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POLÊMICAS ACERCA DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL – UMA ANÁLISE JURÍDICA E HISTÓRICA DA IDENTIDADE CULTURAL URBANA. CONTROVERSIAS REFERENTES A LA PROTECCIÓN DEL PATRIMONIO CULTURAL - UN ANÁLISIS LEGAL E HISTÓRICA DE LA IDENTIDAD CULTURAL URBANA. Roberta Cunha Martins Ricardo Stanziola Vieira ∗∗ RESUMO Este artigo evidencia o estudo dos institutos que protegem o patrimônio cultural na atual conjuntura do mundo jurídico e analisa as limitações destes instrumentos. Busca apresentar os conceitos de patrimônio cultural (de uma perspectiva elitista a uma perspectiva democrática - popular) apresentados ao longo da história geral, bem como a evolução deste conceito na esfera jurídica, passando por todas as Constituições brasileiras, dispensando atenção especial a Constituição vigente. O caput do art. 216 da Atual Carta Magna, consagrou, de maneira sábia o conceito de patrimônio cultural, uma vez que não delimitou o patrimônio como sendo aquele de “valor excepcional”. Ao contrário, afirma que para um bem ser reconhecido como patrimônio cultural, basta que seja portador de “referência à identidade, à ação e a memória” podendo ainda, ser de natureza “material ou imaterial” “tomado individualmente ou em conjunto”. Nota-se também, que o texto constitucional não menciona a necessidade de tombamento prévio, para que determinado bem passe a integrar o patrimônio cultural brasileiro, bastando para tal, que possua qualquer tipo de reconhecimento do seu caráter histórico e/ou cultural. Neste mesmo sentindo tem sido o entendimento de alguns tribunais pátrios. O Trabalho procura demonstrar também, a relação do Patrimônio Cultural com o turismo, bem como algumas questões polêmicas sobre o assunto, principalmente sobre as conseqüências que um turismo mal planejado pode Bacharel em História (Ufsc); Bacharel em Direito (Univali); advogada e professora de História. ∗∗ Doutor em Ciências Humanas (Ufsc); mestre em Direito (Ufsc). Professor de Direito Ambiental dos cursos Graduação e Pós Graduação em Direito da Univali; Prof de Ciência Política e Políticas Públicas (Udesc/ Esag)

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POLÊMICAS ACERCA DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL – UMA

ANÁLISE JURÍDICA E HISTÓRICA DA IDENTIDADE CULTURAL URBANA.

CONTROVERSIAS REFERENTES A LA PROTECCIÓN DEL PATRIMONIO

CULTURAL - UN ANÁLISIS LEGAL E HISTÓRICA DE LA IDENTIDAD

CULTURAL URBANA.

Roberta Cunha Martins∗

Ricardo Stanziola Vieira∗∗

RESUMO

Este artigo evidencia o estudo dos institutos que protegem o patrimônio cultural na atual

conjuntura do mundo jurídico e analisa as limitações destes instrumentos. Busca apresentar

os conceitos de patrimônio cultural (de uma perspectiva elitista a uma perspectiva

democrática - popular) apresentados ao longo da história geral, bem como a evolução deste

conceito na esfera jurídica, passando por todas as Constituições brasileiras, dispensando

atenção especial a Constituição vigente. O caput do art. 216 da Atual Carta Magna,

consagrou, de maneira sábia o conceito de patrimônio cultural, uma vez que não delimitou

o patrimônio como sendo aquele de “valor excepcional”. Ao contrário, afirma que para um

bem ser reconhecido como patrimônio cultural, basta que seja portador de “referência à

identidade, à ação e a memória” podendo ainda, ser de natureza “material ou imaterial”

“tomado individualmente ou em conjunto”. Nota-se também, que o texto constitucional

não menciona a necessidade de tombamento prévio, para que determinado bem passe a

integrar o patrimônio cultural brasileiro, bastando para tal, que possua qualquer tipo de

reconhecimento do seu caráter histórico e/ou cultural. Neste mesmo sentindo tem sido o

entendimento de alguns tribunais pátrios. O Trabalho procura demonstrar também, a

relação do Patrimônio Cultural com o turismo, bem como algumas questões polêmicas

sobre o assunto, principalmente sobre as conseqüências que um turismo mal planejado pode

∗ Bacharel em História (Ufsc); Bacharel em Direito (Univali); advogada e professora de História. ∗∗ Doutor em Ciências Humanas (Ufsc); mestre em Direito (Ufsc). Professor de Direito Ambiental dos cursos Graduação e Pós Graduação em Direito da Univali; Prof de Ciência Política e Políticas Públicas (Udesc/ Esag)

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trazer para o ambiente cultural e natural. Apresenta a problemática referente à classificação

dos bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro e a problemática das políticas

preservacionistas, uma vez que é mínima a participação popular no processo de elaboração

das normas jurídicas e máxima a falta de preocupação do poder político com os bens

culturais de interesse público. Analisa os preceitos históricos contidos nas cartas magnas

brasileiras, o Decreto-Lei n. 25/1937, e as suas falhas frente à falta de recursos para

manutenção e preservação deste patrimônio, colacionando doutrinas e jurisprudências.

Discorre a respeito do desconhecimento por parte da população, acerca da importância da

preservação desses bens.

PALAVRAS-CHAVE: PATRIMÔNIO CULUTURAL - IDENTIDADE -

PARTICIPAÇÃO POPULAR

RESUMEN

Este artículo evidencia el estudio de los institutos juridicos que protegen el patrimonio

cultural en la coyuntura actual del mundo legal y analiza las limitaciones de estos

instrumentos. Buscar presentar los conceptos del patrimonio cultural (desde una perspectiva

elitista a una perspectiva democrática - popular) presentados a través de historia general, así

como la evolución de este concepto en la esfera legal, pasando para todas las

Constituciones Brasileñas, destacando especialmente la Constituición vigente. El subtítulo

del artículo. 216 de la Carta Magna actual, consagra de manera sabia el concepto del

patrimonio cultural, puesto que no delimitó el patrimonio como siendo aquél de “valor

excepcional”. Al contrário, afirma que para se reconocer un bien como patrimonio cultural,

basta hacer “referencia a la identidad, a la acción y a la memoria”, podendo mismo ser de

naturaleza “material o incorpórea”, “tomado individualmente o en colectivo”. Notase

también que el texto constitucional no menciona la necesidad de tombamiento anterior,

bastando que haya reconocimiento de su carácter histórico y/o cultural para integrar el

patrimonio cultural brasileño. En este sentido son diversas decisiones de algunas cortes

nacionales. El trabajo busca también demostrar la relación del patrimonio cultural con el

turismo, así como controversias en el tema, principalmente en las consecuencias que un

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turismo mal previsto puede traer para el ambiente cultural y natural. Presenta la

problemática referente a la clasificación de las mercancías que constituyen el patrimonio

cultural brasileño y el la problemática de la política de los preservacionistas, puesto que sea

mínima la participación popular nel curso de elaboración de las reglas jurídicas y máxima

la carencia de preocupación del sector político ante la protección de los bienes culturales de

interés público. Analiza las reglas históricas contenidas en las Constituiciones brasileñas, el

Decreto N. 25/1937, y sus imperfecciones face a la carencia de recursos para el

mantenimiento y a la preservación de este patrimonio, comparando doctrinas y

jurisprudencias. Aborda el desconocimiento de parte de la población, referente a la

importancia de la preservación de estos bienes.

PALABRAS CLAVE: PATRIMONIO CULTURA- L IDENTIDAD - PARTICIPACIÓN

POPULAR

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo relatar um breve estudo acerca do conceito de

patrimônio cultural, bem como abordar a evolução histórica do conceito jurídico do

conjunto desses bens. Trata, ainda, da noção de patrimônio cultural trazida na Constituição

brasileira de 1988 e os desafios da sua concretização.

Apresenta-se a problemática referente à classificação dos bens que constituem o

patrimônio cultural brasileiro e a problemática das políticas preservacionistas, uma vez que

é mínima a participação popular no processo de elaboração das normas jurídicas e máxima

a falta de preocupação do poder político com os bens culturais de interesse público.

Busca-se analisar os preceitos contidos nas cartas magnas brasileiras, o Decreto-

Lei n. 25/1937, e as suas falhas frente à falta de recursos para manutenção e preservação

deste patrimônio, colacionando doutrinas e jurisprudências. Apresentando, ainda, o

desconhecimento por parte da população, acerca da importância da preservação desses

bens.

Faz-se uma pequena abordagem sobre o turismo cultural, apresentando as

correntes cientificas que discutem este assunto, vislumbrando uma alternativa capaz de

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contribuir significativamente para a preservação do patrimônio cultural.

Finalmente, aponta-se os impactos sofridos pela sociedade como conseqüência da

perda de uma identidade, bem como reforça-se a importância da participação popular na

busca pela preservação do patrimônio cultural nacional, reforçando a idéia de que preservar

os recursos ambientais culturais também é um meio para garantir uma qualidade de vida

sadia.

DESENVOLVIMENTO

1. O Conceito de patrimônio histórico: História e Direito

É indiscutível o espaço que o patrimônio cultural vem alcançando nos últimos

anos, mostrando-se presente em vários discursos nacionais e internacionais que, tratam

principalmente de questões relativas ao turismo e à ecologia. Mas afinal, o que vem a ser

patrimônio cultural?

Diante desta premissa, é necessário estabelecer critérios para discutir acerca do

conceito de patrimônio cultural, levando-se em conta que, em torno dele estão envolvidos

outros temas “escorregadios”, como: identidade, memória e cultura.

Inicialmente é importante salientar que esta pesquisa esta inserida principalmente

na área do direito ambiental e este não está limitado àquilo que diz respeito à natureza.

Além da fauna, da flora, da água, do ar, ou seja, de todo equilíbrio ecológico, estão

compreendidos também no direito ambiental, os elementos criados pelo homem, ou seja,

toda riqueza criada pelo homem, assim como sua cultura.

Conforme nos coloca Lúcia Reisewitz: Também o direito ambiental é fundamental e histórico. Fundamental, pois a preservação da natureza e da cultura são pressupostos para o exercício e inúmeros outros direitos, tal qual a saúde, a cultura, a segurança etc. Histórico, pois o preservacionismo ambiental surge das reivindicações iniciadas pelos movimentos ecológicos que apontam para o esgotamento dos recursos naturais e da conscientização sobre os efeitos destrutivos que certas práticas humanas têm sobre o patrimônio ambiental.1

Segundo a doutrinadora:

Natureza, em uma das suas acepções, é o conjunto de todas as coisas que são. Por que estaria o ser humano fora dessa estrutura? É certo então que este integra

1 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural - Direito à preservação da memória, ação e identidade do povo brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira. 2004, p. 25

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aquela, compondo o conjunto das coisas existentes. Nesse caso, natureza e ambiente seriam sinônimos. Partindo desse todo, a discussão sobre os elementos componentes do meio ambiente ganha outra amplitude. O ser humano, que compõe a natureza, interage com os demais elementos e produz uma serie de intervenções na realidade da qual é parte. Modifica-se a si mesmo geneticamente, modifica a fauna e a flora geneticamente, produz lixo, destrói matas, polui águas etc., num infindável numero de situações, muitas vezes, indesejáveis. Por outro lado, constrói pirâmides, torres, castelos, casas, empregando seu gênio criativo nas mais diversas formas de arte, e essas intervenções agora passam a ser desejáveis, pois enriquecem sua própria vida.2

Logo, a preservação dos recursos ambientais culturais também é meio para

garantia de uma qualidade de vida sadia.

Importante ressaltar, ainda, que o patrimônio cultural brasileiro é conjunto de bens

de valor cultural sobre os quais recaem um interesse difuso. A preservação, por exemplo, e

um acervo cultural pode interessar a um número indeterminado de pessoas, esteja ele sob

gerenciamento público ou privado.3

Assim, ao iniciarmos um breve estudo sobre este assunto verificamos, que por

volta de 1837, o que hoje denominamos patrimônio histórico era chamado de monumento

histórico e normalmente caracterizava-se como tal, por possuir caráter erudito e artístico. A

noção de “preservação” destes bens era pequena e eles apenas serviam para embelezar as

cidades, para provar sua grandeza e seu poder. Constituído pelos remanescentes da

Antigüidade, pelos castelos, igrejas e outros edifícios religiosos da Idade Média, a noção de

monumento histórico estava ligada ao passado, ao antigo.

Mais tarde, já no final do século XIX outras formas de edificação, como, por

exemplo, casas, prédios individuais e aldeias, passam a ser considerados também

monumento histórico. Porém, percebe-se que, ainda, não há um entendimento sobre o seu

verdadeiro papel.

Françoise Choay, tratando deste assunto afirma que: (...) A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar (...).O monumento assegura,

2 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural, p. 5. 3 Cf. REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural, p. 100.

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acalma, tranqüiliza, conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos.4

Essa relação do monumento, com o tempo, com a memória e com a identidade,

passou a ser discutida somente no século XX, quando então o sentido e o conceito de

monumento, ao nosso ver, sofre um enriquecimento. Pela primeira vez, fala-se em

patrimônio cultural, em sua “função memorial”; e critérios são estabelecidos para que

possam, de certa forma, contribuir para a preservação desses bens.

Atualmente, podemos dizer que, o conceito de patrimônio cultural ainda vem

sendo construído e é discutido por um público variado, que busca uma resposta mais

aprofundada sobre o caráter desse legado.

Para Hely Lopes Meirelles, o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional abrange todos os bens, móveis e imóveis, existentes no país, cuja conservação seja de interesse público por sua vinculação a fatos memoráveis da história pátria, ou por seu excepcional valor artístico, arqueológico, etnográfico ou bibliográfico. Tais bens tanto podem ser realizações humanas, como obras da natureza, tanto podem ser preciosidades do passado, como criações contemporâneas.5

Américo Pellegrini expõe a esse respeito: (...) modernamente se compreende por patrimônio cultural todo e qualquer artefato humano que, tendo um forte componente simbólico, seja de algum modo representativo da coletividade, da região, da época específica, permitindo melhor compreender-se o processo histórico. Trata-se, então, de uma problemática posta no âmbito da antropologia cultural, e que podemos enquadrar no amplo significado de ecologia cultural.6

Certamente, essa questão do “forte componente simbólico” ou “vinculação a fatos

memoráveis” de um determinado bem, trata de uma primeira problemática, pois nos faz ir

mais além, no que se refere ao conceito e a classificação de patrimônio cultural. Afinal, o

que deve ser considerado patrimônio e o que não deve?

Certamente é muito difícil responder a tal indagação e apenas no intuito de buscar

melhor didática, utilizaremos um caso de uma certa comunidade que constrói a sua história

em volta de uma caixa d’água, uma simples caixa d’água que “presencia” diariamente idas 4 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade; Ed. UNESP, 2001. p.12 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo; Malheiros, 2000. p.35 6 PELLEGRINI, Américo Filho. Ecologia, cultura e Turismo. 2.ed. Campinas, SP: Papirus, 1997 (coleção turismo), p.94.

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e vindas daquela comunidade, que “presencia” seus fatos históricos, suas tragédias e suas

conquistas. Enfim, uma caixa d’água que é “testemunha” e “personagem”, de relações

sociais e que, de certa forma, está ligada a história e a memória daquele local e daquela

comunidade. Até que ponto esse determinado bem (caixa d´água), deve ou não ser

considerado um bem de valor histórico e/ou cultural.

Logo, entende-se que, independentemente da classe social7 envolvida com um

bem, considerado ou não patrimônio histórico, o que verdadeiramente importa é que essa

classe, enquanto grupo vivenciou a partir de suas necessidades e experiências a sua própria

história.

Assim, em se tratando de processo histórico, todos temos participação, todos

devemos ser considerados sujeitos históricos especialmente a grande parte da população,

marginalizada que, por diversas vezes foi simplesmente desconsiderada pela História.

Diante disso, voltando ao conceito de patrimônio histórico, podemos, ainda, citar

Margarita Barreto que, referindo-se ao tema nos dá uma sábia noção sobre o assunto:

Atualmente, há consenso de que a noção de patrimônio cultural é muito mais ampla, que inclui não apenas os bens tangíveis como também os intangíveis, não só as manifestações artísticas, mas todo o fazer humano, e não só aquilo que representa a cultura das classes mais abastadas, mas também o que representa a cultura dos menos favorecidos.8

Ante ao exposto, nota-se que o conceito de patrimônio cultural, passou a ter uma

amplitude maior buscando proteger, tanto os bens materiais, quanto os imateriais, e ainda,

preocupou-se com outras formas de manifestações culturais resultantes do “fazer humano”

independentemente de sua classe social.

2. A Evolução Histórica do conceito jurídico de patrimônio cultural

A primeira constituição federal brasileira ao tratar sobre patrimônio cultural, foi à 7 Ao tratar desse assunto, é impossível não mencionar o conceito de classe social trabalhado por Thompson: “ Se detivermos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas idéias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é a sua definição. (In. THOMPSON, E. P. A Formação da classe Operária Inglesa. A árvore da liberdade. trad Denise Bottmann. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.13). 8 BARRETO, Margarita. Turismo e legado cultural- As possibilidades do planejamento. Campinas, SP: Papirus, 2000 (coleção turismo). p.11

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datada e 1934, que determinou em seu artigo 10º que “compete concorrentemente à União e

aos Estados (...), III – proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou

artístico, podendo impedir a saída de obras de arte”. Nota-se que aqui, apenas falava-se em

“monumentos” 9 de valor histórico ou artístico, passando a idéia de que os bens que

deveriam ser preservados eram aqueles repletos de um caráter majestoso, luxuoso,

esplendido, os quais por sua vez, fatalmente não estavam ligados à participação popular.

Já em 1937, época da história do Brasil, marcada pelo Estado Novo, o então

presidente Getúlio Vargas outorgou uma nova Carta que manteve o reconhecimento do

patrimônio cultural brasileiro, em seu artigo 134, a saber: Art. 134. Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim, como as paisagens ou locais particulares dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.

A doutrinadora Maria Coeli Simões Pires, citada por Lúcia Reisewitz, chama a

atenção no sentido de que a constituição de 1937, abordou o tema patrimônio cultural, de

forma muito mais objetiva que na constituição de 1934, pois se esta determinava a

preservação de “belezas naturais” aquela determina a proteção de “paisagens e locais

particularmente dotados pela natureza”. 10

Posteriormente, no Brasil foi criado o Decreto lei n. 25/1937, expedido pelo

próprio presidente Getúlio Vargas, que ao nosso ver, foi um instituto criado no intuito de

garantir ou favorecer a elite brasileira da época, eis que no referido Decreto, passam a ser

empregados os termos “patrimônio histórico e artístico nacional” e não “patrimônio

cultural”, o qual por sua vez, sugere um sentido mais amplo.

Entendemos que favorecia a elite brasileira da época, uma vez que a história da era

construída pela elite e objetivava-se com este Decreto preservar monumentos vinculados a

“fatos memoráveis” da história do Brasil, devendo possuir, ainda, caráter “excepcional”.

Ou seja, não havia, novamente qualquer tipo de preocupação com a participação popular no

processo de elaboração das normas jurídicas, tampouco preocupação com os bens culturais

de interesse público.

9 Majestoso. (...) Adj. 1. que tem majestade, nobreza, grandeza. 2. Imponente, suntuoso. 3. Sublime, belo. In. FERREIRA, Aurélio Buarque de Olanda. Novo Aurélio do século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1.257. 10 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural , p.90.

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Ao analisar esta questão, Lúcia Reisewitz expõe que, Não se pode olvidar que o Decreto-lei n. 25/1937 é produto legislativo do tempo do Estado Novo, em que o poder político era dominado por um governo ditatorial. Assim sendo, é compreensível a adoção do critério memorável, como tentativa e construção de uma historia oficial que viesse de encontro aos interesses dominantes da época, não necessariamente correspondente aos interesses da população, pois a possibilidade de participação política encontrava-se restringida. (...) É preciso, no entanto, reconhecer o quanto o interesse público pode ser confundido com o interesse do administrador público e uma ideologia por detrás do mesmo (...).11

O artigo 1º do referido decreto reza que: Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja e interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

Também é possível perceber, que somente bens materiais, (móveis e imóveis), são

mencionados, não há qualquer menção acerca dos bens imateriais, os quais certamente

também carecedores de proteção.

Ademais, importante ainda mencionar, que o referido Decreto também exigia o

procedimento do tombamento para que estes bens fossem reconhecidos como oficialmente

integrantes do patrimônio histórico e artístico nacional. Desta forma, “estes bens deveriam

estar inscritos em um dos quatro livros do Tombo”, conforme preceitua o §º 1º do artigo 1º

da norma em questão. 12

Assim, verifica-se que há um novo problema trazido pelo Decreto Lei n. 25./1.937,

uma vez que afirma que só é possível preservar os bens que estão inscritos em um dos

quatro livros do Tombo. Esse decreto-lei, conquanto tenha sido fruto e instrumento da

Ditadura de Vargas, do autoritarismo estatal, resultou de de estudos e da sensibilidade de

alguns políticos da época, bem como de pressões dos intelectuais na busca da revalorização

da cultura nacional.

Logo, embora possua algumas falhas, o referido Decreto, para o contexto histórico

da época, significou indubitavelmente um grande avanço na busca da preservação do

patrimônio cultural.

Um aspecto positivo que pode ser levantado, no que tange a criação deste

Decreto-lei é que pela primeira vez, o patrimônio cultural passa a ser visto como

11 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural, p. 92 12 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural, p. 91.

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patrimônio ambiental, ou seja, ao reconhecer que os seres humanos também integram a

natureza, reconheceu o legislador, que o patrimônio cultural está inserido dentro o

patrimônio ambiental.

Assim, o § 2º do artigo 1º do referido Decreto-lei, assim preceitua: Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos de tombamentos os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana.

Prontamente se percebe que fora reconhecido que patrimônio cultural e

patrimônio ambiental interagem e que ambos são ambientes que servem como meios para

realização ou manutenção da qualidade de vida. E, “assim sendo, tanto a cultura como a

natureza são patrimônios suscetíveis de preservação. Enfim, ambos integram o patrimônio

ambiental.”13

Tratando agora da constituição de 1946, percebe-se que esta também faz menção

ao patrimônio cultural em seu artigo 175, estabelecendo que:

As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público. .

Nota-se que pela segunda vez os termos monumentos, obras e documentos de

valor histórico e artístico, são equiparados aos monumentos naturais e as paisagens,

reforçando a idéia de que ambos estão associados ao direito ambiental, o que inegavelmente

significa um grande avanço na busca pela preservação do patrimônio cultural.

Passando à Constituição Federal de 1967, verifica-se que esta empregou o termo

cultura, de forma mais ampla, não o restringindo à preservação do patrimônio histórico e

artístico, mas de um patrimônio cultural.

Desta forma, assim preceitua o art. 172 da referida norma: O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único – ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais e valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.

Finalmente, é com a Constituição Brasileira de 1988 que os bens de valor histórico

e artístico encontraram, a nosso ver, a sua melhor forma jurídica. Trata-se de uma inovação

13 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural, p. 94.

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do constituinte de 1988, que conota os valores históricos e artísticos com um aspecto

integrante do conceito de meio ambiente em um sentido abrangente (inclui a idéia de meio

ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente do trabalho e meio ambiente

cultural). Para aprofundar esta nova conformação jurídica e os desafios de sua

concretização passamos ao próximo tópico.

3. A noção de Patrimônio Cultural na Constituição de 1988 – Desafios à sua

concretização.

A Constituição Federal brasileira vigente, ou seja, a de 1988, dispensou uma

atenção especial ao tratar sobre o patrimônio cultural brasileiro em seu artigo 216, dando-

lhe uma grande amplitude, senão vejamos:

Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - As formas de expressão; II – Os modos de criar, fazer e viver; III – As criações científicas, artísticas, e tecnológicas; IV – As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Conforme podemos perceber, o caput do art. 216 da Carta Magna, consagrou, de

maneira sábia o conceito de patrimônio cultural, uma vez que não delimitou o patrimônio

como sendo aquele de “valor excepcional”, ao contrário, afirma que para ser reconhecido

como patrimônio cultural, basta que seja portador de “referência à identidade, à ação e a

memória” podendo ainda, ser de natureza “material ou imaterial” “tomados

individualmente ou em conjunto”.

Nota-se também, que o texto legal não menciona a necessidade de tombamento

prévio, para que determinado bem passe a integrar o patrimônio cultural brasileiro,

bastando para tal, que possua qualquer tipo de reconhecimento do seu caráter histórico e/ou

cultural.

Neste mesmo sentindo tem sido o entendimento de alguns tribunais pátrios.

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Citamos o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PATRIMÔNIO CULTURAL. AUSÊNCIA DE TOMBAMENTO. IRRELEVÂNCIA. POSSIBILIDADE DE PROTEÇÃO PELA VIA JUDICIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 216, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Não há qualquer exigência legal condicionando a defesa do patrimônio cultural - artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico - ao prévio tombamento do bem, forma administrativa de proteção, mas não a única. A defesa é possível também pela via judicial, através de ação popular e ação civil pública, uma vez que a Constituição estabelece que "o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.(art. 216, § 1º). OBRAS NAS PROXIMIDADES DE IMÓVEL ANTIGO PERTENCENTE AO MUNICÍPIO. ESCAVAÇÕES E EXPLOSÃO DE LAJE A DINAMITE. DESABAMENTO DA "CASA DO AGENTE FERROVIÁRIO". PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARQUITETÔNICO. RECONSTRUÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL CARACTERIZADA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NÃO CARACTERIZADA. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE.14

Ao tratar sobre o conceito de patrimônio cultural empregado na Constituição

Federal de 1988, Èdis Milaré, se posiciona no seguinte sentido: (...) temos aqui a consagração, diante do direito positivo, do pluralismo cultural, isto é, o reconhecimento de que a cultura brasileira não é única, não se resume ao eixo Rio – São Paulo nem ao Barroco mineiro ou nordestino, mas é aquela que resulta da atuação e interação dinâmica e todos os grupos e classes sociais de todas as regiões. E é essa diversidade e riqueza de bens culturais, construídas incessantemente num país de dimensões continentais e variegada formação étnica, que se pretende ver preservada. Desaparece, enfim, o antigo conceito de que os valores culturais a serem preservados eram apenas aqueles das elites sociais, necessariamente consagrados pelo ato de tombamento, como ocorria no direito anterior.15

Logo, nota-se que já não se discute mais se o patrimônio cultural compõem-se

apenas de bens de valor excepcional ou também aqueles de valores cotidianos; se incluem

monumentos individualizados ou em conjunto, se compreendem só a arte erudita ou

também a arte popular; se envolvem somente bens tangíveis ou intangíveis; enfim, de

acordo com o rol exemplificativo disposto no artigo 216 da constituição federal de 1988,

todos esses bens podem ser considerados bens que compõem o patrimônio cultural

brasileiro, desde que sejam portadores e referencia à identidade, a ação, a memória dos

diferentes grupos que formam a sociedade brasileira.

14 Ac: Apelação cível 97.001063-0 Relator: Des. Silveira Lenzi Data da Decisão: 08/1999 – CRICIÚMA. (Destacou-se). 15 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: RT, 2001, p. 202.

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Assim, conclui-se que “todas” as atividades humanas, realizadas individualmente

ou coletivamente estão inclusas na definição legal de patrimônio cultural.

Ante ao exposto, entende-se que o conceito de patrimônio histórico sofreu e, ainda

sofre mudanças, assim como o próprio conceito de História e o conceito de Direito.

Acredita-se, que atualmente devem caminhar juntos, buscando preocupar-se com os

interesses não somente das elites, mas, dos mais variados grupos que compõem a nossa

sociedade, grupos que contribuíram e que certamente contribuem para a formação de uma

“identidade nacional”.

Entretanto evidentemente não é possível preservar todo bem cultural, até porque, o

homem no seu dia-a-dia está criando mais e mais legados ou heranças culturais.

No entanto, também há necessidade de preservação dos legados mais importantes

sob pena de perdermos uma série de bens que compõem o patrimônio cultural. Entretanto,

nesta seara surge um novo problema: determinar quais os bens que deverão ser preservados.

De modo geral podemos afirmar, que ao longo da história a identificação desses

bens se deu de forma muito variada.

Inicialmente, cabia ao governante determinar os bens que integrariam o patrimônio

cultural de seu país, deste modo, por exemplo “foram os reis da Espanha que determinaram,

a seu gosto, a composição do Museu do Prado, nascido a partir das coleções reais. Como o

rei Felipe II não apreciava El Greco, o Prado tem pouquíssimas obras desse genial pintor

(...)”.16

Assim, é possível verificar que neste período da história, citado somente a título

exemplificativo, houve um certo prejuízo para o legado cultural da Espanha, uma vez que

este se limitou ao gosto de seus antigos governantes.

Em seguida, a identificação dos bens que deveriam ser preservados ficou a mercê

de especialistas, que tinham “notório” saber sobre o assunto e que estavam sobre a tutela do

Estado. Apesar de possuírem notório saber sobre o assunto, esses especialistas também não

estavam livres de certos preconceitos, o que levou à exemplo, a destruição da arquitetura

eclética do século XIX no Brasil, uma vez que, “A maioria dos técnicos preservacionistas

eram arquitetos da escola modernista, que só valorizavam as edificações coloniais, sendo

adversários viscerais da arquitetura eclética, qualificada por eles de vazia, bolo de noiva,

16 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, 203.

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sem estilo definido, arquitetura postiça, sem raízes nacionais.”17

Assim, entende-se que esse valor “simplesmente afetivo”, ou seja, a identificação

de determinada comunidade com um bem, independente da classe social, pode demonstrar

o valor cultural deste bem muito mais do que um parecer técnico repleto de erudição. Até

porque, o valor afetivo não deixa de ser um consenso obtido pela própria comunidade.

Enfim, decisão de preservar um bem é um ato de conscientização que certamente se

completa, antes de tudo, com uma informação e uma educação voltada à valorização do

meio ambiente cultural.

Segundo palavras de Lucio Costa: O problema da recuperação e restauração de monumentos, (...) é extremamente complexo. Primeiro, porque depende de técnicos qualificados cuja formação é demorada e difícil, pois requer, além do tirocínio de obras e de familiaridade com os processos construtivos antigos, sensibilidade artística, conhecimentos históricos, acuidade investigadora, capacidade de organização, iniciativa e comando e, ainda,, finalmente, desprendimento. Segundo, porque implica em providências igualmente demoradas, como o inventário histórico-artístico do que existia na região, o estudo da documentação recolhida, o tombamento daquilo que deve ser preservado, a eleição do que mereça restauro prioritário, a apropriação de verbas para esse fim, a escolha de técnicos, o estudo preliminar na base de investigação histórica e das pesquisas in loco, a documentação e registro das fases da obra e, por fim, a manutenção e o destino do bem recuperado (...)18

Atualmente, percebe-se que, paradoxalmente a própria política de preservação não

consegue preservar o patrimônio cultural devido à falta de recursos para manutenção e

restauração desses bens. Conforme bem se verifica na decisão da justiça do Estado de Santa

Catarina, que segue abaixo: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - PATRIMÔNIO HISTÓRICO - DEMOLIÇÃO Não se deve apagar a memória do passado. Todavia, não se há como impedir a demolição de prédio que encontra-se em ruínas e prestes a desabar, inviabilizada que está a sua reconstrução.19

Infelizmente as instituições competentes não dispõem de recursos para patrocinar

a reforma ou restauração desses bens. Além disso, percebe-se como impasse, o

17 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, 203. 18 Anexo do compromisso de Brasília – 1º encontro dos governadores de Estado, secretários estaduais da área cultural, prefeitos de municípios interessados, presidentes e representantes de instituições culturais – Brasília, abril/1970. 19 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Agravo de Instrumento nº. 97.007600-2. Relator Desembargador Eder Graf. Data da decisão: 25.02.98.

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desconhecimento por parte da população, principalmente de proprietários de bens culturais,

acerca da grande importância da preservação do patrimônio cultural.

Há pessoas que entendem, por exemplo, que o tombamento ao invés de proteger

serve para destruir o bem e outras, relacionam o tombamento diretamente com a

desapropriação, ou alienação. De fato na prática, ainda, não são totalmente eficazes os

instrumentos jurídicos utilizados na preservação do patrimônio cultural, porém se faz

necessário entender que sua presença é fundamental para a preservação do legado cultural.

Infelizmente existem problemas, afinal o próprio ordenamento jurídico possui

suas falhas, suas “lacunas”, entretanto o importante é pensarmos em alternativas para

preenchermos estas lacunas, fazendo com que a legislação que regulamenta a proteção de

nossos bens culturais, se torne de fato eficaz. E, ainda, criarmos alternativas que não

dependam apenas das autoridades governamentais, para preservarmos esses bens afinal,

também somos responsáveis por sua preservação.

Recentemente, algumas correntes científicas discutem acerca do turismo cultural,

como uma das alternativas capaz de contribuir significativamente para a preservação desses

bens. Ou seja, acredita-se na união do turismo ao Patrimônio cultural. Nas palavras de

Margarita Barreto7, é necessário planejar, um turismo cultural. Assim, a idéia então, “não é

manter o patrimônio para lucrar com ele, mas lucrar com ele para conseguir mantê-lo”.

Desta forma, longe de seguir um pensamento utilitarista, entende-se que o turismo

cultural caracteriza-se por uma política voltada para a lucratividade econômica é claro, mas

principalmente voltada para importância da proteção e preservação do “legado cultural”,

como um assunto de interesse coletivo e, portanto, social. Levando-se, ainda, em

consideração que, para preservar, não adianta apenas deixar como está. Preservar é manter

viva a memória e principalmente garantir a compreensão dela.

Eliane Veras da Veiga define que: O turismo e outras formas de exploração do Patrimônio Cultural devem ser dosados, controlados e limitados ao que é benéfico ao patrimônio e contribua para sua longevidade e manutenção de suas características originais. Todo bem cultural que perde sua legibilidade corre o risco de se converter em algo que se distancia do que se buscava originalmente.8

7 BARRETO, Margarita. Turismo e Legado Cultural, p. 17. 8 VEIGA, Eliane veras da. et al. A Arquitetura do nosso tempo e a ameaça do pastiche. Revista IAB, junho2000. p.8

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Para a autora, é dever da população repudiar qualquer intervenção que, falseie um

cenário, ou que imite um modelo de passado, que destrua nosso patrimônio, que

desconfigure nossos valores históricos. Enfim, todo ato que ameace a integridade dos bens

patrimoniais.

Recentemente algumas correntes de estudos sobre o planejamento do turismo,

vêm, merecendo destaque. Tratam de questões turísticas que estão envolvidas ao “legado

cultural”. De forma geral, acredita-se que, há necessidade de novas propostas, mais

“específicas” que provoquem impactos diferentes no ambiente humano.

Podemos citar como exemplo, a proposta que surge para turistas diferenciados, a

qual Margarita Barreto10 denomina de “turismo de segmento ou turismo de interesse

específico”. Para a autora, esta forma de turismo, busca pessoas que procuram um contato

com a população local, fazendo questão de respeitar seu modo de vida, suas origens, sua

memória e sua identidade. “São consumidores de um estado de espírito e não de coisas

materiais”. Mais adiante, afirma ainda, que: (...) pode se dizer que uma das propostas de turismo de interesse específico que pode ser praticada por um grande número de pessoas sem chegar à massificação é a do turismo baseado no legado cultural. Os apreciadores desse produto são, via de regra, os turistas agrupados na denominação não institucionalizados. Seu interesse nesse tipo de turismo não depende de sua situação socioeconômica, mas sim, de sua formação, de sua escolaridade e de seu histórico cultural. São, em sua maioria, consumidores de serviços, de paisagens urbanas, de como cidades, de encenações, de cultura não material, diferentemente do turista de massa, comprador de souvenirs. Esses turistas levam para casa mais a lembrança do momento vivido do que uma peça para colocar na estante da sala para que os amigos vejam a “prova concreta” da viagem, que proporcionará o desejado status social.11

Neste sentido, entende-se que ao mesmo tempo em que se dá ao patrimônio

cultural uma “utilidade”, no sentido de que as pessoas possam realmente ter contato

histórico-cultural com a memória social de um determinado local, de uma determinada

população, também se abre novas perspectivas para a pratica de um turismo que não seja

elitista, ou seja, um turismo que ao invés de privilégio de alguns, torne um direito de

qualquer cidadão.

Ao contrário do que defendem alguns estudiosos, de que o turismo representa uma

ameaça aos bens culturais, o que se pretende aqui é abrir reflexões e caminhos para o 10 BARRETO, Margarita. Turismo e Legado Cultural, p. 26. 11 BARRETO, Margarita. Turismo e Legado Cultural, p.27.

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turismo, defendendo ser ele um forte aliado do patrimônio cultural. Assim, o “legado

cultural” pode e deve ser tratado como um produto do mercado turístico, e o turismo, por

sua vez, será incumbido de manter a identidade de populações.

O patrimônio então, deve ser preservado, melhorado e também usado, no sentido

de que deve ser compartilhado. Não se trata de uma transformação do patrimônio em bem

de consumo, mas ele deve ser “vendido” por sua valiosidade histórica e sua identidade

local.

Se observarmos os impactos ocorridos na sociedade ao longo desses anos,

perceberemos que o turismo e o interesse econômico desenfreado têm, de certa forma,

explorado drasticamente nossos recursos naturais e culturais de forma egoísta, mais

lucrativa possível, o que certamente ocasiona a degradação e o desaparecimento de vários

lugares, paisagens, referenciais ligados com a historicidade de um determinado local. De

certa forma, podemos dizer que o turismo encontrado atualmente é o que “reduz os povos e

sua cultura a objetos de consumo e ocasiona desajustes na sociedade receptora”. 12

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preservação do patrimônio cultural nacional possui uma série de polêmicas que

se referem à classificação dos bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro e as

falhas nas políticas preservacionistas, uma vez que há falta de participação popular no

processo de elaboração das normas jurídicas, conforme restou demonstrado. Ou seja,

percebe-se que a preservação não enfrenta apenas um problema complexo, mas vários

problemas. E, é exatamente essa discussão que aqui se buscou. Porque a preservação de

bens culturais enfrenta esses problemas? Qual o papel do Estado frente a essa questão?

Quais os melhores caminhos para solucioná-los?

Nota-se que a legislação acerca deste assunto sofreu uma série de alterações, sendo

considerada hodiernamente, por grande parte da doutrina jurídica brasileira, como

satisfatória. Entretanto, na prática evidencia-se um total descaso do Poder Público com os

12 BARRETO, Margarita. Turismo e Legado Cultural , p.30.

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bens de caráter cultural e verifica-se também que este mesmo Poder não dispõe, muitas

vezes, de recursos financeiros para manutenção e recuperação desses bens.

Aliado a esses problemas, há ainda um outro: a falta de informação da população

sobre a importância de se preservar o patrimônio cultural, sob pena da perda de sua

identidade e de sua cultura .

É importante deixar claro que, pensar o “legado cultural” de uma forma

romantizada, não é o objetivo. Mas sim, tratá-lo de modo científico para que se possa, desta

forma, contribuir com a sociedade. Para isso são necessários investimentos. Portanto,

acredita-se que, deve o patrimônio cultural estar no mesmo patamar da educação, saúde,

esporte e segurança, por exemplo. A população deve ser educada para aprender a respeitar,

valorizar e preservar o patrimônio cultural.

Há que se dar então, um sentido para tal preservação e não preservar só por

preservar e deixar o patrimônio cultural esquecido como “ruína do passado”. É necessário ir

mais além e colocar em pratica um turismo histórico e cultural sustentável. Não se trata de

uma negação do turismo, mas mudar a sua concepção. Em lugar de uma visão

exclusivamente capitalista, deve surgir uma visão associada a programas culturais, ações

sociais, educacionais e comunitárias.

Logo, a idéia não é consumir a cultura como puro entretenimento, mas sim,

permitir o acesso dos cidadãos a qualquer bem cultural. É necessário então, transformar

essa cultura banalizada, submetida às leis de mercado e de consumo fácil e desconstruir

essa ilusão de que a cultura vai bem em nosso país e em nossa cidade.

Portanto, acredita-se, por exemplo, que a prática de um turismo cultural bem

planejado é apenas uma das alternativas que pode alavancar a produção cultural e, ao fazê-

lo, torna-se um agente de desenvolvimento e preservação de todo um patrimônio cultural,

contribuindo para revitalizar espaços, formar novos “consumidores culturais”, dinamizar

mercados e definir estilos e identidades de povos, fazendo a história tornar-se parte da

memória de uma determinada cidade.

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Pan-americano de Geografia e História, 1952.

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