política de segurança pública no brasil

197
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL NA PÓS-TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA: DESLOCAMENTOS EM UM MODELO RESISTENTE Ligia Maria Daher Gonçalves Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência Política, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Ciência Política. (Versão revisada) Orientador: Prof. Dr. Adrian Gurza Lavalle São Paulo 2009

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Analisa as mudanças implementadas na agenda de segurança pública no Brasil.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA

    PPOOLLTTIICCAA DDEE SSEEGGUURRAANNAA PPBBLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL

    NNAA PPSS--TTRRAANNSSIIOO DDEEMMOOCCRRTTIICCAA::

    DDEESSLLOOCCAAMMEENNTTOOSS EEMM UUMM MMOODDEELLOO RREESSIISSTTEENNTTEE

    Ligia Maria Daher Gonalves

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, do Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Letras, Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica.

    (Verso revisada)

    Orientador: Prof. Dr. Adrian Gurza Lavalle

    So Paulo

    2009

  • ii

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA

    PPOOLLTTIICCAA DDEE SSEEGGUURRAANNAA PPBBLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL

    NNAA PPSS--TTRRAANNSSIIOO DDEEMMOOCCRRTTIICCAA::

    DDEESSLLOOCCAAMMEENNTTOOSS EEMM UUMM MMOODDEELLOO RREESSIISSTTEENNTTEE

    Ligia Maria Daher Gonalves

    So Paulo

    2009

  • iii

    Para meu filho Ricardo,

    por tornar tudo pleno de sentido.

    Para meus pais,

    Janette (in memorian) e Luiz.

  • iv

    Agradecimentos

    Um dos momentos mais preciosos ao se concluir um processo que exigiu

    grande esforo aquele em que temos a possibilidade de manifestar nossa gratido

    pela vida e pelas pessoas. Esta pesquisa de mestrado, que se desenvolveu com

    muito desejo, em meio a outras demandas da vida, me d agora a oportunidade de

    expressar meu enorme agradecimento e reconhecimento:

    Ao Rico, meu filho, fonte maior de inspirao, por ser a pessoa bacana, atenta

    e sensvel que . Obrigada pela pacincia, pela torcida, pelas palavras simples e

    sensatas e pelos sorrisos marotos que me animaram e me fortaleceram tantas

    vezes. Obrigada pela alegria de cada momento que dividimos.

    Ao meu pai, Luiz, pelo exemplo de fora de vontade, por seu apoio constante,

    pelos conselhos nos momentos em que eu precisava ouvi-los e pelo rigor com que

    sempre tratou as palavras, fazendo-me mais atenta a elas.

    minha me, Janette, sempre to presente no meu corao e nos meus

    pensamentos, por seus ensinamentos e por todos os seus gestos amorosos e

    encorajadores, que continuam me estimulando a seguir em frente.

    Andra Rodrigues Pinto, por partilhar comigo h quase 40 anos todos os

    momentos importantes da minha vida. Por acreditar em mim e no meu trabalho e

    pelas infinitas vezes em que me ouviu com amor e pacincia, sem nunca me deixar

    entregar os pontos. Minha gratido pelos laos fraternos que nos unem.

    minha irm Lilian, pelos bons momentos compartilhados juntamente com

    Araken, Gui, Xan e Gabi e pelo prazer do convvio cotidiano com os meninos nos

    ltimos anos.

    Cristina Kfouri, Eduardo, Fabinho e Laurinha, pela disponibilidade e pelo

    carinho que, indiferente a mudanas de rumo, permaneceu entre ns.

    Aos amigos de todas as horas: Maruzania Soares, Izabela Tamaso, Ceclia

    Baro Alegretti, Tercio Redondo, Claudia Boto, Ana Claudia Paulo e Ana Lucia

    Pastore, pelo forte sentimento de bem-querer que nos une h tantos anos.

    Izabela, agradeo, ainda, por ter me estimulado a iniciar este percurso,

    pelos incentivos que se seguiram e por ter, com sua maior experincia acadmica,

    lanado luzes em momentos de impasse.

  • v

    Agradeo tambm Ceclia pela verso do resumo para o ingls e ao Tercio

    pela reviso final da dissertao. A ambos, meu reconhecimento pelo trabalho

    cuidadoso que fizeram em meio a tantos outros afazeres.

    Aos amigos Juliana Delfino, Renata rtico, Ftima Dagostino e Pedro

    Aguerre, pela ajuda, de diferentes maneiras, em etapas distintas deste processo.

    Aos meus companheiros de consultoria no PNUD/Ministrio da Justia, pela

    agradvel convivncia durante o ano de 2008.

    Ao Prof. Vicente Trevas, por ter estimulado minha reflexo em vrias

    oportunidades e por ter chamado minha ateno para importantes aspectos

    federativos que envolvem a poltica de segurana pblica e que foram determinantes

    para a reconstruo de meu objeto de pesquisa.

    Profa. Marta Arretche e ao Prof. Rogrio Arantes pelas observaes feitas

    no meu exame de qualificao, contribuindo para a correo de rumos e para que eu

    pudesse delinear melhor meu objeto.

    A pesquisa em nada avanaria sem as pessoas e instituies que se

    dispuseram a colaborar. Agradeo enormemente a todos aqueles que

    disponibilizaram textos e informaes, que me concederam entrevistas e que

    responderam ao questionrio.

    Muitos foram os aprendizados nessa longa e inacabada jornada de direitos

    humanos e de segurana pblica. Agradeo a todos os profissionais que conheci e

    aos amigos que fiz nesta trajetria.

    Aos funcionrios do Departamento de Cincia Poltica, em especial Vivian,

    sempre disposta a orientar sobre os trmites burocrticos do mestrado.

    Ao meu orientador, Adrian Gurza Lavalle, agradeo por ter aceitado me

    orientar j no curso do processo e pelo olhar rigoroso e exigente, to desesperador

    quanto estimulante, que me fez repensar e reescrever muitas vezes.

    Por fim, um agradecimento especial a Benedito Domingos Mariano, pelo

    inestimvel apoio. Por ter possibilitado que eu conciliasse atividades acadmicas e

    profissionais no incio deste percurso, pelas observaes feitas quando da leitura da

    ltima verso deste trabalho e por ter facilitado meu acesso aos membros da

    Coordenao Nacional da 1. CONSEG. Obrigada pela confiana profissional em

    mim depositada e pelas discusses sobre o tema ao longo de vrios anos.

  • vi

    Resumo

    A presente dissertao analisa as mudanas implementadas na agenda da

    segurana pblica na ps-transio democrtica e os motivos pelos quais o modelo

    de segurana pblica no Brasil to resistente a reformas. O cenrio democrtico

    testemunhou a entrada de novos atores na comunidade da poltica, e, a partir de

    ento, novas e velhas vises acerca do tema passaram a coexistir. Apesar da crise

    da segurana pblica, explicitada nas dcadas de 1980-1990, nenhuma das

    propostas de reforma estrutural do modelo da poltica obteve xito at o momento, o

    que pode ser explicado pela ausncia de uma ampla coalizo em torno de uma

    agenda mnima de reformas e pelo padro de dependncia da trajetria da poltica.

    As mudanas possveis nesse contexto, embora sejam insuficientes para conformar

    um novo modelo de poltica, tm provocado deslocamentos em algumas das

    caractersticas histricas do sistema de segurana pblica, promovendo pequenas

    alteraes na sua dinmica federativa.

    Palavras-chave: poltica de segurana pblica; reforma da poltica de

    segurana; neoinstitucionalismo histrico; federalismo; comunidade da poltica.

  • vii

    Abstract

    This dissertation analyzes the changes to the agenda of public security in

    Brazil after its democratic transition. It also addresses the reasons why the Brazilian

    policy model of public security might be so resistant to reforms. The new democratic

    scenario witnessed new actors entering the policy community and brought together

    old and new views on the subject. In spite of the crisis in the public security, which

    was brought to light in the 1980s and 1990s, none of the proposals for structural

    reform of the policy model have hitherto been successful. Such a failure might be

    explained by the absence of a broad coalition around a minimum agenda of reforms

    and also by the path dependence of the public security policy. The possible changes

    in this context, despite being insufficient to forge a new policy model, have led to

    shifts in some of the historical features of the system of public security, promoting

    small changes in its federative dynamics.

    Keywords: public security policy; public security policy reform; historical neo-

    institucionalism; federalism; policy community.

  • viii

    Lista de abreviaturas e siglas

    ABC Associao Brasileira de Criminalstica

    ADEPOL Associao dos Delegados de Polcia do Brasil

    ADPF Associao Nacional dos Delegados de Polcia Federal

    AMEBRASIL Associao Nacional dos Oficiais Militares Estaduais

    ANASPRA Associao Nacional de Entidades Representativas de Praas Policiais

    e Bombeiros

    CAF Comit de Articulao Federativa

    CF Constituio Federal

    CeSEC Centro de Estudos de Segurana e Cidadania

    CISMEL Consrcio de Segurana Pblica e Cidadania de Londrina e Regio

    Metropolitana

    COBRAPOL Confederao Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis

    CRISP Centro de Estudos de Criminalidade e Segurana Pblica

    CON Coordenao Nacional Executiva da 1. CONSEG

    CONASP Conselho Nacional de Segurana Pblica

    CNCG Conselho Nacional dos Comandantes Gerais das Polcias Militares e dos

    Corpos de Bombeiros Militares

    CNGM Conselho Nacional das Guardas Municipais

    CONSEG Conferncia Nacional de Segurana Pblica

    CONSESP Conselho Nacional dos Secretrios Estaduais de Segurana Pblica

    DPF Departamento de Polcia Federal

    EAD Ensino distncia

    FBSP Frum Brasileiro de Segurana Pblica

    FENAPEF Federao Nacional dos Policiais Federais

    FENAPRF Federao Nacional dos Policiais Rodovirios Federais

    FENDH Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos

    FENEME Federao Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais

    FHC Fernando Henrique Cardoso

    FNS Fora Nacional de Segurana

    FNOP Frum Nacional de Ouvidores de Polcia

  • ix

    FNP Frente Nacional de Prefeitos

    FNSP Fundo Nacional de Segurana Pblica

    FUNDEB Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de

    Valorizao dos Profissionais da Educao

    GAJOP Gabinete de Assessoria Jurdica s Organizaes Populares

    GCM Guarda Civil Municipal

    GGI-E Gabinete de Gesto Integrada Estadual

    GGI-M Gabinete de Gesto Integrada Municipal

    GOE Grupo de Operaes Especiais

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IGPM Inspetoria Geral das Polcias Militares

    ILANUD Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para Preveno do Delito e

    Tratamento do Delinquente

    INFOCRIM Sistema de Informaes Criminais do Estado de So Paulo

    INFOSEG Rede Nacional de Informaes de Segurana Pblica, Justia e

    Fiscalizao

    IP Inqurito policial

    IPM Inqurito Policial Militar

    IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    ISPCV - Instituto So Paulo Contra a Violncia

    MJ Ministrio da Justia

    MP Ministrio Pblico

    NEV Ncleo de Estudos da Violncia

    OEI Organizao dos Estados Ibero-americanos

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PC Polcia Civil

    PCC Primeiro Comando da Capital

    PEC Projeto de Emenda Constitucional

    PF Polcia Federal

    PIAPS Plano de Integrao e Acompanhamento dos Programas Sociais de

    Preveno da Violncia

    PM Polcia Militar

  • x

    PNAGE Programa Nacional de Apoio Modernizao da Gesto e do

    Planejamento dos Estados e do Distrito Federal

    PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos

    PNSP Plano Nacional de Segurana Pblica

    PRONASCI Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania

    PROVITA Programa Estadual de Proteo a Testemunha

    RENAESP Rede Nacional de Altos Estudos em Segurana Pblica

    SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos

    SENASP Secretaria Nacional de Segurana Pblica

    SEPLANSEG Secretaria de Planejamento de Aes Nacionais de Segurana

    Pblica

    SIMAP Sistema de Monitoramento, Avaliao e Desenvolvimento Institucional do

    Pronasci

    SINARM Sistema Nacional de Armas

    SINDAPEF Sindicato dos Agentes Penitencirios Federais

    SINESPJC Sistema Nacional de Estatsticas de Segurana Pblica e Justia

    Criminal

    SUS Sistema nico de Sade

    SUSP Sistema nico de Segurana Pblica

    SSP Secretaria de Segurana Pblica

    TCO Termos Circunstanciados de Ocorrncia

  • xi

    Sumrio

    Introduo .......................................................................................................... 1

    Captulo 1 Federalismo, polticas pblicas e a perspectiva da anlise

    institucional ....................................................................................................... 5

    1.1 Federalismo e polticas pblicas ................................................................... 5

    1.2 Perspectiva institucional: considerando instituies, processos e atores ...... 11

    Captulo 2 Poltica de segurana pblica brasileira: caractersticas e

    panorama histrico ........................................................................................... 13

    2.1 Caracterizao histrica do modelo de segurana pblica brasileiro ............ 15

    2.2 Segurana pblica no processo constituinte e o desenho da poltica de

    segurana pblica na Carta de 1988 ................................................................... 18

    2.3 Arranjo institucional do sistema de segurana pblica e alguns problemas dele

    decorrentes ......................................................................................................... 23

    Captulo 3 Crise da segurana pblica: rupturas e esgotamento do

    modelo ................................................................................................................ 27

    Captulo 4 Comunidade da poltica de segurana pblica: atores e

    preferncias ....................................................................................................... 32

    4.1 Diferentes paradigmas da segurana pblica ............................................... 32

    4.2 Comunidade da poltica: novos e velhos atores ............................................ 35

    4.3 Pesquisando preferncias e propostas reformistas ....................................... 42

    4.4 Preferncias reformistas luz da literatura e de fontes documentais ........... 65

    4.5 Resistncia do atual modelo de segurana pblica, face s propostas de

    reformas estruturais ............................................................................................ 69

    Captulo 5 Mudanas possveis: pequenos deslocamentos nas

    caractersticas da poltica ................................................................................. 75

    5.1 Experincia inovadora dos municpios .......................................................... 76

  • xii

    5.1.1 Contextualizando as estratgias locais de preveno do crime ................. 76

    5.1.2 Novos atores, novas agendas: os municpios e a preveno no Brasil ...... 79

    5.2 Governo FHC: marco inaugural da incluso da poltica de segurana pblica na

    agenda federal .................................................................................................... 86

    5.2.1 Agenda, contexto e a criao da Secretaria Nacional de Segurana

    Pblica ................................................................................................. 86

    5.2.2 Plano Nacional de Segurana Pblica PNSP .......................................... 92

    5.2.3. Criao do Fundo Nacional de Segurana Pblica ................................... 94

    5.3 Governo Lula: abandono da agenda de reformas radicais e tentativa de articular

    uma poltica nacional de segurana pblica ........................................................ 96

    5.3.1 Promessas do Plano de Segurana Pblica e recuo na proposio das

    reformas radicais ................................................................................................. 98

    5.3.2 Sistema nico de Segurana Pblica SUSP ........................................... 100

    5.3.3 Fundo Nacional de Segurana Pblica: alterao legislativa e novos critrios

    para a distribuio de recursos ........................................................................... 104

    5.3.4 Fora Nacional: nova fora policial, sem novos policiais ............................ 109

    5.3.5 Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania Pronasci ...... 111

    5.3.6 Conferncia Nacional de Segurana Pblica ............................................. 122

    Concluso .......................................................................................................... 128

    Referncias bibliogrficas ................................................................................ 134

    Anexo A Relao dos integrantes da CON .................................................. 150

    Anexo B Matriz do questionrio .................................................................... 153

    Anexo C Sistematizao das respostas ao questionrio ........................... 155

    Anexo D Quadro dos municpios que aderiram ao Pronasci ..................... 174

    Anexo E Princpios e Diretrizes da 1a CONSEG .......................................... 176

  • 1

    Introduo

    A presente dissertao tem por objeto de estudo a poltica de segurana

    pblica no Brasil na ps-transio democrtica, em trs momentos: o processo

    constituinte de 1987-1988, o Governo FHC, o Governo Lula. Seu objetivo consiste

    em analisar, considerando instituies e atores relevantes, as continuidades no

    padro da poltica de segurana pblica, bem como as mudanas que foram

    possveis nesse campo.

    A democratizao e o processo constituinte de 1987-1988 possibilitaram

    reformas no desenho de vrias polticas pblicas no Brasil e propiciaram maior

    participao da sociedade civil. Essas reformas, no entanto, no atingiram a poltica

    de segurana pblica, que manteve no novo texto constitucional suas principais

    caractersticas histricas. Decorridos mais de 30 anos do incio do processo de

    transio democrtica, o sistema de justia criminal foi o setor que menos

    progressos fez em relao modernizao e democratizao de suas instituies,

    em especial das instituies policiais (RAMOS, 2007). Desde ento, as mudanas na

    rea da segurana pblica tm sido vagarosas, localizadas e incrementais, no

    conformando um quadro de reformas estruturais da poltica. Nas dcadas de 1980 e

    1990, as estatsticas criminais elevaram-se expressivamente e a discusso sobre

    segurana pblica caiu no domnio pblico, alvo da mdia e da crtica de novos

    atores sociais e polticos que comearam a pautar o tema em suas agendas.

    Analiso, nos perodos estudados, como se estruturou a formao da agenda da

    segurana pblica brasileira, bem como quais foram os deslocamentos ocorridos no

    desenho tradicional da poltica.

    Inicio pela descrio das caractersticas do sistema de segurana pblica1

    que se mostram persistentes ao longo da histria, descrio que auxiliar a balizar

    mudanas na poltica. Em seguida, analiso o tratamento dado poltica de

    segurana pblica no processo constituinte que resultou na Constituio Federal de

    1988 e de que forma as instituies condicionaram as estratgias e as preferncias

    1 O sistema de justia criminal composto pelo sistema de segurana pblica, pelo poder judicirio e

    pelo sistema penitencirio. Embora, as instituies de segurana pblica devam ser consideradas de maneira articulada com os outros dois campos de instituies do sistema de justia criminal, para o exame da evoluo e do enfrentamento do crime e da violncia, o foco do presente estudo so as instituies e as polticas de segurana pblica, estritamente.

  • 2

    dos atores. Abordo os motivos pelos quais a poltica de segurana pblica continuou,

    no que diz respeito estrutura das instituies policiais, basicamente com o mesmo

    desenho da Constituio autoritria de 1967-1969.

    Analiso alguns conflitos decorrentes do arranjo institucional do modelo

    tradicional da poltica e como o aumento crescente dos ndices de violncia no

    Brasil, no perodo ps-transio democrtica, exps o esgotamento desse modelo.

    Num contexto de criminalidade crescente, cada vez mais os governos federal e

    municipais foram sendo chamados a oferecer respostas. Criaram-se centros de

    pesquisa para estudar o assunto e formular propostas e a sociedade civil comeou a

    se reorganizar em torno do tema. Novos atores ampliaram a comunidade da poltica,

    que comeou a pautar diferentes solues e a defender diferentes paradigmas para

    a segurana pblica brasileira. Parte dos atores da comunidade da poltica de

    segurana pblica demanda o reforo do poder do aparato repressivo do Estado,

    com o incremento dos recursos materiais e humanos, e com modernizao

    gerencial; alguns atores enfatizam a importncia de polticas pblicas preventivas

    para um adequado provimento de segurana; outros propem reformas radicais para

    a poltica, especialmente para as instituies policiais, embora tambm no haja

    consenso, entre os atores com preferncias reformistas radicais, sobre o novo

    modelo desejado.

    Analiso os motivos pelos quais nenhuma das proposituras de reformas

    radicais, que implicariam uma ruptura com o modelo tradicional, foi exitosa at o

    momento. Um dos fatores que ajudam a explicar a resilincia do modelo da poltica

    de segurana pblica a reformas radicais refere-se ao padro de dependncia da

    trajetria da poltica (path dependence), isto , aos altos custos de reverso do

    modelo decorrentes de escolhas institucionais passadas. Alm disso, a

    multiplicidade de atores com diferentes e polarizadas posies dificulta a construo

    de uma coalizo ampla capaz de dar sustentao a um processo substancial de

    reformas.

    Constatada a resistncia do modelo tradicional da poltica de segurana

    pblica a reformas estruturais, investigo quais so e a que se devem as inovaes

    na poltica identificando conjunturas crticas e janelas de oportunidade que

    ensejaram mudanas, ainda que apenas incrementais, no setor. Nesse sentido,

    analiso a entrada do municpio como novo ator relevante na poltica de segurana

  • 3

    pblica e como inovaes implementadas por alguns municpios brasileiros

    influenciaram a agenda do governo federal quando da formulao de novos

    programas. Abordo o tratamento da poltica de segurana no Governo FHC, ora

    valendo-se de conjunturas crticas para implementar sua agenda ora reformulando

    suas estratgias para fazer frente a essas conjunturas.

    Pesquisando o Governo Lula, analiso a agenda programtica inicial de

    reformas radicais da poltica e os motivos pelos quais tal agenda logo foi

    abandonada. Analiso as mudanas incrementais implementadas, abordando aes

    e programas que procuram induzir maior participao e cooperao

    intergovernamental em torno da poltica de segurana pblica.

    A pesquisa mostra que ocorreu uma reconfigurao do campo, com o

    ingresso de novos atores na comunidade da poltica. Para alm de muitas

    contradies, polarizaes e interesses manifestamente corporativos, essa

    comunidade comea a apresentar algumas confluncias no que diz respeito, por

    exemplo, importncia da participao social e do papel preventivo dos municpios

    na poltica de segurana pblica e de forma menos ampla, mas no por isso

    menos significativa desvinculao das polcias militares do Exrcito. As

    mudanas no campo e as reformas incrementais promoveram pequenas alteraes

    em algumas caractersticas tradicionais da poltica e pequenos deslocamentos na

    dinmica federativa na matria, embora os principais aspectos da poltica, como sua

    centralizao nas instituies policiais estaduais e o modelo dessas instituies,

    sigam inalterados.

    Ao analisar a poltica de segurana pblica luz do federalismo, explicito

    alguns efeitos institucionais decorrentes de seus arranjos. Pierson (1995),

    ressaltando que o federalismo no apenas um modelo de implicaes isoladas,

    relaciona trs desses efeitos, claramente identificveis com a natureza dos

    deslocamentos que esto sendo produzidos na poltica de segurana pblica: 1)

    mudanas nas preferncias polticas, estratgias e influncia dos atores sociais; 2) a

    emergncia de novos atores significativos; 3) dilemas predizveis conectados

    diviso da autoridade decisria entre mltiplas jurisdies.

    A pesquisa se desenvolveu por meio da anlise da bibliografia disponvel

    sobre o tema e de documentos institucionais. Realizei algumas entrevistas com

    gestores do Ministrio da Justia para recolher informaes e dados sobre os

  • 4

    programas implementados. Procurando compor um diagnstico atualizado do campo

    e a fim de evitar atribuir aos atores da comunidade da poltica as mesmas

    preferncias com as quais eles so usualmente identificados, apliquei um

    questionrio a representantes de entidades nacionais que congregam trabalhadores

    e gestores da segurana pblica e de entidades da sociedade civil atuantes no setor.

    Para ter acesso a atores to representativos da comunidade da poltica, aproveitei a

    ocasio da primeira Conferncia Nacional de Segurana Pblica - CONSEG, cujos

    resultados, tambm estudados neste trabalho, acabaram por ratificar algumas

    percepes analticas.

    Procurei, na medida do possvel, controlar meus juzos normativos e

    empreender, a partir do campo emprico, um estudo terico-analtico de meu objeto,

    utilizando conceitos da teoria institucional, em especial do neoinstitucionalismo

    histrico, e da teoria sobre federalismo.

    Tanto a academia como especialistas tm produzido trabalhos importantes e

    ricos do ponto de vista da compreenso da poltica de segurana pblica, mas, ao

    final desta dissertao, espero ter contribudo para o debate com algumas

    constataes empricas e com um enquadramento especfico no plano da anlise

    terico-conceitual.

  • 5

    Captulo 1 Federalismo, polticas pblicas e a perspectiva da anlise

    institucional

    Este captulo tem por objetivo contextualizar as duas principais referncias

    analticas utilizadas nesta dissertao: de um lado, o federalismo e suas implicaes

    sobre as polticas pblicas e, de outro, no campo da anlise institucional, aspectos

    conceituais do neoinstitucionalismo histrico.

    1.1 Federalismo e polticas pblicas

    O estudo das polticas pblicas demanda a compreenso no apenas das

    preferncias sobre quem deve obter o qu, mas tambm sobre as estratgias para a

    efetivao dessas preferncias, o nvel de governo que deve se encarregar da

    formulao e da implementao da poltica, a definio de quem tem autonomia

    decisria, quem arca com os custos, quais as fontes de recursos e como se d a

    coordenao e a cooperao entre os entes federados na implementao dessas

    polticas. Esta seo tem por objetivo apresentar, de forma geral, as principais

    tendncias do federalismo brasileiro consagradas a partir da Constituio Federal de

    1988 a fim de se compreender, em seguida, tanto as especificidades da poltica de

    segurana pblica nesse contexto, como as posteriores alteraes em sua dinmica

    federativa e os constrangimentos e incentivos que a conformam.

    Nos anos 1980, a agenda da redemocratizao orientava-se pela bandeira da

    descentralizao. Negativamente marcados pelo longo perodo de centralizao

    autoritria do regime militar institudo em 1964, os constituintes e a sociedade

    associavam descentralizao democratizao2 (MELO, 2005). Contudo, apesar do

    grande consenso existente entre atores polticos e sociais em torno dessa ideia-

    2 Utilizando um conceito analtico do neoinstitucionalismo histrico, pode-se dizer que a inspirao

    descentralizadora que marcou as preferncias dos constituintes em relao a vrias polticas sociais expressa um mecanismo de police feedback negativo, referido associao entre a alta centralizao das polticas pblicas e o perodo autoritrio militar. Segundo esse referencial terico, denomina-se de police feedback o efeito que as polticas anteriores tm sobre a formao das preferncias no momento presente (PIERSON, 2004).

  • 6

    fora, o andamento da descentralizao no se deu de forma linear, mas de forma

    altamente complexa e marcada por tendncias contraditrias (ALMEIDA, 2005).

    Apesar do desenho constitucional brasileiro, no que tange distribuio de

    competncias, denotar um federalismo de carter cooperativo, vrios autores

    (ABRUCIO, 2005; SOUZA, 2005) chamam a ateno para seu carter, na prtica,

    bastante competitivo, seja em razo da desigualdade tcnica, de recursos e de

    gesto entre as unidades subnacionais, seja pela inexistncia de dispositivos

    institucionais que estimulem e regulem a cooperao. Tanto a persistncia das

    desigualdades regionais como a insuficincia de dispositivos de cooperao

    intergovernamental capazes de aumentar a eficcia e a eficincia das polticas

    pblicas continuam sendo, para esses autores, grandes desafios do federalismo

    brasileiro.

    De fato, a persistncia de desigualdades fica explicitada, por exemplo,

    quando se analisam os municpios. Estes foram, de maneira indita na histria

    federativa brasileira, elevados condio de entes federados autnomos pela

    Constituio Federal de 1988. Se, por um lado, essa inovao deu ensejo

    emergncia de novos atores com capacidade de incidir na formulao e na gesto

    de polticas pblicas, por outro, a efetivao prtica da autonomia municipal ainda

    bastante desigual em todo o pas. As desigualdades de condies administrativas e

    econmicas entre os municpios so significativas. Segundo dados do IBGE,

    apresentados na tabela abaixo, dos 5.564 municpios brasileiros existentes em 2006,

    4.986 deles (quase 90%) tinham at 50.000 habitantes e eram, em sua maioria,

    fortemente dependentes de transferncias governamentais. Em 2003, por exemplo,

    enquanto a Unio foi responsvel por 67,9% de toda a arrecadao de tributos e os

    estados por 27%, os municpios foram responsveis por apenas 5,1%. No mesmo

    perodo, os municpios, com as transferncias governamentais, passaram a

    responder por cerca de 19% da receita nacional disponvel (IBGE, 2007).

  • 7

    Classes de tamanho da

    populao dos

    municpios brasileiros

    Nmero de

    municpios

    At 5.000 1.371

    De 5.001 a 10.000 1.290

    De 10.001 a 20.000 1.292

    De 20.001 a 50.000 1.033

    De 50.001 a 100.000 311

    De 100.001 a 500.000 231

    Mais de 500.000 36

    Total 5.564

    Fonte: IBGE, Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais, 2007.

    De maneira geral, o arranjo federativo desenhado pela Constituio Federal

    de 1988 beneficiou estados e municpios, com maior descentralizao de recursos.

    Nos anos posteriores promulgao da Constituio, no entanto, o federalismo

    fiscal foi sofrendo ajustes no apenas para compensar desigualdades horizontais na

    capacidade de arrecadao, como tambm em razo da presso por austeridade

    fiscal exigida pelo contexto macroeconmico e pela necessidade de estabilizao

    monetria.

    Segundo Arretche (2004), ao instituir um sistema legal de repartio de

    receitas, a Constituio de 1988 limitou a capacidade do governo federal de

    coordenao de polticas, por restringir sua capacidade de gasto. No obstante, a

    despeito das tendncias dispersivas resultantes do arranjo federativo desenhado, o

    governo federal dispe de instrumentos para coordenar polticas sociais, de recursos

    institucionais para induzir as decises e o comprometimento dos governos

    subnacionais, o que essencial para que se possa viabilizar e garantir nveis

    bsicos de produo de servios sociais. Nesse sentido, para Arretche (prelo),

    foroso reconhecer a enorme interdependncia entre os nveis de governo na

    proviso de polticas pblicas3. No se trata, sob essa perspectiva, de opor

    3 Essa grande imbricao entre os nveis de governo tem forte impacto sobre as margens de

    autoridade dos entes federados. Assim, a descentralizao de competncias no pode ser tida, como quer grande parte da literatura, como equivalente autonomia decisria dos governos locais para

  • 8

    centralizao e descentralizao, cooperao e competio e interdependncia e

    autonomia. Como preceitua Pierson (1995, p. 458), The interplay between national

    and constituent unit officials entails a much more complex mixture of competition,

    cooperation, and accommodation. O que se busca a obteno de um jogo de

    soma positiva, por meio da instituio de dispositivos efetivos de cooperao entre

    os trs nveis de governo.

    Segundo Arretche (2004), para cada poltica pblica especfica, o modo como

    esto estruturadas as relaes federativas afeta diretamente a capacidade de

    coordenar aes entre as esferas de governo. Na poltica de sade, por exemplo,

    cabe ao governo federal financiar e formular a poltica nacional, coordenando as

    aes intergovernamentais e induzindo as escolhas dos governos locais. Estados e

    municpios participam do processo de formulao da poltica de sade por meio de

    conselhos institucionalizados. J na poltica de educao fundamental, estados e

    municpios atuam de modo independente, com competncias concorrentes. O

    governo federal no o principal financiador da poltica e o Fundo de Manuteno e

    Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da

    Educao (FUNDEB) foi institudo visando reduo das assimetrias das unidades

    subnacionais e promoo de uma poltica de valorizao dos profissionais da

    educao. O impacto do federalismo em cada poltica pblica, portanto, deve ser

    analisado luz do desenho das instituies polticas e dos recursos de poder dos

    diversos atores relevantes.

    Historicamente, o sistema de segurana pblica brasileiro sempre esteve

    fortemente identificado com as instituies policiais, responsveis pelo controle da lei

    e da ordem. Desde a Repblica, a segurana pblica alterna perodos de

    descentralizao federativa com forte centralidade nos estados, nos perodos

    democrticos (1889-1930, 1946-1964 e a partir de 1984) com perodos de alta

    centralizao federativa, marcados pela tutela federal das polcias estaduais, nos

    perodos autoritrios (1937-1945 e 1964-1985). O padro de controle das instituies

    policiais, portanto, oscila entre a tutela federal e sua centralizao nos estados.

    definir o modo como sero implementadas as polticas sob sua competncia (ARRETCHE, prelo). Para a autora, a descentralizao no implica necessariamente, como pensava grande parte dos constituintes de 1988 e dos atores sociais que incidiram no processo, em democratizao do nvel local, podendo at mesmo aumentar as desigualdades, a depender dos arranjos institucionais que estruturam as relaes intergovernamentais (ARRETCHE, prelo).

  • 9

    A Constituio Federal de 1988, no que se refere poltica de segurana

    pblica, manteve a histrica centralizao da poltica nas instituies policiais dos

    estados4 (ainda que estas tenham ficado, nos perodos autoritrios da repblica,

    como mencionado anteriormente, sob tutela dos governos centrais). H at pouco

    tempo, no se pensava na articulao de uma poltica nacional de segurana

    pblica, nem tinha o governo federal a preocupao de atuar de forma a promover

    cooperao intergovernamental ou de, por meio de incentivos, induzir as unidades

    subnacionais a adotarem determinada poltica. Aos municpios tambm no cabia

    qualquer outro papel, que no o de vigiar seus prprios, bens e instalaes e o de

    arcar com alguns dos custos das polcias estaduais atuantes no seu territrio, como

    o pagamento de aluguis, reformas, fornecimento de combustvel e cesso de

    prprios5.

    Anos aps a promulgao da Constituio Federal, a Unio e alguns

    municpios passaram a pautar o tema da segurana pblica em suas agendas e a

    chamar para si atribuies no positivadas no sistema de segurana pblica

    constitucional. A Unio e os municpios tm surgido, como se ver adiante, como

    atores relevantes nessa poltica, alterando, ainda que de maneira incipiente, a

    dinmica federativa na matria. Nesse contexto, a construo de uma poltica

    nacional de segurana pblica precisa ser amplamente negociada e legitimada a fim

    de que se criem condies efetivas para o trabalho coordenado e cooperativo,

    visando a maior eficcia e efetividade da poltica.

    4 Sobre o poder dos governos estaduais decorrente do desenho constitucional de 1988, enquanto

    Souza (2005) chama a ateno para o problema de sua limitada capacidade de iniciativa, em razo da reduo relativa de suas receitas e da relao direta que passou a existir entre governo federal e municpios por conta da descentralizao de polticas pblicas, Abrucio (2005) ressalta o estabelecimento, nas dcadas de 1980 e 1990, de um federalismo no-cooperativo nas relaes intergovernamentais, com forte predomnio do componente estadualista. Para esse autor, os governadores, nas dcadas mencionadas, tiveram seu poder fortalecido e formaram coalizes pontuais e defensivas, visando manuteno do status quo. Reconhecendo as diferenas no modo como se estruturam as relaes federativas em cada poltica pblica, no que diz respeito poltica de segurana pblica especificamente, a leitura de Abrucio sobre o predomnio do componente estadualista se mostra mais pertinente. 5 Em geral, essa contribuio dos municpios para as polcias estaduais se d h dcadas, por fora

    da tradio. No h qualquer normativa ou instrumento de cooperao firmado entre estados e municpios regulando esse pagamento. Alm disso, a contribuio no confere ao municpio prerrogativa alguma para discutir o trabalho policial. Em municpios da regio metropolitana de So Paulo, como So Bernardo do Campo, So Caetano do Sul e Osasco, por exemplo, a realidade que no h sequer uma rubrica no oramento municipal reservada a esse pagamento, que retirado da rubrica despesas gerais do municpio. Seria necessria uma pesquisa mais ampla, junto a uma amostra significativa de municpios, para aprofundar o tema.

  • 10

    No que diz respeito segurana pblica, o arranjo federativo desenhado pela

    Constituio de 1988 potencializa a tendncia dos estados de defenderem a

    manuteno do status quo, ao mesmo tempo em que tende a diminuir a capacidade

    de incidncia de outros atores polticos. Por essa razo, a tentativa de se construir

    uma poltica nacional de segurana pblica, com coordenao e cooperao

    intergovernamental, envolvendo os trs nveis de governo, no tarefa fcil e

    pressupe um amplo processo de negociaes e repactuaes.

    Diferentemente do que ocorre na poltica de sade, por exemplo, em que h

    um modelo constitucional unificado, integrado e hierarquizado de gesto de

    competncias comuns (o Sistema nico de Sade SUS), que favorece a

    coordenao governamental pelo governo federal, na poltica de segurana pblica a

    centralidade constitucionalmente atribuda aos estados para a manuteno da lei e

    da ordem, dentro do clssico paradigma repressivo-punitivo de enfrentamento da

    violncia, tem colocado entraves eficincia da gesto no setor, gerando muitas

    vezes conflitos de titularidade e dificuldades para uma efetiva coordenao da

    poltica (KINZO et al., 2004).

    Pesquisa realizada entre os anos de 2003 e 2004 pelo Programa Nacional de

    Apoio Modernizao da Gesto e do Planejamento dos Estados e do Distrito

    Federal (PNAGE) revelou que a pior avaliao em termos de articulao

    intergovernamental foi a da poltica de segurana pblica, em razo de faltar-lhe

    diretriz federativa clara, dado que no h definio do papel dos entes e da maneira

    como se deve dar o entrelaamento entre os trs mbitos (ABRUCIO; GAETANI,

    2006).

    Segundo Abrucio (2005, p. 41), para que se possa ter melhor desempenho

    governamental e maiores efetividade e eficcia das polticas pblicas, necessria

    uma maior coordenao intergovernamental nos pases federativos, ou seja, novas

    formas de integrao, compartilhamento e deciso conjunta. Na rea da segurana

    pblica, em que dispositivos de cooperao intergovernamental quase nunca

    estiveram presentes (COSTA; GROSSI, 2007; DURANTE, 2008), um arranjo

    institucional mais cooperativo demanda uma repactuao federativa, com o

    reconhecimento da incluso de novos atores polticos nesse campo.

    No perodo ps-transio democrtica, a dinmica federativa, no caso da

    poltica de segurana pblica, vem sofrendo pequenos deslocamentos em funo

  • 11

    daquilo que os governos so efetivamente capazes de fazer a cada conjuntura e

    mediante as coalizes que os sustentam. Nesse sentido, torna-se relevante analisar

    os tensionamentos federativos na matria e analisar como os governos, em mbito

    federal, tm pautado o tema da segurana pblica em suas agendas.

    1.2 Perspectiva institucional: considerando instituies, processos e atores

    Para o neoinstitucionalismo, o conceito de instituio amplo e compreende

    tanto regras e instituies formais como significados e prticas compartilhados ao

    longo do tempo, que orientam a ao humana (FREY, 2002). Segundo Hall e Taylor

    (2003), os tericos do institucionalismo histrico no consideram as instituies

    como o nico fator que influencia a vida poltica, mas as situam numa cadeia causal

    da qual fazem parte outros fatores, como o desenvolvimento econmico e a difuso

    das ideias.

    Instituies importam para se compreender a formulao das polticas

    pblicas. Os atores polticos atuam em contextos institucionais, e esses contextos

    afetam seus clculos estratgicos bem como suas preferncias. Nas palavras de

    Immergut (1996, p. 162), para compreender o impacto das instituies sobre os

    conflitos polticos contemporneos, preciso analisar os incentivos, as

    oportunidades e as restries que elas oferecem aos atores envolvidos nas disputas

    em curso. Para essa autora, nesse sentido, as instituies condicionam estratgias

    e preferncias dos atores, embora no permitam predizer suas escolhas finais.

    O pressuposto das teorias neoinstitucionalistas que as possibilidades da

    escolha estratgica so determinadas de forma decisiva pelas estruturas poltico-

    institucionais, inclusive a capacidade dos atores polticos de modificar essas

    estruturas de acordo com suas estratgias (NABMACHER, 1991 apud FREY, 2002,

    p. 233). As instituies estruturam as interaes e criam incentivos e restries ao

    comportamento dos atores, conformando suas preferncias e seus recursos, sempre

    assimtricos na comunidade poltica. Para uma mesma poltica e para uma mesma

    janela de oportunidade h diversos desenhos possveis de poltica. As preferncias

    dos diferentes atores polticos e a formao de coalizes majoritrias, para as quais

  • 12

    os atores relevantes convergem, so afetadas pelas escolhas polticas anteriores,

    assim como os clculos estratgicos dos atores so afetados pelas regras do jogo,

    pelo contexto institucional que rege a interao entre eles.

    Para o neoinstitucionalismo histrico, o legado histrico influencia a gnese,

    as reformas e o fim das polticas pblicas. O padro de dependncia da trajetria

    (path dependence), entendido como um alto custo de reverso da poltica

    (PIERSON, 2004), ajuda a compreender os limites das mudanas institucionais. As

    escolhas futuras, nesse sentido, so condicionadas pelo legado das escolhas

    anteriores, pelo alto custo de reverso.

    Ao postular que as instituies importam e que importa seu desenvolvimento

    histrico, o neoinstitucionalismo histrico apresenta uma chave explicativa para a

    compreenso de fatores que contribuem ou que criam obstculos implementao

    de reformas institucionais. Importa para o estudo da poltica de segurana pblica

    compreender os motivos pelos quais esta parece ser to resiliente a mudanas e

    quais fatores tm possibilitado pequenos deslocamentos em algumas de suas

    caractersticas. Importa compreender quais so os atores relevantes na comunidade

    da poltica, quais so suas preferncias e como as instituies regem suas

    interaes e conformam suas estratgias.

  • 13

    Captulo 2 Poltica de segurana pblica brasileira: caractersticas e

    panorama histrico

    Pode-se afirmar, sinteticamente, que a poltica de segurana pblica

    brasileira, logo aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, apresenta as

    seguintes caractersticas, que sero melhor detalhadas ao longo do presente estudo:

    1. nfase no modelo repressivo-punitivo a segurana pblica realizada

    pelas instituies estatais responsveis pela manuteno da lei e da ordem, com

    nfase na represso e na punio. As polcias tendem a agir reativamente,

    objetivando mais o combate ao criminoso e o encarceramento do que a preveno

    da violncia e da criminalidade.

    2. Centralidade da poltica nas instituies policiais estaduais o desenho da

    Constituio Federal de 1988 confere s instituies policiais estaduais e federais a

    execuo da poltica de segurana pblica. As instituies policiais estaduais

    mantm a centralidade do sistema porque so responsveis pelo enfrentamento de

    maior nmero de tipos penais, que so tambm os mais frequentes. A Polcia

    Federal responde apenas pelos crimes de competncia federal. A concepo

    hegemnica vigente em nossa histria republicana, de que os Estados so

    responsveis pela implementao das aes de segurana pblica, fez com que

    90% do efetivo policial do pas pertena aos governos estaduais, que tambm

    gerenciam 83% dos recursos gastos na rea (DURANTE, 2008).

    3. Fragmentao das instituies policiais e padro dual de policiamento6

    existncia de duas polcias estaduais que no realizam o ciclo completo da atividade

    policial, isto , no atuam desde o policiamento ostensivo at a investigao do

    delito. polcia militar competem as funes de polcia ostensiva e de preservao

    da ordem pblica. A polcia civil polcia judiciria, competindo-lhe a investigao

    dos delitos.

    6 O padro dual de policiamento difere do que ocorre na maioria dos pases, em que, mesmo

    havendo mais de uma polcia, cada uma delas responsvel pelo ciclo completo da atividade policial, isto , cada uma realiza tarefas que vo desde o momento anterior ao crime at sua posterior investigao. o caso, por exemplo, do Canad, onde tanto a Polcia Nacional como a Guarda Nacional desenvolvem, na atividade policial, funes de investigao, preveno e represso, na manuteno da ordem pblica. A diferena que a Polcia Nacional atua nas zonas urbanas e est vinculada ao Ministrio do Interior, enquanto a Guarda Nacional atua nas zonas rurais, tem formao militar e subordina-se ao Ministrio da Defesa (LVY, 2008).

  • 14

    4. Militarizao do policiamento ostensivo a funo de policiamento

    ostensivo, que de natureza civil, exercida por uma polcia militarizada, com

    regulamentos disciplinares adequados a instituies militares, com organizao

    militar e vinculada ao Exrcito, constituindo-se como reserva e fora auxiliar dessa

    instituio.

    5. Presena do instituto do inqurito policial instrumento administrativo de

    investigao da polcia civil que confere autoridade policial a prerrogativa de

    indiciar o suspeito e de produzir provas sem a aplicao do princpio do contraditrio.

    6. Ausncia de uma poltica nacional de segurana pblica e carncia de

    mecanismos institucionais de coordenao e cooperao intergovernamentais.

    7. Ausncia do municpio como cogestor da segurana pblica (ressalvada

    apenas a possibilidade de constituio de guardas municipais para a preservao de

    bens, servios e instalaes municipais).

    8. Inexistncia ou ineficincia de mecanismos de controle externo das

    instituies policiais e fragilidade dos mecanismos de controle interno.

    9. Comunidade da poltica restrita aos atores vinculados s instituies

    responsveis pelo controle da lei e da ordem.

    Este captulo tem por objetivo demonstrar como algumas dessas

    caractersticas foram engendradas historicamente, como foi o tratamento dado a

    essa poltica no curso do processo constituinte de 1987-1988, como ficou

    configurado o desenho constitucional de ento, bem como alguns problemas

    decorrentes desse arranjo institucional.

    A caracterizao da poltica importante para que se possa, no decorrer do

    trabalho, analisar se houve algum impacto das polticas posteriores sobre ela. A

    reconstituio histrica da poltica de segurana pblica no Brasil permite que se

    tenha um panorama da gnese e da evoluo de suas principais instituies.

    Conhecer as escolhas institucionais passadas possibilita compreender limitaes a

    escolhas futuras, em razo dos altos custos que mudanas radicais no modelo da

    poltica podem impor, como ser mais bem explicado na seo 4.5 do captulo 4.

  • 15

    2.1 Caracterizao histrica do modelo de segurana pblica brasileiro

    No incio do perodo colonial, antes da chegada da Famlia Real ao Brasil, em

    1808, a segurana nas cidades e vilas era feita de forma privada pelos quadrilheiros

    e capites-do-mato, especializados na captura de escravos fugitivos. Valendo-se

    desse poder disciplinador privado dos senhores de terras, Portugal instituiu as

    chamadas ordenanas, que outorgavam funes de mando a esses chefes

    naturais (LEAL, 1997). Com a chegada da Famlia Real, D. Joo VI instituiu o cargo

    de Intendente Geral da Polcia da Corte e Estado do Brasil, que tinha por atribuio

    zelar pela segurana da Famlia Real e pela segurana coletiva, realizando o

    policiamento dos logradouros pblicos, a investigao de crimes e a captura de

    criminosos. Competia, tambm, ao Intendente Geral decidir sobre condutas

    consideradas ilcitas, determinando prises e solturas, realizando julgamentos e

    supervisionando o cumprimento da penas7.

    Durante o imprio, na esteira das discusses da poca entre liberais e

    conservadores, ocorreu um movimento pendular de centralizao e descentralizao

    das funes judicirias e policiais. Com a abdicao de D. Pedro I, em 1831, o

    Estado viveu momentos de incertezas e desordens. Movimentos revolucionrios,

    insurgentes por todo o pas, motivaram a criao, em 1831, da Guarda Nacional e do

    Corpo de Guardas dos Permanentes, no Rio de Janeiro, que substituram os corpos

    de milcias e as ordenanas. O mesmo decreto regencial que instituiu a Guarda dos

    Permanentes autorizava os presidentes de provncias a institurem suas prprias

    guardas, foras policiais de estrutura militarizada8. Segundo Fernandes (1974) apud

    Lima (2006),

    [...] a caracterstica hbrida da organizao do Corpo de Guardas de Permanentes [...] tinha uma estrutura contraditria que contribua para o estabelecimento de conflitos, de um lado, com a instituio essencialmente

    7 Segundo Leal (1977, p. 370), os efeitos dessa mistura de competncias administrativas, policiais e

    judicirias se projeta at os dias atuais, como se v do inqurito policial pela polcia e que serve de base ao penal. 8 A gnese das polcias militares remonta a essas foras policiais militarizadas institudas ainda no

    Brasil imperial (LIMA, 2006). Outros autores apontam que o embrio mais antigo da polcia militar , na verdade, a Guarda Real de Polcia, criada em 1809, por D. Joo VI, no estado da Guanabara. Essa guarda era subordinada ao governador das Armas da Corte que era o comandante de fora militar, que, por sua vez, era subordinado ao intendente-geral de Polcia (SOUZA, s/d).

  • 16

    militar, o Exrcito; de outro, com a instituio tradicionalmente policial, a Polcia Civil. (LIMA, 2006, p. 136)

    Para Dallari (1991), foi equivocada a forma como, em 1831, autorizaram-se as

    provncias a criar sua organizao policial, porque, na prtica, criaram-se pequenos

    exrcitos provinciais, equvoco esse que, at os dias atuais, marca a confuso

    existente entre autoridade policial e autoridade militar9.

    O Cdigo de Processo Criminal, editado em 1832, tinha uma tendncia liberal

    descentralizadora. Cada comarca tinha um juiz de direito, investido tambm da

    funo de chefe de polcia. A inteno inicial, ao se instituir a descentralizao do

    controle da ordem pblica para o poder local, era a de que se conseguisse, a partir

    da administrao distrital, combater a desordem pblica e fortalecer as corporaes

    policiais. No entanto, as instituies policiais foram sendo instrumentalizadas

    politicamente pelas elites rurais controladoras do poder local e ficaram sujeitas aos

    caprichos locais, sem que os governos provinciais e central pudessem intervir (LIMA,

    2006). Segundo Leal (1977), a lei de 1832 mostrou-se ineficiente para prevenir e

    reprimir a criminalidade, e todas as desordens e revolues do perodo regencial

    foram atribudas a ela.

    Em reao ao arranjo organizativo descentralizador de 1832, vrios rearranjos

    foram adotados, culminado na reforma de 1841, marcada pelos ideais

    conservadores de manuteno da unidade nacional e de controle da ordem. Pela

    primeira vez, o Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, regulamentou a diviso

    das funes policiais, dispondo sobre a polcia administrativa e a polcia judiciria.

    Vem da uma das principais caractersticas do sistema de segurana pblica

    brasileiro presente at os dias atuais: a escolha por um padro dual de gesto na

    segurana pblica (LIMA, 2006), caracterizado por duas polcias de ciclo incompleto,

    uma responsvel pelas funes investigativas e judicirias e a outra responsvel

    pelas funes ostensivas e de preservao da ordem pblica.

    A reforma seguinte, em 1871, manteve a estrutura organizativa da lei de 1841,

    aceita, ao final, inclusive pelos liberais, em razo de sua maior eficincia

    9 Percebe-se, ao longo da histria at os dias atuais, que a funo de policiamento ostensivo sempre

    esteve de alguma forma ligada organizao militar. O soldado de polcia era um militar que integrava as foras policiais, subordinadas aos presidentes de estado e, posteriormente, governadores, tendo recebido diferentes denominaes, como Guarda Municipal Permanente, Brigada Militar, Fora Pblica, entre outras. Desde o Segundo Imprio, a polcia ostensiva (hoje denominada Polcia Militar) atuava de forma regular como fora auxiliar do Exrcito, tanto nos conflitos armados externos como nos levantes internos (MUNIZ, 2001).

  • 17

    administrativa. As autoridades policiais passaram a ficar impedidas de proceder

    formao de culpa e de pronunciar os delinquentes, mas continuavam a processar

    pequenos delitos. Pelo disposto na Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, instituiu-

    se o inqurito policial, existente at hoje, incumbindo-se s autoridades policiais a

    realizao das diligncias necessrias ao descobrimento dos crimes e suas

    circunstncias (KFOURI FILHO, 1991).

    No perodo republicano, o federalismo de 1891 deixou a cargo dos estados a

    organizao de seu aparelhamento estatal (LEAL, 1977), tornando a centralidade

    das funes policiais nos estados uma marca desse perodo histrico, presente at

    os dias atuais10. Na Primeira Repblica, as polcias militares estaduais cresceram

    com a implantao do federalismo. Alguns estados, como So Paulo, Minas Gerais e

    Rio Grande do Sul, transformaram suas polcias em pequenos exrcitos

    (CARVALHO, 2003; DALLARI, 1977) utilizados como instrumentos na disputa pelo

    poder poltico11.

    Com o final da Primeira Repblica, o Exrcito exigiu que as polcias militares

    ficassem sob seu controle. Na longa fase de autoritarismo poltico da Era Vargas, o

    sistema policial foi utilizado como instrumento de represso poltica e de prticas

    arbitrrias contra os cidados. No perodo entre 1946 e 1964, restabeleceu-se o

    controle dos governadores sobre as polcias, mas estas permaneceram, conforme o

    desenho constitucional de 194612, como foras auxiliares e reservas do Exrcito, tal

    como havia sido previsto inicialmente na Constituio Federal de 193713.

    A Constituio Federal de 1946 passou a denominar as foras policiais dos

    estados de polcias militares. Mas foi apenas no regime militar, iniciado em 1964,

    que a denominao foi padronizada14 e seus comandos entregues a oficiais do

    10

    As limitaes, ainda hoje existentes, do carter estadual da organizao policial so de duas ordens: o fato de as polcias militarizadas constiturem reservas do Exrcito e as atribuies que competem atualmente denominada Polcia Federal (LEAL, 1977). 11

    Vrios autores chamam a ateno para a instrumentalizao das polcias por partidos polticos e pela elite dominante. Medeiros (2004) ressalta que, desde sua gnese, as polcias foram constitudas a servio das elites para exercerem controle social. Leal (1977) chama a ateno para a instrumentalizao da polcia para fins polticos, especialmente eleitorais. 12

    O artigo 183, integrante do Ttulo VII Das Foras Armadas, da CF de 1946, dispunha: As polcias militares, institudas para a segurana interna e a manuteno da ordem nos Estados, nos Territrios e no Distrito Federal, so consideradas, como foras auxiliares, reservas do Exrcito. 13

    A CF de 1934 j estabelecia que as polcias militares eram foras reservas do Exrcito, mas ainda no as estabelecia como foras auxiliares deste. 14

    As excees foram o estado do Rio Grande do Sul, que at hoje denomina sua fora policial militar de Brigada Militar, e o estado de So Paulo, que manteve a denominao de Fora Pblica at 1970.

  • 18

    Exrcito brasileiro, objetivando um rgido controle sobre as corporaes e a coibio

    de eventuais tentativas de levante armado por parte dos estados.

    Durante o regime militar iniciado em 1964, as polcias militares foram

    colocadas totalmente sob o comando do Exrcito, recebendo intenso treinamento

    militar e sendo dotadas de rgos de inteligncia e de represso poltica. As Foras

    Armadas e no mais as polcias, como havia ocorrido na ditadura Vargas

    passaram a controlar a represso poltica. Foi criada, em 1967, a Inspetoria Geral

    das Polcias Militares (IGPM) do Ministrio do Exrcito, com o objetivo de

    supervisionar e controlar as polcias militares estaduais, superviso esta que segue

    sendo feita at hoje, embora no exista mais a tutela centralizadora do governo

    federal sobre as polcias, caracterstica dos perodos autoritrios.

    2.2 Segurana pblica no processo constituinte e o desenho da poltica de

    segurana pblica na Carta de 1988

    A redemocratizao, com sua luta pela restaurao do federalismo e pela

    descentralizao, conduziu a um intenso processo de participao poltica e de mais

    de um ano de trabalho da Assembleia Nacional Constituinte para a elaborao de

    uma nova Constituio, com dispositivos relativos no s a princpios e direitos

    (individuais, coletivos e difusos), mas tambm a vrias polticas pblicas, resultando

    numa Carta longa e detalhada. No obstante essa grande janela de oportunidades, a

    Constituio de 1988, no que diz respeito segurana pblica, manteve parte dos

    dispositivos presentes na Constituio de 1967, outorgada no perodo autoritrio

    militar, e na Emenda de 1969.

    Para que se possa proceder anlise de uma dada poltica pblica, de seu

    processo de formulao e implementao, essencial que se compreendam as

    regras do jogo e os arranjos polticos e institucionais vigentes, como se procurar

    fazer nesta seo. No caso brasileiro, assim como no de outros pases latino-

    americanos, o fim do perodo autoritrio militar se deu com a sada das Foras

    Armadas de forma negociada, sem rupturas. Para assegurar a concordncia das

    foras militares em devolver o governo aos civis, manteve-se certo grau de

  • 19

    autonomia poltica dos militares. A chamada distenso lenta, gradual e segura

    imps, assim, dificuldades e limites s mudanas, no que concerne construo do

    controle civil no processo de consolidao democrtica brasileira. (SAINT-PIERRE;

    WINAND, 2007).

    As preferncias estratgicas das Foras Armadas prevaleceram no processo

    constituinte em relao poltica de segurana pblica. O fato de as Foras

    Armadas serem atores polticos que, diferentemente de outros, tm a capacidade de

    reverter o processo de democratizao pelas armas, tornava ainda maior seu poder

    de barganha poltica. Para o neoinstitucionalismo histrico, fatores exclusivos de um

    grupo de interesse no so suficientes para explicar sua influncia poltica. Esta

    abrange a relao desse determinado grupo de interesse com o sistema poltico e s

    pode ser compreendida por meio de uma anlise da receptividade das instituies

    s presses polticas (IMMERGUT, 1996, p. 146).

    Segundo Arturi (2001),

    [...] a aceitao da eleio de Tancredo pelos militares foi baseada, quase que exclusivamente, na sua confiabilidade poltica pessoal, que garantiria tanto o cumprimento das prerrogativas polticas oferecidas s Foras Armadas como as promessas de que os interesses econmicos fundamentais das classes dominantes no seriam atingidos por eventuais reformas.

    Cercado de constrangimentos consolidao do novo regime, Sarney apoiou-

    se politicamente nos militares e utilizou prticas clientelistas para aliciar

    parlamentares de vrios partidos15. Ao lado de Sarney, o Ministro do Exrcito,

    General Lenidas Pires, emitia opinio no apenas sobre temas pertinentes sua

    pasta, mas sobre todos os assuntos considerados importantes (SAINT-PIERRE;

    WINAND 2007).

    Diferentemente do que se verificava em relao a outras polticas pblicas,

    no havia, poca, uma coalizo reformadora para que se estabelecesse um novo

    modelo institucional para a segurana pblica, o que no significa dizer que no

    existissem atores com agendas reformistas. Era o caso, por exemplo, da Comisso

    Justia e Paz, do Gabinete de Assessoria Jurdica s Organizaes Populares

    (GAJOP), em Pernambuco, e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, entre

    15

    Segundo Celina Souza (2001, p. 540), o presidente Sarney valeu-se dos militares como uma fora extraconstitucional para diminuir o poder dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais.

  • 20

    outros. Segundo Kant de Lima (2000, p. 56), desde a dcada de 1980, setores da

    sociedade j rejeitavam a militarizao da ao policial, postulando a remodelao e

    a modernizao das instituies policiais, bem como a adoo de estratgias

    orientadas pelos direitos humanos. Coexistiam duas posies polticas antagnicas,

    consubstanciadas em discursos conservadores autoritrios e em discursos de

    defesa dos direitos humanos (o que continuou evidente durante toda a dcada de

    1990).

    Havia, poca, um forte lobby, bastante ativo e organizado pelos interesses

    militares, com 13 oficiais superiores atuando junto aos constituintes (STEPAN, 1988;

    ZAVERUCHA, 2002). Durante o processo constituinte, o ento senador Jarbas

    Passarinho, coronel da Reserva e ex-ministro dos governos dos Generais Costa e

    Silva, Mdici e Figueiredo, presidiu a Comisso de Organizao Eleitoral Partidria e

    Garantia das Instituies, encarregada da redao dos captulos sobre Foras

    Armadas e Segurana Pblica. O deputado Ricardo Fiza, um dos lderes do

    denominado Centro16, era encarregado da subcomisso de Defesa do Estado, da

    sociedade e de sua segurana, e deu total apoio s demandas militares,

    trabalhando, segundo Zaverucha (2002), contra qualquer tentativa de se acabar com

    o controle do Exrcito sobre as polcias estaduais. A aludida subcomisso organizou

    oito sesses pblicas, convidando 28 pessoas, cujos perfis tornavam previsvel a

    preferncia pela agenda militar. Apenas trs dos vinte e oito convidados (o

    presidente da Associao Nacional dos Comissrios da Polcia Civil, o presidente da

    Ordem dos Advogados do Brasil e o diretor do Ncleo de Estudos Estratgicos da

    Unicamp) apresentaram proposituras de mudanas nas relaes entre civis e

    militares. A agenda para a segurana pblica entre os constituintes refletia, portanto,

    a preferncia dos militares pela manuteno do status quo.

    Contreiras, citado por Zaverucha (2002, p. 84), afirma que o coronel do

    Exrcito, Sebastio Ferreira Chaves, ex-secretrio de segurana pblica de So

    Paulo no Governo Abreu Sodr, entendia, j naquela poca, que a polcia militar

    agia de forma violenta e que a polcia civil havia perdido sua capacidade

    investigativa. Por esse motivo, tentou convencer o ento presidente do Congresso

    16

    Centro a denominao que se deu a um movimento de parlamentares constituintes filiados a partidos de centro direita. Como afirma SOUZA (2001, p.539), o grupo foi articulado para lutar contra o que muitos rotulavam de tendncias esquerdistas da Assembleia Nacional Constituinte.

  • 21

    Nacional, deputado Ulisses Guimares, a mudar o sistema policial na Constituio

    de 1988, extinguindo, entre outras medidas, as polcias militares. Segundo o autor, o

    presidente do Congresso expressou a impossibilidade da mudana, em razo de

    acordo que firmara com o General Lenidas Pires, ministro do Exrcito do Governo

    Sarney. Nesse sentido, a lgica do processo de deciso, como afirma Immergut

    (1996), requer a anlise de todos os acordos que ocorrem ao longo da cadeia de

    decises tomadas por representantes de diferentes arenas polticas.

    As preferncias pela manuteno do status quo prevaleceram, traduzindo-se

    na continuidade de arranjos institucionais persistentes em matria de segurana

    pblica. O poder de presso do Exrcito mostrou-se relevante; mostraram-se

    significativas tambm as manobras polticas para a conformao de arranjos no

    curso do processo decisrio constituinte. Importaram as estratgias para que fosse

    possvel uma transio democrtica negociada. No havia, por parte do poder

    executivo federal, uma agenda reformista na rea de segurana pblica e tambm

    no se havia constitudo uma coalizo reformadora a partir de setores da sociedade

    civil crticos ao modelo herdado do perodo autoritrio.

    A Constituio Federal de 1988 conferiu aos membros das polcias militares o

    status de servidor pblico militar e manteve a competncia dos tribunais militares

    estaduais para o julgamento tambm dos crimes cometidos por policiais militares.

    Reafirmou as polcias militares e corpos de bombeiros militares como foras

    auxiliares e reserva do Exrcito e preservou a diviso entre polcia militar e polcia

    civil, subordinando-as aos governadores estaduais.

    Em relao s competncias que dizem respeito segurana pblica, o

    desenho constitucional ficou assim configurado: compete privativamente Unio

    legislar sobre normas gerais de organizao, efetivos, material blico, garantias,

    convocao e mobilizao das polcias militares e corpos de bombeiros militares e

    sobre a competncia da Polcia Federal e das polcias rodoviria e ferroviria

    federais (art. 22, inc. XXI e XXII). Unio e aos estados compete concorrentemente

    legislar sobre organizao, garantias, direitos e deveres das polcias civis (art. 24,

    inc. XVI). Zelar pela guarda da Constituio, das leis e das instituies democrticas

    e conservar o patrimnio pblico competncia comum de todos os entes federados

    (art. 23, inc. I).

  • 22

    O artigo 144, que trata especificamente da poltica de segurana pblica,

    dispe que:

    A segurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, atravs dos seguintes rgos: I - Polcia Federal; II - Polcia Rodoviria federal; III - Polcia Ferroviria Federal; IV - polcias civis; V - polcias militares e corpos de bombeiros militares.

    O pargrafo 7 do mesmo dispositivo constitucional dispe que a lei

    disciplinar a organizao e o funcionamento dos rgos responsveis pela

    segurana pblica, de maneira a garantir a eficincia de suas atividades. Aos

    municpios, o pargrafo 8 do art. 144 faculta a criao de guardas municipais,

    apenas para a guarda de seus bens, servios e instalaes.

    Considerada dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, a

    segurana pblica passou a ocupar captulo prprio na Constituio, inserido no

    Ttulo V, Da Defesa do Estado e das Instituies Democrticas, ao qual se

    vinculam tambm os captulos que versam sobre o estado de defesa e o estado de

    stio e o captulo sobre as Foras Armadas. Vrios autores (CARBALLO BLANCO,

    2000; LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000; MUNIZ; ZACCHI, 2005) apontam uma

    mudana positiva de foco na Constituio de 1988, que introduziu o conceito de

    segurana como preservao da ordem pblica, dissociando-o das instituies de

    defesa nacional. No obstante, mantiveram-se inalterados tanto o modelo da poltica

    como a organizao e as estruturas das instituies policiais. O poder das Foras

    Armadas continuou a se refletir em vrios dispositivos constitucionais17. Assim,

    apesar da mudana de foco, o desenho constitucional de 1988, no que tange

    estrutura e organizao das instituies de segurana pblica, acabou resultando

    basicamente em continuidades.

    17

    No apenas no artigo 144 da Constituio Federal, que manteve as polcias militares como foras auxiliares e reservas do Exrcito, mas em vrios outros dispositivos da Carta de 1988 fica evidente o poder e a influncia das Foras Armadas. O artigo 142 do captulo relativo s Foras Armadas dispe que estas se destinam defesa da ptria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Segundo Zaverucha (1998), na primeira verso dada ao artigo 142, os militares perdiam o papel de guardies da lei e da ordem, mas, constrangidos pelo ento ministro do Exrcito, Lenidas Pires, os constituintes acabaram alterando a sua redao. Sobre o tema ver tambm Saint-Pierre e Winand (2007).

  • 23

    2.3 Arranjo institucional do sistema de segurana pblica e alguns problemas dele

    decorrentes

    A presente seo tem por objetivo identificar conflitos e deficincias presentes

    no modelo da poltica de segurana pblica vigente, cujas caractersticas, conforme

    analisado nas sees precedentes, deitam razes em escolhas passadas e

    persistentes ao longo do tempo. A identificao desses problemas colocados em

    evidncia nas dcadas de 1980 e 1990 com o aumento vertiginoso da criminalidade

    permitir uma melhor compreenso das agendas de reformas incrementais e

    radicais que se constituram especialmente nos ltimos 15 anos e que sero

    estudadas do captulo 4 em diante.

    Um primeiro problema, que decorre do desenho constitucional do sistema de

    segurana pblica, refere-se ao duplo comando, estadual e federal, das polcias

    militares e corpos de bombeiros. No seu artigo 22, XXI, a Carta de 88 relacionou

    entre as competncias privativas da Unio a de legislar sobre as normas gerais de

    organizao, efetivos, material blico, garantias, convocao e mobilizao das

    polcias militares e corpos de bombeiros militares. No obstante, o artigo 144,

    pargrafo 6, subordinou tanto as polcias civis como as militares aos governadores

    estaduais. De acordo com Zaverucha (2002, p. 85), estabeleceu-se um arranjo

    institucional bastante explosivo em situao de conflito entre o governador do estado

    e o presidente da Repblica.

    Os governadores ficam com nus de pagar os salrios sem, todavia, poderem decidir qual tipo de armamento deve ser comprado, como as tropas devem ser alinhadas, ou onde devem ser construdos novos quartis. Para tudo isso, necessitam de consentimento da Inspetoria Geral das Polcias Militares (IGPM), rgo vinculado ao comandante do Exrcito [...] criado durante o auge da represso poltica.

    Outro arranjo institucional indutor de conflitos refere-se fragmentao e ao

    padro dual das instituies policiais. As duas polcias estaduais possuem cadeias

    de comando prprias e independentes, e nenhuma delas realiza o ciclo completo da

    atividade policial (as atividades de polcia investigativa e judiciria e as atividades de

    policiamento ostensivo no so desempenhadas por uma mesma instituio policial).

    O padro dual das polcias gera dificuldades no que diz respeito separao entre

  • 24

    polcia administrativa e polcia judiciria18. Sobre esse arranjo conflituoso, Dallari

    (1991, p. 64) afirma que, na verdade, nunca houve uma diferenciao clara de

    delimitao de atribuies das polcias militar e civil, motivo pelo qual as duas

    instituies seguem convivendo e frequentemente conflitando.

    Esse problema no decorre propriamente do fato de existirem duas polcias

    estaduais, mas principalmente do fato de que elas no realizam o ciclo completo da

    atividade policial19 e de que no atuam integradamente, o que acaba por gerar

    disputas, rivalidades e conflitos de competncia. Na prtica, apesar de formalmente

    no realizarem o ciclo completo, cada uma das duas polcias acaba desenvolvendo

    atividades que seriam de competncia da outra. A polcia investigativa a polcia

    civil, mas a polcia militar tambm exerce essa funo, por exemplo, quando instaura

    inqurito policial militar ou, ainda, nos estados em que as polcias militares

    reivindicam o direito de lavrar Termos Circunstanciados de Ocorrncia20. A polcia

    civil, por sua vez, desenvolve atividade ostensiva, atribuio tpica da polcia militar,

    por meio de alguns de seus agrupamentos especializados, como o caso, por

    exemplo, do Grupo de Operaes Especiais (GOE), fora de elite da polcia civil

    paulista, cujo objetivo atuar em ocorrncias de alto risco.

    Nas palavras de Muniz e Zacchi (2005, p. 15),

    [...] as ambiguidades existentes nas definies formais dos mandatos, atribuies e competncias das agncias policiais e, por outro lado, a falta

    18

    A doutrina menciona a diviso das funes policiais em polcia administrativa, de carter ostensivo e atuao preventiva, isto , antes do cometimento da conduta delitiva; e outra de carter judicirio, de natureza repressiva, no sentido de atuar depois que o ato criminoso j ocorreu, para que restem esclarecidas as circunstncias em que se deu o fato e sua autoria. Na prtica, no entanto, a polcia militar atua muito mais reativamente, repressivamente, do que de maneira preventiva. 19

    Fazer o ciclo completo da atividade policial (o que ocorre na maior parte das polcias do mundo) significa, como j se afirmou, que uma mesma polcia responsvel tanto pelas atividades de policiamento ostensivo como pelas atividades investigativas. A mesma polcia que faz o policiamento ostensivo, visando a inibir a ocorrncia delitiva, persegue o criminoso, efetua sua priso e toma as medidas de polcia investigativa e judiciria. 20

    O tema bastante polmico. Termo Circunstanciado de Ocorrncia (TCO) o registro que se faz quando da ocorrncia de um fato tipificado como infrao de menor potencial ofensivo, conforme previsto na Lei 9099/95, conhecida por Lei dos Juizados Especiais. A discusso sobre quem est legitimado a lavrar TCO decorre do previsto no artigo 69 da mencionada lei, segundo o qual, no caso dos crimes de pequeno potencial ofensivo, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrncia lavrar termo circunstanciado...". Como a funo judiciria privativa da polcia civil, esta entende que o termo autoridade policial no se aplica aos policiais militares, dizendo respeito apenas aos delegados de polcia. J a polcia militar defende a legalidade de ela prpria lavrar o TCO, uma vez que deve prevalecer o princpio da instrumentalidade e da prestao do servio de segurana pblica por qualquer uma das duas polcias. A polmica tem sido resolvida de maneira diferente em cada estado da federao e tambm tem sido objeto de vrias aes judiciais. Sobre o tema ver Lemle (2008).

  • 25

    de expedientes integradores, conduz multiplicao de conflitos de competncia, sobreposio e ao abandono de rotinas, a no cobertura do fluxo integral do trabalho policial, duplicidade de gastos, disperso de esforos, debilitao das cadeias de comando e de controle e, por fim, ao clientelismo poltico em torno das polcias pela crtica falta de estruturas de gesto e gerncia integradas e de ferramentas efetivas de controle social.

    O resultado disso, segundo os autores, a baixa qualidade dos servios

    prestados, com baixa eficincia e eficcia, apesar dos altos custos despendidos para

    a manuteno das estruturas existentes.

    No que diz respeito ao controle interno da atividade policial, sua fragilidade

    decorre da inexistncia de corregedorias policiais autnomas e independentes dos

    comandos. No que concerne ao controle externo, as insuficincias e as fragilidades

    tambm no so pequenas. O Ministrio Pblico, a quem compete

    constitucionalmente o controle externo das polcias, nem sempre assume essa

    funo e as ouvidorias de polcia, embora constituam inegvel avano no campo do

    controle social, alm de ainda no estarem presentes em todos os estados da

    federao21, no so dotadas de poderes investigativos prprios, o que as torna

    dependentes da investigao realizada pelos rgos corregedores policiais.

    A baixa eficincia das instituies policiais, tanto para prevenir crimes como

    para investig-los, tambm outro problema crnico do modelo policial brasileiro.

    Por um lado, com a transio democrtica, a estrutura e o treinamento militarizados

    das polcias militares mostraram-se inadequados para a funo policial de proteo

    dos cidados, em razo da lgica militar ser a do combate e a da eliminao dos

    inimigos do Estado. Por outro, a dificuldade da polcia civil em investigar22, somada

    s deficincias das outras agncias que compem o sistema de justia criminal,

    contribui para um quadro de impunidade e de desconfiana nas instituies. Para

    muitos autores, o carter burocrtico do qual se reveste o inqurito policial se d em

    detrimento da prpria eficincia da atividade investigativa (ALBERNAZ, 2009;

    MISSE, 2009; VARGAS; NASCIMENTO, 2009;). A desconfiana da populao em

    relao eficincia do sistema, por sua vez, faz no apenas com que grande parte

    21

    At 2008, apenas 14 estados brasileiros tinham institudo ouvidorias de polcia. 22

    A maior parte dos boletins de ocorrncia no conduz abertura de inqurito policial e estes, por sua vez, no produzem relatrios que fundamentem o oferecimento de denncia pelo Ministrio Pblico.

  • 26

    das ocorrncias delitivas sequer seja notificada polcia23, mas fomenta as formas

    privadas de fazer justia e contribui para a exacerbao de um sentimento coletivo

    de medo e de insegurana (ADORNO; ZUMINO, 2000).

    Outro problema persistente diz respeito cultura de no participao da

    sociedade civil na gesto das polticas de segurana pblica. Em geral, a pouca

    participao se limita aos conselhos comunitrios de segurana, como os existentes

    em So Paulo, por exemplo, desde o Governo Franco Montoro, mas mesmos estes

    ainda expressam uma atuao pouco plural em termos de representao dos

    segmentos sociais. At hoje, so muitos os conselhos marcados por alta

    representao de comerciantes e cidados motivados pela resoluo de seus

    problemas particulares, procurando por vezes privatizar os recursos pblicos

    (DURANTE; ZAVATARO, 2007).

    A estrutura centralizada nas instituies policiais estaduais, seu isolamento e

    fragmentao e a falta de mecanismos de cooperao dificultam a articulao de

    polticas pblicas de segurana nas trs esferas de governo, bem como o

    desenvolvimento integrado de estratgias preventivas da violncia, envolvendo a

    participao comunitria. Essa centralizao marcante nas polticas da rea de

    segurana, que no buscam formas de cooperao, articulao que lhes deem

    respaldo e legitimidade poltica (ALVAREZ; SALLA; SOUZA, 2004), leva a fracassos,

    alm de implicar tambm uma maior dificuldade em se otimizar e potencializar

    esforos e recursos a fim de se garantir um padro mnimo de qualidade no

    provimento de segurana pblica em todo o territrio nacional.

    Apesar de todo esse quadro de deficincias, insuficincias e conflitos nas

    instituies tradicionais da segurana pblica ter sido engendrado ao longo de anos

    de histria, apenas h cerca de duas dcadas a poltica de segurana pblica

    ganhou lugar de destaque na agenda poltica e no debate pblico. Por que a questo

    da segurana passou a ser um problema a ser enfrentado pelos governos e pelos

    formuladores de polticas pblicas o que ser analisado a seguir.

    23

    Pesquisa de vitimizao realizada pelo ILANUD, em 2002, no Rio de Janeiro, So Paulo, Vitria e Pernambuco, aponta os altos ndices de subnotificao, especialmente no que diz respeito violncia domstica, estupro, entre outros.

  • 27

    Captulo 3 Crise da segurana pblica: rupturas e esgotamento do modelo

    No modelo de anlise de polticas pblicas denominado de arenas sociais

    (SOUZA, 2007), para que determinada questo ou circunstncia se transforme em

    um problema, as pessoas precisam se convencer de que algo necessita ser feito.

    Quando isso ocorre, os decisores e formuladores das polticas pblicas (policy

    makers) voltam sua ateno para essa questo em detrimento de outras. Souza

    (2007) aponta trs mecanismos para chamar a ateno dos policy makers: a

    divulgao de indicadores que expressam a dimenso do problema; a repetio

    continuada do mesmo problema; e o mecanismo de feedback, isto , dados e

    informaes que identificam problemas na poltica atual ou sua baixa efetividade.

    No caso da poltica de segurana pblica, esses trs mecanismos ficaram

    evidentes nas dcadas de 1980 e 1990, quando o aumento expressivo do crime e da

    violncia colocou em cheque o sistema de justia criminal brasileiro, composto pelo

    sistema de segurana pblica, pelo poder judicirio e pelo sistema penitencirio. As

    polticas tradicionais de segurana, repressivas e reativas, que consistem em geral

    no aumento do nmero de prises, ampliao do efetivo policial e aquisio de

    equipamentos (veculos e armamentos), expuseram no apenas as deficincias do

    modelo de segurana pblica, analisadas no captulo 2, como tambm mostraram

    sua insuficincia para conter a curva ascendente das estatsticas criminais.

    As taxas de mortes violentas no Brasil apareceram entre as mais altas do

    mundo. Em 1980, a taxa era de 11,7 homicdios por 100 mil habitantes, subindo para

    27,8 no ano 2000, o que indica aumento de 244% em 20 anos. Entre os anos de

    1980 e 2001, houve 646.158 homicdios dolosos no pas, correspondendo a mais de

    30.000 assassinatos por ano (LEMGRUBER, 2004).

  • 28

    Grfico da evoluo da incidncia de homicdios

    Brasil: 1980 a 2003

    13,7

    14,6 14,6

    16,9

    18,7 18,619,4

    20,220,9

    24,624,2

    23,7

    22,4

    23,224,0

    25,7

    27,027,4

    29,0 28,8 29,129,6

    30,5 30,2

    0,0

    5,0

    10,0

    15,0

    20,0

    25,0

    30,0

    35,0

    1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003

    Taxas p

    or

    100 m

    il h

    ab

    .

    Fonte: SIM / Ministrio da Sade

    No ano 2000, segundo dados do Centro Internacional de Preveno ao Crime

    da Organizao das Naes Unidas, o Brasil ocupava a posio de quinto pas mais

    violento do mundo, ficando atrs apenas da Venezuela, Jamaica, frica do Sul e

    Colmbia. A violncia policial tambm atingiu nveis alarmantes. No estado de So

    Paulo, por exemplo, de 1990 a 2000, a polcia militar matou 7.087 pessoas, segundo

    dados da Ouvidoria da Polcia do Estado (2000). O crime se organizou. A

    impunidade se mostrou presente tanto na incapacidade do Estado de punir o

    responsvel pelo crime comum e de conter o crime organizado como na

    incapacidade de punir seus prprios agentes.

    A anlise das estatsticas criminais, nas dcadas de 1980 e 1990, denota um

    crescimento vertiginoso no apenas dos crimes dolosos contra a vida, mas de todas

    as modalidades de crime. Adorno (2002) aponta quatro tendncias do crescimento

    do crime e da violncia, nos vinte anos que se seguiram ao fim do regime militar: 1)

    aumento da violncia urbana, especialmente dos crimes dolosos contra a vida

    (homicdios) e dos crimes contra o patrimnio; 2) surgimento do crime organizado,

  • 29

    relacionado ao trfico de drogas internacional; 3) violaes graves de direitos

    humanos; 4) aumento dos conflitos intersubjetivos (conflitos de vizinhana). As

    causas do aludido crescimento, segundo o autor, giram em torno de trs tipos de

    explicaes: mudanas na sociedade e nos padres convencionais de delinquncia

    e violncia; crise do sistema de justia criminal, compreendendo agncias policiais,

    Ministrio Pblico, tribunais de justia e sistema penitencirio; e desigualdade social

    e segregao urbana.

    O sistema de justia criminal seletivo, punindo preferencialmente

    marginalizados e pobres (ADORNO, 1994, 2002; WACQUANT, 2001), e a eles que

    se dirige, preferencialmente a violncia policial e a violncia comum, especialmente

    nos casos dos crimes dolosos contra a vida (MIRAGLIA, 2006; WAISELFIZ, 2006)24.

    O carter profundamente discriminatrio do sistema de justia criminal tambm

    revelado em pesquisa realizada pela Ouvidoria da Polcia do Estado de So Paulo

    (2000) que, analisando inquritos policiais versando sobre homicdios cometidos por

    policiais no estado de So Paulo, no ano de 1999, apontou que a maior part