
Então se questiona: o agente que por meios lícitos esquiva-se da
realização de fato hipoteticamente previsto na lei tributária – ressalta-se que o fato
imponível não ocorreu – foi tratado de forma distinta pela lei? Ou melhor, os outros
contribuintes foram impedidos de praticar a conduta elisiva? Parece-nos que não,
pois todos os contribuintes podem praticar a mesma conduta.
O Fisco, ao notar que os contribuintes estariam praticando determinada
conduta propositadamente para obter a economia tributária, deveria acionar o Poder
Legislativo para promover a alteração da hipótese de incidência tributária para incluir
a conduta elisiva ou então para vedá-la.
Face à constatação de que os contribuintes que não praticaram o fato
imponível não pagarão o tributo, surge um argumento econômico de que estes
contribuintes onerariam demasiadamente os outros, que não praticaram a conduta
elisiva.
Diante desse argumento de sobrecarga tributária dos contribuintes que
não praticam o fato elisivo, outro questionamento se impõe: o valor do tributo que
seria devido caso não tivesse ocorrido a conduta elisiva é imputado para os outros
contribuintes? Esses outros contribuintes serão onerados tributariamente pela
prática da elisão por um determinado agente? Também nos parece que não.
Ainda que o Fisco estipule suas metas fiscais arrecadatórias, elas são
apenas previsões e estimativas, não são vinculantes. Um contribuinte não será
obrigado a pagar mais tributo, em função da diminuição da arrecadação geral.
Já o argumento de que a prática elisiva burla o princípio da capacidade
contributiva no sentido positivo exposto por Marco Aurélio Greco tem fundamento,
pois se considerarmos isoladamente a capacidade econômica do fato tributável, é
possível que ela apareça nos fatos ou negócio elisivos, porém sem a qualificação
tributária necessária.
Antônio Roberto Sampaio Dória (1977, p. 120) não nega que a elisão
tributária frustra o princípio da capacidade contributiva, mas volta a atentar para o
ponto crucial: somente o legislador pode proibir a conduta específica do contribuinte,
ou determinar a tributação daquele meio escolhido pelo agente, nesse último caso
terá que estipular todos os critérios mínimos para a incidência tributária.
O que Sampaio Dória (1977, p. 123) propõe, já que a obrigação tributária
é ex lege, é que o Fisco ao perceber uma margem, uma brecha legal sob a qual se
funda a conduta elisiva do agente, trate de propor ao Legislativo que suprima tal
123
lacuna legal, atendendo aos ditames constitucionais da legalidade e da estrita
legalidade tributária. E se após a constatação da lacuna na descrição legal do fato
gerador, o legislador permanecer inerte é porque ele assim deseja ou ele é
negligente.
Para o autor (DÓRIA, 1977, p. 121) isso evitaria que o julgador ou
administrador criassem ou ampliassem os ―tipos‖ tributários, as hipóteses de
incidências, o que poria em cheque a divisão de competência tributária fixada
constitucionalmente.
Na tensão entre a segurança e a certeza jurídica (asseguradas pela
legalidade) e a capacidade contributiva e a igualdade, devem prevalecer as
primeiras quando se tratar de imposição tributária.
Antônio Roberto Sampaio Dória (1977, p. 122) faz uma crítica de que
―ponderada a perda da arrecadação originada da prática de todas as modalidades
de evasão, a significação prática da elisão, diante dos princípios da capacidade
contributiva e igualdade, é drasticamente reduzida‖.
O Estado não pode tributar porque precisa aumentar a arrecadação e
porque há manifestação de riqueza na sociedade, isso seria retroagir a tempos
sombrios. No Estado Constitucional de Direito, é preciso que haja autorização
legislativa e que essa autorização seja compatível com as normas constitucionais.
A jurisprudência rejeita a tributação quando ela é expressamente fundada
unicamente na capacidade econômica e na manifestação de riqueza, vejamos:
TRIBUTÁRIO - ISSQN - CONTRATO DE ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO X CORRETAGEM - IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO MERAMENTE ECONÔMICA - REPERCUSSÃO JURÍDICA DO TRIBUTO - AUSÊNCIA DE NORMA EXPRESSA - LEGITIMIDADE - ART. 333 DO CPC - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA - SÚMULA 282/STF. (...) 4. Inexiste o fato jurídico tributário de corretagem ou agenciamento na intermediação por associação médica em defesa dos interesses de seus associados, ainda que cobrada sobretaxa dos associados para reembolso dos custos da representação. 5. O elemento econômico, ainda que importante para a aferição da capacidade contributiva, não prevalece frente à forma jurídica empregada, salvo se evidenciada pelo Fisco a fraude, o dolo ou a simulação das partes no negócio jurídico. 6. Recurso especial conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp 1119405/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/03/2010, DJe 26/03/2010).
124
Reproduzimos as conclusões da IV Jornada Luso-Hispânica-Americana
de Estudos Tributários, ocorrida em Portugal, em de 1970, assim expostas por Fábio
Fanucchi (1979, p. 302):
pressupondo o fenômeno da elisão problemas jurídicos, sociais e econômicos relativos às finalidade e aos valores que o ordenamento positivo deve tutelar, o princípio da legalidade e a necessidade de segurança jurídica sobrepõem-se ao ideal de equidade tributária.
Considerando o princípio da capacidade contributiva, pode não ser justo
do ponto de vista fiscal que um contribuinte pague determinado tributo e outro na
mesma situação deixe de pagar esse determinado tributo. Mas se considerarmos
que a conduta dos dois contribuintes foi diferente, um preencheu os aspectos
qualificativos da hipótese de incidência e o outro não, podemos compreender porque
um deve pagar o tributo e outro não.
Também não é justo que um contribuinte seja tributado porque praticou
um fato parecido ou similar ao fato jurídico tributário, pois ao afirmamos a similitude
estaremos já afirmando a própria diferença.
Além do mais, isso abriria precedentes para arbítrio e subjetivismo na
tributação, que deixaria ao critério do agente fiscal a determinação de ter ou não
capacidade contributiva segundo a manifestação econômica que a lei tributária
pretendeu alcançar com a descrição abstrata do fato tributário.
4.4.4 Conclusões sobre as teorias antielisivas
Parece-nos que os três principais argumentos – interpretação econômica,
abuso de forma e a violação da justiça da fiscal – que tentam rebater a conduta
elisiva do contribuinte são intimamente ligados.
Johnson Barbosa Nogueira (1982, p. 18-23) reúne várias teorias que
reprimem a elisão tributária, como vertentes da teoria da interpretação econômica,
dentre elas: a busca da substância econômica; a utilização de conceitos próprios do
direito tributário; a teoria do abuso de forma do direito privado; a teoria do abuso de
direito e a teoria dos tipos.
125
Assim também entende Ricardo Lobo Torres (2013, p. 27-40), aduzindo
que a variação terminológica da teoria antielisiva depende do local de sua aplicação,
que vai assumindo contornos próprios em cada país, como no caso da Alemanha,
que se dá pelo combate ao abuso das formas jurídicas, na Espanha existe a
vedação de fraude à lei, já na Argentina funda-se a vedação da elisão na
desconsideração da personalidade jurídica, na França combate-se pelo abuso de
direito e nos Estado Unidos a teoria assume os contornos da teoria do propósito
negocial.
Todas essas doutrinas são utilizadas no Brasil, com maior ou menor
intensidade e de forma mais ou menos explícita, para evitar a elisão tributária.
O Fisco, ao identificar que a forma negocial adotada foi forjada, falsa,
incompatível com a transação real, caracteriza a simulação fiscal e
consequentemente a nulidade do negócio.
Nesse caso, a tributação incidirá sobre o negócio real que deve ser um
fato imponível, e para trazê-lo à tona é possível utilizar a interpretação econômica ou
a teoria do abuso da forma, mas isso porque o outro negócio não existia, e assim
não tinha validade jurídica e ainda escondia outro negócio que produziu efeitos
tributários (167, CC, c/c art. 109, c/c art. 118 do CTN), nesse caso não há o que se
falar em elisão tributária, mas sim evasão tributária.
Caso o contribuinte pratique um ato ou um negócio jurídico de forma
anormal, atípica, que evite a incidência da lei tributária ou de forma que ela incida,
mas ocasione ônus mais brando, o Fisco autua o contribuinte, ainda que tal conduta
tenha sido lícita, entabulando-o em uma das teorias antielisivas.
O legislador tributário não captou a situação praticada, mas o Fisco
fundamenta a tributação na teoria da interpretação econômica, para estender os
efeitos da tributação sobre os fatos não previstos na lei tributária ou desconsidera a
forma adotada e considera outra que ele entende ser a real.
Quando configurada a elisão tributária, aquela realizada com as lacunas
legais e através condutas lícitas, o Estado no intuito meramente arrecadatório tenta
justificar a sua ilegitimidade e necessidade de tributar os efeitos econômicos sobre
os fundamentos da injustiça e da desigualdade para com os outros contribuintes,
invocando a capacidade contributiva.
Assim como Marco Aurélio Greco (2000, p. 20), entendemos que a
abordagem do tema elisão tributária deve ser fundamentada mais em valores, do
126
que em técnicas permitidas e proibidas. Surge uma tensão entre dois princípios
fundamentais do direito: a segurança jurídica e a isonomia.
É desse embate de valores que estamos falamos ao discutir a estrita
legalidade tributária. Não se trata de uma técnica, mas sim de um valor
constitucional: a segurança jurídica e o autoconsentimento do contribuinte na
tributação de seus bens.
Argumenta-se sobre a igualdade e a capacidade contributiva como se
ambas fossem suficientes para a incidência tributária. Mas sabemos que, no
ordenamento jurídico brasileiro atual, isso não é possível. Sobre a tentativa de
autorizar o Fisco a interpretar elasticamente a hipótese de incidência tributária,
Alberto Xavier ( 2001, p. 45) aduz que:
É importante salientar que todas as tentativas de agressão direta ou oblíqua ao princípio da legalidade, atrás referidas, têm sido praticadas em nome do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, o que legitimaria não só a preponderância dada ao elemento econômico na interpretação da lei e dos fatos, mas também a correção de desigualdades decorrentes das ―imperfeições‖ e das ―lacunas involuntárias‖ da lei. A justiça dos princípios da igualdade e da capacidade contribuinte conduziu a atrair a simpatia de certos setores da doutrina mais sensíveis ao alcance social dos referidos princípios do que às graves restrições que eles possam (se mal entendidos) introduzir às liberdades individuais.
A tributação justificada exclusivamente na capacidade contributiva e na
igualdade faria o Estado Constitucional retroceder ao Estado de Poder, relatado por
Maquiavel (2004), em que os fins justificam os meios, e sempre que o Estado
necessitar de mais recursos financeiros recorrerá aos ―cofres particulares‖ sem o
consentimento populacional legítimo sob o argumento de que quem pode pagar
tributo tem que pagar tributo, afetando sobremodo a segurança e a previsibilidade da
relação entre o Fisco e o contribuinte.
A interpretação econômica, bem como a doutrina da prevalência da
substância sobre a forma, pode ser utilizada, após a constatação da simulação, para
que o negócio real ocultado seja descoberto e tributado.
As teorias da interpretação econômica, do abuso de forma, prevalência da
substância sobre a forma e o fundamento da justiça fiscal para promover a igualdade
tributária e a capacidade contributiva, não justificam a desconsideração de negócios
válidos, líticos e reais, não simulados, assim como não justificam o alargamento das
hipóteses de incidência tributária através de interpretação do Fisco.
127
4.5 Licitude da elisão tributária
A conduta elisiva reflete o direito do contribuinte de não pagar as
exigências fiscais se não estiverem previstas em lei. É direito do contribuinte a
organização de seus negócios da forma que lhe for menos onerosa possível, desde
que não infrinja nenhuma norma jurídica. Ao praticar a elisão fiscal o fato imponível
não se concretiza.
A convicção da legitimidade da conduta elisiva leva Antônio Roberto
Sampaio Dória (1977, p. 87) a se questionar sobre qual a sua categoria jurídico-
dogmática, concluindo que a elisão enquadra-se como negócio jurídico indireto,
alternativo ao tradicionalmente realizado e qualificado pela lei como fato tributável.
O negócio jurídico indireto é um acordo bilateral verdadeiro no qual as
partes programam e aceitam os efeitos direito e indiretos com ônus fiscal menor do
que outro que normalmente se pratica (SOUSA, 1975, p. 378).
A eleição do negócio alternativo para a realização de uma transação
deve-se à obtenção de resultado análogo ao que se obteria com a forma típica,
porém evitando o regime jurídico tributário.
Heleno Tôrres (2003, p. 165) destaca que a realização de negócio jurídico
indireto – negócio típico com fins indiretos, deve se dar pelas tradicionais regras da
teoria geral no negócio: serão válidos desde que eles preencham os requisitos do
art. 187 do CC: causa legítima, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e
objeto economicamente apreciável.
O art. 187 do CC pode ser visto como uma disciplina ao negócio indireto
elisivo, que pode ter como causa legítima a pretensão de redução dos gastos
tributários, desde que não recaia nas hipóteses do art. 167, CC, ou seja, nas
hipóteses de simulação.
Fixamos assim alguns critérios para a conduta elisiva: inicialmente licitude
e anterioridade da conduta, o que impedirá o acontecimento do fato imponível e o
consequente surgimento da obrigação tributária. Para isso, o negócio deve ser
válido (partes, objeto, forma e causa) a partir de uma interpretação sistemática
constitucional, considerando tanto o direito privado, quanto do direito tributário, pois
128
seria incoerente que um negócio jurídico, ou uma transação empresarial, não
possuísse validade apenas no âmbito do direito tributário.
Esses critérios do negócio jurídico afastam o formalismo exacerbado, mas
fixa requisitos legais e seguros para aferição da oponibilidade dos negócios perante
o Fisco.
Susy Gomes Hoffmann (2013, p. 1087) sistematiza com maior
propriedade os critérios de verificação da regularidade do negócio jurídico, com base
no plano da existência, plano da validade e plano da eficácia, que se atrelam
propriamente à dogmática e ao direito positivo civil, destacando que a finalidade do
negócio é a de que surtam os efeitos pretendidos, não havendo qualquer óbice em
pretender reduzir os gastos tributários.
Pertinente é a qualificação dada à elisão tributária, por Diva Prestes
Malerbi (1984, p. 81), de direito subjetivo público relativo a uma liberdade
constitucionalmente assegurada.
Não obstante, termos encontrado parâmetros teóricos na doutrina que
julgamos condizentes com o direito positivo atual para subsidiar um mínimo de
segurança na legitimidade da prática elisiva, a análise jurisprudencial (administrativa
e judicial) da elisão tributária nos faz pensar que o direito posto hoje é outro. Talvez
pela complexidade das relações jurídicas e pela riqueza das situações práticas
sequer conseguimos captar a distinção terminológica e de tratamento jurídico.
Visualizando essa dissintonia entre a jurisprudência e o direito surge uma
preocupação: no estado em que o tema se encontra (ou que não se encontra) a
única certeza do contribuinte é a tributação, a não tributação é uma hipótese que
dependerá do agente fiscal, do julgador do processo administrativo e depois do
julgador do Judiciário, ou seja, é um risco que ele pode optar por correr.
A elisão é conduta lícita fundada em dois valores fundamentais: (i) a
segurança jurídica, que é refletida pelo direito do contribuinte de não pagar as
exigências fiscais se não estiverem previstas em lei, caso contrário, o Fisco deteria
discricionariedade sobre o lançamento tributário; e (ii) na liberdade, pois o
contribuinte pode organizar seus negócios da forma que lhe for menos onerosa
possível, inclusive sobre o aspecto tributário, desde que não infrinja nenhuma norma
jurídica.
129
4.6 Analogia e elisão tributária
A analogia, conforme exposto no capítulo 1, é um método de integração
do direito para suprimir lacunas que é explicitamente vedado pelo CTN para os
casos de exigência de tributo. No entanto, muitas vezes esse método de integração
é mascarado para possibilitar a tributação.
A analogia consiste em aplicar, a um caso específico, uma norma jurídica
aplicável a outro caso diferente, mas análogo, pressupondo a inexistência de norma
para o caso específico e a semelhança dos casos.
Ezio Vanoni (1932, p. 325) esclarece que o uso da analogia relativamente
às leis tributárias tem sido fortemente combatido, tanto pela doutrina, quanto pela
jurisprudência, mas destaca o autor que, isoladamente, nunca faltaram sentenças
admitindo seu uso.
Para Vanoni (1932, p. 329), a analogia não cria uma nova norma de
direito, apenas revela uma norma indiretamente contida na lei, ou seja, para o autor
a norma decorrente da analogia faz parte da lei e justifica seu uso pela necessidade
de igualdade da tributação e da impossibilidade de completude e perfeição das
normas tributárias, já que é fruto do labor humano.
Rubens Gomes de Sousa (1975a, p. 376) chega a entabular de anátema
a analogia em matéria tributária. O autor do projeto do CTN (SOUSA, 1975a, p. 377)
deixa claro a sua repulsa na utilização da analogia para possibilitar a exigência do
tributo, afirmando que:
A lei pode ter formalmente lacunas, porque o legislador foi incompetente ou infeliz; mas quer seja produto da vontade do legislador, quer seja produto espúrio da sua incompetência ou da sua menor felicidade, a solução é a mesma: o que não está na lei não existe.
O CTN, no capítulo que trata das normas de integração, ao determinar no
parágrafo segundo do art. 108 que ―o emprego da analogia não poderá resultar na
exigência de tributo devido‖, está afirmando que a lei tributária deve tipificar, ou
especificar, o fato para que possa exigir o tributo.
Por tipificar o fato, especificar, estamos nos referindo a previsão legal de
todos os critérios da regra-matriz de incidência tributária, é o que Misabel Derzi
130
(1988, p. 71) denomina com maior propriedade de especificação conceitual. Tal
dispositivo é um reforço à tipicidade fechada e à impossibilidade do Fisco de
interpretar com discricionariedade a hipótese de incidência, para incluir nela
hipóteses de não-incidência.
Discordamos assim de Ricardo Lobo Torres (2000, p. 141) que entende
ser possível a utilização da analogia para especificação e elucidação das zonas
cinzentas e imprecisas existentes no direito tributário, inclusive, para viabilizar a
tributação.
O autor (2000, p. 148) afirma que, em virtude do impasse de ser ou não
possível tal método, há a introdução de solução legislativa que, ―podem retirar o
déficit de legitimidade constitucional da aplicação analógica do direito tributário‖
através do fechamento normativo com cláusulas antielisivas.
Não reconhecemos o impasse destacado por Ricardo Lobo Torres – entre
ser ou não possível o uso da analogia gravosa, pois entendemos firmemente o
ordenamento veda utilização da analogia para compor a regra-matriz de incidência.
Ao reconhecer a possibilidade de utilização da analogia para esclarecer
termo impreciso na lei tributária, como o faz Torres, é preciso reconhecer também
que (i) não há norma para aquele caso e que (ii) irá ser utilizada norma de caso
semelhante, e, portanto, caso diferente. Se não há norma para tributar aquele fato, e
se irá ser utilizada a norma tributária que institui tributo sobre outro fato, isso nos
parece que será tributação sem lei que a estabeleça – tributação analógica.
Alberto Xavier (2001, p. 43) assenta que o raciocínio analógico é inserido
por meios oblíquos através da utilização da doutrina da interpretação econômica na
interpretação do tipo legal.
Pela expressiva rejeição da exigência de tributos através do método
analógico, difundiu-se a interpretação econômica das leis tributárias, que, também,
não foi bem recepcionada pela doutrina e jurisprudência nacionais, optando assim o
Poder Legislativo, instado pelo Fisco, a editar normas gerais antielisivas.
Percebemos que a interpretação econômica e a teoria do abuso de forma,
utilizadas separadamente da doutrina da simulação, são tentativas que visam ao
aumento da arrecadação e que ambas têm em comum a camuflagem da analogia e
da flexibilização da legalidade tributária.
131
Porém, a segurança jurídica e a certeza do direito que inspiram a rigidez
no princípio da legalidade em matéria tributária são garantias constitucionais do
contribuinte, cláusulas pétreas.
A possibilidade de o contribuinte organizar seus negócios com a adoção
das formas que lhe forem mais vantajosas, e que lhe permitam a econômica fiscal,
também é um direito que ele possui. Mas, permitir a interpretação econômica e ou
utilização de meios analógicos para tributar fere não só a legalidade, como também
a própria repartição das competências tributárias, realizada pela Constituição
Federal que se funda na atribuição de fatos e situações tributáveis aos entes
competentes.
O planejamento tributário pressupõe a superioridade da Constituição, que
veda a possibilidade de o legislador tributário alterar livremente o conceito dos
critérios materiais especificados por ela, assim como também, veda a possibilidade
de o intérprete tributário embutir fatos alheios nos conceitos tributários
constitucionais.
Não obstante tais considerações, foi inserido no ordenamento jurídico um
dispositivo específico que autoriza a desconsideração dos atos e negócios jurídicos
para fins de constituição do crédito tributário, conforme se explorará no próximo
capítulo.
132
5 PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E A NORMA ANTIELISIVA BRASILEIRA
Conforme asseverado em diversos trechos no decorrer deste estudo,
existe uma imprecisão terminológica entre evasão e elisão. Em tal confusão foi
agregado o termo ―planejamento tributário‖. Tal imprecisão além de permear a
doutrina, também permeia a jurisprudência que utiliza variavelmente evasão, elisão
e planejamento tributário. Portanto, voltamos a enfatizar a necessidade de distinção
e rigor na denominação de cada um, para evitar a miscigenação dos institutos.
Muito embora o uso da terminologia indistintamente tenha diminuído nos
últimos anos, a jurisprudência administrativa do CARF ainda utiliza, por vezes, a
denominação ―planejamento tributário‖ indistintamente tanto para condutas lícitas,
quanto ilícitas.
A elisão fiscal passou a ser comumente chamada pela doutrina de
―planejamento tributário‖ que é a conduta do agente em licitamente não incorrer nas
hipóteses de incidência tributárias, evitando a ocorrência do fato imponível,
diminuindo o quantum a pagar, ou diferindo o pagamento do crédito tributário.
O planejamento tributário, que não deve ser confundido com qualquer
conduta evasiva, é conceituado por Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 175) como ―uma
espécie de ‗teste‘ preventivo que o operador faz do ordenamento, apreciando os
fatos futuros à luz do ordenamento vigente, numa projeção do ordenamento sobre
atos ou negócios jurídicos que pretende constituir‖.
Colacionamos o conceito de planejamento tributário dado por Susy
Gomes Hoffmann (2013, p. 1079), asseveramos nele, a profissionalização do
planejamento e a aplicação do meio empresarial, voltado para a maior economia:
―postura estratégica na condução das atividades negociais das empresas, para, de
forma lícita, concretizar a organização de negócios e a estruturação de sociedades
de maneira mais econômica, com menor carga tributária‖.
Muito embora se possa fazer uma distinção teórica entre evasão e elisão,
na prática a identificação é difícil. A complexidade e atipicidade das condutas
elisivas chamam a atenção do Fisco e este se empenha em torná-las ilícitas para
evitar a economia fiscal.
Os critérios para a declaração de ilicitude do planejamento, invalidando a
transação são utilizados sem uniformidade e pacificidade, o que dificulta a
133
compreensão do que é possível ou não ser feito pelo contribuinte para obter o
resultado elisivo.
A repreensão da economia tributária, pelo Fisco, extrapolou a utilização
de meios ardilosos e evasivos, passou a ser realizada também quando o contribuinte
utiliza meios juridicamente lícitos. A invalidação dos planejamentos tributários se
fundamenta nas teorias expostas no capítulo 4, como a doutrina do propósito
negocial, a teoria da interpretação econômica das leis tributárias e a teoria do abuso
das formas jurídicas.
Pela rejeição doutrinária que as teorias antielisivas possuem, nem
sempre, tais fundamentos são utilizados de forma expressa nos casos. A solução
encontrada pelo Fisco, para tentar neutralizar a tensão sobre a possibilidade de
invalidar os planejamentos e pacificar o assunto, foi o combate da elisão através de
uma norma geral que amplie sobremaneira os seus poderes de investigação e de
aplicação das normas tributárias, autorizando-o a desconsiderar qualquer negócio
que possa suprimir a ocorrência do fato imponível.
A doutrina (DÓRIA,1977, p. 100) propõe que, para evitar a economia
tributária, é preferível que o Fisco, ao verificar a existência de uma brecha legal que
permita a realização de planejamento tributário, proponha ao Poder Legislativo a
alteração para inviabilizar o desvio da incidência tributária. Tal solução é a mais
trabalhosa para a Administração Tributária, que prefere a implementação de norma
geral que amplie os poderes do Fisco e autorize a desconsideração de atos e
negócios legítimos.
A norma sobre a qual estamos falamos foi inserida em 2001 no CTN,
através da LC 104, que incluiu no art. 116, o parágrafo único, conforme veremos
adiante.
4.1 A Lei Complementar 104 de 2001 – art. 116, parágrafo único do CTN
A doutrina nunca chegou a um consenso sobre a licitude ou ilicitude do
planejamento tributário, nesse debate está inserida questões de arrecadação
tributária e de direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados. O Fisco
sempre repulsou a prática da elisão. Toda a divergência doutrinária foi reacendida
134
com a inclusão do parágrafo único do art. 116 do CTN, norma que ficou conhecida
como ―norma geral antielisiva‖.
A referida norma não é a primeira norma antielisiva, mas é a primeira que
aborda o assunto de forma geral, englobando todos os casos possíveis, sem
especificação.
Outras normas específicas, que inviabilizam o planejamento tributário,
foram incluídas no ordenamento jurídico, à medida que o Fisco notasse a
possibilidade de elisão tributária, ele impulsionava o Legislativo para que editasse
norma pertinente para evitar a conduta elisiva do contribuinte, vejamos o exemplo de
uma delas, no que se refere ao IR – Imposto sobre a Renda.
5.1.1 Normas antielisivas anteriores à Lei Complementar 104/2001
Discorreremos sobre um exemplo de norma antielisiva específica, para
prosseguir, posteriormente, na discussão sobre os efeitos na norma geral antielisiva
no ordenamento jurídico.
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 149) após advertir que a inserção dessas
cláusulas antielisivas, nos ordenamentos jurídicos, é reflexo da rejeição da analogia
gravosa, exemplifica com a legislação do IR, que desde 1985 contém norma que
combate a elisão, assim dispondo o art. 51 da lei 7.450/85:
Art. 51 - Ficam compreendidos na incidência do imposto de renda todos os ganhos e rendimentos de capital, qualquer que seja a denominação que lhes seja dada, independentemente da natureza, da espécie ou da existência de título ou contrato escrito, bastando que decorram de ato ou negócio, que, pela sua finalidade, tenha os mesmos efeitos do previsto na norma específica de incidência do imposto de renda.
Tal dispositivo determina a imposição do IR a qualquer negócio que
tenha, pela sua finalidade, os mesmos efeitos dos negócios previstos na norma de
incidência do IR.
Após a promulgação da CF, também foi editado outro dispositivo relativo
ao IR, art. 3º § 4º da Lei 7.713/88, que dispunha no mesmo sentido do art. 51 da Lei
135
7.450/85, anteriormente anotado. Ambos são normas especificas que autorizam a
incidência do tributo a partir da finalidade e dos efeitos econômicos.
Comentando ambos os dispositivos, Ricardo Lobo Torres (2000, p. 162-
163) afirma que eles ―pela generalidade e abrangência, resvalam para a analogia,
como acontece com qualquer outra cláusula antielisiva‖.
Para Alberto Xavier (2001, p. 85) as normas específicas ou especiais
antielisivas nada mais são do que tipificações a posteriori por lei, ou seja, inclui-se
no âmbito da incidência tributária a conduta – ato ou negócio antielisivo. O autor
(2001, p. 35) refere-se ao artigo 51 da Lei n. 7.450/85 como um tipo funcional em
que a hipótese da norma é caracterizada pela obtenção do próprio fenômeno
econômico. Nesse caso, é ―um recurso legítimo para definir a incidência no imposto
de renda pelos seus efeitos econômicos (dentro dos limites constitucionais de
renda)‖.
Porém, essas são normas específicas de combate a elisão, e Marco
Aurélio Greco (2002, p. 21) expõe as consequências de opção por esse tipo de
norma jurídica ao invés de editar norma geral de combate à elisão:
Quais são as consequências desse caminho? A meu ver, duas consequências não muito positivas. Primeira grande consequência: ao se optar por normas específicas só se regula o futuro, aquela conduta daquela data para os anos subsequentes. Portanto, convalida-se aquela prática no passado, o que significa convalidar distorções econômicas, competitivas, hipótese de uma justiça meramente formal e não substancial. A segunda grande consequência prática das normas específicas é o que se pode denominar de inflação normativa, porque na medida em que se pretende regular especificamente todas as hipóteses que a criatividade humana pode gerar, teremos necessidade de produzir novas normas para novas hipóteses.
E prossegue afirmando Marco Aurélio Greco (2002, p. 21), que essa
inflação normativa gera a desvalorização da lei, pois o legislador vai estar sempre
promovendo a atualização legislativa e isso gerará uma complexidade no sistema
jurídico. Então, a única saída para essa situação é uma norma geral antielisiva, já
que as específicas não são suficientes para coibir a elisão tributária.
A primeira consequência relatada pelo autor – irretroatividade da norma –
se daria tanto com a norma específica, quanto com a geral, basta se lembrar do
princípio da irretroatividade previsto no art. 150, inc. III, ―a‖ da CF. O reconhecimento
de validação das posturas elisivas passadas, é o que deve efetivamente ocorrer,
136
pois, até então, ao contribuinte não havia sido imposta a norma que autorizasse a
incidência tributária.
A segunda consequência, a complexidade normativa, é fruto da própria
complexidade dos fatos e preferimos a constante atualização da lei à possibilidade
de o Fisco deter a competência para poder alargar ou determinar a incidência
tributária.
Concordamos com o entendimento de Antônio Sampaio Roberto Dória
(1977, p. 79) de que a tentativa de obstar a elisão deve ser feita expressamente por
lei e deve, também, restringir a certo campo da tributação especificamente e não de
forma generalizada.
No entanto, a opção do Poder Legislativo não foi a constante vigilância e
atualização do ordenamento jurídico, preferiu a edição de norma geral que
permitisse à Administração Tributária a desconsideração de transações lícitas que
tivessem os mesmos efeitos das condutas previstas nas hipóteses de incidência.
5.1.2 A norma geral antielisiva
Aderindo às teses que lhe são mais favoráveis, o Poder Executivo propôs
ao Poder Legislativo, a inserção da norma geral antielisiva no ordenamento jurídico.
Fato que se deu em 2001, ano em que foi editada a Lei Complementar n. 104,
incluindo o parágrafo único no art. 116, com o seguinte teor:
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
137
O primeiro problema que surge em decorrência do texto desse artigo, foi a
divergência de entendimento entre expressar a vedação da elisão ou a vedação da
evasão tributária.
Tal divergência dá-se pela referência que o dispositivo faz ao negócio
dissimulado, à tentativa de dissimular a ocorrência do fato gerador o que faz com
que alguns doutrinadores entendam que a norma é antievasiva.
Entendendo que o parágrafo único do art. 116 do CTN é norma
antievasiva, segue a doutrina de Paulo de Barros Carvalho (s/d(a), p. 21), que
apesar de pugnar pelo cuidado para que não se amplie a aplicação do dispositivo,
afirma: ―É de ver que referido preceito não introduziu alteração alguma no
ordenamento brasileiro, uma vez que este já autorizava a desconsideração de
negócios jurídicos dissimulados‖.
A doutrina de Alberto Xavier (2001, p. 58) também é no sentido de que o
referido dispositivo consagra norma antievasiva, que combate exclusivamente a
simulação relativa, pois se refere ao negócio dissimulado, que até então não
encontrava fundamento jurídico específico para o direito tributário.
Misabel Abreu Machado Derzi (2002, p. 217) também entende que o
referido dispositivo é específico para combater a ―evasão ilícita‖, já que a ocultação
da ocorrência do fato gerador ou da natureza dos elementos constitutivos da
obrigação tributária viola a lei, constituindo sonegação fiscal.
Se a norma se prestar ao combate da evasão, ela terá alterado para as
relações tributárias a competência para pronunciar a nulidade do negócio simulado,
que, pela regra geral do art. 168, parágrafo único do CC, era do juiz, e passa a ser
do administrador, fato que na prática já ocorria antes mesmo da alteração legislativa,
sem qualquer repressão do Poder Judiciário, como se demonstrou no item 3.2.1.
Mas, a literalidade do texto do parágrafo único do art. 116 do CTN, pode
levar a uma interpretação de que o parágrafo esteja combatendo o negócio
simulado, e assim, esconder um problema maior que não será discutido e
combatido, permitindo a camuflagem da atuação sorrateira do Fisco.
Se o disposto tratasse do combate à simulação, ele deveria preservar o
negócio jurídico que foi dissimulado e não desconsiderá-lo, já que este é o negócio
real que se pretendeu omitir, o que revela uma incoerência. Se a intenção era se
estabelecer uma norma antievasiva no âmbito do direito positivo tributário, o negócio
desconsiderado não seria o negócio dissimulado.
138
Ao iniciar a releitura desse dispositivo, cumpre-nos expor o motivo da
inclusão de tal regra no CTN, segundo item 6, da Mensagem à Câmara dos
Deputados n. 1.459, do então presidente da República, vejamos:
6. A inclusão do parágrafo único ao art. 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito (Mensagem do Presidente da República nº. 1.459 de 7 de outubro de 1999 que encaminha a exposição de motivos do Ministério da Fazenda nº. 820 de 6 de outubro de 1999 publicada no DOCD – Diário Oficial da Câmara dos Deputados de 16 de outubro de 1999, ano LIV n. 171 – 48931).
A intenção do propositor da alteração legislativa, superficialmente
exposta, é combater o planejamento tributário, explicitando a tese da interpretação
econômica dos fatos subjacente por detrás das formas jurídicas.
Se o Congresso recebeu a referida exposição de motivos e aprovou o
texto exatamente como o recebido no projeto de lei, não é razoável crer que sua
aprovação intencionou combater a evasão, ou ainda que ele foi aprovado por
engano (TORRES, 2013, p. 3).
Ricardo Lobo Torres (2013, p. 3), em prol do propósito antielisivo da
norma, afirma que, além da exposição de motivos do dispositivo em questão,
também não é razoável supor que o Congresso Nacional se reuniria para aprovar lei
inócua que repetisse a proibição da simulação.
O autor (TORRES, 2013, p. 125) destaca que tal dispositivo recepcionou
o modelo francês de combate à elisão, enfocando o abuso de direito, considerando a
finalidade tradicional das transações e a sua pertinência com as circunstâncias do
caso.
Logo que esta nova redação entrou em vigor, ela já foi alvo de
impugnação constitucional pela ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2446
movida pela CNC – Confederação Nacional do Comércio, sob alegação de violação
não apenas do princípio da legalidade e tipicidade tributária, mas também por violar
a separação dos poderes (art. 2º da CF), já que retira do Poder Legislativo a
competência para definir o tributo por lei.
José Eduardo Soares de Melo aborda a LC nº. 104/2001, que introduziu o
parágrafo único do art. 116 do CTN, sob o enfoque do princípio da legalidade e do
139
princípio federativo com a coexistência das ordens jurídicas nacional, centrais e
regionais.
Segundo o autor (2001, p. 164), as leis complementares somente serão
obrigatórias para todos os legisladores se possuírem natureza de normas nacionais
e, ainda sim, serão limitadas pela CF no que tange às materialidades tributárias e à
impossibilidade jurídicas de violarem a autonomia dos entes.
Dessa forma, o contribuinte, pela autonomia privada e liberdade
contratual, pode gerir seu patrimônio utilizando modelos jurídicos que lhe aprouver.
E com base na estrita legalidade tributária é possível a realização de condutas lícitas
para efetivar negócios jurídicos tributariamente menos onerosos, o que configura o
típico negócio jurídico indireto, sendo uma hipótese de elisão fiscal (SOARES DE
MELO, 2001, p. 167).
Conclui José Eduardo Soares de Melo (2001, p. 168) que a norma geral
antielisiva não possui amparo no direito brasileiro, que estabelece a competência
rígida de acordo com as materialidades e também outorga ao contribuinte liberdade
negocial.
Roque Carrazza (2012, p. 540) assevera que o parágrafo único inserido
no art. 116 do CTN não é inconstitucional, mas poderá vir a ser, se for interpretado
pelos administradores como a norma jurídica que fundamenta a desconsideração de
negócios lícitos porque sobre estes não incidiu a norma tributária. E por isso
Carrazza dá à norma o status de antievasiva.
Existe, então, outra interpretação, além da que dê foro de cláusula
antievasiva. Pois diferentemente de se esconder e ocultar o crédito tributário devido,
caso de simulação ou sonegação, é situação em que há a supressão do fato
imponível, que inviabiliza o nascimento da obrigação tributária principal, através da
realização de hipótese de não-incidência.
O negócio jurídico que a norma do art. 116 do CTN autoriza
desconsiderar é aquele que não recai na hipótese de incidência por não coincidir
com alguns de seus elementos constitutivos, mas que produz os mesmo efeitos do
fato jurídico tributário. Consideração dos aspectos econômicos do fato e da
finalidade da norma jurídica, a inserção da teoria da interpretação econômica das
leis tributárias no direito brasileiro.
O dispositivo não trata da evasão, nem especificamente da simulação,
pois se assim fosse, o texto abordaria os negócios que tentam simular, camuflar, a
140
ocorrência do fato imponível, ou seja, os negócios que tentam esconder o crédito
tributário.
O art. 116 determina a desconsideração dos negócios que, ainda que não
sejam simulados, suprimem o próprio fato gerador que dará nascimento à obrigação
principal e não crédito tributário já devido.
Ricardo Lobo Torres (2013, p. 125) esclarece, então, que o parágrafo
único, art. 116 do CTN, ao tratar de dissimulação, refere-se ao fato gerador abstrato,
hipótese de incidência. Para ser interpretado como antievasivo ele deveria se referir
ao fato gerador concreto, já que somente nesse ocorre a simulação.
Dessa forma, esperamos que a ADI 2446 resulte em decisão ou que
reconheça a inconstitucionalidade do texto legal que, por sua abrangência, autoriza
indiretamente a tributação por analogia, ou que defina a interpretação conforme a
constituição possível de norma antievasiva.
Marco Aurélio Greco (2002, p. 21), ao pugnar pela norma geral antielisiva,
afirma que é necessário ―uma norma geral que permita encontrar dentro do conjunto
legislativo disciplinado quais são os princípios, as regras básicas que definem o
relacionamento fisco/contribuinte‖. E esclarece que é dentro desse contexto que ele
vê o parágrafo único que foi introduzido pela Lei Complementar nº 104 ao Código
Tributário Nacional.
É nesse mesmo contexto, de norma geral que disciplina e define a
relação Fisco e contribuinte, que visualizamos o princípio da legalidade e o velho
adágio ―no taxation without representation‖ que deve ser adequado ao nosso Estado
Constitucional de Direito.
Não obstante toda a polêmica, o novo parágrafo condiciona a
desconsideração dos atos e negócios aos procedimentos previstos em lei. Até o
momento não houve essa regulamentação, o que enseja a inaplicabilidade do
dispositivo.
Porém, o Fisco procede à desconsideração dos negócios jurídicos de
acordo com seus próprios procedimentos e critérios, com base no art. 116 do CTN.
É o que se pode perceber de vários julgados do CARF, por exemplo, no Acórdão nº
2302-002.200, de relatoria de Arlindo da Costa e Silva:
Contribuições Sociais Previdenciárias Período de apuração: 01/01/2008 a 31/12/2008 FATO GERADOR DISSIMULADO. DESCONSIDERAÇÃO DE
141
ATO OU NEGOCIO JURÍDICO. POSSIBILIDADE. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. PERSONALIDADE JURÍDICA DE EMPRESA TERCEIRIZADA. DESCONSIDERAÇÃO. INOCORRÊNCIA. Estando presentes todos os elementos caracterizadores da relação de segurado empregado, impõe-se a incidência imperativa das normas tributárias inscritas na Lei nº 8.212/91 sobre a empresa tomadora e sobre o segurado, sem que tal sujeição implique a desconsideração da personalidade jurídica da empresa terceirizada, a qual permanece produzindo todos os demais efeitos no mundo jurídico. CARACTERIZAÇÃO DE SEGURADO EMPREGADO. SUBSUNÇÃO DO FATO À HIPÓTESE NORMATIVA. Impera no Direito Previdenciário o princípio da primazia da realidade sobre a forma, sendo necessária e suficiente a subsunção do fato à hipótese legal prevista no art. 12, inciso I, letra "a" da Lei n° 8.212/91 para que se opere a caracterização de segurado empregado. É prerrogativa da autoridade administrativa a desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, a teor do Parágrafo Único do art. 116 do CTN. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. DOCUMENTAÇÃO DEFICIENTE. AFERIÇÃO INDIRETA. CABIMENTO. A constatação, pelo exame da escrituração contábil ou de qualquer outro documento da empresa, de que a contabilidade não registra o movimento real das remunerações dos segurados a seu serviço, do faturamento e do lucro, é motivo justo, bastante, suficiente e determinante para a apuração, por aferição indireta, das contribuições previdenciárias efetivamente devidas, cabendo à empresa o ônus da prova em contrário.[...] Recurso Voluntário Negado
Essa norma geral positiva uma finalidade a ser perseguida, qual seja,
evitar a dissimulação do fato gerador – abstrato, é uma norma finalística. Adotando o
modelo finalista de regulação de conduta, deve o próprio legislador prever meios e
procedimentos de controle da desconsideração, sob pena de dar poderes
desmedidos aos aplicadores da norma – o que está ocorrendo até o momento.
Em virtude da não aplicabilidade atual da norma geral antielisiva, o único
fundamento para a desconsideração dos atos e negócios jurídicos, previsto pelo
ordenamento jurídico, é a simulação, que possui seu próprio regime jurídico com
consequências previstas no CC.
As decisões que apreciam a validade dos planejamentos tributários
utilizam a ausência de propósito negocial, a anormalidade da forma escolhida ou a
prevalência da substância econômica, para caracterizar a simulação, e assim,
aparentemente, não aplicam a norma geral antielisiva.
O próprio dispositivo do art. 116 do CTN, prevê que a lei disporá sobre os
procedimentos a serem adotados para a desconsideração. Especificamente, se
deixar a critério da Administração a utilização do método que entender necessário
142
para a desconsideração dos negócios, estará dando a ela o poder de legislar sobre
sua própria competência e sobre seus próprios limites.
Ainda sim, não somos favoráveis à inserção (ou permanência) no
ordenamento jurídico da norma geral antielisiva, pois como proposto por Ricardo
Lobo e Alberto Xavier esse tipo de norma tem por objetivo a tributação por analogia,
que há muito foi repudiada do direito tributário para fins de constituição do crédito
tributário (XAVIER, 2001, p. 85 e TORRES, 2000, p. 162).
Não obstante os argumentos contrários à norma antielisiva, ela está
posta, e os atos legislativos presumem-se constitucionais, até a declaração expressa
do Poder Judiciário, o que impõe seu cumprimento após a devida regulamentação.
5.1.2.1 Tentativa de regulamentação: Medida Provisória 66 de 2002
Conforme anotado, anteriormente, o parágrafo único, art. 116 do CTN
recebe pelo menos duas interpretações possíveis e substancialmente diferentes:
uma que veicula norma antievasiva e outra que veicula norma antielisiva.
Fator determinante para a aplicação dessa norma é a sua
regulamentação, a determinação por lei dos procedimentos que serão adotados para
a desconsideração do negócio jurídico. Tal lei que ainda não foi editada ajudará a
completar e esclarecer a finalidade da norma.
O primeiro diploma legal que tentou a regulamentação do dispositivo foi a
Medida Provisória 66 de 2002, que, dentre outros assuntos nada relacionado com
este, dispôs sobre os procedimentos relativos à norma geral antielisiva.
O texto expressamente excluiu do seu âmbito de abrangência os casos
de economia fiscal obtidos com dolo, fraude ou simulação, ou seja, limitou-se a tratar
de coibir e criar técnicas de repressão da prática de elisão tributária.
Vejamos o parágrafo único do art. 13 da MP 66/02 que inicia a seção de
―procedimentos relativos à norma geral antielisão‖:
Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subseqüentes.
143
Parágrafo único. O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. (negrito inexistente no original).
A exposição de motivos do Ministério da Fazenda nº. 221, de 29.08.2002,
acolhida pelo presidente da República deixa clara a intenção do Executivo ao propor
a regulamentação da norma geral antielisiva, vejamos:
11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já oferece tratamento específico. 12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios que são passíveis de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito negocial. 13. Os conceitos adotados no projeto guardam consistência com os estabelecidos na legislação tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal (DOCD Ano LVII nº. 139 publicado em 9 de outubro de 2002, página 43783).
O Poder Executivo intentou inserir no ordenamento jurídico pátrio a
possibilidade de desconsideração administrativa dos atos e negócios lícitos com
base na teoria do propósito negocial, com base na teoria do abuso da forma jurídica
e tornando abusiva a opção pelo negócio alternativo fiscalmente favorável, negócio
jurídico indireto.
Além da positivação das teorias do propósito negocial e do abuso de
forma, o art. 14, § 3º da MP 66/2001 expressamente intitulava como abuso de forma
o negócio jurídico indireto, autorizando, também sua desconsideração.
Tais teorias, que até então eram inexistentes no ordenamento jurídico
brasileiro da forma como foi proposta, já são aplicadas pela jurisprudência,
especialmente a jurisprudência administrativa, que tenta legitimá-las, vinculando-as
a simulação fiscal.
A referida medida provisória foi convertida na Lei nº. 10.637, de 2002,
porém o capítulo que versava sobre a regulamentação da norma antielisiva foi
integralmente rejeitado, o que nos faz crer que não há omissão legislativa em
relação ao que se pretendeu inserir no ordenamento jurídico, mas sim, rejeição das
referidas teorias.
O legislador simplesmente não quis prever que o negócio jurídico fosse
desconsiderado e tributado com base nas doutrinas do proposito negocial e do
144
abuso da forma, nesse caso a inexistência de norma nesse caso é proposital.
Talvez, pela tentativa infrutífera de positivação direta dessas doutrinas, o Fisco as
utiliza como circunstâncias para caracterizar a simulação, que já tem sua aceitação
pacificada.
145
CONCLUSÃO
Com base na Constituição Federal, à luz do estudo realizado, que se
propôs a identificar no direito brasileiro o tratamento jurídico do planejamento
tributário e a repercussão jurídica do parágrafo único, do art. 116 do CTN,
concluímos que:
01. O planejamento tributário, também conhecido como elisão fiscal, não
se confunde com a evasão fiscal.
02. Planejamento tributário é a conduta lícita, de livre escolha do
contribuinte, no gerenciamento de seus bens e negócios, que de forma preventiva
evita a realização de situação prevista na hipótese de incidência tributária, evitando,
consequentemente, a ocorrência do fato imponível, ou ainda, diminuindo sua
dimensão econômica a fim de reduzir o valor tributário devido a pagar.
03. A evasão fiscal é a conduta do contribuinte que age ilicitamente para
omitir o fato imponível ocorrido, visando ao não pagamento do tributo com fraude ou
sonegação, ou, ainda, escondendo com simulação o fato imponível que irá ocorrer,
almejando o retardamento, a redução ou a supressão de crédito tributário devido.
04. O art. 116, parágrafo único do CTN foi inserido pela LC 104/2001 para
permitir a desconsideração, pelo Fisco, de determinados atos e negócios jurídicos a
fim de tributá-los. Tal dispositivo possibilita dupla interpretação: uma que lhe dê
função de norma geral antievasiva, e outra que lhe dê função de norma geral
antielisiva. A referida norma ainda não possui aplicabilidade, pois depende de lei que
regulamente os procedimentos utilizados na desconsideração dos atos e negócios
jurídicos.
05. A interpretação de que o parágrafo único, art. 116 do CTN é norma
que combate a evasão tributária, especificamente a simulação, não visualiza
alteração significativa no direito brasileiro, pois o Código Civil já previa a nulidade
dos negócios simulados. Tal corrente remete a uma interpretação literal, cujo
conteúdo do mandamento seria a permissão do Fisco para desconsiderar situações
que dissimulem o fato imponível ocorrido. Porém, deve-se atentar que a norma não
fala em desconsiderar o negócio simulado, falso, mas sim o negócio dissimulado, o
que seria incoerente.
146
06. A outra corrente interpretativa entende o dispositivo como norma geral
antielivisa, com o propósito de combater a conduta do contribuinte de fugir da
hipótese de incidência tributária, permitindo ao Fisco que tribute, desconsiderando
os atos e negócios que tenham a finalidade dissimulatória da hipótese de incidência
ou da natureza jurídica dos seus elementos constitutivos. Essa linha interpretativa,
além de revelar uma inovação no âmbito jurídico brasileiro, é condizente com a
exposição de motivos da propositura legislativa do referido dispositivo e com a
tentativa regulamentação da norma proposta na MP 66/2002.
07. Concluímos que o parágrafo único, art. 116 do CTN é norma geral
antielisiva que pretende autorizar a tributação de hipóteses de não incidência
tributárias pela desconsideração dos atos e negócios propositadamente realizados
para obter a desoneração do ônus tributário. Ao desconsiderar as transações, o
Fisco alcançará o conteúdo econômico destas, passando a determinar, por meio de
interpretação, o que se adequa ou não no conceito legal do tributo.
08. Essa desconsideração dos atos e negócios elisivos, que fogem
licitamente da incidência tributária, impõe a prevalência da substância econômica
sobre a forma jurídica, é a interpretação econômica das leis tributárias e dos fatos
jurídicos.
09. A interpretação econômica do direito tributário surgiu na Alemanha,
após ser inserida por Enno Becker no Código Tributário Alemão de 1919. Ela impõe
a consideração das leis tributárias e dos estados de fato, segundo sua finalidade
econômica, se o fato tem grande capacidade econômica, mesmo que a lei tributária
não o tenha previsto, o Fisco poderá enquadrá-lo tributariamente, destacando a sua
pretensão arrecadatória.
10. A tentativa de regulamentação da norma geral antielisiva,
implementada pela MP 66/2002, que expressamente excluía do seu âmbito de
abrangência os negócios simulados, objetivou positivar no direito, além da
interpretação econômica, a doutrina do propósito negocial, a teoria do abuso de
forma.
11. A doutrina norte-americana do business purpose ou propósito
negocial, originada nas Cortes Judiciais a partir de 1935, fruto do leading case
―Gregory versus Helvering”, é utilizada nos EUA como um componente para
configurar a simulação. Segundo nossas fontes, a aplicação dessa teoria não é
pacifica dentre os Circuitos Judiciais. Alguns Circuitos, para apurar a simulação,
147
utilizam conjuntamente com essa doutrina a tese da prevalência da substância sobre
a forma, e outros Circuitos utilizam exclusivamente o propósito negocial.
12. Os critérios norte-americanos considerados para o reconhecimento da
ausência do propósito negocial nos EUA são: O critério temporal ou o tempo de
permanência entre as transações; a utilidade do negócio em comparação com as
atividades desenvolvidas e o benefício que o negócio gerará. Critérios estes também
aplicados, sem uniformidade, nos julgamentos administrativos do CARF.
13. No Brasil, cujo sistema jurídico funda-se no direito positivo, posto pelo
Poder Legislativo, a doutrina do propósito negocial não possui nem um dispositivo
normativo que autorize sua aplicação na desconsideração de atos e negócios
jurídicos para que haja a imposição tributária.
14. Não obstante a ausência de previsão legal, a doutrina do propósito
negocial passou a ser utilizada no direito brasileiro em decisões administrativas do
CARF, que considera como simulado o conjunto de transações negociais que não
detivesse propósito negocial.
15. A consideração do aspecto econômico, demonstração de capacidade
econômica e ausência de propósito negocial que justifiquem o modo de realização
da transação jurídica passam a indicar que o negócio ou as transações são
simulados, permitindo, portanto, a desconsideração para que haja a incidência do
tributo.
16. O Fisco, pretendendo evitar a realização do planejamento tributário,
quer que se legitime um tipo de interpretação das leis tributárias que permita a
equiparação de condutas semelhantes às condutas previstas nas hipóteses de
incidência, para que seja possível tributá-las sem qualquer alteração legislativa. As
condutas são consideradas semelhantes pelos efeitos econômicos que elas geram.
17. A interpretação econômica da lei tributária, assim como a
desconsideração da forma do negócio jurídico, deveria ser utilizada apenas nos
negócios simulados, quando se pretendesse trazer à tona o negócio real. Não é
possível estender tais teorias aos negócios jurídicos regulares que geram economia
tributária, ainda que pelo fundamento de que eles fraudam a intenção arrecadatória
da lei tributária ou pelo argumento de que violam a igualdade tributária.
18. A prática do planejamento não fere o princípio da isonomia, pois os
contribuintes são tributados diferentes porque praticam condutas diferentes, um
148
pratica o fato tributável, e o outro pratica a elisão fiscal, o que pressupõe a não
realização do fato imponível.
19. Muito embora o planejamento tributário viole o princípio da
capacidade contributiva, já que o contribuinte que inicialmente teria capacidade
econômica para ser tributada, ao efetivar a conduta elisiva, não sofre a exação, ao
permitirmos a imposição tributária pela presença de capacidade econômica, sem a
correspondente previsão legal, estaremos abrindo um precedente malicioso e
indeterminado que feriria outro princípio, a legalidade tributária.
20. Acreditamos que assim como não é possível tributação por lei de
situação em que não haja a capacidade econômica, objetivamente considerada,
também não é possível tributação de fato que possua a capacidade contributiva,
mas sem a determinação legal.
21. O momento exacional da realidade jurídica tributária, de constituição
do crédito tributário, não é o momento apto para se discutir a prevalência de um
princípio em detrimento do outro, prevalência da capacidade contributiva sobre
legalidade. Não é o Fisco que detêm competência para apontar quem possui ou não
capacidade contributiva, esse dado já está presumido na lei tributária.
22. Não é apenas o tributo que é instituído por lei, como também seu
lançamento é vinculado à lei, uma atividade administrativa plenamente vinculada. Ao
se permitir que, nessa fase de constituição do crédito tributário, o Fisco utilize
interpretação econômica, ou extensiva, ou analógica das leis tributárias, estar-se-á
admitindo a utilização de elementos subjetivos, e verificação valorativa, na
constituição do crédito tributário, o que não se admite no direito brasileiro.
23. A norma geral antielisiva – parágrafo único do art. 116 do CTN –
introduz a interpretação econômica no ordenamento jurídico tributário brasileiro, o
que implica a tributação por analogia, e, portanto, o referido dispositivo é eivado do
vício de inconstitucionalidade por violar não apenas o princípio da legalidade
tributária, mas também por tolher, indevidamente, a liberdade negocial e a
autonomia privada das pessoas.
24. Enquanto o planejamento tributário não for reconhecido como um
direito subjetivo do contribuinte e enquanto a doutrina e a jurisprudência tributária
estiverem estendendo as teorias que combatem a simulação aos negócios jurídicos
não simulados, não será possível a identificação dos próprios limites do
planejamento tributário e faltará segurança jurídica.
149
25. Diante da insegurança, o contribuinte ao se planejar e programar seus
negócios terá que assumir o risco de se submeter ao bel-prazer do Fisco, o que
acaba sendo uma repressão indireta ao planejamento tributário, pois nem todos os
contribuintes têm condições financeiras de sustentar processos administrativos e
judiciais custosos e imprevisíveis.
150
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