poetas do barroco - século xvii

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H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA S é c u l o XVII SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS N.º 28 FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

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H I S T Ó R I AE A N T O L O G I ADA L I T E R AT U R AP O R T U G U E S A

S é c u l o

XVII

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS

N.º 28

FUNDAÇÃOCALOUSTE

GULBENKIAN

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HALP N.º 27

MISCELÂNEA (Autos. Tragédia. Diálogo.Hagiografia. Sentenças.)

Professores/Investigadores

Américo Costa RamalhoCristina NobreLuciana Stegagno-PicchioNair da Nazaré Castro SoaresRaul M. Rosado Fernandes

Agradecimentos

Arquivo Histórico UltramarinoBertrand EditoresEditora FigueirinhasImprensa Nacional Casa da MoedaMagno Edições

HALP N.º 28

Professores/Investigadores

Margarida Vieira MendesMaria Lucília Gonçalves PiresVitor Manuel Aguiar e Silva

Agradecimentos

Fundação Luís Miguel NavaEdições 70Editorial PresençaVerbo Editora

Ilustração Capa:Nicolas Maes (Dutch, 1632-1693): An Old Woman Dozingover a Book. c. 1655. Canvas 82 x 67 cm. Andrew W. MellonCollection

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste GulbenkianServiço de Educação e BolsasAv. de Berna 45A – 1067-001 LisboaAutora: Isabel Allegro de MagalhãesConcepção Gráfica de António Paulo GamaComposição, impressão e acabamentoG.C. Gráfica de Coimbra, Lda.Tiragem de 11.000 exemplaresDistribuição gratuitaDepósito Legal n.º 206390/04ISSN 1645-5169Série HALP n.º 28 – Setembro 2004

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S É C U L O X V I IPOETAS DO PERÍODOB A R R O C O

(I)

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ÍndiceNota Prévia ..................................................... 7

Introduções. Estudos Breves.

“A distinção Maneirismo e Barroco”Vítor Manuel Aguiar e Silva ............................. 13

“Maneirismo e barroquismo na poesia portuguesa”Jorge de Sena ................................................... 14

“Cultismo e anticultismo na lírica barroca”Vítor M. Aguiar e Silva .................................... 17

“Poesia lírica do período barroco”Maria Lucília Gonçalves Pires .......................... 23

“Pastoral e éclogas de Rodrigues Lobo”Luís Miguel Nava ............................................ 31

“A poesia de Sóror Violante do Céu”Margarida Vieira Mendes ................................. 33

Textos Literários:

Francisco Rodrigues Lobo (1573?- 1621)

Éclogas. Écloga III ............................................. 41

Pastoral: Cantiga, Sonetos, Tercetos, Redondilha ... 46

Manuel Faria e Sousa (1590 - 1649)Fuente de Aganipe ou Rimas Várias: Écloga IX .... 53

Manuel da Veiga TagarroLaura de Anfriso: três poemas .............................. 56

Paulo Gonçalves de AndradeVárias Poesias. I-III, V-VII, IX ........................... 59

D. Tomás de Noronha ( ? – 1651)Poesias Inéditas. Fénix Renascida, V: Canções,Soneto, Endechas, outros poemas ..................... 61

Sóror Violante do Céu (1601-1693)Rimas Várias: Sonetos, Canções, Décimas,Romances ........................................................ 67Parnaso Lusitano: Romances, outros poemas,Vilancico ......................................................... 73

António Barbosa Bacelar (1610-1663)Fénix Renascida, I, II, IV, V. “Cancioneiros Manuscritos”:Sonetos, Décima, Romance pastoril, Glosas ..... 74

António Serrão de Crasto (1610-1685?)Os Ratos da Inquisição ................................... 82“Cancioneiros Manuscritos”: Décimas,Romance, outros poemas ................................. 85

Bibliografia .................................................... 89

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Nota PréviaCom o presente Boletim, começa a parte destaHistória e Antologia da Literatura Portuguesa referenteao século XVII. Este volume e o seguinte (números28 e 2 9) formam uma unidade – são inteiramentededicados à poesia seiscentista (incluindo aindaalguns poetas maneiristas, Francisco RodriguesLobo, por exemplo, e os poetas barrocos):Uma selecção de cerca de duzentos poemas, daautoria de vinte e quatro poetas.A poesia portuguesa deste período, apesar dotrabalho significativo de edição de obras de alguns,de entre os muitíssimos, poetas que escreveramdurante o século XVII, está ainda hoje em grandeparte inacessível ou, pelo menos, é de difícil acesso.Por um lado, as edições de obras individuais, àexcepção de um ou outro caso, datam do séculoXVII e sobretudo do XVIII: preciosidades biblio-gráficas protegidas, naturalmente (mas nemsempre), pelas bibliotecas que as possuem.Por outro lado, a maior parte dos poetas tem assuas obras apresentadas apenas em antologias,impressas ou manuscritas, datadas também dessesséculos. E são essas antologias que constituem asprincipais fontes da poesia portuguesa do períodobarroco. (Sobre essas recolhas, ver aqui, na parteintrodutória, o estudo de M.ª Lucília GonçalvesPires, p. 26-30.)De entre essas colectâneas antigas, servi-medirectamente da Fénix Renascida ou Obras dosMelhores Engenhos Portugueses (também outras aquifiguram, só que citadas em segunda mão). A FénixRenascida, em cinco volumes, com um total de2186 páginas onde aparecem cerca de quarentapoetas, alguns deles anónimos ou assim ditos, tema primeira edição entre 1716-1728. Esse texto, coma data da segunda edição, em 1746, está agoradisponível on-line: http://purl.pt/261. No entanto,

dado que, aí, a identificação da autoria de muitospoemas nem sempre é fidedigna, como já foimostrado por alguns estudiosos do Barrocoportuguês, nem assim a tarefa de leitura ficafacilitado.Fénix Renascida é pois um cancioneiro, elaboradopor Mathias Pereira da Sylva e por si formalmenteendereçado ao poeta D. Francisco de Portugal. Nadedicatória, o compilador expressa o intento doseu trabalho nestes termos: “As obras dos melhoresengenhos Portuguezes [...] com venturoso acerto aomelhor de Portugal”, de modo a que não mais“deix[em] sepultados no esquecimento os que mereciaõos mayores applausos da fama”. Curiosamente actual,o seu aviso aos leitores acrescenta o seguinte:

Naõ he novo nos Portuguezes fazer pouca estimaçaõ desuas obras com que puderaõ adquirir novo credito e maiscrecida gloria.

Este Cancioneiro é ainda precedido por uma“Introdução Poética”, o que é de salientar, dada aescassez de textos teóricos portugueses sobre aestética barroca (diferentemente do que aconteceem vários países europeus, como a Espanha e aItália, por exemplo).Ao longo do século XX, mas ainda antes e jádepois, algumas edições monográficas foramaparecendo. Vários estudiosos do Barroco têmassim contribuído significativamente para um maisalargado conhecimento da nossa poesia desseperíodo. E, para além da edição das obras de poetassingulares, foram também organizadas váriasantologias, individuais e colectivas. Entre outrosnomes, os de Mendes dos Remédios (os poemasde D. Tomás de Noronha, 1899), Maria EmaTarracha (uma antologia de diversos poetas,destinada a professores e alunos do Ensino Secun-dário, de), Ana Hatherly (“Poesia Visual”, 1993; APreciosa, de Sóror Maria do Céu, de que fazemparte vários poemas, 1990; dois poemas deJerónimo Baía, 1992 e 1997), Maria LucíliaGonçalves Pires (uma antologia, com dezassete

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poetas, quase todos por si editados, 1985; “Prima-vera”, de Francisco Rodrigues Lobo, onde hánumerosos poemas, 2003), Luís Miguel Nava (an-tologia de poemas da “Pastoral”, de RodriguesLobo, 1985), Gilberto Mendonça Teles (poemasde Gregório de Matos, 1989), Margarida VieiraMendes (Rimas Várias, de Sóror Violante do Céu,1994), etc. No entanto, muito está ainda por fazer.Nestes dois volumes, pretendi reunir a diversidadepossível de poetas e seus poemas. Mas – porque oespaço desta publicação, embora algo elástico, temlimites – muitos dos que também o mereceriamnão estão aqui contemplados. A escolha foi pessoale por isso susceptível de críticas ou discordâncias,naturalmente sempre com alguma razão.

Antes de mais, um aviso quanto a uma ausênciaparcial nesta publicação; a de D. Francisco Manuelde Melo. Dado que um Boletim inteiro (o n.° 30)vai ser dedicado à imensa Obra do Autor, não teriasentido que aí não figurasse também a poesia. Noentanto, talvez fosse igualmente descabido o seunome não figurar de todo nestas colectâneas dapoesia seiscentista. Por isso decidi incluir aqui,apenas a título simbólico, dois poemas seus.

Já que muitos poetas escreveram quase indiferen-temente em português e em castelhano, a selecçãode textos não teve em consideração a língua:figuram indiscriminadamente poemas em ambasas línguas, como se sabe, usados na literaturaportuguesa da época. (Até esses dois poemas de D.Francisco Manuel de Melo agora apresentados sãoescritos em castelhano. Como se sabe, o Poetaescreveu metade da sua poesia em castelhano emetade em português.)

Procurei trazer à leitura não só alguns dos poemasque me parecem mais interessantes e significati-vos, como também alguns daqueles que estão talvezmenos acessíveis. Vêm quer das obras individuaispublicadas quer dos volumes da Fénix Renascida.

(Nesses casos, sou responsável pela modernizaçãoparcial da grafia, de modo a facilitar a leitura.)Quando havia poemas modernamente editados, éa partir dessas edições que eles foram transcritos.Em vários casos, porém, limitei-me a escolher apartir de antologias mais ou menos recentementepublicadas. A razão disso prende-se com o factode uma actualização da grafia representar meticu-loso e longo trabalho, e a publicação destes bole-tins é trimestral... (Isto para já não falar de outrasdificuldades, como a de, para qualquer gráfica, nãoser simples reproduzir um texto em grafia antiga,inexistente nos computadores, bem como a de nãoser fácil o rigor nas revisões de provas.)

Em todos os casos, as fontes – directas e indirectas– estão sinalizadas a seguir à transcrição de cadapoema.As antologias e as edições recentes de que dispussão as seguintes:Poetas do Período Barroco de Maria Lucília GonçalvesPires (para alguns, ou todos, os poemas de algunsdos poetas);– Poesia de Francisco Rodrigues Lobo, de Luís MiguelNova (para todos os poemas);– Rimas Várias, de Sóror Violante do Céu – ediçãode Margarida Vieira Mendes (para todos os poemasdeste livro);– Se Souberas Falar também Falaras – a substancialantologia da poesia de Gregório de Matos, deGilberto Mendonça Teles (para todos os poemas);– Edições de Ana Hatherly, dos poemas incluídosem A Preciosa, de Sóror Maria do Céu e de doislongos poemas de Jerónimo Baía.Assim, no primeiro destes volumes, figuramsessenta e nove poemas, ou excertos de alguns dosmais extensos, de oito poetas:Francisco Rodrigues Lobo, Manuel Faria e Sousa,Manuel Veiga Tagarro, Paulo Gonçalves de Andrade,D. Tomás de Noronha, Sóror Violante do Céu,António Barbosa Bacelar, António Serrão deCastro.

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No segundo volume, há dezasseis poetas, cada umcom um número diferente de poemas, num totalde cento e vinte e seis poemas, ou excertos depoemas mais longos. São estes os poetas:D. Francisco Manuel de Melo. Frei Jerónimo Baía,André Nunes da Silva, António da Fonseca Soares(Frei António das Chagas), Gregório de Matos,Manuel Botelho de Oliveira, Sóror Maria do Céu,Tomás Pinto Brandão, Francisco de Vasconcelos(Coutinho), Jacinto Freire de Andrade, Franciscode Pina e Melo, Leonarda da Encarnação, FranciscoDias de Gusmão, Bernarda Ferreira (de Lacerda),Frei Tomás da Cunha, João de Torres Pereira; sãoapresentados dois poemas-visuais anónimos.

A ordenação dos poetas segue uma cronologia as-cendente a partir das suas datas de nascimento, sóque nem sempre esses dados têm referência fiável.

Como é habitual nestas publicações, cada boletimcomeça com breves textos críticos ou teóricos,apresentados em Introduções à leitura dos poemase seus “arredores”.No final, uma Bibliografia Sumária. Os estudosde carácter geral e a indicação bibliográfica sobre apoesia e o período barrocos, destinados aos doisboletins, comparecem só neste primeiro número.

Incluo um agradecimento muito especial a MariaLucília Gonçalves Pires, pela sua disponibilidadepara comigo resolver alguns problemas surgidosao longo deste trabalho, bem como pelas infor-mações, sempre tão competentes e úteis, que mefoi dando.Uma palavra também para Ana Hatherly que pôsà minha disposição um dos textos por si editados,e ainda não catalogado na Biblioteca Nacional.

Lisboa, Julho de 2004

ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES

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I N T R O D U Ç Õ E S

ESTUDOS BREVES

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VÍTOR MANUEL AGUIAR E SILVA*

A distinçãoManeirismoe Barroco(excerto)

* In História Crítica da Literatura Portuguesa Dir. Carlos Reis.3.º vol. Lisboa, p. 49-51.

Alguns autores concebem o maneirismo não comoum estilo perfeitamente autónomo e desenvolvido,mas como uma espécie de ponte entre oRenascimento e o barroco, como um estilo detransição, por conseguinte, onde se entrelaçam asmanifestações derradeiras do estilo renascentistatardio e os alvores do estilo barroco. Assim pensa,por exemplo, na esteira de Carl J. Friedrich, umestudioso como Helmut Hatzfeld e assimpropende também a crer Marcel Raymond, queidentifica «premier baroque» e «maniérisme».Outros historiadores e críticos, porém, consideramo maneirismo e o barroco como dois estilosautênticos, com a sua autonomia e a sua individu-alidade bem definidas, opondo-se abertamente empontos fundamentais, embora apresentandotambém afinidades de vária ordem. É esta adoutrina defendida, entre outros, por Georg Weise,Wylie Sypller, Arnold Hauser e Rocco Montano.As nossas leituras e as nossas reflexões levam-nosa apoiar convictamente a última solução. Comefeito, e como ficou já esclarecido, o maneirismodiferencia-se inequivocamente do Renascimento,quer sob o ponto de vista temático-ideológico,quer sob o ponto de vista formal; por outro lado,

de tal ordem são as suas divergências em relaçãoao barroco, que é inconfundível com este estilo.Quais os elementos que assim permitem distinguiro maneirismo e o barroco? O barroco é profun-damente sensorial e naturalista, apela gozosamentepara as sensações fruídas na variedade incessantedo mundo físico, ao passo que o maneirismo, sobo domínio do disegno interiore, da Idea, se distanciada realidade física e do mundo sensór io,preocupado com problemas filosófico-morais, comfantasmas interiores e com complexidades esubtilezas estilísticas; o barroco é uma arte acen-tuadamente realista e popular, animada de umpoderoso ímpeto vital, comprazendo-se na sátiradesbocada e galhofeira, dissolvendo deli-beradamente a tradição poética petrarquista, aopasso que o maneirismo é uma arte de élites, avessaao sentimento «democrático» que anima o barroco,anti-realista, impregnada de um importantesubstrato preciosista e cortês, representadosobretudo pelo filão petrarquista; o barrococaracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pelaproliferação dos elementos decorativos, pelo sensoda magnificência que se revela em todas as suasmanifestações, tanto nas festas de corte como nascer imónias fúnebres, contrar iamente aomaneirismo, mais sóbrio e mais frio, introspectivoe cerebral, dilacerado por contradições insolúveis;o barroco tende frequentemente para o ludismoe o divertimento, enquanto o maneirismo aparececonturbado por um pathos e uma melancolia deraízes bem fundas.Estas diferenças substanciais não impedem que,como atrás observámos, muitos elementostemáticos e formais tenham transitado domaneir ismo para o bar roco, podendo omaneirismo aparecer, sob este ponto de vista,como uma antecipação parcial do barroco. Entreesses elementos, apontaremos: os temas do enganoe do desengano da vida e da transitoriedade dascoisas humanas; o gosto dos contrastes, a pro-pensão para o surpreendente, a predilecção pela

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agudeza e pelos concetti, pelas metáforas e pelascomplicações verbais.Todavia, é necessário observar que estes elemen-tos de procedência maneirista, quando integradosno estilo barroco, apresentam um valor diferente,um timbre e uma ressonância distintos, que reve-lam inequivocamente que o sentimento vital quese comunica é já outro. Por exemplo, o tema dailusão e da efemeridade da vida adquire na poesiamaneirista uma expressão pungente e agónica,reflexo de profunda turbação interior, ao passo quena poesia barroca o mesmo tema se corporizanuma expressão mais exteriorista, não raro teatrale grandiloquente, numa linguagem saturada deelementos sensoriais, denunciadora de um estadode espírito e de uma visão do mundo bemdiferentes dos do maneirismo. Um outro exemploainda, posto em relevo e analisado por Georg Weise:tanto o maneirismo como o barroco oferecemum pronunciado gosto pela metáfora, masenquanto a metáfora tipicamente maneirista,encerrada na rede dos convencionalismospetrarquistas, apresenta um carácter cerebral e abs-tracto, a metáfora barroca «riveste un carattere finqui sconosciuto di immediatezza e di concretezzarealistica basato su un più vivo contatto col mondocircostante e su una nuova ispirazione sensualistica»,comunicando-se portanto através dela uma expe-riência naturalista e sensorial que está muitodistante da poética do maneirismo.

[...]Na literatura portuguesa, e em especial na poesia,maneir istas são pr imacialmente Camões, oSoropita que foi o primeiro a editar-lhe as «rimas»,Vasco Mouzinho de Quevedo, Manuel da VeigaTagarro, Baltasar Estaço, Francisco de Andrade,Jerónimo Corte-Real, Luís Pereira Brandão,Fernão Ivares do Oriente, Pero da Costa Perestrelo,Elói de Sá Sotto Maior, Diogo Bernardes, AndréFalcão de Resende, Fr. Bernardo de Brito,Rodrigues Lobo, Fr. Agostinho da Cruz. E. D.Francisco Manuel de Melo, amigo de Quevedo,será, em pleno barroquismo de que é alto expoente,o último dos maneiristas também.Barrocos são Francisco de Portugal, Violante doCéu, Madalena da Glória, António Álvares Soares,Brás Garcia de Mascarenhas, Botelho de Carvalho,

JORGE DE SENA*

Maneirismoe barroquismona poesiaportuguesados séculosXVI e XVII(excerto)

* In Luzo-Brazilian Review II (2), 1965. Apud História Críticada Literatura Portuguesa, 3.º vol., p. 39-43.

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Jacinto Freire de Andrade, Manuel de Gallegos,Paulo Gonçalves de Andrade, Jerónimo Baía,António Barbosa Bacelar, Fr. António das Chagas,Botelho de Oliveira, Gregório de Matos, e muitosoutros – inéditos ou anónimos – até Francisco dePina e Melo. [...] Mas a problemática de distin-guir maneiristas e barrocos depende de toda umadescoberta e revisão que está por fazer, e tem deser feita à luz deste espírito.O maneirismo literário não foi, até hoje, distin-guido do barroquismo que lhe sucede. E este, dadaa deficiente cultura italiana ou anglo-saxónica (ou,por incrível que pareça, até actualizadamentefrancesa, já que se ignora a importância esignificado de continuadores da «Pléiade», comoas personalidades de Maurice Scève ou de LouiseLabbé e tantos outros «pré-clássicos» franceses...)da maior parte da nossa crítica, tem sidocaracterizado em termos absorventes de Góngora,hipertrofia crítica para que os estudos hispânicosnão serão por certo o melhor dos correctivos.Em 1948, oito anos antes de Wylie Sypher ampliarà literatura os resultados das grandes investigaçõesdeterminadoras e reabilitadoras do maneirismoplástico, eu chamara a atenção para o maneirismode Camões. Que Camões se distinguia, em muito,dos seus antecessores e daqueles seus contempo-râneos tidos, como ele, por renascentistas, foisempre um dos cavalos de batalha da críticacamoniana. E atribui-se largamente ao géniopeculiar de Camões aquilo em que esse génioreflectia uma nova visão do mundo e um novogosto. E não se reparou nunca no sentido maneiristado curioso fenómeno que foi o de confundir-secom a obra lírica de Camões grande parte daprodução de poetas da sua geração ou até degerações posteriores: confusão possível não pelamedida em que esses poetas «camonizavam», maspela identidade de cosmovisão e de métodocriador que os irmanava a Camões. [...]Quanto aos recursos formais – tipos de versificação,plur imembração do verso, correlatividade,

hipérboles, latinizações hiperbáticas da frase,alegor ismo, etc. –, a poesia barroca apenasenriquece e autonomiza o que os maneiristashaviam produzido. Porém essa autonomia reveste--se de aspectos extremamente peculiares, graças àinvenção do objecto estético, significativo por simesmo. Típica do maneirismo, mesmo quandoconceptista, ou quando utiliza antiteticamente (ounão) a plurimembração, é a fluência, a fluidez, deuma linguagem extremamente rítmica que nãorecua, verso a verso, ante um enjambement dosignificado, que precisamente cultiva. Ao arrepiodisto que, por extremamente estilizado, levou acrítica a considerar dessorados, amaneirados eepigonais aqueles que podemos julgar por«maneiristas», o barroquismo caracteriza-se poruma firmeza escultórica do verso, uma segurançaconsonântica, em que a plur imembraçãorepresenta não instantes sucessivos da aproximaçãoverbal, mas uma simultaneidade paralelística doepíteto variável ao infinito por sugestão metafórica.Aos maneiristas, como a linguagem, o tempo foge--lhes; e por isso a morte, ou, no lugar dela, osanseios místicos, ocupará tão grande papel na suatemática. Para o mecanicismo barroco, o tempo éapenas uma dimensão mais do mundo físico, oqual não depende geometricamente dele; e porisso a morte, ou os anseios místicos, representamum papel apenas de memento final, o fim de quese não escapa, mas de que não há que temer: todasas religiões do barroco – católico ou protestante –oferecem, a preços módicos de estruturaornamental, um «paradise regained».É tudo isto que separa, na poesia portuguesa, alinhagem que vai de Camões a Rodrigues Lobo eem metástase a Francisco Manuel de Melo (queainda medita «Sobre os rios» por forma a não des-merecer do grande antecessor), da linhagemseguinte, que vai de Francisco de Portugal aFrancisco de Pina e Melo. Cronologicamente, os«maneiristas» são a gente que nasce entre 1525e l580 e que, por volta de 1670, já morreu toda.

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Os barroquizantes nascem nos oitenta anosseguintes; mas os de Setecentos como o conde daEriceira ou Pina e Melo, estão já espiritualmentemais próximos da França, que então absorve oespírito de Locke, que da Espanha de Góngora ouda Itália de Marino.O carácter de jogo profundo que o barroquismopossui permitiu uma multiplicação de trivialidadese superficialidades pomposas, extremamentetraiçoeira para a compreensão dele. O barroquismobrincou muito, e até consigo próprio, já que assátiras contra o gongorismo são numerosas epartem de muitos que o cultivavam. Isto fez comque se não entendesse a duplicidade possível doartista que tem em seu poder a criação de umobjecto estético, e se achasse contraditório, ouapenas justa diatribe contra os exageros, o que eraautonomia irónica ante a expressão. A ironia foraapanágio dos grandes maneiristas, uma ironiadolorosa de quem a sente como contradição vitale condição única de superação espiritual e estética.Mas, para os barrocos, a ironia não era isto, e sim apossibilidade de contemplação autónoma dacriação artística; não a alegria amarga de ser-seum grande homem, qual fora a de Camões ouMiguel Ângelo, ou o orgulho de Bruno ante apluralidade dos mundos, mas o gosto tranquilo doarquitecto e do escultor ante a submissão da suamatér ia, perante a qual ele própr io não éresponsável. [...]Para a cultura portuguesa, basta-nos conceituarassim: Renascimento, 1400-1550; Maneirismo,1550-1620; Barroco, 1620-1750; Rococó, 1750-1820. Se todos estes períodos têm sido diversa-mente mal compreendidos, os dois séculos quevão do reinado de D. João III até ao de D. João Vinclusive o têm sido particularmente pior. Ostextos e os autores foram sempre vítimas deanátemas sem apelo, porque os textos andam iné-ditos ou esquecidos, e os autores andam confun-didos ou anónimos. É muito fácil condenar-sequem não tem rosto nem voz. No entanto, o século

XVII, ou seja, o maneirismo e o barroco emsentido estrito, contém algumas das obras maisbelas ou mais importantes da poesia portuguesa.[...]

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[...]A linguagem da poesia lírica barroca oferece umavariedade e uma riqueza que só poderão sercorrectamente avaliadas quando estudos sistemá-ticos de lexicologia nos esclarecerem acerca dodesenvolvimento da língua literária portuguesadurante o século XVI. Actualmente, torna-se im-possível ao historiador e crítico literário realizarqualquer investigação ampla e documentada sobreaquela linguagem poética, porque os linguistasainda não lhe proporcionaram os indispensáveisinstrumentos de trabalho, a começar por umdicionário que, rigorosamente, registe, documentee analise a entrada de vocábulos na línguaportuguesa.Como se poderá estudar com exactidão ainfluência do léxico gongorino sobre a linguagemda nossa lírica barroca, sem se conhecer previa-mente o léxico da nossa poesia quinhentista? Eque percentagem desse léxico gongorino, tão de-vedor a um poeta maneirista como Herrera, nãose encontra já presente na obra de um autor comoCamões? No índice de cultismos do Polifemo queAntónio Vilanova apresenta no final da suaeruditíssima dissertação sobre as fontes e os temas

deste poema de Góngora, registam-se quatrocentose oitenta e três vocábulos, dos quais, segundo osnossos cálculos, duzentos e vinte e nove seencontram inventariados no Índice analítico dovocabulário de Os Lusíadas, organizado por um grupode estudiosos brasileiros. Tão importante, porém,como esta percentagem de cultismos de OsLusíadas que figuram no léxico do Polifemo, será apercentagem dos cultismos camonianos que,ausentes desta obra gongorina, se encontrampresentes, e desempenhando função de relevo, nalinguagem poética do século XVII. E temos razõespara crer que a inventariação do léxico de poetascomo André Falcão de Resende, Luís PereiraBrandão, Vasco Mousinho de QuevedoCastelbranco, Fernão Álvares do Oriente e Elóide Sá Sotto Maior há-de proporcionar surpresasaos estudiosos da nossa poesia seiscentista.A linguagem culta, saturada de latinismos ehelenismos, de hipérbatos, alusões, perífrases ehipérboles, erudita, ostentadora e obscura,caracteriza grande parte da poesia lírica barroca,manifestando-se em sonetos, canções, silvas, oitavas,idílios, etc. Para a análise destes processos estilísticostipicamente barrocos, que complicam e adensama frase, que evitam a nomeação directa do real,que intensificam os significados até à desmesura eao sublime, reenviamos de novo à já tantas vezesmencionada obra de Ares Montes.É sabido, porém, que, à semelhança do que ocorreuna literatura espanhola, também entre nós esteestilo cultista foi objecto de críticas, de caricaturase de ácidos remoques. Já tivemos oportunidade,no capítulo III, de documentar e discutir algumasmanifestações deste espírito anticultista, quedenuncia a obscuridade e o pedantismo dalinguagem dos discípulos de Góngora e quepropõe, implícita ou explicitamente, uma poesiade fácil entendimento e capaz de nomear clara edirectamente o real quotidiano. Diversostestemunhos poderíamos acrescentar aos jáaduzidos naquele capítulo, mas limitar-nos-emosa referir e comentar apenas mais dois.

Cultismo eanticultismo nalírica barroca(excerto)

VITOR M. AGUIAR E SILVA*

* In Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra:Centro de Estudos Românicos, 1971, p. 474-489.

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O primeiro texto pertence à sátira de SimãoTorresão Coelho, mencionada no capítulo anterior,sobre os vícios e os desmandos da corte de Madrid,constituindo uma espécie de prólogo à sátirapropriamente dita:

Pedisme que uos de nouasdo que quá uay, e lá uay,mas por uida de meu pay,que hade ser a carta em trouas.Porem com tal condiçãoque não seiais tão madraçoque espereis por Garcilaço,por Petrarcha, ou Boscão.Que minha muza não andano canto dos mais sotis,quá imito as trouas uisdo nosso Sá, e Miranda.Mas em regras uerdadeirasa diuina poeziahade ser mais profeciaque trocados para freiras.Não me dou com o pensamentoe hus Poetas serafins,que elles calção borzeguins,eu com socos me contento.E por ultima rezãopois seos cantos não lhe enuejão,com canto de orgão esteião,que eu me estou com o chão.

Este texto é interessante sob mais de um aspecto.Claramente se distinguem nele duas espécies depoesia: uma, feita de subtilezas verbais e vagasideações – a poesia dos Poetas serafins; outra, singelae até rústica, sem os requintes e as polidashabilidades do cortesão – e, por isso, TorresãoCoelho opõe simbolicamente os borzeguins aossocos e o canto de orgão ao canto chão. A primeiradestas poesias, filia-a Torresão Coelho em Petrarca,Boscán e Garcilaso, apontando assim como origensda poesia cultista o petrarquismo e o italianismorenascentista; como paradigma da poesia singela e

rústica, apresenta as trouas uis/do nosso Sá, e Miranda,pensando decerto nos poemas mirandinos que, em1626, foram editados sob a designação de Satyras.Deste modo, contrapõe-se uma poesia tradicional,escrita em linguagem chã e em medida velha –observe-se, a esta luz, o significado do possessivoem trouas uis/do nosso Sá, e Miranda –, a uma poesianova, de raízes petrarquescas e italianistas, rebuscadae de difícil entendimento. Esta contraposiçãooferece ainda outra faceta de muito interesse:enquanto a poesia cultista se revela destituída deuma intenção moral e pedagógica, reduzindo-se auma lúdica e fútil manifestação verbal – trocadospara freiras –, a outra poesia, a divina poezia exaltadapor Torresão Coelho, tem uma grande missão acumprir – a missão de revelar a verdade, de ensinaros homens, de rasgar horizontes e preparar o futuro,tudo, enfim, o que está denotado e conotado napalavra profecia. Ao depreciar-se a culta latiniparla,valoriza-se o conceito e, por conseguinte, sublinha--se a função docente da poesial. E por detrás desteconceito ético de poesia, ergue-se ainda o vultotutelar do nosso Sá, e Miranda.O segundo testemunho pertence a António daFonseca Soares e encontra-se no seu romanceOlyva, insigne, e famozo:

Que tenho saudades vossas,já disse; gavaime o claro,que eu não sou dos IdiomasCalvenista, ou Luterano.Porque heide fazerme escuro,se o nosso Deos me faz claro?Porque direy por tablilhao que bem pósso de hum jacto?Fazer giros na lingoagem,he parecer sacatrapo:Navio que vai ás voltas,nunca vay bem navegado.Pois á fé, que tambem seyfalar por Planeta quarto;e ás digreçõens enfadonhasdar nome de pleonasmos.

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Mas cuido, que lanso pulhasquando desta sorte falo;e que se me deve hum – irra,com mais justissa q– hu – gabo.

Fonseca Soares, ao fazer a apologia da clareza,estigmatiza os poetas cultos como heréticos – queeu não sou dos Idiomas/Calvenista, ou Luterano –,retomando assim uma condenação muitofrequente na literatura espanhola do século XVIIe que, no condicionalismo ideológico e político--social então prevalecente, se revestia de agudomelindre. A clareza exaltada por Fonseca Soaresimplica, como seus elementos nucleares, aexpressão directa e, diríamos, linear da realidade,sem os circunlóquios refinados e preciosistas –alusões, perífrases, metáforas – que dificultam eobscurecem a percepção dessa mesma realidade.Dizer por tablilha, fazer giros na lingoagem, falar porPlaneta quarto, com digreçõens enfadonhas – eis comoFonseca Soares caracteriza, condenando-a, alinguagem cultista, sublinhando, em todas estasfórmulas, a tendência dessa linguagem para fugir àdesignação directa das coisas. De modo similar seentende a contraposição entre a poesia escura e apoesia clara num romance anónimo publicado notomo segundo da Academia dos Singulares de Lisboae em cujas duas primeiras coplas se lê o seguinte:

De la poesia escuraes antipoda la clara,afecta galas aquella,esta recusa las galas.Pan por pan, vino por vino,y tambien agoa por agoadize, tan clara como ella,y en lo frio la aventaja.

Esta orientação anticultista andou estreitamenteligada à tendência realista e satírica da poesiabarroca e manifestou-se predominantemente nosinúmeros romances em que se desentranhou o

estro dos poetas e versejadores seiscentistas, emborase tenha revelado também em formas tradicional-mente cultas, como o soneto e a canção.Numa atitude de oposição extrema à linguagemculterana, diversos poetas barrocos não hesitaramem trasladar para a sua poesia a língua popular ecoloquial, na sua simplicidade, no seu pitoresco eaté na sua crueza plebeia, perfazendo assim, aonível dos significantes, o mesmo processo de alar-gamento das fronteiras da poesia que, no seuaspecto temático, analisámos já no capítulo ante-cedente. D. Tomás de Noronha, por exemplo,captou em vários sonetos os diálogos coloridos,impetuosos e desbocados das regateiras e rascoasdos bairros populares lisboetas, transfomando assimo poema numa espécie de esboço teatral. Observe--se a viveza e a malícia desta altercação entre duasregateiras:

Bibora q– me ques? q– lhe quereis?Desditosa do mi! cõ que vem agora?Que vos fiz? porq– mordeis? aonde mora?Coroa sou da rua. Quem vos? sereis.

Sempre honrada viui. Como viueis?Senhora Brasia André. Não sou senhora.Sou virtuosa e honrada: andar embora.Que dizeis? q– o não sou? Vos o dizeis.

Lembrada houuereis de ser! De q– lembrada?Do q– sabeis q– vi. Vos q– me vistes?O q– sempre callei. Douuos licença.

E vos não vos lembra? huy lembranças tristes!Se o haueis por hu~ peccado, mal lograda,Quantas vemos morrer dessa doença.

Fonseca Soares, nos seus numerosíssimos romances,cultivou repetidamente uma linguagemdesafectada, correntia, despida de galas e de alardescultos, tombando até, não raras vezes, numdeslavado prosaísmo. O lírico que se sabia guindar

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até às culminâncias do estilo gongórico, herméticoe lantejoulante, era também capaz de se cingir auma linguagem quotidiana, familiarmentecoloquial e afectiva. Leia-se o seguinte passo doromance Huy, Maricas dos meus olhos!, em que opoeta imagina o diálogo de um namorado quetenta dissipar os arrufos e as suspeitas da mulhercortejada:

Eu vos não perdoo o susto:Ora acabemos com isto:Daime essa mão: sim, meus olhos:Apertai hum pequenino.Huy! que melindres são estes?Porque? Apertei de rijo?Doeu-vos? Que assim me pêza:Ora eu apérto mansinho.Oh que Mão tão soberana!Que dedos tão bem feitinhos;que sendo cristais por brancossão veludo por macios!Hora aqui ninguem nos ouve:Falay, que estamos sózinhos:A Mãy, lá foy para dentro:Ninguem ha de vir, meu Brinco.Andai; falai: Que esperais?Olhay, que me estou podrindo:Que esperais? Que venha gente,para estarmos sezudinhos?Como estais hoje teimosa!Huy, Amor! eu vos afirmo,que ninguem ha de escutarnos,que estão todos devertidos.Dizey, dizey outra vez:Como, Amariles? Que he isso?Huy, Amariles! Zombais?Ahi! Há tal desvario!Se eu, Amariles, quiz bem?Que? Que não jure: Isso he rizo?Não chegue a ver... Que dizeis?Que me cale: Há tal martirio!

Observem-se as formas diminutivas – pequenino,mansinho, bem feitinhos, sezudinhos –, de tom familiare, neste contexto, carregadas de conotaçõeseróticas; as breves notações, de sabor realista, doambiente em que decorre o diálogo: a mãe que láfoy para dentro, o divertimento dos outros, que fazcom que ninguém repare nas intimidades dosamantes; as interrogações, as interjeições e asreticências que exprimem o espanto, a indignaçãoe a perplexidade do namorado e que permitemao leitor reconstituir as acusações, os lamentos eas recusas do interlocutor feminino. Cerca de doisséculos mais tarde, Garrett, para exprimir, comromântico dramatismo, a agonia de uma rupturaamorosa, adoptará no seu poema Adeus uma técnicaestilística muito semelhante.É indubitável, por conseguinte, que no parnasobarroco se distinguem e se confrontam até, tantono plano da temática, como no plano do estilo,duas espécies de poesia: a poesia culta e a poesia aque chamaremos, como outros críticos têm feito,poesia «vulgar». Cremos, todavia, que essa dife-renciação, ou contraposição, embora não possa serignorada, não deve ser entendida em termosabsolutos. Observe-se, primeiramente, que osmesmos poetas que escrevem poesia «vulgar», quea defendem e exaltam e que, concomitantemente,r idicular izam a poesia gongórica, escrevemtambém da mais aprimorada poesia culta: SimãoTorresão Coelho é o autor das Saudades de Albanoe de Las dos peñas. A los desdenes de Silvia, poemaeste cujos dois primeiros versos – Estas q~ me ditórimas sonoras/ricas de tanto sol culta Thalia –, cópiaquase literal do início do Polifemo gongorino,patenteiam logo a sua qualidade culterana;Fonseca Soares é o brilhante e requintado poetade Filis y Demofonte e de tantos outros poemascultos; D. Próspero dos Mártires, o sarcástico autordo Pegureiro do Parnaso e das Saudades de Apolo, nãodesdenha escrever, por exemplo, um consumadoculteranista como esta décima em que, através deengenhosas e preciosas imagens, se alude a umasangria feita no braço de uma beldade:

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Cobiçoso amor tratoude descobrir nouas minasfes bateis tres conchas finasproas das setas formouvellas do sendal cortoubreue luz por farol quisas veas de azul matisrompem cristalino braçoe voltando em breue espaçotrouxe asombros de robis.

Por outro lado – e aqui nos parece residir oessencial da questão –, tanto a poesia culta como apoesia «vulgar» testemunham, embora em níveisdiferentes, uma das características fundamentais doestilo barroco: uma extraordinária capacidade deinvenção verbal, uma quase volúpia em jogar coma linguagem, conduzindo-a a um estado de tensãocontínua, arrancando às palavras os mais recônditos,variados e surpreendentes matizes semânticos,cr iando, enfim, com os significados e ossignificantes, uma festa para o engenho e para ossentidos. Com efeito, a poesia «vulgar» barroca –poesia realista, satírica e burlesca, de tom populare coloquial – revela uma riqueza e uma fantasiaverbais que nada ficam a dever à poesia dos cultos.Vejamos alguns exemplos.A uma dama que lhe pedira quatorze varas de tafetáverde para forrar um vestido, respondeu D. Tomásde Noronha com uma humorística silva, na qualfaz ressaltar a exorbitância que para ele, fidalgo degrande linhagem mas de minguados cabedais,representava tal pedido. A silva desenvolve-se emtorno dos múltiplos e ambíguos valores semânticosque é possível extrair do significante varas e dojogo verbal propiciado por lexemas dele derivados,utilizando também o poeta, subsidiariamente, amesma técnica em relação ao significante verde. Asvaras a que se referia o pedido da dama, comoinequivocamente se depreende do contexto verbal,são uma medida, mas o poeta, libertando-se de tal

imposição contextual, transita, desde os primeirosversos, para outras áreas semânticas: O que em varaspedis, Senhora Prima,/de tafetá, vos quero dar em rima;/porque já fogir dellas conta fiz,/por peyores que varasde Agoazis; que não são para homem tão arisco,/varasde tafetá, varas de visco.//Mas quando meu amor finose vê,/serão somente varas de alçapé; e pois que talbrandura em mim se abona,/me quereis varejar comoazeitona.//Varejadas a mim? Grande cegueira,/pois quepasso sem ellas á carreira./Não vedes, que se der, muiprezenteiro,/as tais varas, que quais de marmeleiro,/mais n’alma, que debaixo dos calçõens,/me hão de ficarardendo os seus vergõens?; Sabey Senhora, q~ acabado sehão/varas, que houve algu tempo de condão; Amor, queordenas? para q me espantas,/se eu nunca pálio vi devaras tantas?; Confesso-vos, q~ sou de tais cautellas,/quecomo varas verdes trêmo dellas; Deste vosso criado,/aquem hum tal pedir, deixou varado.Nos romances de Fonseca Soares, são copiosíssimosos exemplos dessa tensão a que o engenho barroco,numa ânsia incontida de novidade, surpresa eemaravilhamento, submete a linguagem não culta.Com um léxico singelo, de uso quotidiano,procedente dos mesteres e tarefas humildes quedesempenham tantas das personagens femininascantadas nos seus romances, o poeta vai urdindoludicamente uma caprichosa teia de argúcias,subtilezas e ambiguidades verbais. Como nestetexto, dominado por trocadilhos forjados com oléxico relativo ao labor da fiandeira:

Fia pois com tanta grassaésta Fiadeira linda,que quem se não fiar della,he porque em si se não fia.Com tão galante ademãno fuzo na mão trazia,que eu fiquei de a ver confuzo,envejozo de tal dita.

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Trazendo o fio entre os dedos,que deixa, he coiza sabida,por hum fio as vidas todas,pois só caricias enfia.

Quando áta o linho na roca,he com tanta bizarria,que deixa a todos atadosde ver como o linho alinha.Por fazer da roca espada,a trás metida na cinta;que não só fia na roca,mas com ella dezafia.

Mais um exemplo, agora extraído de um romancede João Sucarelo em que se descreve e comentairònicamente a vida dos soldados portugueses que,durante as lutas da Restauração sitiaram Badajoz:

Os pobretes dos soldadospor esse chão se estenderãoserinissimos Infantesdormindo sempre ao sereno.

Contrastando com a penúria e a modéstia socialdos soldados, incisivamente expressas no primeiroverso pelo diminutivo pobretes, aparece depois aexpressão serinissimos Infantes: Sucarelo joga com adupla significação de infante – filho de rei e soldadode infantaria – e inventa comicamente uma relaçãosemântica entre o adjectivo superlativado serinissimo– tratamento devido aos infantes-filhos de rei – eo substantivo sereno, sinónimo de ar húmido e frioda noite, já que é ao relento que dormem sempre– e este advérbio explica aquele superlativo – ospobretes dos infantes-soldados de infantaria.A poesia barroca realista e satírica possui um léxicomuito rico e, não raras vezes, de mais difícilinterpretação do que o léxico erudito da poesiaculta. É em geral uma linguagem pitoresca etruculenta, em que o plebeísmo e os giroscoloquiais se mesclam com neologismos, com

criações vocabulares fantasistas, por entre profusashipérboles e metáforas. Eis como D. Tomás deNoronha caricaturou, num soneto, um homempequeno e desprezível:

Sapo concho furão lagarto em tócameyo vintem sem cunho bazarucono corpo ganso e nas pernas cuconovello de fiado maçaroca

Mona q~ cachorrinho afaga e acocamonstro de Achem Brazil e Mamalucosobre pequeno torpe Feyo e mucolápa em pé cascavel sizo de róca

Potra barbada Arroz cabeça em odrede Enanos Rey, e de Pigmeus cassismama de má mulher de homem meyo

Pequeno em tudo es e em tudo podrese he verdade o q a letra de ti dizou tu és o Diabo ou Paulo Feyo.

As formações vocabulares inesperadas, de teorcómico e burlesco, constituem um importanteelemento do léxico desta poesia barroca «vulgar».Alguns exemplos: Jerónimo Baía, ao descrever asua jornada de Lisboa para Coimbra, anota quedescavalgou na Golegã, mas, lembrando-se de queera um esfomeado macho o seu meio detransporte, logo emenda aquele verbo paradesmachar, arranjando ainda pretexto, através deuma proposição hipotética, para acrescentar overbo desasnar (e se desasnára, fora/mzy mais elegantemodo); o mesmo autor, referindo-se a uma moçaque encontrou numa venda de Ansião, chama-lheesta vendavel cachopa, de modo a insinuar que arapariga da venda também vendia favores amorosos;D. Tomás de Noronha, ao narrar a sua penúria,confessa que, muitas vezes, fica acomodadotaboalmente isto é, dormindo com os ossos no chão,à míngua de dinheiro para alugar uma cama; e

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numa silva sobre a barba de D. André de Almada,reitor da Universidade de Coimbra, D. Tomás, poranalogia com a expressão «cabecear de sono»,escreve: que como sois letrado de mão cheya,/barbejastesco’ sono na candeya;/porque assim como eu doucabessada,/vós bem podeis co’ sono dar barbada; BarbosaBacelar, para designar a musa que terá inspirado oridículo parto poético de «hum engenho da villade Thomar», utiliza a expressão metricana Divindade.Na poesia barroca realística e satírica, a rima podedesempenhar a função de reforçar o significadocómico ou burlesco que o léxico empregado jáde si possuía. As rimas esdrúxulas, que em FernãoÁlvares do Oriente e noutros poetas seiscentistassão indícios de estilo sublime e culto, realizam porvezes na poesia barroca essa função de elementoconotador do cómico e do burlesco: SimãoTorresão Coelho, no poema que dedicou às«mizerias scholasticas», isto é, à penúria e à fomesuportadas pelo estudante coimbrão, serviu-se detais rimas; e transcrevemos no capítulo III umsoneto de Barbosa Bacelar em que se exibe omesmo artifício. É todavia, nos chamados sonetosparonomásticos ou de consoantes forçados, queocorre mais frequentemente aquela funçãoconotadora da rima.[...]

Poesia líricado períodobarroco(excerto)

MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES*

A poesia lírica é, juntamente com a oratória, ogénero literário mais abundantemente cultivadoao longo do período barroco. Importa referir eanalisar algumas das questões mais relevantessuscitadas por esta poesia, tais como as fontes deque hoje dispomos para o seu conhecimento, istoé, os textos que chegaram até nós e as formas dasua transmissão; as características temáticas eretórico-estilísticas que a individualizam, o quepode ser lido como a expressão de atitudes doscriadores poéticos desta época perante o mundoe a poesia; os conceitos de linguagem poética e osvalores estético-literários que presidem à suaprodução; os modelos que se pretende imitar e asformas de imitação / transformação dessesmodelos; e finalmente, as diversas atitudes de leituradessa poesia e a consequente diversidade de juízoscríticos perante ela formulados.

Os textos

Comecemos por referir as fontes de que dispomospara o conhecimento da poesia lírica barroca.

* In História da Literatura Portuguesa: da Época Barroca aoPré-Romantismo. Vol. 3. Lisboa: Alfa, 2002, p. 119-128.

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Podemos agrupar essas fontes em três classes: osvolumes de poesia individual, contendo a produçãopoética de um autor, publicados geralmentedurante a sua vida ou pouco depois da sua morte;os cancioneiros impressos contendo poemas devários autores; e, por último, os cancioneirosmanuscritos.

Volumes individuais

Aceitando os marcos cronológicos apontados porAguiar e Silva para a delimitação periodológicado barroco português (v. Maneirismo e Barroco naPoesia Lírica Portuguesa, Coimbra, 1971), podemosconsiderar Laura Anfriso (1627) um dos primeiroslivros de poemas barrocos portugueses. Do seuautor, Manuel da Veiga Tagarro quase nada sabemos:apenas que seria natural de Évora e que, a julgarpela atitude de encómio e subserviência que noseu livro manifesta em relação à casa de Bragança,deve ter pertencido ao círculo de letrados que jáfoi designado Parnaso de Vila Viçosa. O seu livro,que é ainda reflexo do universo espir itualpredominante na poesia do período maneirista,pela atitude de renúncia aos bens terrenos e deconversão plena a Deus que insistentemente refere,apresenta já formas de expressão e atitudes dosujeito lírico que constituirão as linhas dominantesda produção poética barroca: o comprazimentona descrição dos bens efémeros a que se renuncia,a transfiguração metafór ica do universorepresentado e a acumulação de um materialvocabular, articulado em complexos processosretóricos, criador de um mundo esplendoroso debrilho e riqueza.O livro de Paulo Gonçalves de Andrade VáriasPoesias, publicado em 1629 e com 2.ª edição em1658, é já uma compilação de poemas bem repre-sentativos das tendências barrocas; e os poemasencomiásticos de poetas contemporâneos queacompanham a sua publicação, correspondendo

embora a prática relativamente frequente na época,testemunham a comunhão desses poetas na estéticaque na obra se concretiza.Por estes anos se começam a manifestar-se algumasdas vozes mais relevantes da nossa poesia barroca,como Barbosa Bacelar e Violante do Céu (doisdos poetas portugueses representados no volumepublicado em honra de Lope de Vega aquando dasua morte), mas os seus poemas circulam como osde tantos outros, em cópias manuscritas. Noentanto, de Violante do Céu (1601-1693), a freirado convento dominicano da Rosa aureolada como prestígio dos seus dotes poéticos, publica-se emRouen, em 1646, um volume intitulado RimasVárias. Os poemas que o constituem tratam, nasua maior parte, o tema do amor como fonte desofrimento, cantado em estilo engenhosamentetrabalhado numa tessitura verbal que insistente-mente recorre aos jogos de contrastes, aos adynataou impossibilia, à argumentação conceituosamenteparadoxal. Uma grande parte da sua produçãopoética, sobretudo poemas de temática religiosa,foi publicada depois da sua morte em dois volumescom o título de Parnaso Lusitano de Divinos eHumanos Versos (1733).Especial destaque merece, no panorama da poesialírica desta época, a obra de D. Francisco Manuelde Melo (1608-1666). Em 1628 publica uma sériede doze sonetos sobre o tema da morte de Inês deCastro, Doze Sonetos por Varias Acciones en la Muertede Doña Inês de Castro, obra de juventude que viráa repudiar ao compilar o conjunto da sua obrapoética. De 1649 é a publicação de Las Tres Musasdel Melodino, que virá a constituir a primeira partedas suas Obras Métricas, compilação que publicaem Lyon, em 1665. A organização deste volumedas suas poesias completas segue o modelo quefora adoptado pelos editores da poesia do seumestre e amigo Francisco de Quevedo: divididoem três partes, cada uma delas subdividida em trêscoros, dedicados a cada uma das nove musas. Estaorganização respeita ainda uma distribuição

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linguística: os três primeiros coros («El harpa deMelpomene», «La citara de Erato», «La tiorba dePolimnia») e os três últimos («La lira de Clio», «Laavena de Tersicore», «La fistula de Urania») sãoconstituídos por poemas em castelhano; a segundaparte, designada «As segundas três musas», é cons-tituída por poemas em português, organizadosigualmente em três coros: «A tuba de Calíope»,«A sanfonha de Euterpe», «A viola de Talia». Cadacoro apresenta uma homogeneidade de formaspoéticas – sonetos, romances, éclogas e cartas –,com excepção do terceiro coro de cada uma daspartes, em que se nos deparam formas várias. Umaorganização que revela o cuidado posto pelo autorna edição das suas Obras Métricas, sem dúvida amais importante colectanea poética individual dobarroco português, uma obra em que frequente-mente uma rigorosa e complexa técnica poética éveículo de profunda reflexão filosófica e religiosa.Poeta dos mais prolíficos é Manuel de Faria eSousa, que publica um volume intitulado Divinase Humanas Flores. Mas a sua obra poética funda-mental é a Fuente de Aganipe, de que publica quatropartes entre 1644 e 1646. Nesta obra inclui o autorconsiderações teóricas e históricas acerca dos váriosgéneros e formas que cultiva. A sua produçãopoética é norteada pelo sonho de imitar Camões.Este trabalho de imitação do poeta que admiravacom um fervor quase idólatra é, na forma comorescreve temas, expressões e versos camonianos,manifestação eloquente de tendências da poéticabarroca.Num volume intitulado Poesias Várias Sacras eProfanas (1671) inclui André Nunes da Silva(1630-1705) os seus melhores poemas, alguns dosquais encontramos publicados em colectâneas deprodução colectiva. Os textos aqui reunidos sãorepresentativos de alguns dos temas recorrentesna poesia da época – a meditação sobre a fragili-dade da vida, o panegírico de ilustres personagens,o nascimento e paixão de Cristo –, tratados comnotável virtuosismo técnico. Este autor publicou

ainda, com o título de Hecatombe Sacra (1686), umconjunto de cem sonetos narrando a vida de S. Cae-tano (note-se a utilização do soneto constituindouma longa série de carácter narrativo) e compôsum volume de sonetos à Imaculada Conceição, como título de Voto Métrico e Aniversário (1695).Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), poetaque viveu quase toda a sua vida no Brasil, publicouMúsica do Parnaso (1705), obra em que incluipoemas em português, castelhano, italiano e latim.A crítica brasileira tem valorizado a obra destepoeta, considerando-o um precursor do mito donativismo, pelo entusiasmo com que descrevebelezas e riquezas da terra brasílica num longopoema sobre a ilha da Maré. Mas esta inovaçãotemática limita-se a este poema: o resto da obraexplora com mestria e alguma originalidademotivos consagrados, como a rosa, o espelho, oretrato de uma dama.A maior parte da obra poética de Soror Maria doCéu (1658-1752), religiosa franciscana, encontra--se disseminada em textos narrativos de carácteralegórico que combinam verso e prosa, dos quaisse destacam A Preciosa (1731) e Enganos do Bosque,Desenganos do Rio (1736, 1741), além de umvolume em que se reuniram textos diversos e quefoi publicado com o título de Obras Várias eAdmiráveis (1735). A poesia desta autora, repassadade emoção lírica, aproveita com frequência formasde expressão da poesia de amor profana comoveículo de valores de natureza religiosa.No período barroco proliferou a poesia de cunhojocoso e mesmo burlesco, mas foram relativamentepoucos os autores deste tipo de poesia que viramas suas obras publicadas. Entre estes conta-se TomásPinto Brandão (1664-1734) que publicou oprincipal da sua produção poética num volumecom o título parodístico de Pinto Renascido (1732).Predomina nesta obra a atitude faceta, mesmoquando trata episódios autobiográficos ou temasque correspondem noutros autores a umapercepção dolorosa da vida.

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De Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723)foram publicadas postumamente duas obras: Feudodo Parnaso (1729), um panegírico de D. João V, eHecatombe Métrico (1729), uma série de cem sonetosem que se narra a história da redenção do homem,desde o pecado de Adão até à paixão redentora deCristo. Mas o seu prestígio literário não lhe advémdestas obras, mas sim dos poemas incluídos na FénixRenascida. É um exímio sonetista que consegueainda mobilizar de forma engenhosa o materialtemático e retórico já então estereotipado.Tal como na obra de Soror Maria do Céu, tambémna de Soror Madalena da Glória (1672-1759) ospoemas se integram em narrativas alegóricas defunção moralizadora: Brados do Desengano contra oProfundo Sono do Esquecimento (1749), Reino deBabilónia Ganhado pelas Armas ao Empíreo (1749),Orbe Celeste (1742), entre outros.A concluir esta breve enumeração de obraspoéticas individuais publicadas no períodobarroco, refiram-se os dois volumes de textoslíricos de Francisco de Pina e Melo (1695-1765):Rimas (1727) e A Bucólica (1755). Na poesia desteautor as marcas da poética barroca combinam-sejá com elementos – o gosto do nocturno, a atracçãodo horrendo, o pendor melancólico – que irão terpleno desenvolvimento na poesia pré-romântica.

Cancioneiros impressos

Fénix Renascida

Quando se fala de poesia lírica barroca, o primeirotítulo que geralmente ocorre à memória é FénixRenascida. Com efeito, a Fénix Renascida ou Obrasdos Melhores Engenhos Portugueses é a maisconhecida colectânea de poemas da época barroca.Editada por Matias Pereira da Silva, a suapublicação estende-se de 1716 a 1728. Os cincovolumes que compõem a obra vão sendopublicados ao longo deste período com intervalos

irregulares, determinados por factores vários, desdeo acolhimento do público até problemas com acensura. Do interesse com que o público acolheuesta obra dão testemunho não só os cinco volumesque o editor foi sucessivamente dando a lume,como também a 2.ª edição, aumentada, que delesfoi feita em 1746.Mas, apesar da importância desta obra para oconhecimento da poesia do período barroco, nãopodemos deixar de ter presente o seu carácterrestrito, limitado, para evitar o erro corrente deidentificar a poesia barroca com os poemas daFénix.O carácter limitado desta obra decorre, antes demais, da sua natureza antológica. Como todas asantologias, ela é limitada pelas preferências do seuorganizador e pelos critérios que orientaram a suaselecção dos poemas a incluir. De alguns dessescritérios dá-nos conta Matias Pereira da Silva noprólogo dos volumes que vai publicando. O seuprimeiro objectivo é salvar do esquecimentopoemas que ele considera «obras dos melhoresengenhos portugueses» e que, não tendo até entãosido publicados, corriam o risco de se perder. Porisso não encontramos na sua antologia poemas dasobras que referi na alínea anterior, pois essas tinhamjá encontrado na forma impressa uma defesa contraa acção destrutiva do tempo. Há apenas umacuriosa excepção: a inclusão de numerosos poemasde Violante do Céu, quase todos apresentadoscomo anónimos, que se encontravam publicadosdesde 1646 nas suas Rimas Várias. Tal facto tornaplausível a hipótese de que esta obra, publicadaem Rouen, não tivesse até então circulado emPortugal.Ressalvada esta excepção, temos, pois, a selecçãodo editor da Fénix recaindo só sobre textos quepermaneciam inéditos. E o primeiro critério quepreside a essa selecção é de natureza estética:publicar «obras dos melhores engenhosportugueses», isto é, poemas que o editor considerarelevantes pelo seu valor poético. Um critério

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regido por uma inevitável margem de subjecti-vidade, revelando, de um modo geral, um editordotado de apreciável sensibilidade estética.Mas há também critérios de natureza moral acondicionar a selecção de Matias Pereira da Silva,como explica no prólogo do primeiro volume:«Não tenho tenção de dar lugar nestes tomos àsobras que, por profanas ou impúdicas, o nãomerecem.» Uma opção pessoal determinadatambém pelas circunstâncias históricas em que sever ificava a publicação, como ele própr ioreconhece logo a seguir: «Quanto mais que, aindaque quisera fazer-lhe aqui lugar, de que sãoindignas, lho não deixariam lograr os a quempertence a correcção de semelhantes profani-dades.» Ou seja: dada a existência de ummecanismo controlador das obras a publicar, oeditor tem de aceitar as regras do jogo, ou mesmoantecipar-se-lhes por uma prévia atitude deautocensura. Daí resulta que aspectos significativosda produção poética barroca, abundantementerepresentados em cancioneiros manuscritos, nãotenham tido lugar nesta antologia.Mas há outras lacunas mais surpreendentes, de maisdifícil explicação. Como explicar, por exemplo, quea poesia de carácter religioso, tão abundantementeproduzida na época barroca, tenha tão escassarepresentação nas páginas da Fénix?Dos cerca de quarenta poetas representados naFénix Renascida (na 2.ª edição, que apresenta maiornúmero de poemas e de poetas que a primeira),destaquemos aqueles que assumem maior relevo,tanto pelo número de poemas seus aí incluídoscomo pelo seu valor literário.Comecemos por António Barbosa Bacelar(1610-1663). Encontrando-se a sua obra poéticadispersa por numerosos cancioneiros manuscritos,é na Fénix que encontramos impressos muitos dosseus poemas, mais de uma centena. Poeta que,como tantos outros do seu tempo, fez de Camõesseu modelo e de poemas camonianos pretexto paraalgumas das suas produções, é Bacelar o autor da

maior parte das glosas de textos camonianos, desonetos de imitação e de outras formas de aprovei-tamento do texto camoniano. É um dos melhorespoetas da época. Um poeta que canta, à maneirapetrarquista, os sofrimentos do amor ou a belezada amada, que medita sobre a morte e aefemeridade dos bens terrenos, que compõepanegíricos de circunstância; que compõe tambémpoemas jocosos, lúdicos, ou que se compraz naparódia de textos e tópicos literários. Esta facetaparodística, representada em vários dos seus textosinéditos, é documentada na Fénix pela «Relaçãodas festas de touros» (vol. v), um poema narrativocujo principal motivo de interesse para os leitoresde hoje é a atitude irónica e a reelaboraçãoparodística de tópicos e estilemas característicosda poesia do tempo. Em suma: é um poeta bemrepresentativo das linhas temáticas e estilísticasdominantes na poética barroca, cuja técnicadomina com mestria, o que justifica o lugar derelevo que Matias Pereira da Silva lhe concedeuna sua antologia.Outro poeta que assume na Fénix relevo idênticoé Jerónimo Baía (c.1620-1688). Deste fradebeneditino, abundantemente representado nascompilações manuscritas, também só foramimpressos na época a centena e meia de poemasrecolhidos neste cancioneiro. Conhecidosobretudo como autor desse extenso eengenhosíssimo panegírico que é o «Lampadáriode cristal» (vol. III), Baía é um exímio construtorde correlações engenhosas, um persistente explo-rador de equívocos, um artífice que se deleita emcomplexos jogos verbais, quer componha poemasprofanos ou religiosos, panegíricos ou satíricos.O caso de Soror Violante do Céu (1601-1693),uma das vozes mais notáveis da nossa poesiabarroca, é na Fénix objecto de um tratamentoinsólito. São publicados, com indicação do seunome, vinte e oito poemas (nos vols. I, II e V),todos eles com um carácter panegír ico ecircunstancial; mas nos volumes I e II incluem-se

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trinta e três poemas com a seguinte indicação:«Poesias várias de uma poetisa anónima.» Todosestes poemas se encontravam já publicados nasRimas Várias, desta autora, livro impresso em 1646.Não é, pois, por ignorância do nome da autoraque Pereira da Silva apresenta estes poemas comoanónimos, tanto mais que não se limita a referir oseu anonimato, como acontece com tantos outrosdos poemas que seleccionou, mas esclarece que setrata de «uma poetisa». Porquê então esta diferençade tratamento? Decorrerá da diferença temáticados poemas ali incluídos: uns de carácter inocua-mente panegírico, outros expressão veemente desentimentos amorosos? Na impossibilidade deultrapassarmos o âmbito das conjecturas, limitemo-nos a verificar como a inclusão destes poemasanónimos constitui um enriquecimento da anto-logia, não só por corresponder a uma das facetasmais importantes da produção poética de Violantedo Céu, mas também por incluir alguns dos maisoriginais poemas de amor produzidos na época.No entanto, custa a compreender que a vasta pro-dução poética de carácter religioso desta autoranão tenha aqui nenhum poema a representá-la.O poeta D. Tomás de Noronha (m. 1651), cujospoemas se encontram no vol. V, é a voz maisgalhofeira que se nos depara nas páginas da Fénix.Comprazendo-se no retrato caricatural e nohumor satírico, ri-se de tudo e de todos, a começarpor si próprio. Desmistificando pseudo-heróis epseudopoetas que os cantam, é dos primeirospoetas barrocos a questionar (jocosamente) apoesia do seu tempo. Mas a maior parte da suaprodução poética não era de molde a figurar naantologia de Pereira da Silva.Uma presença dominante nos volumes da Fénix éa de António da Fonseca Soares (1631-1682). Maso facto de o nome deste poeta, o mais abundante-mente representado nas colectâneas manuscritasda época, nunca ser ali referido, aparecendo os seuspoemas anónimos, obriga-nos a formular algumasquestões: António da Fonseca Soares é autor de

quantos e de quais dos poemas incluídos na Fénix?E porque é que o seu nome nunca é referido? Eporque não incluiu o editor poemas da segundafase da sua produção poética, isto é, da faseposterior à sua conversão a Deus e ingresso naOrdem Franciscana, onde tomou o nome de FreiAntónio das Chagas?Apesar de Matias Pereira da Silva, ao publicar asua antologia, se orgulhar de nela dar o seu a seudono, atribuindo a autoria correcta a poemas quecorriam manuscritos com autorias erróneas, ocerto é que os factos não confirmam esta segurançado editor. Encontramos na Fénix, além deatribuições de autoria duvidosas, outras claramenteerradas. Exemplo de erros desta natureza é aatribuição a Francisco de Vasconcelos de váriossonetos de Fonseca Soares, erro claro no caso depoemas de circunstância motivados por eventos(morte do príncipe D. Teodósio, restituição dacoroa inglesa a Carlos II, vitórias na Guerra daRestauração) anter iores ao nascimento deVasconcelos (1665). Assim, para a identificação dospoemas de Fonseca Soares incluídos na Fénix,temos de recorrer ao testemunho dos cancioneirosmanuscritos, embora esses testemunhos nemsempre sejam unânimes (v., sobre esta questão, aobra de Maria de Lourdes Belchior, Bibliografia deAntónio da Fonseca Soares, Lisboa, 1950).Quanto à não inclusão do nome do poeta, sabemos,pelo parecer de um dos censores, que se tratou dedecisão das autoridades censórias.Também por decisão das mesmas autoridadesaparecem como anónimos nas páginas da Fénix ospoemas de António Serrão de Crasto (1610-1685).É que este poeta, acusado de prática do judaísmo,foi preso pela Inquisição, em cujos cárceres per-maneceu durante dez anos. Embora tenha saído«reconciliado» em auto-de-fé realizado em 10 deMaio de 1682, é lembrado ainda como réuconfesso, publicamente arrependido, é certo, massempre suspeito de heresia. Por isso, segundo alógica inquisitorial e a sua prática habitual, o nome

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do autor devia mergulhar no esquecimento,mesmo se às suas obras, por nada conterem «contraa fé e os bons costumes», era dada licença deimpressão. Os textos de Serrão de Castro incluídosna Fénix foram, no entanto, objecto de algumasmutilações, nomeadamente um poema autobio-gráfico de que foram cortadas todas as estrofesreferentes à sua permanência nos cárceresinquisitoriais.Além destes poetas aqui destacados, muitos outrosse encontram representados na Fénix Renascida,uma obra que, apesar das limitações já apontadas,é sem dúvida a mais importante compilação depoesia barroca; uma antologia bem representativada produção lírica desta época, tanto no que serefere a motivos poéticos e atitudes do sujeitoperante eles, como no respeitante às formasretórico-estilísticas utilizadas.

Postilhão de Apolo

Postilhão de Apolo é a designação corrente de umaoutra antologia de poesia lírica barroca, publicadaem 1762 com o título, claramente parodístico nasua barroca exuberância, de Ecos que o Clarim daFama dá, Postilhão de Apolo, Montado no Cavalo Pégaso,Girando o Universo para Divulgar ao Orbe Literário asPeregrinas Flores da Poesia Portuguesa com queVistosamente se Esmaltam os Jardins das Musas doParnaso. Academia Universal em a qual se Recolhem osCristais mais Puros que os Famigerados EngenhosLusitanos Beberam nas Fontes de Hipocrene, Helicona eAganipe. O compilador desta antologia, José Angelode Morais, que usa o anagrama de José Maregelode Osan, recorre em grande parte aos textos jápublicados na Fénix Renascida. Voltamos a encontraraqui a longa «Introdução poética» com que inicia acolectânea de Matias Pereira da Silva, sonetos deBacelar e as suas glosas a textos camonianos, sone-tos de Violante do Céu, as «Jornadas» de JerónimoBaía, bem como a sua versão da «Fábula de Polifemoe Galateia», e muitos outros.

É relativamente escasso o material inédito incluídono Postilhão. Destaque-se o poema «À vaidade domundo» de Francisco de Vasconcelos quedesenvolve neste poema em tercetos, um tema quetão frequentemente tratou em sonetos incluídosna Fénix; ou textos motivados por acontecimentosconsiderados relevantes, como a «Écloga na mortedo Senhor D. Miguel, filho de D. Pedro II, quenaufragou no Tejo», escrita pelo conde da Ericeira,D. Francisco Xavier de Meneses, ou a «Epanáforapoética em que se descrevem os festejos que oshabitantes da vila de Setúbal dedicaram ao rei D.João V na entrada que fez na mesma vila».Note-se a data tardia da publicação do Postilhão deApolo (1762), tanto em relação ao momento deprodução da maior parte dos poemas que incluicomo às balizas cronológicas geralmente aceitespara delimitar o período barroco na literaturaportuguesa. Recordando alguns dos marcos maissignificativos da radicação dos valores literários dobarroco – Exame Critico, de Valadares e Sousa(1739), publicação do Verdadeiro Método de Estudarde Verney (1746), fundação da Arcádia Lusitana(1756), entre outros –, não deixa de surpreender apublicação de um cancioneiro de poesia barrocaem 1762. Mas a publicação do Postilhão de Apolo(bem como a reedição de algumas obras de poetasdo século XVII), documenta a permanência, nasdécadas finais de setecentos, de um públicoconsumidor e apreciador de uma poesia moldadapelos valores literários da época que Verneydepreciativamente designou de «seiscentista».

Cancioneiros académicos

Podemos considerar também entre os cancioneirosimpressos as obras que incluem produções poéticasdos membros de algumas das academias quedurante este período proliferaram por todo o país.Se é certo que grande parte dessa produção ficouinédita, temos, no entanto, volumes publicados poralgumas das academias. É o caso da Academia dos

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Singulares, que publicou dois volumes de textosproduzidos pelos seus membros e apresentados nassuas sessões, com o título de Academias dos Singu-lares de Lisboa (1692 e 1698). Nesta obra encon-tramos poemas de António Serrão de Crasto, Si-mão Cardoso, André Rodrigues de Matos e AndréNunes da Silva, entre muitos outros.Também a Academia dos Anónimos publicoutextos dos seus membros, intitulando-se acompilação Progressos Académicos dos Anónimos deLisboa (1718). Fazendo jus ao nome que usavamos seus autores, estes poemas são publicados...anónimos.Refira-se ainda o volume Aplausos Académicos(1675), conjunto de textos em prosa e em verso,em português e em latim, compostos por membrosda Academia dos Generosos para celebrar a vitóriaportuguesa na batalha de Ameixial.

Cancioneiros manuscritos

Uma fonte indispensável para o conhecimento danossa poesia barroca é constituída por numerososcancioneiros manuscritos que encontramos emtodas as principais bibliotecas portuguesas. Estescódices, geralmente cópias dos séculos XVII eXVIII, dão-nos a conhecer, em muitos casos, umtipo de poesia que, pelo seu carácter irreverente,muitas vezes grosseiro e até mesmo obsceno, nãopodia ter sido publicada em época de funciona-mento de complexos mecanismos censórios. Dão--nos também a conhecer textos de autores que,por razões diversas, nem sempre para nós evidentes,não chegaram a ver a sua obra impressa. Para alémdos poemas que Matias Pereira da Silva recolheuna Fénix Renascida, muitos textos de poetas comoBarbosa Bacelar, António da Fonseca Soares, Tomásde Noronha, Serrão de Crasto, etc., chegaram aténós apenas através de cópias manuscritas. De outrospoetas nenhum testemunho impresso nos deixoua sua época, restando-nos assim os manuscritos

como fontes únicas para o conhecimento da suapoesia. É o que se verifica com a obra de Gregóriode Matos (1633-1696), um prolífico autor que, sepelo carácter satírico e desbocado da sua poesiamereceu dos seus contemporâneos o epíteto deBoca do Inferno, não deixou também de compordelicados textos líricos e religiosos.A proliferação destas cópias e a insistência comque aparecem determinados autores, determinadostextos, são ainda índices importantes de gostos epreferências epocais.[...]

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A PASTORAL

A tão enaltecida prosa da Corte na Aldeia viera,entretanto, sendo preparada, construída, pelo poeta,ao redigir a trilogia pastoril, composta, comovimos, por Primavera, Pastor Peregrino e Desenganado(Primavera é também o nome do conjunto dasnovelas). Não se sabe ao certo de que modo opoeta as escrevia, sendo de admitir que as suaspartes circulassem, ainda antes de impressas, àmedida que iam saindo da pena do escritor. Este,à semelhança do que modernamente acontececom as telenovelas, auscultaria assim a opinião dosseus leitores, segundo a qual depois faria progredira intriga.Não vamos alongar-nos no estudo da evoluçãodo género, com que o leitor deparará em qualquermanual. A novela pastoril, cuja voga se sucede àdo romance de cavalaria, esboçar-se-ia já naséclogas da antiguidade clássica, mas é em Itália queos seus contornos se definem, primeiro comBoccacio, autor do Ameto (1341), e depois comSannazaro, autor da Arcadia (1502), obra com quese fixa duma vez por todas, o padrão do género.

Qualquer deles mistura o verso e a prosa,intercalando-os.A Jorge de Montemor, português radicado emEspanha e que por essa razão escreveu emcastelhano, caberia, no entanto, a glória de criar oque foi considerado o seu mais perfeito paradigma.Diana é o título do livro, o qual publicado em1559, contou até ao fim do século com dezasseteedições, medindo-se a sua importância ainda pelastraduções que dele por toda a Europa foram feitas.L’Astrée (1607/1610) figura entre as diversas obrasonde a sua influência é detectável. Sannazaro eJorge de Montemor, que Rodr igues Lobolamentou que desse «à lingua e aos valesestrangeiros o que devia ao Mondego aondenasceu», seriam, pois, os criadores ilustres do quenão tardou a dar, ainda em Espanha, numerososfrutos entre os quais se distinguiram a Galatea(1585) de Cervantes e a Arcadia (1598) de Lopede Vega. Tais são as obras entre cuja descendênciaas de Rodrigues Lobo se viriam a contar. A estasconvirá, contudo, não deixar de acrescentar umaoutra, escrita em língua portuguesa: trata-se daMenina e Moça (1554), de Bernardim Ribeiro, ondeos ingredientes das ficções cavaleiresca e pastorilparecem misturar-se.Dos vários exemplares do género que entretantoapareceram, deve-se a Fernão Álvares do Orientea Lusitânia Transformada (1607), obra que, apesarde ter vindo a lume depois da Primavera, é decrer que seja de redacção anterior, já que o autor,segundo se supõe, terá morrido antes de acabadoo século XVI, provavelmente vítima da peste.Consagrada ao marquês de Vila Real, a quem nelase dedicam duas odes, a concepção da LusitâniaTransformada afasta-se, contudo, da das novelas dopoeta de Leir ia, aproximando-se, pelo seuhieratismo, muito mais da Arcadia de Sannazaroque da Diana, que Rodrigues Lobo teve pormodelo. Não é, no entanto, impossível que os doisautores se conhecessem. Ricardo Jorge admite sera Fernão AIvares do Oriente que Lereno se refere,

Pastorale éclogas deRodrigues Lobo(excerto)

LUÍS MIGUEL NAVA*

* “Introdução”, Poesia de Rodr igues Lobo. Lisboa:Comunicação, 1985, p. 28-32.

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ao aludir, na Primavera, a «um pastor, meu grandeamigo», embora se mostre mais inclinado aidentificar tal personagem com frei Bernardo deBrito (1569-1617), o iniciador da MonarquiaLusitana (primeira parte: 1597) para a testada decujo segundo tomo, vindo a lume em 1609,Rodrigues Lobo redigiu uma canção que, porrazões não apuradas, acabou por não ser integradanessa obra. Aproximá-los-ia, além da vida estudantilde Coimbra, onde eles se conheceram, o culto dapoesia, de que frei Bernardo de Brito daria,anonimamente, testemunho na Sílvia de Lisardo(1597), livro publicado um ano depois da estreiade Rodrigues Lobo.Digamos, para rematar esta breve introdução ànovelística pastoril, que seria Cervantes quem,ironizando-a, veio a desfechar-lhe, no D. Quixote(1605/1615) e em «Colóquios dos cães», uma dassuas Novelas Exemplares (1613), as primeirasmachadadas. Tal não obstou, contudo, a que asnovelas continuassem a gozar de considerávelpopularidade por muito tempo ainda, do que entrenós é comprovativo o facto de a Primavera atémeados do séc. XVII ter sido editada nada menosque dez vezes.

ÉCLOGAS

Vejamos a seguir as éclogas, com as quais, namedida em que se integram na bucó1ica, se prendeo que dissemos nos parágrafos anteriores. A suarelação com a novela pastoril é atestada, antes demais, pelo facto de Sannazaro a ter utilizado, naArcadia, como única composição em verso. Nissoo não seguiram Jorge de Montemor nemRodrigues Lobo, em cujas obras as formas poéticassão muitíssimo variadas. Surgida na antiguidadeclássica (primeiro com Teócrito, na Grécia, e depoiscom Virgílio, em Roma), a écloga encontroumuitos cultores entre os poetas dos sécs. XVI eXVII. Pouco se tendo interessado por ela os

preceptistas, apresenta formas muito diversas, tantono que toca ao número de versos como ao tipode métrica e de estrofes que a compõem. Nemsempre é escrita em diálogo, embora nos frequentescasos em que tal ocorre se suponha que os autoresa destinassem a ser representada. Tal como nasnovelas as personagens, pastores ou vaqueiros,exprimem o pensamento e os sentimentos dequem as deu à luz, sendo esse disfarce, mais oumenos evidente, uma das convenções do género.Também no que respeita ao aspecto temático háuma enorme variedade, embora nos casos maisfrequentes se faça a apologia da vida rústica e seexalte a natureza, onde a imagem da idade do ouro,que não poucas vezes se refere, é conservada, aoinvés do que sucede nas cidades, donde os víciose a ganância há muito a desterraram. A acção, talcomo o número de personagens, é geralmentereduzida a um mínimo e termina com o anoitecer,a que em muitos casos se faz explícita alusão. Aotópico do lugar ameno associa-se assim, entreoutros o do fim do dia.Entre nós a écloga assimila uma tradição bucólica,de que tanto os cancioneiros medievais, onde elaé patente nas serranilhas e nas pastorelas, como oteatro vicentino nos dão conta. Foi com Garcilaso(1503-1536), poeta que com Boscán (1493-1542)introduziu em Espanha as formas literárias italianas,que a écloga se estabeleceu na Península, onde dolado português se iriam distinguir no seu cultivoautores como Bernardim Ribeiro, CristóvãoFalcão, Sá de Miranda, António Ferreira, CamõesDiogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz.Quando no início do séc. XVII, Rodrigues Lobose dispõe a publicar as suas éclogas, já esta formacomeçava a dar sinais de esgotamento. Grande foi,por isso, o mérito do poeta, ao conseguir, dando--lhe novo alento, levar a cabo o que veio a merecerde D. Francisco Manuel de Melo a afirmação deque «em nenhuma língua achareis versos de maiorpropriedade e energia»1. Denunciando pontos decontacto com Bernardim (é-lhes comum o

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sentimento da desventura), Gil Vicente (ambos seafastam da linguagem rebuscada, procurando oemprego dum vocabulário consentâneo com a falados pastores) e Sá de Miranda (de quem o poetaherda o tom sentencioso do discurso), RodriguesLobo assume, nestes textos, intenções moralizantes,devendo eles, por tal razão, ser confrontadosigualmente com a parénese da época.[...]

A poesia deSóror Violantedo Céu(excerto)

MARGARIDA VIEIRA MENDES*

“A POESIA NAS RIMAS VÁRIAS”

de amor escrevo, de amor trato e vivo

Os louvores

1. Mais de um terço das Rimas Varias (26composições) levam a cabo panegíricos a indivi-dualidades e a feitos contemporâneos da escritora,o que implica um estilo pomposo, hiperbólico eafectado que desagrada ao gosto de hoje, comotambém pode desagradar a adulação enquantogesto poético. Todavia, os elogios métricos, comointitulou Faria e Sousa uma parte da sua Fuente deAganipe, integravam a produção literária da épocae foram decisivos na formação da poética e doestilo barroco. Sonetos, Canções, Silvas, Décimase Tercetos são as formas estróficas que tomam oselogios, ao passo que os Romances e as Glosasservem apenas temas de amor.Nesses panegír icos de Violante podemosdiscriminar: os louvores de aristocratas, os deescritores ou de livros, os de pregadores ou de

* “Introdução”. In Rimas Várias, de Sóror Violante do Céu.Margarida Vieira Mendes. Lisboa: Presença, 1994.

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sermões, os encómios de D. João IV e daRestauração, e três outros endereçados a persona-lidades várias (um médico da corte, um núncio,um prior de S. Domingos). As famílias homena-geadas, quer nas Rimas quer no Parnaso são osNoronhas, os Lencastres, os Castros – onde seentrevê, por conjectura, uma dívida de criação oude benesses.Destaco mais seis poemas de circunstância, aindaque não sejam panegíricos: uma exposição sobrea amizade (n.° 9), uma expressão de dor enco-mendada por alguém a quem morrera um irmão(n.° 37), dois engenhosos comentários de versos(n.os 52, 55) e dois recados com pedidos (n.° 48,54), sendo o pr imeiro quase inteiramentepreenchido com topoi da lisonja. Conviráacrescentar que, por vezes, os assuntos cruzam-se:alguns encómios de pregadores elogiam tambémo seu nome fidalgo; outros valorizam o carácterpolítico do sermão louvado.Os restantes 65 poemas são de expressão amorosa.Alguns incluem os tradicionais ingredientes dalaudatio do ser amado ou amigo, muito enfatizadosna lírica barroca (p. ex., o n.° 88, a Menandra). Derealçar ainda a inexistência de qualquer temáticareligiosa, prevalecendo a dimensão cortesã,mundana, literária e política.Os reflexos da sociabilidade conventual naprodução poética irão evidenciar-se apenas noParnaso lusitano – p. ex., o hábito de fazer Glosasem comemorações religiosas já que a Glosaalcançara a sua máxima popularidade no séculode ouro espanhol, ou ainda os Vilancicos destinadosao canto na liturgia do Natal. Embora a poesia dasRimas Varias não remeta para o quotidiano devotodum mosteiro, excepção feita para o Capítulo(n.° 48), sabemos que não era estranha à vidamonástica a incursão artística e intelectual emterritórios laicos.É conhecido o grande número de poetas que com-prometeram a sua musa na aclamação de heróislusos, na Restauração e na propaganda patriótica

nacionalista que a acompanhou e antecedeu. Deentre as escritoras, a mais considerada no tempo,Bernarda Ferreira de Lacerda, foi autora de Españalibertada (Parte I, 1618, Parte II, póstuma, 1673),epopeia que narra as origens da reconquista cristãpeninsular e que valoriza, embora só na Parte II, opapel dos lusitanos. Lembro também D. Marianade Luna, de Coimbra, que escreveu um Ramalhetede flores à felicidade deste reino na sua milagrosarestauração, publicado em Lisboa, em 1642. Poroutro lado, inúmeros foram os sacerdotes queutilizaram os seus discursos sagrados na defesaexaltada da autonomia nacional.

2. Violante escreveu a maioria dos elogios métricosem castelhano, mesmo quando servem para apoiara causa portuguesa. Impera neles o vocabuláriograndiloquente (deidades, eternidade, celestial,prodígio, portento, divino, peregrino) e outrostraços convencionais da literatura encomiástica: asmaiúsculas, os graus comparativo e superlativo,imagens clássicas como a Fénix, a décima Musa, aquarta Graça, a convocação de Musas, dos astros,do Oriente, de heróis e divindades (Apolo, Vénus,Minerva, Adónis). No domínio simbólico, sobressaia grandeza espacial (a imensidade, a esfera, o globocristalino, de pólo a pólo), o eixo vertical etotalizante (celeste/terrestre), a metáfora tradicionalda escr ita e do livro (resumo de virtudes,compêndio, suma, epilogar), as isotopias da luz ouclaridade e, finalmente, a sistemática aproximaçãodo humano e do divino. Sor Violante exprime-seentão, de preferência, nos modos exclamativo eimperativo, ao mesmo tempo que evidenciaadmirações, espantos, suspensões, acompanhadasdo alarde de paradoxos extremados e de arrevesadashipérboles. Nada existe de personalizado nestediscurso, excepto a eleição obstinada de umnúmero restrito de receitas.Os traços louvados também podem ser facilmenteenumerados, porque uniformes: a nobreza dosangue, ou seja, o nome e a prosápia; a beleza física;

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a inteligência e engenho; os efeitos de assombro emaravilha causados por esse engenho, sobretudono caso de livros escritos e de sermões proferidos.Quase sempre, esses traços sobrepõem-se em cadauma das composições, chegando a decidir da suaestrutura compositiva. É o caso da Canção a D.Mariana de Noronha (n.° 31) onde a partir doconteúdo binário exposto na terceira estrofe, en tise ven iguales / belleza y descrición, Violante elaborauma sequência de simetrias, em microestruturaslexicais, sintácticas e rítmicas: versos como DoctaVenus, en fin, Palas hermosa ou a la gloria de oírte y demirarte. Tal como noutros, neste encómio argu-menta-se somando o mérito do sangue com o dainteligência.O tema do engenho verbal é aquele onde seesmera a paleta do vocabulário e demais recursosde sor Violante. Além da palavra engenho, topamosrecorrentemente com outras do mesmo campo,como agudeza, elegância, erudição, saber, sutileza,entendimento, conceitos, ideia, eloquência, semesquecer os protótipos mitológicos (Palas Atena,Apolo, as Musas). É com uma exuberância de luxoque a autora presenteia aqueles que admira,certamente os destinatários reais de cada escrito.De facto, a designação das qualidades artísticas vemrecamada de epítetos e imagens da convençãolaudatória: o símile do império e da vitória bélicaaplicado à eloquência (que rende, ganha o troféu,glorifica); a alusão ao emblema de Hércules Gálico,significando o efeito poderoso das palavras doorador que aprisionam com correntes os ouvintes(cf n.° 28). Violante do Céu participa assim datendência estética própria do barroco, que consistena reflexividade artística, ou seja, no facto de umapeça de arte representar, comentar ou aplaudir aprópria actividade que a gera.

3. Nas Rimas Varias, os versos panegír icosactualizam de modo sistemático, para não dizermonótono e cansativo, estratagemas ou troposenunciativos que posso apresentar de forma sucinta.

O primeiro e mais insistente, quase obrigatório,é o que explora e amplifica, de forma rebuscada,o lugar-comum da falsa modéstia: a declaraçãoda inferioridade do discurso relativamente ao entecelebrado. Este topos adquire forte dinamismo nascomposições de sóror Violante, pois converte-seno motor de grande parte ou até de toda ainvenção, no conceito que a estrutura. Chama asi a diversidade, ainda que circunscrita, de outrostópicos, como os impossibilia, e de figuras daoposição, como o paradoxo, a antítese, aantonímia: os louvores são delitos, toda alabanzaes osadía, que serán los hipérboles ofensas. Brotamcom algum efeito as interrogações retóricas dotipo: Qué hipérbole habrá ya que se os aplique? Epredominam os paradoxos metapoéticos, cujotema consiste na própria feitura da poesia – temaconstante em Violante do Céu. O tópico podeainda servir de achado para rematar um poemacomo o n.° 27, que termina assim: que aplauda tuvalor con mi silencio.Os impossíveis com que sor Violante tematiza aactividade poética do encarecimento, multi-plicando a ideia de que o significante fica sempreaquém dum significado sublime, assentam emvariações sobre imagens tradicionais: semear naágua, arar o vento, aprisionar as ondas, endurecera espuma, edificar no ar, e ainda sobre aconstrução frásica do tipo: atrevase mi pluma / areducir lo inmenso a breve suma ou querer encarecer--vos, eleger os caminhos de perder-vos. Se as realizaçõesverbais recorrem a fórmulas previsíveis, o seuemprego acaba por agradar, dada a leveza eelegância da execução.Esta é uma das características da arte de sórorViolante. Dona do seu estilo, artifíce consumada,encontrou uma maneira sua, colhida obviamenteno repertório de arquétipos e convenções jáexperimentadas anteriormente, mas seguindo umprocesso de selecção e uma actualização do primor,onde sou obrigada a reconhecer uma marcapessoal. É inconfundível o seu modo de dizer o

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louvor: obsessivo e depurado ou pobre, sequisermos, nos recursos figurativos – sempre iguais,sempre os seus –, mas instintivamente harmonioso.No elogio dos talentos literários, ao acentuar adistância que vai do seu estilo indigno e curto àsuperior eloquência do escritor, orador ou livrogabado, Violante do Céu converte esse antigo tropodo discurso na matéria ou invenção integral deum poema, de muitos poemas encomiásticos;outras vezes resolve pedir socorro ao próprioengenho que está a aplaudir (n.° 31):

díctame de ti misma lo que entiendes:pues sola tú, tus gracias comprehendes,harás con esta acción que el canto míosea milagro tuyo,y admiración del orbe el eco suyo.

O tema da fusão da imortalidade do ser cantadocom a do próprio canto ocorre nesta poesia,podendo servir para, com amplificações, armarintegralmente um poema de louvor (ou até deamor, como o Soneto n.° 1): haciéndonos eternos enun punto / a ti la perfeción, a mi el asunto. A individu-alidade de Violante não reside no recurso a esselugar-comum, mas sim na sua eleição exclusiva eno gesto de o converter num concepto orgânico,dotado de energia criadora, ou pelo menos, doa-dora de forma: dele extrai e com ele edifica inte-gralmente um poema. A sua arte é a da variaçãoordenada, quer dizer, moldada numa estruturaunitária, geométrica e fechada.Uma segunda táctica, restringida a certos poemas,é a que expõe e desenvolve, intensificando-a, arelação encontrada entre o discurso que é objectodo louvor de sor Violante – um livro, um sermão,uns versos – e o assunto desse mesmo discurso.Por exemplo, na composição n.° 28, a escritoravai extremar a oposição entre a excelência sagradada erudição de um pregador (frei Domingos de S.Tomás) e o caso horrendo do assunto tratado numsermão seu, ou seja, o roubo do SS. Sacramento,

desacato sacrílego cometido na Igreja de SantaEngrácia: que aspira a competencia / la honra con lainjuria. Competem ou imitam-se entre si a honraou valor literário do sermão e a injúria própria dotema nele tratado.O paradoxo torna-se a figura ou achado retóricoque confere a alguns poemas laudatórios a orga-nização barroca alicerçada no número dois:bimembrações, paralelismos, simetrias, antíteses –caso dos Sonetos n.os 15, 16 ou o n.° 4. Este últimoelogia a fineza do amor conjugal da condessa daVidigueira, por meio da amplificação do contrasteclaro-escuro (o Sol do amor manifestado pelaescuridão do traje pardo do luto).Uma terceira situação discursiva de caráctermetapoético e encomiástico, que não envolve atotalidade de uma poesia, é a que transforma aMusa ou o voo de mi pluma no sujeito das acçõesrepresentadas (vejam-se as composições n.os 33 e34). Invocada a Musa, a lira, a métrica ciência,Apoio, etc., a autora ausenta-se, cumprindo simul-taneamente a obrigação da modéstia e a exaltaçãodo ser louvado, servido já não por si mas peladivindade interpelada.[...]

Os amores

1. Podem as observações metapoéticas de Violantedo Céu incidir sobre dois aspectos da relação doamor coma poesia. O primeiro diz respeito aomodo, o segundo à função ou finalidade da escrita.Quanto ao modo, a escritora defende a tácticado encarecimento: ao interpelar a própria Musapoética, pede-lhe que o seu dizer seja tãohiperbólico e excessivo quanto o são as perple-xidades dos estados causados pelo amor – cantadpues exagerando / lo mismo que estáis sentiendo (n.°51) – a fim de que, pelo canto, as loucuras seconvertam em excelências, os delírios em acertos.

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No que diz respeito à função, atr ibuiexplicitamente à poesia a vocação para imortalizartanto as glórias quanto as infelicidades do amor –com a pluma, coronista seré (n.° 1) – e; implicita-mente, orienta-a para a biografia sentimental, cujassequências vão tomando forma durante o exercícioda própria produção escrita e dela resultam.Ficam assim postulados dois temas de uma teoriapoética da expressão amorosa: a intensidade, poisa poesia só pode ser homóloga do estado amoroso,equivalente ou simulacro dos seus excessosparoxísticos (daí o elogio da hipérbole); a qualidade,pois ela opera uma transformação alquímica dosentimento, que o arranca à efemeridade anedóticado tempo, para o candidatar ao bronze da eternidade.São temas que se inserem na interrogaçãotradicional das misteriosas relações entre o cantoe a experiência do amor, e na insistente reflexãobarroca sobre os efeitos e possibilidades dos códigosartísticos.Por outro lado, a linguagem poética, então forte-mente codificada e plena de recursos (com o seuléxico, g iros sintácticos, metáforas, troposdiscursivos, rimas variadas, referências mitológicas,temas consagrados, menu de tópicos e de símiles),estimula a emergência de cada poema e, com ele,a construção das próprias vivências amorosas.Topamos assim com uma espécie de histeria oude mediação metapoética no confessionalismo deViolante: o sujeito não sente, pensa ou imaginaantes, escrevendo depois; com efeito, é só namedida em que escreve, recorrendo a esquemasliterários, que os sentimentos e a sua perscrutaçãologram uma possibilidade de forma consistente,efectiva e necessária. Daí o recorrente temametapoético do trânsito entre o modo de expressãoe o próprio estatuto da poesia. Sor Violante doCéu prolonga pois, tal como tantos outros poetasda época mas com a sua maneira ao mesmo tempoconvencional e pessoal, a atenção dada à ancestralassociação do amor ao canto poético.

2. No que respeita a situações enunciativas,predomina na poesia de Violante a queixa contraas penas de amor causadas pela ausência, pordesdéns e demais agravos, por ofensas presumidas,inconstância, crueldades, e a expressão dodesengano, dos ciúmes, do temor das mudanças.Isto sobretudo nos versos de medida velha(Décimas, Glosas, Voltas e Romances). A escritorapersiste na análise e descrição poética dos sintomasamorosos: desassossego, cativeiro, suspiros,desfalecimentos e toda a espécie de contradiçõesemocionais. As fórmulas conceituosas a que deitamão em cada poema vêm condensadas numaorganização unitária, ora breve ora acumulativa,característica da estética barroca:

Que suspensão, que enleio, que cuidadoé este meu tirano deus Cupido?pois tirando-me em fim todo o sentidome deixa o sentimento duplicado.

Ao proceder desse modo, sor Violante utiliza omesmo léxico, a mesma sintaxe, as mesmas rimas(mudanças / esperanças, glória / memória) dapoesia cancioneir il do amor cortês e dopetrarquismo, com muitos ecos de Garcilaso oude Camões e com o acento característico dasRimas de Lope de Vega. Esse modelo foi praticadona Península desde finais do século XV,consolidado na poesia maneirista da segundametade do século XVI e recheado com aimaginação figurativa recorrente na literaturabarroca. Atente-se, por exemplo, no motivo dodissídio psicológico sofrido pelo amante, ou seja,os sintomas paradoxais, frequentementemetaforizado em guerra civil interna, na poesiapós-camoniana: num poema como o n.° 76,Romance que narra, com pormenor, o duelo entreo amor e as suspeitas, Violante do Céu vaicorporizar esse motivo no artifício de uma alegoriaintegral.

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Nas Rimas Varias, o debate contínuo sobre a mortede amores associa-se à nostalgia do ser ausente, àdor da separação ou da infidelidade, ou ainda àansiedade devida à falta de cartas (n.° 6, n.° 25). Amorte pode tornar-se um princípio da invenção,quer por transporte metafórico (e, deforma realista,metonímico, como no Soneto a uma sangria,assunto da moda versificatória do tempo), querpor constrangimento rimático (ex. o n.° 22, SonetoContínuo, com vida e morte como palavras-rima);noutros casos, constitui-se como matriz semânticada composição: nas duas Glosas, intrincadamenteparadoxais, ao mote Muriendo del mal que vivo / novivo del mal que muero, ou no Soneto n.° 25, sobreas dores da ausência após a despedida – Vida quenão acaba de acabar-se, que é só viva ao pesar, ao gostomorta.Nota-se nestes poemas o comprazimento doentiono desejo de morte e nos estados de contradição(muero y vivo, lloro y canto / tiemblo y ardo, espero ytemo), o jogo versificatório entre as faculdades doser humano, memória, entendimento e vontade,as quais sofrem, no Soneto n.° 17, um tratamentocoreográfico tipicamente barroco (disseminaçãoparalelística por cada uma das estrofes e recolecçãodas três no último verso), e ainda a hiperbolizaçãodos sintomas do amor ferido. Afinal, tudo o queprovém do século anterior peninsular e que cris-taliza no barroco. Violante multiplica deste modoos esquemas de oposições (canto / choro, gosto /tristeza, temerário / temeroso, insultos / finezas,favores / desenganos, delícias / tormentos), aomesmo tempo que se fixa num vocabulário espe-cífico e em imagens consagradas, como a do labi-r into, exagerando sempre a ostentação dasconsequências psicológicas do amor infeliz. Afaceta gnómica da literatura barroca também nãoé alheia à temática do amor, pois nalguns poemasdesfilam sentenças, sempre ligadas ao desengano(sucede al mayor gusto la tristeza ou que siempre tras elbien el mal sucede).

Eis o que define a parte mais imediatamente per-ceptível do lirismo amoroso de Violante, e quenão chega para singularizar a autora.O que de facto a distingue é que toda esta maqui-naria poética vem suportar não já uma reflexãoabstracta sobre o amor em si mesmo e os efeitosque causa em quem o sente, mas antes, e de modomais concreto, uma exposição de estados da vidaafectiva provocados por desgostos e faltas de váriaordem. [...]O tema mais caro a Violante é o da ausência doamado, próprio aliás da tradição secular do cantofeminino. [...]

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TEXTOS LITERÁRIOS

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joao

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Carta que o autor mandou com a Écloga seguinte,contra os enganos da cobiça, a um amigo queixoso.

1 De quanto tempo dais a Amor e a Marte,Um arriscado, o outro poderoso,Também, senhor, a Apolo deveis parte,

2 Que o ser honrado, ilustre e valeroso,Posto que sempre em tudo vá adiante,Ser cantado por esse é ser famoso.

3 Ser de todos amado e ser amanteDe um ingrato poder de gentilezaÉ justo que se escreva e que se cante.

4 Em toda a ocasião, em toda a empresa,As celebradas Musas lugar deveQualquer honrada e clara natureza;

5 Quanto mais este canto que se atreveA buscar-vos, queixoso da ventura,De cujas sem-razões tão largo escreve.

FranciscoRodriguesLobo*

ÉCLOGA III

* Transcrição da Écloga e dos poemas da “Pastoral” a partirde: Poesia de Rodrigues Lobo. Apresentação crítica, selecção,notas e sugestões para análise literária de Luís Miguel Nava.Lisboa: Comunicação, 1985.

6 Porque quanto se canta e se murmura,Em Sátiras, em Liras e Elegias,Tudo contra ela se arma e se conjura.

7 Desprezos, insolências, tiranias,Erradas eleições, leves privanças,Ora mudanças vãs, ora porfias,

8 Desenganos em paga de esperançasE em lugar de castigos galardões,E a qualquer merecer, desconfianças:

9 Estes são os louvores e os pregõesQue delas andamos sempre publicando.Retratando no verso os corações.

10 Vós, que agora ficais do nosso bando,A quem ela não só nega o que deve,Mas confessa que deve, e vai roubando,

11 Dai uma hora ociosa, um tempo breve,Às queixosas razões dos meus pastores,Que cada um como rústico se atreve.

12 Furtemos tempo às armas e aos amores,Que inda espero que o tempo me ofereçaE a vós o céu lugar doutros louvores,

13 Que quem com os males sós também começa,Que deles para glória se aproveita,Obriga o fado e faz que lhe obedeça.

14 Tomareis da ventura a mão dereita,Dos trabalhos o fruto desejadoE os bens de Amor, que o melhor tempo espreita.

15 Agora ouvi os rústicos do gado,Que nos montes, nos campos nem na aldeia,Nenhum vive contente e sossegado.

16 Amor os vence, a sorte os senhoreia;Diviso império, estado perigoso,Só quem o desconhece o não receia.

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17 Bento reprende a Gil de cobiçoso,Gil a Bento de namorado acusa,Mas não pode livrar-se de invejoso.

18 Gonçalo vive triste, Inês confusa,Porque ela, vendo as cabras de Joane,Trocou-se como à vista de Medusa.

19 Não há a quem não vença ou não enganeEste interesse, esta cobiça imiga,Nem desejo de Amor que não profane.

20 Honra, termo e valor (que nada obriga),Juízo, proceder, esforço e arte,Era tesouro enfim da gente antiga.

21 Os dões que a natureza hoje repartePelos da vil fortuna ingrata e cegaSão desprezados já por toda a parte.

22 Quando louvor às obras não se nega,Lhe tira o preço o nosso cego engano,Que com tão curto braço a tanto chega.

23 Reinou Amor, sucede-lhe um tirano;Desprivou a razão e priva agoraQuem pode e faz no mundo tanto dano:

24 O vil com este enleio se melhora,Porém o valeroso é prudente;Um se ri da fortuna e outro chora:

25 Mas o seu termo bárbaro e insolenteA vossas pretensões nada acobarde,Com os poderes que tem sobre outra gente.

26 O sábio ao queixoso diz que aguarde;Desconfiar nos males é fraqueza;A melhor fruita colhe-se mais tarde;

27 Vereis felice o fim de vossa empresa,Vencida a sorte, Amor por vosso intento,Que os bens tem por costume e naturezaCansar antes da vinda o sofrimento.

BENTO, GIL E GONÇALO

BENTO

1 Como estás, Gil, descansado,A sombra desse amieiro,Seguro no teu rafeiro,Que anda vigiando o gado,

2 Ora cantando a saborDas pastoras deste monte,Ora rodeando a fonte,Quando tem sombra melhor?

3 Eu (mal pecado) em contenda,Dando-me sempre de rostoInimigos de meu gosto,De meu sossego e fazenda.

4 Dá mil graças à ventura,Que te consente descanso,Que eu, triste que não a alcanço,Nenhum bem se me afigura.

GIL

5 Pode ser que em MadanelaEstavas cuidando agora.Antes estava bem fora,Bento, de me lembrar dela.

6 Senta-te junto de mi,Descansarás neste assento,E não corras tanto, Bento,Que ninguém corre trás ti.

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7 Que o descanso que me invejasConsiste em saber gozá-lo;Mas queres mais desejá-loQue alcançar o que desejas;

8 Pois não te tolhe a razãoGozar das flores do monteE das águas desta fonteSenão tua condição.

9 És pastor e injustamenteQueres mais que o teu cuidado;Quem não vive descansadoMal pode viver contente.

10 Serve e guarda o teu rebanho;Veste a lã e come o leite,Que eu fico que te aproveiteMais este que essoutro ganho.

11 Mas querer buscar venturaFora desta que se alcançaE viver doutra esperançaÉ não na trazer segura.

12 Isto só te certifico:Que não há na redondezaPobre para a naturezaNem para a cobiça rico.

13 Deixa à fortuna os haveres,Que enfim todos são de vento.Buscas só contentamento?Podes tê-lo. Que mais queres?

BENTO

14 Certo que estás enganado,Que quanto o ser cobiçosoNem me faz viver queixosoNem tira o ser descansado,

15 Porque eu não vivo em contraste,Pelo muito que deseje,Que não busco o que sobeje:Quero somente o que baste.

16 O sapato que é folgadoAjuda a andar com despejo;Se é largo, logo faz pejo,Mas corta, se é apertado.

17 Eu não procuro os haveres,O poder nem a abastançaDos que vivem mar bonança,Pedindo à boca: - que queres?

18 Desejo o pouco centeioQue ora este ano Deus me deu;Tê-lo cada ano de meuE não os olhos no alheio.

19 Desejo com outro igual,Que sãmente comunico,Não ver a casa do ricoNem do grande e principal;

20 Não ter contenda nem tratoCom honra, inveja, privança,Porque nunca fez mudançaQue não desse esfolagato.

21 Mas, se do pouco que esperoE do meu pequeno bemHá-de murmurar alguém,Digo, pastor, que o não quero.

GIL

22 Grande cousa é liberdade,Ter pouco mas sem contenda,Que arrenego da fazenda,Por quem se vende a vontade.

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23 Comer o meu pão suadoDá gosto, e mais é razão,E assi mandou Deus a AdãoQue pagasse o seu pecado.

24 E para arredar o viçoBurel é sempre o melhor,Porque é todo de uma corE atura mais no serviço.

25 O mais me dá pouca guerra,Ande a alma só louçã; *Que os vestidos são de lãToda de animais da terra.

26 E já quando Adão comeuO bocado da peçonhaVestiu-se, só com vergonhaDas culpas com que a perdeu.

27 Nós, sem ela e sem sentidoTanto honramos esta afronta,Que já se não tem em contaHomem senão bem vestido.

28 Duma gente ouvi contar,Rude, agreste e mal polida,Bem para invejar-lhe a vida,Se na vida há que invejar,

29 Que, livre destes cuidados,Sem que alguém do sono a prive,Sem lei, sem cobiça vive,Sem casas e sem pousados.

30 Das peles dos animaisOs homens andam vestidos;Não tem termos repartidos;São todos na posse iguais.

31 Guardam gados na montanhaAs casas em carro trazem,Buscam pastos que lhe aprazem,Ninguém por isso os estranha.Buscam pastos que Ihe aprazem,

32 Não tem herdade ou tesouro,Não tem pátria nem desterroE tem em mais conta o ferro,Para trabalhar, que o ouro.

33 Não tem engano e cobiça,Nenhum mais que outro presume,Nenhum rouba e por costumeGuardam sempre uma justica.

34 Mantem-se de mel e leiteE dos frutos do arvoredo,Colhem com gosto e sem medoDoutro dono que os espreite.

35 Não andam contino em guerra,Com a cobiça enganada:Não tendo da terra nada,Possuem tudo da terra.

36 Ah! cobiça mal nascida,Peste primeira do mundo,Que nunca tiveste fundo,Nem largueza, nem medida!

37 Porta que se abriu no centro,Para perdição da terra,Laberinto onde quem erraNão sabe sair de dentro!* Em José Pereira Tavares, «Onde a alma só louçam»; trata-se

evidentemente duma gralha. O sentido do verso deverá sero seguinte: Só alma (e não o corpo) ande alegre, ornamentada.[Esta nota é de L.M. Nava.]

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38 Estes, que não conheceramTeu vil desejo e danado,Desprezaram sorte e fado;Tudo tem, tudo venceram.

39 Tu descobriste os segredosQue o Sol escondeu ao mundoNas águas do mar profundo,Nas entranhas dos penedos.

40 E por fazer vão tesouroTambém seu fim descobriste.Que até o inferno abristeMinas de inferno e de ouro.

41 Rompeste os muros da terra.Que o mar temeroso enfreiam,E tudo o que os céus rodeiamDeste a fogo, a sangue, a guerra.

42 Cobriste o mar de atrevidos(Quantos o mar tem cobertos!)Por caminhos tão incertos,Tão certos para os perdidos.

43 Quem te segue não se entendeQuem te ama seu mal procura,Nenhuma cousa é segura,Quando por ti se defende.

44 Ah! Bento, que mal tão forteÉ este, e a quantos dana,De que inda não desenganaO desengano da morte?

45 Deixa-te ora da fazenda.Trás quem andas? trás quem vás?Seja embora rico Brás,Viva, tenha, compre e venda,

46 Vive tu contente e sãoCome o que a terra te der.Que não te há-de falecerDo leite, da água e do pão.

47 E, se não tiveres muito,Terás pouco e sem receio;Pois enfim tudo é alheio,Não comemos mais que o fruito.

BENTO

48 Digo-te que és avisado,Mas já me não era escuroQue o rico é menos seguroDo que um pobre é desprezado.

49 A pobreza é grã fadiga,A riqueza grande enleio;Bom era escolher o meioQuem tivera a sorte amiga.

50 É como vale entre outeiros,Que nada do sol descobre,Entre soberbos o pobre,O rico entre lisonjeiros.

51 Guarde-te Deus de um engano,De um bom rosto contrafeito,De homens que trazem no peitoSempre um cavalo troiano:

52 Palavras todas de amores.Tenção perversa e danada,Peçonha dissimuladaComo bíbora entre flores,

53 Com a fala sempre a sabor,Te dão pírolas de fel;Põem-te pelos beiços mel,Para que engulas melhor.

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54 Se sabem que tens de teu,Aí te digo que ela é tal,Que às estrelas querem mal,Se alguma estrela to deu.

55 Logo te acham mil defeitos,Logo te armam mil ciladasAs línguas sempre ensaiadasPara encobrirem os peitos.

56 Em que estamos disputandoSó Deus poderá emendá-lo!Para nós se vem Gonçalo;Ouçamos, que vem cantando.

CANTIGA DE GONÇALO

57 Deixas-me, Inês, por escolher Joane,E eu por ti deixo tudo.Esse teu falso engano, como eu cudo,Praza a Deus não te enganeNão digas alguma hora:Este bem que escolhi, que nunca o fora!

58 Ele tem mais novilhos na manada,Tem relvas e currais,E eu para te querer não tenho maisQue viver por soldadaSe é possível que vivo,Sendo ele teu senhor e eu teu cativo.

59 Sai sempre nas festas mais luzidoAnda gordo o seu gado;Eu de tosco bure], grosso e pesadoTrago sempre o vestido,Tiro às vacas o leite,Para que em outras faltas me aproveite.

60 Tem muitos conhecidos pela aldeia,Amigos do seu muito;Ceres com o louro trigo e ledo fruitoLhe deixa a casa cheia;Eu mui pouco centeio,Merecido a jornal no campo alheio.

61 Mas ah! Inês, que amor interesseiroNão tem fim venturoso,Que, se por um vaqueiro mais ditosoDeixas o teu vaqueiro,Olha que essa venturaMuitas vezes engana e poucas dura.

62 Eu mais te quero e não te desmereçoPor bens da natureza;Porém, se o preço está só na riqueza,Joane tem mais preço:Escolhe a teu sabor,Que um te merece mais, outro melhor.

63 Nem me vence lutando na campina,Nem lavrando no monte,Nem tangendo melhor ao pé da fonteA sua sanfonina,Nem em saber tocá-la,Nem em ter mais ensino quando fala.

64 Vence-me na fazenda e na valia,Vence-me na esperança,Vence-me em não provar tua esquivançaE tua tirama;Para que em tudo o vença,Dá-me, Inês, teu querer, dá-me licença.

65 Verás um pastor pobre ficar rico,Que em ti tem seu tesouro;Vira-me, Inês, os olhos, que eu te ficoQue vale menos o ouroQue o muito que te eu amo.Mas ah! que em vão te busco, em vão te chamo!

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66 Outrem te tem, outro querer te obrigaE força o teu cuidado;Fique Gonçalo triste e enjeitado,E por ele se digaQue quem não tem fazendaNão ame, não deseje, não pretenda.

[...]

SONETOS

I

1 Aguas que penduradas desta altura.Caís sobre os penedos descuidadas,Aonde, em branca escuma levantadas,Ofendidas mostrais mais fermosura,

2 Se achais essa dureza tão segura,Para que porfiais, águas cansadas?Há tantos anos já desenganadas,E esta rocha mais áspera e mais dura.

3 Voltai atrás por entre os arvoredos,Aonde caminhais com liberdadeAté chegar ao fim tão desejado.

4 Mas ai! que são de amor estes segredos,Que vos não valerá própria vontadeComo a mim não valeu no meu cuidado.

II

1 Se alguma hora o desejo de atrevido,Lisonjeando ao gosto, me asseguraUma esperança vã, pouco segura,Que como sombra enleva a meu sentido,

2 Qual piloto das ondas perseguidoQue dar com a nau à costa se aventura,Assim me vou trás dele e da venturaQue pouco arrisca já quem vai perdido.

3 Porém caindo em mãos do desengano,Como pedra que ao centro se avizinha,Me ofende com mor força o sentimento;

4 Se me aparece o bem para mor dano,Não quero melhor sorte do que é minha:Dos males vivo e deles me contento.

III

1 Se coubesse em meus versos e em meu cantoA tristeza sem fim que o peito encerra,Moveria aos penedos desta serraA nova piedade e novo espanto.

2 Se puderam meus olhos chorar tantoQuanto se deve à causa que os desterra,Cobriram já em lágrimas a terra,Escurecendo o seu tão verde manto.

3 Mas o que tem amor dentro encerradoNa alma, que à língua e olhos se defende,Não pode ser com lágrimas contado:

4 Ah! quem sabe sentir quanto compreendeQue o mal que está oculto em meu cuidadoNão se vê, não se mostra, não se entende.

TERCETOS

I

1 A ti, Lereno ausente, em cuja vidaEstá a de Liseia, que te escreveCom sem-razões tão mal agradecida,

2 Roga esta triste a vista, que não deve,Pois o termo que pede meu cuidadoÉ num comprido mal vida mais breve.

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3 Tu por vontade ausente e desterrado,Eu presa e condenada a meu tormento.Padecendo inocente e tu culpado.

4 Vence, pastor cruel, teu duro intento,E baste, se esta esperas, por vingançaNenhuma culpa e tanto sentimento.

5 Tirana condição, tirana usançaQue castigues de amor um leve enganoCom tão pesado mal, tanta esquivança!

6 Se eu tive culpa foi de amor tirano,Que me levou trás ti por força sua,E de novo receio o mesmo dano.

7 E ainda não foi de amor, foi culpa tua,Que me levaste a alma que eu seguiaE não quero que amor ma restitua.

8 Buscava tua ingrata companhiaE, como me guiava, o amor cegoFez-me errar o caminho que fazia.

9 Mas, se é castigo, enfim já me não nego:Liseia está a teus pés, não te resiste,Torna, pastor, ao Lis, deixa o Mondego.

10 Depois que desta aldeia te partisteTambém dela fugi como culpada,Mas ah! cruel, tu só de mim fugiste.

11 Estou entre as pastoras enleadaE de ouvir meus suspiros e meus aisCada qual foge já de importunada.

12 As árvores, as aves e animais,Ouvindo meus queixumes e tristeza,Com não terem razão se abrandam mais.

13 Perdem estes penedos a dureza,Tu, mais brando que as águas desta fonte,Só contra mim mudaste a natureza.

14 Nem viram mais meus olhos verde o monteNem claro o Sol, depois que te não vejo,Nem as estrelas vi neste horizonte.

15 Nem do mungido leite o brando queijoFiz, nem a nata doce e saborosa;Teu é só meu cuidado e meu desejo.

16 Nem colhi mais no vale a fresca rosa,Nem a roxa viola e o jacinto,Nem a branca cecém pura e fermosa.

17 Em nenhum gosto nem bem meu consintoDepois que me deixou minha venturaNaquele estranho e cego laberinto.

18 Só busco no lugar e na espessuraA ti, Lereno, em brados, e respondeEco no vão temor da noite escura;

19 Nomeia-te outra vez, logo se esconde,E se me vou trás ela por buscar-teE lhe pergunto: aonde? diz-me: aonde;

20 Se de novo outra vez torno a chamar-teE pergunto: em que parte? enternecidaDe longe me responde também: parte.

21 Partirei triste, enfim, mas quem duvidaQue ache outra fera e outra caçadoraQue queira a cada qual tirar-me a vida.

22 Tornar-me-ei peregrina de pastora,Pois o não sou depois que te não viQue em meu gado se mostra cada hora.

23 As cabras, sem pascer, chamam por miComo perdidas já nestes outeiros;Mas percam-se também, pois te eu perdi.

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24 Os tenros cabritinhos chocalheirosNão parecem saltando sobre as floresNem as mães se penduram dos salgueiros.

25 Tem compaixão de vê-los os pastoresQue os viram já (quiçais com muita inveja),Tu só nenhuma tens de meus amores.

26 Torna, ingrato Lereno, onde te vejaE onde para te ouvir cantar mais ledoO vale, o rio, o monte te deseja.

27 Sentado aqui ao pé deste penedoA lira tocarás tão docementeQue emudeças as aves do arvoredo.

28 Farás correr do Lis claro a corrente,Tornar atrás o vento furiosoE florescer o vale de contente.

29 E depois, de cansado ou de mimoso,Inclinando a cabeça no meu braço,Passarás doce o sono saboroso

30 E deste altivo mirto pouco escassoAs desejadas flores cobrirãoO teu rosto, pastor, e o meu regaço.

31 Mas para que te chamo, triste, em vão,Se só para não veres a LiseiaDeixaste natureza e condição?

32 Se esta minha afeição é que te enleia,Veja-te eu, seja tua esta vontade;E a minha seja tua, ou seja alheia.

33 Se outrem possui a tua liberdade,Também será senhora do que eu tinha.Seja ao menos amor para amizade.

34 Eu sou tua, Lereno, e não sou minha,Guardarei como escrava o teu rebanho,Que o grande amor a tudo me encaminha.

35 Servirei quem te amar, pois que mor ganhoÉ de quem por humilde te mereçaQue esperar menor paga a bem tamanho?

36 Mas só não servirei quem te aborreça,Que isto não no consente o que te quero;Nem o Fado permita que aconteça.

37 Vem, esquivo pastor ingrato e fero,Alcance este querer devido fruito,Olha com quanta fé e amor te esperoE o que custa querer e esperar muito.

II

1 Relíquias saudosas, que em memóriaFicastes do meu bem tão mal perdido,De que hoje converteis em pena a glória,

2 Se pode haver nas cousas sem sentidoPela parte de amor um sentimentoQue os poderes da morte tem vencido,

3 Ouvi de minha voz o triste acentoQue suspendendo está nesta espessuraO rio vagaroso, o surdo vento.

4 E vós, alma fermosa, bela e puraQue estais gozando agora livrementeEternos bens de vossa fermosura,

5 Vós, alma bela e corpo transparenteQue para contentar a todo o CéuDeixastes toda a terra descontente,

6 Vós em cujos estremos se venceuA arte e o saber da natureza,Que com tantas invejas vos perdeu,

7 Se lá nesse alto cume de grandeza,Onde tudo são bens de uma alegria,Podem subir suspiros de tristeza,

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8 Ouvi a rouca voz desta Elegia,Mensageira fiel da saudadeDe vossa alegre e doce companhia.

9 Ah! enganosos bens da leve idade,Que mal em vós emprega a confiançaQuem cuida achar razão, tempo, verdade.

10 Só é larga na vida uma esperança,Só a pena nos males é compridaE o mal sempre é maior quando mais cansa.

11 Só encurtam os fados a uma vidaPor quem mil de vontade se perderamSe esta pudera ser restituída,

12 Mas não é ela, não, a que ofenderam,Pois de entre escuras trevas a tiraram,Entre claras estrelas a puseram;

13 O mundo escuro ofendem, que deixaramSem a luz dos seus olhos tão fermosos,Que a morte em vão cerrando se abrandaram;

14 Ofendem só meus ais, tristes, queixosos,Conhecendo no mal a diferençaDoutros dias que foram venturosos.

15 Enquanto amor permite esta licença,Chorai, meus olhos, sempre a triste mágoaE sinta toda a terra a vossa ofensa.

16 Pois perdestes a luz, enchei-vos de águaQue saia destilada deste peitoQue a dor tem convertido em viva frágua.

17 Fazei, águas do Lis, o vosso efeitoE, com doce murmuro suspirando,Buscai ao mar, pagai-lhe seu direito.

18 E se também por sorte acompanhandoVos forem minhas lágrimas cansadas,Com que estou de memórias descansando,

19 Entre nuvens espessas encerradasAs fazei lá subir nesse horizonte,Onde sejam da causa respeitadas.

20 Vós, árvores sombrias que defronteDeste túmulo sacro estais movendoOs altos ramos sobre o verde monte,

21 Com o nome de Amarili ide crescendo,Para que do mais alto das estrelasEla o esteja em vossos ramos vendo.

22 E vós, lume do Sol e inveja delas,Voltai um pouco o parecer divinoA quem se vos não vir pode ofendê-las,

23 Logo fareis que o Céu claro e benignoDefenda este lugar sereno e santoQue esconde o vosso corpo doutro digno.

24 Fareis subir ao Céu mui baixo cantoE às nuvens penetrar com voz internaQue com força da dor chegará a tanto.

25 Sobre essa Jerarquia alta e supernaLevará esta oferta que oferece,Que pode ser no mundo quase eterna,Porquanto dura, a vida que aborrece.

REDONDILHA

I

Aquele tempo que vi,Que só posso chamar meu,Como sonho se perdeu,Como verdade o senti.

1 Aquele contentamentoTão vendido da venturaA peso de sofrimentoPassou como encantamentoConverteu-se em sombra escura.

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2 Fiquei cego na mudança,A luz dos olhos perdi,Mas, sem nenhuma esperança,Ainda vejo na lembrançaAquele tempo que vi.

3 Que mal para a fantasia,Que pena para o desejoQue teve tanta ousadia,Lembrar-me o tempo que viaQuando nas trevas me vejo.

4 Daquele ditoso estadoToda a glória se perdeu,Foi bem, mas era emprestado,Ficou-me dele o cuidado,Que só posso chamar meu.

5 Deste vivo tão contente,Por descontente que seja,Que, ainda que me atormente,Quando o vira noutra genteMorrera de pura inveja.

6 Aquele suave enganoQue num momento me deuUm gosto tão sobre-humano,Como era sonho, em meu danoComo sonho se perdeu.

7 Que mais se há-de presumirDe vós, dura estrela minha?Pois para eu ter que sentirInda os bens se hão-de fingirEm sombra aos males que tinha.

8 Pois o ordenaste assim,Matai-me de saudadeDe um engano que perdi,Que, se não foi de verdade,Como verdade o senti.

II

1 Ferindo o Sol sobre as ondasque umas com outras combatem,desconcertados os ventose encapelados os mares,

2 Borrifados os rochedos,aonde não chegaram de antes,que, inda que altos e segurosestão das ondas cobardes,

3 Feito em mil serras o maraonde parece que pascemao longe brancas ovelhasdescendo em profundos vales,

4 Quebrando na surda praiaas águas que de alto caeme que quebrando ameaçamaos ousados navegantes,

5 Em uma pequena barcaque parece que não cabeentre elas, que de indinadasa lançam de parte a parte,

6 Remando à vista da terrauma rigorosa tardevinha o pescador Iolascantando entre tantos males:

7 - Lembra-te de mim,Clóris, ninfa ingrata,que o mar não me mata,mas amar-te sim.

8 Neste dano vãode que te contentas,tu só me atormentas,que a tormenta não.

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9 Tu me dás o fimcom seres ingrataque o mar não me mata,mas amar-te sim.

10 Do mar não me veloentre ondas metido,mas de amar perdidoas de teu cabelo.

11 Dele preso vim,ele me maltrata,que o mar não me mata,mas amar-te sim.

12 Ele feito em serrasnão me ofende maisque quando a meus aisos ouvidos cerras.

13 O mar, contra mim,com quão mal me tratatanto me não matacomo amar-te sim.

14 Se agora vieras,Clóris, bem virias,quanto mais podiasque estas ondas feras,

15 Fora para mima tormenta grata,que ela não me mata,mas amar-te sim.

16 O rosto levanta.bela Semideia,ouve esta sereiaque entre as ondas canta.

17 Lembra-te de mim,se aqui morro, ingrata,porque o mar me matapor te amar, sim.

18 Enquanto os ventos desprezamestes acentos suavese os namorados Delfinso seguem, cortando os mares,

19 De dous deles combatidadeu volta a mísera navee nadando o pescadorse salvou da tempestade

20 E depois, da seca areiavendo a bateira afundar-se,sentado sobre um penedotorna a cantar e a queixar-se:

21 - Ventura enganada,ter de teus bens fruito,perde-se quem muito,salva-se quem nada.

22 Se o que é teu me pedes,entre as ondas fica,mas tu não mais rica,com a barca e redes.

23 Se ma tinhas dada,colhe dela o fruito,que em ter de ti muitoé melhor quem nada.

24 Nas mãos te deixeitudo o que era teu,quem vida me deunadando salvei.

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25 Ficarás vingadae eu colhendo o fruitode que no teu muitovive só quem nada.

26 Corre-te, atrevida,que um vil pescadorno mor teu rigorte deixou vencida.

27 E desenganadafica, que o teu fruitoa néscios é muito,a sisudos nada.

* Fuente de Aganipe ou Rimas Varias [...]. Madrid: por JuanSanchez, 1644, p. 114-128.

Manuel Fariae Sousa*

ÉCLOGA IX (excertos)

Interlocutores: Castalio, Melibeo e Sulpicio

Castalio, 1.

À sombra de esse plátano inclinadotu sem cuidados, Melibeo, derramasda branda Avena o número acordado.

Ouvindo as aves de entre as verdes ramas,que estão acompanhando o doce acento,dando Apolo empinado ardentes chamas.

Pondo vás em efeito o brando intentode uma vida quieta e repousada,em quanto eu solto a rédea a meu tormento.

Tu si, que quando a calma mais enfada;quando as fontes a dor me abre do pranto,gozas contente a sombra dilatada.

Sempre ensinando em numeroso canto,a resonar nos montes, Nise bela;centro de essa Alma, e de esta idade espanto.

Tu si, que vendo o Tempo que atropelatantas Grandezas, nessa tua vida.delas isento, não te temes dela.

Melibeo. 2.

Ó Castalio: Que aquela é mais subida,que tantas traz sujeitas, e domina,nunca sujeita, e sempre obedecida.

Cast. Ó Pastor, a que encargos a destina,quando lhe dá esse mando encareces,de Iupiter potente a mão divina.

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Esta que louvas, essa que escureces;uma mar proceloso, e outra manso,a ventura me ensinam que aborreces.

Conceda-nos Deos sempre esse descanso.Se a fonte alegra com rumor caída;melhor, quieta, e lisa em seu remanso.

Ó, alteza de estados pretendida.Porque escureces tanto o verdadeiro,que ao vão todo desejo se convida?

Não há muito, que ufano este pinheiro,que está queimado, vi; mas, por mais alto,um raio que caiu lhe deu primeiro.

Mel. Virás, Castalio meu, de gosto falto.Caso triste elevado à tua esferate faz que humilhes quanto dela exalto.

Que quando a pena oprime, ó quem puderatão fixas ter do pensamento as asas,que donde sucedeu não as moverá.

Em cavernas de horror, e fumeas casas,como do Ceo blasfema, a que se atreve,a Plutam nota vomitando brasas.

Se nesta causa o sentimento esteve;afloxa um pouco a dor; que é justo dar-sea breve vida sentimento breve.

Em estado qualquer não pode achar-semaior bem que dever-se à Naturezao bem de em tanto mal não dilatar-se.

Mas pois na dor que tens há tal graveza,comunica-ma já para ajudar-te;deverás menos dias à tristeza.

Castalio 3.

Quem de soltar a língua terá parte,que grande causa, Amigo, causa grande,tão enlaçada tem para falar-te?

Que entendimento há tal, que tanto mandesobre uma grande dor, que a não senti-laum magoado coração abrande?

Quando a Alma polos olhos se destila,que consolação acha o entendimentocom que possa das penas diverti-la?

Mel Não dês as velas tanto a teu tormento,que percas da razão o claro Norte,e a causa explica desse sentimento.

Cast. Que razão fica, vendo a triste morte,do penhor em que os olhos punha Estela,com tamanha mágoa se conforte.

Vede em seu rosto, de u~a, e de outra estrela,eclipsado o fermoso, claro lume,com as fontes que a dor produziu nela?

Em lágrimas banhada se consume:e se a dor, qual costuma, continua,verás chover aljôfar por costume.

Que é bem que ao nácar da beleza sua,assistido do raio puro, e claro,tão alto produzir se lhe atribua.

Melibeo. 4

Ó Tempo, em bens maiores, mais avaro!Assi cortar ousaste a flor mimosa,dos favores de estela objecto raro?

Conta-me, conta, a causa lastimosa;que apenas nos meus olhos ponho o freo,vendo o golpe cruel da Parca irosa.

Qual humano está dela sem receo?Quem tempo espera? Ó confiança leve[!]se a rosa, inda em botam, cortar-nos veo?

Quem na esperança de anos só se atreve,gastando-os com descuido tão profundo,que parece que ao tempo nada deve?

Que, enfim, tirou? Que, enfim, tirou ao mundoo segundo penhor de Estela clara,porém de seu cuidado sem segundo?

Qual mármore, ou qual bronze, se informarade motivo de dores tão estranho,que para se doer não se abrandara?

Bem em tanto tormento te acompanho.Bem se lamenta Estela, pois lhe faltauma esperança tal de seu rebanho.

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Castalio. 5.

Entendido tens, logo, que a mais altarazão, sempre da pena cai nos laços,por mais que se remonta, ou que se exalta.[...]

Melibeo. 6.

Inclinemo-nos, pois, sobre estas floresque o tempo há-de tingir de negro luto,na tenebrosa ausência das melhores.

Nunca o campo de lágrimas enxuto,Apolo veja; sendo tam conforme,que falta de tal flor de pranto em fruto.

Castalio. 7.

A voz ouçamos, já que o vento dormenas cavernosas grutas divertido;que da causa é possível nos informe.

Mel. Ouçamos, que ela pede atento ouvido.

Sulpicio. 8.

Ouvi-me baxos vales, altos montes,plantas, ervas, e flores,por esses enlutados horizontes:os prantos, e os clamoresde Estela vos direi em voz chorosa.E vós fontes, vós rios, que crecidosvos tomara em seus olhos, saudosa;para que entre soluços, e gemidos,igual choro ofreceraà dor da perda grandede aquele objecto, de su’Alma esfera;ouvi também: que é bem que o curso abrandeem vós a imensa mágoa,que para chorar bem nam tendes ágoa.

9.

E vós, Aves, nos ares levantadas,nem por isso seguras;feras, entre essas brenhas emboscadas;ouvi as queixas duras,envoltas em tristeza quasi eterna.Também as ouvi vós pendentes penhas;que na dureza de seu seio interna,bem é que, ó pena ruda, lugar tenhas.Ouçam-me, pois, atentos,do assento seu se esqueçam,suspendidos de dor os Elementos.Do Sol os puros raios se escureçam;e absorta na tristezacesse de seu ofício a Natureza.[...]

14.

Eu não sei quanto em mim possa ser largaesta vida tam triste,que fica, sem te ver, pesada carga.Mas pois que te partiste,na tua longa ausência bem devianam esperar que a Parca me chamassepara o sono da noite eterna, e fria:mas com final, que a dor calificasse,furiosa arrojar-meem ferro infame, e duro;ou de uma rocha vil precipitar-me.Mas inda vejo neste estado escuro,que feo caso erafazer na dor, o que da dor se espera.

15.

Iá não quero tirar-me a triste vida,por nam tirar-me as doresde que espero outra morte mais sentida.Matar-me com furores,fora matar somente a dor esquiva,

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De um verde ramo o doce pintassirgoVozes ao vento dava;Tais primores inventaQue o Tejo que passavaPirâmides de vidro trasladava.

Anfriso pobre, sobre a barca humilde,Na mão o leme tinhaE, ouvindo o vário canto,Pera a praia se vinhaPor gozar de mais perto a avezinha.

Chegou o peregrino à praia amena,E o pássaro contenteCompassos de gargantaDobra mais brandamente,Como quem de desgostos vive ausente.

Anfriso, de sua barca debruçado,Ao pranto as rédeas davaTendo os olhos na areia,E quando os levantavaAo pequeno cantor assi falava:«Músico ramalhete, que cantandoAo tom das claras águas,De cuidado isento e de mágoas,Não sentistes de amor as duras fráguas;

* Os poemas marcados com * antes da indicação darespectiva fonte são transcritos a partir da antologia Poetas doBarroco, de M.ª Lucília Gonçalves Pires (em futuras citações:MLGP). Cfr. Bibliografia.

que eu quero que me mate esquivamente,e sobre assi matar-me fique viva.Somente ela me acabe, eu nam somente.Iá nam, desesperadade que a dor nam me mate,quero a matar-me ser antecipada.Ela desesperada, si, rematetal vida: que tal morteé devida à tua perda, e minha Sorte.[...]

Manuelda VeigaTagarro*LAURA DE ANFRISO

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Altíssima excelência,Luzente espelho de divina essência,

Deixai, deixai profanos pensamentos,Vede que penduradaDaquela Cruz sagradaEstá por escutar vossos acentosA Beleza eternaQue com o aceno terra e céus governa.

Subi, pois, instrumento, a doce prima*

E chorai suspirando,E suspirai cantando.Oh que doce canção! que doce rima!Que lágrimas sem contoSão de uma alma amorosa contraponto.

Aqui, como cantardes brandamente,Ficareis pendurado,Ao tempo consagrado,Por que quando vos vir entenda a genteQue nunca gozo achastesEnquanto fora desta Cruz cantastes.

Mal podiam fartar-se meus cuidadosEm amor lisonjeiro,Indigno cativeiro,Pois pera tanta glória eram criados,Pera amar a BelezaQue fabricou os céus e a natureza.

Divino rosto, mais que o sol fermoso,Que entre penas e doresEstais chovendo amores,Nesses mesmos opróbrios mais airoso;Doces quebrados olhos,Que aos corações tirais setas a molhos;

Se faz das ondas órgãos de cristalEste rio fermosoA que os cantos largaisDo álemo frondosoCom vossa companhia venturoso;

Se as capelas de vozes acordadasQuando as pintadas avesFazem salvas ao dia,Alegres e suaves,Ora agudos acentos, ora graves;

Se naquele sonoro ajuntamentoDe solfa não aprendidaLançais o contrapontoCom garganta subidaTemei, pássaro, a sorte endurecida.

Temei do caçador os cegos laçosE temei muito maisAs redes do AmorQue se hoje cantais,É porque vosso mal não adivinhais.

Não fieis nessas penas de ouro e verdeNem no canto acordado,Porque eu também cantei.Ai, rigoroso fado!Quantos tiros esta alma tem provado!»

Isto dizendo, o pássaro voava;E ele, a proa virandoDividia as escumasSuspiros derramandoQue os ventos pelos ares vão levando.

(*Laura de Anfriso, livro V, Ode IV, fol. 106 v-107 v)

Rouco instrumento, que tão mal cantasteTerrena fermosuraDe frágil criaturaE daquela eternal vos não lembrastes * A primeira corda do instrumento, a de som mais agudo.

[Nota de MLGP]

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Recebei branda e amorosamenteOs acentos suavesQue com suspiros gravesVos oferece esta alma descontenteA vós sacrificadaTantas vezes do mundo acutilada.

(*Laura de Anfriso, livro V, Ode IX, fol. 113 r-114 r)

Dizei: trás de que andáveis, pensamentos,Tragando nuvens e bebendo ventos,Cegos e desvelados,De outros maiores bens nunca lembrados,Após uma figuraQue vos há-de assombrar na sepultura?

Os cabelos que o sol escureciam,Que madeixas de Arábia pareciam,Quando com erro airosoForam laços do vento buliçosoQue livre se enredavaNas prisões que de novo Amor formava;

As delicadas sobrancelhas finasQue podem render almas diamantinas;As fermosas pestanasDo deus guerreiro setas soberanas;Aquelas luzes belasDo sol eclipse, afronta das estrelas;

A testa peregrina de ouro e neveQue a mesma Aurora desprezar se atreve;As cores animadasComo rosas em leite desfolhadas;O colo arroganteDo soberano Olimpo doce Atlante;

O passo triunfante e majestosoQue confessava deusa em modo airoso:Se aljava trouxeraCaçadora Diana parecera,Se escudo embraçaraPalas guerreira enfim representara;

Da delicada voz doces acentosQue enfreavam, cantando, os elementos;A boca peregrinaQue, sendo de rubins, era uma minaDe pérolas luzentes,Dando aos beiços coral, marfim aos dentes;

Todas estas grandezas. alma minha,Em terra se convertem tão asinha,Que apenas apareceDaqui a pouco o que hoje resplandece.Ai, sorte iníqua e vária,A que toda a grandeza é tributária!

Quantos vos devo, ó santos desenganos,Pois deixo bens incertos, certos danos!Se nisto vem pararA beleza mais alta e singular,Dizei-me: que buscais,Errada gente, míseros mortais?

(*Laura de Anfriso, livro VI, Ode III, fol. 120 r-121 r)

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PauloGonçalvesde Andrade*I

Canto las armas, las vitorias canto,Que en fé del venturoso sentimie~to,Hazen tan embidrado el vencimie~to,Como altiva la causa de mi llanto.

Si desmaya la pluma en buelo tanto,Y falta a tanta empresa el ardimiento,Gloria eterna será del pensamiento,Que aliento falte, y no materia, al canto.

La altiva sujecion del alvedrioEncomendar intenta a la memoria,Si mi canto no puede, el llanto mio;

Y baste, por abono de mi gloria,Ver, que a las vozes de mi llanto fio.Lo que deve mi muerte a su vitoria.

II

Solenize el furor de Marte ayradoEl, que aspira a las vozes, que derramaDe sus trompetas inclitas la fama,Desde uno al outro termino dorado.

Que ál poder de unos ojos retirado,Que a más gloriosos titalos me llama,Las glorias devo huir, que el vulgo aclamaConfragando la pluma a mi cuidado.

Y pues tan bellas luzes me ofendieron,Acreditando, al fin, mi ofensa en ellas,Las armas cantaré, que me vencieron;

Que, aun ofendido de sus luzes bellas,Vida será la muerte, que me dieron,Y seran sus aplausos mis querellas.

III

Si igual la voz al sentimiento fuera,Como mi sentimiento a tu hermosura,De los agravios de la edad, figura,Mi pena, ó Silvia, y tu beldad, viviera;

Dichosa embidia a las edades dieraEn tu merecimento, mi ventura,Y absorto el mundo, de tu lumbre pura,En mis incendios, los efectos viera.

Que, si tanto deviera a mi cuidado,Yo dexara en mis versos construido,Un templo a tus grandezas dedicado,

Donde, en comun ofensa del olvido,Yo quedase en tu nombre eternizado,Tu venerada, Amor obedecido.

V Amor secreto.

Ardo; pero de llama tan oculta,Que sirue el mismo pecho al fuego ardienteDe cuna y de sepulcro juntamente,Adonde nace y donde se sepulta.

Si a los ojos en lagrimas resultaBuelto el ardor en misera corriente,Grillos le aplica el miedo, y diligenteLos passos de mi llanto dificulta.

Y si la ardiente llama, de que mueroVive de los remedios escondida,A oculto incendio que remedio espero?

Ó pena ilustremente padecida,Tan grata en los remores, q– antes quiero,Que publicar el mal, perder la vida.

* Várias Poesias. Em Coimbra: Off. de Manoel Dias, Impressorda Universidade, 1658, p. 1-5.

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VI Estimação de penas próprias.

Ardo; pero la llama hermosa, y pura,A que benigna estrella me destina,Tan dulce abrasa, que en virtud divinaTiene poder la ofensa de ventura.

Glorifico la pena en la hermosura,Y quanto el alma de su fuego indina,Gloriosa por la pena se imagina,Hidropica del fuego lo procura.

Al incendio solícita se ofrece,Y a tan hermosas llamas se condena,Que a penas sabe el alma que padece;

Alto decreto que el destino ordena;Porque el que por la pena no merece,Tenga por galardon la propria pena.

VII

Ardo; pero la llama, en que encendidaEl alma, en vivo ardor se considera,Altiva, me encamina a vuestra esfera,De vuestra hermosa esfera precedida,

Impulsos son los que me dan la vidaDel ardor, que en mi pecho reverbera,Donde el alma, solícita se alteraTraz de su fuego, en fuego convertido.

Asi abrasarme, a asi animarme miro,Asi, buscando el natural sosiego,Por los incendios a la gloria aspiro,

Asi a la vida por la muerte llego,Y asi animado de mi fuego, admiro,Que somente la vida el proprio fuego.

IX

Arrepentido no, mas retiradoDe mi cuidado al interior secreto,Por ocultar el amoroso afeto,Oculto en mi cuidado mi cuidado;

Mas el fuego en si mismo alimentado,Quanto más escondido, más perfeto,Con más vehemencias, quãdo más sujeto,El pecho abrasa, donde está encerrado.

Al centro de mi ardor retiro,Porque la llama ilustre no se vea,En que perpetuamente arder me miro.

Respeto vuestro, no mi culpa sea,Si me aparto de vos, por vos suspiro,huyendo el alma aquello que desea.

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A UMA MULHER QUE SENDO VELHASE ENFEITAVA

CANÇÃO

Escuta ó Sara, pois te falta espelhoPara ver tuas faltas,Não quero que te falte meu conselhoEm presunções tão altas;Lembro-te agora só que és terra e lodoE em terra hás de tornar-te deste modo;Mas não te digo, nem te lembro nada,Porque há muito que em terra estás tornada.

Que importa que algum tempo a prata puraDe tuas mãos nacesse,E que de teus cabelos a espessuraAs minas de ouro desse,Se o tempo vil, que tudo troca e muda,Somente de ouro pôs por mais ajudaEm tuas mãos de prata o amarelo,E a prata de tuas mãos em teu cabelo.

Se um tempo foram de marfim brunidoNo século douradoNão vês que o tempo as tem já consumido?Não vês que as tem gastado?Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,Pois quando toco teus nodosos dedosMe parece que apalpo sem enganosCinco cordões de frades franciscanos.

* In Poesias Inéditas. Edição revista e anotada por Mendesdos Remédios. Coimbra: França Amado, 1899. E FénixRenascida, V. Os poemas marcados com * foram retirados deMGLP.

D. Tomásde Noronha*

Viciando a natureza com tuas tintas,Com pincéis delicadosJasmins e rosas em teu rosto pintas:Deixa esses vãos cuidados,Que quanto mais tua cara se alvorota,Máscara me pareces de chacota;E se sem tintas, cuido neste passoQue esta máscara está em calhamaço

Como pretendes pois com mil enganosVestir mil primaveras,Se passou a primavera de teus anos?Como não desesperas,Se o tempo te pôs já no inverno frioAdonde toda a fruta perde o brio,Parecendo teu rosto, e porque enfada,Fruta que se secou, noz arrugada?

Se feitura de Deus Eva não fora,Dissera sem porfiasQue de Eva foste mãe, velha Senhora,Pois te sobejam os diasPara esta presunção, que agora tenho;E concluindo enfim, a alcançar venho,Pois alcançar não posso a tua idade,Que deves de ser mãe da eternidade.

Parece que teus olhos, por consciência,A idade os tem metidosEm duas lapas fazendo penitência;E estão tão escondidos,Que quando os vou buscar, porque me choram,Não acerto com o beco donde moram,Porque o tempo os mudou seu passo e passoDa flor do rosto lá para o cachaço.

Se a meus olhos despida te ofereces,Minha alma logo pasma,E estítica nos ossos me parecesOu quando não fantasma;E assim, senhora, se te vejo em osso,Com essa cara posta em tal pescoço.Me pareces, tirada a cabeleira,Em cima de um bordão uma caveira.

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Como ainda queres em desatinosDar a meninos mama,Se já contigo desmamei meninos?Deixa essa torpe fama,

Sabe que sei (e disto não me gabo)Que te alugou sem dúvida o diabo,Invejando teu corpo, cara e dedos,Para fazer a Santo Antão os medos.

Deixa, Senhora, deixa o vão cuidado,A sagrado te acolhe,Primeiro que te ponham em sagrado;Este conselho escolhe,Admite o que te digo sem desgosto,Que eu quando vejo teu funesto rostoJá também dele o seu conselho tomo,Porque mudo me diz Memento homo.

(*Fénix, V, p. 218-21)

A UMA MULHER MUITO NEGRA

CANÇÃO

Tomo a pena, senhora, e eu concedoQue a não tomei nunca tanto a medo,Como nesta ocasião:Temo de errar, e temo com razão,Porque cousa impossível é acertarAonde alvo não há para apontar:A quem hei-de pedir, que me alumie,A quem, senhora minha, que me guie,Que hei mister luz, e guia,Eu vou entrando, ainda que de dia,Em cousa muito escura quanto a nós,Que entro, senhora, a tratar de vós,Ainda que, senhora, quanto a mimSerá tratar de cousa, que não vi,Porque ainda, senhoraQue vos vejo mil vezes cada horaNunca vos amostrais distintamente,

Nunca vos vi, que fosse claramente.Querer-vos eu ou é força, ou é estrela,Ainda que eu hoje não sei qual seja ela,Com tudo hei-de de dizer,Que estrela é, que me força a vos querer,(E perdoai que isto é tomar a salva)Que não deve de ser estrela d’alva.Não me queixo de amor, minha senhora,Que fôra sem razão queixar-me agora,Que quando já desta vezEm me deixar convosco só, minha IgnezAmor comigo se mostrou mui franco,Porque isto não foi não deixar-me em branco.Canção, se me culparem,Confessa a culpa, e pede penitênciaDe eu cair em tão negra negligência

(Fénix, V, p. 223-24)

UM NARIZ GRANDE

CANÇÃO

Hoje espero, nariz, de te assoar,Se para te chegar a mão me dás.Ainda que impossível se me fazChegar a tanto eu como assoar-te,Porque é chegar às nuvens o chegar-te.Das musas a que for mais narigudaManda-lhe que me acuda,Que se a fonteDe Pégaso é verdade está no monte,O mais alto de todos em ti está,Porque monte tão alto não no há.

Falta o saber, nariz, para o louvorDe que és merecedor.Que hei-de dizer?Para espantares tu hão-te de ver,Porque nunca se pode dizer tantoQue faça como tu tão grande espanto.És tão grande, nariz, que há opiniões,

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E prova-o com razõesCerto moderno,Que em comprimento és, nariz, eterno,Porque ainda que princípio te soubemos,Notícia de teu fim nunca tivemos.

Cuido que sem narizes, por mostrarSeu poder em acabar,Sua grandeza,Deixou gente sem conto a naturezaQue assoas, Gabriel, quando te assoasOs narizes de mais de mil pessoas.

Aos mais narizes dás o ser que tem,Nariz, e daqui vemQue os nossos sãoOs narizes em que há mor perfeição;Que se os negros os tem esborrachados,É porque estão em ti mais apartados.Dos narizes todos é sabidoTerem um só sentido,E é assi;Mas em ti como corpo de per si,Cinco sentidos há que, em conclusão,És nariz que tem uso de razão.

E ainda que espante tanto nesta idadeQue por monstruosidadeSejas tido,Nariz, a muita gente tenho ouvidoQue ainda hás-de espantar mais na que há-de vir,Porque ainda há muito em ti por descobrir.

Vai-te, canção, e diz a este narizQue eu sou o que te fiz.E para lho dizeresDaqui donde estás podes, se quiseres;Não tens necessidade de abalar-te,Porque este [nariz] está em toda a parte.

(*Fénix, V, p. 223-25)

AS DUAS REGATEIRAS PELEJANDO

Clara e alva sejais, Clara Vicente!Vêdes tamanho mal? Que esta malvadaTem língua e quer falar em gente honrada,Sabendo vós quem é e de que gente.

Por isso o mundo vai de balravente!Assim veja eu Brites bem casada,Que em quanto disse e fala esta coitadaCom quantos tem na boca, todos mente.

Vós vedes, e quão má língua é de pragaOra, enfim, cada qual dá o que tem,Por isso em mim não faz nem desfaz nada.

Que a que é boa e honrada não se apagaCom ditos de ua suja, olhai de quem!Louvado seja Deus, sou bem casada!

(*Fénix, V, p. 233)

Ao Conde de Linhares que, matando em África um leão,se lhe fizeram muitas poesias em louvor, que vendo-as oautor fez este

SONETO

Matou o Senhor Conde de LinharesUm leão; por que tudo se publiqueMui grande sonetada o testifique,Vozeando-lhe vozes populares.

Vós vedes que grã presa de aduares,Que vitória celebra este repique,Que assalto em Flandres e que rota em Dique,Que expulsão de piratas desses mares!

Que lanças tremulantes, vitorioso,(Qual outro já pregou) vemos fixadasNessas portas de Fez ou de Marrocos!

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Se fama alcançar quer de valeroso,Rompa esquadrões de mouros às lançadasNão faça c’um bichinho tantos cocos.*

(*Fénix, V, p. 234)

AS POESIAS QUE SE FIZERAM A UMAQUEIMADURA DA MÃO

DE UMA SENHORA

Ó mão não de cristal, não mão nevada,Mão de relógio sim, pois que pudesteNesta mísera terra em que nacesteFazer dar tanta infinda badalada.

Que mão de almofariz enxovalhadaFoi tal, como tu foste, ó mão celeste,Pois foste, quando mais resplandecesteEm tantas de papel tão mal louvada.

Nem de Cévola a mão negra e grosseiraQueimada entre morrões publicamente,Merecia tão míseras poesias.

Mas louvo-as de subtis em grã maneira,Pois que para apagar a flama ardenteSe fizeram de indústria assi tão frias.

(*Fénix, V, p. 226)

A UMA MULHERACAUTELADA EM FECHAR A PORTA,MAS DIZIAM QUE ANDAVA COM O CURA

Que importa ao crédito vossoFechardes, todos os dias,A porta às Ave-Marias,Se a abris ao Padre-nosso?

(*Poesias Inéditas de D. Tomás de Noronha,Mendes dos Remédios, p. 31)

A UMA FREIRA QUE LHE MANDOUPEDIR MEIAS E SAPATOS PARAENTRAR EM UMA COMÉDIA,

E UM VESTIDO

CANÇÃO

Vestido, meias, sapatosMe pedis, senhora Inês,Para entrar numa comédiaE sair num entremez.

À fé de poeta honrado,Que ficareis desta vez,Despida de todo o ponto,De cabeça, perna e pés.

Porque pedir tal vestidoA quem vestido não tem,Será deixar-vos em brancoVestindo-vos em papel.

Pois desta sorte vestida,De ponto em branco entrareis,Que entrando de encamisada,Em camisa entrais mui bem.

Despida por despedidaPraza a Deus que não fiqueis,E vos tome sem camisaQuem vos tomar por mulher.

Buscai senhora, outro amante,Que tal vestido vos dê,Porque vos não quer vestida,Quem só despida vos quer.

Vestido nunca peçaisA quem amor vos tiver,Que amor como anda despidoNão dá vestido a ninguém.

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Assim que estais enganadaSe cuidais, senhora Inês,De alguns destes meus vestidos.Fazer roupa de Francês.

Vestido não quero dar-vos,Nem vestido meu tereis,Que para vestir um santoDespir outro não convém.

Que dar vestido um poetaCoisa é que se nunca fezPois só cortes de vestir,Sabe um poeta fazer.

A capa sem ser vestido,Se quiserdes vos darei,Só por deixar-vos nas mãosA capa como José.

Porém meias nem sapatos,Por Deus que vos não darei,Que é fazer gato-sapato,De quem sapatos não tem.

Pobre senhora, de mimPois se os sapatos vos derNão terei em toda a vidaOutros que meta nos pés.

E será coisa forçadaSe calçado não tiver,Nos Carmelitas DescalçadosProfessar, em que me pês.

Nestes pontos dos sapatosNem das meias me faleis,Que perco o ponto em cuidarNas pontas de vosso pé.

De meias podeis andarCom quem as meias vos der,Que eu não dou por não dar meiasNem meias natas a el-rei.

Lá vos havei com o trino,Pedi-lhe, senhora Inês,Que vos vista e que vos calceComo marido a mulher.

Com botas ou borzeguinsEntrai no vosso entremez,Que calcando desta sorte,Calçareis ao português.

E se não nessa comédiaEntrar em pernas podeis,Representando descalçaA figura de Moisés.

E não torneis a pedir-meCoisa que valha um vintém,Que o pedir é despedir-mePara todo sempre, amen.

(*Poesias Inéditas de D. Tomás de Noronha,Coimbra. 1899, p. 55-58)

A UMA REGATEIRA

ENDECHAS

Do mesmo D. Thomás

A Minha IsabelSaiu esta tardeA matar de amores,A vender gorazes,

Deitada ao pescoçoA beatilha leva,Pois de desprezarSomente se preza

Por fresco apregoa.

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O peixe, meu bem,E no apregoar frescoQuanto sal que tem!

Gadelhinhas louras,Que pelas gadelhasA minha alma andaPendurada nelas.

Em continhas brancasExtremos vermelhos,Porém como elaNão há tal extremo.

Memória de prataMetida no dedo,Vá-se embora o ouro,Que não tem tal preço.

Sainha de pano,Barra de veludo,Mantilha vermelha,Sapata em pantufo.

Ao passar lhe dissePela requebrar:Senhora IsabelQuem fora goraz!

Fizera-lhe eu logoDepressa um Soneto,Porque de PoetaTenho meus dous dedos

Porém neste passoEntrou Bastião,Pedia-me dinheiro,Dei a tudo de mão.

(Fénix, V, p. 245-47)

A UMA BOCA GRANDE

ROMANCE

(Do mesmo)

Para que de boca em bocaAnde essa tua, Belisa,Pede-lhe lá, que pois pode,Empreste boca a esta minha.

E ouvirás dela mil cousas,Que por mais longe que vivasSe tens como boca orelhas,Onde estás, podes ouvi-las.

Não digo da que hás mister,Mas da que em ti se esperdiça,Belisa, a faltarem bocasPara mil rostos a havia.

Ó tu que de orelha a orelhaPara que caibas aindaTe fez cara com ensanchasA natureza provida.

Quando te vejo tão grande,Sobre esses chapins subida,Por ti creio, que se disseTua boca tua medida.

Já desejei de saber,Se mais de uma língua tinhas,Que a tanta boca não possoCrer, que baste uma só língua.

Tanto pela terra dentroTenho a grande bem que assistas,Que a seres de SacavémQuem te passara em três dias?

Estou, boca, havendo medoQue do que digo te rias,Quem deixaria de o ter,Se de par em par te abriras!

Quero acabar, que não queroQue tu, que me ouves, digas,Que são as minhas razões,Como essa boca, infinitas.

(Fénix,V, p. 249-50)

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RIMAS VÁRIAS

n.º 17

SONETO

Qué decís vos, indigno entendimiento,en esta acción en que de vos me fío?Que pues vive cautivo el albedríosolicite piedad el sentimiento.

Vos voluntad, que a tan gentil portentosujetáis para siempre el gusto mío,qué me decís también? Que es desvaríono procurar remedios al tormento.

Memoria, vos que la pasada gloria,y el agrabio también tenéis presente,qué me decís? Que quien siente olvida.

Ay qué importa que estéis tan divididasi adonde el alma va, van juntamenteentendimiento, voluntad, memoria!

* Todos os poemas são transcritos a partir da edição deRimas Várias, de Margarida Vieira Mendes (cfr. Bibliografia),à excepção dos poemas de Parnaso Lusitano, transcritos apartir da antologia Poetas do Barroco de MLGP.

Sóror Violantedo Céu*

n.º 18

A António de Sousa de Macedo en el libro que hizode las Excelencias de Portugal

SONETO

Cuando de Portugal las excelenciasexplicas singular, sabio describes,con la misma excelencia con que escribes,vuelves las descripciones, evidencias.

Los tropos, los conceptos, las sentenciascon que a divino lauro te apercibes,las excelencias son, con que prohibes,al Asia con Europa competencias.

Oh feliz Portugal, pues juntamenteadquiere por tu causa mil vitorias,y mil veces por ti queda excelente!

Una por ser asunto a tus historias,otra por ser de ti patria eminente,y muchas porque vive en tus memorias.

Mas entre tantas glorias,cuantas le da por ti tu feliz suerte,quién duda es la mayor, oírte, y verte?

n.º 20

A Manuel de Faria Severim em louvor dos seusDiscursos

SONETO

Parar do pensamento o veloz curso,ser do mesmo saber modelo honroso,suspender o discurso mais famoso,pode de Severim qualquer discurso.

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Quanto mais considero, e mais discursoem louvor deste engenho portentoso,mais vejo que é portento no engenhoso,por quem a suspensão não tem recurso.

Oh feliz Severim, pois admirando,não só fica os da pátria enriquecendo,mas fica os mais estranhos obrigando.

Pois um, e outro Pólo suspendendose os próprios enriquece discursando,obriga os estrangeiros escrevendo.

n.º 21

SONETO

Será brando o rigor, firme a mudança,humilde a presunção, vária a firmeza,fraco o valor, cobarde a fortaleza,triste o prazer, discreta a confiança

Terá a ingratidão firme lembrança,será rude o saber, sábia a rudeza,lhana a ficção, sofística a lhaneza,áspero o amor, benigna a esquivança.

Será merecimento a indignidade,defeito a perfeição, culpa a defensa,intrépido o temor, dura a piedade.

Delito a obrigação, favor a ofensa,verdadeira a traição, falsa a verdade,antes que vosso amor o peito vença.

n.º 22

SONETO

Se apartada do Corpo a doce vida,domina em seu lugar a dura morte,de que nace tardar-me tanto a mortese ausente d’alma estou, que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,pois tudo sem Silvano é viva morte,já que se foi Silvano venha a morte,perca-se por Silvano a minha vida.

Ah suspirado ausente, se esta mortenão te obriga querer vir dar-me vida,como não ma vem dar a mesma morte?

Mas se n’ alma consiste a própria vida,bem sei que se me tarda tanto a morte,que é porque sinta a morte de tal vida.

n.º 23

SONETO

Que suspensão, que enleio, que cuidadoé este meu, tirano Deus Cupido?pois tirando-me em fim todo o sentidome deixa o sentimento duplicado.

Absorta no rigor de um duro fado,tanto de meus sentidos me divido,que tenho só de vida o bem sentido,e tenho já de morte o mal logrado.

Enlevo-me no dano que me ofende,suspendo-me na causa de meu pranto,mas meu mal (ai de mim) não se suspende.

Oh cesse, cesse, amor, tão raro encanto,que para quem de ti não se defendebasta menos rigor, não rigor tanto.

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n.º 24

A um Retrato

SONETO

Vive no original deste treslado,que venera constante amor rendido,o valor mais capaz de ser querido,o saber mais capaz de ser louvado.

Se pudera o valor ser retratado,se pudera o saber ser esculpido,rendera a cópia só todo o sentido,vencera a cópia só todo o cuidado.

Mas quem quiser em fim render-lhe a palma,tendo o melhor treslado por motivo,e vendo tudo junto no aparente,

Veja, se pode ser, de Célia a alma,verá tudo pintado tanto ao vivocomo vivo o pintado eternamente.

n.º 25

SONETO

Vida que não acaba de acabar-sechegando já de vós a despedir-se,ou deixa por sentida se sentir-se,ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-sepois chega já de vós a dividir-se,ou procura vivendo consumir-se,ou pretende matando eternizar-se.

O certo é, senhor, que não fenece,antes no que padece se reporta,porque não se limite o que padece.

Mas, viver entre lágrimas, que importa?se vida que entre ausências permaneceé só viva ao pesar, ao gosto morta.

n.º 26

SONETO

Quem despois de alcançar o que pretendeda mesma obrigação delito forma;quem em castigo o galardão trasforma,ou aborrece muito, ou pouco entende.

Mas do nome de ingrato se defende,bem c’o de presumido se conformaquem, quando mais feliz queixoso informa,quem em vez de premiar, ingrato ofende.

Porém, quando o juízo é levantado,quem duvida que a queixa é fingimentode quem não se quer dar por obrigado?

Este o motivo foi do vosso intento,Porém não se logrou, que o meu cuidadotem por prémio melhor este escarmento.

n.º 52

A uns versos que o Conde de Arcos fez a uma borboleta

DÉCIMA

Ave que tuvo tal suerte,por ser su propria homicida,bien hizo en dejar la vida,bien hizo en buscar la muerte:porque si bien lo más fuertefue medio de ser dichosaqueda por vos tan famosaque repitiendo lo ardientela fénix más excelentequisiera ser Mariposa.

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n.º 53

A Diogo Ferreira Figueiroa pelo seu livro intituladoTeatro da maior glória Portuguesa

Sois artífice, e figurade teatro tão perfeito,que imita em não ter defeitoà Celeste arquitectura.Representando a venturado Luso mais celebrada,tanto a fazeis admirada,tanto a deixais aplaudida,que se alegrou sucedidasuspende representada.

n.º 90

ROMANCE

Acabe ya con la vidatan importuno Silencio,que para morir callando,mejor es callar muriendo.

Si al fin es más acertadoelegir del mal lo menosyo quiero morir, amandomas no callar, padeciendo.

Dura ley de mi destinoes un forzoso secreto,si lo digo soy perdida,y si lo callo me pierdo.

Oh para la vida míasiempre tirano decreto,pues muero si me declaro,y si disimulo, muero.

De imposible en imposibleanda mi loco deseo:si no lo callo, peligro,Si no lo digo, padezco.

Si de um rigor me desvío,con otro rigor encuentro,ya de peligro en peligro,ya de tormento en tormento.

Oh venza la muerte míatan encontrados efetos:porque sin costarme tantoquede mi Silencio eterno.

Termine las confusionesel infortunio postrero,que vivir para los malesmás es pesar que consuelo.

Y pues a buscar la muerteando de extremo en extremo,porque la mejor elijadame tú, amor, el consejo.

Callaré? no que es peligro,hablaré? sí que es remedio,dejaré? no que es agravio,temeré? no que es defeto.

Amaré? sí que es tributo,olvidaré? no que es yerro,siguiré? sí que es destino,sufriré? sí que es incendio.

Mudareme? no que es falta,buscaré? sí que es exceso,viviré? no que es difícil,moriré? sí que es extremo.

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Pues alto desde este puntoya que el morir es tan ciertobusque, diga, solicite,un mal, un bien, un portento,

Mi firme pensamiento:porque muera de amor, no de Silencio.

n.º 96

ROMANCE

En que extraño laberintoingrato amor estoy puesta,si me mudo, soy perdida,si persevero, soy necia.

Amar a quien me aborrecees indiscreta fineza,dejar a quien idolatroes querer monr de ausencia.

Sufrir ofensas notoriases ignorante paciencia,dejar de ver quien las hacees castigarme por ellas.

Porfiar con lo que adorocerca está de impertinencia,desistir de la porfíaya me parece tibieza.

Volver a quien me maltrataes peligrosa expenencia,dejarle porque me olvidaes razón, mas no es firmeza.

Si perdono sus agraviosseré constante, mas necia,si le dejo por ingratoserá forzoso que muera.

Si le quiero desdeñadaser vituperada es fuerza,que tal vez de la desdichase presume que es afrenta.

Si correspondo su estilopienso que será soberbia,que herir por los mismos filoses de iguales competencias.

Si cobarde sufro, y calloofendo a naturalezaque privilegios otorgaa femeniles empresas.

Si de pensamientos mudoqué habrá que bien me parezca?después de haber conocidoquien es de partes esfera.

Si amorosa, y declaradapido favor, y clemenciaa quien agradó ya másmujer que importuna, y ruega.

Oh confusión rigurosa,oh laberinto de Creta,oh contradición tirana,oh Scila, y Caridbes nueva!

Oh amor consejero sabio,tú solo aquí me aconseja!que quien la razón no admitesólo obedecerte intenta.

Dejaré? no que es peligro,sufriré? sí que es fineza,lloraré? sí que es cordura,alcanzaré? no que es piedra.

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Proseguiré? sí que es justoburlaré? no que es ofensapadeceré? Sí que es gloria,olvidaré? no que es pena.

Pues alto ya resolutasufre, calle, adore, quiera,prosiga, ruegue, importune,ame, venere, padezca

la desdichada Delíapues con mor, que es niño, se aconseja.

TEME A MORTE REPENTINA E AJUSTA SENTENÇA DA CONDENAÇÃO

Temer que se execute uma sentençaA todo humano ser notificadaAcção é natural, mas bem fundadaNa conta de uma ofensa e outra ofensa.

Imaginar que é qualquer doençaPrecursora da morte decretadaQue muito, se tal vez dissimuladaVem sem aviso e sempre sem licença.

Condene meus temores que se atreveA viver sem temor no breve encantoDa vida que conhece por tão breve;

E tema eu, Senhor, com justo espanto,Porque se só não teme quem não deve,Bem é que tema eu, pois devo tanto.

(*Parnaso, tomo I, p. 53)

VOZES DE UMA DAMADESVANECIDA DE DENTRO DE UMA

SEPULTURA QUE FALA A OUTRADAMA QUE PRESUMIDA ENTROU EMUMA IGREJA COM OS CUIDADOS DESER VISTA E LOUVADA DE TODOS; ESE ASSENTOU JUNTO A UM TÚMULOQUE TINHA ESTE EPITÁFIO QUE LEU

CURIOSAMENTE:

Ó tu, que com enganos divertidavives do que hás-de ser tão descuidada,Aprende aqui lições de escarmentada,Ostentarás acções de prevenida.

Considera que em terra convertidaJaz aqui a beleza mais louvada,E que tudo o da vida é pó, é nada,E que menos que nada a tua vida.

Considera que a morte rigorosaNão respeita beleza nem juízoE que, sendo tão certa, é duvidosa.

Admite deste túmulo o avisoE vive do teu fim mais cuidadosa,Pois sabes que o teu fim é tão preciso.

(*Parnaso, tomo I, p. 73)

AVISO AO CORAÇÃO HUMANO EDEMONSTRADOR DO VERDADEIRO

OBJECTO DO AMOR

Quem quiser empregar o seu cuidadoAonde fique ganhado e não perdidoEmpregue-o só em Deus à cruz pregado,Empregue-o só em Deus à cruz unido,Porque em Deus fica só bem empregado,Porque de Deus é só bem merecido,Pois só Deus paga bem, só Deus agrada,E tudo o mais é pó, é vento, é nada.

(*Parnaso, tomo I, p. 215)

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AO NASCIMENTO

VILANCICO

Vá de música, Menino,fazei-me vós o compasso,por que de vossos preceitosnão saiam nunca meus passos.

Compositor sois agora,e compositor tão raro,que compondes lindamenteo divino e o humano.

Bem sei que para que eu cantefareis o compasso largo,porque só vossa larguezaem música muda o pranto.

O tempo será perfeito,pois para aperfeiçoadoatropelais vós agoraas divisões e intervalos.

Também serão nesta solfaos semibreves ligados,pois hoje o ser mais indignoligais ao mais soberano.

De esperas só não tratemos,porque sendo vós chegado,não tem lugar as esperas,senão de cantar mais alto.

As fugas também não servem,senão só de erros passados,porque com pausas e fugasnão poderão soar tanto.

E pois já hoje comigoides em arremedados,e também em unisonusquereis que fiquemos ambos,

Fazei que a minha voz cheguea ponto tão levantado,que sendo de vós ouvidaconsiga eternos aplausos.

Fazei que com tanta graçafeneça, Senhor, meu canto,que na expiracão precisanão clausule no mais baixo.

Oh! que bem cantarei, Menino amado,se convosco somente for a compasso!Ditoso cantose tais passos seguiremtodos meus passos!

Não só sois, meu pequenino,compositor soberano,mas sois sol daquela solfaque é do número ternário.

Também sois máxima eternadas que no divino canto,valendo três o que é uma,entram três em um compasso.

Músico sois peregrino,mas cuido, se não me engano,que compondes no presépiopara cantar no Calvário.

E pois de graça compondes,dai-me um tom tão engraçadoque só convosco me ajusteaté ao último passo.

Ditoso cantose tais passos seguiremtodos meus passos.

(*Parnaso, tomo I, p. 462-64)

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A UM DESMAIO

(Pelo mesmo Autor)

SONETO

Contra Flora aos suspiros fugitivaO amor em um delíquio se conjura,Muda-se o vivo fogo em neve pura,Mas mais aquela neve o fogo aviva:

Até no paroxismo almas cativaDesmaiada a mais bela fermosura,Nos embargos da vida inda lhe duraO rigor, em final de que era viva.

Sylvio, que assiste a elle, e a Flora adora,Trazendo-a no peito retratada,Cõ u~ desmaio outro desmaio chora;

Mas não foi maravilha desusada,Se a bela cópia se desmaia em Flora,Que se desmaie em Sylvio a copiada.

(Fénix, I, p. 182)

A UMA SAUDADE

Que alegre noite. que horas tão gostosas,Que clara lua, que resplandecente,Que alegre vista e que brandamenteDebuxa o vento as maduras rosas!

Como quebram as ondas vagarosasNas praias deste rio mansamente!E que ruído fazem tão contenteNas árvores as folhas buliçosas!

Como [é] tudo quieto e tão fermosoQue se não ouvem mais que suavidadesDo fresco rio e campo deleitoso!

Mas ai, que em tão fermosas novidadesDesperta amor no peito cuidadosoNovas lembranças novas saudades.

(*B N. L., Cod. 10 894, p. 428)

AO PADRE ANTÓNIO VIEIRA

(Pregando na Degolação de S. João Bautista)

SONETO

Morre João por ódio, mas de forteLhe augmentais a ventura na caída,Que se Herodias lhe invejava a vida,Sendo hoje vida, lhe invejara a morte:

Pode tirar-lhe a vida adversa sorte,Mas por vós a tragédia repetidaFaz tão soberba a pena padecida,Que suaviza ao ferro o duro córte:

Como por vós na morte acha ventura,Se invejosa Herodias o antevira,Conservara-lhe a vida de traidora,

Que como lhe buscava a desventura,Não pedira a cabeça, e se a pedira,Não fôra a de João, a vossa fôra.

(Fénix, I, p. 164)

* In Fénix Renascida, I, II e V; “Cancioneiros Manuscritos”.As transcrições a partir de MLGP estão assinaladas com *.

AntónioBarbosaBacelar*

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A UMAS SAUDADES

Saudades de meu bem, que noite e diaA alma atormentais, se é vosso intentoAcabares-me a vida com tormento,Mais lisonja será que tirania.

Mas quando me matar vossa porfiaDe morrer tenho tal contentamentoQue em me matando vosso sentimentoMe há-de ressucitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendoSatisfazer com mortes repetidasO que à beleza sua estou devendo.

Vidas me dai para tirar-me vidas,Que ao grande gosto com que as for perdendoSerão todas as mortes bem devidas.

(*Fénix, I, p. 159)

A UMA AUSÊNCIA

Sinto-me, sem sentir. todo abrasadoNo rigoroso fogo que me alenta;O mal, que me consome, me sustenta,O bem que me entretém, me dá cuidado;

Ando sem me mover, falo calado,O que mais perto vejo se me ausenta,E o que estou sem ver mais me atormenta,Alegro-me de ver-me atormentado;

Choro no mesmo ponto em que me rio,No mor risco me anima a confiança,Do que menos se espera estou mais certo;

Mas se de confiado desconfio,É porque entre os receios da mudançaAndo perdido em mim, como em deserto.

(*Fénix, I, p. 161)

A UMA DESPEDIDA

Agora, que o silêncio nos convida.Discursemos um pouco, ó pensamento;Demos um desafogo ao sofrimento,Pois lhe demos a pena sem medida.

Enfim, chegou aquela despedidaEm que, perdido meu contentamento,O mais que me ficou foi meu tormento,O menos que deixei foi toda a vida.

Para que era ficar-me na memóriaAs lembranças de um bem tão malogrado?Falta-me o bem, faltaram-me as lembranças.

Se verei outra vez tão doce glória?Mas ó suave engano, ó vão cuidado!Inda eu cuido outra vez em esperanças!

(*Fénix, II, p. 81)

UM BEM PERDIDO

Eu me vi neste monte noutra idadeNos braços da ventura reclinado:Esta fonte, esta rocha, aquele pradoTestemunhas serão desta verdade.

Oh que tamanha mágoa a saudadeMe representa agora no cuidado!Mas quando durou mais um doce estado,Que tem a segurança na vontade?

Para igualar a glória que então tinha,Dos astros revestido o firmamentoSe deu (oh quantas vezes!) por vencido.

Mas que vã ignorância é esta minha:Tão ocioso trago o pensamento,Que me ponho a cuidar num bem perdido.

(*Fénix, II, p. 82)

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SONETO

AMOROSO DESDÉM NUM BELOAGRADO

Amoroso desdém num belo agrado,No mais duro ferir um doce jeito,Tirania suave em brando aspeito,Olhos de fogo em coração nevado;

No vestir um asseio descuidado,Ingratidão amável no respeito,O brio, a graça, o riso em um sujeitoVariamente co grave misturado;

Animado primor da fermosura,Luzido discursar de engenho agudo,Custosa luz, incêndio pretendido,

Alma no talhe, garbo na postura,Capricho no cuidado, ar no descuido,Armas são com que amor me tem rendido.

(*Fénix, IV, p. 284)

A UM SONHO

Adormeci ao som do meu tormento,E logo vacilando a fantasia,Gozava mil portentos de alegria,Que todos se tornaram sombra e vento.

Sonhava que tocava o pensamentoCom liberdade o bem que mais queria,Fortuna venturosa, claro dia.Mas ai! que foi um vão contentamento!

Estava, ó Clori minha, possuindoDesse formoso gesto a vista pura,Alegres glórias mil imaginando;

Mas acordei e, tudo resumindo,Achei dura prisão, pena segura.Ah quem estivera assim sempre sonhando!

(*Fénix, II. p. 90)

À MORTE DE UMA DAMA

Sombras de um claro sol que me abrasava,Cinzas de um doce fogo aonde ardia,Ruínas de uma boca em que vivia,Cadáver de uma vida que adorava,

Quem te trocou, senhora? O tempo estavaA teus pés, em teu rosto o sol nascia,De tua vista se compunha o dia,De tua ausência a noite se formava.

Pois como pode o tempo pressuroso,O dia breve, a noite fugitivaMudar um corpo e rosto tão fermoso?

Mas tanto sol e luz, tão excessivaArdendo de continuo, era forçosoTrocar-se em cinza morta a flama viva.

(*B. N. L., Col. Pombalina 133, fol. 66 r)

RETRATO DE UM BÊBADO

Perdi-me vendo a pipa, o torno aberto;Minha alma está metida em vinho tinto;Tão bêbado estou que já não sintoSer bêbado coberto ou encoberto.

Tenho a cama longe, o sono perto,No chão estou e erguer-me não consinto,A barriga de inchada aperta o cinto,Falando estou dormindo qual desperto.

Venha mais vinho e dem-mo vezes cento,Que alegra o coração, sustenta a vida,E pouco vai que engrosse o entendimento.

Vingar-me quero, que é grande a bebida;Tudo o que não é beber é lixo e vento,Que para tão grande gosto é curta a vida.

(*B. N. L., Cod. 6269, fol. 80)

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DÉCIMA

À MORTE DE UMA F. CLARA

Terrestre esfera deixouPor outra esfera mais claraAquela exalação raraQue a ser estrela passou.Posso do que vendo estouO fim do mundo inferir,Pois já se quer prevenirDe uma estrela singularO céu para se pagarDaquelas que hão-de cair.

(*Fénix, II, p. 132)

ROMANCE PASTORIL

Pastora dos olhos negros,Que guardas brancas ovelhas,E deixas tantos em brancoCom uma ventura tão negra;

Tu, que na serra parecesQuando menos uma estrela,E no vale a quem te adoraEntão lhe pareces serra;

Tu, que no monte e no pradoDás que dizer às mais belas,Umas por te ter amor,Outras por te ter inveja;

Esse teu negro cabelo,Porque aos olhos se pareça,A muitas almas é vida,A muitas vidas é pena.

Dele forma Amor MeninoArco e juntamente seta:Aquele, com que faz tiro,Estoutra, com que atravessa.

A boca quem quer diráQuando a vir toda vermelha,Que se é rubim pela cor,E rubim pelo pequena.

Ou também que se envergonhaCreio que afirmar pudera,De ver que anda entredentes,Sendo o exemplar da beleza.

Qualquer bonina que pisas,Por que co pé se pareça,Inda que pequena flor,Se quer fazer mais pequena.

O cajadinho que trazesSabido é que foi frechaQue no teu peito cajadoSe fez, por mais duro que ela.

Essa pele que te abrigaSe é de cordeiro ou de ovelhaNão sei, porém dizem todosQue tens condição de fera.

Basta que serra te chame,E para serra MorenaMuito te vejo de neve,Muito tens de portuguesa.

(*Fénix, II, p. 188-90)

GLOSAS

SOBRE MOTE DE CAMÕES

Sobo-los rios, que vãoPor Babilónia, me achei,Onde sentado choreiAs lembranças de Sião,E quanto nele passei.

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IEntre amargos desvarios,Entre funestos pezaresMeu peito verte mil mares,Meus olhos brotam mil rios;E recorrendo os desviosDa vista, e do coração,Sempre fluctuando estãoAs memórias de meu bem,Sobo-los mares, que vem,Sobo-los rios, que vão.

IIMas querendo discursarAs causas do meu tormento,Não distingue o pensamentoUm pezar doutro pezar:Com que vendo-o delirarA vista do que logrei,Tanto à fantasia dei,E tanto à imaginação,Que entre a minha confusãoPor Babilónia me achei.

IIILouco sobre magoadoDou assumpto à minha dor,E da pena, e do furorSó me vejo aconselhado:Quando num vale sentadoAs lágrimas pus por lei,Tanto a elas me entreguei,Sem ter outro desafogo,Que o juizo perdi logoOnde sentado chorei.

IVPerdi o juizo com a pena,E se o perdera de todo,Pode ser que deste modoSe tornara mais pequena:Mas meu fado me condena,

Tirano do coração,Que com duplicada acçãoExponha uma hora em alardeHora em depósito guardeAs lembranças de Sião.

VComo relíquias de glóriasSempre em tormentos se vem,Que nenhum alívio temEstas tiranas memórias:E porque sejam notórias,D’alma, donde as derivei,Aos olhos as trasladei,Pois copiadas no rostoDão fé de um perdido gosto,E quanto nele passei.

(Fénix, I, p. 183-185)

RELAÇÃO DA FESTA DE TOUROS QUESE FEZ NESTA CIDADE NA PRAÇA DORESSIO O ANO DE 1647

Acabaram-se os touros, vá de versos,E eu seguro que sejam mais perversosEstes versos que os touros.Mas eu não temo agourosDios me la depare buena,Que hei-de molhar a pena.Quero sair agora no PegasoAos touros do Parnaso,E com tão bom cavalo eu vos prometoDe fazer boa sorte ao deus de Admeto*

Quando o touro me tomeNão me há-de dar desgosto,Que nos cornos do sol me hei-de ver posto,E com tão bom partidoIgual fica ao vencer o ser vencido.

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Assi que me esqueciaInvocar a Talia(Sou um grande madraço!)E fora grande culpa neste passo,Contra o que o mundo usa,Querer poetar sem invocar a musa.Mas que me importa Clio ou MelpomeneSe eu tenho todo o coro de HipocreneEm vós, flores do céu, do prado estrelas,Minhas três graças belas.A vós pois, doce terno da beleza,Exemplar cada qual da fermosura,A vós em quem se apuraTodo o primor que soube a natureza,Este poeta andanteProstrado adora e solicita amanteVosso favor bizarro.Vós, ó minha Senhora, meu cuidado,Alentai-me a ousadia,Fazei agora o ofício de Taliaque fora disparateQuando o furor poético me chamaNão fazer minha musa a minha dama.Ministrai, pois, propícia os consoantes,Sejam novos, flamantes,Seja a veia tão clara, altiva e pura,Que se pareça à vossa fermosura.Dai-me à pena outro cortePara que eu faça versos a este intentoDaquela mesma sorteQue eu fizera com vosso pensamento.

Eram as três da tarde;Era a estação do ano calorosaEm que a terra, abrasada mariposa,Nas chamas do sol arde(Eis já lá vai um erro,Que chamei mariposa à borboleta:Que não queira emendar-me de poeta!).Torno a seguir a musa tartamudaE Deus seja comigo;

Não me leve a Castela outro perigoDe algua voz que seja campanuda.Era a estação do ano abrasadoraEm que o ruivo planeta,Cansado de �a Dafne corredora,Já estava gemendo de esquentadoE de correr chegava mui suado.Em grande confusão vos tenho posto...Não temais, tudo é nada:Vem a montar toda esta matinadaQue era uma tarde em vinte e dous de Agosto.Era o dia dos touros aprazado,Não houve quem comesse sossegado:Pelas ruas ferviaGente que entrava e gente que saía;Tudo era reboliço e tudo abalo,Aqui um homem caía, ali um cavalo.Fendia o sol o dia pelo meio.Estava tudo cheio;Fermosa estava a praça,A mesma confusão lhe dava graça.Exército de coches numerosoFazia um aparato ruidosoAo concurso festivo.Nos palanques com tráfego excessivoEstavam tão providos os lugares,Que o número igualavam a meus pesares;Tantos os guarda infantes e as enáguas,

Que o número igualavam a minhas mágoas.Quanto mais era o número da genteDeste concurso vário,Tanto mais eu estava solitário.Quem sabe avaliar um peito ausenteBem sei eu que há-de crer-me facilmente.Maravilha de amor, grandeza raraVossa e do meu cuidado,Que estava só e estava acompanhado,Porque como não via a luz tão clara,Não vendo o que queria,Via, porém não via.

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Fez entrada a cidade.Deram as três e entraram pela praçaDando esplendor à festa, ao dia graça,�a e outra sagrada Majestade.O coche pareciaO carro em que anda o dia.O príncipe e as infantesIam junto c’os reis, todas brilhantesDando à vista alegriaFilhas e mãe, fermosas à porfia,À competência belas.Afoga o sol as luzes às estrelas,Mas eu então, se a vista me não mente,Vi o sol e as estrelas juntamente.E se eu vos vira a vós, minha traidoraE meu feitiço eterno,Nua noite de inverno,Também então (oh que feliz mentira!)O sol e estrelas juntamente vira.Vendo no céu estrelasE em vossos olhos vendo as luzes belasDe sol mais reluzente,Vira o sol, vira estrelas juntamente.Seguiram-se as carroçasEm que vinham as damas,De amor cortês abrasadoras chamas,Daquele sol celeste habitadoras(Quem viu para um só sol tantas auroras?).A que vi mais fermosaMe causou embaraço e alegria,Porque vinha tão bela e caprichosaQue a vós se parecia;E disse só comigo um grande espaço:Quem fez a meu amor dama do paço?Porém vi logo, vendo-a mais de perto,Que vós éreis o paço, ela o deserto,

Tempo é já que escusemos os rodeios.Tanto verso sem alma e sem estouro.Guarda, que sai o touro!Amotinou-se a praça alvoroçada,Saiu o touro enfim e não fez nada.

Saiu logo o segundo e foi segundoNa virtude ao primeiro:Não lhe lembrava cousa deste Mundo.Fez companhia a ambos o terceiro,Afamado biscaio,Raiado era na cor, mas não foi raio.Vestido entrou de tafetá dobradoE Francisco Correia, porém singelamenteDe poucos garrochões acompanhadoE um mochila somente.Fez aos reis a usada cortesiaQue às damas também fazer queria,Quando saiu um touro, e ele forte;Não sei se foi azar ou se fez sorte,Porque eu desta arte não entendo nada,Mas deu-lhe a garrochada.Levou com tudo aplausos de primeiro,Não sei se justamente,Porque ouvi que era cousa diferenteSer homem de cavalo e ser toureiro.Houve mais dois tourinhosDe que havia grã fama,Criados na aspereza de Xarama,De que aqui nos contavam cada horaTrinta mil valentiasE que andaram de amores muitos diasCom �a gentil tapada,Mas não fizeram nada.Um e outro eram mansos e caseiros,Podiam ambos num carro ser praceiros;Não vi touros jamais tão bem sofridos:Bofé, que os desejei para maridos!Acabou-se a festinha.

Tornou-se o Rei, as damas e a Rainha:Veio a gente enfadadaMas não desenganada:Diziam todos que era necedadeVer festas na cidade;Juraram todos não tornar à festa;Porém eu sou tão bestaQue fui um dos primeiros;

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Foram da mesma sorte os companheiros,E por diversos modosTodos lá foram e mentiram todos,Tão pouco o humano discursar alcança,Que vendo claramenteComo a posse nos menteNão sabemos livrar-nos da esperança.[...]Os desenfados da segunda feiraNão são dignos de históriaPelo horror que ainda causam na memória.Foi a tarde cruel, sanguinolenta.Ei vi mais de quarentaSem êxtases aos céus arrebatados,Dous côvados da terra levantados.Disse então Rui Fernandes:Que dizeis, D. Rodrigo?Vós não vos vedes este touro, amigo,A quantos homens, sem ser rei, faz grandes?Dos bois a crueldadeNão perdoava a sexo nem idade:Nos cornos vi de um touroUa matrona de cabelo louroCercada de ua numerosa tropa,E a mi me pareciaQue retratado viaA Júpiter fugindo com Europa.

Choviam os boléus.Valha-me Deus, o que houve de chapéusDeitados no Ressio!Inda agora me rio.Houve mil bolatins contra seu gostoQue topavam co céu de rosto a rosto,E achando lá no céu touro segundoRecuavam de medo para o mundo.

Grã tragédia tiveram os forcados:Um dos mais esforçados,O Carola de alcunha,Que lá deixou os homens assombradosNaquelas festas de Madrid, agora

Tinha aqui a sua hora,Tomou-lhe a morte conta,Passou-lhe o coração a aguda pontaDe um tourinho malvado.Foi o caso de todos lastimado.E eu vo-lo conto agoraPara que vós também, minha Senhora,Castigueis o rigor dos vossos olhosQue, cruéis da mesma arte,Me passam o coração de parte a parte.Não queirais que se digaPor esta terra tolaQue eu sou dos vossos olhos o Carola.[...]

(*Fénix, V, p. 190-01)

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OS RATOS DA INQUISIÇÃO

IEsta casa em seus contractos,me paga em má qualidade;não rata por quantidade,mas por quantidade ratos;estes me dão tão ruins tratos,que me comem queijo e pão,doces, fructa da ração;e respondem, muito inteiros,– pois que são meus companheiros,hão de em tudo ter quinhão.

Que tendes rasão, lhes digo;porém dizei-me em que tocaestar sempre a minha bocaposta comvosco em perigo?O vosso dente inimigoda canastra vai ao centro,e não me deixa coentro!E elles respondem: - emboraque, se a vós serve de foraa nós nos serve de dentro.

[...]

E, se vos serve uma vez,dizei, porque tantas vezesfazeis roupa de francezes

* Os Ratos da Inquisição.[...] Porto: Ernesto Chardron Ed.,1883. As estrofes seguintes, retiradas de Académicos Singularesde Lisboa, II; Fonte Jocosa, são transcritas a partir de MLGP.

AntónioSerrãode Crasto*

a de um triste português?que mal a pobre vos fez,pois em nada vos ofende?e, se ella não se defende,maltratá-la é tirania,e vai pouca valentiano dar morte a quem se rende.

[...]

Mas inda que roupa talja tantos remendos tem,que mais n’ella importar vemas custas que o principal,ainda é tão pontual,e tem tantos e taes pontosque será conto de contosseus remendos numerar,e impossível de contarseus pontos e sobre pontos.

Quanto eu remendo de diavós de noute descoseis,e á porfia desfazeisquanto eu faço á porfia;e, se d’esta demasiatenho queixa ou mostro enfado,me dizeis por desenfadopor querer de mim zombar,que o homem honrado há-de andarroto, mas não remendado.

Não aprovo tal razão;porque, remendado o pano,chega e passa além do ano,roto, e descosido não:mas vós em toda a ocasiãoos remendos descasais;pois um do outro apartais;e eu, este divórcio vendo,entre remendo e remendolhe deito remendos mais.

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Assim tratos nem contratosquero já com vosco ter,nem tão pouco quero vertão ruim dança de ratos:porque vós sois como patos,que, na casa onde entrais,comeis, grunhis e sujais;e inda sois muito peores,pois sois uns destruidoresde toda a roupa que achais.

[...]

Se essa pobreza que tem,tanto, ratinhos, vos quadra,para que a feira da Ladravós d’ela fazeis também?Olhai, ratos, não é bemfazer d’ela espalhafato,nem tanto gato-sapato,que sapato mata aranha;e, se gato ao rato apanha,n’um sapato mette o rato.

Mas, se cada un da feiradiz conforme lhe vai n’ela,vós podeis dizer bem d’ela,eu de nenhuma maneira:que vós n’ela de carreiratudo o que quereis achais;vós d’ela nada pagais,mas eu ciza e cabeção,real d’agua, imposição,e outros direitos mais.

[...]

A canastra embarçãoé para vós sem perigos,que vós sois meus papa-figossem para isso ter razão:

porque papa-figos sãovelas, e mais passarinhos;mas vós, ligeiros ratinhos,os meus figos me comeis,e à vela a eles correis,como bando de estorninhos

[...]

Que entre flores escondidoanda o aspid rigoroso,e um gato que é manhosoem um canto está mettido:e, vendo rato perdido,logo dar-lhe morte trata;porque todo rato ou rataque da toca erra o caminho,e quem se farta de vinhovai dar n a Serra de Gata.

E também alerta estai,porque inda é viva a tijela;e, pois podeis cair n’ela,em a vendo, vos guardai.Dos gatos lições tomai,e andareis muito acertados;porque gatos escaldadosda água fria medo tem,que de escarmentados vemfazerem-se os avisados.

Não queirais experimentara pena de Talião,porque é justiça, e razãoo dar morte a quem matar:por fim vos venho avisar,e dizer ultimamenteque se mais com unha e denteusares tão ruim trato,que, com unha e dente, o gatovos matará cruelmente.

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Mas vós de tudo zombaise murmurais mal dizentes,tanto que até entre dentestrazeis o que mais gostais:mas por muito que façaiscom vossa boca damnada,com vossa unha malvada,não hade vosso rigorn’estas trovas boca pôr,nem tão pouco dar-lhe unhada.

Porque eu as fiz na memória,sem tinta, pena e papel;porque rato algum crueld’elas não fizesse escoria:mas por ter de vós victoriaagora as quis trasladar,pois se rato lhe chegara roer, ou a morderlogo a vida há-de perderporque são um resalgar.

Tambem n’elas vos faleijá em Latim onze vezesque nos versos portuguesesser mui grande erro eu sei:mas eu d’ele adrede usei;porque o médico avisadovendo um enferno arriscadodiz como discreto enfim:murietur em Latimque não o entenda o coitado.

[...]

Se n’estas trovas roícom má boca, e com mau dentea vária sorte de gente,dos ratos eu o aprendi:que sempre dizer ouvié muito bom parecerque se frade algum tiver

com o ladrão amizadeque ou ladrão será o fradeou o ladrão frade há-de ser.

Ora, ratos, pois estamosn’uma casa como amigos,por evitarmos perigos,entre nós pazes façamos:os trapos também partamos,e escusaremos baralhas;e d’essas mais vitualhasroei espinhos e ossos,cascabulhos e carossos,cascas, côdeas e migalhas.

Que eu sape ao gato direie quebrarei a tigelapara não usar mais d’elae vosso amigo serei:tambem ao gato poreino pescoço um cascavel,porque ouvindo seu tropel,vós em cobro vos punhais;e, porque em nada bolais,farei do ladrão fiel.

Este concerto aceitai,termina aqui nosso pleito;ponha-se em silêncio o feito,guerras e brigas deixai:de mão a demandas dai,haja paz de banda a banda,porque nos adágios andaum que diz mui bem e certoque é melhor ruim concertodo que é boa demanda.

Que nem já queixar-me esperode vós, nem de vossos tratos,mas de uma rata e dous ratoscom razão queixar-me quero:é um rato o tempo fero;

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outro o mundo maldizente;rata a fortuna inclementeque estes me tem destruído,estes me tem consumidocom seu venenoso dente.

Só a morte, rata fera,para vêr-me mais penarnão acaba de chegarpelo gosto que me dera.Chega pois, tirana austerapara ser minha homicida;porém vem tão escondidacom que eu não te possa ver,porque o gosto de morrernão me torne a dar a vida.

Se é furtado este conceito,e alguns dos outros também,não é muito furtar quema tanto rato está afeito:mas furtar não é defeito,conceito tão excelente;e mais quando é tão patenteque hoje o conceito melhorou já o disse o orador,ou o poeta antigamente.

[...]

A UMA DAMA ENSINANDO UMPAPAGAIO*

– Como estais, louro? Diz FilisA um papagaio que ensina.

– Louro como esse cabeloOnde sempre o ouro brilha.

– Toca, papagaio, toca!– Não toco em testa tão dina,

Que sem ser pedra de toqueConheço que e prata fina.

– Quem passa, louro, quem passa?– Passa Amor com alegria

Por esses arcos triunfaisFeito cego e cachorrinha.

– Dizei: ut, ré, mi, fá, sol.– Sempre o sol nessas safiras

Com raios anda abrasando,Com flechas tirando vidas.

– Correi, comadre, correi!– Vereis rosas clavelinas,

Jasmins, cravos, açucenasNesse belo rosto unidas.

– Outro, papagaio, outro!– Cousa impossível seria

Achar-se nariz como esseSe não for por maravilha.

– Vá, papagaio real!– Real é essa boquinha

A quem Tiro paga grãsPérolas e margaritas.

– Para Portugal! dizei.– Para Portugal é dita

Ver essa barba engraçadaDe madreperla conchinha.

– De comer ao papagaio!– Antes eu, Senhora minha,

Na neve dessa gargantaCom regalo beberia.* Romance publicado em Academias dos Singulares, tomo

II, p. 422. Preferi, no entanto, a versão do manuscrito porme parecer mais correcta. Neste manuscrito o poema éatribuído a Jerónimo Baía. [Nota de M.ª Lucília GonçalvesPires, Poetas do Barroco.]

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– Dai cá o pé, meu loirinho!– Isso fora grosseria

Que pusesse eu o péNessas mãos tão cristalinas.

– Corrido vai! – Isso é certoQue corrido ficariaQuem desse peito quisesseColher as maçãs tão ricas.

– Tirolico, tico, ufa!– Isso são duas conchinhas

Que nesses pés andam cm breveSó com uma cifra escritas.

– Dizei: tabaréu, réu, réu!– Manda Amor que não prossiga,

Porque não sou cu ColonPara descobrir tal Índia

Falou como um papagaioO papagaio este dia;Eu falei como estorninho,Fílis qual pega ou corica.

(*B. N. L., Cod. 6269, fol. 281 v-282 r)

A UMA DAMA QUE DESMAIOU DEVER UMA CAVEIRA

Ja fui flor, já fui boninaAgora estou desta sorte,Fui o retrato da vidaAgora sou o da morte.

GLOSA

Se desmaias de me ver,eu também de ver-te a ti,pois qual tu te vês me vi,e qual me vês hás-de ser;esta caveira hás-de ter,se te imaginas divina,

que eu também quando meninafui um sol, fui uma aurora,e se sou caveira agora,já fui flor, já fui bonina.

Se me viras primavera,sendo ua inveja das flores,então mais te dera horrores,então alento te dera;secou esta verde heraum cruel sopro da morte,porque com seu braço fortetudo prosta, tudo humilha,que eu ontem fui maravilha,agora estou desta sorte.

Ver-me ontem era ventura,Hoje ver-me horrores dou;Hoje ua caveira sou,ontem flor da fermosura.Foi tal a minha pintura,tão valente e tão subida,tão forte e tão presumida,tão corada, tão fermosa,que soberba e vangloriosafui o retrato da vida.

Acabou-se este portento,já este sol se eclipsou,já esta flor se murchou,já se acabou este alento.Como a vida foi um vento,inda que correu tão forte,acabou-se de tal sorte,que sendo com meu ornatoontem da vida retrato,agora sou o da morte.

(*Academias dos Singulares de Lisboa, tomo II, 1668, p. 323)

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A UM AMIGO QUE LHE PEDIU VINTEVERSOS POR UM VINTÉM

DÉCIMAS

Que a real, como sardinha,Cada um verso se dêCousa desta idade éEm que mostra ser mesquinha;Das musas pode a rainha,Como a sardinha sem sal,– Quem quer versos a real? –Apregoar e vender,Porque os versos vem a serDe um poeta o cabedal.

Por um safado vintémVinte versos me pediram;O certo é que não viramQuanto maior valor tem,Porque um verso em si contémQuanto de ouro e prata criaEm seu centro a terra fria.Mas como há poetas tantos,Em borra deram seus cantos,Em droga sua poesia.

(*Fonte Jocosa, B. N. L., Cod. 6031, fol. 22)

A �A DAMA CHAMADA GRÁCIAMUITO INTERESSEIRA

DÉCIMA

Grácia, tão interesseiraSois como os vossos amores,Que alcançar vossos favoresSente-o a bolsa e a algibeira.Não sejais dessa maneira,Que é pior que ser ingrata;E pois vossa graça mataE sois de graças tesouro,

Não vos dei, Grácia, por ouro;Dai-vos Grácia e gratis dara.

(*Fonte Jocosa, fol. 23 v)

ROMANCE

[...]

Quem tem amores com freirasa Deus ofende na honra,que é gravíssimo pecadoinquietar suas esposas;

Sendo que é seu amor delasmentira, engano e lisonja,um amor só de palavraque não é amor de obra.

É um Tântalo e tão toloquem à freira enamora:vê bela água e não bebe,rica fruta e não a prova.

Que o maior favor que fazemfreiras a quem as adoraé dar-lhe entre duas gradesumas mãozinhas mimosas:

Na brancura mãos de neve,no melindre mãos de alcorça,umas mãos feitas ao tornoque o mesmo é torno que roda.

Mas não são mãos de algodão,porque são mãos de algo tomam,mãos boas de receber,mas de pagar não são boas.

Uma freira, de entendida,é águia de unha famosa,e sendo o devoto patinho,ele nada e ela voa.

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Se uma freira, de discreta,a palhinha no ar torna,o seu devoto, de néscio,a palha toma na boca.

Pois se acaso, escaçamente,em a mão da freira toca,logo a beija e aplica os olhoscomo se relíquia fora.

E se um beijo de docelhe dá a sua devota,só pelo nome que temo estima e dele gosta.

E se a freira, de teimada,primeiro na boca o toma,é o seu manjar real,o seu néctar, sua ambrósia.

Estas são umas freirinhas,papagaios de gaiola,mui prezadas de discretas,presumidas de fermosas.

Ter uma tarde de gradepor passatempo e galhofaacaso uma vez no ano,Não vi mais galante cousa.

Porém, como a freira é fogoe seu devoto é estopa,por que a estopa se abraseo diabo o fogo assopra.[...]

(*Fonte Jocosa, B. N. L., Cod. 6031, fol. 182 r-184 r)

A UM AMIGO DANDO-LHE AS BOASFESTAS DA PÁSCOA DO ESPÍRITO SANTO

Do Espírito Santo agora,meu Senhor, vos quero darboas festas, porque em mitudo é já espiritual.

Eu espírito estou feito,porque carne em mi não há,nem no corpo nem na mesa,por magro e não ter real.

Tão espiritual estouque na verdade afirmarposso que cousas do mundonão vejo dos olhos já.

Mas é minha naturezatão rebelde inda e tão má,que não as podendo veras ando sempre a apalpar.

Minha camisa e ceroulasmuito tem de espirituais,pois sendo de um pano grossose me tornaram em cambrai.

[...]

Tais brechas lhe abriu o tempoe lhe fez buracos tais,que um real de cominhos nelasnão poderei emburilhar.

[...]

(*Fonte Jocosa, fol. 56v-59v, Fénix, IV, p. 235-239)

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B I B L I O G R A F I A

S U M Á R I A

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joao

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Antologias utilizadas para a transcrição devários poemas de alguns dos poetas:

Cancioneiros Impressos:

– Fenix Renascida ou Obras Poeticas dos MelhoresEngenhos Portuguezes: dedicadas ao ExcelentissimoSenhor D. Francisco de Portugal, Marquez de Valença,Conde de Vimioso [...]. Org. e publicado por MathiasPereyra da Sylva. Lisboa Occidental: na Officinade Antonio Pedrozo Galram, 1716-1728. 5 vols.Segunda edição: 1746. Em: http://purl.pt/261

Cancioneiros Académicos:

– Academias dos Singulares de Lisboa. I Parte. Lisboa,na Oficina de Manuel Lopes Ferreira, 1692; IIParte, ibid., 1698.– Progressos Académicos dos Anónimos de Lisboa.Lisboa: por José Lopes Ferreira, 1718.– Aplausos Académicos e Relação do Felice Sucesso daCélebre Vitória do Ameixial. Amsterdão, em casa deJacob von Felsen,1673.

Cancioneiros Manuscritos:

BNL, Col. Pombalina 133BNL, Cod. 6269; Cod. 10894Academia dos Singulares de Lisboa, tomo II, 1668Fonte Jocosa, BNL, Cod. 6031.

Bibliografia

TEXTOS LITERÁRIOS

Obras Individuais e/ou outras Fontes:

Francisco Rodrigues Lobo

Primavera. Edição de M.ª Lucília Gonçalves Pires.Lisboa: Veja, 2002.

Manuel Faria e Sousa

Fuente de Aganipe ou Rimas Várias / [...] Divididasen siete partes. Parte Quarta. [...] com privilegio.En Madrid, por Juan Sanchez. M.DC.XLIIII[1644).

Manuel da Veiga Tagarro

Laura de Anfriso. Évora: por Manuel Carvalho, 1627.

Paulo Gonçalves de Andrade

Várias Poesias. Offerecidas a Francisco de FariaSeverim [...]. Em Coimbra, com todas as licençasnecessárias, na Off. de Manoel Dias, Impressor daUniversidade, anno, 1658.

D. Tomás de Noronha

Poesias Inéditas de D. Thomás de Noronha. Ediçãorevista e anotada por Mendes dos Remédios.Coimbra: França Amado, 1899.

Sóror Violante do Céu

Rimas Várias. Introd., notas e fixação do texto deMargarida Vieira Mendes. Lisboa: Presença, 1994.

1.ª edição: Rimas Várias de la Madre Soror Violante del Cielo /

religiosa en el Monasterio de la Rosa de Lisboa / Dedicada al Exª

[...] Señor Conde Almirante [...], en Ruen, en la imprenta de

Maury, M.DC.XL.VI [1646].

——. Parnaso Lusitano de Divinos e Humanos Ver-sos. 2 vols. Lisboa: na Officina de MiguelRodrigues, 1733.

Page 92: Poetas do Barroco - Século XVII

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António Serrão de Crasto

Os Ratos da Inquisição. Poema Inédito do JudeuPortuguez António Serrão de Crasto. Prefaciado porCamillo Castello Branco. Porto: Ernesto Chardron.Ed., 1883.

***Muitos dos poemas que aqui figuram foram trans-critos a partir de duas Antologias recentes daautoria de Maria Lucília Gonçalves Pires e de LuísMiguel Nava:

Poesia de Rodrigues Lobo. Apresentação crítica,selecção, notas e sugestões para análise literária deLuís Miguel Nava. Lisboa: Comunicação,1985: paraa transcrição da Écloga e dos poemas da “Pastoral”.

* Poetas do Barroco. Apresentação crítica, sel., notase sugestões para análise literária de Maria LucíliaGonçalves Pires. Lisboa: Comunicação, 1985: paraa transcrição de poemas de:

– Manuel da Veiga Tagarro (todos)– D. Tomás de Noronha (alguns dos poemas)– Sóror Violante do Céu (os poemas de

Parnaso Lusitano)– António Barbosa Bacelar (alguns poemas

de Fénix e os de Cancioneiros Manuscritos)– António Serrão de Crasto (todos os

poemas, à excepção dos excertos do livro Ratos daInquisição)

ESTUDOS

GERAL:

AAVV. “Il seicento”. In Portogallo: dalle origini alSeicento. A cura di Liciana Stegagno Picchio.Firenze-Antella: Passigli Editori, 2001, p. 535-651.

——. Puissance du baroque: les forces, les formes, lesrationalités. Paris: Galilée, 1996.

Argan, Giulio Carlo. L’Age baroque. Genève: Ed.d’Art Albert Skira, 1989.

Ávila, Affonso. O Lúdico e as Projecções do MundoBarroco. São Paulo: Perspectiva, 1971.

Alvarez, José Luis Bouza. Religiosidad contrareformistay cultura simbólica del barroco. Prólogo de Julio CaroBaroja y Antonio Domínguez Ortiz. Madrid:Consejo Superior de Investigaciones Científicas,1990.

Battisti, Eugenio, Renacimiento y barroco. Madrid:Cátedra, 1990.

Belchior Pontes, Maria de Lourdes. Os Homens eos Livros. Lisboa: verbo, 1971.

Buci-Glucksmann, Christine. La Folie du voir: del’esthétique baroque. Paris: Galilée, 1986.

Cardoso, Maria Teresa Araújo de Andrade. Ropicatypographica anonyma et alia: análise da sociedade e dacultura barroca com base num catálogo de anónimos,pseudónimos, ou obras a qualquer título anómalas,existentes na livraria do Convento de Nossa Senhorade Jesus: (1600-1750). [Texto policopiado]. Lisboa:[s.n.], 1995.

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