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número 16março de 2007

revista da abem

Políticas culturais e políticaseducacionais – conflitos e

convergências

Vanda Bellard FreireUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

[email protected]

Resumo. O presente artigo foi apresentado, originalmente, em forma concisa, no Fórum “Políticasculturais, formação profissional e produção científica em Educação Musical”, realizado no XVEncontro Nacional da Abem. O objetivo principal é abrir questionamentos sobre a aplicação daspolíticas de fomento à cultura, sobretudo aos projetos ligados à educação musical, que vêmprocurando suprir a demanda pelo ensino de música, em face da insuficiência das açõesgovernamentais. A análise parte dos conceitos de cultura e de educação, com base em autoresda área de educação, e tece outras considerações, com base nos objetivos da Lei Rouanet e naobservação de inúmeros projetos analisados pela autora, ao longo de sua atuação como membroda Comissão Nacional de Incentivo à Cultura. Utiliza também a contribuição de pesquisadores daárea de educação musical que analisaram casos específicos de projetos sociais. Conclui pelaurgência de a área de educação musical aprofundar-se sobre esta temática e refletir sobre oscursos de licenciatura.

Palavras-chave: educação musical, projetos sociais, formação de professores

Abstract. This paper is an extended version of a presentation made during the Forum “Culturepolicies, professional formation and scientific production in Music Education” that took place in theXVth Abem’s National Metting. The main goal is to question the use of culture fomentation policies,particularly in music education projects, destined to compensate the lack of government actionsconcerning music teaching offering. Begining with the concepts of culture and education asdiscussed in Education literature, this analysis focuses on the purposes of Rouanet’s Law, usingthe author’s experience as former member of National Committee for Culture Fomentation. Thispaper also benefits from researches in Music Education that dealt with specific social projects. Itis necessary to deepen the Music Education field’s considerations on such issue and to rethinkthe undergraduate programmes.

Keywords: music education, social projects, music teacher’s formation

Introdução

O presente texto amplia a exposição feita pelaautora no Fórum “Políticas culturais, formação pro-fissional e produção científica em Educação Musi-cal”, no XV Encontro Anual da Abem, realizado emJoão Pessoa, cujo objetivo foi o de discutir as pers-

pectivas políticas em torno do fomento à cultura, bemcomo as possibilidades de atuação para a área deeducação musical nesse contexto, a partir de proje-tos, da participação em órgãos ligados à cultura etc.,e na própria definição dos rumos de incentivo e apoioà cultura no país.

FREIRE, Vanda Bellard. Políticas culturais e políticas educacionais – conflitos e convergências. Revista da ABEM, Porto Alegre, V.16, 17-23, mar. 2007.

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Além das contribuições da literatura das áre-as de educação e de educação musical, foram utili-zadas, neste trabalho, as observações e anotaçõesreunidas ao longo de cinco anos como representan-te titular da área de música, e em especial da Abem,junto à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura,no Ministério da Cultura (MinC).

A temática do fórum proposto pela Abem érelevante e atual, e dela emergem dois conceitosque certamente precisam ser focalizados para abrira presente colocação, sobretudo pela formadicotômica como as políticas públicas vêm tratandoesses dois temas: educação e cultura. Até mesmono que tange à alocação em ministérios no governobrasileiro, pois temos um Ministério da Educação eum Ministério da Cultura.

Qualquer análise que façamos do conceito deeducação remeterá, inevitavelmente, a nosso ver, aoconceito de cultura.

Há correntes pedagógicas que concebem aeducação como instância de preparação para a ocu-pação de papéis predefinidos pela sociedade, ou-tras que objetivam a formação do indivíduo como “ser”ideal, outras que pretendem formar cidadãos e al-cançar a transformação social. Inevitavelmente, emtodas elas, está em questão a formação de um ho-mem que, como ser social, está integrado a umasociedade, a uma cultura, a um momento histórico.

Relembramos, aqui, palavras de Paulo Freire(1996), quando afirma que uma das tarefas maisimportantes da prática educativo-crítica é propiciaras condições em que os educandos ensaiem a ex-periência profunda de assumir-se como ser social ehistórico, como ser pensante, comunicante, trans-formador, criador, realizador de sonhos etc. Ou seja,as palavras de Paulo Freire, às quais nos associa-mos, tratam a educação como experiência social,e, portanto, cultural.

Na concepção de Paulo Freire, como na deinúmeros educadores que militam na área de educa-ção nas três últimas décadas (Apple, Giroux, Doll,Perrenoud e outros), a questão da identidade cultu-ral é problema que não pode ser desprezado, nemna formação dos professores, nem na práticaeducativa.

Cabe então perguntar: é possível pensar emeducação em uma perpectiva a-histórica e dissociadada cultura? Que conceito de cultura pode levar a umaseparação do conceito de educação?

O conceito de cultura, abrangendo o conjuntode valores, de manifestações materiais e imateriais

produzidas em sociedade, obviamente inclui a edu-cação, esta entendida como o processo pelo qualas sociedades geram conhecimento crítico e incul-cam seus valores, os criticam ou transformam. Naspalavras de Moreira e Macedo (2001, p. 118) “acei-tando-se a importância da cultura […], não há comonão aceitá-la também nas decisões e nas reflexõesreferentes à vida escolar, ao currículo, ao ensino, aoprofessorado”.

É, portanto, a partir do pressuposto dainseparabilidade dos conceitos de educação, cultu-ra e sociedade que esta reflexão se inicia.

O incentivo à cultura – a visão do Ministérioda Cultura e a visão da sociedade

A proposta de separar a cultura em ministériopróprio adveio, possivelmente, de uma intenção demelhor atender às suas especificidades. A captaçãode recursos para iniciativas ligadas à cultura, sem-pre difícil, pareceu encontrar na lei no 8313, de 1991,conhecida como Lei Rouanet (Brasil, 1991), umasolução favorável, pois, com o aval do Ministério daCultura (MinC), os responsáveis pelos projetos apro-vados podem buscar apoio financeiro junto às em-presas, valendo, para isso, o mecanismo da renún-cia fiscal.

Os objetivos da lei são claros em seu texto:

• facilitar à população o acesso às fontes dacultura;

• estimular a produção e difusão cultural e ar-tística regional;

• apoiar os criadores e suas obras;

• proteger as diferentes expressões culturaisda sociedade brasileira;

• proteger os modos de criar, fazer e viver dasociedade brasileira;

• preservar o patrimônio cultural e históricobrasileiro;

• desenvolver a consciência e o respeito aosvalores culturais nacionais e internacionais;

• estimular a produção e difusão de bens cul-turais de valor universal;

• dar prioridade ao produto cultural brasileiro.

Observamos que, nos objetivos acima descri-tos, está bem clara uma concepção de cultura queabrange as dimensões materiais e imateriais, bemcomo podemos observar que não há referência ex-

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plícita à educação, de competência de outro minis-tério.

Mais recentemente, em 2005, a Presidênciada República publicou o Decreto 5761, em 27 deabril de 2006, que, entre outras providências, reto-mou e ampliou os objetivos da lei no 8313 (Brasil,2006). Como podemos constatar a seguir, há umaênfase, no decreto, em uma perspectiva multicultural,o que inclui uma ênfase na aceitação e na valoriza-ção das diversas matrizes culturais presentes nasociedade brasileira. Seguem os objetivos expres-sos no Decreto 5761:

I valorizar a cultura nacional, considerandosuas várias matrizes e formas de expressão;

II estimular a expressão cultural dos diferen-tes grupos e comunidades que compõem asociedade brasileira;

III viabilizar a expressão cultural de todas asregiões do País e sua difusão em escala na-cional;

IV promover a preservação e o uso sustentá-vel do patrimônio cultural brasileiro em sua di-mensão material e imaterial;

V incentivar a ampliação do acesso da popu-lação à fruição e à produção dos bens cultu-rais;

VI fomentar atividades culturais afirmativas quebusquem erradicar todas as formas de discri-minação e preconceito;

VII desenvolver atividades que fortaleçam earticulem as cadeias produtivas e os arranjosprodutivos locais que formam a economia dacultura;

VIII apoiar as atividades culturais de caráterinovador ou experimental;

IX impulsionar a preparação e o aperfeiçoa-mento de recursos humanos para a produçãoe a difusão cultural;

X promover a difusão e a valorização das ex-pressões culturais brasileiras no exterior, as-sim como o intercâmbio cultural com outrospaíses;

XI estimular ações com vistas a valorizar ar-tistas, mestres de culturas tradicionais, téc-nicos e estudiosos da cultura brasileira;

XII contribuir para a implementação do PlanoNacional de Cultura e das políticas de cultura

do Governo Federal; e

XIII apoiar atividades com outras finalidadescompatíveis com os princípios constitucionaise os objetivos preconizados pela lei no 8.313,de 1991, assim consideradas pelo Ministro deEstado da Cultura.

A possível interseção da educação nos objeti-vos da política de incentivo à cultura não é expressaem nenhum dos dois textos legais acima referidos.O conceito de cultura e a filosofia subjacente à LeiRouanet e ao decreto presidencial está explicitadacom clareza, embora não seja esta, necessariamen-te, a forma como a sociedade, ou alguns segmentosdela, compreendem o assunto.

Provavelmente, é uma visão “mercadológica”de cultura que predomina na sociedade e permeiahoje os conceitos de cultura e de educação nos pro-jetos enviados ao MinC, ainda que não seja essa,provavelmente, a intenção original da lei.

Faz-se necessário, portanto, discutir políticaspúblicas e fomentos à cultura em um espaço legalno qual a educação não estaria assumidamente pre-sente, sendo que o próprio conceito de cultura éentendido pela sociedade pelo prisma do mercado.A expressão “indústria da cultura” aparece em mui-tos projetos que pleiteiam apoio da lei de incentivofiscal, por vezes aparecendo, também, em projetosque envolvem educação.

Com o objetivo de ilustrar as permeações davisão de mercado no âmbito da cultura, transcreve-mos, a seguir, trecho de notícia veiculada pela Ga-zeta de Alagoas, colhida na página do MinC, naInternet:

“Rouanet, se você quiser conversar sobre cultura, nãoprocure nunca os artistas e intelectuais, eles só queremfalar em dinheiro. Se você quiser conversar sobrecultura, procure os banqueiros”. A frase seria dobanqueiro Walter Moreira Salles, citado em discurso[…] pelo criador da Lei Rouanet, o embaixador SérgioPaulo Rouanet.

A notícia menciona, também, a decisão doMinC de acompanhar mais de perto a realização dosprojetos e seus resultados. A citação é ricamenteilustrativa, e é nesse contexto que se insere a breveanálise aqui apresentada, ou seja, o conceito decultura, tal como expresso pelo MinC, e os projetossociais permeados pela visão dos banqueiros, dosprodutores culturais e outros, bem como a expecta-tiva freqüente, na sociedade, de que a cultura produ-za algum resultado “rentável”, explicita ou implicita-mente.

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Educação e cultura – o papel do Estado e opapel dos projetos sociais

Começamos, então, aqui a focalizar outra ver-tente da questão: a de recursos para a área de edu-cação. A educação, colocada em outro ministério ecarente de formas mais significativas de sustenta-ção econômica, começa, aos poucos, e de formaevidentemente crescente, a achar o seu espaço noMinistério da Cultura, no qual, em princípio, não te-ria vez. A lei de incentivo à cultura (ou “à indústria dacultura”, como dizem alguns) aparece como um cam-po propício. O número de projetos que buscam oapoio do MinC e incluem o ensino de artes, sobretu-do o de música, aumentou de forma expressiva nosúltimos cinco anos.

Ocorre que a legislação educacional brasilei-ra, desde a década de 1970, permitiu que se formas-se, nas escolas, uma enorme lacuna no que tangeàs artes, em geral, tratando-as, problematicamente,como um único “bloco”, sem distinção nítida entreos diversos saberes artísticos.

Mais de 20 anos depois, na seqüência de atosque sucederam à Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação (Brasil, 1996), o MEC instituiu uma comissãode especialistas que discutiu e promoveu a separa-ção curricular das linguagens artísticas na educa-ção, embora o texto da Lei de Diretrizes e Basespermanecesse ambíguo, utilizando a expressão “en-sino de arte”. Essa ambigüidade permite que, aindahoje, dez anos passados da publicação da lei, mui-tos municípios e estados ainda não tenham compre-endido que essa expressão se refere a uma áreaampla de conhecimento, cuja formação de professo-res, hoje, se dá em licenciaturas específicas paracada modalidade artística, tais como artes plásti-cas, música, dança etc.

Essa enorme lacuna deixou, durante muitosanos, as escolas de formação de professores e asescolas de ensino básico sem um espaço definidopara a música, o que leva, hoje, a que se procure umespaço no Ministério da Cultura para preencher ovazio que ainda existe no setor.

De certa forma, ao procurar as verbas da cultu-ra para subsidiar projetos de ensino de música, estásendo evidenciada a dificuldade do Ministério da Edu-cação de lidar com a questão. O Brasil, hoje, não temprofessores de música, educadores musicais naacepção completa, em número suficiente para ocuparo espaço nas escolas. Nem em número, nem em qua-lidade, pois durante muitos anos formamos professo-res de música em licenciaturas que não os instrumen-talizavam musicalmente de forma consistente.

Surge, então, a perspectiva de utilizar as ver-bas da cultura para subsidiar e difundir o ensino demúsica. Proliferam, então, os projetos sociais, em-penhados nessa tarefa. Há projetos de todos os ti-pos, há trabalhos de todos os níveis de qualidadeimaginável, inclusive diversos projetos de excelentequalidade.

Kleber (2006) apresenta uma análise de duasexperiências de projetos sociais: o Projeto Villa-Lobinhos, no Rio de Janeiro, e o trabalho desenvolvi-do pela Associação Meninos do Morumbi, em SãoPaulo. Segundo a autora, os coordenadores res-ponsáveis por esses dois trabalhos afirmam que oobjetivo principal é o de promover educação musicalcom objetivo social, rejeitando abordagens assisten-cialistas ou paternalistas. A autora pondera, ainda,sobre a necessidade de se pensar na formação doeducador musical para trabalhar nesses espaços.Conclui que a atuação das ONGs instaura pro-cessos em constante formação, abertos à experi-mentação, criando arenas para novas práticas deações sociais, culturais e cognitivas. Conclui, tam-bém, sobre a importância de que se assegure àsONGs a possibilidade de promover uma educa-ção intencional e não ocasional, deixando de ladouma visão que oponha ONGs, de um lado, e es-colas, de outro.

Outra pesquisadora que abordou o ensino deartes através das ONGS, Carvalho (2005), focalizouo perfil do educador responsável pelo ensino de artenessas instituições, além de outros aspectos perti-nentes à temática.

A pesquisa baseou-se em três estudos decaso, relativos às ONGs: Casa Pequeno Davi, emJoão Pessoa; Casa Renascer, em Natal; e DaruêMalungo, em Recife.

A pesquisadora observa que nem todos oseducadores têm formação específica, através de li-cenciaturas, mas que este não é, necessariamente,um requisito essencial ao sucesso do trabalho de-senvolvido. Ela ressalta a importância de o educadorsocial somar, aos conhecimentos teóricos, habilida-des pessoais para intervir, de maneira apropriada,em determinadas circunstâncias, bem como o en-tendimento das condições reais em que vivem oseducandos, suas necessidades e aspirações. Ouseja, portadores de títulos acadêmicos desacom-panhados desses entendimentos e habilidades sãode pouca valia, o que a leva a concluir que: 1) asuniversidades não estão levando em conta a realida-de do mercado de trabalho existente no momento;2) os cursos de licenciatura em artes necessitamreformular seus currículos, de modo a oferecer trei-

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namento e habilitação a seus alunos, de maneiraque eles possam atuar apropriadamente em espa-ços não-formais, além das escolas regulares.

As duas pesquisas descritas acima, abordan-do cinco estudos de caso, são exemplos importan-tes de possibilidades positivas de trabalhos extra-muros das escolas. As conclusões de Carvalho(2005) encontram paralelo no novo currículo de Li-cenciatura em Música da Universidade Federal doRio de Janeiro, aprovado em 2003, que já inclui entreos estágios regularmente oferecidos aos licenciandosinstituições do terceiro setor (ONGs).

As observações positivas, contudo, das duaspesquisadoras acima referidas, embora verdadeirasquanto aos casos analisados, não refletem a reali-dade de grande parte (possivelmente, da maioria) dosprojetos que buscam apoio da lei de incentivos fis-cais, nos quais predominam concepções de educa-ção musical bastante distantes daquelas quepermeiam as discussões da área de educação mu-sical, no Brasil.

De qualquer forma, a verba que esses proje-tos mobilizam é surpreendente para quem transitana área de educação. Se, por um lado, é difícil con-seguir apoio de dez ou 15 mil reais para realizaçãode um congresso, como o Encontro Anual da Abem,dificilmente aparece, no âmbito do Ministério da Cul-tura, algum projeto que pleiteie menos de cem milreais. Alguns ultrapassam a casa do milhão.

É claro que não se trata, aqui, de tentar pre-conizar que o Ministério da Cultura não deva dar oaval para que as empresas apóiem ações ligadas àeducação musical, nem tampouco dizer que essesprojetos devem ser banidos do “mapa”. Também nãose trata de opor projetos sociais e escolas, comomundos adversários ou mesmo incongruentes.

Trata-se, na verdade, de ressaltar a importân-cia de refletir sobre essa realidade, de forma a discutiro papel da área de educação musical e dos cursos deformação de professores nesse processo.

Políticas públicas (perspectivas maisduradouras para a educação), incentivo àcultura e o papel do educador musical

Refletir sobre políticas públicas, incentivo àcultura e educação musical é certamente um temacomplexo, pois se pensamos em políticas públicase em educação como uma instância da formação doindivíduo e da cidadania, se consideramos que oEstado deve assumir importante responsabilidadequanto aos rumos da educação e se considerarmosa visão mercadológica que permeia fortemente a

demanda de fomento à cultura, temos alguns pro-blemas a enfrentar.

Políticas públicas envolvem planejamento,definição de objetivos sociais, de concepções filosó-ficas etc. Como proceder dessa forma, no âmbito deverbas destinadas à cultura, de forma ampla e difusa,no âmbito de uma visão de mercado que, se não é ado MinC, é de grande parte da sociedade? Comolidar com a pulverização de objetivos, inevitável nes-se contexto?

Citando um caso concreto, por nós analisa-do, sem, contudo identificar os atores, exemplifica-mos, aqui, com o caso de um município do Brasilque reedita, anualmente, um projeto com apoio deverbas provenientes de renúncia fiscal, mobilizandomais de um milhão de reais por ano, com o objetivode levar música a crianças de escolas de ensinobásico. Obviamente, esse ensino de música se dáfora da estrutura curricular, não sendo, portanto, umdireito de todos. A solução é selecionar “talentos”,concepção essa já suficientemente questionada pe-las áreas de etnomusicologia e de educação musi-cal, mas que serve à visão de conservatório desseprojeto, como também a muitos dos que transitamhoje pelo Ministério da Cultura. Faz-se também ne-cessário selecionar monitores ou instrutores para daras aulas, sem que essas pessoas tenham passadopor uma formação como profissionais de educação,ou seja, na maioria absoluta dos casos, são músi-cos sem formação pedagógica. Uma “oficina” no iní-cio de cada etapa do projeto “prepara” os monitoresou instrutores para o ensino. Os instrumentos musi-cais comprados não são, necessariamente, incor-porados à rede pública, permanecendo nas mãos defundações, ONGs, ou outras instituições. Ou seja,um investimento milionário é feito em um ensino demúsica periférico, sem continuidade assegurada,sem consistência pedagógica, sem profissionaisadequadamente formados. Cabe ainda observar queos monitores do projeto recebem um pró-labore igualou superior ao salário dos professores da rede muni-cipal, sendo que estes dificilmente recebem qual-quer ajuda material, como instrumentos musicais,mesmo quando solicitada.

Coloca-se, a partir desse exemplo descrito,uma questão importante para debate neste fórum,pois, ao pensarmos em políticas públicas para nos-sa área, é preciso que reflitamos sobre casos comoo que agora foi descrito, sem deixar, contudo, deanalisar exemplos de projetos bem sucedidos, comoos focalizados por Carvalho (2005) e Kleber (2006).

Destacamos, ainda, que não pretendemos,aqui, negar a legitimidade das práticas orais e infor-

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mais de ensino de música. Mas essas práticas rara-mente recorrem ou necessitam do apoio das verbasde renúncia fiscal. Poucos, também, são os proje-tos que as envolvem.

Observamos que a visão de ensino de músi-ca, nos moldes de “conservatório”, é a que prevalecenos projetos que recorrem aos incentivos à cultura.Formação de futuros virtuoses, a partir de seleçãode “talentos”, é o que predomina em projetos que,paralelamente às políticas educacionais, procuramsuprir a lacuna que existe no que tange ao direito detodo cidadão à educação musical, embora terminem,muitas vezes, por excluir aqueles que não são esco-lhidos nos testes de seleção para poderem partici-par das atividades.

Este fórum, em que debatemos questões li-gadas à formação de professores e às políticas pú-blicas, certamente é um espaço privilegiado para dis-cutirmos o papel da área de educação musical nes-se contexto.

Não basta reintroduzir a música no currículo escolardas escolas. […] o silenciamento das escolas foi con-seqüência de um processo em que pesaram fatoresde ordem política, cultural e pedagógica. […] Fruto deuma política educacional equivocada, esse silêncio, quecalou as vozes de milhares de crianças e jovens, devese constituir em ponto de partida para um novo caminhopara a música na escola […] pautado pelo seu enten-dimento como uma linguagem com possibilidades detransformar, modificar e estabelecer uma nova con-cepção de homem de sociedade e de mundo. (Loureiro,2003, p. 221).

Projetos sociais, educadores musicais eformação de professores

Realmente, não basta reintroduzir o ensino demúsica nas escolas, mas é também necessário querepensemos as nossas licenciaturas (Carvalho,2005). Por outro lado, é fato que hoje existe umaconscientização crescente a respeito da problemá-tica aqui focalizada, o que tem levado, inclusive, oMinistério da Cultura a procurar estabelecer umaaproximação maior com o Ministério da Educação.

Ainda que louvável, isso não será suficiente,talvez, para superar a dicotomia conceitual que seestabelece quando educação e cultura são pensa-das em ministérios separados, embora a alocaçãode ambas em um mesmo ministério possa não sersuficiente para produzir soluções melhores.

Algumas das questões que podem ser colo-cadas a respeito são:

1) Como traçar políticas públicas consisten-tes para o ensino de música, no Brasil, querealmente centralizem a questão no âmbito

do planejamento educacional?

2) Como conciliar os objetivos e a aplicaçãoda lei de incentivo à cultura com os objetivosque a área de educação musical visualiza paraa música, como instância de formação do in-divíduo e da cidadania?

3) Como captar verbas adequadas e continu-adas para a educação, na rede regular, forado âmbito da concepção mercadológica queprolifera na sociedade?

4) Qual o papel dos cursos de formação deprofessores de música nesse contexto?

Essas são algumas das perguntas sobre asquais acreditamos que a área de educação musicalnecessite se debruçar.

Tramita, hoje, no Congresso Nacional, propos-ta para que o ensino de música se torne obrigatórionas escolas. Existem também outras iniciativas im-portantes em prol do ensino regular de música nasescolas, sendo um exemplo bem recente o manifes-to gerado no último Congresso da Anppom (2006),em Brasília.

Possivelmente, a simples obrigatoriedade doensino não irá resolver nossos problemas, que vãodesde as dificuldades que as universidades enfren-tam (o que afeta os cursos de formação de professo-res) até mesmo a precária situação oferecida aosprofessores de música na rede escolar, na qual oensino de música goza de baixo prestígio, justifican-do-se, apenas, como uma forma de tirar as criançase jovens das ruas e das mãos do tráfico de drogas(inclusão social), ou como uma forma de discipliná-las, ou mesmo como uma forma de fazer com queelas aprendam melhor outros conteúdos não mu-sicais.

A principal função da música, na maioria dosprojetos que buscam verbas de incentivo fiscal, é ade inclusão social, ou seja, mantendo a criança ou ojovem ocupado, ele estará menos vulnerável a influ-ências negativas, ele desenvolverá sua auto-estimae estará mais apto ao aprendizado de outros con-teúdos na escola. Pouco ou nada se fala do ensinode música como fim em si, como instância impor-tante na formação do indivíduo.

Urge, portanto, perguntar: qual é o papel damúsica que queremos na educação brasileira? Qualé o papel da música que acreditamos válido para aformação do indivíduo? Qual é o papel da arte na soci-edade? Como os cursos de licenciatura em Músicapodem, hoje, relacionar-se com essas questões?

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Retomo e resumo, aqui, algumas proposições(Freire, V., 1999), voltadas para uma discussão dopapel da Educação Musical em face da globalização,e que se aplicam às reflexões desenvolvidas nestetexto, no que concerne à tarefa que cabe às licenci-aturas:

1) Rever e ampliar os significados de ensinare aprender no mundo contemporâneo, em faceda diversidade cultural e à globalização e emface da necessidade de somar a dimensãoafetiva ao foco cognitivo.

2) Desenvolver, nos cursos de formação deprofessores, conhecimentos e habilidades ne-cessárias à promoção de um diálogo inter-cultural, propiciando a identificação e supera-ção de preconceitos e estereótipos, favorecen-do a conscientização das assimetrias de po-der atuantes na sociedade e propiciando me-lhor compreensão das possibilidades de rela-ção da escola com a cultura e seus significa-dos.

3) Instrumentalizar o licenciando para atuarcom alunos de diferentes condições sociais,reconhecendo a riqueza da diversidadeetnocultural e conduzindo-o a melhor compre-ender e lidar com ela.

4) Favorecer a conscientização crítica do fu-turo docente sobre a própria cultura, permitin-do-lhe questionar sua prática docente, bem

como levando-o a poder conduzir seus futu-ros alunos à mesma consciência crítica equestionadora.

Essas também são proposições que se apli-cam às colocações aqui apresentadas, e que po-dem ser incluídas nos debates sobre o tema. Sãoproposições que, tal como os objetivos expressospelo Decreto 5761, citado neste artigo, contêm umafundamentação tomada ao multiculturalismo. Sãotambém proposições passíveis de serem converti-das em diretrizes nos cursos de licenciatura emMúsica, contribuindo para que os licenciandos usu-fruam de uma formação que os habilite a lidar comas novas demandas sociais da atualidade.

É possível que a revisão e a ampliação da for-mação dos futuros professores venha a gerar profis-sionais mais flexíveis, mais preparados para lidar comdiferentes situações de ensino, ocupando, talvez, alacuna que hoje os projetos sociais tentam suprir. Afunção desses projetos seria, então, de enriqueci-mento, diversidade, complementaridade, não deixan-do, portanto, a educação regular de se responsabili-zar por garantir o ensino de música a todos.

Longe de tentar apresentar posições definiti-vas sobre questões tão complexas e importantes,nossa pretensão aqui é a de incitar à reflexão e aodebate, contribuindo para que a área de EducaçãoMusical possa oferecer subsídios consistentes emum momento de tanta relevância nas discussõessobre cultura e políticas públicas no Brasil.

Referências

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Recebido em 19/02/2007

Aprovado em 20/03/2007