poesias de gonçalves dias

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POESIAS DE GONALVES DIAS

SUMRIO PRLOGO DA PRIMEIRA EDIO .................................................9 I - PRIMEIROS CANTOS Poesias americanas Cano do exlio...................................................................................11 O canto do guerreiro ............................................................................13 O canto do piaga ..................................................................................16 Deprecao...........................................................................................20 Poesias diversas A minha musa ......................................................................................25 A leviana ..............................................................................................29 Delrio..................................................................................................31 Sofrimento ...........................................................................................34 A escrava ..............................................................................................36 Quadras da minha vida ........................................................................40 Hinos O mar ..................................................................................................51 Rosa no mar .........................................................................................54 Idia de Deus .......................................................................................57 II- NOVOS CANTOS COLEO MELHORES CONTOS No me deixes! .....................................................................................63 Rola .....................................................................................................64 Ainda uma vez adeus! .....................................................................65 Se se morre de amor! ............................................................................71

III - SEXTILHAS DO FREI ANTO Loa da princesa santa ............................................................................77 IV- LTIMOS CANTOS Poesias americanas O gigante de pedra ...............................................................................99 Leito de folhas verdes .........................................................................106 I-Juca-Pirama .....................................................................................108 Marab ...............................................................................................125 Cano do tamoio ..............................................................................127 Poesias diversas Olhos verdes.......................................................................................133 Sobre o tmulo de um menino ...........................................................135 Saudades ............................................................................................136 V - OS TIMBIRAS Poema Americano Introduo .........................................................................................147 VI - OUTRAS POESIAS Caxias ................................................................................................151 A harmonia ........................................................................................153 A tempestade ......................................................................................156 VII - MEDITAO Captulo Primeiro ..............................................................................165 BIOBIBLIOGRAFIA.........................................................................173

I PRIMEIROS CANTOS

POESIAS AMERICANASLes infortunes dun obscur habitant des bois auraient-elles moins de droits nos pleurs que celles des autres hommes? CHATBAUBRIAND

Poesias

de

G o n a lv e s d i a s

PRLOGO DA PRIMEIRA EDIO Dei o nome de PRIMEIROS CANTOS s poesias que agora publico, porque espero que no sero as ltimas. Muitas delas no tm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo regras de mera conveno; adotei todos os ritmos da metrificaro portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir. No tm unidade de pensamento entre si, porque foram compostas em pocas diversas debaixo de cu diverso e sob a influncia de impresses momentneas. Foram compostas nas margens viosas do Mondego e nos pncaros enegrecidos do Gerez no Doiro e no Tejo sobre as vagas do Atlntico, e nas florestas virgens da Amrica. Escrevia-as para mim, e no para os outros; contentar-me-ei, se agradarem; e se no... sempre certo que tive o prazer de as ter composto. Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena poltica para ler em minha alma, reduzindo linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as idias que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano o aspecto enfim da natureza. Casar assim o pensamento com o sentimento o corao com o entendimento a idia com a paixo colorir tudo isto com a imaginao, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religio e da divindade, eis a Poesia a Poesia grande e santa a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir. O esforo ainda vo para chegar a tal resultado sempre digno de louvor; talvez seja este o s merecimento deste volume. O Pblico o julgar; tanto melhor se ele o despreza, porque o Autor interessa em acabar com essa vida desgraada, que se diz de Poeta. Rio de Janeiro julho de 1846.

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Poesias

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CANO DO EXLIO Kennsl du das Land, wo die Citronen, blhen, Im dunkeln die Gold-Orangen gliihen,Kcnnst du es wohl? - Dahin, dahin! Mcht ich... ziehn.GOETHE

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabi; As aves, que aqui gorjeiam, No gorjeiam como l. Nosso cu tem mais estrelas, Nossas vrzeas tm mais flores, Nossos bosques tm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, noite, Mais prazer encontro eu l; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabi. Minha terra tem primores, Que tais no encontro eu c; Em cismar sozinho, noite Mais prazer encontro eu l; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabi.

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No permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para l; Sem que desfrute os primores Que no encontro por c; Sem quinda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabi. Coimbra Julho 1843

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O CANTO DO GUERREIRO I Aqui na floresta Dos ventos batida, Faanhas de bravos No geram escravos, Que estimem a vida Sem guerra e lidar. Ouvi-me, Guerreiros. Ouvi meu cantar. II Valente na guerra Quem h, como eu sou? Quem vibra o tacape Com mais valentia? Quem golpes daria Fatais, como eu dou? Guerreiros, ouvi-me; Quem h, como eu sou? III Quem guia nos ares A frecha imprumada, Ferindo uma presa, Com tanta certeza, Na altura arrojada Onde eu a mandar? Guerreiros, ouvi-me, Ouvi meu cantar.13

G o n a lv e s d i a s

IV Quem tantos imigos Em guerras preou? Quem canta seus feitos Com mais energia? Quem golpes daria Fatais, corno eu dou? Guerreiros, ouvi-me: Quem h, como eu sou? V Na caa ou na lide, Quem h que me afronte?! Meus passos conhece, O imigo estremece, E a ave medrosa Se esconde no cu. Quem h mais valente, Mais destro do que eu? VI Se as matas estrujo Coos sons do Bor, Mil arcos se encurvam, Mil setas l voam, Mil gritos reboam. Mil homens de p Eis surgem, respondem Aos sons do Bor! Quem mais valente, Mais forte quem ?

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Poesias

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VII L vo pelas matas; No fazem rudo: O vento gemendo E as matas tremendo E o triste carpido Duma ave a cantar, So eles guerreiros, Que fao avanar. VIII E o Piaga se ruge No seu Marac, A morte l paira Nos ares frechados, Os campos juncados De mortos so j: Mil homens viveram, Mil homens so l. IX E ento se de novo Eu toco o Bor; Qual fonte que salta De rocha empinada, Que vai marulhosa, Fremente e queixosa, Que a raiva apagada De todo no , Tal eles se escoam Aos sons do Bor. Guerreiros, dizei-me, To forte quem ?15

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O CANTO DO PIAGA I guerreiros da Taba sagrada, guerreiros da Tribu Tupi, Falam Deuses nos cantos do Piaga, guerreiros, meus cantos ouvi. Esta noite era a lua j morta Anhang me vedava sonhar; Eis na horrvel caverna, que habito, Rouca voz comeou-me a chamar. Abro os olhos, inquieto, medroso, Manits! que prodgios que vi! Arde o pau de resina fumosa, No fui eu, no fui eu, que o acendi! Eis rebenta a meus ps um fantasma, Um fantasma dimensa extenso; Liso crnio repousa a meu lado, Feia cobra se enrosca no cho. O meu sangue gelou-se nas veias, Todo inteiro ossos, carnes tremi, Frio horror me coou pelos membros, Frio vento no rosto senti. Era feio, medonho, tremendo, guerreiros, o espectro que eu vi, Falam Deuses nos cantos do Piaga, guerreiros, meus cantos ouvi!16

Poesias

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II Por que dormes, Piaga divino? Comeou-me a Viso a falar, Por que dormes? O sacro instrumento De per si j comea a vibrar. Tu no viste nos cus um negrume Toda a face do sol ofuscar; No ouviste a coruja, de dia, Seus estrdulos torva soltar? Tu no viste dos bosques a coma Sem aragem vergar-se e gemer, Nem a lua de fogo entre nuvens, Qual em vestes de sangue, nascer? E tu dormes, Piaga divino! E Anhang te probe sonhar! E tu dormes, Piaga, e no sabes, E no podes augrios cantar?! Ouve o anncio do horrendo fantasma, Ouve os sons do fiel Marac; Manits j fugiram da Taba! O desgraa! runa! Tup! III Pelas ondas do mar sem limites Basta selva, sem folhas, i vem; Hartos troncos, robustos, gigantes; Vossas malas tais monstros contm.

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Traz embira dos cimos pendente Brenha espessa de vrio cip Dessas brenhas contm vossas matas, Tais e quais, mas com folhas; s! Negro monstro os sustenta por baixo, Brancas asas abrindo ao tufo, Como um bando de cndidas garas. Que nos ares pairando l vo. Oh! quem foi das entranhas das guas, O marinho arcabouo arrancar? Nossas terras demanda, fareja... Esse monstro... o que vem c buscar? No sabeis o que o monstro procura? No sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem trazer-vos crueza, impiedade Dons cruis do cruel Anhang; Vem quebrar-vos a maa valente, Profanar Manits, Maracs. Vem trazer-vos algemas pesadas, Com que a tribu Tupi vai gemer; Ho-de os velhos servirem de escravos, Mesmo o Piaga inda escravo h de ser! Fugireis procurando um asilo, Triste asilo por nvio serto; Anhang de prazer h de rir-se. Vendo os vossos quo poucos sero.

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Vossos Deuses, Piaga, conjura, Susta as iras do fero Anhang. Manits j fugiram da Taba, desgraa! runa! Tup!

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DEPRECAO Tup, Deus grande! cobriste o teu rosto Com denso velmen de penas gentis; E jazem teus filhos clamando vingana Dos bens que lhes deste da perda infeliz! Tup, Deus grande! teu rosto descobre: Bastante sofremos com tua vingana! J lgrimas tristes choraram teus filhos, Teus filhos que choram to grande mudana. Anhang impiedoso nos trouxe de longe Os homens que o raio manejam cruentos, Que vivem sem ptria, que vagam sem tino Trs do ouro correndo, voraces, sedentos. E a terra em que pisam, e os campos e os rios Que assaltam, so nossos; tu s nosso Deus: Por que lhes concedes to alta pujana, Se os raios de morte, que vibram, so teus? Tup, Deus grande! cobriste o teu rosto Com denso velmen de penas gentis; E jazem teus filhos clamando vingana Dos bens que lhes deste da perda infeliz. Teus filhos valentes, temidos na guerra, No albor da manh quo fortes que os vi! A morte pousava nas plumas da frecha, No gume da maa, no arco Tupi!

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Poesias

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E hoje em que apenas a enchente do rio Cem vezes hei visto crescer e baixar... J restam bem poucos dos teus, quinda possam Dos seus, que j dormem, os ossos levar. Teus filhos valentes causavam terror, Teus filhos enchiam as bordas do mar, As ondas coalhavam de estreitas igaras. De frechas cobrindo os espaos do ar. J hoje no caam nas matas frondosas A cora ligeira, o trombudo quati... A morte pousava nas plumas da frecha, No gume da maa, no arco Tupi! O Piaga nos disse que breve seria, A que nos infliges cruel punio; E os teus inda vagam por serras, por vales, Buscando um asilo por nvio serto! Tup, Deus grande! descobre o teu rosto: Bastante sofremos com tua vingana! J lgrimas tristes choraram teus filhos, Teus filhos que choram to grande tardana. Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos, Que eu vi combatendo no albor da manh; Conheam-te os feros, confessem vencidos Que s grande e te vingas, qus Deus, Tup!

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POESIAS DIVERSAS

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A MINHA MUSA Gratia, Musa, tibi; nam tu solatia praebcs.OVDIO

Minha Musa no como ninfa Que se eleva das guas gentil Coum sorriso nos lbios mimosos, Com requebros, com ar senhoril. Nem lhe pousa nas faces redondas Dos fagueiros anelos a cor; Nesta terra no tem uma esperana, Nesta terra no tem um amor. Como fada de meigos encantos, No habita um palcio encantado, Quer em meio de matas sombrias, Quer beira do mar levantado. No tem ela uma senda florida, De perfumes, de flores bem cheia, Onde vague com passos incertos, Quando o cu de luzeiros se arreia. No como a de Horcio a minha Musa; Nos soberbos alpendres dos Senhores No que ela reside; Ao banquete do grande em lauta mesa, Onde gira o falerno em taas doiro, No que ela preside.25

G o n a lv e s d i a s

Ela ama a solido, ama o silncio. Ama o prado florido, a selva umbrosa E da rola o carpir. Ela ama a virao da tarde amena, O sussurro das guas, os acentos De profundo sentir. DAnacreonte o gnio prazenteiro, Que de flores cingia a fronte calva Em brilhante festim, Tomando inspiraes doce amada, Que leda lhenflorava a ebrnea lira; De que me serve, a mim? Canes que a turba nutre, inspira, exalta Nas cordas magoadas me no pousam Da lira de marfim. Correm meus dias, lacrimosos, tristes, Como a noite que estende as negras asas Por cu negro e sem fim. triste a minha Musa, como triste O sincero verter damargo pranto Drf singela; triste como o som que a brisa espalha, Que cicia nas folhas do arvoredo Por noite bela. triste como o som que o sino ao longe Vai perder na extenso dameno prado Da tarde no cair, Quando nasce o silncio involto em trevas, Quando os astros derramam sobre a terra Merencrio luzir.

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Ela ento, sem destino, erra por vales, Erra por altos montes, onde a enxada Fundo e fundo cavou; E pra; perto, jovial pastora Cantando passa e ela cisma ainda Depois que esta passou. Alm da choa humilde sergue o fumo Que em risonha espiral se eleva s nuvens Da noite entre os vapores; Muge solto o rebanho; e lento o passo, Cantando em voz sonora, porm baixa, Vem andando os pastores. Outras vezes tambm, no cemitrio, Incerta volve o passo, soletrando Recordaes da vida; Roa o negro cipreste, calca o musgo, Que o tempo fez brotar por entre as lendas Da pedra carcomida. Ento corre o meu pranto muito e muito Sobre as midas cordas da minha Harpa, Que no ressoam; No choro os mortos, no; choro os meus dias, To sentidos, to longos, to amargos, Que em vo se escoam. Nesse pobre cemitrio Quem j me dera um logar! Esta vida mal vivida Quem j ma dera acabar!

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Tenho inveja ao pegureiro, Da pastora invejo a vida, Invejo o sono dos mortos Sob a laje carcomida. Se qual pego tormentoso, O sopro da desventura Vai bater potente porta De sumida sepultura; Uma voz no lhe responde, No lhe responde um gemido, No lhe responde uma prece, Um ai do peito sentido. J no tm voz com que falem, J no tm que padecer; No passar da vida morte Foi seu extremo sofrer. Que lhimporta a desventura? Ela passou, qual gemido Da brisa em meio da mata De verde alecrim florido. Quem me dera ser como eles! Quem me dera descansar! Nesse pobre cemitrio Quem me dera o meu logar. E coos sons das Harpas danjos Da minha Harpa os sons casar!

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A LEVIANA Souventfemme varie, Bienfol est qui syfic.FRANCISCO I

s engraada e formosa Como a rosa, Como a rosa em ms dAbril; s como a nuvem doirada Deslizada, Deslizada em cus danil. Tu s vria e melindrosa Borboleta num jardim, Que as flores todas afaga, E divaga Em devaneio sem fim. s pura, como uma estrela Doce e bela, Que treme incerta no mar; Mostras nos olhos tua alma Terna e calma, Como a luz dalmo luar. Tuas formas to donosas. To airosas, Formas da terra no so; Pareces anjo formoso, Vaporoso, Vindo da etrea manso.

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Assim, beijar-te receio, Contra o seio Eu tremo de te apertar; Pois me parece que um beijo sobejo Para o teu corpo quebrar. Mas no digas que s s minha! Passa asinha A vida, como a ventura, Que te no vejam brincando, E folgando Sobre a minha sepultura. Tal os sepulcros colora Bela aurora De fulgores radiante; Tal a vaga mariposa Brinca e pousa Dum cadver no semblante.

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DELRIO Quando dormimos o nosso esprito vela.SQUILO

noite quando durmo, esclarecendo As trevas do meu sono, Uma etrea viso vem assentar-se Junto ao meu leito aflito! Anjo ou mulher? no sei. Ah! se no fosse Um qual vu transparente, Como que a alma pura ali se pinta Ao travs do semblante, Eu a crera mulher... E tentas, louco. Recordar o passado. Transformando o prazer, que desfrutaste, Em lentas agonias?! Viso, fatal viso, porque derramas Sobre o meu rosto plido A luz de um longo olhar, que amor exprime E pede compaixo? Por que teu corao exala uns fundos, Magoados suspiros, Que eu no escuto; mas que vejo e sinto Nos teus lbios morrer? Por que esse gesto e mrbida postura De macerado esprito, Que vive entre aflies, que j nem sabe Desfrutar um prazer?

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Tu falas! tu que dizes? este acento, Esta voz melindrosa. Noutros tempos ouvi, porm mais leda; Era um hino damor. A voz, que escuto, magoada e triste, Harmonia celeste. Que noite vem nas asas do silncio Umedecer as faces Do que enxerga outra vida alm das nuvens. Esta voz no sua; acorde talvez dharpa celeste. Cado sobre a terra! Balbucias uns sons, que eu mal percebo, Doridos, compassados, Fracos, mais fracos; lgrimas despontam Nos teus olhos brilhantes... Choras! tu choras!... Para mim teus braos Por fora irresistvel Estendem-se, procuram-me; procuro-te Em delrio afanoso. Fatdico poder entre ns ambos Ergueu alta barreira; Ele te enlaa e prende... mal resistes... Cedes enfim... acordo!

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Acordo do meu sonho tormentoso, E choro o meu sonhar! E fecho os olhos, e de novo intento O sonho reatar. Embalde! porque a vida me tem preso; E eu sou escravo seu! Acordado ou dormindo, triste a vida Ds que o amor se perdeu. H contudo prazer em nos lembrarmos Da passada ventura, Como o que educa flores vicejantes Em triste sepultura.

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SOFRIMENTO Meu deus, Senhor meu Deus, o que h no mundo Que no seja sofrer? O homem nasce, e vive um s instante, E sofre at morrer! A flor ao menos, nesse breve espao Do seu doce viver, Encanta os ares com celeste aroma, Querida at morrer. breve o romper dalva, mas ao menos Traz consigo prazer; E o homem nasce e vive um s instante: E sofre at morrer! Meu peito de gemer j est cansado, Meus olhos de chorar; E eu sofro ainda, e j no posso alvio Sequer no pranto achar! J farto de viver, em meia vida, Quebrado pela dor, Meus anos hei passado, uns aps outros, Sem paz e sem amor. O amor que eu tanto amava do imo peito, Que nunca pude achar, Que embalde procurei, na flor, na planta, No prado, e terra, e mar!

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E agora o que sou eu? Plido espectro, Que da campa fugiu; Flor ceifada em boto; imagem triste De um ente que existiu... No escutes, meu Deus, esta blasfmia; Perdo, Senhor, perdo! Minha alma sinto ainda, sinto, escuto Bater-me o corao. Quando roja meu corpo sobre a terra, Quando me aflige a dor, Minha alma aos cus se eleva, como o incenso, Como o aroma da flor. E eu bendigo o teu nome eterno e santo, Bendigo a minha dor, Que vai alm da terra aos cus infindos Prender-me ao criador. Bendigo o nome teu, que uma outra vida Me fez descortinar, Uma outra vida, onde no h s trevas, E nem h s penar.

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A ESCRAVA Oh hien quaucun bien ne peut rendre. Patrie, doux non que lexil fait comprendre!MARINO FALIERO

Oh! doce pas de Congo, Doces terras dalm-mar! Oh! dias de sol formoso! Oh! noites dalmo luar! Desertos de branca areia De vasta, imensa extenso, Onde livre corre a mente, Livre bate o corao! Onde a leda caravana Rasga o caminho passando, Onde bem longe se escuta As vozes que vo cantando! Onde longe inda se avista O turbante muulmano. O Iatag recurvado, Preso cinta do Africano! Ele depois me tornava Sobre o rochedo sorrindo: As guas desta corrente No vs como vo fugindo?

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To depressa corre a vida, Minha Alsg; depois morrer S nos resta!... Pois a vida Seja instante de prazer. Os olhos em torno volves Espantados Ah! tambm Arfa o teu peito ansiado!... Acaso temes algum? No receies de ser vista. Tudo agora jaz dormente; Minha voz mesmo se perde No fragor desta corrente. Minha Alsg, porque estremeces? Porque me foges assim? No te partas, no me fujas, Que a vida me foge a mim! Outro beijo acaso temes. Expresso de amor ardente? Quem o ouviu? o som perdeu-se No fragor desta corrente. Onde o sol na areia ardente Se espelha, como no mar; Oh! doces terras de Congo, Doces terras dalm-mar! _____________________ Quando a noite sobre a terra Desenrolava o seu vu, Quando sequer uma estrela No se pintava no cu;

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Quando s se ouvia o sopro De mansa brisa fagueira, Eu o aguardava sentada Debaixo da bananeira. Um rochedo ao p se erguia, Dele base uma corrente Despenhada sobre pedras, Murmurava docemente. E ele s vezes me dizia: Minha Alsg, no tenhas medo; Vem comigo, vem sentar-te Sobre o cimo do rochedo. E eu respondia animosa: Irei contigo, onde fores! E tremendo e palpitando Me cingia aos meus amores. Assim praticando amigos A aurora nos vinha achar! Oh! doces terras de Congo, Doces terras dalm-mar! _____________________ Do rspido Senhor a voz irada, Rpida soa, Sem o pranto enxugar a triste escrava Pvida voa.

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Mas era em mora por cismar na terra, Onde nascera, Onde vivera to ditosa, e onde Morrer devera! Sofreu tormentos, porque tinha um peito, Quinda sentia; Msera escrava! no sofrer cruento, Congo! dizia.

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RECORDAO E DESEJO AO MEU BOM AMIGO O DR. A. REGO

QUADRAS DA MINHA VIDA

Sol chi nom lascia credita duffetti Poa gioia ha deli urna.FOSCOLO

I HOUVE TEMPO em que os meus olhos Gostavam do sol brilhante, E do negro vu da noite, E da aurora cintilante. Gostavam da branca nuvem Em cu de azul espraiada, Do terno gemer da fonte Sobre pedras despenhada. Gostavam das vivas cores De bela flor vicejante, E da voz imensa e forte Do verde bosque ondeante. Inteira a natureza me sorria! A luz brilhante, o sussurrar da brisa, O verde bosque, o rosicler daurora, Estrelas, cus, e mar, e sol, e terra, Desperana e damor minha alma ardente, De luz e de calor meu peito enchiam. Inteira a natureza parecia

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Meus mais fundos, mais ntimos desejos Perscrutar e cumprir; almo sorriso Parecia enfeitar coos seus encantos, Com todo o seu amor compor, doir-lo, Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no, Porque minha alma de o sentir folgasse. Oh! quadra to feliz! Se ouvia a brisa Nas folhas sussurrando, o som das guas, Dos bosques o rugir; se os desejava, O bosque, a brisa, a folha, o trepidante Das guas murmurar prestes ouvia. Se o sol doirava os cus, se a lua casta, Se as tmidas estrelas cintilavam. Se a flor desabrochava involta cm musgo, Era a flor que eu amava, eram estrelas Meus amores somente, o sol brilhante, A lua merencria os meus amores! Oh! quadra to feliz! doce harmonia, Acordo estreme de vontade e fora, Que atava minha vida natureza! Ela era para mim bem como a esposa Recm-casada, pudica sorrindo; Alma de noiva corao de virgem, Que a minha vida inteira abrilhantava! Quando um desejo me brotava nalma, Ela o desejo meu satisfazia; E o quer que ela fizesse ou me dissesse, Esse era o meu desejo, essa a voz minha, Esse era o meu sentir do fundo dalma, Expresso pela voz que eu mais amava.

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II Agora a flor que mimporta, Ou a brisa perfumada, Ou o som damiga fonte Sobre pedras despenhada? Que me importa a voz confusa Do bosque verde-frondoso, Que mimporta a branca lua, Que mimporta o sol formoso? Que mimporta a nova aurora, Quando se pinta no cu; Que mimporta a feia noite, Quando desdobra o seu vu? Estas cenas, que amei, j me no causam Nem dor e nem prazer! Indiferente, Minha alma um s desejo no concebe, Nem vontade j tem!... Oh! Deus! quem pode Do meu imaginar as puras asas Cercear, desprender-lhe as nveas plumas, Roj-las sobre o p, calc-las tristes? Perante a creao to vasta e bela Minha alma como a flor que pende murcha; qual profundo abismo: embalde estrelas Brilham no azul dos cus, embalde a noite Estende sobre a terra o negro manto: No pode a luz chegar ao fundo abismo, Nem pode a noite enegrecer-lhe a face; No pode a luz flor prestar mais brilho Nem vio e nem frescor prestar-lhe a noite!

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III Houve tempo em que os meus olhos Se extasiavam de ver gil donzela formosa Por entre flores correr. Gostavam de um gesto brando, Que revelasse pudor; Gostavam de uns olhos negros. Que rutilassem de amor. E gostavam meus ouvidos De uma voz toda harmonia, Quer pesares exprimisse, Quer exprimisse alegria. Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem Indolente ou fugaz alegre ou triste, Da vida a estreita senda desflorando Com p ligeiro e nimo tranqilo; lmprvida e brilhante parecendo Seus dias desfolhar, uns aps outros, Como folhas de rosa; e no futuro Ver luzir-lhe somente a luz daurora. Era deleite e dor v-la to leda Do mundo as aflies, angstias, prantos Afrontar coum sorriso; era um descanso Interno e fundo, que sentia a mente, Um quadro em que os meus olhos repousavam, Ver tanta formosura e tal pureza Em rosto de mulher com alma danjo!

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IV Houve tempo em que os meus olhos Gostavam de lindo infante, Com a candura e sorriso Que adorna infantil semblante. Gostavam do grave aspecto De majestoso ancio, Tendo nos lbios conselhos, Tendo amor no corao. Um representa a inocncia, Outro a verdade sem vu, Ambos to puros, to graves, Ambos to perto do cu! Infante e velho! princpio e fim da vida! Um entra neste mundo, outro sai dele, Gozando ambos da aurora; um sobre a terra, E o outro l nos cus. O Deus, que grande, Do pobre velho compensando as dores, O chama para si; o Deus clemente Sobre a inocncia de contnuo vela. Amei do velho o majestoso aspecto, Amei o infante que no tem segredos, Nem cobre o corao coos folhos dalma. Amei as doces vozes da inocncia, A rspida franqueza amei do velho, E as rgidas verdades mal sabidas, S por lbios senis pronunciadas.

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V Houve tempo, em que possvel Eu julguei no mundo achar Dois amigos extremosos, Dois irmos do meu pensar: Amigos que comprendessem Meu prazer e minha dor, Dos meus lbios o sorriso, Da minha alma o dissabor; Amigos, cuja existncia Vivesse eu coo meu viver: Unidos sempre na vida, Unidos t no morrer. Amizade! unio, virtude, encanto Consrcio do querer, de fora e dalma Dos grandes sentimentos c da terra Talvez o mais recproco, o mais fundo! Quem h que diga: Eu sou feliz! se acaso Um amigo lhe falta? um doce amigo, Que sinta o seu prazer como ele o sente, Que sofra a sua dor como ele a sofre? Quando a ventura lhe sorri na vida, Um a par doutro ei-los l vo felizes; Quando um sente aflio, nos braos do outro A aflio, que s dum, carpindo juntos, Encontra doce alvio o desditoso No tesouro que encerra um peito amigo. Cndido par de cisnes, vo roando A face azul do mar coas nveas asas Em deleite amoroso; acalentados Pelo sereno espreguiar das ondas,

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Aspirando perfumes mal sentidos. Por vesperina aragem bafejados, jogo o seu viver; porm se o vento No frondoso arvoredo ruge ao longe, Se o mar, batendo irado as ermas praias, Cruzadas vagas em novelo enrola, Com grito de terror o par candente Sacode as nveas asas, bate-as, fogem. VI Houve tempo em que eu pedia Uma mulher ao meu Deus, Uma mulher que eu amasse, Um dos belos anjos seus. Em que eu a Deus s pedia Com fervorosa orao Um amor sincero e fundo, Um amor do corao. Queu sentisse um peito amante Contra o meu peito bater, Somente um dia... somente! E depois dele morrer. Amei! e o meu amor foi vida insana! Um ardente anelar, cautrio vivo, Posto no corao, a remord-lo. No tinha uma harmonia a natureza Comparada a sua voz; no tinha cores Formosas como as dela, nem perfumes Como esse puro odor quela esparzia Danglica pureza. Meus ouvidos O feiticeiro som dos meigos lbios

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Ouviam com prazer; meus olhos vagos De a ver no se cansavam; lbios dhomens No puderam dizer como eu a amava! E achei que o amor mentia, e que o meu anjo Era apenas mulher! chorei! deixei-a! E aqueles, que eu amei coo amor damigo, A sorte, boa ou m, levou-mos longe. Bem longe quando eu perto os carecia. Conclu que a amizade era um fantasma, Na velhice prudente hbito apenas, No jovem doudejar; em mim lembrana; Lembrana! porm tal que a no trocara Pelos gozos da terra, meus prazeres Foram s meus amigos, meus amores Ho de ser neste mundo eles somente. VII Houve tempo em que eu sentia Grave e solene aflio, Quando ouvia junto ao morto Cantar-se a triste orao. Quando ouvia o sino escuro Em sons pesados dobrar, E os cantos do sacerdote Erguidos junto do altar. Quando via sobre um corpo A fria lousa cair; Silncio debaixo dela, Sonhos talvez e dormir.

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Feliz quem dorme sob a lousa amiga, Tpida talvez com o pranto amargo Dos olhos da aflio; se os mortos sentem. Ou se almas tem amor aos seus despojos, Certo dos ps do Eterno, entre a aleluia, E o gozo l dos cus, e os coros danjos, Ho de lembrar-se com prazer dos vivos, Que choram sobre a campa, onde j brota O denso musgo, e j desponta a relva. Lajem fria dos mortos! quem me dera Gozar do teu descanso, ir asilar-me Sob o teu santo horror, e nessas trevas Do bulcio do mundo ir esconder-me! Oh! lajem dos sepulcros! quem me desse No teu silncio fundo asilo eterno! A no pulsa o corao, nem sente Martrios de viver quem j no vive.

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HINOSSinge dem Herrn mein Lied, und du, begeisterte Seele, Werde ganz Jubel dem Gott, den alie Wesen bekennen!WIELAND

MESQUINHO TRIBUTO DE PROFUNDA AMIZADE AO DR. J. LISBOA SERRA

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O MAR Frapp de ta grandeur farouche Je tremble... est-ce bien toi, vieux lion que je touche. Ocan, terrible cin!TURQUETY

Oceano terrvel, mar imenso De vagas procelosas que se enrolam Floridas rebentando em branca espuma Num plo e noutro plo, Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos Na indmita cerviz trmulos cravo, E nesse rugido teu sanhudo e forte Enfim medroso escuto! Donde houveste, plago revolto, Esse rugido teu? Em vo dos ventos Corre o insano pego lascando os troncos, E do profundo abismo Chamando superfcie infindas vagas, Que avaro encerras no teu seio undoso; Ao insano rugir dos ventos bravos Sobressai teu rugido. Em vo iroveja horrssona tormenta; Essa voz do trovo, que os cus abala, No cobre a tua voz. Ah! donde a houveste, Majestoso oceano?

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O mar, o teu rugido um eco incerto Da criadora voz, de que surgiste: Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas As vagas compeliste. E noite, quando o cu puro e limpo, Teu cho tinges de azul, tuas ondas correm Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos Entre dois cus brilhantes. Da voz de Jeov um eco incerto Julgo ser teu rugir; mas s, perene, Imagem do infinito, retratando As feituras de Deus. Por isto, a ss contigo, a mente livre Se eleva, aos cus remota ardente, altiva, E deste lodo terreal se apura. Bem como o bronze ao fogo. Frvida a Musa, coos teus sons casada, Glorifica o Senhor de sobre os astros Coa fronte alm dos cus, alm das nuvens, E coos ps sobre ti. O que h mais forte do que tu? Se errias A coma perigosa, a nau possante, Extremo de artifcio, em breve tempo Se afunda e se aniquila. s poderoso sem rival na terra; Mas l te vais quebrar num gro dareia, To forte contra os homens, to sem fora Contra coisa to fraca!

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Mas nesse instante que me est marcado, Em que hei de esta priso fugir pra sempre Irei to alto, mar, que l no chegue Teu sonoro rugido. Ento mais forte do que tu, minha alma, Desconhecendo o temor, o espao, o tempo, Quebrar num relance o circlo estreito Do finito e dos cus! Ento, entre miradas de estrelas, Cantando hinos damor nas harpas danjos, Mais forte soar que as tuas vagas, Mordendo a fulva areia; Inda mais doce que o singelo canto De merencria virgem, quando a noite Ocupa a terra, e do que a mansa brisa, Que entre flores suspira.

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ROSA NO MAR! Rosa, rosa de amor purprea e bela, Quem entre os goivos te esfolhou da campa!OARRF.TT

Por uma praia arenosa, Vagarosa Divagava uma Donzela; D largas ao pensamento, Brinca o vento Nos soltos cabelos dela. Leve ruga no semblante Vem num instante, Que noutro instante se alisa; Mais veloz que a sua idia No volteia, No gira, no foge a brisa. No virginal devaneio Arfa o seio, Pranto ao riso se mistura; Doce rir dos cus encanto, Leve pranto, Que amargo no , nem dura. Nesse lugar solitrio, Seu fadrio. De ver o mar se recreia; De o ver, tarde, dormente, Docemente54

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Suspirar na branca areia. Agora, qual sempre usava. Divagava Em seu pensar embebida: Tinha no seio uma rosa Melindrosa, De verde musgo vestida. Ia a virgem descuidosa, Quando a rosa Do seio no cho lhe cai: Vem umonda bonanosa, Quimpiedosa A flor consigo retrai. A meiga flor sobrenada; De agastada, A virgea no quer deixar! Bia a Flor; a virgem bela, Vai trs ela. Rente, rente beira-mar. Vem a onda bonanosa. Vem a rosa; Foge a onda, a flor tambm. Se a onda foge, a donzela vai sobre ela! Mas foge, se a onda vem. Muitas vezes enganada. De enfadada No quer deixar de insistir; Das vagas menos se espanta, Nem com tanta

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Presteza lhes quer fugir. Nisto o mar que se encapela A virgem bela Recolhe e leva consigo; To falaz em calmaria, Como a fria Polidez de um falso amigo. Nas guas alguns instantes. Flutuantes Nadaram brancos vestidos: Logo o mar todo bonana, A praia cansa Com montonos latidos. Um doce nome querido Foi ouvido, Ia a noite em mais de meia. Toda a praia perlustraram, Nem acharam Mais que a flor na branca areia.

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IDIA DE DEUS Gross isl der Herr! Die Himmel ohnc Zahl Sind seine Wohnungen! Seine Wagen die donnernden Gewlke, UndBlitze sein Gespunn.KLEIST

voz de Jeov infindos mundos Se formaram do nada; Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia, E a noite foi criada. Luziu no espao a lua! sobre a terra Rouqueja o mar raivoso, E as esferas nos cus ergueram hinos Ao Deus prodigioso. Hino de amor a criao, que soa Eternal, incessante, Da noite no remanso, no rudo Do dia cintilante! A morte, as aflies, o espao, o tempo, O que para o Senhor? Eterno, imenso, que lhimporta a sanha Do tempo roedor? Como um raio de luz, percorre o espao, E tudo nota e v O argueiro, os mundos, o universo, o justo; E o homem que no cr.

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E ele que pode aniquilar os mundos, To forte como ele , E v e passa, e no castiga o crime, Nem o mpio sem f! Porm quando corrupto um povo inteiro O Nome seu maldiz, Quando s vive de vingana e roubos, Julgando-se feliz; Quando o mpio comanda, quando o justo Sofre as penas do mal, E as virgens sem pudor, e as mes sem honra, E a justia venal; Ai da perversa, da nao maldita, Cheia de ingratido, Que h de ela mesma sujeitar seu colo justa punio. Ou j terrvel peste expande as asas, Bem lenta a esvoaar; Vai de uns a outros, dos festins conviva, Hspede em todo o lar! Ou j torvo rugir da guerra acesa Espalha a confuso; E a esposa, e a filha, de terror opresso. No sente o corao. E o pai, e o esposo, no morrer cruento, Vomita o fel raivoso; Milhes de insetos vis que um p gigante Enterra em cho lodoso.

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E do povo corrupto um povo nasce Esperanoso e crente, Como do podre e carunchoso tronco Hstea forte e virente. II Oh! como grande o Senhor Deus, que os mundos Equilibra nos ares; Que vai do abismo aos cus, que susta as iras Do plago fremente, A cujo sopro a mquina estrelada Vacila nos seus eixos, A cujo aceno os querubins se movem Humildes, respeitosos, Cujo poder, que sem igual, excede A hiprbole arrojada! Oh! como grande o Senhor Deus dos mundos, O Senhor dos prodgios. III Ele mandou que o sol fosse princpio, E razo de existncia, Que fosse a luz dos homens olho eterno Da sua providncia. Mandou que a chuva refrescasse os membros Refizesse o vigor Da terra hiante, do animal cansado Em praino abrasador. Mandou que a brisa sussurrasse amiga, Roubando aroma flor; Que os rochedos tivessem longa vida, E os homens grato amor!59

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Oh! como grande e bom o Deus que manda Um sonho ao desgraado, Que vive agro viver entre misrias, De ferros rodeado; O Deus que manda ao infeliz que espere Na sua providncia; Que o justo durma, descansado e forte Na sua conscincia! Que o assassino de contnuo vele, Que trema de morrer; Enquanto l nos cus, o que foi morto, Desfruta outro viver! Oh! como grande o Senhor Deus, que rege A mquina estrelada, Que ao triste d prazer; descanso e vida mente atribulada!

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II NOVOS CANTOS

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NO ME DEIXES! Debruada nas guas dum regato A flor dizia em vo A corrente, onde bela se mirava... Ai, no me deixes, no! Comigo fica ou leva-me contigo Dos mares amplido, Lmpido ou turvo, te amarei constante Mas no me deixes, no! E a corrente passava; novas guas Aps as outras vo; E a flor sempre a dizer curva na fonte: Ai, no me deixes, no! E das guas que fogem incessantes eterna sucesso Dizia sempre a flor, e sempre embalde: Ai, no me deixes, no! Por fim desfalecida e a cor murchada, Quase a lamber o cho, Buscava inda a corrente por dizer-lhe Que a no deixasse, no. A corrente impiedosa a flor enleia, Leva-a do seu torro; A afundar-se dizia a pobrezinha: No me deixaste, no!

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ROLA Desque amor me deu que eu lesse Nos teus olhos minha sina, Ando, como a peregrina Rola, que o esposo perdeu! Seja noite ou seja dia, Eu te procuro constante: Vem, oh! vem, meu amante, Tua sou e tu s meu! Vem, oh vem, que por ti clamo; Vem contentar meus desejos, Vem fartar-me com teus beijos, Vem saciar-me de amor! Amo-te, quero-te, adoro-te, Abraso-me quando em ti penso, E em fogo voraz, intenso, Anseio louca de amor! Vem, que te chamo e te aguardo, Vem apertar-me em teus braos, Estreitar-me em doces laos, Vem pousar no peito meu! Que, se amor me deu que eu lesse Nos teus olhos minha sina, Ando, como a peregrina Rola, que o esposo perdeu.

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AINDA UMA VEZ ADEUS! I Enfim te vejo! enfim posso, Curvado a teus ps, dizer-te, Que no cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri. Muito penei! Cruas nsias, Dos teus olhos afastado, Houveram-me acabrunhado, A no lembrar-me de ti! II Dum mundo a outro impelido, Derramei os meus lamentos Nas surdas asas dos ventos, Do mar na crespa cerviz! Baldo, ludibrio da sorte Em terra estranha, entre gente, Que alheios males no sente, Nem se condi do infeliz! III Louco, aflito, a saciar-me Dgravar minha ferida, Tomou-me tdio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No ltimo arcar da esprana, Tu me vieste lembrana: Quis viver mais e vivi!65

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IV Vivi; pois Deus me guardava Para este logar e hora! Depois de tanto, senhora, Ver-te e falar-te outra vez; Rever-me em teu rosto amigo, Pensar em quanto hei perdido, E este pranto dolorido Deixar correr a teus ps. V Mas que tens? No me conheces? De mim afastas teu rosto? Pois tanto pode o desgosto Transformar o rosto meu? Sei a aflio quanto pode, Sei quanto ela desfigura, E eu no vivi na ventura... Olha-me bem, que sou eu! VI Nenhuma voz me diriges!... Julgas-te acaso ofendida? Deste-me amor, e a vida Que ma darias bem sei; Mas lembrem-te aqueles feros Coraes, que se meteram Entre ns; e se venceram, Mal sabes quanto lutei!

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VII Oh! se lutei!... Mas devera Expor-te em pblica praa, Como um alvo populaa, Um alvo aos dictrios seus! Devera, podia acaso Tal sacrifcio aceitar-te Para no cabo pagar-te, Meus dias unindo aos teus? VIII Devera, sim; mas pensava, Que de mim tesquecerias, Que, sem mim, alegres dias Tesperavam; e em favor De minhas preces, contava Que o bom Deus me aceitaria O meu quinho de alegria Pelo teu quinho de dor! IX Que me enganei, ora o vejo; Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; Erro foi, mas no foi crime, No te esqueci, eu to juro: Sacrifiquei meu futuro, Vida e glria por te amar!

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X Tudo, tudo; e na misria Dum martrio prolongado, Lento, cruel, disfarado, Que eu nem a ti confiei; Ela feliz (me dizia) Seu descanso obra minha. Negou-me a sorte mesquinha... Perdoa, que me enganei! XI Tantos encantos me tinham, Tanta iluso me afagava De noite, quando acordava, De dia em sonhos talvez! Tudo isso agora onde pra? Onde a iluso dos meus sonhos? Tantos projetos risonhos, Tudo esse engano desfez! XII Enganei-me!... Horrendo caos Nessas palavras se encerra, Quando do engano, quem erra, No pode voltar atrs! Amarga irriso! reflete: Quando eu gozar-te pudera, Mrtir quis ser, cuidei quera... E um louco fui, nada mais!

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XIII Louco, julguei adornar-me Com palmas dalta virtude! Que tinha eu bronco e rude Coo que se chama ideal? O meu eras tu, no outro; Stava em deixar minha vida Correr por ti conduzida, Pura, na ausncia do mal. XIV Pensar eu que o teu destino Ligado ao meu, outro fora, Pensar que te vejo agora, Por culpa minha, infeliz; Pensar que a tua ventura Deus ab eterno a fizera, No meu caminho a pusera... E eu! eu fui que a no quis! XV s doutro agora, e pra sempre! Eu a msero desterro Volto, chorando o meu erro, Quase descrendo dos cus! Di-te de mim, pois me encontras Em tanta misria posto, Que a expresso deste desgosto Ser um crime ante Deus!

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XVI Di-te de mim, que timploro Perdo, a teus ps curvado; Perdo! de no ter ousado Viver contente e feliz! Perdo da minha misria, Da dor que me rala o peito, E se do mal que te hei feito, Tambm do mal que me fiz! XVII Adeus queu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus; Negou-me nesta hora extrema, Por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluar um breve Adeus! XVIII Lers porm algum dia Meus versos, dalma arrancados, Damargo pranto banhados, Com sangue escritos; e ento Confio que te comovas, Que a minha dor te apiade, Que chores, no de saudade, Nem de amor, de compaixo.

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SE SE MORRE DE AMOR! Meere und Berge und Horizonte zwischen den Liebenden aber die Seelen versetzen sich aus dem staubigen Kerker und treffen sich im Paradiese der Liebe. Se se morre de amor! No, no se morre, Quando fascinao que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos; Quando luzes, calor, orquestra e flores Assomos de prazer nos raiam nalma, Que embelezada e solta em tal ambiente No que ouve, e no que v prazer alcana! Simpticas feies, cintura breve, Graciosa postura, porte airoso, Uma fita, uma flor entre os cabelos, Um qu mal definido, acaso podem Num engano damor arrebatar-nos. Mas isso amor ; isso delrio, Devaneio, iluso, que se esvaece Ao som final da orquestra, ao derradeiro Claro, que as luzes no morrer despedem: Se outro nome lhe do, se amor o chamam, Damor igual ningum sucumbe perda.

SCHILLER. Die Ruber

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Amor vida; ter constantemente Alma, sentidos, corao abertos Ao grande, ao belo; ser capaz dextremos, Daltas virtudes, t capaz de crimes! Comprender o infinito, a imensidade, E a natureza e Deus; gostar dos campos, Daves, flores, murmrios solitrios; Buscar tristeza, a soledade, o ermo, E ter o corao em riso e festa; E branda festa, ao riso da nossa alma Fontes de pranto intercalar sem custo; Conhecer o prazer e a desventura No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto O ditoso, o misrrimo dos entes: Isso amor, e desse amor se morre! Amar, e no saber, no ter coragem Para dizer que amor que em ns sentimos; Temer quolhos profanos nos devassem O templo, onde a melhor poro da vida Se concentra; onde avaros recatamos Essa fonte de amor, esses tesouros Inesgotveis, diluses floridas; Sentir, sem que se veja, a quem se adora Comprender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, Segui-la, sem poder fitar seus olhos, Am-la, sem ousar dizer que amamos, E, temendo roar os seus vestidos, Arder por afog-la em mil abraos: Isso amor, e desse amor se morre!

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Se tal paixo enfim transborda, Se tem na terra o galardo devido Em recproco afeto; e unidas, uma, Dois seres, duas vidas se procuram, Entendem-se, confundem-se e penetram Juntas em puro cu dxtasis puros: Se logo a mo do fado as torna estranhas, Se os duplica e separa, quando unidos A mesma vida circulava em ambos; Que ser do que fica, e do que longe Serve s borrascas de ludibrio e escrnio? Pode o raio num pncaro caindo, Torn-lo dois, e o mar correr entre ambos; Pode rachar o tronco levantado E dois cimos depois verem-se erguidos, Sinais mostrando da aliana antiga; Dois coraes porm, que juntos batem, Que juntos vivem, se os separam, morrem; Ou se entre o prprio estrago inda vegetam, Se aparncia de vida, em mal, conservam, nsias cruas resumem do proscrito, Que busca achar no bero a sepultura! Esse, que sobrevive a prpria runa, Ao seu viver do corao, s gratas Iluses, quando em leito solitrio, Entre as sombras da noite, em larga insnia, Devaneiando, a futurar venturas, Mostra-se e brinca a apetecida imagem; Esse, que dor tamanha no sucumbe, Inveja a quem na sepultura encontra Dos males seus o desejado termo!

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III SEXTILHAS DO FREI ANTO

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LOA DA PRINCESA SANTA Bom tempo foi o doutrora Quando o reino era cristo, Quando nas guerras de mouros Era o rei nosso pendo, Quando as donas consumiam Seus teres em devao. Dava o rei uma batalha, Deus lhe acudia do cu; Quantas terras que ganhava, Dava ao Senhor que lhas deu, E s em fazer mosteiros Gastava muito do seu. Se havia muitos Infantes, Torneio no se fazia; esse o estilo de Frandres, Onde anda muita heregia: Para os armar cavaleiros A armada se apercebia. Chamava el-rei seus vassalos E em cortes logo os reunia: Vinha o povo atencioso, Vinha muita cleregia, Vinha a nobreza do reino, Gente de muita valia.

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Quando o rei tinha-los juntos Comeava a discursar: Os Ifantes j so homens, Vou-me s terras dalm-mar Arm-los i cavaleiros; Deus Senhor mh de ajudar. No conclua o pujante Rei de assi lhes propor, Clamavam todos em grita Com vozes de muito ardor: Seremos nessa folgana, Honra de nosso Senhor! E logo todos em sembra, Todos gente muito de bem, Na armada se agazalhavam, Sem se pesar de ningum; E os Padres de Sam Domingos Iam com eles tambm. Iam, si, os bentos Padres: E que assim fosse, rezo, Que o santo em guerras dIgreja Foi um bom santo cristo: Queimou a muitos hereges No fogo da expiao! Quando depois se tornava Toda a frota pera c, Primeiro se perguntava, Que terras temos por l? Quem em Deus tanto confia, Sempre Deus por si ter.

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El-rei tornava benino, Como coisa natural: Temos Ceita, Arzila ou Tngere, Conquistas de Portugal! E todos, a voz em grita, Clamavam: real! real! Bom tempo foi o doutrora Quando o reino era cristo; Os moos davam-se guerra, As moas devao: Aquela terra de mouros Vivia em muita aflio. Deu-nos Deus tantas vitrias, E tanto pera louvar, Que os Padres de Sam Domingos J no sabiam rezar; Todo-lo tempo era pouco Pera louvores cantar! Sendo tantas as batalhas, Nem recontro se perdeu! Aqueles Padres coitados No tinham tempo de seu: Levavam todo cantando Louvores ao pai do cu. Louvores ao pai do cu, Que eu inda possa trovar, Quando no vejo nos mares Nossas quinas tremolar; Mas somente o templo mudo. Sem guarnimentos o altar!

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Vejo os sinos apeados Dos campanrios subtis, E a prata das sacristias, Servida em misteres vis, E ante os lees de Castela Dobrada a Lusa cerviz! Canteu, em bem que sou Padre, Digo que sou Portugus: Arco de ver nossas coisas Irem todas ao revs, Arco de ver nossa gente Andar conosco ao envs. Merc de Deus! minha vida vida de muita dura! Vivo esquecido dos vivos Na terra da desventura; Vivo escrevendo e penando Num canto de cela escura. Do meu velho brevirio S deixarei a leitura Para escrever estes carmes, Remdio nossa amargura; O corpo tenho alquebrado, Vive minha alma em tristura. Que armada de tantas velas, Que armada essa qui vem? Vem subindo Tejo acima, Que fermosura que tem! Nas praias se apinha o povo, E as cobre todas porm.

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Do sinais as fortalezas, Respondem sinais de l: Vem el-rei vitorioso! Quem de gudio se ter? O mar todo bonana, O cu muito sereno est! Oco bronze fumo e fogo J comea a despejar; Acordam alegres ecos Os sinos a repicar; Grita e folgana na terra, Celeuma e grita no mar! Vinde embora muito depressa, Senhores da capital! Vinde ver Afonso quinto, Rei, senhor de Portugual; Vem das terras africanas Dar-vos festana real. Nossos reis foram outrora Fragueiros de condio; Dormiam quase vestidos, Espada nua na mo; Nem repoisavam de noite Sem fazer sua orao. Empresa no cometiam Sem primeiro comungar Sem fazer voto algum santo De teno particular; Porm vitrias houveram, Que so muito de espantar!

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Os vindouros esquecidos Da proteo divinal, Conheceram os poderes Da bno celestial, Se contarem os mosteiros Das terras de Portugal! Nossas capelas que temos, Nossos mosteiros custosos, So obras santas de Santos, Obras de reis muito piedosos; So brados de pedra viva, Que pregam feitos briosos. Alguns j agora escarnecem Dos templos edificados; Dizem que foram mal gastos Os bens com eles gastados: Eu creio (Deus me perdoe) Que so incrus disfarados! E mais prasmam dos feitios De pedra, que Mnfis tem, Sem ter olhos para Mafra, Pera Batalha ou Belm! Oh! se a estes conheceras, Meu Frei Gil de Santarm! Naquela vida deserta Ainda se me afigura Ver elevar-se nas sombras Tua vlida estatura, E ouvir a voz que intimava Ao rei a sentena dura!

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E mais a tacha que tinha Era ser fraco, e no mais! Tu, meu Santo, que fizeras, Se ouviras a estes tais, Que nos assacam motejos s nossas obras reais! Mas vs, quem quer quisto lerdes, Relevai-me esta tardana; So achaques da velhice: Vivemos de remembrana E em longas falas fazemos De tudo comemorana. J el-rei Afonso quinto Nas suas terras pojou: Alegre o povo o recebe, Alegre el-rei se mostrou; Abrio-se em alas vistosas, El-rei entre elas passou. Vem os msicos troando Nos atabales guerreiros, Tangem outros istromentos Desses climas forasteiros, E trs eles vm marchando, Passo a passo, os prisioneiros. So eles mouros gigantes De bigodes retorcidos, Caminham a passos lentos, Com sembrantes de atrevidos. Causa medo v-los tantos, Tam membrudos, tam crescidos!

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So homens de fero aspeito, Homens de m condio, Que vivem na lei nojenta Do seu nojento alcoro, Que vinho? nem querem v-lo. S por que o bebe um cristo! Vm as moiras depois deles, Rostos cobertos com vus; Bem que filhas dAgarenos, So tambm filhas de Deus; Se foram crists ou freiras, Seriam anjos dos cus. Luziam os olhos delas, Como pedras muito finas; Deviam ser finas bruxas, Inda queram bem meninas, Que estas moiras da mourama Nascem j bruxas cadimas! Uma delas que l vinha Olhou-me travs do vu!... Foi aquilo obra do demo, Quase, quase me rendeu! Pensei nela muitas vezes, Valeram-me anjos do cu! Via as largas pantalonas, E o pezinho delicado... Como pode pensar nisto Um pobre frade cansado, Um Padre da Observncia, Que sempre come pescado?!

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Enfim, dizer quanto vimos No cabe neste papel; Vinham muitas alimrias, Como achadas a granel; Vinha o Ifante brioso, Montado no seu corcel. Vinham pajens e varletes, Vinham muitos escudeiros, Vinham do sol abrasados Nossos robustos guerreiros; Vinha muita e boa gente, Muitos e bons cavaleiros! A Princesa Dona Joana Saiu dos Paos reais; Era moa, e muito airosa, E dona de partes tais, Que todos lhe quriam muito. Estranhos e naturais! Foi requerida de muitos E muito grandes senhores, Por fama que dela tinham, E por cpia de pintores, Que muitos vinham de fora Ao cheiro de seus louvores. E diz-se dum rei de Frana, Ludovico, creio eu: Um pobre frade mesquinho S trata em coisas do cu; Sabe ele que muito sabe, Se a bem morrer aprendeu.

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Pois diz-se do rei de Frana, O onzeno do nome seu, Que vendo um retrato destes Pera si logo entendeu, Quera prodgio na terra Quem tanto tinha do cu. E logo sem mais tardana Caiu, giolhos no cho, No feltro traz arrelquias, Assi usa um rei cristo; O seu feltro ps diante, E fez sua orao! Saiu a real Princesa, Saiu dos Paos reais Nos pulsos ricas pulseiras, Na fronte finos ramais; De longe seguem-lhe a trilha Muitos bons homens segrais. Traava um mantu vistoso Sobolas suas espaldas, E as largas roupas na cinta Prendia em muitas laadas; Seus olhos valiam tanto Como duas esmeraldas. Tinha elevada estatura E meneio concertado, Solto o cabelo em madeixas, Pelas costas debruado: Cadeixo de fios doiro, Franjas de templo sagrado.

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Vinha assi a regia Dona, Vinha muito pera ver: O povo em si no cabia, Quando a via, de prazer; Era ela santa s ocultas E anjo no parecer! Debaixo das telas finas E dos brocados luzidos, Trazia raiz das carnes Duros cilcios cosidos E umas crinas muito agras, Tudo extremos muito subidos. Passava noites inteiras No oratrio a rezar, Dormia despois na pedra Sem ningum o suspeitar: Extremos tais em princesa Quem nos h de acreditar? No dia de lava-ps Ordenava ao seu Vedor Trazer-lhe doze mulheres; E depois, com muita dor, Chorando os ps lhes lavava, Honra de nosso Senhor! E depois de os ter lavado, No perdia a ocasio, Despedia a todas juntas Com sua esmola na mo: Dizia que era humildade E obra de devoo.

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E as mendigas pasmadas Saiam de tal saber, E perguntavam, quem era Aquela santa mulher?! Maus pecados que ela tinha S pera assi proceder! O mesmo Vedor foi quem Isto despois revelou, Quando aquela humanidade Em o Senhor descansou; Dona Joana era j morta, Ele porm mo contou. Mas sendo tanto o resguardo Que guardava em coisas tais, Sabiam algo os estranhos Por muitos certos sinais, Que o ar todo perfume, Se a terra toda rosais. coisa de maravilha Que me faz cismar a mi, Que as donas dhoje paream Uns camafeus dalfini, No donas de carne e osso; As donas doutrora si. Hoje leigos de nonada (-lhes o demo caudel) Praguejam a mesa escassa E as arestas do burel; Querem mimos e regalos, E jejuns a leite e mel.

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L caminha Dona Joana Regente de Portugal; Trs sobre si muitas jias Do tesouro paternal; Deus lhe ps graa divina Sobre a graa natural. Acostou-se a comitiva, Muito senhora de si: Perante el-rei se agiolha, Disse-lhe el-rei: no assi! E ao peito a cinge dizendo: No a meus ps, mas aqui! Sois um bom pai, Senhor rei, Tornou-lhe a santa Princesa: Eu que sou vassala vossa E filha por natureza, Peo merc como aquela, Como esta peo fineza. Ficaram logo suspensos Todolos que eram ali, Ficaram como enleiados, Enleio tal nunca vi! Eis que a Princesa medrosa Comea a propor assi. El-rei no lhe respondera; Que lhe havia responder? Boa filha Deus lhe dera. Que lhe havia defender? Sorriu-se, o bom rei quisera Muito por ela fazer.

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A Princesa disse entonces: De alguns capites antigos Tenho lido, Senhor rei, Que, vencidos os imigos, Tornavam, a Deus fazendo Sacrifcios mui subidos. Viam as coisas melhores Que dos seus reinos haviam, E logo lhas ofertavam; E mercs tambm faziam, No dia do seu triunfo A los que justas pediam. Deslembrar a usana antiga Fora de grande estranheza; Agora sobre maneira, Perfeita tamanha empresa, De tanto lustre aos do reino, De tal honra a vossa Alteza. Digo pois a vossa Alteza, E digo com muita f, Deve a oferta ser tamanha Quamanha foi a merc, No do nobre rei pujante, Mas do santo rei qual . A oferta que vs fizerdes, Ser merc paternal: Se quereis que corresponda Ao favor celestial, Deve ser coisa mui alta, Deve ser coisa real.

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Ao Deus que vence as batalhas Dai-lhe a filha muito amada; Dai-lhe a s filha que tendes Em tantos mimos criada: Ser a oferta bem quista E do Senhor aceitada. E eu a quem mais custou De medos, esta jornada, Que muitas noites orando Passei em pranto banhada, Sou eu, Senhor, quem vos peo Ser a hstia a Deus votada. Que santa que era a Princesa, Que extremos de devao! Nos semblantes dos presentes Viu-se, e no era razo, Que a nenhum deles prazia Deferir tal petio. Sobresteve um pouco e mudo, El-rei por que muito a amava: Aquele dizer da filha Todo o prazer lhe aguava, Aquele pedir sem d Todo o ser lhe transtornava. Encostou-se ao ombro dela O pobre velho cansado, Chorou o triunfo breve E o prazer mal rematado, No como rei valeroso, Mas como pai anojado.

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El-rei despois mais tranqilo Rompeu o silncio alfi; E entre aflito e satisfeito Disse filha: Seja assi!... Velhos guerreiros vi eu Choraram tambm ali. Canteu perdido entre o vulgo No sei que tempo gastei, Nem sei de mim que fizeram, Nem tam pouco se chorei; Foi traa da providncia: Nisto comigo assentei. Foi Jeft corajoso, O forte rei de Jud; Volta coberto de loiros, Quem primeiro encontrar? Sente a filha, torce o rosto... Nada ao triste valer. Qual destes dois sacrifcios Soube a Deus mais agradar? Vai a Hebrea constrangida Depor o colo no altar, Vai a crist jubilosa! So ambas pera pasmar. Depois num dia formoso, Era no ms de janeiro, Houve uma cena vistosa Dentro de um pobre mosteiro; Fundou-o Brites Leitoa, Dona mui nobre dAveiro.

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Uma princesa jurada, Sobrinha daltos Infantes, Filha de reis soberanos, Senhora das mais pujantes, Era a primeira figura, Espantava os circunstantes. Ali humilde e curvada, Pesar de todos os seus, Giolhos sobre o ladrilho E as mos erguidas aos cus, Ouvi exgua mortalha Pedir polo amor de Deus. Cantemos todos louvores, Louvores ao Senhor Deus: Os anjos digam seu nome, Rostos cobertos com vus; Leiam-no os homens escrito No liso campo dos cus. Bom tempo foi o doutrora Quando o reino era cristo, Quando nas guerras mouriscas Era o rei nosso pendo, Quando as donas consumiam Seus teres em devao. Isto escreveu Frei Anto De vida mui alongada, Nossa Senhora da Escada O teve por Capelo.

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IV LTIMOS CANTOS

POESIAS AMERICANAS

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O GIGANTE DE PEDRA guerriers! ne laissez pas ma dpouille au corbeau; Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes, Afin que ltranger cherche, en voyant leurs cimes, Quelle montagne est mon tombeau!V. HUGO. Le Gant

I Gigante orgulhoso, de fero semblante, Num leito de pedra l jaz a dormir! Em duro granito repousa o gigante, Que os raios somente poderam fundir. Dormido atalaia no serro empinado Dever cuidoso, sanhudo velar; O raio passando o deixou fulminado, E aurora, que surge, no h de acordar! Coos braos no peito cruzados nervosos, Mais alto que as nuvens, os cus a encarar, Seu corpo se estende por montes fragosos, Seus ps. sobranceiros se elevam do mar! De lavas ardentes seus membros fundidos Avultam imensos: s Deus poder Rebelde lan-lo dos montes erguidos, Curvados ao peso, que sobre lhest.

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E o cu, e as estrelas e os astros fulgentes So velas, so tochas, so vivos brandes, E o branco sudrio so nvoas algentes, E o crepe que o cobre, so negros bulces. Da noite, que surge, no manto fagueiro Quis Deus que se erguesse, de junto a seus ps, A cruz sempre viva do sol no cruzeiro, Deitada nos braos do eterno Moiss. Perfumam-no odores que as flores exalam, Bafejam-no carmes de um hino de amor Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam, Dos ventos que rugem, do mar em furor. E l na montanha, deitado dormido Campeia o gigante, nem pode acordar! Cruzados os braos de ferro fundido, A fronte nas nuvens, os ps sobre o mar! II Banha o sol os horizontes, Trepa os castelos dos cus, Aclara serras e fontes, Vigia os domnios seus: J descai pra o ocidente, E em globo de fogo ardente Vai-se no mar esconder; E l campeia o gigante, Sem destorcer o semblante, Imvel, mudo, a jazer!

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Vem a noite aps o dia, Vem o silncio, o frescor, E a brisa leve e macia, Que lhe suspira ao redor. E da noite entre os negrores, Das estrelas os fulgores Brilham na face do mar: Brilha a lua cintilante, E sempre mudo o gigante, Imvel, sem acordar! Depois outro sol desponta, E outra noite tambm, Outra lua que aos cus monta, Outro sol que aps lhe vem: Aps um dia outro dia, Noite aps noite sombria, Aps a luz o bulco, E sempre o duro gigante, Imvel, mudo, constante Na calma e na cerrao! Corre o tempo fugidio, Vem das guas a estao, Aps ela o quente estio; E na calma do vero Crescem folhas, vingam flores, Entre galas e verdores Sazonam-se frutos mil; Cobrem-se os prados de relva. Murmura o vento na selva, Azulam-se os cus de anil!

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Tornam prados a despir-se, Tornam flores a murchar, Tornam de novo a vestir-se, Tornam depois a secar; E como gota filtrada De uma abbada escavada Sempre, incessante a cair, Tombam as horas e os dias, Como fantasmas sombrias, Nos abismos do porvir! E no fretro de montes Inconcusso, imvel, fito, Escurece os horizontes O gigante de granito. Com soberba indiferena Sente extinta a antiga crena Dos Tamoios, dos Pajs; Nem v que duras desgraas, Que lutas de novas raas Se lhe atropelam aos ps! III E l na montanha deitado dormido Campeia o gigante! nem pode acordar! Cruzados os braos de ferro fundido, A fronte nas nuvens, e os ps sobre o mar!...

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IV Viu primeiro os ncolas Robustos, das florestas, Batendo os arcos rgidos, Traando homreas festas, luz dos fogos rtilos, Aos sons do murmure! E em Guanabara esplndida As danas dos guerreiros, E o guau cadente e vrio Dos moos prazenteiros, E os cantos da vitria Tangidos no bor. E das igaras cncavas A frota aparelhada, Vistosa e formosssima Cortando a undosa estrada, Sabendo, mas que frgeis, Os ventos contrastar: E a caa leda e rpida Por serras, por devesas, E os cantos da janbia Junto s lenhas acesas, Quando o tapuia msero Seus feitos vai narrar!

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E o grmen da discrdia Crescendo em duras brigas, Ceifando os brios rsticos Das tribos sempre amigas, Tamoi a raa antgua, Feroz Tupinamb. L vai a gente imprvida, Nao vencida, imbele, Buscando as matas nvias, Donde outra tribo a expele; Jaz o paj sem glria, Sem glria a marac. Depois em naus flamvomas Um troo ardido e forte, Cobrindo os campos midos De fumo, e sangue, e morte, Trs dos reparos hrridos Daltssimo pavs: E do sangrento plago Em mseras runas Surgir galhardas, lmpidas As portuguesas quinas, Murchos os lises cndidos Do imprvido gauls!

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V Mudaram-se os tempos e a face da terra, Cidades alastram o antigo paul; Mas inda o gigante, que dorme na serra, Se abraa ao imenso cruzeiro do sul. Nas duras montanhas os membros gelados Talhados a golpes de ignoto buril, Descansa, gigante, que encerra os fados, Que os trminos guardas do vasto Brasil. Porm se algum dia fortuna inconstante Poder-nos a crena e a ptria acabar, Arroja-te s ondas, duro gigante, Inunda estes montes, desloca este mar!

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LEITO DE FOLHAS VERDES Porque tardas, Jatir, que tanto a custo voz do meu amor moves teus passos? Da noite a virao, movendo as folhas, J nos cimos do bosque rumoreja. Eu sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zeloza Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores. Do tamarindo a flor abriu-se, h pouco, J solta o bogari mais doce aroma! Como prece de amor, como estas preces, No silncio da noite o bosque exala. Brilha a lua no cu, brilham estrelas, Correm perfumes no correr da brisa, A cujo influxo mgico respira-se Um quebranto de amor, melhor que a vida! A flor que desabrocha ao romper dalva Um s giro do sol, no mais, vegeta: Eu sou aquela flor que espero ainda Doce raio do sol que me d vida. Sejam vales ou montes, lago ou terra, Onde quer que tu vs, ou dia ou noite, Vai seguindo aps ti meu pensamento; Outro amor nunca tive: s meu, sou tua!

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Meus olhos outros olhos nunca viram, No sentiram meus lbios outros lbios, Nem outras mos, Jatir, que no as tuas A arasia na cinta me apertaram. Do tamarindo a flor jaz entreaberta, J solta o bogari mais doce aroma; Tambm meu corao, como estas flores, Melhor perfume ao p da noite exala! No me escutas, Jatir! nem tardo aodes A voz do meu amor, que em vo te chama! Tup! l rompe o sol! do leito intil A brisa da manh sacuda as folhas!

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I-JUCA-PIRAMA I NO MEIO das tabas de amenos verdores, Cercados de troncos cobertos de flores, Alteiam-se os tetos daltiva nao; So muitos seus filhos, nos nimos fortes, Temveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extenso. So rudos, severos, sedentos de glria, J prlios incitam, j cantam vitria, J meigos atendem voz do cantor: So todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome l voa na boca das gentes, Condo de prodgios, de glria e terror! As tribos vizinhas, sem foras, sem brio, As armas quebrando, lanando-as ao rio. O incenso aspiraram dos seus maracs: Medrosos das guerras que os fortes acendem, Custosos tributos ignavos l rendem, Aos duros guerreiros sujeitos na paz. No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora se aduna o conclio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados praticam doutrora, E os moos inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno dum ndio infeliz.

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Quem ? ningum sabe: seu nome ignoto, Sua tribo no diz: de um povo remoto Descende por certo dum povo gentil; Assim l na Grcia ao escravo insulano Tornavam distinto do vil muulmano As linhas corretas do nobre perfil. Por casos de guerra caiu prisioneiro Nas mos dos Timbiras: no extremo terreiro Assola-se o teto, que o teve em priso; Convidam-se as tribos dos seus arredores, Cuidosos se incumbem do vaso das cores, Dos vrios aprestos da honrosa funo. Acerva-se a lenha da vasta fogueira, Entesa-se a corda da embira ligeira, Adorna-se a maa com penas gentis: A custo, entre as vagas do povo da aldeia Caminha o Timbira, que a turba rodeia, Garboso nas plumas de vrio matiz. Entanto as mulheres com leda trigana, Afeitas ao rito da brbara usana, O ndio j querem cativo acabar: A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, Brilhante enduape no corpo lhe cingem, Sombreia-lhe a fronte gentil canitar. II Em fundos vasos dalvacenta argila Ferve o cauim; Enchem-se as copas, o prazer comea, Reina o festim.

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O prisioneiro, cuja morte anseiam, Sentado est, O prisioneiro, que outro sol no ocaso Jamais ver! A dura corda, que lhe enlaa o colo, Mostra-lhe o fim Da vida escura, que ser mais breve Do que o festim! Contudo os olhos dignbil pranto Secos esto; Mudos os lbios no descerram queixas Do corao. Mas um martrio, que encobrir no pode, Em rugas faz A mentirosa placidez do rosto Na fronte audaz! Que tens guerreiro? Que temor te assalta No passo horrendo? Honra das tabas que nascer te viram, Folga morrendo. Folga morrendo; porque alm dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte. Rasteira grama, exposta ao sol, chuva, L murcha e pende: Somente ao tronco, que devassa os ares, O raio ofende!

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Que foi? Tup mandou que ele casse, Como viveu; E o caador que o avistou prostrado Esmoreceu! Que temes, guerreiro? Alm dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte. III Em larga roda de novis guerreiros Ledo caminha o festival Timbira, A quem do sacrifcio cabe as honras. Na fronte o canitar sacode em ondas, O enduape na cinta se embalana, Na destra mo sopesa a iverapeme, Orgulhoso e pujante. Ao menor passo Colar dalvo marfim, insgnia dhonra, Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Como que por feitio no sabido Encantadas ali as almas grandes Dos vencidos Tapuias, inda chorem Serem glria e braso dimigos feros. Eis-me aqui, diz ao ndio prisioneiro; Pois que fraco, e sem tribo, e sem famlia, As nossas matas devassaste ousado, Morrers morte vil da mo de um forte.

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Vem a terreiro o msero contrrio; Do colo cinta a muurana desce: Dize-nos quem s, teus feitos canta, Ou se mais te apraz, defende-te. Comea O ndio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os nimos comove. IV Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. J vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei.

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Andei longes terras, Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimors; Vi lutas de bravos, Vi fortes escravos! De estranhos ignavos Calados aos ps. E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagos coitados J sem maracs; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz. Aos golpes do imigo Meu ltimo amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plcido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. Meu pai a meu lado J cego e quebrado, De penas ralado. Firmava-se em mi: Ns ambos, mesquinhos, Por nvios caminhos, Cobertos despinhos Chegamos aqui!

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O velho no em tanto Sofrendo j tanto De fome e quebranto, S quria morrer! No mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer. Ento, forasteiro, Ca prisioneiro De um troo guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Em quanto no chego, Qual seja, dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A s alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. Ao velho coitado De penas ralado, J cego e quebrado, Que resta? Morrer. Em quanto descreve O giro to breve Da vida que teve, Deixai-me viver!

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No vil, no ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, no coro Do pranto que choro; Se a vida deploro, Tambm sei morrer. V Soltai-o! diz o chefe. Pasma a turba; Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Nem poude nunca um chefe dar tal ordem! Brada segunda vez com voz mais alta, Afrouxam-se as prises, a embira cede, A custo, sim; mas cede: o estranho salvo. Timbira, diz o ndio enternecido, Solto apenas dos ns que o seguravam: s guerreiro ilustre, um grande chefe, Tu que assim do meu mal te comoveste, Nem sofres que, transposta a natureza, Com olhos onde a luz j no cintila, Chore a morte do filho o pai cansado, Que somente por seu na voz conhece. s livre; parte. E voltarei. Debalde. Sim, voltarei, morto meu pai. No voltes! bem feliz, se existe, em que no veja, Que filho tem, qual chora: s livre; parte! Acaso tu supes que me acobardo, Que receio morrer! s livre; parte!

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Ora no partirei; quero provar-te Que um filho dos Tupis vive com honra, E com honra maior, se acaso o vencem, Da morte o passo glorioso afronta. Mentiste, que um Tupi no chora nunca, E tu choraste!... parte; no queremos Com carne vil enfraquecer os fortes. Sobresteve o Tupi: arfando em ondas O rebater do corao se ouvia Precipite. Do rosto afogueado Glidas bagas de suor corriam: Talvez que o assaltava um pensamento... J no... que na enlutada fantasia, Um pesar, um martrio ao mesmo tempo, Do velho pai a moribunda imagem Quase bradar-lhe ouvia: Ingrato! ingrato! Curvado o colo, taciturno e frio, Espectro dhomem, penetrou no bosque! VI Filho meu, onde ests? Ao vosso lado; Aqui vos trago provises: tomai-as, As vossas foras restaurai perdidas, E a caminho, e j! Tardaste muito! No era nado o sol, quando partiste, E frouxo o seu calor j sinto agora! Sim, demorei-me a divagar sem rumo, Perdi-me nestas matas intrincadas, Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;

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Convm partir, e j!

Que novos males Nos resta de sofrer? que novas dores, Que outro fado pior Tup nos guarda? As setas da aflio j se esgotaram, Nem para novo golpe espao intacto Em nossos corpos resta. Mas tu tremes! Talvez do af da caa... Oh filho caro! Um qu misterioso aqui me fala, Aqui no corao; piedosa fraude Ser por certo, que no mentes nunca! No conheces temor, e agora temes? Vejo e sei: Tup que nos aflige, E contra o seu querer no valem brios. Partamos!... E com mo trmula, incerta Procura o filho, tateando as trevas Da sua noite lgubre e medonha. Sentindo o acre odor das frescas tintas, Uma idia fatal correu-lhe mente... Do filho os membros glidos apalpa, E a dolorosa maciez das plumas Conhece estremecendo: foge, volta, Encontra sob as mos o duro crnio, Despido ento do natural ornato!... Recua aflito e pvido, cobrindo. s mos ambas os olhos fulminados, Como que teme ainda o triste velho De ver, no mais cruel, porm mais clara, Daquele excio grande a imagem viva Ante os olhos do corpo afigurada.

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No era que a verdade conhecesse Inteira e to cruel qual tinha sido; Mas que funesto azar correra o filho, Ele o via; ele o tinha ali presente; E era de repetir-se a cada instante. A dor passada, a previso futura E o presente to negro, ali os tinha; Ali no corao se concentrava, Era num ponto s, mas era a morte! Tu prisioneiro, tu? Vs o dissestes. Dos ndios? Sim. De que nao? Timbiras. E a muurana funeral rompeste, Dos falsos manits quebraste a maa... Nada fiz... aqui estou. Nada! Emudecem; Curto instante depois prossegue o velho: Tu s valente, bem o sei; confessa, Fizeste-o, certo, ou j no foras vivo! Nada fiz; mas souberam da existncia De um pobre velho, que em mim s vivia... E depois?... Eis-me aqui. Fica essa taba? Na direo do sol, quando transmonta. Longe? No muito. Tens razo: partamos. E quereis ir?... Na direo do ocaso.

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VII Por amor de um triste velho, Que ao termo fatal j chega, Vs, guerreiros, concedestes A vida a um prisioneiro. Ao to nobre vos honra, Nem to alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis, e mas foram Senhores em gentileza. Eu porm nunca vencido, Nem nos combates por armas, Nem por nobreza nos atos; Aqui venho, e o filho trago. Vs o dizeis prisioneiro, Seja assim como dizeis; Mandai vir a lenha, o fogo, A maa do sacrifcio E a musurana ligeira: Em tudo o rito se cumpra! E quando eu for s na terra, Certo acharei entre os vossos, Que to gentis se revelam, Algum que meus passos guie; Algum, que vendo o meu peito Coberto de cicatrizes, Tomando a vez de meu filho, De haver-me por pai se ufane! Mas o chefe dos Timbiras, Os sobrolhos encrespando, Ao velho Tupi guerreiro Responde com torvo acento:

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Nada farei do que dizes: teu filho imbele e fraco! Aviltaria o triunfo Da mais guerreira das tribos Derramar seu ignbil sangue: Ele chorou de cobarde; Ns outros, fortes Timbiras, S de heris fazemos pasto. Do velho Tupi guerreiro A surda voz na garganta Faz ouvir uns sons confusos, Como os rugidos de um tigre, Que pouco a pouco se assanha! VIII Tu choraste em presena da morte? Na presena de estranhos choraste? No descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho no s! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruis forasteiros, Seres presa de vis Aimors. Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem ptria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; No encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz!

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Poesias

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No encontres doura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: No encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta s chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar. Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfalea, E o regato que lmpido corre, Mais te acenda o vesano furor; Suas guas depressa se tornem, Ao contacto dos lbios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror! Sempre o cu, como um teto incendido. Creste e punja teus membros malditos E o oceano de p denegrido Seja a terra ao ignavo Tupi! Miservel, faminto, sedento, Manits lhe no falem nos sonhos, E do horror os espectros medonhos Traga sempre o cobarde aps si. Um amigo no tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso dargila cuidoso Arco e frecha e tacape a teus ps! S maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presena da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho no s.

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IX Isto dizendo o miserando velho A quem Tup tamanha dor, tal fado J nos confins da vida reservara, Vai com trmulo p, com as mos j frias Da sua noite escura as densas trevas Palpando. Alarma! alarma! O velho pra! O grito que escutou voz do filho, Voz de guerra que ouviu j tantas vezes Noutra quadra melhor. Alarma! alarma! Esse momento s vale apagar-lhe Os to compridos trances, as angstias, Que o frio corao lhe atormentaram De guerreiro e de pai: vale, e de sobra. Ele que em tanta dor se contivera, Tomado pelo sbito contraste, Desfaz-se agora em pranto copioso, Que o exaurido corao remoa. A taba se alborota, os golpes descem, Gritos, imprecaes profundas soam, Emaranhada a multido braveja, Revolve-se, enovela-se confusa, E mais revolta em mor furor se acende. E os sons dos golpes que incessantes fervem. Vozes, gemidos, estertor de morte Vo longe pelas ermas serranias Da humana tempestade propagando Quantas vagas de povo enfurecido Contra um rochedo vivo se quebravam. Era ele, o Tupi; nem fora justo Que a fama dos Tupis o nome, a glria, Aturado labor de tantos anos,

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Derradeiro braso da raa extinta. De um jacto e por um s se aniquilasse. Basta! clama o chefe dos Timbiras, Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste, E para o sacrifcio mister foras. O guerreiro parou, caiu nos braos Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lgrimas de jbilo bradando: Este, sim, que meu filho muito amado! E pois que o acho em fim, qual sempre o tive, Corram livres as lgrimas que choro, Estas lgrimas, sim, que no desonram. X Um velho Timbira, coberto de glria, Guardou a memria Do moo guerreiro, do velho Tupi! E noite, nas tabas, se algum duvidava Do que ele contava, Dizia prudente: Meninos, eu vi! Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo; Parece que o vejo, Que o tenho nesthora diante de mi. Eu disse comigo: Que infmia descravo! Pois no, era um bravo; Valente e brioso, como ele, no vi! E f que vos digo: parece-me encanto Que quem chorou tanto,

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Tivesse a coragem que tinha o Tupi! Assim o Timbira, coberto de glria, Guardava a memria Do moo guerreiro, do velho Tupi. E noite nas tabas, se algum duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: Meninos, eu vi!

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MARAB Eu VIVO SOZINHA; ningum me procura! Acaso feitura No sou de Tup! Se algum dentre os homens de mim no se esconde: Tu s, me responde, Tu s Marab! Meus olhos so garos, so cor das safiras, Tm luz das estrelas, tm meigo brilhar; Imitam as nuvens de um cu anilado, As cores imitam das vagas do mar! Se algum dos guerreiros no foge a meus passos: Teus olhos so garos, Respondo anojado, mas s Marab: Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes, Uns olhos fulgentes, Bem pretos, retintos, no cor danaj! alvo meu rosto da alvura dos lrios, Da cor das areias batidas do mar; As aves mais brancas, as conchas mais puras No tm mais alvura, no tm mais brilhar. Se ainda me escuta meus agros delrios: s alva de lrios, Sorrindo responde, mas s Marab: Quero antes um rosto de jambo corado, Um rosto crestado Do sol do deserto, no flor de caj.

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Meu colo de leve se encurva engraado, Como hstea pendente do cactos em flor; Mimosa, indolente, resvalo no prado, Como um soluado suspiro de amor! Eu amo a estatura flexvel, ligeira, Qual duma palmeira, Ento me respondem; tu s Marab: Quero antes o colo da ema orgulhosa, Que pisa vaidosa, Que as flreas campinas governa, onde est. Meus loiros cabelos em ondas se anelam, O oiro mais puro tem seu fulgor; As brisas nos bosques de os ver se enamoram, De os ver to formosos como um beija-flor! Mas eles respondem: Teus longos cabelos, So loiros, so belos, Mas so anelados; tu s Marab: Quero antes cabelos, bem lisos, corridos, Cabelos compridos, No cor doiro fino, nem cor danaj. E as doces palavras que eu tinha c dentro A quem nas direi? O ramo daccia na fronte de um homem Jamais cingirei: Jamais um guerreiro da minha arasoia Me deprender: Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, Que sou Marab!

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CANO DO TAMOIO(NATALCIA)

I No chores, meu filho; No chores, que a vida luta renhida: Viver lutar. A vida combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos, S pode exaltar. II Um dia vivemos! O homem que forte No teme da morte; S teme fugir; No arco que entesa Tem certa uma presa, Quer seja tapuia, Condor ou tapir. III O forte, o cobarde Seus feitos inveja De o ver na peleja Garboso e feroz; E os tmidos velhos Nos graves concelhos, Curvadas as frontes, Escutam-lhe a voz!127

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IV Domina, se vive; Se morre, descansa Dos seus na lembrana, Na voz do porvir. No cures da vida! S bravo, s forte! No fujas da morte, Que a morte h de vir! V E pois que s meu filho, Meus brios reveste; Tamoio nasceste, Valente sers. S duro guerreiro, Robusto, fragueiro, Braso dos tamoios Na guerra e na paz. VI Teu grito de guerra Retumbe aos ouvidos Dimigos transidos Por vil comoo; E tremam douvi-lo Peor que o sibilo Das setas ligeiras, Peor que o trovo.

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VII E a me nessas tabas, Querendo calados Os filhos criados Na lei do terror; Teu nome lhes diga, Que a gente imiga Talvez no escute Sem pranto, sem dor! VIII Porm se a fortuna, Traindo teus passos, Te arroja nos laos Do imigo falaz! Na ltima hora Teus feitos memora, Tranqilo nos gestos, Impvido, audaz. IX E cai como o tronco Do raio tocado, Partido, rojado Por larga extenso; Assim morre o forte! No passo da morte Triunfa, conquista Mais alto braso. As armas ensaia, Penetra na vida:

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Pesada ou querida, Viver lutar. Se o duro combate Os fracos abate, Aos fortes, aos bravos, S pode exaltar.

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POESIAS DIVERSAS

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OLHOS VERDES Eles verdes so: E tem por usana, Na cor esperana, E nas obras no. Cam., Rim SO uns olhos verdes, verdes, Uns olhos de verde-mar, Quando o tempo vai bonana; Uns olhos cor de esperana. Uns olhos por que morri; Que ai de mi! Nem j sei qual fiquei sendo Depois que os vi! Como duas esmeraldas, Iguais na forma e na cor, Tem luz mais branda e mais forte, Diz uma vida, outra morte; Uma loucura, outra amor. Mas ai de mi! Nem j sei qual fiquei sendo Depois que os vi! So verdes da cor do prado, Exprimem qualquer paixo, To facilmente se inflamam, To meigamente derramam Fogo e luz do corao; Mas ai de mi! Nem j sei qual fiquei sendo Depois que os vi!133

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So uns olhos verdes, verdes, Que podem tambm brilhar; No so de um verde embaado, Mas verdes da cor do prado, Mas verdes da cor do mar. Mas ai de mi! Nem j sei qual fiquei sendo Depois que os vi! Como se l num espelho, Pude ler nos olhos seus! Os olhos mostram a alma, Que as ondas postas em calma Tambm refletem os cus; Mas ai de mi! Nem j sei qual fiquei sendo Depois que os vi! Dizei vs, meus amigos, Se vos perguntam por mi, Que eu vivo s da lembrana De uns olhos cor de esperana. De uns olhos verdes que vi! Que ai de mi! Nem j sei qual fiquei sendo Depois que os vi! Dizei vs: Triste do bardo! Deixou-se de amor finar! Viu uns olhos verdes, verdes, Uns olhos da cor do mar: Eram verdes sem esprana, Davam amor sem amar! Dizei-o vs, meus amigos, Que ai de mi! No perteno mais a vida Depois que os vi!134

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SOBRE O TMULO DE UM MENINO 25 de outubro de 1848. O Invlucro de um anjo aqui descansa, Alma do cu nascida entre amargores, Como flor entre espinhos! tu, que passas, No perguntes quem foi. Nuvem risonha Que um instante correu no mar da vida; Romper da aurora que no teve ocaso, Realidade no cu, na terra um sonho! Fresca rosa nas ondas da existncia, Levada plaga eterna do infinito, Como of renda de amor ao Deus que o rege; No perguntes quem foi, no chores: passa.

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SAUDADES A MINHA IRM J. A. de M. I Eras criana ainda; mas teu rosto De ver-me ao lado teu se espanejava A luz fugaz de um infantil sorriso! Eras criana ainda; mas teus olhos De uma brandura anglica, indizvel, De simpticas lgrimas turbavam-se Ao ver-me o aspecto merencrio e triste; E amigo refrigrio me sopravam, Um blsamo divino sobre as chagas Do corao, que a dor me espedaava! A luz de uma razo que desabrocha, As leves graas, que a inocncia adornam, Os infantis requebros, as meiguices De uma alma ingnua e pura em ti brilhavam. Eu, gasto pela dor antes do tempo, Conhecendo por ti o que era a infncia, Remoava de ver teu rosto belo. Pouco era v-lo! em ti me transformava; Bebendo a tua vida em longos tragos, Todo o teu ser em mim se transfundia: Meu era o teu viver, sem que o soubesses, Tua inocncia, tuas graas minhas: No, no era ditoso em tais momentos, Mas de que era infeliz me deslembrava! _________________

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Tinhas sobre mim poder imenso, Indizvel condo, e o no sabias! Assim da tarde a brisa corre terra, Embalsamando o ar e o cu de aromas: Enreda-se entre flores suspirosa, Geme entre as flores que o luar prateia, E no sabe, e no v, quantos queixumes Apaga quantas mgoas alivia! Assim, durante a noite, o passarinho Em moita de jasmins derrama oculto Merencrias canes nos mansos ares; E no sabe, o feliz, de quantos olhos Tristes, mas doces lgrimas, arranca! II Perderam-te os meus olhos um momento! E na volta o meu rosto transtornado, As vestes lutuosas, que eu trajava, O mudo, amargo pranto que eu vertia, Anncio triste foi de uma desdita, Qual jamais sentirs: teus tenros anos Pouparam-t