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Política social focalizada e ajuste fiscal: as duas facesdo governo Lula

Graça DruckUniversidade Federal da Bahia (UFBA)

Política social focalizada e ajuste fiscal: as duas faces do governo LulaResumo: Este texto tem por objetivo analisar a natureza e as principais características da política social do governo Lula, evidenciandoa sua estreita relação com a política econômica liberal-ortodoxa legada do governo anterior como uma ‘herança maldita’, mas mantida eaprofundada pelo novo governo. Portanto, mais do que esmiuçar todos os detalhes e dimensões dessa política social, o objetivo é o deapreender o seu conteúdo e significado político-econômico maior, a partir daquilo que lhe é central e que a define politicamente, inclusiveem termos simbólicos, qual seja: o programa focalizado de combate à pobreza denominado Bolsa Família.Palavras chave: política social focalizada, Bolsa Família, precarização, ajuste fiscal, política econômica.

Focused Social Policy and Fiscal Adjustment: Two Sides of the Lula GovernmentAbstract: The purpose of this article is to analyze the nature and principal characteristics of the Lula government’s social policy,revealing its close relationship with the liberal-orthodox economic policy inherited from the previous government as a ‘cursed legacy’,but maintained and extended by the new government. Therefore, more than reviewing all the details and dimensions of this social policy,the purpose is to analyze its content and broader political-economic meaning, considering its central and politically defining element,even in symbolic terms: the Family Grant program to combat poverty.Key words: focused social policy, Family Grant, precariousness, fiscal adjustment, economic policy.

Luiz FilgueirasUniversidade Federal da Bahia (UFBA)

Recebido em 07.11.2006. Aprovado em 21.12.2006

Rev. Katál. Florianópolis v. 10 n. 1 p. 24-34 jan./jun. 2007

ARTIGO

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Introdução

O presente artigo apresenta uma análise da natu-reza e das principais características da política socialdo governo Lula, em particular o programa focaliza-do de combate à pobreza denominado Bolsa-Família,demonstrando que:

a) A natureza e o conteúdo desse tipo de políticasocial só podem ser desvendados, em sua ple-nitude, quando devidamente articulados aomodelo econômico vigente, em particular à suapolítica econômica e aos seus impactos soci-ais. Isto significa dizer que, para além de seusefeitos (reais) amenizadores da miséria e dosofrimento dos mais pobres, considerar essapolítica apenas em si mesma, fora dessa arti-culação, implica, necessariamente, em reificá-la – tendo como resultado final a despolitizaçãodo debate sobre a questão social e alegitimação da estratégia política liberal.

b) O caminho das comparações pontuais e/oudescontextualizadas, entre o governo Lula e ogoverno Cardoso, que procura identificar‘avanços’ quantitativos positivos, em geralmilimétricos, na política social do primeiro, é ocaminho mais curto para a despolitização dodebate e o acobertamento dos liames que li-gam esses dois governos – inclusive com orebaixamento programático do que deve ser oconteúdo de uma política social de esquerda.

c) O conteúdo da política social do governo Lula,no essencial, é o mesmo da política social dogoverno anterior, apesar dos discursos em con-trário, que tentam dignificá-la e diferenciá-la– apresentando-a como uma política (supos-tamente) articulada a medidas de natureza es-trutural de combate à pobreza.

d) Esse tipo de política social, que se originouda preocupação das instituições multilaterais,em particular o FMI e o Banco Mundial, coma instabilidade política dos países da perife-ria do capitalismo – em muito agravada coma implementação das políticas e reformaseconômicas liberais –, passou a ser reco-mendada enfaticamente por essas institui-ções a partir, principalmente, do final dos anos1990, após a ocorrência de sucessivas cri-ses econômicas.

Além dessa Introdução, esse texto é compostopor mais quatro seções. Na primeira, demarca-se ahistoricidade das políticas sociais; na segunda seção,caracteriza-se o Modelo Liberal Periférico (MLP) eanalisa-se a política econômica do governo Lula; naterceira, analisa-se a política social do governo Lula– a sua natureza, o seu alcance e a sua limitação; efinalmente, na Conclusão, sintetiza-se o caráter fle-xível e volátil dessa política.

1 Política social: universalização versusfocalização

A origem e motivação das políticas sociais datam doséculo 19, quando a hegemonia do capitalismo industriale as revoluções burguesas criaram uma acirrada dispu-ta entre o campo dos direitos políticos (cidadãos livres eiguais) e o campo do mercado e da economia liberal –sustentados no direito de propriedade e na relação deexploração ilimitada do trabalho assalariado. Do pontode vista da ideologia liberal, a sociedade é produto deescolhas e responsabilidades individuais, a partir das quaisse estabelecem acordos e contratos. No entanto, desdeos primórdios do capitalismo, as lutas operárias expuse-ram as condições precárias de trabalho, fruto da rela-ção desigual entre os indivíduos e derivadas da subordi-nação e intensa exploração dos trabalhadores, que, aospoucos, foram conquistando, algum tipo de amparo le-gal e estatal, através da legislação fabril – ainda queesta tenha sido, sistematicamente, desrespeitada na prá-tica pelos industriais.

A “invenção do social” (DONZELOT, 1994) ou a(metamorfose da) “questão social” (CASTEL, 1995)demonstram a realidade e a necessidade históricas do‘social’, no sentido da criação de uma política ou umaação para por limites, para regular e estabelecer direi-tos sociais, a fim de reduzir a voracidade do capitalis-mo e da ‘mão livre do mercado’. É o reconhecimentoda existência do social para preservar a própria socie-dade. Trata-se, portanto, de se constituir uma ‘autori-dade pública’, através do Estado, que garanta a sobre-vivência da sociedade e de seus cidadãos, a começarpelo direito ao trabalho e ao emprego, assim como asdemais necessidades para se viver socialmente. Resi-de nessa condição iminente, de esfacelamento da so-ciedade, a origem dos serviços públicos e das institui-ções públicas capazes de desempenhar o papel demediadoras e limitadoras da dominação do capital so-bre o trabalho e, conseqüentemente, de redutoras daassimetria destas forças no mercado.

No século 20, a partir dos anos 30, e principalmen-te no pós-Segunda Guerra Mundial, os países maisdesenvolvidos da Europa viveram uma experiência quese tornou referência para todo o mundo. Uma épocaem que se constituiu o ‘Estado de Bem-Estar Social’,resultado de um pacto entre as organizações políticase sindicais dos trabalhadores (através da social-demo-cracia) e os capitalistas. Pacto este alicerçado, de umlado, numa melhor distribuição de renda e dos ganhosde produtividade e, de outro, na aceitação da ordemdo capital. Nesse período criou-se a possibilidade deimplementação de políticas sociais como instrumentode regulação do mercado, sendo estabelecido um con-junto de direitos sociais universais (emprego, moradia,educação, saúde, transporte, etc.) reivindicados pelostrabalhadores e garantidos pelo Estado, tornando, des-ta forma, o capitalismo menos devastador.

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É contra essa experiência das políticas sociaisuniversais, garantidas pelo Estado de Bem-Estar So-cial, que surgem as primeiras iniciativas de cunhoneoliberal, em 1947, na reunião de Mont Pèlerin(ANDERSON, 1995) – que negam o ‘social’ reconhe-cido e regulado pelo Estado e propõem a sociedadelivre ‘regulada’ pelo mercado e pelas escolhas e ini-ciativas dos indivíduos. Proposição derrotada à épo-ca e que, por quase 40 anos, não teve força para secontrapor às políticas de bem-estar social. E, mesmonos países da periferia, em especial na América La-tina, as políticas sociais universais inspiraram os mo-delos adotados, como no caso brasileiro, através dopopulismo getulista e do Estado corporativo, resul-tando no que alguns autores denominam de “fordismoperiférico ou incompleto”.

É a partir dos anos 1980, para os países desenvol-vidos, e dos anos 1990 no caso do Brasil, que oneoliberalismo se impõe e consegue se tornarhegemônico no âmbito mundial. Embora com diferen-tes fisionomias e configurações em cada região ou país,tem em comum alguns valores centrais retomados doliberalismo, em especial uma ação dirigida para a “des-tituição do social” (IVO, 2001), ou seja, uma política dedestruição dos direitos sociais conquistados pelas lu-tas dos trabalhadores, dentre eles aquele mais elemen-tar: o direito ao emprego. Nesta investida, as políticassociais vão perdendo apoio, a universalidade do aces-so aos serviços públicos vai sendo reduzida nos paísescentrais, levando ao enfraquecimento dos Estados deBem-Estar Social na Europa.

Nos países da América Latina, nos quais não seestabeleceu plenamente as políticas sociais univer-sais, nem mesmo a “cidadania do fordismo” (MOTA,1991), as diretrizes do Banco Mundial passaram aser respeitadas, defendidas e aplicadas – com a subs-tituição crescente dos poucos direitos sociais con-quistados pelas “políticas de combate à pobreza”.Neste contexto, se implementam as chamadas políti-cas focalizadas, cuja lógica perversa foi sintetizadapor Ivo (2001, p. 67-68) da seguinte forma:

No âmbito do tratamento da questão ‘social’, reti-ra-se o caráter universalista dos direitos, especial-mente aqueles securitários, para uma política quese orienta gradativamente para uma avaliação dosatributos pessoais (os mais aptos, os realmentepobres, os mais pobres entre os pobres) e morais(aqueles que ‘devem’ receber a assistência). Poroutro lado, o caráter fragmentado da incorporaçãode diferentes segmentos das classes trabalhado-ras ao sistema (baseado num sistema de direitos,restrito à camada assalariada) gerou umareconversão perversa de benefícios-obrigações emprivilégios. Hoje, o que é dever de proteção do Es-tado (para todos) reconverte-se, supostamente ede forma perversa, em indivíduos-perversos-imo-

rais ao sistema, responsáveis pela miséria dos ou-tros. […] Assim, tecnifica-se a questão social, quepassa a se constituir em programas subordinadosaos gastos públicos e sociais, ou seja, da soluçãoda crise fiscal, dependente, portanto, dos fluxos decapital para pagamento da dívida, num quadro deredução dos gastos sociais (se comparados ao pa-tamar das décadas anteriores).

De fato, a política social focalizada, de combate àpobreza, nasce e se articula umbilicalmente às refor-mas liberais e tem por função compensar parcial, e muitolimitadamente, os estragos socioeconômicos promovi-dos pelo MLP e suas políticas econômicas, reconheci-das pelo Banco Mundial (BANCO MUNDIAL, 2006) –baixo crescimento econômico, pobreza, elevadas taxasde desemprego, baixos rendimentos, enfim, um proces-so generalizado de precarização do trabalho.

Uma política social apoiada num conceito de po-breza restrito, que reduz o número real de pobres,suas necessidades e o montante de recursos públi-cos a serem disponibilizados – adequando-os ao per-manente ajuste fiscal a que se submetem os paísesda região, por exigência do FMI e do capital finan-ceiro (os mercados) para garantir o pagamento dassuas respectivas dívidas públicas. Portanto, uma po-lítica social que se define e se caracteriza por ser acontra-face dos superávits fiscais primários.

Uma política social de natureza mercantil, queconcebe a redução da pobreza como um ‘bom negó-cio’ e que transforma o cidadão portador de direitose deveres sociais em consumidor tutelado, atravésda transferência direta de renda, e cuja elegibilidade,como participante desses programas, subordina-se acritérios ‘técnicos’’ definidos ad hoc a depender dogoverno de plantão e do tamanho do ajuste fiscal –numa operação ideológica de despolitização do con-flito distributivo.

Uma política social que, pela sua própria origem enatureza, busca se implementar e se tornarhegemônica a partir da negação dos direitos e daspolíticas sociais universais, através de um discursoque ataca diretamente a seguridade e a assistênciasocial públicas – aposentadorias, pensões, segurodesemprego, etc. – bem como a universidade públi-ca e as políticas de subsídios ao consumo de bensbásicos, como no caso da energia elétrica.

Uma política social que divide, canhestramente,os trabalhadores em categorias do tipo: miseráveis,mais pobres, pobres, não pobres e privilegiados – es-tes últimos identificados como aqueles que têm acessoà seguridade social incompleta e limitada, própria dospaíses da periferia do capitalismo, em particular daAmérica Latina. Uma política social que enclausurao conflito distributivo na base da pirâmide social e écompatível com o empobrecimento e redução daschamadas classes médias e o processo de polariza-

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ção das desigualdades na distribuição de renda(SALAMA, 2006) – ambos produtos do período devigência do MLP.

Enfim, uma política social que desloca a disputaentre capital e trabalho, própria das sociedades capi-talistas, para o âmbito interno da classe trabalhadora,transformando-a assim num conflito distributivo queopõe os seus vários estratos: assalariados com rendi-mentos mais elevados versus mais reduzidos, traba-lhadores qualificados versus não-qualificados, traba-lhadores formais versus informais, participantes versusnão participantes da seguridade social, trabalhadoresdo setor publico versus do setor privado, etc. Todaselas, clivagens reais ou imaginárias, acentuadas oucriadas pelo capital e sua política, que fragmentam aclasse trabalhadora e estimulam e açulam a disputaentre os seus diversos segmentos.

2 O modelo liberal-periférico no Brasil e suaspolíticas macroeconômicas

No Brasil, desde o início dos anos 1990, vive-seum processo de constituição, aprofundamento, con-solidação e ajuste de um mesmo modelo econômico(liberal-periférico), que começou a se esboçar a par-tir do governo Collor (1990-1992) e tomou sua formamais acabada no governo Lula (2003-2006). O con-junto das reformas que conformaram esse novo mo-delo econômico implicou profundas transformações(FILGUEIRAS, 2006a) em pelo menos quatro dimen-sões inter-relacionadas;

1) As relações capital/trabalho sofreram umainflexão radical que, ao mudar a correlação deforças a favor do primeiro, implicou adesestruturação do mercado de trabalho e umprocesso generalizado de precarização do tra-balho – cuja face mais visível é o crescimentodo desemprego aberto de caráter estrutural, oaumento da informalidade e o enfraquecimen-to dos sindicatos. Adicionalmente, essa inflexãopassou a colocar em questão todos os direitossociais e trabalhistas conquistados pela classetrabalhadora desde os anos 30 do século pas-sado – em particular através do ataque siste-mático à Consolidação das Leis do Trabalho(CLT) e à Constituição de 1988.

2) A relação entre as distintas frações do capitalfoi reconfigurada, com o capital industrial per-dendo a sua condição de hegemonia política ede líder do processo de desenvolvimento e dadinâmica macroeconômica. Em seu lugar as-sumiu o capital financeiro – nacional e inter-nacional – e uma fração do capital industrialque se financeirizou organicamente. Nessanova configuração, o sistema financeiro pas-sou por um processo de concentração enorme

e acentuou a sua natureza parasitária, conti-nuando a operar, essencialmente, no financia-mento da divida pública.

3) A inserção internacional, feita de forma passi-va, a partir da abertura comercial e financeirada economia e tendo por objetivo imediato ocombate à inflação, agravou a vulnerabilidadeexterna do país, tornando a sua dinâmicamacroeconômica mais dependente dos ciclosdo comércio internacional e dos movimentosde curto prazo do capital financeiro.

4) A estrutura e o funcionamento do Estado seredefiniram, através da privatização de suasempresas e de várias reformas de caráter li-beral – como a da previdência social e a que-bra do monopólio estatal do petróleo. Além dis-so, a partir de 1994, em virtude da lógicamacroeconômica intrínseca ao Plano Real, oEstado foi fragilizado financeiramente aindamais, através do crescimento vertiginoso dadívida pública, que implicou a perda de suacapacidade de investimento e restringiu deci-sivamente a política social.

No entanto, a política e a dinâmica macroeco-nômicas – expressões mais aparentes e imediatas domodelo econômico – não se mantiveram exatamenteas mesmas ao longo de todo o período (1994-2006).

Na verdade, pode-se traçar uma linha divisória, quedistingue dois momentos na evolução desse modeloeconômico a partir de um acontecimento bem preciso:a crise cambial deflagrada em janeiro de 1999, logo noinício do segundo governo Cardoso. Esse fato impli-cou a mudança da política econômica e um ajuste po-lítico-econômico do modelo, com implicações impor-tantes para a sua dinâmica macroeconômica e o trata-mento da questão social. Nesse segundo período, aspolíticas focalizadas, já desenhadas e iniciadas no pri-meiro governo Cardoso, passaram a assumir uma di-mensão cada vez maior (FILGUEIRAS, 2006b).

O governo Lula (2003-2006), por sua vez, nãomoveu um milímetro para alterar a essência do mo-delo de desenvolvimento – caracterizado, sobretudo,pela dominação da lógica financeira – nem,tampouco, a política macroeconômica que herdou dogoverno anterior. Ao contrário; deu continuação àsreformas liberais – através da implementação de umareforma da previdência dos servidores públicos queabriu espaço para o capital financeiro. Na mesmadireção, iniciou um processo para reformar a legisla-ção sindical e sinalizou para uma reforma das leistrabalhistas, com o intuito de aprofundar a flexi-bilização já em curso. Além disso, logo no início dogoverno, alterou a Constituição, para facilitar, poste-riormente, o encaminhamento da proposta de inde-pendência do Banco Central. Posteriormente, apro-vou a lei de falências e a lei das chamadas parceriaspúblico-privado (PPP), com o intuito de desencadear

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uma nova fase das privatizações, agora abarcando ainfra-estrutura futura do país – uma vez que a políticade superávits primários reduz drasticamente a capaci-dade de investir do Estado (FILGUEIRAS, 2006b).

Na política macroeconômica, o governo Lula ele-vou os superávits fiscais primários para mais de 4,25%do PIB. Por isso, juntos, como se pode constatar noQuadro 1, o segundo governo Cardoso e o governoLula (até julho de 2006) propiciaram ao capital financei-ro um montante de mais de um trilhão de reais de jurosda dívida pública e pagaram, com os superávits primári-os, R$ 468,5 bilhões (correspondendo a 8% e 8,2% doPIB, respectivamente, no segundo governo Cardoso eno governo Lula). Apesar disso, a dívida pública foi acres-cida, entre 1995 e julho de 2006, em mais R$ 817,1 bi-lhões – condicionando, decisivamente, os gastos sociais,conforme se verá na próxima seção.

3 A política social do governo Lula

A grande desigualdade (patrimonial e de renda) e oelevado grau de pobreza existente no Brasil remetem,em sua origem mais longínqua, à formação econômico-social do país, calcada na escravidão e no latifúndio.Permanentemente atualizada após a implantação do tra-balho assalariado, essa realidade sobreviveu a váriosperíodos de sua história econômica e política, chegandoaos dias atuais determinada, cada vez mais, pelo binômiopropriedade fundiária-capital financeiro.

Nesse processo, a questão social, transformadaem uma questão política a partir dos anos 1930 pelovarguismo, se explicitou e se estruturou a partir daspolíticas trabalhistas, tendo como uma das caracte-rísticas essenciais um alcance limitado – restrita aalguns segmentos de trabalhadores do setor urbano.

Fonte: Banco Central do Brasil em: <www.bcb.gov.br>.

Desse modo, analisar as políticas econômica e soci-al do governo Lula, a partir dessa percepção, significadistinguir, de um lado, o primeiro governo Cardoso (1995-1998) – período mais duro de implantação do novo mo-delo, no qual a dominância do capital financeiro, no inte-rior do bloco de poder dominante, pode ser qualificadacomo inconteste e estrita; e, de outro, o segundo gover-no Cardoso (1999-2002) e o governo Lula (2003-2006)– no qual a hegemonia do capital financeiro persiste,mas com uma maior acomodação dos interesses deoutras frações do capital participantes do bloco de po-der, especialmente os seus segmentos exportadores.

Do ponto de vista estrutural, o que assegura e ex-plica a linha de continuidade entre o segundo governoCardoso e o governo Lula, com a manutenção do mes-mo modelo econômico, da mesma políticamacroeconômica e, não surpreendentemente, da mes-ma política social, é a permanência, ao longo de todo operíodo, do mesmo bloco de poder dominante,construído a partir do inicio dos anos 1990 sob os es-combros do Modelo de Substituição de Importações(MSI) – bloco este que sofreu acomodações no co-meço do segundo governo Cardoso, mas que mantevecomo hegemônico, na sua direção política, o capitalfinanceiro. Além disso, também foi fundamental, paraa ausência de mudanças significativas entre os doisgovernos, o processo de ‘transformismo’ político tri-lhado por Lula e pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Os trabalhadores rurais não se constituíram em su-jeitos do pacto populista e só vieram a se incorporarà seguridade social muitos anos depois.

Com o fim do regime militar e a elaboração deuma nova Constituição (1988), numa década de vi-gor dos movimentos sociais e sindical – com a cria-ção do PT, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Movimento dos Trabalhadores RuraisSem Terra (MST), conseguiu-se inserir na lei maiordo país reivindicações históricas desses movimen-tos, dando um estatuto legal para instauração de umaseguridade social de fato universal.

No entanto, não houve tempo para se avançar mui-to nessa direção. A vitória, implementação e consolida-ção do neoliberalismo a partir dos anos 1990 passarama colocar em questão, primeiramente, a ampliação dosdireitos inseridos na nova Constituição e, posteriormen-te, todo e qualquer direito – sempre em nome de ajustesfiscais (déficit público) e monetários (combate à infla-ção). É isso que explica o ataque político-ideológico sis-temático à Constituição de 1988, implementado pelasclasses dominantes, desqualificando-a como ‘populista’,‘irresponsável’ e ‘desfocada da realidade econômico-financeira do Estado e do país’ – com o patrocínio, nes-tes últimos 16 anos, de inúmeras emendas que vêm,paulatinamente, desfigurando-a.

A partir da elaboração e implementação do PlanoReal, e ainda em sua fase preliminar no final de 1993,

Quadro 1 – Juros, superávit e crescimento da dívida

Período

1995-19981999-20022003-2006/07Total

Juros(R$ Bilhões)

211,4511,1557,1

1.068,2

SFP(R$ Bilhões)

-6,5165,4303,6462,5

Aumento da DP(R$ Bilhões)

217,9345,7253,5817,1

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as políticas universais inscritas na Constituição so-freram um violento golpe, com a criação de um me-canismo de desvinculação entre receitas e despesas,que passou a vigorar a partir de 1994 – permitindo, apartir daí, que os sucessivos governos fizessem usode 20% do total de impostos e contribuições federaisde acordo com as suas conveniências políticas. Por-tanto, reduzindo, de fato, os recursos originalmenteprevistos para a área social. Esse mecanismo, quetomou o nome à época de Fundo Social de Emergên-cia, foi mais tarde rebatizado como Fundo de Estabi-lização Fiscal e hoje é conhecido como Desvinculaçãode Receitas da União (DRU). Através de sucessi-vas medidas provisórias, todos os governos, inclusiveo governo Lula, renovaram a validade desse perver-so mecanismo. Em 2007, deverá ser renovado pelosegundo governo Lula.

Nesse contexto de ajuste fiscal permanente, colo-cado em prática a partir do segundo governo Cardoso,e mantido durante o governo Lula, a política social foise transformando em sinônimo de política social foca-lizada, voltada para os mais pobres e miseráveis – coma criação de inúmeros programas de complementaçãode renda. Implementada ainda de forma tímida pelosgovernos de Cardoso, tal política vai ser ampliada eaprofundada pelo governo Lula, que lhe dá continuida-de sob os aplausos do Banco Mundial.

De fato, essa política tem limites dados pelo mode-lo de desenvolvimento vigente, articulando-se funcio-nalmente a ele como uma espécie de contra-face dapolítica macroeconômica ortodoxa calcada em enor-mes superávits fiscais primários. O Quadro 2, refe-rente à execução orçamentária do período 2000-2005,discrimina o total de gastos do Governo Federal agru-pando-os, segundo a sua finalidade, em três rubricas:encargos especiais (juros e serviços da dívida pública,transferências e outras despesas financeiras), gastossociais totais (previdência e assistência social, educa-ção, saúde, trabalho, cultura, desporto e lazer, habita-ção e saneamento) e outros (administração e planeja-mento, desenvolvimento regional, defesa nacional esegurança pública, agricultura, transporte, energia, re-cursos minerais, judiciário, legislativo, etc.).

O constrangimento dos gastos sociais e de outrosgastos, em virtude do enorme serviço da dívida públi-ca e outros encargos financeiros, é evidente: compequenas variações ano a ano, a proporção de gas-

tos no orçamento da União com essa rubrica ficousempre acima de 42% ao longo desse período – dan-do-lhe uma característica única e garantindo, tam-bém na área dos gastos públicos, uma unidade es-sencial entre os governos Cardoso e Lula.

Esse casamento, entre políticas econômicas ortodo-xas e políticas focalizadas de combate à pobreza, veioacompanhado da redução relativa das já limitadas polí-ticas universais. E a DRU, que garante a obtenção doselevados superávits fiscais primários, é o instrumentofundamental que vem assegurando essa redução.

A lógica e o discurso são de que o Estado devedirigir suas ações para os mais pobres e miseráveis –conforme o estabelecimento de uma linha de pobre-za minimalista, empurrando os demais para acontratação de serviços no mercado (saúde, educa-ção e previdência, principalmente). Na verdade, aclasse média (inclusive parte da chamada classemédia baixa), há tempos supre no mercado suas ne-cessidades (em particular com escolas e planos desaúde privados), não fazendo uso dos serviçosofertados de forma precária pelo Estado.

Desse modo, e em contrapartida, liberam-se re-cursos financeiros para serem direcionados para opagamento da dívida pública, através da obtenção deelevados superávits fiscais primários. Essessuperávits, obtidos sistematicamente, conforme já seviu, durante o segundo governo Cardoso e o governoLula, vieram acompanhados de uma elevação dacarga tributária de 8 pontos percentuais (de 29% para37% do PIB). Em suma, há uma brutal transferênciade renda do conjunto da sociedade para o capital fi-nanceiro e os rentistas, em particular dos rendimen-tos do trabalho para o capital em geral e dos rendi-mentos do ‘capital estritamente produtivo’ (peque-nos e médios) para os grandes grupos econômicosfinanceirizados.

Do ponto de vista político, conforme já afirmado,a política focalizada leva a uma maior fragmentaçãoda classe trabalhadora, além de acusar os que aindatêm emprego e acesso à seguridade social de privile-giados e responsáveis pelo grau de desigualdade exis-tente no país.

Do ponto de vista social, essa política se articulacom o processo de flexibilização/precarização do tra-balho, com a retirada de direitos sociais e trabalhis-tas, em particular saúde, educação e previdência so-

Fonte: Relatório Resumido da Execução Orçamentária do Governo Federal em: <www.stn.fazenda.gov.br>.

Quadro 2 – Execução do Orçamento da União – 2000-2005

Orçamento Realizado

Encargos EspeciaisGastos Sociais TotaisOutrosTotal

2000

42,3643,8013,84

100,00

2001

45,5241,2213,26

100,00

2002

45,3440,7413,92

100,00

2003

46,8241,9111,27

100,00

2004

43,8244,3811,80

100,00

2005

42,4545,2812,27

100,00

2000/05

44,3643,0712,57

100,00

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cial. Em suma, embora, em si mesmas, essas políti-cas de combate à pobreza reduzam, momentanea-mente, as carências das populações mais miserá-veis, as mesmas estão, de fato, inseridas numa lógicamais geral liberal e num programa político conserva-dor e regressivo socialmente, próprios da nova fasepor que passa o capitalismo sob hegemonia do capi-tal financeiro1 .

Assim, também na política social, o governo Lulaaprofundou o modelo herdado do governo anterior,levando-o às suas últimas conseqüências. De fato,os programas sociais focalizados, tanto do ponto devista dos montantes transferidos quanto do númerode famílias atingidas, assumiram uma dimensão nun-ca antes vista.

O Quadro 3 apresenta as diversas áreas dos gas-tos sociais no período 2000-2005, segundo as suasrespectivas participações relativas na parte social doOrçamento da União – excluindo desta os gastos coma previdência social, cuja maior parte é custeada pe-las receitas provenientes do recolhimento de traba-lhadores e empresários.

De fato, mais do que o governo Cardoso, que deuinício a este tipo de política, Lula levou a sério a impor-tância político-social das mesmas no que se refere àsua função ‘amortecedora’ de tensões sociais no con-junto do projeto liberal; e este é o seu objetivo essencial,pois não inclui de forma duradoura – uma vez que nãotem capacidade de desarmar os mecanismos estrutu-rais de reprodução da pobreza. De fato, apenasfuncionaliza a pobreza, mantendo em permanente esta-do de insegurança, indigência e dependência o seu pu-blico alvo, permitindo, assim, a sua manipulação políticapara objetivos estranhos aos seus reais interesses.

A relação política estabelecida é direta – presi-dente/eleitor –, sem mediação de partidos ou outrasinstituições da democracia formal, uma das caracte-rísticas de todos os tipos de populismo (BOITO, 2004;MARQUES; MENDES, 2006). Não por acaso, as mai-ores votações em Lula foram nos estados em quehá, absoluta ou proporcionalmente, um maior contin-gente de beneficiados do programa Bolsa Família.

O Bolsa Família, que unificou os programas soci-ais focalizados já existentes no governo Cardoso (Bol-

Quadro 3 – Execução do Orçamento (social) da União – 2000-2005

* Com exclusão da Previdência SocialFonte: Relatório Resumido da Execução Orçamentária do Governo Federal em: <www.stn.fazenda.gov.br>.

Conforme se pode verificar, os gastos sociais quepossuem uma maior capacidade para ter impactoestrutural no combate às desigualdades e à pobreza(saúde, educação, habitação e saneamento) perde-ram, ao longo do período, participação relativa noorçamento social. Em contrapartida, os gastos com aassistência social, cujo montante tem participaçãofundamental do Programa Bolsa Família, praticamentedobrou a sua participação no período (9,9% para18,3%) – o que aponta a preocupação maior do go-verno Lula com a política social focalizada. Os re-cursos gastos com esse programa saíram de R$ 3,3bilhões em 2003 para R$ 6,4 bilhões em 2005 (cres-cimento de 94%) e para mais de R$ 8 bilhões em2006 e 2007 (previsão).

sa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás) e o Car-tão Alimentação (do Fome Zero), tem como públicopotencial (já alcançado em 2006) 11,2 milhões de fa-mílias (53 milhões de pessoas) com renda per capitamensal de até R$120,00. Aquelas consideradas extre-mamente pobres, com renda mensal de até R$ 60,00,podem participar do Programa independentemente desua composição. Por sua vez, as famílias considera-das pobres, com renda mensal per capita entre R$60,01 e R$ 120,00, podem participar do programa des-de que tenham gestantes, nutrizes e crianças e adoles-centes entre 0 a 15 anos. As do primeiro grupo, inde-pendentemente do número de filhos, recebem umacomplementação de renda no valor de R$ 50,00 e asdo segundo grupo no valor de R$ 15,00 por filho, até o

Orçamento Realizado

Saúde

Educação

Assistência Social

TrabalhoOrganização Agrária

Cultura

Desporto e Lazer

Habitação e Saneamento

Gastos Sociais Totais*

2000

45,20

23,67

9,90

13,932,44

0,53

0,39

3,94

100,00

2001

46,80

23,04

10,49

14,732,63

0,55

0,59

1,17

100,00

2002

45,62

23,71

11,68

15,202,48

0,43

0,48

0,40

100,00

2003

44,31

23,20

13,73

15,492,33

0,38

0,26

0,30

100,00

2004

43,46

19,15

18,28

14,123,45

0,43

0,36

0,75

100,00

2005

42,25

18,75

18,30

14,734,15

0,57

0,49

0,76

100,00

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31Política social focalizada e ajuste fiscal: as duas faces do governo Lula

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máximo de R$ 45,00 (três filhos). Como as do primei-ro grupo podem acumular os dois tipos de benefício,os valores pagos pelo Bolsa-Família variam de R$ 15,00a R$ 95,00 (BRASIL, 2006a)

Em suma, as famílias participantes do progra-ma (orçamento de R$ 8,4 bilhões em 2006) rece-bem uma complementação de renda de acordo coma sua renda per capita e o número de crianças quea compõem. Como se pode constatar, a linha depobreza é estipulada a partir de um nível de rendaextremamente baixo, como condição para que osrecursos transferidos sejam muito limitados – porexemplo: em 2005, o valor total destinado ao Bol-sa-Família foi de, mais ou menos, R$ 6 bilhões dereais (BRASIL, 2006a), enquanto a previdência so-cial rural (de forma constitucional e permanente)destinou R$ 17 bilhões aos trabalhadores ruraisaposentados (BRASIL, 2006b) – tendo eles contri-buído ou não quando em atividade –, e os juros docapital financeiro atingiram mais de R$ 150 bilhõesde reais (BRASIL, 2006c).

Portanto, o programa não se configura como ren-da mínima, pois além de não ser universal, tambémnão é constitucional e nem seu valor guarda relaçãocom as necessidades mínimas reais de sobrevivênciada família e das pessoas: o salário mínimo, de acordocom o Departamento Intersindical de Estatística eEstudos Socioeconômicos (DIEESE), deveria ser, atu-almente (setembro de 2006), de R$ 1.510 para umafamília de quatro pessoas (dois adultos e duas crian-ças), o que daria uma renda mínima per capita de R$377,50 – mais que o triplo do valor definido como linhade pobreza pelo Bolsa Família (DIEESE, 2006).

Atualmente, o benefíciomédio pago, por família, é deR$ 65,00. Este valor, mesmodentro da própria lógica dosprogramas focalizados (linhasde pobreza e indigência quesubestimam as necessidadesmínimas de sobrevivência),‘retira’ da pobreza uma par-cela muito pequena de famíli-as. Segundo a Pesquisa Na-cional por Amostra de Domi-cílios (PNAD) de 2004, con-siderando todos os programasde transferência de renda dogoverno (em todos os níveis),7 milhões de pessoas (14% dototal de pobres) ‘cruzaram’ alinha de pobreza e, assim mes-mo, retornariam à condiçãoanterior, imediatamente, caso os programas fossemsuspensos (LAVINAS, 2006).

Por outro lado, é fato que as estatísticas sobre adistribuição de renda e a pobreza evidenciam, a par-

tir do Plano Real, uma (pequena) melhora na primei-ra e uma redução da segunda. No entanto, faz-senecessário qualificar essa informação:

1. A distribuição de renda aludida se refere à dis-tribuição pessoal ou familiar da renda, infor-mada por pesquisas como a PNAD, que cole-ta fundamentalmente os rendimentos do tra-balho, pois os rendimentos do capital (princi-palmente os financeiros) não são captados. Oconceito de renda familiar da PNAD corres-pondia em 2003 a, aproximadamente, 31% darenda interna pelo conceito da contabilidadenacional. Portanto, a ‘melhora’ observada nadistribuição de renda se deu entre os própriostrabalhadores; no mesmo período, a distribui-ção funcional da renda (rendimentos do traba-lho versus rendimentos do capital), captada pelacontabilidade nacional, mostra exatamente ocontrário, os rendimentos do trabalho, comoproporção da renda interna cai sistematicamen-te (DELGADO, 2006).

2. Embora haja uma contribuição do Bolsa Famí-lia na pequena melhora da distribuição de rendaentre os trabalhadores e na redução conjunturalda pobreza, a responsabilidade maior por essesresultados se deve, fundamentalmente, aos di-reitos sociais básicos da seguridade social, quetêm como valor de piso o salário mínimo (DEL-GADO, 2006; LAVINAS, 2006).

O Bolsa Família se constitui, de fato, numa políti-ca assistencialista e clientelista e, portanto,manipulatória do ponto de vista político, em particu-lar em se tratando do seu público alvo: uma massa de

miseráveis desorganizada esem experiência associativa ede luta por seus direitos. A ren-da por ele transferida às famí-lias não se constitui num direi-to social, podendo ser reduzidae/ou retirada a qualquer mo-mento, ao sabor dos interessesde cada governo – bem aogosto da política fiscal liberal-ortodoxa, que não concordacom nenhuma vinculação or-çamentária entre receita e des-pesa; com exceção, obviamen-te, do pagamento dos juros dadívida pública (a lei de ‘Res-ponsabilidade Fiscal’ tem exa-tamente esse objetivo).

Por outro lado, o investi-mento em políticas sociais uni-

versais, que atingem o conjunto da população, tem sereduzido em termos relativos, afetando dramaticamenteum enorme contingente que é pobre e tem todo tipo decarências, mas que não se beneficia dos programas

... a política social do governoLula, tal como a sua política

econômica, é também de natu-reza liberal, coerente com omodelo econômico vigente e

serve de instrumento poderosode manipulação política de

uma parcela significativa dasociedade brasileira ...

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focalizados, porque tem uma renda acima daquela es-tipulada pela linha de pobreza. Esse segmento se de-fronta, cotidianamente, com a deterioração e insufici-ência dos serviços públicos universais.

Uma outra vertente (secundária) da política soci-al, também bem ao gosto do Banco Mundial, são osprogramas de micro-crédito, dirigidos a determina-dos segmentos sociais pobres (mas não miseráveis),com o objetivo de integrá-los ao mercado. No entan-to, como é praxe no Brasil, são extremamente limita-dos e não têm maior relevância; na verdade, são diri-gidos para atividades tradicionais (precárias) queacabam não conseguindo se auto-sustentar na com-petição intercapitalista. Em suma, esses programastambém não conseguem incluir de forma permanen-te e estrutural.

Em resumo, a política social do governo Lula, talcomo a sua política econômica, é também de nature-za liberal, coerente com o modelo econômico vigentee serve de instrumento poderoso de manipulaçãopolítica de uma parcela significativa da sociedadebrasileira, ao mesmo tempo em que permite um dis-curso ‘politicamente correto’.

Apesar de tudo, das intenções e discursos gover-namentais, a política social no Brasil ainda tem com-ponentes mais permanentes, que não dependem decada governo especificamente, com impactos soci-ais de longo prazo e muito maiores que o Bolsa-Fa-mília. Um núcleo (direitos sociais básicos) associadoà política de Estado e, portanto, ainda protegido decortes orçamentários conjunturais e que faz parte dasdespesas obrigatórias, qual seja: previdência (aposen-tadoria e pensões dos trabalhadores), e assistênciasocial (abono e seguro desemprego, benefícios da LeiOrgânica de Assistência Social (LOAS) e renda mensalvitalícia). Além delas, também existem outras políti-cas sociais básicas, de caráter setorial, em particularas de saúde e de educação, que embora sejam obri-gação constitucional dos governos, inclusive com re-cursos vinculados no orçamento e regras específi-cas, não estão imunes a cortes orçamentários, con-forme evidencia a existência da DRU.

Na verdade, essa política social institucional, de-rivada do Estado e inscrita na Constituição, é umempecilho para o avanço dos programas focalizadose o aumento do superávit fiscal. Por isso, está sem-pre na mira dos defensores das políticas focalizadase das iniciativas de reformar a Constituição eaprofundar o ajuste fiscal – como é o caso da pro-posta, do ex-ministro Delfim Neto, de ‘zerar’ o défi-cit nominal. Em particular, ataca-se, sistematicamen-te, as aposentadorias, os benefícios da LOAS, o se-guro-desemprego e a universidade pública, taxando-os como ‘privilégios’, mal-focalizados e dirigidos aosmenos necessitados. O enfoque da focalização é tãoperverso que chega a opor idosos e crianças na dis-puta pelos recursos públicos.

Conclusão

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Pre-sidência da República em 2002 representou a possi-bilidade de uma redefinição ou, até mesmo, uma rup-tura com as políticas neoliberais. No centro da ‘es-perança’ estava a perspectiva de superar a crise doemprego e do mercado de trabalho no país, atravésde um novo modelo econômico no qual aimplementação de políticas de emprego e renda ocu-paria um lugar central.

No entanto, o governo Lula, contrariando a ori-gem e a história do PT, renunciou a realizar essaruptura, negando as principais lutas e reivindica-ções dos trabalhadores brasileiros. Assim, incor-porou plenamente, em seu discurso e em suasações, a defesa da ‘via única’ para a sociedadebrasileira – que vinha sendo desenvolvida pelo go-verno anterior e, nessa medida, passou a justificara necessária e inexorável adaptação à ‘ordem eco-nômica mundial’, diga-se à ordem do capital finan-ceiro internacional.

É a partir dessa adesão que se pode compreen-der a subordinação das políticas econômicas e soci-ais do governo Lula à essência da lógica do capitalfinanceiro que, para além do campo estritamenteeconômico, propaga-se para todas as dimensões davida social – sustentada nas idéias-força devolatilidade e de flexibilidade, como valores e comoideologia, que passam a reger a atuação do Estadoem todos os campos da sociedade.

Neste contexto, combinam-se perfeitamente aflexibilização e precarização do trabalho e as políticasfocalizadas e flexíveis de combate à pobreza. Ambasregidas pela mesma lógica, qual seja, do curto prazo,do imediatismo inconseqüente, de intervenções pontu-ais e precárias que, para não se contrapor ‘à ordemeconômica neoliberal’ e às determinações do BancoMundial, subordinam-se ao reino da volatilidade, semmudar e intervir sobre as causas estruturais dos pro-blemas fundamentais da sociedade brasileira.

No âmbito das pesquisas da Sociologia do Traba-lho, os resultados têm demonstrado, em sua imensamaioria, que a flexibilização, em suas diferentes di-mensões (desregulamentação, mudanças na legisla-ção trabalhista, diferentes formas de contrato,subcontratação/terceirização, jornadas móveis de tra-balho, salários flexíveis, multifuncionalidade oupolivalência, formas de gestão e organização inspira-das no toyotismo), implicam, invariavelmente, emdesemprego e precarização do trabalho.

Os dados sobre o mercado de trabalho no Brasilsob o governo Lula, embora tenham melhorado umpouco conjunturalmente, confirmam a continuidadede uma crise estrutural de emprego com a manuten-ção de altas taxas de desemprego. Segundo a PED-DIEESE, em média, no ano de 2005, essas taxas atin-

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giram 17% na Região Metropolitana de São Paulo e24% (o nível mais alto do país) na Região Metropoli-tana de Salvador. Neste ano, a taxa de desempregoentre os jovens de 16 a 24 anos atingiu 45% nas seisRegiões Metropolitanas do país onde a pesquisa érealizada (DIEESE, 2006). Da mesma forma, mante-ve-se o alto grau de informalidade, os baixos saláriose a criação de ocupações precárias. O crescimentodo emprego com carteira assinada nos últimos anos,processo que vem ocorrendo desde o ano 2000 (ain-da sob o governo Cardoso), resulta, sobretudo, deum quadro econômico internacional favorável às ex-portações brasileiras, e não de uma política de em-prego ou de uma redefinição do MLP. Processo, por-tanto, que não tem qualquer garantia de continuidadee que deverá, muito provavelmente, ter seu movi-mento invertido quando a atual fase ascendente dociclo do comércio internacional se esgotar.

No âmbito político, a flexibilização do trabalho e anatureza flexível da política social focalizada reve-lam-se como estratégias eficientes para o enfraque-cimento das lutas e organização dos trabalhadores,já que os divide entre privilegiados, pobres e muitopobres. Do ponto de vista social, os efeitos do pro-grama Bolsa Família sobre a diminuição da pobrezae das desigualdades, conforme se viu, não é suficien-temente esclarecido, pois acoberta o fato de que essadiminuição das desigualdades se deu em função deuma redistribuição da pobreza entre os próprios tra-balhadores e não em função de uma efetiva distribui-ção de renda. Assim, conforme afirmam Theodoro eDelgado (2003, p. 124):

A eleição dos grupos mais pobres em detrimentode outros um pouco menos pobres pode inclusiveencobrir uma perversa troca de posições entre seg-mentos sociais menos protegidos. Destituir ‘qua-se-pobres’ de direitos pode levá-los, num segundomomento, à condição de pobres. O risco é tantomais grave se não se considera que muitas vezes éo acesso a direitos sociais que garante uma posi-ção de não pobres a expressivos segmentos dapopulação. A opção de acirramento de um embatedistributivo na base, contrapondo pobresdesprotegidos aos um pouco menos pobres, pare-ce bastante perversa.

Desse modo, a permanecer a defesa e aplica-ção do MLP e de suas políticas sociais, o cenáriopara o próximo período pode ser desde já desenha-do como de aprofundamento da precarização do tra-balho e, conseqüentemente, dos problemas sociais,com a implementação das reformas sindical e tra-balhista sob o signo da flexibilização, justificadascomo inexoráveis no quadro de globalização da so-ciedade. Não estando também descartadas, umanova reforma da previdência e a ampliação dos

superávits primários, através do aumento dopercentual da DRU.

O discurso da campanha eleitoral e as aliançaseleitorais realizadas no primeiro e segundo turnos,que levaram à vitória de Lula, dando-lhe um se-gundo mandato, expressaram, de forma contunden-te, o compromisso de continuidade na sustentaçãodesse modelo e, em especial, das políticas focali-zadas que, segundo o presidente reeleito, lhe ga-rantiram o apoio e a aprovação de seu governopelos segmentos mais pobres da sociedade. Restasaber se os movimentos sociais e os segmentosmais organizados da sociedade brasileira aceita-rão essas políticas e seus resultados perversos ouse buscarão romper com esse quadro, reafirman-do a sua autonomia na busca da construção de umasociedade alternativa em contraposição à ‘via úni-ca’ defendida pelo governo Lula.

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Nota

1 Na verdade, esses programas podem também, eventualmente,ser implementados num outro contexto, no interior de um outromodelo econômico e com um outro bloco de poder – numaperspectiva claramente emergencial e articulados com políticasestruturais –, mas aí perderiam o seu caráter focalizado estrito.

Graça DruckDoutora em Ciências Sociais pela Univ. Estadual deCampinas (UNICAMP)Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos(CRH-UFBA) e do CNPqProfessora na Faculdade de Filosofia e Ciências Hu-manas da UFBA – Centro de Recursos HumanosRua Caetano Moura, 99 – 1. subsoloFederaçãoSalvador – BahiaCEP : 40223-360

Luiz FilgueirasDoutor em Economia pela UNICAMPBolsista da CAPES, em estágio Pós-Doutoral naUniversidade Paris-XIIIProfessor na Faculdade de Ciências Econômicas daUFBAPraça Treze de Maio, 06 – 5. andar, sala 500Piedade, CentroSalvador – BahiaCEP: 40070-010