política de segurança pública no brasil
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Analisa as mudanças implementadas na agenda de segurança pública no Brasil.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA
PPOOLLTTIICCAA DDEE SSEEGGUURRAANNAA PPBBLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL
NNAA PPSS--TTRRAANNSSIIOO DDEEMMOOCCRRTTIICCAA::
DDEESSLLOOCCAAMMEENNTTOOSS EEMM UUMM MMOODDEELLOO RREESSIISSTTEENNTTEE
Ligia Maria Daher Gonalves
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, do Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Letras, Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica.
(Verso revisada)
Orientador: Prof. Dr. Adrian Gurza Lavalle
So Paulo
2009
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA
PPOOLLTTIICCAA DDEE SSEEGGUURRAANNAA PPBBLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL
NNAA PPSS--TTRRAANNSSIIOO DDEEMMOOCCRRTTIICCAA::
DDEESSLLOOCCAAMMEENNTTOOSS EEMM UUMM MMOODDEELLOO RREESSIISSTTEENNTTEE
Ligia Maria Daher Gonalves
So Paulo
2009
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Para meu filho Ricardo,
por tornar tudo pleno de sentido.
Para meus pais,
Janette (in memorian) e Luiz.
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Agradecimentos
Um dos momentos mais preciosos ao se concluir um processo que exigiu
grande esforo aquele em que temos a possibilidade de manifestar nossa gratido
pela vida e pelas pessoas. Esta pesquisa de mestrado, que se desenvolveu com
muito desejo, em meio a outras demandas da vida, me d agora a oportunidade de
expressar meu enorme agradecimento e reconhecimento:
Ao Rico, meu filho, fonte maior de inspirao, por ser a pessoa bacana, atenta
e sensvel que . Obrigada pela pacincia, pela torcida, pelas palavras simples e
sensatas e pelos sorrisos marotos que me animaram e me fortaleceram tantas
vezes. Obrigada pela alegria de cada momento que dividimos.
Ao meu pai, Luiz, pelo exemplo de fora de vontade, por seu apoio constante,
pelos conselhos nos momentos em que eu precisava ouvi-los e pelo rigor com que
sempre tratou as palavras, fazendo-me mais atenta a elas.
minha me, Janette, sempre to presente no meu corao e nos meus
pensamentos, por seus ensinamentos e por todos os seus gestos amorosos e
encorajadores, que continuam me estimulando a seguir em frente.
Andra Rodrigues Pinto, por partilhar comigo h quase 40 anos todos os
momentos importantes da minha vida. Por acreditar em mim e no meu trabalho e
pelas infinitas vezes em que me ouviu com amor e pacincia, sem nunca me deixar
entregar os pontos. Minha gratido pelos laos fraternos que nos unem.
minha irm Lilian, pelos bons momentos compartilhados juntamente com
Araken, Gui, Xan e Gabi e pelo prazer do convvio cotidiano com os meninos nos
ltimos anos.
Cristina Kfouri, Eduardo, Fabinho e Laurinha, pela disponibilidade e pelo
carinho que, indiferente a mudanas de rumo, permaneceu entre ns.
Aos amigos de todas as horas: Maruzania Soares, Izabela Tamaso, Ceclia
Baro Alegretti, Tercio Redondo, Claudia Boto, Ana Claudia Paulo e Ana Lucia
Pastore, pelo forte sentimento de bem-querer que nos une h tantos anos.
Izabela, agradeo, ainda, por ter me estimulado a iniciar este percurso,
pelos incentivos que se seguiram e por ter, com sua maior experincia acadmica,
lanado luzes em momentos de impasse.
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Agradeo tambm Ceclia pela verso do resumo para o ingls e ao Tercio
pela reviso final da dissertao. A ambos, meu reconhecimento pelo trabalho
cuidadoso que fizeram em meio a tantos outros afazeres.
Aos amigos Juliana Delfino, Renata rtico, Ftima Dagostino e Pedro
Aguerre, pela ajuda, de diferentes maneiras, em etapas distintas deste processo.
Aos meus companheiros de consultoria no PNUD/Ministrio da Justia, pela
agradvel convivncia durante o ano de 2008.
Ao Prof. Vicente Trevas, por ter estimulado minha reflexo em vrias
oportunidades e por ter chamado minha ateno para importantes aspectos
federativos que envolvem a poltica de segurana pblica e que foram determinantes
para a reconstruo de meu objeto de pesquisa.
Profa. Marta Arretche e ao Prof. Rogrio Arantes pelas observaes feitas
no meu exame de qualificao, contribuindo para a correo de rumos e para que eu
pudesse delinear melhor meu objeto.
A pesquisa em nada avanaria sem as pessoas e instituies que se
dispuseram a colaborar. Agradeo enormemente a todos aqueles que
disponibilizaram textos e informaes, que me concederam entrevistas e que
responderam ao questionrio.
Muitos foram os aprendizados nessa longa e inacabada jornada de direitos
humanos e de segurana pblica. Agradeo a todos os profissionais que conheci e
aos amigos que fiz nesta trajetria.
Aos funcionrios do Departamento de Cincia Poltica, em especial Vivian,
sempre disposta a orientar sobre os trmites burocrticos do mestrado.
Ao meu orientador, Adrian Gurza Lavalle, agradeo por ter aceitado me
orientar j no curso do processo e pelo olhar rigoroso e exigente, to desesperador
quanto estimulante, que me fez repensar e reescrever muitas vezes.
Por fim, um agradecimento especial a Benedito Domingos Mariano, pelo
inestimvel apoio. Por ter possibilitado que eu conciliasse atividades acadmicas e
profissionais no incio deste percurso, pelas observaes feitas quando da leitura da
ltima verso deste trabalho e por ter facilitado meu acesso aos membros da
Coordenao Nacional da 1. CONSEG. Obrigada pela confiana profissional em
mim depositada e pelas discusses sobre o tema ao longo de vrios anos.
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Resumo
A presente dissertao analisa as mudanas implementadas na agenda da
segurana pblica na ps-transio democrtica e os motivos pelos quais o modelo
de segurana pblica no Brasil to resistente a reformas. O cenrio democrtico
testemunhou a entrada de novos atores na comunidade da poltica, e, a partir de
ento, novas e velhas vises acerca do tema passaram a coexistir. Apesar da crise
da segurana pblica, explicitada nas dcadas de 1980-1990, nenhuma das
propostas de reforma estrutural do modelo da poltica obteve xito at o momento, o
que pode ser explicado pela ausncia de uma ampla coalizo em torno de uma
agenda mnima de reformas e pelo padro de dependncia da trajetria da poltica.
As mudanas possveis nesse contexto, embora sejam insuficientes para conformar
um novo modelo de poltica, tm provocado deslocamentos em algumas das
caractersticas histricas do sistema de segurana pblica, promovendo pequenas
alteraes na sua dinmica federativa.
Palavras-chave: poltica de segurana pblica; reforma da poltica de
segurana; neoinstitucionalismo histrico; federalismo; comunidade da poltica.
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Abstract
This dissertation analyzes the changes to the agenda of public security in
Brazil after its democratic transition. It also addresses the reasons why the Brazilian
policy model of public security might be so resistant to reforms. The new democratic
scenario witnessed new actors entering the policy community and brought together
old and new views on the subject. In spite of the crisis in the public security, which
was brought to light in the 1980s and 1990s, none of the proposals for structural
reform of the policy model have hitherto been successful. Such a failure might be
explained by the absence of a broad coalition around a minimum agenda of reforms
and also by the path dependence of the public security policy. The possible changes
in this context, despite being insufficient to forge a new policy model, have led to
shifts in some of the historical features of the system of public security, promoting
small changes in its federative dynamics.
Keywords: public security policy; public security policy reform; historical neo-
institucionalism; federalism; policy community.
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Lista de abreviaturas e siglas
ABC Associao Brasileira de Criminalstica
ADEPOL Associao dos Delegados de Polcia do Brasil
ADPF Associao Nacional dos Delegados de Polcia Federal
AMEBRASIL Associao Nacional dos Oficiais Militares Estaduais
ANASPRA Associao Nacional de Entidades Representativas de Praas Policiais
e Bombeiros
CAF Comit de Articulao Federativa
CF Constituio Federal
CeSEC Centro de Estudos de Segurana e Cidadania
CISMEL Consrcio de Segurana Pblica e Cidadania de Londrina e Regio
Metropolitana
COBRAPOL Confederao Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis
CRISP Centro de Estudos de Criminalidade e Segurana Pblica
CON Coordenao Nacional Executiva da 1. CONSEG
CONASP Conselho Nacional de Segurana Pblica
CNCG Conselho Nacional dos Comandantes Gerais das Polcias Militares e dos
Corpos de Bombeiros Militares
CNGM Conselho Nacional das Guardas Municipais
CONSEG Conferncia Nacional de Segurana Pblica
CONSESP Conselho Nacional dos Secretrios Estaduais de Segurana Pblica
DPF Departamento de Polcia Federal
EAD Ensino distncia
FBSP Frum Brasileiro de Segurana Pblica
FENAPEF Federao Nacional dos Policiais Federais
FENAPRF Federao Nacional dos Policiais Rodovirios Federais
FENDH Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos
FENEME Federao Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais
FHC Fernando Henrique Cardoso
FNS Fora Nacional de Segurana
FNOP Frum Nacional de Ouvidores de Polcia
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FNP Frente Nacional de Prefeitos
FNSP Fundo Nacional de Segurana Pblica
FUNDEB Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de
Valorizao dos Profissionais da Educao
GAJOP Gabinete de Assessoria Jurdica s Organizaes Populares
GCM Guarda Civil Municipal
GGI-E Gabinete de Gesto Integrada Estadual
GGI-M Gabinete de Gesto Integrada Municipal
GOE Grupo de Operaes Especiais
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IGPM Inspetoria Geral das Polcias Militares
ILANUD Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para Preveno do Delito e
Tratamento do Delinquente
INFOCRIM Sistema de Informaes Criminais do Estado de So Paulo
INFOSEG Rede Nacional de Informaes de Segurana Pblica, Justia e
Fiscalizao
IP Inqurito policial
IPM Inqurito Policial Militar
IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
ISPCV - Instituto So Paulo Contra a Violncia
MJ Ministrio da Justia
MP Ministrio Pblico
NEV Ncleo de Estudos da Violncia
OEI Organizao dos Estados Ibero-americanos
ONU Organizao das Naes Unidas
PC Polcia Civil
PCC Primeiro Comando da Capital
PEC Projeto de Emenda Constitucional
PF Polcia Federal
PIAPS Plano de Integrao e Acompanhamento dos Programas Sociais de
Preveno da Violncia
PM Polcia Militar
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x
PNAGE Programa Nacional de Apoio Modernizao da Gesto e do
Planejamento dos Estados e do Distrito Federal
PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos
PNSP Plano Nacional de Segurana Pblica
PRONASCI Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania
PROVITA Programa Estadual de Proteo a Testemunha
RENAESP Rede Nacional de Altos Estudos em Segurana Pblica
SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos
SENASP Secretaria Nacional de Segurana Pblica
SEPLANSEG Secretaria de Planejamento de Aes Nacionais de Segurana
Pblica
SIMAP Sistema de Monitoramento, Avaliao e Desenvolvimento Institucional do
Pronasci
SINARM Sistema Nacional de Armas
SINDAPEF Sindicato dos Agentes Penitencirios Federais
SINESPJC Sistema Nacional de Estatsticas de Segurana Pblica e Justia
Criminal
SUS Sistema nico de Sade
SUSP Sistema nico de Segurana Pblica
SSP Secretaria de Segurana Pblica
TCO Termos Circunstanciados de Ocorrncia
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Sumrio
Introduo .......................................................................................................... 1
Captulo 1 Federalismo, polticas pblicas e a perspectiva da anlise
institucional ....................................................................................................... 5
1.1 Federalismo e polticas pblicas ................................................................... 5
1.2 Perspectiva institucional: considerando instituies, processos e atores ...... 11
Captulo 2 Poltica de segurana pblica brasileira: caractersticas e
panorama histrico ........................................................................................... 13
2.1 Caracterizao histrica do modelo de segurana pblica brasileiro ............ 15
2.2 Segurana pblica no processo constituinte e o desenho da poltica de
segurana pblica na Carta de 1988 ................................................................... 18
2.3 Arranjo institucional do sistema de segurana pblica e alguns problemas dele
decorrentes ......................................................................................................... 23
Captulo 3 Crise da segurana pblica: rupturas e esgotamento do
modelo ................................................................................................................ 27
Captulo 4 Comunidade da poltica de segurana pblica: atores e
preferncias ....................................................................................................... 32
4.1 Diferentes paradigmas da segurana pblica ............................................... 32
4.2 Comunidade da poltica: novos e velhos atores ............................................ 35
4.3 Pesquisando preferncias e propostas reformistas ....................................... 42
4.4 Preferncias reformistas luz da literatura e de fontes documentais ........... 65
4.5 Resistncia do atual modelo de segurana pblica, face s propostas de
reformas estruturais ............................................................................................ 69
Captulo 5 Mudanas possveis: pequenos deslocamentos nas
caractersticas da poltica ................................................................................. 75
5.1 Experincia inovadora dos municpios .......................................................... 76
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5.1.1 Contextualizando as estratgias locais de preveno do crime ................. 76
5.1.2 Novos atores, novas agendas: os municpios e a preveno no Brasil ...... 79
5.2 Governo FHC: marco inaugural da incluso da poltica de segurana pblica na
agenda federal .................................................................................................... 86
5.2.1 Agenda, contexto e a criao da Secretaria Nacional de Segurana
Pblica ................................................................................................. 86
5.2.2 Plano Nacional de Segurana Pblica PNSP .......................................... 92
5.2.3. Criao do Fundo Nacional de Segurana Pblica ................................... 94
5.3 Governo Lula: abandono da agenda de reformas radicais e tentativa de articular
uma poltica nacional de segurana pblica ........................................................ 96
5.3.1 Promessas do Plano de Segurana Pblica e recuo na proposio das
reformas radicais ................................................................................................. 98
5.3.2 Sistema nico de Segurana Pblica SUSP ........................................... 100
5.3.3 Fundo Nacional de Segurana Pblica: alterao legislativa e novos critrios
para a distribuio de recursos ........................................................................... 104
5.3.4 Fora Nacional: nova fora policial, sem novos policiais ............................ 109
5.3.5 Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania Pronasci ...... 111
5.3.6 Conferncia Nacional de Segurana Pblica ............................................. 122
Concluso .......................................................................................................... 128
Referncias bibliogrficas ................................................................................ 134
Anexo A Relao dos integrantes da CON .................................................. 150
Anexo B Matriz do questionrio .................................................................... 153
Anexo C Sistematizao das respostas ao questionrio ........................... 155
Anexo D Quadro dos municpios que aderiram ao Pronasci ..................... 174
Anexo E Princpios e Diretrizes da 1a CONSEG .......................................... 176
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Introduo
A presente dissertao tem por objeto de estudo a poltica de segurana
pblica no Brasil na ps-transio democrtica, em trs momentos: o processo
constituinte de 1987-1988, o Governo FHC, o Governo Lula. Seu objetivo consiste
em analisar, considerando instituies e atores relevantes, as continuidades no
padro da poltica de segurana pblica, bem como as mudanas que foram
possveis nesse campo.
A democratizao e o processo constituinte de 1987-1988 possibilitaram
reformas no desenho de vrias polticas pblicas no Brasil e propiciaram maior
participao da sociedade civil. Essas reformas, no entanto, no atingiram a poltica
de segurana pblica, que manteve no novo texto constitucional suas principais
caractersticas histricas. Decorridos mais de 30 anos do incio do processo de
transio democrtica, o sistema de justia criminal foi o setor que menos
progressos fez em relao modernizao e democratizao de suas instituies,
em especial das instituies policiais (RAMOS, 2007). Desde ento, as mudanas na
rea da segurana pblica tm sido vagarosas, localizadas e incrementais, no
conformando um quadro de reformas estruturais da poltica. Nas dcadas de 1980 e
1990, as estatsticas criminais elevaram-se expressivamente e a discusso sobre
segurana pblica caiu no domnio pblico, alvo da mdia e da crtica de novos
atores sociais e polticos que comearam a pautar o tema em suas agendas.
Analiso, nos perodos estudados, como se estruturou a formao da agenda da
segurana pblica brasileira, bem como quais foram os deslocamentos ocorridos no
desenho tradicional da poltica.
Inicio pela descrio das caractersticas do sistema de segurana pblica1
que se mostram persistentes ao longo da histria, descrio que auxiliar a balizar
mudanas na poltica. Em seguida, analiso o tratamento dado poltica de
segurana pblica no processo constituinte que resultou na Constituio Federal de
1988 e de que forma as instituies condicionaram as estratgias e as preferncias
1 O sistema de justia criminal composto pelo sistema de segurana pblica, pelo poder judicirio e
pelo sistema penitencirio. Embora, as instituies de segurana pblica devam ser consideradas de maneira articulada com os outros dois campos de instituies do sistema de justia criminal, para o exame da evoluo e do enfrentamento do crime e da violncia, o foco do presente estudo so as instituies e as polticas de segurana pblica, estritamente.
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dos atores. Abordo os motivos pelos quais a poltica de segurana pblica continuou,
no que diz respeito estrutura das instituies policiais, basicamente com o mesmo
desenho da Constituio autoritria de 1967-1969.
Analiso alguns conflitos decorrentes do arranjo institucional do modelo
tradicional da poltica e como o aumento crescente dos ndices de violncia no
Brasil, no perodo ps-transio democrtica, exps o esgotamento desse modelo.
Num contexto de criminalidade crescente, cada vez mais os governos federal e
municipais foram sendo chamados a oferecer respostas. Criaram-se centros de
pesquisa para estudar o assunto e formular propostas e a sociedade civil comeou a
se reorganizar em torno do tema. Novos atores ampliaram a comunidade da poltica,
que comeou a pautar diferentes solues e a defender diferentes paradigmas para
a segurana pblica brasileira. Parte dos atores da comunidade da poltica de
segurana pblica demanda o reforo do poder do aparato repressivo do Estado,
com o incremento dos recursos materiais e humanos, e com modernizao
gerencial; alguns atores enfatizam a importncia de polticas pblicas preventivas
para um adequado provimento de segurana; outros propem reformas radicais para
a poltica, especialmente para as instituies policiais, embora tambm no haja
consenso, entre os atores com preferncias reformistas radicais, sobre o novo
modelo desejado.
Analiso os motivos pelos quais nenhuma das proposituras de reformas
radicais, que implicariam uma ruptura com o modelo tradicional, foi exitosa at o
momento. Um dos fatores que ajudam a explicar a resilincia do modelo da poltica
de segurana pblica a reformas radicais refere-se ao padro de dependncia da
trajetria da poltica (path dependence), isto , aos altos custos de reverso do
modelo decorrentes de escolhas institucionais passadas. Alm disso, a
multiplicidade de atores com diferentes e polarizadas posies dificulta a construo
de uma coalizo ampla capaz de dar sustentao a um processo substancial de
reformas.
Constatada a resistncia do modelo tradicional da poltica de segurana
pblica a reformas estruturais, investigo quais so e a que se devem as inovaes
na poltica identificando conjunturas crticas e janelas de oportunidade que
ensejaram mudanas, ainda que apenas incrementais, no setor. Nesse sentido,
analiso a entrada do municpio como novo ator relevante na poltica de segurana
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pblica e como inovaes implementadas por alguns municpios brasileiros
influenciaram a agenda do governo federal quando da formulao de novos
programas. Abordo o tratamento da poltica de segurana no Governo FHC, ora
valendo-se de conjunturas crticas para implementar sua agenda ora reformulando
suas estratgias para fazer frente a essas conjunturas.
Pesquisando o Governo Lula, analiso a agenda programtica inicial de
reformas radicais da poltica e os motivos pelos quais tal agenda logo foi
abandonada. Analiso as mudanas incrementais implementadas, abordando aes
e programas que procuram induzir maior participao e cooperao
intergovernamental em torno da poltica de segurana pblica.
A pesquisa mostra que ocorreu uma reconfigurao do campo, com o
ingresso de novos atores na comunidade da poltica. Para alm de muitas
contradies, polarizaes e interesses manifestamente corporativos, essa
comunidade comea a apresentar algumas confluncias no que diz respeito, por
exemplo, importncia da participao social e do papel preventivo dos municpios
na poltica de segurana pblica e de forma menos ampla, mas no por isso
menos significativa desvinculao das polcias militares do Exrcito. As
mudanas no campo e as reformas incrementais promoveram pequenas alteraes
em algumas caractersticas tradicionais da poltica e pequenos deslocamentos na
dinmica federativa na matria, embora os principais aspectos da poltica, como sua
centralizao nas instituies policiais estaduais e o modelo dessas instituies,
sigam inalterados.
Ao analisar a poltica de segurana pblica luz do federalismo, explicito
alguns efeitos institucionais decorrentes de seus arranjos. Pierson (1995),
ressaltando que o federalismo no apenas um modelo de implicaes isoladas,
relaciona trs desses efeitos, claramente identificveis com a natureza dos
deslocamentos que esto sendo produzidos na poltica de segurana pblica: 1)
mudanas nas preferncias polticas, estratgias e influncia dos atores sociais; 2) a
emergncia de novos atores significativos; 3) dilemas predizveis conectados
diviso da autoridade decisria entre mltiplas jurisdies.
A pesquisa se desenvolveu por meio da anlise da bibliografia disponvel
sobre o tema e de documentos institucionais. Realizei algumas entrevistas com
gestores do Ministrio da Justia para recolher informaes e dados sobre os
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programas implementados. Procurando compor um diagnstico atualizado do campo
e a fim de evitar atribuir aos atores da comunidade da poltica as mesmas
preferncias com as quais eles so usualmente identificados, apliquei um
questionrio a representantes de entidades nacionais que congregam trabalhadores
e gestores da segurana pblica e de entidades da sociedade civil atuantes no setor.
Para ter acesso a atores to representativos da comunidade da poltica, aproveitei a
ocasio da primeira Conferncia Nacional de Segurana Pblica - CONSEG, cujos
resultados, tambm estudados neste trabalho, acabaram por ratificar algumas
percepes analticas.
Procurei, na medida do possvel, controlar meus juzos normativos e
empreender, a partir do campo emprico, um estudo terico-analtico de meu objeto,
utilizando conceitos da teoria institucional, em especial do neoinstitucionalismo
histrico, e da teoria sobre federalismo.
Tanto a academia como especialistas tm produzido trabalhos importantes e
ricos do ponto de vista da compreenso da poltica de segurana pblica, mas, ao
final desta dissertao, espero ter contribudo para o debate com algumas
constataes empricas e com um enquadramento especfico no plano da anlise
terico-conceitual.
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Captulo 1 Federalismo, polticas pblicas e a perspectiva da anlise
institucional
Este captulo tem por objetivo contextualizar as duas principais referncias
analticas utilizadas nesta dissertao: de um lado, o federalismo e suas implicaes
sobre as polticas pblicas e, de outro, no campo da anlise institucional, aspectos
conceituais do neoinstitucionalismo histrico.
1.1 Federalismo e polticas pblicas
O estudo das polticas pblicas demanda a compreenso no apenas das
preferncias sobre quem deve obter o qu, mas tambm sobre as estratgias para a
efetivao dessas preferncias, o nvel de governo que deve se encarregar da
formulao e da implementao da poltica, a definio de quem tem autonomia
decisria, quem arca com os custos, quais as fontes de recursos e como se d a
coordenao e a cooperao entre os entes federados na implementao dessas
polticas. Esta seo tem por objetivo apresentar, de forma geral, as principais
tendncias do federalismo brasileiro consagradas a partir da Constituio Federal de
1988 a fim de se compreender, em seguida, tanto as especificidades da poltica de
segurana pblica nesse contexto, como as posteriores alteraes em sua dinmica
federativa e os constrangimentos e incentivos que a conformam.
Nos anos 1980, a agenda da redemocratizao orientava-se pela bandeira da
descentralizao. Negativamente marcados pelo longo perodo de centralizao
autoritria do regime militar institudo em 1964, os constituintes e a sociedade
associavam descentralizao democratizao2 (MELO, 2005). Contudo, apesar do
grande consenso existente entre atores polticos e sociais em torno dessa ideia-
2 Utilizando um conceito analtico do neoinstitucionalismo histrico, pode-se dizer que a inspirao
descentralizadora que marcou as preferncias dos constituintes em relao a vrias polticas sociais expressa um mecanismo de police feedback negativo, referido associao entre a alta centralizao das polticas pblicas e o perodo autoritrio militar. Segundo esse referencial terico, denomina-se de police feedback o efeito que as polticas anteriores tm sobre a formao das preferncias no momento presente (PIERSON, 2004).
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fora, o andamento da descentralizao no se deu de forma linear, mas de forma
altamente complexa e marcada por tendncias contraditrias (ALMEIDA, 2005).
Apesar do desenho constitucional brasileiro, no que tange distribuio de
competncias, denotar um federalismo de carter cooperativo, vrios autores
(ABRUCIO, 2005; SOUZA, 2005) chamam a ateno para seu carter, na prtica,
bastante competitivo, seja em razo da desigualdade tcnica, de recursos e de
gesto entre as unidades subnacionais, seja pela inexistncia de dispositivos
institucionais que estimulem e regulem a cooperao. Tanto a persistncia das
desigualdades regionais como a insuficincia de dispositivos de cooperao
intergovernamental capazes de aumentar a eficcia e a eficincia das polticas
pblicas continuam sendo, para esses autores, grandes desafios do federalismo
brasileiro.
De fato, a persistncia de desigualdades fica explicitada, por exemplo,
quando se analisam os municpios. Estes foram, de maneira indita na histria
federativa brasileira, elevados condio de entes federados autnomos pela
Constituio Federal de 1988. Se, por um lado, essa inovao deu ensejo
emergncia de novos atores com capacidade de incidir na formulao e na gesto
de polticas pblicas, por outro, a efetivao prtica da autonomia municipal ainda
bastante desigual em todo o pas. As desigualdades de condies administrativas e
econmicas entre os municpios so significativas. Segundo dados do IBGE,
apresentados na tabela abaixo, dos 5.564 municpios brasileiros existentes em 2006,
4.986 deles (quase 90%) tinham at 50.000 habitantes e eram, em sua maioria,
fortemente dependentes de transferncias governamentais. Em 2003, por exemplo,
enquanto a Unio foi responsvel por 67,9% de toda a arrecadao de tributos e os
estados por 27%, os municpios foram responsveis por apenas 5,1%. No mesmo
perodo, os municpios, com as transferncias governamentais, passaram a
responder por cerca de 19% da receita nacional disponvel (IBGE, 2007).
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Classes de tamanho da
populao dos
municpios brasileiros
Nmero de
municpios
At 5.000 1.371
De 5.001 a 10.000 1.290
De 10.001 a 20.000 1.292
De 20.001 a 50.000 1.033
De 50.001 a 100.000 311
De 100.001 a 500.000 231
Mais de 500.000 36
Total 5.564
Fonte: IBGE, Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais, 2007.
De maneira geral, o arranjo federativo desenhado pela Constituio Federal
de 1988 beneficiou estados e municpios, com maior descentralizao de recursos.
Nos anos posteriores promulgao da Constituio, no entanto, o federalismo
fiscal foi sofrendo ajustes no apenas para compensar desigualdades horizontais na
capacidade de arrecadao, como tambm em razo da presso por austeridade
fiscal exigida pelo contexto macroeconmico e pela necessidade de estabilizao
monetria.
Segundo Arretche (2004), ao instituir um sistema legal de repartio de
receitas, a Constituio de 1988 limitou a capacidade do governo federal de
coordenao de polticas, por restringir sua capacidade de gasto. No obstante, a
despeito das tendncias dispersivas resultantes do arranjo federativo desenhado, o
governo federal dispe de instrumentos para coordenar polticas sociais, de recursos
institucionais para induzir as decises e o comprometimento dos governos
subnacionais, o que essencial para que se possa viabilizar e garantir nveis
bsicos de produo de servios sociais. Nesse sentido, para Arretche (prelo),
foroso reconhecer a enorme interdependncia entre os nveis de governo na
proviso de polticas pblicas3. No se trata, sob essa perspectiva, de opor
3 Essa grande imbricao entre os nveis de governo tem forte impacto sobre as margens de
autoridade dos entes federados. Assim, a descentralizao de competncias no pode ser tida, como quer grande parte da literatura, como equivalente autonomia decisria dos governos locais para
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centralizao e descentralizao, cooperao e competio e interdependncia e
autonomia. Como preceitua Pierson (1995, p. 458), The interplay between national
and constituent unit officials entails a much more complex mixture of competition,
cooperation, and accommodation. O que se busca a obteno de um jogo de
soma positiva, por meio da instituio de dispositivos efetivos de cooperao entre
os trs nveis de governo.
Segundo Arretche (2004), para cada poltica pblica especfica, o modo como
esto estruturadas as relaes federativas afeta diretamente a capacidade de
coordenar aes entre as esferas de governo. Na poltica de sade, por exemplo,
cabe ao governo federal financiar e formular a poltica nacional, coordenando as
aes intergovernamentais e induzindo as escolhas dos governos locais. Estados e
municpios participam do processo de formulao da poltica de sade por meio de
conselhos institucionalizados. J na poltica de educao fundamental, estados e
municpios atuam de modo independente, com competncias concorrentes. O
governo federal no o principal financiador da poltica e o Fundo de Manuteno e
Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da
Educao (FUNDEB) foi institudo visando reduo das assimetrias das unidades
subnacionais e promoo de uma poltica de valorizao dos profissionais da
educao. O impacto do federalismo em cada poltica pblica, portanto, deve ser
analisado luz do desenho das instituies polticas e dos recursos de poder dos
diversos atores relevantes.
Historicamente, o sistema de segurana pblica brasileiro sempre esteve
fortemente identificado com as instituies policiais, responsveis pelo controle da lei
e da ordem. Desde a Repblica, a segurana pblica alterna perodos de
descentralizao federativa com forte centralidade nos estados, nos perodos
democrticos (1889-1930, 1946-1964 e a partir de 1984) com perodos de alta
centralizao federativa, marcados pela tutela federal das polcias estaduais, nos
perodos autoritrios (1937-1945 e 1964-1985). O padro de controle das instituies
policiais, portanto, oscila entre a tutela federal e sua centralizao nos estados.
definir o modo como sero implementadas as polticas sob sua competncia (ARRETCHE, prelo). Para a autora, a descentralizao no implica necessariamente, como pensava grande parte dos constituintes de 1988 e dos atores sociais que incidiram no processo, em democratizao do nvel local, podendo at mesmo aumentar as desigualdades, a depender dos arranjos institucionais que estruturam as relaes intergovernamentais (ARRETCHE, prelo).
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9
A Constituio Federal de 1988, no que se refere poltica de segurana
pblica, manteve a histrica centralizao da poltica nas instituies policiais dos
estados4 (ainda que estas tenham ficado, nos perodos autoritrios da repblica,
como mencionado anteriormente, sob tutela dos governos centrais). H at pouco
tempo, no se pensava na articulao de uma poltica nacional de segurana
pblica, nem tinha o governo federal a preocupao de atuar de forma a promover
cooperao intergovernamental ou de, por meio de incentivos, induzir as unidades
subnacionais a adotarem determinada poltica. Aos municpios tambm no cabia
qualquer outro papel, que no o de vigiar seus prprios, bens e instalaes e o de
arcar com alguns dos custos das polcias estaduais atuantes no seu territrio, como
o pagamento de aluguis, reformas, fornecimento de combustvel e cesso de
prprios5.
Anos aps a promulgao da Constituio Federal, a Unio e alguns
municpios passaram a pautar o tema da segurana pblica em suas agendas e a
chamar para si atribuies no positivadas no sistema de segurana pblica
constitucional. A Unio e os municpios tm surgido, como se ver adiante, como
atores relevantes nessa poltica, alterando, ainda que de maneira incipiente, a
dinmica federativa na matria. Nesse contexto, a construo de uma poltica
nacional de segurana pblica precisa ser amplamente negociada e legitimada a fim
de que se criem condies efetivas para o trabalho coordenado e cooperativo,
visando a maior eficcia e efetividade da poltica.
4 Sobre o poder dos governos estaduais decorrente do desenho constitucional de 1988, enquanto
Souza (2005) chama a ateno para o problema de sua limitada capacidade de iniciativa, em razo da reduo relativa de suas receitas e da relao direta que passou a existir entre governo federal e municpios por conta da descentralizao de polticas pblicas, Abrucio (2005) ressalta o estabelecimento, nas dcadas de 1980 e 1990, de um federalismo no-cooperativo nas relaes intergovernamentais, com forte predomnio do componente estadualista. Para esse autor, os governadores, nas dcadas mencionadas, tiveram seu poder fortalecido e formaram coalizes pontuais e defensivas, visando manuteno do status quo. Reconhecendo as diferenas no modo como se estruturam as relaes federativas em cada poltica pblica, no que diz respeito poltica de segurana pblica especificamente, a leitura de Abrucio sobre o predomnio do componente estadualista se mostra mais pertinente. 5 Em geral, essa contribuio dos municpios para as polcias estaduais se d h dcadas, por fora
da tradio. No h qualquer normativa ou instrumento de cooperao firmado entre estados e municpios regulando esse pagamento. Alm disso, a contribuio no confere ao municpio prerrogativa alguma para discutir o trabalho policial. Em municpios da regio metropolitana de So Paulo, como So Bernardo do Campo, So Caetano do Sul e Osasco, por exemplo, a realidade que no h sequer uma rubrica no oramento municipal reservada a esse pagamento, que retirado da rubrica despesas gerais do municpio. Seria necessria uma pesquisa mais ampla, junto a uma amostra significativa de municpios, para aprofundar o tema.
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No que diz respeito segurana pblica, o arranjo federativo desenhado pela
Constituio de 1988 potencializa a tendncia dos estados de defenderem a
manuteno do status quo, ao mesmo tempo em que tende a diminuir a capacidade
de incidncia de outros atores polticos. Por essa razo, a tentativa de se construir
uma poltica nacional de segurana pblica, com coordenao e cooperao
intergovernamental, envolvendo os trs nveis de governo, no tarefa fcil e
pressupe um amplo processo de negociaes e repactuaes.
Diferentemente do que ocorre na poltica de sade, por exemplo, em que h
um modelo constitucional unificado, integrado e hierarquizado de gesto de
competncias comuns (o Sistema nico de Sade SUS), que favorece a
coordenao governamental pelo governo federal, na poltica de segurana pblica a
centralidade constitucionalmente atribuda aos estados para a manuteno da lei e
da ordem, dentro do clssico paradigma repressivo-punitivo de enfrentamento da
violncia, tem colocado entraves eficincia da gesto no setor, gerando muitas
vezes conflitos de titularidade e dificuldades para uma efetiva coordenao da
poltica (KINZO et al., 2004).
Pesquisa realizada entre os anos de 2003 e 2004 pelo Programa Nacional de
Apoio Modernizao da Gesto e do Planejamento dos Estados e do Distrito
Federal (PNAGE) revelou que a pior avaliao em termos de articulao
intergovernamental foi a da poltica de segurana pblica, em razo de faltar-lhe
diretriz federativa clara, dado que no h definio do papel dos entes e da maneira
como se deve dar o entrelaamento entre os trs mbitos (ABRUCIO; GAETANI,
2006).
Segundo Abrucio (2005, p. 41), para que se possa ter melhor desempenho
governamental e maiores efetividade e eficcia das polticas pblicas, necessria
uma maior coordenao intergovernamental nos pases federativos, ou seja, novas
formas de integrao, compartilhamento e deciso conjunta. Na rea da segurana
pblica, em que dispositivos de cooperao intergovernamental quase nunca
estiveram presentes (COSTA; GROSSI, 2007; DURANTE, 2008), um arranjo
institucional mais cooperativo demanda uma repactuao federativa, com o
reconhecimento da incluso de novos atores polticos nesse campo.
No perodo ps-transio democrtica, a dinmica federativa, no caso da
poltica de segurana pblica, vem sofrendo pequenos deslocamentos em funo
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daquilo que os governos so efetivamente capazes de fazer a cada conjuntura e
mediante as coalizes que os sustentam. Nesse sentido, torna-se relevante analisar
os tensionamentos federativos na matria e analisar como os governos, em mbito
federal, tm pautado o tema da segurana pblica em suas agendas.
1.2 Perspectiva institucional: considerando instituies, processos e atores
Para o neoinstitucionalismo, o conceito de instituio amplo e compreende
tanto regras e instituies formais como significados e prticas compartilhados ao
longo do tempo, que orientam a ao humana (FREY, 2002). Segundo Hall e Taylor
(2003), os tericos do institucionalismo histrico no consideram as instituies
como o nico fator que influencia a vida poltica, mas as situam numa cadeia causal
da qual fazem parte outros fatores, como o desenvolvimento econmico e a difuso
das ideias.
Instituies importam para se compreender a formulao das polticas
pblicas. Os atores polticos atuam em contextos institucionais, e esses contextos
afetam seus clculos estratgicos bem como suas preferncias. Nas palavras de
Immergut (1996, p. 162), para compreender o impacto das instituies sobre os
conflitos polticos contemporneos, preciso analisar os incentivos, as
oportunidades e as restries que elas oferecem aos atores envolvidos nas disputas
em curso. Para essa autora, nesse sentido, as instituies condicionam estratgias
e preferncias dos atores, embora no permitam predizer suas escolhas finais.
O pressuposto das teorias neoinstitucionalistas que as possibilidades da
escolha estratgica so determinadas de forma decisiva pelas estruturas poltico-
institucionais, inclusive a capacidade dos atores polticos de modificar essas
estruturas de acordo com suas estratgias (NABMACHER, 1991 apud FREY, 2002,
p. 233). As instituies estruturam as interaes e criam incentivos e restries ao
comportamento dos atores, conformando suas preferncias e seus recursos, sempre
assimtricos na comunidade poltica. Para uma mesma poltica e para uma mesma
janela de oportunidade h diversos desenhos possveis de poltica. As preferncias
dos diferentes atores polticos e a formao de coalizes majoritrias, para as quais
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os atores relevantes convergem, so afetadas pelas escolhas polticas anteriores,
assim como os clculos estratgicos dos atores so afetados pelas regras do jogo,
pelo contexto institucional que rege a interao entre eles.
Para o neoinstitucionalismo histrico, o legado histrico influencia a gnese,
as reformas e o fim das polticas pblicas. O padro de dependncia da trajetria
(path dependence), entendido como um alto custo de reverso da poltica
(PIERSON, 2004), ajuda a compreender os limites das mudanas institucionais. As
escolhas futuras, nesse sentido, so condicionadas pelo legado das escolhas
anteriores, pelo alto custo de reverso.
Ao postular que as instituies importam e que importa seu desenvolvimento
histrico, o neoinstitucionalismo histrico apresenta uma chave explicativa para a
compreenso de fatores que contribuem ou que criam obstculos implementao
de reformas institucionais. Importa para o estudo da poltica de segurana pblica
compreender os motivos pelos quais esta parece ser to resiliente a mudanas e
quais fatores tm possibilitado pequenos deslocamentos em algumas de suas
caractersticas. Importa compreender quais so os atores relevantes na comunidade
da poltica, quais so suas preferncias e como as instituies regem suas
interaes e conformam suas estratgias.
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Captulo 2 Poltica de segurana pblica brasileira: caractersticas e
panorama histrico
Pode-se afirmar, sinteticamente, que a poltica de segurana pblica
brasileira, logo aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, apresenta as
seguintes caractersticas, que sero melhor detalhadas ao longo do presente estudo:
1. nfase no modelo repressivo-punitivo a segurana pblica realizada
pelas instituies estatais responsveis pela manuteno da lei e da ordem, com
nfase na represso e na punio. As polcias tendem a agir reativamente,
objetivando mais o combate ao criminoso e o encarceramento do que a preveno
da violncia e da criminalidade.
2. Centralidade da poltica nas instituies policiais estaduais o desenho da
Constituio Federal de 1988 confere s instituies policiais estaduais e federais a
execuo da poltica de segurana pblica. As instituies policiais estaduais
mantm a centralidade do sistema porque so responsveis pelo enfrentamento de
maior nmero de tipos penais, que so tambm os mais frequentes. A Polcia
Federal responde apenas pelos crimes de competncia federal. A concepo
hegemnica vigente em nossa histria republicana, de que os Estados so
responsveis pela implementao das aes de segurana pblica, fez com que
90% do efetivo policial do pas pertena aos governos estaduais, que tambm
gerenciam 83% dos recursos gastos na rea (DURANTE, 2008).
3. Fragmentao das instituies policiais e padro dual de policiamento6
existncia de duas polcias estaduais que no realizam o ciclo completo da atividade
policial, isto , no atuam desde o policiamento ostensivo at a investigao do
delito. polcia militar competem as funes de polcia ostensiva e de preservao
da ordem pblica. A polcia civil polcia judiciria, competindo-lhe a investigao
dos delitos.
6 O padro dual de policiamento difere do que ocorre na maioria dos pases, em que, mesmo
havendo mais de uma polcia, cada uma delas responsvel pelo ciclo completo da atividade policial, isto , cada uma realiza tarefas que vo desde o momento anterior ao crime at sua posterior investigao. o caso, por exemplo, do Canad, onde tanto a Polcia Nacional como a Guarda Nacional desenvolvem, na atividade policial, funes de investigao, preveno e represso, na manuteno da ordem pblica. A diferena que a Polcia Nacional atua nas zonas urbanas e est vinculada ao Ministrio do Interior, enquanto a Guarda Nacional atua nas zonas rurais, tem formao militar e subordina-se ao Ministrio da Defesa (LVY, 2008).
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4. Militarizao do policiamento ostensivo a funo de policiamento
ostensivo, que de natureza civil, exercida por uma polcia militarizada, com
regulamentos disciplinares adequados a instituies militares, com organizao
militar e vinculada ao Exrcito, constituindo-se como reserva e fora auxiliar dessa
instituio.
5. Presena do instituto do inqurito policial instrumento administrativo de
investigao da polcia civil que confere autoridade policial a prerrogativa de
indiciar o suspeito e de produzir provas sem a aplicao do princpio do contraditrio.
6. Ausncia de uma poltica nacional de segurana pblica e carncia de
mecanismos institucionais de coordenao e cooperao intergovernamentais.
7. Ausncia do municpio como cogestor da segurana pblica (ressalvada
apenas a possibilidade de constituio de guardas municipais para a preservao de
bens, servios e instalaes municipais).
8. Inexistncia ou ineficincia de mecanismos de controle externo das
instituies policiais e fragilidade dos mecanismos de controle interno.
9. Comunidade da poltica restrita aos atores vinculados s instituies
responsveis pelo controle da lei e da ordem.
Este captulo tem por objetivo demonstrar como algumas dessas
caractersticas foram engendradas historicamente, como foi o tratamento dado a
essa poltica no curso do processo constituinte de 1987-1988, como ficou
configurado o desenho constitucional de ento, bem como alguns problemas
decorrentes desse arranjo institucional.
A caracterizao da poltica importante para que se possa, no decorrer do
trabalho, analisar se houve algum impacto das polticas posteriores sobre ela. A
reconstituio histrica da poltica de segurana pblica no Brasil permite que se
tenha um panorama da gnese e da evoluo de suas principais instituies.
Conhecer as escolhas institucionais passadas possibilita compreender limitaes a
escolhas futuras, em razo dos altos custos que mudanas radicais no modelo da
poltica podem impor, como ser mais bem explicado na seo 4.5 do captulo 4.
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2.1 Caracterizao histrica do modelo de segurana pblica brasileiro
No incio do perodo colonial, antes da chegada da Famlia Real ao Brasil, em
1808, a segurana nas cidades e vilas era feita de forma privada pelos quadrilheiros
e capites-do-mato, especializados na captura de escravos fugitivos. Valendo-se
desse poder disciplinador privado dos senhores de terras, Portugal instituiu as
chamadas ordenanas, que outorgavam funes de mando a esses chefes
naturais (LEAL, 1997). Com a chegada da Famlia Real, D. Joo VI instituiu o cargo
de Intendente Geral da Polcia da Corte e Estado do Brasil, que tinha por atribuio
zelar pela segurana da Famlia Real e pela segurana coletiva, realizando o
policiamento dos logradouros pblicos, a investigao de crimes e a captura de
criminosos. Competia, tambm, ao Intendente Geral decidir sobre condutas
consideradas ilcitas, determinando prises e solturas, realizando julgamentos e
supervisionando o cumprimento da penas7.
Durante o imprio, na esteira das discusses da poca entre liberais e
conservadores, ocorreu um movimento pendular de centralizao e descentralizao
das funes judicirias e policiais. Com a abdicao de D. Pedro I, em 1831, o
Estado viveu momentos de incertezas e desordens. Movimentos revolucionrios,
insurgentes por todo o pas, motivaram a criao, em 1831, da Guarda Nacional e do
Corpo de Guardas dos Permanentes, no Rio de Janeiro, que substituram os corpos
de milcias e as ordenanas. O mesmo decreto regencial que instituiu a Guarda dos
Permanentes autorizava os presidentes de provncias a institurem suas prprias
guardas, foras policiais de estrutura militarizada8. Segundo Fernandes (1974) apud
Lima (2006),
[...] a caracterstica hbrida da organizao do Corpo de Guardas de Permanentes [...] tinha uma estrutura contraditria que contribua para o estabelecimento de conflitos, de um lado, com a instituio essencialmente
7 Segundo Leal (1977, p. 370), os efeitos dessa mistura de competncias administrativas, policiais e
judicirias se projeta at os dias atuais, como se v do inqurito policial pela polcia e que serve de base ao penal. 8 A gnese das polcias militares remonta a essas foras policiais militarizadas institudas ainda no
Brasil imperial (LIMA, 2006). Outros autores apontam que o embrio mais antigo da polcia militar , na verdade, a Guarda Real de Polcia, criada em 1809, por D. Joo VI, no estado da Guanabara. Essa guarda era subordinada ao governador das Armas da Corte que era o comandante de fora militar, que, por sua vez, era subordinado ao intendente-geral de Polcia (SOUZA, s/d).
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militar, o Exrcito; de outro, com a instituio tradicionalmente policial, a Polcia Civil. (LIMA, 2006, p. 136)
Para Dallari (1991), foi equivocada a forma como, em 1831, autorizaram-se as
provncias a criar sua organizao policial, porque, na prtica, criaram-se pequenos
exrcitos provinciais, equvoco esse que, at os dias atuais, marca a confuso
existente entre autoridade policial e autoridade militar9.
O Cdigo de Processo Criminal, editado em 1832, tinha uma tendncia liberal
descentralizadora. Cada comarca tinha um juiz de direito, investido tambm da
funo de chefe de polcia. A inteno inicial, ao se instituir a descentralizao do
controle da ordem pblica para o poder local, era a de que se conseguisse, a partir
da administrao distrital, combater a desordem pblica e fortalecer as corporaes
policiais. No entanto, as instituies policiais foram sendo instrumentalizadas
politicamente pelas elites rurais controladoras do poder local e ficaram sujeitas aos
caprichos locais, sem que os governos provinciais e central pudessem intervir (LIMA,
2006). Segundo Leal (1977), a lei de 1832 mostrou-se ineficiente para prevenir e
reprimir a criminalidade, e todas as desordens e revolues do perodo regencial
foram atribudas a ela.
Em reao ao arranjo organizativo descentralizador de 1832, vrios rearranjos
foram adotados, culminado na reforma de 1841, marcada pelos ideais
conservadores de manuteno da unidade nacional e de controle da ordem. Pela
primeira vez, o Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, regulamentou a diviso
das funes policiais, dispondo sobre a polcia administrativa e a polcia judiciria.
Vem da uma das principais caractersticas do sistema de segurana pblica
brasileiro presente at os dias atuais: a escolha por um padro dual de gesto na
segurana pblica (LIMA, 2006), caracterizado por duas polcias de ciclo incompleto,
uma responsvel pelas funes investigativas e judicirias e a outra responsvel
pelas funes ostensivas e de preservao da ordem pblica.
A reforma seguinte, em 1871, manteve a estrutura organizativa da lei de 1841,
aceita, ao final, inclusive pelos liberais, em razo de sua maior eficincia
9 Percebe-se, ao longo da histria at os dias atuais, que a funo de policiamento ostensivo sempre
esteve de alguma forma ligada organizao militar. O soldado de polcia era um militar que integrava as foras policiais, subordinadas aos presidentes de estado e, posteriormente, governadores, tendo recebido diferentes denominaes, como Guarda Municipal Permanente, Brigada Militar, Fora Pblica, entre outras. Desde o Segundo Imprio, a polcia ostensiva (hoje denominada Polcia Militar) atuava de forma regular como fora auxiliar do Exrcito, tanto nos conflitos armados externos como nos levantes internos (MUNIZ, 2001).
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administrativa. As autoridades policiais passaram a ficar impedidas de proceder
formao de culpa e de pronunciar os delinquentes, mas continuavam a processar
pequenos delitos. Pelo disposto na Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, instituiu-
se o inqurito policial, existente at hoje, incumbindo-se s autoridades policiais a
realizao das diligncias necessrias ao descobrimento dos crimes e suas
circunstncias (KFOURI FILHO, 1991).
No perodo republicano, o federalismo de 1891 deixou a cargo dos estados a
organizao de seu aparelhamento estatal (LEAL, 1977), tornando a centralidade
das funes policiais nos estados uma marca desse perodo histrico, presente at
os dias atuais10. Na Primeira Repblica, as polcias militares estaduais cresceram
com a implantao do federalismo. Alguns estados, como So Paulo, Minas Gerais e
Rio Grande do Sul, transformaram suas polcias em pequenos exrcitos
(CARVALHO, 2003; DALLARI, 1977) utilizados como instrumentos na disputa pelo
poder poltico11.
Com o final da Primeira Repblica, o Exrcito exigiu que as polcias militares
ficassem sob seu controle. Na longa fase de autoritarismo poltico da Era Vargas, o
sistema policial foi utilizado como instrumento de represso poltica e de prticas
arbitrrias contra os cidados. No perodo entre 1946 e 1964, restabeleceu-se o
controle dos governadores sobre as polcias, mas estas permaneceram, conforme o
desenho constitucional de 194612, como foras auxiliares e reservas do Exrcito, tal
como havia sido previsto inicialmente na Constituio Federal de 193713.
A Constituio Federal de 1946 passou a denominar as foras policiais dos
estados de polcias militares. Mas foi apenas no regime militar, iniciado em 1964,
que a denominao foi padronizada14 e seus comandos entregues a oficiais do
10
As limitaes, ainda hoje existentes, do carter estadual da organizao policial so de duas ordens: o fato de as polcias militarizadas constiturem reservas do Exrcito e as atribuies que competem atualmente denominada Polcia Federal (LEAL, 1977). 11
Vrios autores chamam a ateno para a instrumentalizao das polcias por partidos polticos e pela elite dominante. Medeiros (2004) ressalta que, desde sua gnese, as polcias foram constitudas a servio das elites para exercerem controle social. Leal (1977) chama a ateno para a instrumentalizao da polcia para fins polticos, especialmente eleitorais. 12
O artigo 183, integrante do Ttulo VII Das Foras Armadas, da CF de 1946, dispunha: As polcias militares, institudas para a segurana interna e a manuteno da ordem nos Estados, nos Territrios e no Distrito Federal, so consideradas, como foras auxiliares, reservas do Exrcito. 13
A CF de 1934 j estabelecia que as polcias militares eram foras reservas do Exrcito, mas ainda no as estabelecia como foras auxiliares deste. 14
As excees foram o estado do Rio Grande do Sul, que at hoje denomina sua fora policial militar de Brigada Militar, e o estado de So Paulo, que manteve a denominao de Fora Pblica at 1970.
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Exrcito brasileiro, objetivando um rgido controle sobre as corporaes e a coibio
de eventuais tentativas de levante armado por parte dos estados.
Durante o regime militar iniciado em 1964, as polcias militares foram
colocadas totalmente sob o comando do Exrcito, recebendo intenso treinamento
militar e sendo dotadas de rgos de inteligncia e de represso poltica. As Foras
Armadas e no mais as polcias, como havia ocorrido na ditadura Vargas
passaram a controlar a represso poltica. Foi criada, em 1967, a Inspetoria Geral
das Polcias Militares (IGPM) do Ministrio do Exrcito, com o objetivo de
supervisionar e controlar as polcias militares estaduais, superviso esta que segue
sendo feita at hoje, embora no exista mais a tutela centralizadora do governo
federal sobre as polcias, caracterstica dos perodos autoritrios.
2.2 Segurana pblica no processo constituinte e o desenho da poltica de
segurana pblica na Carta de 1988
A redemocratizao, com sua luta pela restaurao do federalismo e pela
descentralizao, conduziu a um intenso processo de participao poltica e de mais
de um ano de trabalho da Assembleia Nacional Constituinte para a elaborao de
uma nova Constituio, com dispositivos relativos no s a princpios e direitos
(individuais, coletivos e difusos), mas tambm a vrias polticas pblicas, resultando
numa Carta longa e detalhada. No obstante essa grande janela de oportunidades, a
Constituio de 1988, no que diz respeito segurana pblica, manteve parte dos
dispositivos presentes na Constituio de 1967, outorgada no perodo autoritrio
militar, e na Emenda de 1969.
Para que se possa proceder anlise de uma dada poltica pblica, de seu
processo de formulao e implementao, essencial que se compreendam as
regras do jogo e os arranjos polticos e institucionais vigentes, como se procurar
fazer nesta seo. No caso brasileiro, assim como no de outros pases latino-
americanos, o fim do perodo autoritrio militar se deu com a sada das Foras
Armadas de forma negociada, sem rupturas. Para assegurar a concordncia das
foras militares em devolver o governo aos civis, manteve-se certo grau de
-
19
autonomia poltica dos militares. A chamada distenso lenta, gradual e segura
imps, assim, dificuldades e limites s mudanas, no que concerne construo do
controle civil no processo de consolidao democrtica brasileira. (SAINT-PIERRE;
WINAND, 2007).
As preferncias estratgicas das Foras Armadas prevaleceram no processo
constituinte em relao poltica de segurana pblica. O fato de as Foras
Armadas serem atores polticos que, diferentemente de outros, tm a capacidade de
reverter o processo de democratizao pelas armas, tornava ainda maior seu poder
de barganha poltica. Para o neoinstitucionalismo histrico, fatores exclusivos de um
grupo de interesse no so suficientes para explicar sua influncia poltica. Esta
abrange a relao desse determinado grupo de interesse com o sistema poltico e s
pode ser compreendida por meio de uma anlise da receptividade das instituies
s presses polticas (IMMERGUT, 1996, p. 146).
Segundo Arturi (2001),
[...] a aceitao da eleio de Tancredo pelos militares foi baseada, quase que exclusivamente, na sua confiabilidade poltica pessoal, que garantiria tanto o cumprimento das prerrogativas polticas oferecidas s Foras Armadas como as promessas de que os interesses econmicos fundamentais das classes dominantes no seriam atingidos por eventuais reformas.
Cercado de constrangimentos consolidao do novo regime, Sarney apoiou-
se politicamente nos militares e utilizou prticas clientelistas para aliciar
parlamentares de vrios partidos15. Ao lado de Sarney, o Ministro do Exrcito,
General Lenidas Pires, emitia opinio no apenas sobre temas pertinentes sua
pasta, mas sobre todos os assuntos considerados importantes (SAINT-PIERRE;
WINAND 2007).
Diferentemente do que se verificava em relao a outras polticas pblicas,
no havia, poca, uma coalizo reformadora para que se estabelecesse um novo
modelo institucional para a segurana pblica, o que no significa dizer que no
existissem atores com agendas reformistas. Era o caso, por exemplo, da Comisso
Justia e Paz, do Gabinete de Assessoria Jurdica s Organizaes Populares
(GAJOP), em Pernambuco, e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, entre
15
Segundo Celina Souza (2001, p. 540), o presidente Sarney valeu-se dos militares como uma fora extraconstitucional para diminuir o poder dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais.
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outros. Segundo Kant de Lima (2000, p. 56), desde a dcada de 1980, setores da
sociedade j rejeitavam a militarizao da ao policial, postulando a remodelao e
a modernizao das instituies policiais, bem como a adoo de estratgias
orientadas pelos direitos humanos. Coexistiam duas posies polticas antagnicas,
consubstanciadas em discursos conservadores autoritrios e em discursos de
defesa dos direitos humanos (o que continuou evidente durante toda a dcada de
1990).
Havia, poca, um forte lobby, bastante ativo e organizado pelos interesses
militares, com 13 oficiais superiores atuando junto aos constituintes (STEPAN, 1988;
ZAVERUCHA, 2002). Durante o processo constituinte, o ento senador Jarbas
Passarinho, coronel da Reserva e ex-ministro dos governos dos Generais Costa e
Silva, Mdici e Figueiredo, presidiu a Comisso de Organizao Eleitoral Partidria e
Garantia das Instituies, encarregada da redao dos captulos sobre Foras
Armadas e Segurana Pblica. O deputado Ricardo Fiza, um dos lderes do
denominado Centro16, era encarregado da subcomisso de Defesa do Estado, da
sociedade e de sua segurana, e deu total apoio s demandas militares,
trabalhando, segundo Zaverucha (2002), contra qualquer tentativa de se acabar com
o controle do Exrcito sobre as polcias estaduais. A aludida subcomisso organizou
oito sesses pblicas, convidando 28 pessoas, cujos perfis tornavam previsvel a
preferncia pela agenda militar. Apenas trs dos vinte e oito convidados (o
presidente da Associao Nacional dos Comissrios da Polcia Civil, o presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil e o diretor do Ncleo de Estudos Estratgicos da
Unicamp) apresentaram proposituras de mudanas nas relaes entre civis e
militares. A agenda para a segurana pblica entre os constituintes refletia, portanto,
a preferncia dos militares pela manuteno do status quo.
Contreiras, citado por Zaverucha (2002, p. 84), afirma que o coronel do
Exrcito, Sebastio Ferreira Chaves, ex-secretrio de segurana pblica de So
Paulo no Governo Abreu Sodr, entendia, j naquela poca, que a polcia militar
agia de forma violenta e que a polcia civil havia perdido sua capacidade
investigativa. Por esse motivo, tentou convencer o ento presidente do Congresso
16
Centro a denominao que se deu a um movimento de parlamentares constituintes filiados a partidos de centro direita. Como afirma SOUZA (2001, p.539), o grupo foi articulado para lutar contra o que muitos rotulavam de tendncias esquerdistas da Assembleia Nacional Constituinte.
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21
Nacional, deputado Ulisses Guimares, a mudar o sistema policial na Constituio
de 1988, extinguindo, entre outras medidas, as polcias militares. Segundo o autor, o
presidente do Congresso expressou a impossibilidade da mudana, em razo de
acordo que firmara com o General Lenidas Pires, ministro do Exrcito do Governo
Sarney. Nesse sentido, a lgica do processo de deciso, como afirma Immergut
(1996), requer a anlise de todos os acordos que ocorrem ao longo da cadeia de
decises tomadas por representantes de diferentes arenas polticas.
As preferncias pela manuteno do status quo prevaleceram, traduzindo-se
na continuidade de arranjos institucionais persistentes em matria de segurana
pblica. O poder de presso do Exrcito mostrou-se relevante; mostraram-se
significativas tambm as manobras polticas para a conformao de arranjos no
curso do processo decisrio constituinte. Importaram as estratgias para que fosse
possvel uma transio democrtica negociada. No havia, por parte do poder
executivo federal, uma agenda reformista na rea de segurana pblica e tambm
no se havia constitudo uma coalizo reformadora a partir de setores da sociedade
civil crticos ao modelo herdado do perodo autoritrio.
A Constituio Federal de 1988 conferiu aos membros das polcias militares o
status de servidor pblico militar e manteve a competncia dos tribunais militares
estaduais para o julgamento tambm dos crimes cometidos por policiais militares.
Reafirmou as polcias militares e corpos de bombeiros militares como foras
auxiliares e reserva do Exrcito e preservou a diviso entre polcia militar e polcia
civil, subordinando-as aos governadores estaduais.
Em relao s competncias que dizem respeito segurana pblica, o
desenho constitucional ficou assim configurado: compete privativamente Unio
legislar sobre normas gerais de organizao, efetivos, material blico, garantias,
convocao e mobilizao das polcias militares e corpos de bombeiros militares e
sobre a competncia da Polcia Federal e das polcias rodoviria e ferroviria
federais (art. 22, inc. XXI e XXII). Unio e aos estados compete concorrentemente
legislar sobre organizao, garantias, direitos e deveres das polcias civis (art. 24,
inc. XVI). Zelar pela guarda da Constituio, das leis e das instituies democrticas
e conservar o patrimnio pblico competncia comum de todos os entes federados
(art. 23, inc. I).
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22
O artigo 144, que trata especificamente da poltica de segurana pblica,
dispe que:
A segurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, atravs dos seguintes rgos: I - Polcia Federal; II - Polcia Rodoviria federal; III - Polcia Ferroviria Federal; IV - polcias civis; V - polcias militares e corpos de bombeiros militares.
O pargrafo 7 do mesmo dispositivo constitucional dispe que a lei
disciplinar a organizao e o funcionamento dos rgos responsveis pela
segurana pblica, de maneira a garantir a eficincia de suas atividades. Aos
municpios, o pargrafo 8 do art. 144 faculta a criao de guardas municipais,
apenas para a guarda de seus bens, servios e instalaes.
Considerada dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, a
segurana pblica passou a ocupar captulo prprio na Constituio, inserido no
Ttulo V, Da Defesa do Estado e das Instituies Democrticas, ao qual se
vinculam tambm os captulos que versam sobre o estado de defesa e o estado de
stio e o captulo sobre as Foras Armadas. Vrios autores (CARBALLO BLANCO,
2000; LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000; MUNIZ; ZACCHI, 2005) apontam uma
mudana positiva de foco na Constituio de 1988, que introduziu o conceito de
segurana como preservao da ordem pblica, dissociando-o das instituies de
defesa nacional. No obstante, mantiveram-se inalterados tanto o modelo da poltica
como a organizao e as estruturas das instituies policiais. O poder das Foras
Armadas continuou a se refletir em vrios dispositivos constitucionais17. Assim,
apesar da mudana de foco, o desenho constitucional de 1988, no que tange
estrutura e organizao das instituies de segurana pblica, acabou resultando
basicamente em continuidades.
17
No apenas no artigo 144 da Constituio Federal, que manteve as polcias militares como foras auxiliares e reservas do Exrcito, mas em vrios outros dispositivos da Carta de 1988 fica evidente o poder e a influncia das Foras Armadas. O artigo 142 do captulo relativo s Foras Armadas dispe que estas se destinam defesa da ptria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Segundo Zaverucha (1998), na primeira verso dada ao artigo 142, os militares perdiam o papel de guardies da lei e da ordem, mas, constrangidos pelo ento ministro do Exrcito, Lenidas Pires, os constituintes acabaram alterando a sua redao. Sobre o tema ver tambm Saint-Pierre e Winand (2007).
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23
2.3 Arranjo institucional do sistema de segurana pblica e alguns problemas dele
decorrentes
A presente seo tem por objetivo identificar conflitos e deficincias presentes
no modelo da poltica de segurana pblica vigente, cujas caractersticas, conforme
analisado nas sees precedentes, deitam razes em escolhas passadas e
persistentes ao longo do tempo. A identificao desses problemas colocados em
evidncia nas dcadas de 1980 e 1990 com o aumento vertiginoso da criminalidade
permitir uma melhor compreenso das agendas de reformas incrementais e
radicais que se constituram especialmente nos ltimos 15 anos e que sero
estudadas do captulo 4 em diante.
Um primeiro problema, que decorre do desenho constitucional do sistema de
segurana pblica, refere-se ao duplo comando, estadual e federal, das polcias
militares e corpos de bombeiros. No seu artigo 22, XXI, a Carta de 88 relacionou
entre as competncias privativas da Unio a de legislar sobre as normas gerais de
organizao, efetivos, material blico, garantias, convocao e mobilizao das
polcias militares e corpos de bombeiros militares. No obstante, o artigo 144,
pargrafo 6, subordinou tanto as polcias civis como as militares aos governadores
estaduais. De acordo com Zaverucha (2002, p. 85), estabeleceu-se um arranjo
institucional bastante explosivo em situao de conflito entre o governador do estado
e o presidente da Repblica.
Os governadores ficam com nus de pagar os salrios sem, todavia, poderem decidir qual tipo de armamento deve ser comprado, como as tropas devem ser alinhadas, ou onde devem ser construdos novos quartis. Para tudo isso, necessitam de consentimento da Inspetoria Geral das Polcias Militares (IGPM), rgo vinculado ao comandante do Exrcito [...] criado durante o auge da represso poltica.
Outro arranjo institucional indutor de conflitos refere-se fragmentao e ao
padro dual das instituies policiais. As duas polcias estaduais possuem cadeias
de comando prprias e independentes, e nenhuma delas realiza o ciclo completo da
atividade policial (as atividades de polcia investigativa e judiciria e as atividades de
policiamento ostensivo no so desempenhadas por uma mesma instituio policial).
O padro dual das polcias gera dificuldades no que diz respeito separao entre
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24
polcia administrativa e polcia judiciria18. Sobre esse arranjo conflituoso, Dallari
(1991, p. 64) afirma que, na verdade, nunca houve uma diferenciao clara de
delimitao de atribuies das polcias militar e civil, motivo pelo qual as duas
instituies seguem convivendo e frequentemente conflitando.
Esse problema no decorre propriamente do fato de existirem duas polcias
estaduais, mas principalmente do fato de que elas no realizam o ciclo completo da
atividade policial19 e de que no atuam integradamente, o que acaba por gerar
disputas, rivalidades e conflitos de competncia. Na prtica, apesar de formalmente
no realizarem o ciclo completo, cada uma das duas polcias acaba desenvolvendo
atividades que seriam de competncia da outra. A polcia investigativa a polcia
civil, mas a polcia militar tambm exerce essa funo, por exemplo, quando instaura
inqurito policial militar ou, ainda, nos estados em que as polcias militares
reivindicam o direito de lavrar Termos Circunstanciados de Ocorrncia20. A polcia
civil, por sua vez, desenvolve atividade ostensiva, atribuio tpica da polcia militar,
por meio de alguns de seus agrupamentos especializados, como o caso, por
exemplo, do Grupo de Operaes Especiais (GOE), fora de elite da polcia civil
paulista, cujo objetivo atuar em ocorrncias de alto risco.
Nas palavras de Muniz e Zacchi (2005, p. 15),
[...] as ambiguidades existentes nas definies formais dos mandatos, atribuies e competncias das agncias policiais e, por outro lado, a falta
18
A doutrina menciona a diviso das funes policiais em polcia administrativa, de carter ostensivo e atuao preventiva, isto , antes do cometimento da conduta delitiva; e outra de carter judicirio, de natureza repressiva, no sentido de atuar depois que o ato criminoso j ocorreu, para que restem esclarecidas as circunstncias em que se deu o fato e sua autoria. Na prtica, no entanto, a polcia militar atua muito mais reativamente, repressivamente, do que de maneira preventiva. 19
Fazer o ciclo completo da atividade policial (o que ocorre na maior parte das polcias do mundo) significa, como j se afirmou, que uma mesma polcia responsvel tanto pelas atividades de policiamento ostensivo como pelas atividades investigativas. A mesma polcia que faz o policiamento ostensivo, visando a inibir a ocorrncia delitiva, persegue o criminoso, efetua sua priso e toma as medidas de polcia investigativa e judiciria. 20
O tema bastante polmico. Termo Circunstanciado de Ocorrncia (TCO) o registro que se faz quando da ocorrncia de um fato tipificado como infrao de menor potencial ofensivo, conforme previsto na Lei 9099/95, conhecida por Lei dos Juizados Especiais. A discusso sobre quem est legitimado a lavrar TCO decorre do previsto no artigo 69 da mencionada lei, segundo o qual, no caso dos crimes de pequeno potencial ofensivo, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrncia lavrar termo circunstanciado...". Como a funo judiciria privativa da polcia civil, esta entende que o termo autoridade policial no se aplica aos policiais militares, dizendo respeito apenas aos delegados de polcia. J a polcia militar defende a legalidade de ela prpria lavrar o TCO, uma vez que deve prevalecer o princpio da instrumentalidade e da prestao do servio de segurana pblica por qualquer uma das duas polcias. A polmica tem sido resolvida de maneira diferente em cada estado da federao e tambm tem sido objeto de vrias aes judiciais. Sobre o tema ver Lemle (2008).
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25
de expedientes integradores, conduz multiplicao de conflitos de competncia, sobreposio e ao abandono de rotinas, a no cobertura do fluxo integral do trabalho policial, duplicidade de gastos, disperso de esforos, debilitao das cadeias de comando e de controle e, por fim, ao clientelismo poltico em torno das polcias pela crtica falta de estruturas de gesto e gerncia integradas e de ferramentas efetivas de controle social.
O resultado disso, segundo os autores, a baixa qualidade dos servios
prestados, com baixa eficincia e eficcia, apesar dos altos custos despendidos para
a manuteno das estruturas existentes.
No que diz respeito ao controle interno da atividade policial, sua fragilidade
decorre da inexistncia de corregedorias policiais autnomas e independentes dos
comandos. No que concerne ao controle externo, as insuficincias e as fragilidades
tambm no so pequenas. O Ministrio Pblico, a quem compete
constitucionalmente o controle externo das polcias, nem sempre assume essa
funo e as ouvidorias de polcia, embora constituam inegvel avano no campo do
controle social, alm de ainda no estarem presentes em todos os estados da
federao21, no so dotadas de poderes investigativos prprios, o que as torna
dependentes da investigao realizada pelos rgos corregedores policiais.
A baixa eficincia das instituies policiais, tanto para prevenir crimes como
para investig-los, tambm outro problema crnico do modelo policial brasileiro.
Por um lado, com a transio democrtica, a estrutura e o treinamento militarizados
das polcias militares mostraram-se inadequados para a funo policial de proteo
dos cidados, em razo da lgica militar ser a do combate e a da eliminao dos
inimigos do Estado. Por outro, a dificuldade da polcia civil em investigar22, somada
s deficincias das outras agncias que compem o sistema de justia criminal,
contribui para um quadro de impunidade e de desconfiana nas instituies. Para
muitos autores, o carter burocrtico do qual se reveste o inqurito policial se d em
detrimento da prpria eficincia da atividade investigativa (ALBERNAZ, 2009;
MISSE, 2009; VARGAS; NASCIMENTO, 2009;). A desconfiana da populao em
relao eficincia do sistema, por sua vez, faz no apenas com que grande parte
21
At 2008, apenas 14 estados brasileiros tinham institudo ouvidorias de polcia. 22
A maior parte dos boletins de ocorrncia no conduz abertura de inqurito policial e estes, por sua vez, no produzem relatrios que fundamentem o oferecimento de denncia pelo Ministrio Pblico.
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das ocorrncias delitivas sequer seja notificada polcia23, mas fomenta as formas
privadas de fazer justia e contribui para a exacerbao de um sentimento coletivo
de medo e de insegurana (ADORNO; ZUMINO, 2000).
Outro problema persistente diz respeito cultura de no participao da
sociedade civil na gesto das polticas de segurana pblica. Em geral, a pouca
participao se limita aos conselhos comunitrios de segurana, como os existentes
em So Paulo, por exemplo, desde o Governo Franco Montoro, mas mesmos estes
ainda expressam uma atuao pouco plural em termos de representao dos
segmentos sociais. At hoje, so muitos os conselhos marcados por alta
representao de comerciantes e cidados motivados pela resoluo de seus
problemas particulares, procurando por vezes privatizar os recursos pblicos
(DURANTE; ZAVATARO, 2007).
A estrutura centralizada nas instituies policiais estaduais, seu isolamento e
fragmentao e a falta de mecanismos de cooperao dificultam a articulao de
polticas pblicas de segurana nas trs esferas de governo, bem como o
desenvolvimento integrado de estratgias preventivas da violncia, envolvendo a
participao comunitria. Essa centralizao marcante nas polticas da rea de
segurana, que no buscam formas de cooperao, articulao que lhes deem
respaldo e legitimidade poltica (ALVAREZ; SALLA; SOUZA, 2004), leva a fracassos,
alm de implicar tambm uma maior dificuldade em se otimizar e potencializar
esforos e recursos a fim de se garantir um padro mnimo de qualidade no
provimento de segurana pblica em todo o territrio nacional.
Apesar de todo esse quadro de deficincias, insuficincias e conflitos nas
instituies tradicionais da segurana pblica ter sido engendrado ao longo de anos
de histria, apenas h cerca de duas dcadas a poltica de segurana pblica
ganhou lugar de destaque na agenda poltica e no debate pblico. Por que a questo
da segurana passou a ser um problema a ser enfrentado pelos governos e pelos
formuladores de polticas pblicas o que ser analisado a seguir.
23
Pesquisa de vitimizao realizada pelo ILANUD, em 2002, no Rio de Janeiro, So Paulo, Vitria e Pernambuco, aponta os altos ndices de subnotificao, especialmente no que diz respeito violncia domstica, estupro, entre outros.
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27
Captulo 3 Crise da segurana pblica: rupturas e esgotamento do modelo
No modelo de anlise de polticas pblicas denominado de arenas sociais
(SOUZA, 2007), para que determinada questo ou circunstncia se transforme em
um problema, as pessoas precisam se convencer de que algo necessita ser feito.
Quando isso ocorre, os decisores e formuladores das polticas pblicas (policy
makers) voltam sua ateno para essa questo em detrimento de outras. Souza
(2007) aponta trs mecanismos para chamar a ateno dos policy makers: a
divulgao de indicadores que expressam a dimenso do problema; a repetio
continuada do mesmo problema; e o mecanismo de feedback, isto , dados e
informaes que identificam problemas na poltica atual ou sua baixa efetividade.
No caso da poltica de segurana pblica, esses trs mecanismos ficaram
evidentes nas dcadas de 1980 e 1990, quando o aumento expressivo do crime e da
violncia colocou em cheque o sistema de justia criminal brasileiro, composto pelo
sistema de segurana pblica, pelo poder judicirio e pelo sistema penitencirio. As
polticas tradicionais de segurana, repressivas e reativas, que consistem em geral
no aumento do nmero de prises, ampliao do efetivo policial e aquisio de
equipamentos (veculos e armamentos), expuseram no apenas as deficincias do
modelo de segurana pblica, analisadas no captulo 2, como tambm mostraram
sua insuficincia para conter a curva ascendente das estatsticas criminais.
As taxas de mortes violentas no Brasil apareceram entre as mais altas do
mundo. Em 1980, a taxa era de 11,7 homicdios por 100 mil habitantes, subindo para
27,8 no ano 2000, o que indica aumento de 244% em 20 anos. Entre os anos de
1980 e 2001, houve 646.158 homicdios dolosos no pas, correspondendo a mais de
30.000 assassinatos por ano (LEMGRUBER, 2004).
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28
Grfico da evoluo da incidncia de homicdios
Brasil: 1980 a 2003
13,7
14,6 14,6
16,9
18,7 18,619,4
20,220,9
24,624,2
23,7
22,4
23,224,0
25,7
27,027,4
29,0 28,8 29,129,6
30,5 30,2
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
Taxas p
or
100 m
il h
ab
.
Fonte: SIM / Ministrio da Sade
No ano 2000, segundo dados do Centro Internacional de Preveno ao Crime
da Organizao das Naes Unidas, o Brasil ocupava a posio de quinto pas mais
violento do mundo, ficando atrs apenas da Venezuela, Jamaica, frica do Sul e
Colmbia. A violncia policial tambm atingiu nveis alarmantes. No estado de So
Paulo, por exemplo, de 1990 a 2000, a polcia militar matou 7.087 pessoas, segundo
dados da Ouvidoria da Polcia do Estado (2000). O crime se organizou. A
impunidade se mostrou presente tanto na incapacidade do Estado de punir o
responsvel pelo crime comum e de conter o crime organizado como na
incapacidade de punir seus prprios agentes.
A anlise das estatsticas criminais, nas dcadas de 1980 e 1990, denota um
crescimento vertiginoso no apenas dos crimes dolosos contra a vida, mas de todas
as modalidades de crime. Adorno (2002) aponta quatro tendncias do crescimento
do crime e da violncia, nos vinte anos que se seguiram ao fim do regime militar: 1)
aumento da violncia urbana, especialmente dos crimes dolosos contra a vida
(homicdios) e dos crimes contra o patrimnio; 2) surgimento do crime organizado,
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relacionado ao trfico de drogas internacional; 3) violaes graves de direitos
humanos; 4) aumento dos conflitos intersubjetivos (conflitos de vizinhana). As
causas do aludido crescimento, segundo o autor, giram em torno de trs tipos de
explicaes: mudanas na sociedade e nos padres convencionais de delinquncia
e violncia; crise do sistema de justia criminal, compreendendo agncias policiais,
Ministrio Pblico, tribunais de justia e sistema penitencirio; e desigualdade social
e segregao urbana.
O sistema de justia criminal seletivo, punindo preferencialmente
marginalizados e pobres (ADORNO, 1994, 2002; WACQUANT, 2001), e a eles que
se dirige, preferencialmente a violncia policial e a violncia comum, especialmente
nos casos dos crimes dolosos contra a vida (MIRAGLIA, 2006; WAISELFIZ, 2006)24.
O carter profundamente discriminatrio do sistema de justia criminal tambm
revelado em pesquisa realizada pela Ouvidoria da Polcia do Estado de So Paulo
(2000) que, analisando inquritos policiais versando sobre homicdios cometidos por
policiais no estado de So Paulo, no ano de 1999, apontou que a maior part