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POLÍTICA EDUCACIONAL E IMÁGINÁRIO SOCIAL NO RIO
GRANDE DO SUL DOS POSITIVISTAS (1889/1930)
Berenice Corsetti
UNISINOS
Introdução
Cenário regional onde se efetivou uma experiência histórica peculiar, no campo da
educação brasileira, o Rio Grande do Sul, na Primeira República, desenvolveu uma política
educacional marcada por características muito específicas, próprias desse momento
histórico. O trabalho que apresentamos pretende tratar, no contexto dessa política, de um de
seus aspectos, ou seja, a construção do imaginário coletivo cujo esclarecimento nos permite
compreender a hegemonia ideológica conseguida pelos dirigentes republicanos de
orientação positivista. A partir de uma tipologia de fontes primárias que consideramos
muito significativa para esse fim, ou seja, os relatórios da Secretaria do Interior e Exterior,
onde estava situada a Instrução Pública, a legislação do período e a Revista UNITAS,
revista oficial da Arquidiocese de Porto Alegre, foi possível descortinar a forma como foi
construído o imaginário social legitimador do poder político republicano.
O grupo político que assumiu, com o advento da República, a direção da política
estadual, buscou implementar um projeto de modernização conservadora que visou
consolidar o modelo capitalista como base do desenvolvimento regional. Nesse processo, a
educação teve um papel significativo, já que a ela foi atribuída a tarefa de formar o cidadão
dos novos tempos do capitalismo.
Ao assumir o governo do Rio Grande do Sul, os dirigentes republicanos pautaram-se
por uma clara orientação positivista, tendo, na obra de Augusto Comte, a matriz ideológica
inspiradora de sua ação política. Dedicaram-se a estruturar a máquina administrativa do
Estado, traçando e executando uma série de políticas públicas, atuando nos campos da
higiene pública, serviço policial, obras públicas, organização judiciária, estrutura fundiária,
entre outros. Em termos educacionais, o governo de orientação positivista moveu-se em
2
função de interesses específicos, que previam a utilização da educação como instrumento
de modernização.
Nesse sentido a ação governamental, além de jogar com a sua política educacional
para ampliar o nível de formação dos gaúchos pela diminuição do analfabetismo, entre
outros elementos, demonstrou sua compreensão de que a moral e a educação constituiriam-
se nos principais elementos de garantia da ordem social e promotores da acomodação dos
indivíduos à sociedade. A escola foi, assim, um dos mecanismos de construção da
hegemonia do projeto do grupo dirigente. Para tanto, a política educacional do Rio Grande
do Sul, na Primeira República, conjugou iniciativas governamentais com, sobretudo, o
apoio à iniciativa privada.
Nesse contexto, a política educacional envolveu ações específicas destinadas à
constituição de um imaginário social legitimador de seu projeto, que estaremos analisando,
à luz dos elementos empíricos obtidos na investigação sobre o tema. Trata-se, portanto de
um trabalho historiográfico, desenvolvido a partir de fontes primárias, analisadas a partir de
uma leitura hermenêutica e de uma metodologia de caráter dialético.
1. A política educacional do Rio Grande do Sul na Primeira República
A política educacional implementada pelos republicanos positivistas, na Primeira
República, integrou uma estratégia mais abrangente de ação do Estado, que atuou de forma
interventora no âmbito da sociedade, desenvolvendo uma série de políticas entre as quais
teve destaque a relativa à educação, a qual se caracterizou por quatro aspectos, articulados
entre si pelos dirigentes do Estado: a intervenção da bancada gaúcha no parlamento
nacional, a atuação do governo gaúcho a nível estadual, a mediação com a Igreja Católica e
a construção de um imaginário republicano criador da “consciência nacional”.
Em relação ao primeiro aspecto, a articulação da atuação do Rio Grande do Sul a
nível nacional foi feita sobretudo por Pinheiro Machado. A bancada gaúcha seguiu
rigorosamente o programa do PRR, que no campo educacional previa: liberdade de ensino
pela supressão do ensino superior e secundário; liberdade de profissões, pela supressão dos
3
privilégios escolásticos ou acadêmicos; liberdade, laicidade e gratuidade do ensino
primário; educação e instrução popular; ensino técnico-profissional.1
Na prática, a idéia central era a da “liberdade de ensino”, que balizou a atuação da
bancada gaúcha no Congresso Nacional, sempre que a questão polêmica da educação foi
debatida e deliberada.. Em síntese, foi possível perceber que a bancada gaúcha, através de
seu trabalho persistente e coeso no Parlamento Federal, contribuiu significativamente para,
por um lado, impedir uma maior ação do Estado Nacional no campo do ensino elementar e
secundário e, por outro, garantir esse espaço para a iniciativa privada ampliar sua
penetração.
Articulada com essa atuação nacional, a ação do governo gaúcho revelou a
utilização da educação como instrumento da política de modernização do Estado, tendo
sido marcada por características que resumem a importante intervenção dos dirigentes
positivistas em relação ao setor, conforme exposto abaixo:
a) Expansão do ensino público primário, como ação fundamental do Estado;
b) Estímulo e apoio, inclusive com verbas públicas, ao ensino técnico-profissional e
superior privados;
c) Nacionalização do ensino, especialmente nas regiões coloniais;
d) Utilização da escola como instrumento de política de saúde preventiva, através da
formação da “consciência sanitária da população”, bem como de assistência social;
e) Contenção de despesas com a expansão do ensino, através dos mecanismos das
subvenções escolares e do envolvimento das municipalidades;
f) Centralização administrativa e uniformização pedagógica;
g) Controle pleno do ensino público e liberdade à iniciativa privada;
h) Utilização da escola pública para a formação da mentalidade adequada ao processo de
modernização conservadora promovido pelo Estado;
i) Diferenciação dos saberes, como parte da própria lógica da dominação e da construção
do processo de modernização capitalista patrocinado pelos dirigentes republicanos de
orientação positivista.
1 TAMBARA, E. Positivismo e Educação - A educação no Rio Grande do Sul sob o Castilhismo (1995),
p. 160.
4
Em paralelo, a política educacional republicana incluiu, através de uma acomodação
de interesses, um relacionamento importante entre o PRR e a Igreja Católica que, mesmo
não isento de divergências, serviu à concretização dos projetos por eles desenvolvidos. O
apoio da Igreja foi elemento relevante no processo de dominação republicana no Rio
Grande. Por outro lado, o favorecimento à Igreja, oportunizado pelos republicanos, facilitou
a recomposição da posição pretendida pela instituição, que atravessava crise expressiva
desde o século XIX, particularmente com a implantação da República e a separação entre o
Estado e a Igreja. Enquanto a Igreja solidificava novamente sua força na região, os
republicanos obtinham o seu concurso para conquistar apoio político especialmente das
populações coloniais e, também, das camadas médias e do proletariado.2
Todavia, essa acomodação não foi simples, tendo sido marcada por conflitos e
desavenças. A educação se constituiu em campo permanente de disputa. Particularmente a
questão da expansão do ensino, elemento fundamental da política educacional pretendida
pelos republicanos, foi aresta difícil de ser aplainada. Desde o início da gestão republicana,
a ocupação dos espaços educacionais situou uma disputa permanente entre o público e o
privado, especialmente na região colonial, onde a questão da nacionalização do ensino era
também da maior relevância, nos marcos da ação política republicana.
Especialmente nas regiões coloniais, o Estado estabeleceu um processo de disputa
com a Igreja Católica, no que concerne ao ensino primário. Essas regiões eram
fundamentais para o projeto de desenvolvimento dos dirigentes republicanos, que não
hesitaram em avançar num terreno em que a Igreja considerava sua absoluta prerrogativa.
As desavenças tornavam-se mais acirradas quanto mais se expandia o ensino público. A
disputa com a Igreja, no campo do ensino primário, sinalizou que o Estado não abria mão
de ser o educador por excelência do trabalhador que o capitalismo necessitava para sua
consolidação e pleno desenvolvimento. Não foi por outra razão que o Estado investiu de
forma expressiva no ensino primário e foi nesse nível que, no período em estudo se
concretizou sua preponderância no setor. A Igreja, por seu lado, teve presença
predominante no ensino secundário.
A compreensão da política educacional implementada pelos dirigentes gaúchos
implica na percepção de outro de seus ângulos, ou seja, a construção do imaginário social 2 Sobre o assunto, cf.: GIOLO, J. Estado, Igreja e Educação no RS da Primeira República (1997).
5
que, tendo a escola como instrumento primordial, foi elaborado com a finalidade de
projetar os valores indispensáveis à consolidação do modelo capitalista de sociedade,
defendido solidamente pelos republicanos positivistas. Esta projeção implicou em dar
relevância à construção de uma subjetividade que, em paralelo ao processo concreto de
modernização proposto, atuou na direção desejada pelos dirigentes do Estado, ou seja, dar
suporte de legitimação e adesão ao projeto que estava sendo implantado.
2. A construção do imaginário republicano
A compreensão da política educacional implementada pelos dirigentes gaúchos, no
período de nossa análise, exige que percebamos um de seus ângulos, que comumente tem
sido inserido de forma diluída no plano político-ideológico sem que se delimite, com maior
precisão, sua importância, fundamentalmente para o processo de consolidação da
hegemonia almejada pelo PRR. Referimo-nos à construção do imaginário social que, tendo
a escola como instrumento primordial, foi elaborado e integrou a política educacional posta
em prática pelos republicanos.
No Rio Grande do Sul, a educação teve este significado, ou seja, projetar os valores
indispensáveis à consolidação do modelo capitalista de sociedade, defendido solidamente
pelos republicanos positivistas. Esta projeção implicou em dar relevância à construção de
uma subjetividade que, em paralelo ao processo concreto de modernização proposto, atuou
na direção desejada pelos dirigentes do Estado, ou seja, dar suporte de legitimação e adesão
ao projeto que estava sendo implantado.
Nesse sentido, interessa-nos abordar, nesta parte do trabalho, os instrumentos
utilizados e a ação desenvolvida pelos dirigentes rio-grandenses, no sentido de conquistar o
imaginário social, bem como a forma como isso integrou a política educacional por eles
implementada no período de seu governo.
O tratamento da questão do imaginário social, no âmbito do processo de
consolidação capitalista no Rio Grande do Sul, na Primeira República, deve ser situada não
apenas na análise dos instrumentos através dos quais esse imaginário foi construído, mas
também no entendimento da estratégia política dos republicanos, utilizada para
implementar as reformas vinculadas ao seu projeto de modernização do Estado. Para tanto,
6
a construção do imaginário republicano se constituiu numa das táticas políticas dos
positivistas rio-grandenses.
2.1. Os instrumentos de construção do imaginário republicano
No sentido antes exposto, foram utilizados meios que incluíram fundamentalmente a
palavra escrita, os símbolos cívicos e os rituais. Em paralelo, a ação mediadora com a Igreja
Católica possibilitou a manipulação dos símbolos e sentimentos religiosos, bem a gosto da
perspectiva ideológica do positivismo.
A palavra escrita e falada foi um instrumento largamente utilizado pelos
positivistas, em sua ação pela consolidação do domínio republicano. Seu uso foi feito
através dos mais distintos canais, como jornais, particularmente o oficial do PRR, A
Federação, como outras publicações, conferências públicas, cerimônias, enfim, em todos
os veículos e eventos em que a oportunidade de expressar a mensagem republicana se
colocou. Nesse momento, além da defesa veemente dos princípios programáticos,
destacava-se a reafirmação dos valores cívicos que distinguiam os republicanos de seus
oponentes liberais, como a transparência no trato da coisa pública, a moralidade
administrativa, as virtudes dos líderes, a excelência do regime, a defesa intransigente da
Constituição.
a) O mito da origem
Em tudo isso se situava um aspecto da construção do imaginário cuja relevância
merece ser destacada. Referimo-nos ao mito da origem3, através do qual os republicanos
procuraram estabelecer uma versão dos fatos que, desde o início da República, dava
legitimidade à fração político-partidária que ascendera ao poder. Colocando-se contra as
forças do passado, os positivistas buscavam destruir a oposição liberal. Os acontecimentos
então, situados numa versão mitificada da verdade, transmitiam a superioridade do novo
momento histórico. 3 Utilizamos para a abordagem da construção do imaginário republicano a proposta metodológica implícita na
obra de José Murilo de Carvalho, A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (1990). O autor centrou em alguns elementos que foram orientadores de nosso enfoque, conforme apresentamos nessa parte do texto.
7
Exemplo típico dessa formulação foi a sistemática identificação realizada entre o
liberais rio-grandense e a monarquia e desta com o atraso ou a inviabilização das soluções
desejadas pelo povo gaúcho. As dificuldades atravessadas pelo Rio Grande eram associadas
à carência de medidas no sentido de sua solução, sendo tudo isso atribuído aos liberais e à
monarquia.
A condenação da monarquia, em nome do progresso, fez parte do arsenal teórico
dos positivistas. Em paralelo, foi desenvolvida a idéia da ditadura republicana, com o apelo
a um Executivo forte e intervencionista. Dessa forma, o progresso foi associado à ditadura e
à ação do Estado e, portanto, às políticas sociais. Explicam-se assim os exemplos apontados
anteriormente neste trabalho, das falas recuperadas dos dirigentes políticos e educacionais
republicanos, imputando ao “regime decaído” o atraso da educação no Rio Grande,
especialmente no tocante à problemática da não-integração das regiões coloniais, a pouca
presença da escola pública primária nessas regiões, entre outros elementos integrantes da
verdade mitificada pelos positivistas.
Para a construção do imaginário social, a escola foi posta na fala republicana como
sua realização fundamental. Os documentos de época sinalizaram essa realidade, que
perpassou toda a Primeira República e pode ser sintetizada pela manifestação de Oswaldo
Aranha, em 1928:
O Estado ministra o ensino público primário, gratuito e leigo. A instrução popular é obra da República. Iniciou-se em 1900 e, desde então, vem dia a dia acentuando sua ação fecunda pela alfabetização e preparação das crianças, pela ação de um professorado culto e dedicado e pela aplicação de leis oportunas e sábias.4
A manifestação de Oswaldo Aranha reflete a tônica dos discursos republicanos, em
relação à educação pública, a qual pode ser encontrada ao longo de todo o período de nosso
estudo. A referência ao caráter leigo pontuava a separação entre a Igreja e o Estado, aspecto
que interessava particularmente a setores dos segmentos médios urbanos, como militares,
intelectuais e professores.
4 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior, em 25.08.1928, p. 11. O grifo é nosso.
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Ao contrário de um apelo abstrato ao povo, os positivistas colocavam a proposta de
incorporação do proletariado à sociedade moderna, de uma política social a ser
implementada pelo Estado, o que colocou a escola pública no centro da argumentação dos
dirigentes republicanos. Bastante expressiva foi a manifestação de Protásio Alves, no
contexto peculiar do final da Primeira Guerra Mundial, como podemos observar abaixo:
A guerra a que foi obrigada a nossa pátria provocou uma crise fecunda de patriotismo, agitou todas as camadas sociais e criou um momento histórico no qual germinarão e rapidamente crescerão as sementes que produzem os fatores da civilização e engrandecem os países. É mais do que nunca oportuno todo o esforço tendente a fazer da escola a oficina que lapide o caráter, onde se forme o cidadão, forte física e moralmente. É o momento de incrementar o trabalho que já vem sendo feito, de tornar brasileiras todas as crianças que nascem no Brasil. É o momento de chegar-se até o sacrifício para multiplicar as escolas capazes desses objetivos.5
Alardeadas por todos os cantos, as falas oficiais iam sinalizando a obra da
República, particularmente através da escola. De forma muito especial, a construção do
imaginário republicano tendo como instrumento a escola pública, foi ressaltada de maneira
inequívoca:
... o ensino público no Rio Grande do Sol passou, pouco a pouco, por completa transformação. A antiga escola dos primeiros tempos da República, que conservava o aspecto ainda dos tempos coloniais, onde o filho do proletário isolado aprendia a ler sob o regime da palmatória, olhando para as outras crianças que passavam para os colégios particulares, como privilegiados da sorte, gerando sentimentos de inveja e outros mais baixos, foi substituída por colégios e outras escolas onde, ao lado da educação completa, a criança tem o sentimento de igualdade de origem, só quebrada pelo mérito que o esforço individual conquista. A escola pública, que humilhava ao que transpunha as suas portas, pois a freqüência significava indigência, hoje é procurada indistintamente; os seus umbrais são altos para deixar passar a todos de cabeça erguida.6
5 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior, de 04.09.1918, p. X-XI. O grifo é nosso. 6 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 04.09.1918, p. XI. O grifo é nosso.
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Portanto, não apenas as posições filosóficas dos positivistas iam no sentido da
integração social, mas também as suas realizações. A escola pública, como obra dos
positivistas, situou-se na raiz do mito de origem da República no Rio Grande do Sul.
b) O mito do herói
Noutra direção, o regime republicano rio-grandense utilizou o mito do herói para
construir o imaginário coletivo como parte de sua política educacional, o que significou a
criação do panteão cívico republicano, destacando as figuras que deviam servir de modelo
para a comunidade gaúcha. Nesse sentido, a ação republicana foi em parte articulada com a
Igreja Católica.
A identidade coletiva relaciona-se, na tradição brasileira, com a construção de
heróis. No Rio Grande do Sul o esforço de transformação dos responsáveis pela
proclamação da República em heróis do novo regime foi significativo. Suas qualidades
foram alardeadas em jornais, livros, manifestações cívicas, monumentos. Seus nomes foram
dados a ruas e praças das cidades rio-grandenses. A própria legislação do período indicou o
referido esforço. Exemplo típico disto está expresso na lei n°25, de 24 de novembro de
1898, que orçou a receita e despesa do Estado para o exercício de 1899, a qual designou a
quantia de até 100:000$000 para a construção da estátua do Marechal Floriano Peixoto.7 Na
mesma direção, situaram-se as verbas destinadas, no plano das despesas extraordinárias do
Estado, para a construção dos monumentos destinados a consagrar as figuras do Marechal
Deodoro e do General Osório.8
Em nível do processo de “heroificação” dos dirigentes republicanos rio-grandenses,
destacaram-se as ações relacionadas com a promoção das figuras de Júlio de Castilhos,
Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, sem dúvida lideranças que simbolizavam a
República positivista do Rio Grande. Verbas extraordinárias foram destinadas para a
construção de monumento glorificador à memória de Júlio de Castilhos e para a edificação
de monumento ao Senador Pinheiro Machado. Além disso, a legislação do período
7 Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1898, p. 228. 8 Relatório da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul de 1922.
10
espelhou a autorização para o governo adquirir o prédio onde nascera Borges de Medeiros,
transformando-o em estabelecimento de ensino.9
Se o estabelecimento dos monumentos e outros prédios públicos tinham a função
educativa de propiciar a identificação simples e cotidiana dos heróis republicanos, à escola
esteve reservada a tarefa de sistematizar a sua divulgação através de diversas práticas.
Nesse sentido, os ingredientes religiosos contidos no próprio positivismo oportunizaram
que, no plano de sua relação com a Igreja Católica, a simbologia relativa ao mito do herói
fosse reforçada, com a inclusão dos santos católicos no rol dos heróis a serem considerados
pelos fiéis rio-grandenses. Aprofundemos esse aspecto.
Durante os dezessete anos de publicação de sua revista oficial UNITAS, o trabalho
doutrinário da Igreja, no plano educacional, evidenciou-se através da divulgação de
modelos ideais e de valores necessários à formação humana e cristã.
A Igreja Católica procurou educar através de modelos insistentemente colocados
como referência de perfeição a ser imitada. Os Santos cristãos são o exemplo de maior
relevância. Considerados os “Gigantes do Catolicismo”, os Santos mereceram todo o
destaque por parte da Igreja, como podemos observar pelo que segue:
Os que se distinguiram nas ciências, nas conquistas, na política, são grandes pensadores, grandes conquistadores, grandes estadistas, porém grandes homens são só os santos, porque os santos são grandes pela sua grandeza pessoal, individual, sem o aparato de inúmeros recursos; grandeza essa conquistada por mil sacrifícios e sofrimentos, lutas interiores e esforços maravilhosos... Lutas tenazes e longas feriram os santos no terreno nobre do próprio peito, antes de aparecer ao mundo com essa envergadura moral, que a todos arrancava respeito. Incontestavelmente foram os santos os primeiros em generosidade, dedicação, respeito aos outros, em prontidão de sofrer, em humildade, altruísmo, paciência, abnegação, energia, mansidão e justiça.10
Através da UNITAS, a Igreja gaúcha reforçou nas Seções Doutrinárias o
procedimento de utilização dos Santos como referência:
9 Leis, Decretos e Atos de 1906 e 1908 e Relatório da Secretaria da Fazenda de 1919. 10UNITAS, Ano X, nº 6, Julho de 1923, p.185/186.
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A grandeza dos santos jamais fez retroceder a civilização, nem por um só passo, jamais a sua glória foi conquistada à custa do mais leve sofrimento alheio, de um lágrima sequer de um ente por eles oprimido. E não pode deixar de ser assim; porque a santidade é a perfeição do homem no mais alto grau possível de ordem e harmonia, de respeito e justiça, é a plenitude da paz, conquistadas pelo sacrifício do egoísmo inato, e dos sentimentos humanos, hubilados segundo o sublime modelo que é Jesus Cristo.11
E assim foram resgatados numerosos personagens do universo santificado da Igreja,
sempre reforçando virtudes especiais que interessava à Igreja local evidenciar. Santo
Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, São Domingos Gusmão,
Santa Catarina de Sena, Santa Francisca Romana, Santa Brígida, Santa Joana D’Arc, São
Jerônimo, Santa Terezinha, enfim, em tempo de grandes perturbações eram eles que
traziam a paz e o conforto, eram os maiores benfeitores da humanidade e um “estímulo para
o ideal do homem viandante no caminho da eternidade”.
Outras personalidades, verdadeiros heróis da história da Igreja, foram trazidos como
modelos a serem seguidos pelo clero e pelos cristãos do Rio Grande. Dante Alighieri foi um
exemplo preferido e bastante compreendido sobretudo nas regiões coloniais de origem
italiana. Diversos números de UNITAS recuperaram sua imagem. A Carta encíclica do
papa Bento XV, de 30 de abril de 1921, referente ao sexto centenário da morte de Dante e
dirigida em especial aos “professores e alunos de todos os institutos de ensino literário e de
cultura superior”, foi publicada na íntegra, com o destaque para os valores que tornaram
essa figura do Humanismo um modelo “digno da nossa imitação”. Devendo “tornar-se o
mestre da doutrina cristã para os alunos”, aquele que “ensina aos sábios e estadistas o
verdadeiro caminho da glória”, o discípulo de S. Tomás de Aquino, “enriquecido de quase
todas as ciências de seu tempo e versado, principalmente, na sabedoria cristã”, a figura de
Dante Alighieri foi resgatada como exemplo a ser seguido.
Outras figuras de origem italiana foram trazidas por UNITAS, como modelos ideais.
Assim foi feito com a figura do professor José Toniolo, sobre quem a revista assim se
referiu:
11UNITAS, Ano X, nº 7-8, julho/agosto de 1923, p. 221.
12
Todos reconhecem nele o professor exímio que por mais de cinqüenta anos ilustrou com seu saber as universidades da Itália, o campeão da ação católica,.... o conselheiro de Leão XIII nos memoráveis dias em que foi elaborada a encíclica Rerum Novarum, o economista e sociólogo de valor incontestável, o adversário enérgico do agitador alemão, a cujo apelo opôs este outro: ‘operários de todo mundo, uni-vos em Cristo’, proclamando bem alto que a democracia ou será cristã ou não será democracia... Mas, o que talvez nem todos conhecem no professor Toniolo, é a sua profunda piedade cristã, fonte perene de toda a sua larga e laboriosa vida12.
Como é possível perceber, não foram apenas valores como fé, sabedoria,
obediência, gratidão, justiça, entre outros, que foram destacados como virtude. Os valores
políticos e sociais também ganharam indicação no procedimento pedagógico adotado pela
Igreja do Rio Grande do Sul e, entre eles, estavam a democracia cristã e o repúdio ao
comunismo. Articulando modelos ideais com os valores a serem difundidos, a Igreja rio-
grandense foi afirmando um modelo de sociedade idealizada segundo os padrões católicos,
que acabaram por se constituir em prática complementar ao trabalho de mitificação
desenvolvido pelo Estado, em relação aos seus heróis republicanos.
Essa situação se explica se considerarmos que o positivismo Comteano, base
ideológica dos republicanos rio-grandenses, a partir de 1845 passou a integrar elementos
religiosos e utópicos, decorrentes da “regeneração moral” de Comte provocada por seu
encontro com Clotilde de Vaux. A partir de então o sentimento foi colocado em primeiro
plano, deslocando a razão, base de sua obra anterior, para uma posição subordinada. A
filosofia Comteana evoluiu, então, na direção de uma religião da humanidade, com sua
teologia, seus rituais, suas biografias de santos. Pretendendo ser uma concepção laica,
fundia o religioso com o cívico, ou melhor dizendo, o cívico tornava-se religioso. Os santos
da nova religião eram os grandes homens da humanidade, os rituais eram as festas cívicas,
a teologia era a sua filosofia, os novos sacerdotes eram os positivistas. Comte substituiu a
caridade católica pelo sentimento de altruísmo, situando na base da sociedade instituições
de solidariedade, aos moldes do comunitarismo católico. Hierarquizadas, ali estavam a
família, a pátria e, no ápice do processo, a humanidade.13
12UNITAS, Ano VII, nº 10-12, outubro de 1920, p. 212. 13 CARVALHO, José Murilo de, A formação das almas (1990), p. 130.
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Ficou, portanto, evidente o processo através do qual o Estado gaúcho e a Igreja
Católica afinaram-se na prática real e concreta de construção de um imaginário coletivo
que, de forma clara, serviu aos interesses das duas instituições na busca de sua legitimação.
Outros valores foram assim alicerçados, como a autoridade, a pátria, a hierarquia e,
sobretudo, a defesa da república.14
c) Os rituais
Tudo isso nos leva à análise de um outro instrumento de construção do imaginário
social no Rio Grande do Sul, ou seja, os rituais, expressos através das comemorações e
festas cívicas destinadas à propaganda eficiente dos valores da modernidade republicana. A
escola, mais uma vez, contribui eficazmente nessa tarefa, conforme indicam as fontes de
época:
... ao lado da educação intelectual, é preciso que se incutam também as noções morais e cívicas, destinadas a dar aos futuros cidadãos a necessária intuição dos indeclináveis deveres inerentes aos diversos encargos que a sociedade lhes tem reservado. A verdadeira educação é, na frase do filósofo, aquela que nos prepara para a vida completa. Além disso, o sentimento de pátria não deve ficar amortecido nos tenros corações de nossos patrícios; é necessário que seja cultivado por incessantes referências aos sucessos da nossa história, proveitosamente expostos.15
A utilização da escola no processo de construção do imaginário republicano, onde o
pressuposto da integração social era fundamental, foi de relevância indiscutível,
particularmente na região colonial sobre a qual os interesses dos positivistas se voltavam
significativamente. No início do século, os rituais destinados a consolidar os valores da
República eram comuns a elas, como o exemplo que expomos abaixo permite perceber:
14 Jaime Giolo destaca o esforço dos republicanos , no processo de construção de sua hegemonia no Rio
Grande do Sul, esses valores, bem como a construção do discurso completo do regime e de seus heróis, com a participação da Igreja. Cf.: GIOLO, Jaime (1997), p. 284 a 306.
15 Relatório do Inspetor Regional da 4a. Região Escolar, José Penna de Moraes, em 16.12.1897, no Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 30.07.1898, p. 539.
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... as escolas públicas existentes nas colônias comemoram as nossas datas nacionais com emocionante ardor patriótico. As escolas particulares, onde somente se ensinava a língua alemã, vão desaparecendo à proporção que se vão criando escolas públicas, que são avidamente procuradas pela população colonial. Quem se dedicar a um simples exame da vida colonial no Rio Grande do Sul, não poderá, de boa fé, deixar de reconhecer, que tantos os descendentes aqui nascidos, como os próprios colonos oriundos da Europa, vivem consagrados conosco, colaborando ativamente na obra coletiva do engrandecimento nacional.16
As festas escolares eram verdadeiros rituais destinados a modelar condutas. Foi o
que vimos instaurado nas escolas rio-grandenses, especialmente as públicas, tendo sido
igualmente uma prática corriqueira nas escolas particulares. O caráter desses encontros não
era apenas laudatório das personalidades mitificadas. Serviam ainda para estimular
condutas “positivas”, reforçando os comportamentos recomendados com o estímulo de
premiações, as quais eram distribuídas aos alunos de melhor desempenho. Os demais
alunos, pela exclusão das premiações eram devidamente punidos por sua atuação
insatisfatória. Atingia assim o ritual escolar seu intento.
Nesses momentos ritualísticos da escola, participavam as autoridades locais de
maior expressão, que eram normalmente as que distribuíam os prêmios, geralmente doados
pelo inspetor regional e pelos professores. A história registrou diversas dessas solenidades,
das quais selecionamos a realizada em Santa Maria, em 1898. O ato foi realizado no Teatro
Treze de Maio, que havia sido convenientemente ornamentado. Estavam presentes as
famílias, bem como as autoridades, representadas nas figuras do juiz da comarca, do
intendente municipal, do sub-chefe da polícia, do comandante do 1o. regimento da Brigada
Militar ali estacionado e o juiz distrital. Além desses, estavam presentes os integrantes do
conselho distrital. Os prêmios foram entregues pelo presidente do conselho distrital e pelo
intendente do município, auxiliados por damas “respeitáveis” da comunidade local. O
Inspetor Regional, ao relatar o fato às autoridades educacionais, testemunhou a grande
vantagem dessa prática, que deveria ser seguida em todo os Estado.17
16 Relatório do Inspetor Geral da Instrução Pública, Manoel Pacheco Prates, no Relatório da Secretaria do
Interior e Interior de 15.08.1901, p. 104. 17 Relatório do Inspetor Regional da 4a. Região Escolar, José Penna de Moraes, em 18.12.1898, no relatório
da Secretaria do Interior e Exterior de 1o.06.1899, p. 136.
15
Emblemática da importância dos rituais escolares, como instrumento da política do
Estado no plano educacional, foi a festa realizada pela Escola Complementar na praça de
desportos do Futebol Clube Porto Alegre, em 1928. Descrita na Revista da Instrução
Pública e relatada pelo Inspetor Geral, a festa espelhou, de forma bastante significativa,
esse meio utilizado pelos republicanos para a construção do imaginário coletivo
envolvendo a escola. Observemos alguns aspectos desse evento, que tinha a finalidade de
comemorar a data da independência nacional:
Já muito antes da hora marcada, as amplas arquibancadas do “stadium” estavam repletas de famílias e começavam a chegar os grupos de alunas da Escola Complementar, animando todo o amplo recinto com a nota encantadora da sua jovialidade e juventude. Notava-se, em todos os semblantes, a mais simpática expectativa e ansiedade e, quando teve início a festa, a impressão recebida pela assistência foi a mais agradável que se possa imaginar, diante a precisão, beleza e harmonia com que foram executadas as lindas evoluções e provas ginásticas, pelas gentis meninas. Os aplausos vibrantes, que coroavam cada parte do programa, bem demonstram quanto agradou a belíssima festa, pela sua inteligente organização e magnífica execução. A festa ... teve brilhantismo excepcional, verdadeiramente inédito em Porto Alegre, não só pela sua execução como pela finalidade educativa, porque, além de sua utilidade física, a solenidade revestiu-se de funda expressão cívica.18
Valendo-se desses momentos que mobilizavam a comunidade, os líderes
republicanos eram promovidos, em meio a um clima de enorme motivação e entusiasmo,
ficando subjacentes os valores que davam legitimação ao regime. Nesses instantes de
congraçamento entre a comunidade e seus dirigentes, o reforço à autoridade, à hierarquia e
ao poder instituído estiveram presentes:
Nas arquibancadas do F.B.C. Porto Alegre, premia-se uma multidão calculada em dez mil pessoas, composta do que a nossa capital tem de mais representativo na sua sociedade, reinando, nessa imensa massa de povo, um grande frêmito de entusiasmo à proporção que os números de ginástica iam sendo executados pelas alunas da Escola. Às nove horas, tendo chegado S. Exa. O Sr. Presidente do Estado, dr. Getúlio Vargas, acompanhado de sua
18 Relatório do Diretor Geral da Instrução Pública, Luis de Freitas e Castro, em 30.07.1929, no relatório da
Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 46-7.
16
exma. família, e o ilustre dr. Oswaldo Aranha, secretário do Interior e sua exma. família, teve início a festa ...19
Junto ao Presidente do Estado e ao Secretário do Interior e Exterior estavam
diversas autoridades civis e militares. A presença destacada das famílias das autoridades
buscava possibilitar a identificação simples e imediata dessa instituição, em nível do
imaginário social. O destaque dado aos dirigentes maiores do Estado sinalizava não só o
aspecto da autoridade, mas a personificação dos heróis que deveriam ficar registrados pela
população presente ao evento. Este elemento foi reforçado, na cerimônia que estamos
analisando:
O S. presidente do Estado foi recebido à entrada do clube, pelo diretor e mais professores da escola, indo até o seu camarote entre alas de alunos e vitoriado não só pelos alunos da Escola como pela multidão que ali se encontrava, que prorrompeu em palmas e vivas a S. Exa., tocando a banda da Brigada o hino rio-grandense. Também o dr. Oswaldo Aranha, secretário do Interior, foi recebido pelo diretor e professores da Escola, sendo ovacionado pelos alunos e pelo povo.20
A utilização de figuras heróicas nos rituais escolares caracterizou a educação rio-
grandense, sob a influência do positivismo. Próprio dele foi também a manipulação dos
símbolos, que analisamos a seguir.
d) Os símbolos
A utilização de símbolos foi muito peculiar na caracterização dos meios utilizados
para a construção do imaginário republicano através da escola. Nesse sentido, percebeu-se a
presença do hino rio-grandense, da bandeira e do hino brasileiros, indicados no próprio
programa da comemoração realizada pela Escola Complementar:
19 Relatório do Diretor Geral da Instrução Pública, Luis de Freitas e Castro, em 30.07.1929, no relatório da
Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 47. 20 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 47.
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O programa executado obedeceu aos seguintes números: 1o. Hino rio-grandenses entoado pelos alunos, acompanhados pela banda da Brigada Militar, que causou grande entusiasmo. 2o. Marchas rítmicas, executadas por 32 alunas, cujo efeito empolgou a multidão, rompendo o Sr. Presidente do Estado em palmas, quando terminou o número, durando bastante os aplausos. 3o. Exercícios de ginásticas calistênica, lindos, úteis e graciosos exercícios, que encheram de entusiasmo a assistência. 4o. Todas as alunas formaram, letra a letra, a palavra Brasil, que causou deslumbrante efeito pois, nessa ocasião, todas as alunas colocaram gorros de cor amarela, umas, outras verdes, formando a cor da bandeira nacional e, em seguida, ao som da banda, cantaram o hino brasileiro.21
A simbologia republicana teve no hino e na bandeira suas duas maiores expressões.
Inseridos nos eventos públicos de massa, representavam a identificação instantânea dos
valores da República. Representação dos novos tempos, esses dois elementos estavam
presentes em todas as solenidades cívicas, complementando com sua presença os rituais
desenvolvidos.
2.2. As ações republicanas na construção do imaginário social
A importância conferida, em termos estratégicos, à construção do imaginário
coletivo como parte da política educacional dos republicanos positivistas, pode ser
percebida através das disposições relativas às comemorações, estabelecidas no novo
regulamento da Instrução Pública, elaborado e aprovado pelo governo do Estado, em 1927.
Esse regulamento determinava que deveriam ser comemoradas, como grandes datas
nacionais e estaduais, as expostas no quadro abaixo.
21 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 48.
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DATAS COMEMORATIVAS DE EVENTOS OFICIAIS DO RIO GRANDE DO SUL:
1927
DATAS EVENTOS
24 de fevereiro Promulgação da Constituição Federal
21 de abril Glorificação de Tiradentes
22 de abril Descobrimento do Brasil
13 de maio Abolição da escravatura
14 de julho Independência dos povos americanos e promulgação da Constituição do Estado
7 de setembro Proclamação da independência nacional
20 de setembro República de Piratini
12 de outubro Descoberta da América
15 de novembro Proclamação da República
19 de novembro Instituição da bandeira nacional
FONTE: Decreto n° 3.898, de 04.10.1927. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul
de 1927, p. 534.
Se as datas selecionadas já são bastante expressivas, pelo que representam em
termos da história tradicional, os encaminhamentos determinados pelo dispositivo legal
complementavam o cenário, no tocante à construção do imaginário republicano, conforme
podemos apreciar no parágrafo 1o do artigo 102 do referido regulamento, que estabelecia
que do programa deveriam constar, além de uma preleção do professor relativa à data,
hinos e cantos cívicos, de molde a despertar, nos alunos, sentimentos de amor à pátria. Por
outro lado, era vedado, aos estabelecimentos de ensino público, qualquer manifestação
coletiva além das enunciadas na lei, salvo autorização especial da Secretaria do Interior e
Exterior.22 Como vemos, as escolas públicas só podiam praticar os rituais determinados
pelo Estado republicano, consagrando-a como instrumento ativo de elaboração dos
elementos que, em nível da subjetividade, interessavam ao grupo que detinha o poder no
Rio Grande.
O apoio governamental aos rituais republicanos pode ser bem aquilatado através da
legislação da época, que indica as verbas concedidas, anualmente, para tal fim. No
orçamento previsto para o exercício de 1911, estava destinada a quantia de 6:000$000 para
22 Decreto n° 3.898, de 04.10.1927. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de
1927, p. 534.
19
a realização das festas nacionais na capital.23 Assim, paralelamente à ação realizada através
da escola, a promoção dos eventos que interessavam à promoção da República estava
incluída nas decisões políticas dos governantes do Estado.
Nessa linha de argumentação, vale a pena observarmos as dotações destinadas ao
Centro Republicano “Júlio de Castilhos”, de Porto Alegre, para organizar os festejos
cívicos relativos à passagem do dia 15 de novembro. Data emblemática da República,
movimentava as escolas e, no plano mais geral, a sociedade como um todo. Em 1916, o
governo republicano concedeu 4:000$000 especificamente para esse fim, quantia que foi
aumentada para 5:000$000 em 1917, 10:000$000 em 1919, 12:000$000 em 1920 e
015:000$000 em 1921.24
O empenho republicano em oportunizar, tanto por meio da escola como através de
ações articuladas que envolvessem o conjunto da sociedade, a concretização desses
eventos, revelou o conteúdo político do direcionamento que pretenderam dar à construção
do conjunto de valores necessários à sua legitimação. Nessas performances públicas, que
buscavam envolver um número expressivo de participantes, como foi o caso que a festa
escolar da Escola Complementar nos permitiu visualizar, estava a demonstração de uma
identidade social comum, centrada nos ideais republicanos. O estava sendo construído,
portanto, era, em nível do imaginário coletivo, uma afirmação positiva do regime que se
apresentava publicamente para ser identificado pelos cidadãos.
Cabe ressaltar que essa estratégia republicana teve seu impacto mais abrangente, em
relação aos eventos mais significativos, na área urbana, destinando-se portanto aos
segmentos médios e ao operariado. Todavia, as pequenas escolas rurais, sobretudo as
subvencionadas, foram utilizadas como espaço privilegiado para a construção do
imaginário republicano, como instrumento da política do Estado nos mais distantes locais
do Rio Grande, situação que era deixada entrever pelo testemunho seguinte:
[...] em modestas escolas subvencionadas espalhadas pelo vasto território do Estado, donde constantemente nos chegam, pelos jornais locais e por nossos
23 Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1910, p. 53. 24 Leis n° 205, de 25.11.1916, 219, de 23.11.1917, 243, de 18.11.1919, 258, de 11.11.1920 e 270, de
29.10.1921.
20
fiscais, as notícias de comemorações cívicas em datas nacionais, significativas de que, ao lado da modesta instrução literária, elas se vão impondo também à sociedade pelos complementos da educação.25
A importância conferida às comemorações cívicas pelos dirigentes republicanos
ficou estampada no decreto baixado, em 1922, por Borges de Medeiros, concedendo aos
alunos dos estabelecimentos estaduais de ensino dez dias de férias destinadas à participação
nas homenagens dedicadas à passagem do centenário da independência nacional.26
Argumentando sobre necessidade de associar todos os alunos das escolas públicas nos
eventos dessa data oficial, reconheciam os dirigentes gaúchos a relevância que davam aos
rituais republicanos.
A prática positivista incluiu ainda, no plano da construção do imaginário
republicano, a alegoria da mulher, bem menos relevante em termos de Rio Grande do Sul,
se bem que presente. O papel destinado à mulher, por Augusto Comte, possibilitou a
alegorização da figura feminina, símbolo da Humanidade. Exemplo da tentativa realizada
no Rio Grande do Sul está expressa no monumento erguido a Júlio de Castilhos, que foi
inaugurado em 1913. Compõe-se de uma pirâmide em cujo topo domina a figura da
República em forma de mulher, tendo aos pés um globo onde se distinguem vinte e uma
estrelas, que representam a Federação, e o lema “Ordem e Progresso”.
No plano educacional, a figura feminina passou, no período republicano, a ser
considerada a educadora por excelência. Vários testemunhos históricos podem ser
encontrados nessa direção. A promoção da mulher para a carreira do magistério teve
implicações que pretendemos analisar no 4o. capítulo deste trabalho. Por ora, resta salientar
que a alegoria feminina foi inserida no conjunto dos elementos que buscaram constituir o
imaginário republicano, como uma das tentativas táticas que revelaram, em termos
estratégicos, a prática republicana.
25 Relatório de Protásio Alves, Secretário do Interior e Exterior, em 04.0.1918, p. XI. 26 Decreto n° 3.022, de 05.09.1922. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de
1922, p. 325-6.
21
Considerações finais
Manipulando símbolos e mitos, utilizando-se dos rituais cívicos, os dirigentes
positivistas gaúchos envolveram particularmente a escola pública para alicerçar os valores
indispensáveis à adesão da sociedade ao seu projeto de desenvolvimento do Estado. A
política educacional da época, portanto, jogou com a subjetividade inerente ao processo de
construção da consciência coletiva, em paralelo ao desenvolvimento bastante objetivo que
davam à modernização conservadora do Rio Grande.
O papel reservado à escola foi particularmente especial no envolvimento da
sociedade como um todo. O apelo à integração social via escola foi inegável e refletiu a
visão dos positivistas que dirigiam o Estado. Entretanto, não podemos esquecer de salientar
que esta integração era pretendida numa sociedade profundamente desigual e hierarquizada,
com cada indivíduo no seu lugar, realizando o seu papel social nos marcos do projeto
republicano. Sem dúvida alguma, a importância conferida à educação merece destaque, sem
deixarmos de perceber, todavia, que essa valorização teve, como objetivo central, a
constituição de uma sociedade que devia se modernizar, nos parâmetros do sistema
capitalista.
A política educacional adotada no Rio Grande do Sul, na Primeira República, visou
atender a uma necessidade represada ao longo de todo o Império em termos educacionais e
que aflorou nos anos iniciais da fase republicana, ou seja, o acesso à escola. Todavia, a
opção da classe dirigente rio-grandense, se por um lado deu vazão a esses anseios
ampliando expressivamente a rede escolar, refletiu a visão de mundo e os próprios
interesses dos setores dominantes do Rio Grande, que utilizaram o imaginário social para
legitimar seu projeto autoritário, elitista e excludente.
Referências bibliográficas
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GIOLO, Jaime. Estado, Igreja e Educação no RS na Primeira República. Tese de
Doutorado. São Paulo: Faculdade de Educação/USP, 1997.
22
TAMBARA, E. Positivismo e Educação: a educação no Rio Grande do Sul sob o
Castilhismo. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 1995.