poemas - reinaldo ferreira

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Livros póstumo de poemas de Reinaldo Ferreira. Poeta português de Lourenço Marques, Moçambique

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  • 1Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 2Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 3Reinaldo Ferreira

    Poemas

    Introduo Livro I - Um voo cego a nada Livro II - Poemas infernais Livro III - Poemas do Natal e da Paixo de Cristo Livro IV Dispersos

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 4Introduo

    A Obra que hoje se publica, com tudo quanto tenha de inacabado e fragmentrio, a Obra de um grande Poeta. Rigorosamente desconhecido na Metrpole, supomos que a sua Poesia, ao aparecer quase integralmente includa neste volume, sem quaisquer antecedentes que a tenham anunciado, ir provocar, nos leitores metropolitanos, qualquer coisa parecido com um choque. Como supomos tal choque inevitvel e talvez salutar, nada faremos para tentar atenu-lo. A verdade que no realmente vulgar a apario brusca de uma Obra deste quilate, assim brutalmente surgida de um anonimato quase perfeito (referimo-nos Metrpole), com o autor j morto e enterrado. Quanto glria, inteirinha por fazer.

    No que a Moambique diz respeito, o problema situa-se de um modo um pouco diferente: profundamente admirado por um reduzido nmero de amigos ou simples conhecidos, os seus poemas circulavam h muito de mo em mo, aqui e acol publicados em jornais e revistas de ocasio, republicados, modificados, retomados, com aquela admirao e venerao sempre vivas que s as coisas realmente belas costumam motivar. Nenhum livro editado. Tambm nenhuma pressa por a alm de o fazer. H pouco morto, com a idade de 37 anos, autor de alguns dos mais expressivamente belos de quantos poemas conta a Literatura Portuguesa, orgulhosamente consciente do quilate, do rigor e da extrema pureza da lngua em que moldava a angstia que em si vivia, o seu orgulho s era igualado pela modstia do seu retiro. Literalmente retirado- como, em boa verdade, se pode dizer que Reinaldo Ferreira vivia. Se alguma vez o habitara a nsia de se ver publicado, depressa a sufocara.

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 5Livro I - Um voo cego a nada

    Nota explicativa

    1 As poesias da tarde

    Desde quando alguma vez anoiteceu Na tarde morna Que domingo solene, ocioso e lasso pela tarde, quando a luz esmorece Oh! tarde de sbado britnica

    2 Algumas breves poesias de amores fictcios

    Marta Na tarde erramos Se eu nunca disse que os teus dentes Que de ns dois Vivo na esperana de um gesto No ponho esperana em mais nada De Coplia guardo trs cartas melanclicas Do campo dos mortos

    3 Epigramas

    Ela, a Poesia de hoje Receita para fazer um heri O futuro O essencial ter o vento

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 64 Volver s rimas suaves Tu, Baby, ao leres um dia Duma outra infncia, inventada Regresso de parte alguma No amplo e ermo degredo Na vida somos iguais Que estranha, a nossa verdade Nasci poeta abstruso Deus que me fez e fizera Olhos iguais, outro olhar Meu quase sexto sentido nfora fui

    5 Noturnos

    Caf de cais Eu Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia Quando as fachadas, tumulares, de pardas

    6

    Aquele senhor que desde a infncia me conhece Acordes gastos Quero um cavalo de vrias cores H que morrer no convs A que morreu s portas de Madrid Os astros nascem

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 7 Haja nvoa Menina dos olhos tristes

    A emoo como um pssaro Deixai os doidos governar entre comparsas A Fernando Pessoa (ele mesmo)

    Livro I - Um voo cego a nada

    Nota explicativa

    Reinaldo Ferreira projectara publicar um livro, pouco antes de ser atingido pela doena que lhe trouxe a morte. Tal livro teria o ttulo, j escolhido, de Um voo cego a nada e incluiria os poemas aqui reunidos que o autor separara em ndices, alguns at j com subttulos.A designao de Um voo cego a nada foi o autor buscar a um verso do poema que comea por Eu, Rosie, ... e que chegou a ser publicado com o ttulo de Dancing with Rosie (a taxi-girl).Obedece, pois, esta primeira parte da obra de Reinaldo Ferreira, inteiramente, s suas determinaes, com excepo da excluso de trs poemas, na srie Algumas breves poesias de amores fictcios: o poema que comea por Frio, to frio tudo - que no se conseguiu encontrar - e dois outros que o autor deixou sem indicao alguma e apenas se sabe que se localizavam a seguir ao poema que comea por No ponho esperana em mais nada.

    1 As poesias da tarde

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 8Desde quando alguma vez anoiteceu

    Desde quando alguma vez anoiteceu

    E angstia de que a terra se cobriu

    S pasmo nas esferas respondeu;

    Desde quando alguma flor emurcheceu

    E a criana que vlida se ria

    De repente calada apodreceu;

    Desde quando a algum estio sucedeu

    Um outro outono e a rvore se despiu

    E a primeira cabea encaneceu;

    Desde quando alguma coisa que nasceu

    Sem que o pedisse, sem remdio se degrada

    E acaba, sob a terra que a comeu,

    Dispersa entre os tomos dispersos,

    Se acumula a tristeza deste dia

    E a razo destes versos.

    Na tarde morna

    Na tarde morna

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 9Passeio a culpa e quem sou,

    Ai quem sou! diz que no torna

    Ao pecado que pecou...

    Para o sossego

    na meiga tarde, e quem sou,

    Ai quem sou! quer o aconchego

    Que para sempre emigrou.

    A noite cai,

    Venenosa, e quem sou,

    Ai quem sou! esboroa e esvai

    A certa voz que o chamou.

    E eis cumprindo

    Os dois destinos, quem sou,

    E quem sou?... A morte vindo

    Com qual dos dois que vou?

    Que domingo solene, ocioso e lasso

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 10

    Que domingo solene, ocioso e lasso!

    To triste; o sol inunda a tarde toda,

    Festivo como um guizo numa boda

    Onde a noiva morreu, desfeita em espao...

    Medeia a eternidade, em cada passo

    Que, sem intuito, d quem passa; roda

    Parece dormir tudo; e incomoda,

    Pondervel, no ar, um embarao...

    Toda a tristeza do domingo tarde.

    Sobe dos homens para o cu, que arde,

    O apego vida dum olhar que morre.

    Sombras sugerem aflies incertas...

    E das janelas sfregas, abertas,

    Morno, o silncio como num pranto escorre...

    pela tarde, quando a luz esmorece

    pela tarde, quando a luz esmorece

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 11

    E as ruas lembram singulares colmeias,

    Que a alegria dos outros me entristece

    E aguo o faro para as dores alheias.

    Um que, impaciente, para o lar regresse,

    As viaturas que se cruzam cheias

    Dos que fazem da vida uma quermesse,

    So para mim, faminto, odor de ceias.

    Sentimento cruel de quem se afasta,

    Por orgulho repele, e se desgasta

    No esforo de fugir multido.

    Mas castigo de quem, por imprudente,

    J no pode deter-se na vertente

    Que vai da liberdade solido.

    Oh! tarde de sbado britnica

    Oh! tarde de sbado britnica,

    Poema da rotina,

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  • 12

    Prodgio do bem-estar...

    Eu, que donde vou, latino e desgrenhado,

    Intenso, irregular,

    Apenas sei a vibrao e o desnimo

    (O sol excessivo e a sombra opaca),

    Olho-te no deslumbramento

    De quem se banha

    E se deslumbra

    Em penumbra.

    2 Algumas breves poesias de amores fictcios

    Marta

    Marta,

    Protagonista da tragdia ideada

    E que eu no fiz,

    De esperara que eu a criasse,

    No meu intuito adormeceu feliz.

    Dormiam l tambm o sono antigo

    Ilda, Miguel,

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 13

    A lrica Raquel,

    E todos quantos

    Acham no ser comigo.

    Aromas s

    E p antes do p.

    Agora chamo-a em vo,

    Como quem v levar,

    E no entende,

    Um filho no caixo.

    E absurdo, alta noite,

    Invoco a que se esconde:

    Marta! Marta! Onde ests?

    No sei se me ouve ou no.

    Mas no responde.

    Na tarde erramos

    Na tarde erramos,

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 14

    Ns, tu e eu,

    Mas trs.

    To ss que vamos

    E no sou eu

    Quem vs.

    Discreto calo,

    P'ra que o meu senso

    Louves;

    Em vo no falo,

    Tanto o que eu penso

    Ouves.

    Melhor me fora

    Que a outro assim

    Levasses

    E, longe embora,

    Smente em mim

    Pensasses.

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  • 15

    Se eu nunca disse que os teus dentes

    Se eu nunca disse que os teus dentes

    So prolas,

    porque so dentes.

    Se eu nunca disse que os teus lbios

    So corais,

    porque so lbios.

    Se eu nunca disse que os teus olhos

    So d'nix, ou esmeralda, ou safira,

    porque so olhos.

    Prolas e nix e corais so coisas,

    E coisas no sublimam coisas.

    Eu, se algum dia com lugares-comuns

    Houvesse de louvar-te,

    Decerto buscava na poesia,

    Na paisagem, na msica,

    Imagens transcendentes

    Dos olhos e dos lbios e dos dentes.

    Mas cr, sinceramente cr,

    Que todas as metforas so pouco

    Para dizer o que eu vejo.

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  • 16

    E vejo olhos, lbios, dentes.

    Que de ns dois

    Que de ns dois

    O mais sensato sou eu,

    - uma forma delicada

    De dizeres que sou mais velho.

    Ora verdade

    Ser eu quem tem mais idade.

    Mas da a ter juzo

    Vai um abismo to grande

    Que preciso,

    Com certeza,

    Que o digas com ironia

    E nenhuma simpatia

    Pelo engano em que vivo.

    O engano de ter rugas

    E nunca fitar um espelho...

    V l tu que eu no sabia

    Que sou dos dois o mais velho.

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  • 17

    Vivo na esperana de um gesto

    Vivo na esperana de um gesto

    Que hs-de fazer.

    Gesto, claro, maneira de dizer,

    Pois o que importa o resto

    Que esse gesto tem de ter.

    Tem que ter sinceridade

    Sem parecer premeditado;

    E tem que ser convincente,

    Mas de maneira diferente

    Do discurso preparado.

    Sem me alargar, no resisto

    tentao de dizer

    Que o gesto no s isto...

    Quando tu, em confuso,

    Sabendo que estou espera,

    Me mostras que s hesitas

    Por no saber comear,

    Que tentaes de falar!

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  • 18

    Porque enfim, como adivinhas,

    Esse gesto eu sei qual ,

    Mas se o disser, j no ...

    No ponho esperana em mais nada

    No ponho esperana em mais nada.

    E se puser

    H-de ser ambio to desmedida

    Que no me caiba sequer

    No que me resta de vida.

    Ambio to irreal,

    To paranica, tamanha

    Como a grandeza de Espanha

    Com Granada e o Escurial.

    Porque esta esperana que ponho

    Em ver-te sair um dia

    Da verdade para o sonho,

    como ser-se feitor

    Dalguma herdade cansada:

    terra, d-se o melhor,

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  • 19

    A terra no nos d nada.

    De Coplia guardo trs cartas melanclicas

    De Coplia guardo trs cartas melanclicas,

    Um lao e, de uma rosa

    Que o perfume aprendeu nos seus cabelos,

    Um esvado boto.

    Evade-se do todo um halo a antigo, triste.

    Claro que Coplia no existe

    E as cartas tambm no.

    S real porque me falta.

    Porque a no tive creio nela e creio

    Na memria de quem foi no meu passado;

    Nos passeios furtivos que tivemos;

    Nos astros que pusemos

    Nalgum beijo trocado;

    Na exaltao de certa dana, alada

    Na sensao de que uma nuvem me enlaasse;

    E na suave e pura e filtrada emoo

    De alguma vez que a sua mo

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  • 20

    Entre as minhas tardasse.

    Esta Coplia a quem, se acaso dado fosse

    Nascer ou ter vivido,

    Rgido pai ma recusasse,

    Lrico mal ma arrebatasse

    Sem a ter possudo,

    Para que doutro ou morta virgem

    Ilesa e viva dentro de mim permanecesse.

    Do campo dos mortos

    Do campo dos mortos

    Em terra estrangeira

    Por onde passmos

    Absortos os dois,

    Samos ilesos de melancolia,

    Por irmos to vivos, to livres

    E juntos os dois.

    Em vo sobre as campas

    Dos mortos estrangeiros

    Visvel olvido

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  • 21

    Na terra sem rosas votivas

    Chamava por ns.

    Ns amos indo,

    Felizes, felizes,

    E o ventre da terra

    Sonhava razes

    volta de ns.

    Ns amos indo

    Na hora que, breve, passava,

    Vivendo-a smente.

    E a nossa presena encarnava

    No campo dos mortos em terra estrangeira

    - Passado, passado -

    O presente.

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  • 22

    3 Epigramas

    Ela, a Poesia de hoje

    Ela, a Poesia de hoje,

    Como que foge

    De si mesma e se di

    De ter sido algum dia

    Meramente poesia.

    Erra,

    Solitria e solene,

    Nos caminhos da terra,

    E vitupera o cu

    E o que ele encerra:

    - Ah! morra! Ah! esquea Orfeu!

    Canta a grilheta, a enxada

    E a madrugada

    Dos dias que ho-de-vir,

    E como frutos, cair

    Em nossas mos...

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  • 23

    Fala no imperativo,

    E tem por vocativo

    - Irmo! Irmos!

    Mas longe,

    E perto, porque em ns,

    Onde uma fonte canta

    Uma toada clara,

    Um fauno sabe e ri,

    Na pedra gasta e escura,

    Um fim de riso

    De ironia rara...

    Receita para fazer um heri

    Tome-se um homem,

    Feito de nada, como ns,

    E em tamanho natural.

    Embeba-se-lhe a carne,

    Lentamente,

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  • 24

    Duma certeza aguda, irracional,

    Intensa como o dio ou como a fome.

    Depois, perto do fim,

    Agite-se um pendo

    E toque-se um clarim.

    Serve-se morto.

    O futuro

    Aos domingos, iremos ao jardim.

    Entediados, em grupos familiares,

    Aos pares,

    Dando-nos ares

    De pessoas invulgares,

    Aos domingos iremos ao jardim.

    Diremos, nos encontros casuais

    Com outros cls iguais,

    Banalidades rituais,

    Fundamentais.

    Autmatos afins,

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 25

    Misto de serafins

    Sociais

    E de standardizados mandarins,

    Teremos preconceitos e pruridos,

    Produtos recebidos

    Na herana

    De certos caracteres adquiridos.

    Falaremos do tempo,

    Do que foi, do que j houve...

    E sendo j ento

    Por tradio

    E formao

    Antiburgueses

    - Solidamente antiburgueses -,

    Inquietos falaremos

    Da tormenta que passa

    E seus desvarios.

    Seremos aos domingos, no jardim,

    Reaccionrios.

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  • 26

    O essencial ter o vento

    O essencial ter o vento.

    Compra-o; compra-o depressa,

    A qualquer preo.

    D por ele um princpio, uma ideia,

    Uma dzia ou mesmo dzia e meia

    Dos teus melhores amigos, mas compra-o.

    Outros, menos sagazes

    E mais convencionais,

    Te diro que o preciso, o urgente,

    ser o jogador mais influente

    Dum trust de petrleo ou de carvo.

    Eu no:

    O essencial ter o vento.

    E agora que o Outono se insinua

    No cadver das folhas

    Que atapeta a rua

    E o grande vento afina a voz

    Para requiem do Vero,

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  • 27

    A baixa certa.

    Compra-o; mas compra-o todo,

    De modo

    Que no fique sopro ou brisa

    Nas mos de um concorrente

    Incompetente.

    4

    Volver s rimas suaves

    Volver s rimas suaves,

    Aos metros embaladores,

    Cantar o canto das aves,

    A aurora, a brisa e as flores...

    Vibrar na deposta lira

    Dos trovadores sepulcrais

    Delidas queixas d'Elvira,

    Zelos de bardo, fatais...

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  • 28

    Para que nessa fico,

    De outras apenas diferente,

    Ao fogo do corao

    Arda a razo descontente.

    Tu, Baby, ao leres um dia

    Tu, Baby, ao leres um dia

    Meus versos - e hs-de l-los

    Se durar esta poesia

    Mais que o sol nos teus cabelos -

    Mal sabers quanto neste

    Morto momento que passa,

    Porque sorrias, me encheste,

    Sorrindo, da tua graa.

    Pudesses pura ficar!

    Nem que, criana tambm,

    Houvesses sempre que andar

    Ao colo de tua me!

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 29

    Duma outra infncia, inventada

    Duma outra infncia, inventada,

    Guardo memrias que so

    Reais reversos do nada

    Que as verdadeiras me do.

    Estas, se acaso regressam,

    Em tropel e confuso

    Ao limiar-me, tropeam

    No corpo das que l esto.

    Assim, mentin

    do as razes

    Do meu confuso comeo,

    Segrego imagens felizes

    Com que as funestas esqueo.

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  • 30

    Regresso de parte alguma

    Regresso de parte alguma

    Rico mais do que partira,

    Pois trago coisa nenhuma

    Sem desespero e sem ira.

    Agora vivo contente

    No meu exlio sereno;

    Tomei tamanho de gente

    E no me di ser pequeno.

    Pedra parada na calma

    Tranquilidade dos charcos,

    Deixem dormir minha alma,

    Como apodrecem os barcos

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 31

    No amplo e ermo degredo

    No amplo e ermo degredo

    Da Noite enorme incriada,

    Acesso ao trio do medo,

    Reverso a negro do Nada.

    Erra uma asa, partida,

    Dum qualquer pssaro morto,

    Que s porque erra tem vida

    No mar do nada sem porto.

    quando passa e projecta

    Na Sombra sombra erradia

    Que nasce a me dum poeta

    E se concebe a poesia.

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 32

    Na vida somos iguais

    Na vida somos iguais

    s peas que no xadrez

    Valem o menos e o mais,

    Segundo o acaso que a fez.

    Do mesmo cepo nascer

    Para as batalhas pensadas,

    Aos mais, pees de perder,

    A raros, fices coroadas.

    Mas, findo o jogo, receio

    Que, extintas as convenes,

    Durma a rainha no meio

    Dos mal nascidos pees.

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  • 33

    Que estranha, a nossa verdade

    Que estranha, a nossa verdade!

    s vezes, partida a meio,

    Minha ilusria unidade,

    Pensando, sinto, pensei-o.

    Mas quando penso o que penso

    Estou-o pensando tambm.

    Na vertigem, no me veno

    E recuo e vou alm

    Daquilo p'ra que h defesa.

    Feliz quem pode parar

    Onde a certeza certeza

    E pensar s pensar!

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 34

    Nasci poeta abstruso

    Nasci poeta abstruso.

    Amo as palavras que esto

    Entre o arcaico e o difuso

    No cerne da indeciso.

    Prefiro adrede e gomil.

    Digo delquo e fanal.

    E s descrevo um funil

    Em termos-vaso-de-graal.

    Mas nesta minha importncia,

    Neste sol que me irradia,

    Nem Deus preenche a distncia

    Que vai de mim Poesia.

    Deus que me fez e fizera

    Deus que me fez e fizera

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 35

    O pecado antes de mim,

    Junto de Si no me espera,

    Sabe o destino a que vim.

    Pode tudo; e no altera

    O pecador que h em mim,

    Nem nunca tanto pudera:

    Pecarei at ao fim.

    Pois que tudo em mim venera

    O pecador que h em mim.

    Deus j no pode nem espera:

    Fez o destino a que vim.

    Olhos iguais, outro olhar

    Olhos iguais, outro olhar,

    Silncios da mesma voz,

    Memria vaga e lunar

    Do sol que fssemos ns...

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 36

    Assim erramos incertos,

    Juntos, distantes, cansados,

    Mordendo o p nos desertos

    Onde houve relvas e prados.

    E a Vida escoa-se, enquanto

    O tempo, alheio vontade,

    Deslisa, remoto pranto

    Duma tranquila orfandade.

    Meu quase sexto sentido

    Por detrs da nvoa incerta,

    Da bruma desconcertante,

    H uma verdade encoberta,

    Que , por trs da nvoa incerta,

    Intemporal e constante.

    Oh nvoa! Oh tempo sem horas!

    Oh baa viso instvel!

    Que mal meus olhos afloras,

    Loureno Marques - Imprensa Nacional de Moambique - 1960

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  • 37

    Em vo transmutas, descoras...

    Meu olhar infatigvel.

    Quero saber-me quem sou

    Para alm do que pareo

    Enquanto no sei e sou!

    Nuvem que a mim me ocultou,

    Ai! Meramente aconteo.

    Com menos finalidade

    De que uma folha cada

    Na boca da tempestade,

    Porque ele , na verdade,

    Morte a caminho da Vida;

    E eu no sei donde venho

    Nem sei, sequer, p'ra aonde vou.

    Rompa-se a nvoa encoberta!

    Quero saber-me quem sou!

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  • 38

    nfora fui

    nfora fui;

    O seu cadver sou.

    Emparedada neste museu,

    Pasto do p e dos olhares

    Que no perscrutam a minha mgoa,

    Eu sou quem fui,

    Menos o fim que algum me deu,

    De conter vinho e mel e gua...

    Enfim, eu no sou nada,

    Que h muito j se no propaga a mim

    O calor de uma anca,

    E o meu fresco contedo

    No encontra uma boca

    E uma sede no estanca.

    Do oleiro que me fez

    - A poeira, talvez

    Dispersa e reunida,

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  • 39

    A contenha outra vida

    Ou outra nfora... -

    Nem memria persiste do seu nome.

    5 Noturnos

    Caf de cais

    Caf de cais,

    Onde se juntam,

    Annimos de iguais,

    Os ratos dos pores,

    Babel de todos os cales,

    Rio de fumo e de incontido cio,

    Sexuado rio

    Que busca, nico mar,

    Mulheres de pernoitar,

    Unge-te a nojo, no Anfritite,

    Fina fico marinha,

    Mas nauseabundo

    E tutelar,

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  • 40

    O vulto familiar

    Da Virgem Vcio

    Nossa Senhora do Baixo Mundo.

    Eu Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia

    Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia

    Que partout, everywhere, em toda a parte,

    A vida gale, idntica, the same,

    sempre um esforo intil,

    Um voo cego a nada.

    Mas dancemos; dancemos

    J que temos

    A valsa comeada

    E o Nada

    Deve acabar-se tambm,

    Como todas as coisas.

    Tu pensas

    Nas vantagens imensas

    De um par

    Que paga sem falar;

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  • 41

    Eu, nauseado e grogue,

    Eu penso, v l bem,

    Em Arles e na orelha de Van Gogh...

    E assim entre o que eu penso e o que tu sentes

    A ponte que nos une - estar ausentes.

    Quando as fachadas, tumulares, de pardas

    Quando as fachadas, tumulares, de pardas,

    Defendem sonolncias impassveis,

    Sou livre p'ra as bomias intangveis

    - E a noite intui-me cmplices mansardas...

    Franzino e ruivo, o cu todo tem sardas

    E atraente nudez de impossveis...

    Eu sou talvez pintor de nus horrveis,

    Zombo dos mestres e odeio as fardas!

    Mas mal, estril, assoma o brilho frio

    - Que sempre a madrugada me frustrou

    O contacto iminente ao fugidio -

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  • 42

    Tenho medo de quem nocturno sou,

    Da minha afinidade a um desvario

    Que o outro mais casto em mim repudiou!

    6

    Aquele senhor que desde a infncia me conhece

    Aquele senhor que desde a infncia me conhece,

    Com que direito se enternece

    Quando me v?

    Que mal lhe fiz, que me quer bem?

    Porque motivo me diz s

    Coisas que, se as soubesse, esqueceria,

    Hirtas, mortas,

    Coisas cheias de p

    E de melancolia?

    Acordes gastos

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  • 43

    Acordes gastos

    De velhos cantos

    Doutras deidades,

    Riem, nefastos

    Das novidades.

    Zombam?... Quem sabe

    Qual o sentido,

    Oculto ou expresso,

    Que tem a Esfinge?

    Ai quantas vezes

    O riso rido

    dor que finge

    Ter-se sorrido;

    Ou azedume

    De ser excedido.

    Talvez apenas

    Serenidade;

    Olhos que fitem,

    Desnecessrios,

    A eternidade.

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  • 44

    Ns que, toscos

    De ter sentido

    Sua atentatria

    Supremacia,

    Nos esquecemos

    Que os Deuses mortos

    No tm memria

    Nem simpatia.

    Quero um cavalo de vrias cores

    Quero um cavalo de vrias cores,

    Quero-o depressa que vou partir.

    Esperam-me prados com tantas flores,

    Que s cavalos de vrias cores

    Podem servir.

    Quero uma sela feita de restos

    Dalguma nuvem que ande no cu.

    Quero-a evasiva - nimbos e cerros -

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  • 45

    Sobre os valados, sobre os aterros,

    Que o mundo meu.

    Quero que as rdeas faam prodgios:

    Voa, cavalo, galopa mais,

    Trepa s camadas do cu sem fundo,

    Rumo quele ponto, exterior ao mundo,

    Para onde tendem as catedrais.

    Deixem que eu parta, agora, j,

    Antes que murchem todas as flores.

    Tenho a loucura, sei o caminho,

    Mas como posso partir szinho

    Sem um cavalo de vrias cores?

    H que morrer no convs

    H que morrer no convs

    Do seu previsto naufrgio.

    Tremem-lhe as tbuas aos ps,

    Cheira a pressgio.

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  • 46

    Negros augrios com asas

    Cruzam agoiros nos mastros.

    Os ventos sabem a brasas.

    Recusam-se astros.

    J o Piloto que ruma

    A proa dos embaraos,

    Pressentiu que alm da bruma

    Esperam sargaos.

    A agulha mentiu o norte,

    Mas o Piloto sabia.

    Quem busca as rotas da Morte

    No de desvia!

    No de desvia!

    A que morreu s portas de Madrid

    A que morreu s portas de Madrid,

    Com uma praga na boca

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  • 47

    E a espingarda na mo,

    Teve a sorte que quis,

    Teve o fim que escolheu.

    Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.

    E antes de flor, foi, como tantas, pomo.

    Ningum a virgindade lhe roubou

    Depois de um saque - antes a deu

    A quem lha desejou,

    Na lama dum reduto,

    Sem nusea mas sem cio,

    Sob a manta comum,

    A pretexto do frio.

    No quis na retaguarda aligeirar,

    Entre champagne, aos generais senis,

    As horas de lazer.

    No quis, activa e boa, tricotar

    Agasalhos pueris,

    No sossego dum lar.

    No sonhou minorar,

    Num herosmo branco,

    De bicho de hospital,

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  • 48

    A aflio dos aflitos.

    Uma noite, s portas de Madrid,

    Com uma praga na boca

    E a espingarda na mo,

    hora tal, atacou e morreu.

    Teve a sorte que quis.

    Teve o fim que escolheu.

    Os astros nascem

    Os astros nascem,

    Crescem e morrem

    Sem aflio,

    Por isso correm

    Sem que perguntem

    P'ra onde vo.

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  • 49

    O fcil espao

    Foi-lhes materno

    Ventre fecundo;

    Nasci num quarto,

    Nasci dum parto

    E foi magoando

    Que vim ao mundo.

    Nasci rasgando

    Quem me sonhava

    Antes que mesmo

    Me concebesse;

    No sei dum astro,

    To impiedoso,

    Que ao espao agravos

    Tamanhos desse!

    Nasci rompendo

    Quem me continha

    No grcil ventre

    Desfigurado,

    Como um sacrrio

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  • 50

    Vaso sagrado!

    Mos impacientes

    De me tocarem

    Logo estendia

    Quem eu magoava

    E ensanguentava

    Quando nascia!

    Nascena de astros

    No tem valor:

    Que o fcil espao

    Pare-os sem dor.

    Haja nvoa

    Haja nvoa!

    Dancem os vus na minha alma

    (E externos nas luzes prximas,

    Que se recusam como estrelas na distncia).

    Haja nvoa!

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  • 51

    Paire nela a memria dos manacos

    Sonhando na penumbra dos portais

    Assassnios brutais.

    Haja, haja nvoa!

    Aqui e alm no mar.

    No mar, nos mares, para que todas as viagens,

    Para que todos os barcos em todas as paragens,

    Na iminncia dos naufrgios improvveis

    - Improvveis, possveis -,

    Se gastem nos avisos aflitos

    Das luzes, dos rdios, dos radares,

    Dos gritos

    Dos apitos.

    Haja, haja nvoa...

    Desgastem-se os contornos

    Das coisas excessivamente conhecidas.

    No haja cu sequer.

    Nvoa, s nvoa!

    E eu, nas ruas distorcidas,

    Livre e to leve

    Como se fosse eu prprio a nvoa

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  • 52

    Da noite longa duma existncia breve.

    Menina dos olhos tristes

    Menina dos olhos tristes,

    O que tanto a faz chorar?

    - O soldadinho no volta

    Do outro lado do mar.

    Senhora de olhos cansados,

    Porque a fatiga o tear?

    - O soldadinho no volta

    Do outro lado do mar.

    Vamos, senhor pensativo,

    Olhe o cachimbo a apagar.

    - O soldadinho no volta

    Do outro lado do mar.

    Anda bem triste um amigo,

    Uma carta o fez chorar.

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  • 53

    - O soldadinho no volta

    Do outro lado do mar.

    A Lua, que viajante,

    que nos pode informar

    - O soldadinho j volta

    Do outro lado do mar.

    O soldadinho j volta,

    Est quase mesmo a chegar.

    Vem numa caixa de pinho.

    Desta vez o soldadinho

    Nunca mais se faz ao mar.

    A emoo como um pssaro

    A emoo como um pssaro:

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  • 54

    Quando se prende j no canta.

    Mas se a gente a liberta,

    Qualquer janela aberta

    Lhe serve para fugir.

    O poeta aquele que numa praa

    S. Marcos de Veneza transcendente,

    E de todas as praas, praa ainda,

    Aguarda na manh que se insinua

    Ou na tarde que finda

    O voo que h-de vir.

    Ele estende a mo,

    Abre-a espalmada

    Ao cu,

    Que anunciao de tudo ou nada

    A emoo vir ou no

    - Sem emoo, toda a poesia nada -

    Fiel Anunciao que est marcada

    Na sua condio.

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  • 55

    Deixai os doidos governar entre comparsas

    Deixai os doidos governar entre comparsas!

    Deixai-os declamar dos seus balces

    Sobre as praas desertas!

    Deixai as frases odiosas que eles disserem,

    Como morcegos luz do Sol,

    Atnitas baterem de parede em parede,

    At morrerem no ar

    Que as no ouviu

    Nem percutiu

    distncia da multido que partiu!

    Deixai-os gritar pelos sales vazios,

    Eles, os portentosos mais que os mares,

    Eles, os caudalosos mais que os rios,

    O medo de estar ss

    Entre os milhares

    De esgares

    Reflectidos nos colossais

    Cristais

    Hlares

    Que a sua grandeza lhes sonhou!

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  • 56

    A Fernando Pessoa (ele mesmo)

    Cada verso uma esfinge ter falado.

    Mas quanto mais explcito ela o diz,

    Mais tudo permanece inexplicado

    E menos se apreende o que ela quis.

    Erra um sussurro, to etreo e alado

    Que nem mesmo silncio o contradiz.

    E o ouvi-lo, ou vido ou irado

    Na busca dum segredo sem raiz,

    como se em pensar - um descampado -

    Passasse fugitiva e intensamente

    O Tempo todo inteiro projectado

    E a sombra ali marcasse, na corrente

    Do nada para o nada, inda passado

    E j futuro, a fico do presente.

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  • 57

    Livro II - Poemas Infernais

    Uma extensa nota explicativa

    Os Poemas Infernais deviam constituir uma tetralogia, muito provavelmente assim estruturada e ordenada:

    1) A Esttua Jacente;2) D. Bailador-Bailarino;3) Bispo de Pdua;4) O ponto.

    S o primeiro dos quatro poemas chegou a ser completado e foi mesmo publicado. E so justamente os Poema Infernais aqueles cuja falta de acabamento mais desespera os admiradores do gnio de Reinaldo Ferreira. Tanto assim que, considerado o valor da obra, logo se decidiu, aps breve troca de impresses, que ela no podia deixar de ser publicada, at pela simples razo de l se encontrarem versos de majestosa orquestrao e soberba perfeio formal.Todavia, conhecedores da inteno, repetidas vezes manifestada pelo autor, de agrupar os quatro poemas, e tendo ele mesmo escolhido j, para a tetralogia assim concebida, a designao de Poema Infernais, entendemos que seria atraioar o seu pensamento limitarmo-nos a reproduzir A esttua jacente e os fragmentos que ficaram do D. Bailador-Bailarino, do Bispo de Pdua e de O ponto, sem mencionar nem pr em relevo o sentido daquela unificao sentida e pretendida pelo poeta. Tanto mais que pela integrao na configurao estruturada de um todo significativo, como parte de uma verdadeira Gestalt no sentido de Wertheimer e de Khler, assim que cada um dos quatro poemas ascende dignidade que lhe compete e revela, com vigor, o seu verdadeiro e profundo significado. Como, mais adiante, se ver.Outra razo importante - esta uma razo de ordem sentimental,

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  • 58

    uma daquelas razes que la raison ne connat pas -, que influenciou tambm a deciso que tommos, foi a confirmao, encontrada no esplio, de um facto alis j bem conhecido de alguns de ns: o facto de Reinaldo Ferreira ter dedicado aos Poema Infernais um carinho especial e de lhes ter concedido, no esquema de classificao e valorao que presidia s suas espordicas tentativas de arrumao, um lugar parte e muito privilegiado. Tanto assim que, com uma nica excepo, nunca vimos que sobre eles se desencadeasse nenhuma daquelas furiosas e destruidoras rajadas de autocrtica de que muitos poemas foram vtimas e de que outros s a custo sobreviveram.Ainda mais: nos Poema Infernais que se encontram alguns dos mais antigos e alguns dos mais recentes versos que Reinaldo Ferreira escreveu. Esses poemas mantm-se teimosamente presentes ao longo da dimenso temporal de toda a obra do poeta, de tal modo que parecem constituir um fulcro ao qual podemos atribuir tambm a dignidade de uma geratriz.A morte no permitiu que o grande poeta e grande pensador acabasse e articulasse umas com as outras as peas constitutivas da obra que devia ser, com certeza, a mais profunda e pujante de todas as manifestaes do seu gnio. E dos fragmentos que publicamos difcil, se no impossvel, deduzir as motivaes da pretendida unificao e compreender o verdadeiro significado da configurao estruturada em que todos esses fragmentos se achariam naturalmente ligados. Daqui resulta a necessidade desta nota explicativa, que nos atrevemos a elaborar socorrendo-nos da recordao de frases ouvidas e do teor de discusses sustentadas. E embora saibamos quo duvidoso e discutvel sempre o valor real de tais elementos, ficaremos teimosa e consoladoramente convencidos de que a interpretao que apresentamos no atraioa o pensamento de Reinaldo Ferreira.Como entendemos e sentimos ns, ento, os Poema Infernais?Considerada como aniquilamento total do ser, a morte no atemorizou nunca Reinaldo Ferreira nem sequer constituia objecto digno de sobre ele se exercerem as suas cogitaes. Em relao a esta morte total, a sua posio intelectual era a mesma que um filsofo antigo definiu em termos clssicos:

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  • 59

    Nada me interessa nem incomoda aquilo que no poderei nunca conhecer. Por isto me no interessa a morte. Enquanto eu estiver neste mundo no a encontro e, quando ela chegar, no me encontra a mim.

    A esta morte assim concebida, no s Reinaldo Ferreira a no temia como chegava, at, a lisonje-la e a desej-la (irm desejada, etc.), sempre que mais fortemente se sentia atrado pelo refgio da evaso.Reinaldo Ferreira era um homem muito inteligente, que sabia raciocinar e gostava de pensar. Mas, desgraadamente para ele, era tambm um poeta, um grande poeta; o que significa que sentia e vivia uma viso potica do mundo que se sobrepunha a qualquer outra via de compreenso possvel. E um poeta, dem-lhe as voltas que derem, no capaz de aprender a acreditar, com verdadeira convico, na morte total.Pode fingir que acredita, quando discute o problema em cenculos intelectuais. Mas leiam-lhe os poemas... e logo verificaro que se operou, nas suas ideias, uma mudana radica. A morte, na poesia, passa a ser consoladora - como se quem no existe pudesse ser consolado -, e a morte reveladora - como se alguma coisa pudesse ser revelada a quem no existe -, a morte justiceira - como se no fosse a vida a mais indispensvel das condies prvias para que se efective o acto de julgar -, etc., etc. ... Para o poeta a morte sempre, necessariamente, uma morte viva. Para que disto fiquemos convencidos basta relembrar aquele pandemnio do Orfeu apresentado por Cocteau, segundo ele o afirma, como resultado final de muitos anos de investigao potica acerca do problema da morte.E no admira nada que isto seja assim. Deve mesmo, obrigatoriamente, ser assim. E no s no que respeita aos poetas. O mesmo acontece com todos os artistas...O mundo que o verdadeiro artista intui e se esfora por descobrir e revelar transcende o nosso mundo, o mundo dos mortais. E s neste mundo que se depara ao artista o fenmeno da morte, e no no seu outro mundo, no mundo da arte, ainda to nebulosamente definido que at parece ser o inefvel um dos seus atributos.

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  • 60

    Assim, facilmente se torna compreensvel que aquilo que atemoriza Reinaldo Ferreira seja a sobrevivncia, no o aniquilamento. Tanto mais que - e este o significado profundo dos quatro Poema Infernais - a sobrevivncia s pode ser concebida pelo poeta em termos de inferno. Sobreviver, sejam quais forem as condies de sobrevivncia, no pode deixar de ser um verdadeiro inferno.E porqu? Porque h-de a sobrevivncia ser necessariamente um inferno?A alma humana deixa-se definir, apenas, pelos impulsos que a alimentam. E, sendo isto assim, acaso pode imaginar-se mais horrorosa e infernal condio de que a vivncia perpetuada de impulsos que perderam a sua razo de existir? Sobreviver , sempre, viver num inferno.Na Esttua Jacente o inferno define-se pela perpetuao dos mais grosseiros impulsos materiais, aos quais a morte do corpo tirou todas as possibilidades de expresso, quanto mais de satisfao... O inferno a conscincia mantida de desejos cujo objectivo se perdeu:

    ... meus cinco sentidos,Desenfreados agoraOs tinha, mais do que outrora,Buscando os vcios preferidos.

    Num nico verso se acha mencionado o remorso, e isto ocorre de maneira casual e como que ao correr da pena, j que a conscincia moral no justifica o sofrimento de maneira que este possa ser logicamente admitido como merecida punio. O tormento infernal resulta essencialmente da conscincia da impossibilidade, considerada como irremedivel e perptua, de satisfazer os impulsos grosseiros que perpetuamente subsistem.O Inferno de D. Bailador-Bailarino parece-nos ser o mais misericordioso e suave de todos os infernos, de todas as condies infernais impostas pela simples circunstncia de sobreviver. No se trata, todavia, de uma clemncia arbitrariamente dispensada ao bailarino; o que se verifica apenas o inevitvel efeito moderador que devem exerce, na morte, aqueles factores que, na vida de todos os artistas, servem de ncleo de angstia e fomentam uma

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  • 61

    nsia torturante de expresso.D. Bailarino um artista e, pelo facto de o ser, o que d feitio e fora sua alma o impulso de exprimir e descrever o outro mundo, utilizando para isso alguns dos meios de que dispomos neste mundo. E s por se tratar de um bailarino acontece ser usado o corpo humano como veculo da expresso, corpo humano que, para esse efeito, ensinado a servir de apoio no adgio, a exibir-se na atitude, a levitar na elevao, a desafiar o tempo no entrechat.Se o artista, em vez de ser um bailarino, fosse um pintor, utilizaria, para o mesmo fim, exactamente para o mesmo fim, em vez do material imediatamente fornecido pelo seu prprio corpo, as linhas e as cores, as propores e as perspectivas; se fosse um msico recorreria a desenvolvimentos meldicos e combinaes harmnicas; e se fosse um poeta, ento, enfrentando bem maiores dificuldades, servir-se-ia daquela maneira peculiar de violentar a semntica por meio da qual a poesia consegue transfigurar o significado dos vocbulos, at mesmo dos vocbulos mais triviais, daqueles que a gente diariamente emprega na conversao sem sequer se aperceber do tal outro mundo que, por meio deles, algumas vezes chega quase, mesmo quase, a revelar-se.A finalidade do artista - poeta, pintor, bailarino, etc. - sempre a mesma. Trata-se sempre da mesma furiosa tentativa de extrair um outro mundo dos interstcios deste mundo e de comunicar aos outros homens, a todos os homens, utilizando os meios de expresso de que os homens dispem, o teor e o significado desse outro mundo que, muito descaradamente ou com muitssima razo, o verdadeiro artista julga sempre ter entrevisto, quando no descoberto, como digna recompensa das suas tormentosas jornadas nas dimenses do inefvel.A irremedivel tragdia do destino do artista resulta desta trgica circunstncia: ele v, sente e sabe muitssimas coisas que ns no vemos nem sentimos nem sabemos. Desgraadamente, para comunicar o contedo da revelao que lhe foi outorgada, ele no dispe de outros meios de expresso que no sejam aqueles que todos ns conhecemos. Da a incongruncia, o seu tormento em vida e o seu privilgio na morte.

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  • 62

    Os movimentos alados do ptero bailarino no podem ser interpretados como forma primitiva de descarga da sua tenso nervosa (como no ataque convulsivo do epilptico) nem como expresso j mais elaborada de sentimentos de frustrao e conflitos individuais (como nas movimentadas e teatrais exibies dos histricos). O bailarino mais no faz que utilizar, como veculo de expresso, as transformaes que uma motilidade disciplinada e treinada consegue produzir no aspecto e significado global do seu corpo em movimento. E de supor que D. Bailarino, quando

    Acorda para o tormento

    De no ter movimento

    possa sentir de qualquer maneira compensado o aniquilamento das suas possibilidades de expresso pelo privilgio que lhe foi outorgado de contemplar, enfim, aquele mundo que, em vida, ele podia s adivinhar e sentir como presena vaga e inefvelDe todos os infernos da sobrevivncia, o mais misericordioso deve ser aquele que a sobrevivncia impe ao artista...Passemos agora a considerar o Bispo de Pdua. Dos quatro Poema Infernais foi este, sem dvida, o que mais sofreu o efeito das cruis amputaes que a foice da morte, j to estupidamente manejada quando ceifou o poeta, quis ainda operar, como cabal demonstrao da fora da sua estpida cegueira, nos vrios poemas que s mutilados e truncados permitiu que chegassem ao nosso conhecimento. Ao Bispo de Pdua no concedeu a morte nenhuma oportunidade para que ele atingisse, sequer, um esboo suficientemente significativo de expresso verbal.Quase no incio desta nota explicativa, quando aludimos ao carinho especial que Reinaldo Ferreira dedicava aos seus Poema Infernais, no nos esquecemos de mencionar uma excepo, uma nica excepo; e foi justamente o Bispo de Pdua o que por ela sofreu.O excelso tonsurado, o malabarista arguto das mil e uma regras da lgica formal, o subtil doutor, cuja bem temperada

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  • 63

    argumentao peripattico-escolstica conduziu sempre todos os adversrios do dogma humilhao da derrota e ao mutismo da estupefaco, o homem ntegro que, firme desde o incio, recusaria o slio pontifcio no transe aflitivo de Avinho, aquele que mereceu ao doce cu de Frana manifestaes de condolncia to sentidas e to plmbeas, embora numa excelsa e moderada academiaa sua vizinhana fosse disputada como rara regalia, apesar do seu reconhecido valor e indiscutveis mritos e apesar da sua provecta idade - alguns dos versos do Bispo so, com certeza, dos primeiros que Reinaldo Ferreira escreveu, ou, com maior preciso, dos mais antigos que se encontram no seu esplio -, nem mesmo possuidor de tantos e to estimveis dons, nem mesmo assim o venerando clrigo conseguiu conquistar o afecto e despertar o interesse do seu progenitor, seno muito tardiamente.Ai dele e ai de ns! To tardiamente que a morte, antecipando-se, fez com que esfriasse o sopro criador a que ele devia a existncia e, cortando-lhe as possibilidades de expresso, condenou-o a um mutismo quase to inexpressivo como o mutismo embasbacado a que o erudito telogo costumava forar os seus oponentes de antanho.Reinaldo Ferreira no gostava do Bispo de Pdua, achava a sua esperteza discutvel e ridcula, criticava-lhe os costumes e condenava-lhe as tendncias. Num dos raros mpetos de quase-fria que lhe conhecemos chegou a classificar aquela versalhada como ridculo estendal de pseudo-erudio.Foi chamada a sua ateno para o facto de nos parecer impossvel - a ns, embora a nossa condio fosse a de admiradores e no a de crticos - excluir da expresso potica de um inferno intelectual a erudio que inevitavelmente resulta do exerccio da inteligncia. Parece que o argumento produziu o resultado que pretendamos: no s Reinaldo Ferreira indultou o prelado como at o deixou passar no exame. Infelizmente muito tarde, tarde de mais. A morte apressou-se e no deu tempo ao hbil adversrio de Averrois para que ele definisse com preciso a natureza do inferno para onde a eternidade o atirou. Conforte-nos a certeza de que, embora precocemente privado daquela arrebatadora fora convincente que s a expresso potica adequada pode dignamente veicular, o que o Bispo de Pdua chega a contar, depois de conjugado com

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  • 64

    vrias coisas que Reinaldo Ferreira disse, constitui material de informao suficiente para que a gente possa imaginar bem a natureza do seu inferno.Pobre Bispo de Pdua... Coube-lhe, a nosso ver, o pior de todos os infernos por onde o moderno Virglio nos conduziu at agora! O bispo da Esttua Jacente sofre por manter apetites grosseiros que deixou de poder satisfazer. D. Bailarino sofre por no poder exprimir j, na maneira da sua arte, o que ele pensava que entrevia ou lhe era revelado do outro mundo, mas parece-nos justificada a suposio de que o tormento de se encontrar perpetuamente privado dos seus usuais meios de expresso fica mais que compensado pelo deleite de ver, alfim, o que antes s podia entrever.Pobre Bispo de Pdua... O seu tormento o mais cruel de todos, at por ser, tambm, o mais ridculo, o que mais se presta a troa...Trata-se do inferno intelectual, expresso na tortura de uma infinita e perpetuada nsia de compreenso que dispe apenas, para satisfazer-se, de instrumentos totalmente inadequados.Imagine-se o caso do ciclista que caiu no mar na sua bicicleta e no qual se perpetua, depois de afogado, obrigatoriamente mantido pelo facto de sobreviver, o estpido impulso de pedalar, sem nenhuma finalidade nem sentido.Quanto no h-de sofrer uma alma definida, sobretudo, pelo impulso de conhecer, e viciosamente exercitada no uso das regras que o homem descobriu para verificar a autenticidade do seu conhecimento deste mundo, uma vez forada a sobreviver num mundo em que deixou de ser possvel, e se tornou at absurda, a aplicao de tais regras!...Que terrvel e ridculo inferno o do Bispo de Pdua, obrigado pela sobrevivncia a manejar eternamente uma complicada engrenagem de silogismos sem nenhuma relao aproveitvel com a super-realidade de uma existncia hiperdimensional...Ao Bispo de Pdua segue-se O Ponto, inferno ontolgico e metafsico que, sem que imediatamente acorde horrorosos ecos de tortura na nossa timopsique, constitui, no obstante, a chave da abbada to genialmente edificada sobre trs fustes aparentemente

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  • 65

    to dspares, conferindo-lhes inslita similitude e convincente homogeneidade.Tal como chegou s nossas mos, O Ponto tem apenas quatro versos:

    Mnimo sou,Mas quando ao Nada emprestoA minha elementar realidade,O Nada s o resto.

    No sabemos se Reinaldo Ferreira tencionava desenvolver este grande poema de quatro versos. Mas como tambm no podemos imaginar nenhuma possibilidade de desenvolvimento capaz de conferir, singela formulao que encontrmos, um significado mais profundo ou uma maior beleza, no nos achamos autorizados a afirmar que se trata de um poema incompleto. Que seja o leitor a julg-lo... este inferno supremo, o de O Ponto, aquele pelo qual se estabelece e garante a nossa sobrevivncia e, deste modo, a inevitvel existncia de todos os outros infernos.Em vrios poemas, uns publicados, outros completados e outros apenas esboados, manifesta Reinaldo Ferreira uma decidida tendncia para definir o seu ser por meio de termos geomtricos que definem o ponto. Se quisermos adoptar as formas de expresso do existencialismo, quase sempre to confusas mas ainda hoje to em moda, podemos afirmar que Reinaldo Ferreira considera como um ponto o ser que neste mundo se manifesta, o In-der-Welt-sein, e interpreta como movimento a sua maneira de existir, o seu So-sein.

    Duas rectas que se cruzam,Eis um ponto;Esse ponto , em movimento,H-de ser recta tambm;E essa recta e outra rectaHo-de formar novo ponto,Novo pontoNova rectaE sempre assim sem remdio!

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  • 66

    Eu sou um ponto nascidoDe duas vidas cruzadas...

    Todavia, embora do seu movimento nasa a linha, o ponto mantm todas as prerrogativas que lhe confere a sua falta de dimenses; que remdio seno aceitar tambm as trgicas consequncias da sua indestrutibilidade... O ponto que se move deixa uma linha como trajectria. Mas quando a linha acaba, isto no significa que tenha desaparecido o ponto; apenas que cessou o seu movimento.Inevitvel sobrevivncia, a do ponto; mesmo quando penetra no Nada... o Nada s o resto.Em plena conscincia delibermos publicar os Poema Infernais integrados num todo articulado e significativo, como era inteno do autor. Pareceu-nos necessria esta nota explicativa para pr em evidncia o sentido da arrumao.

    Um curto e significativo apndice para uma extensa nota explicativaFoi j depois de decifrados e classificados os manuscritos que nos legou Reinaldo Ferreira, numa caligrafia quase sempre hermtica e numa ordenao sempre anrquica e caprichosa, foi j depois de elaborada a nota explicativa, que julgmos necessria, dos Poemas Infernais, foi j quando o original estava a ser embrulhado para ser mandado para a tipografia, que ns descobrimos um poema de tal maneira significativo que, se h mais tempo o tivssemos encontrado, decerto no permitiria que em ns surgisse a ideia de esclarecer o sentido da unificao que determinou o seu agrupamento.Talvez haja, de facto, males que vm por bens... Talvez ns, por termos sido iniciados pelo poeta no pretendido significado dos Poemas Infernais, entendssemos que o poema descoberto podia constituir material suficiente para unir os outros entre si, de maneira slida e explcita.Agora, depois de bem vistas e ponderadas as coisas, voltmos convico de que a nota explicativa necessria. Mas decidimos publicar o poema atribuindo-lhe a designao, que o autor no

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  • 67

    conferiu, de [assim na cpia a que tivemos acesso] nota do editor

    Introduo aos poemas infernais

    J me no basta morrer;

    Tanto me falta a certeza

    Que paro todo de ser

    Na Vida sem mim ilesa.

    Morrer pouco. Destri

    A ordem do que, disperso

    Apenas, logo constri.

    - Constante do Universo... -

    Mas o mais ? Essa energia

    Contnua, que permanece,

    Elo de ns, dia a dia...

    No sei pensar que ela cesse.

    Nem sei, de tanto que a sinto

    - Alma no, que no a creio... -

    Se sou sincero ou se minto,

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  • 68

    brio do prprio receio.

    A esttua jacente

    Mandei, mundano, talhar

    Esta galante postura.

    Ai de mim!, que a desventura

    Dura o que a pedra durar!

    Latinas frases austeras

    Dizem de mim ilegveis,

    As mil virtudes possveis

    presso das sete esferas.

    O nome, farto e faustoso

    Com que de nada me enchi

    Horizontal, o esqueci

    Da altura do meu repouso.

    Mas sempre sofro, emanando

    Das cinzas por mim guardadas,

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  • 69

    Memria de horas danadas

    Que vo meu sono acordando.

    Bispo fui; amando a guerra,

    Cego ao aceno dos cus,

    Troquei a graa de Deus

    Pelas miragens da terra

    Fui cobioso, mesquinho,

    Falso, cruel, intrigante,

    E numa orgia infamante

    Pequei a carne e o vinho.

    Morto me acharam um dia

    No leito; to decomposto

    Que pelos restos do rosto

    Ningum j me conhecia.

    Em vo, com leos, essncias

    De aroma arbico e forte,

    Se disputaram morte

    Minhas letais pestilncias.

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  • 70

    Hmido, em nardo, eu jazia;

    Mas o fedor que exalava,

    Mais que da carne, alastrava

    Da alma que apodrecia.

    Mos, num vagar rancoroso,

    Vingadas, porque adularam,

    Em brocado entalharam

    Meu corpo inchado e escabroso.

    Por fim, fantoche mitrado,

    Entre cem crios a arder

    - Pudesse um deles tambm ser

    E consumir-me queimado! -

    Entrei na nave deserta

    Que do prtico parecia

    Que a todos nos engolia,

    Fauce esfaimada e aberta.

    Oh! Com que nusea os ouvi

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  • 71

    Salmodiar-me; e exausto

    De to falsssimo fausto,

    Com terror me apercebi

    De que o cansao devia

    Ter-se extinguido tambm

    Comigo, no ir alm

    Da vida que em mim havia.

    Mas no! Meus cinco sentidos

    Desenfreados agora

    Os tinha mais do que outrora,

    Buscando os vcios preferidos!

    Incapaz de movimento,

    Eu, cego, impotente e mudo,

    Dentro de mim, via tudo

    Num pavoroso tormento!

    S a solido me deixaram

    Na cava nave nocturna

    E a presena taciturna

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  • 72

    Dos que a meu soldo mataram,

    Dos que a meu lado morreram

    Sem confisso, emboscados,

    Dos que ao meu oiro amarrados

    Porque os perdi se perderam!

    O tempo, enorme, passou.

    Mais que um vitral se partiu,

    Mais de que um arco ruiu

    E eu vivo e morto ainda estou.

    Quando o tempo ao fim desbaste

    Minhas pudas feies,

    Talvez as minhas aces

    Tambm o tempo as desgaste.

    A sombra silenciosa

    Da cruz, que alonga ao sol posto

    Sua brandura ao meu rosto,

    Talvez parando piedosa

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  • 73

    Sobre os meus olhos, talvez

    Dorida do meu quebranto,

    Amolea em meigo pranto

    Tanta macia altivez.

    Talvez os vermes, por d,

    Os alicerces minando,

    Altos tectos derrubando,

    Me restituam ao p.

    Talvez tambm - maldio! -

    Em cada gro inda viva

    A minha insnia, cativa

    De um remorso sem perdo!

    No creias, pois, viajante

    No meu sossego aparente;

    S calmo, casto e constante,

    S sbrio, humano e paciente;

    S tudo quanto eu no sendo,

    Porque o no fui, Deus legou,

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  • 74

    pedra inerme jazendo

    A sensao de quem sou.

    D. Bailador-Bailarino

    I

    Esmorece a luz

    Sobre o tablado.

    Amolecido

    E vencido,

    D. Bailador-Bailarino

    Devagar

    Morre, tambm...

    E o que resta da angstia do baile

    o corpo morto e tombado

    Que lutou com a prpria alma.

    Lesta, desprende-se a cortina

    Sobre a cruel pantomina.

    Um silncio geral...

    Nem uma fala !...

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  • 75

    No entanto, uma emoo sem par

    Penetra os coraes

    E cada olhar

    Revive as derradeiras comoes

    Da dana singular.

    Sbito, um frenesi

    Percorre a multido paralisada.

    Uma flama irrompeu,

    Deixou a sala incendiada,

    E cada um reclama

    E chama

    E quer, inquisidor,

    Que ribalta aparea

    D. Bailarino-Bailador !

    D. Bailador-Bailarino !

    D. Bailarino-Bailador !

    II

    Emocionante,

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  • 76

    A pantomina

    Termina.

    Alado e ptero impulso

    Atrai-lhe o corpo delgado

    Para o reino da vertigem,

    Pondo susto e maravilha

    Em cada olhar deslumbrado.

    Aps

    Com lento aprumo, sem pressa,

    Regressa,

    Pisa de novo o tablado

    E dana.

    Com segurana e majestade dana,

    Como se no ar em que dana

    Houvesse mais densidade,

    De um verde vagar aqutico.

    Quem dir que no tem asas

    D. Bailarino-Bailador ?

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  • 77

    Embalsamado - de fixo ! -,

    Mumificado - de quieto ! -,

    D. Bailarino

    Comenta, do violino,

    Gelado choro sem fim.

    Mas no fim,

    Com manso e dormente jeito,

    As duas mos voadoras

    Cruza, pendentes, no peito.

    Sob as plpebras cerradas

    diferente o rosto moo;

    Tomba-lhe ento a cabea,

    Como se ao cabo e aos poucos

    Se derretesse o pescoo.

    Longnqua serenidade

    Como que dimana e escorre

    Da melancolia que morre,

    Toda horizonte e alm.

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  • 78

    III

    Ele fauno, flora amorvel,

    Ele mito, ele loiro, ele palma,

    palavra carnal duma alma,

    o fixo, o instvel.

    Ele tarde de cinzas, poente fantstico,

    Ele lvido Glgota, paisagem lunar,

    Ele triste balastre cismtico

    Em marmrea varanda, ao luar.

    Ele ftil fico, Pierrot

    Suspirante, cintilante Arlequim,

    Ele tal artifcio, mas to gracioso

    Que, se vivo inda fora, gostoso

    O pintara Watteau.

    Ele renda, ele asa, ele pluma

    E transcende o autor de que dana um adgio;

    Mas tambm tormenta, tambm naufrgio;

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  • 79

    viso de afogado trazido na espuma;

    Ele amoroso de murcha coragem

    Sorvendo, de longe, seus longos martrios;

    Ele D. Juan do sangue selvagem

    A cuja passagem fenecem os lrios.

    Ele confluncia das dvidas todas

    Hamleticamente danando dilemas

    Da jovem de Atenas, em vspera de bodas,

    Tecendo, com rosas, fragrantes diademas.

    Ele fauno, mais fauno que o fauno

    Ressuscitado

    Por santo milagre de S. Debussy !

    ... E logo, converso, em outro bailado,

    Pureza sem mancha seu gesto sorri.

    Ele sopro, ele fumo na aragem,

    Ele fluido, ele nimbo, paisagem

    No leito dormente de um rio

    Em sonmbulo estio.

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  • 80

    Ele ao, ele mola, ele pincho,

    Ele som de metal, ele guincho,

    Exploso e tambor,

    O Bailador-Bailarino !

    O Bailarino-Bailador !

    IV

    Ah ! bailador !

    Ah ! bailarino !

    A tua arte durou

    Os olhos de quem te viu...

    E tudo o mais rescaldo

    Do fogo que se extinguiu.

    .......................

    Ningum teve

    Mais efmero brilho

    Nem triunfo mais breve...

    Cabriola de chama

    Na lenha que arde

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  • 81

    E se extingue...

    Relevos de nimbos,

    Fantsticas formas

    Fugazes, da tarde...

    Corisco maluco !...

    .......................

    Ah ! florilgio do gesto,

    Carne da msica,

    Antologia da atitude !...

    V

    Quando, entre as campas das pudas flores,

    Que um outono qualquer arrebatou

    A lascivos amores,

    Passa, alta noite, um silvo aflito a cio,

    E dos burgueses mausolus, o frio, a prumo, orgulho vo,

    Escorre, inda vivo, uma gordura Lua,

    Do Bailarino, desconjuntada,

    A ossada

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  • 82

    Acorda para o tormento

    De no ter movimento...

    IV

    Que fantstica cena, a Eternidade !...

    Vejo-te a danar, Bailarino,

    Vejo-te a danar

    Sem trguas nem esperanas

    busca dum corpo

    No se incorpora a tua suavidade...

    Busca-se um peso para a queda do fim...

    .......................

    Sem corpo, a Eternidade bem cruel,

    Se Deus nos deu uma alma que pretexto,

    Um mero cordel

    Para o gesto...

    Bispo de Pdua

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  • 83

    Seria frade, certo.

    Mas que doce e estvel cu aberto

    Ento, o meu destino !

    Seguiria, talvez, Toms d'Aquino

    E outros claros sis

    Da teologia.

    E por fecundo amor luz do dia,

    Feroz, destroaria

    O prfido Averrois

    Recalcitrante,

    Com trinta silogismos de lgica esmagante,

    Excedendo, porventura, o prprio Frade Anglico

    No meu santo furor aristotlico !

    E na maturidade,

    Atingida aquela obesidade

    Que deve ter um frade,

    Dotaria as concluses a minha inteligncia

    Sobre Potncia

    e Acto

    Ao mundo estupefacto

    De tal clarividncia.

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  • 84

    Aps, o irmo copista,

    Um precioso artista,

    Paciente por excelncia,

    Copiaria o muito que eu pensava

    No brbaro latim da decadncia,

    Iluminando as frases ressequidas

    Com galantes maisculas refloridas.

    Em Pdua, subiria a ser reitor,

    Por virtude e fulgor

    Da minha erudio;

    E, firme desde incio,

    Recusaria o slio pontifcio

    No transe aflitivo de Avinho.

    J ento,

    Por antecipao,

    Nas forjas legendrias

    Onde o bisonho Vulcano temperou

    As cleras incendirias

    Do Jpiter Tonante,

    Um bando rutilante,

    Ingnuo e palrador,

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  • 85

    De serafins, cantando,

    Estaria burilando,

    Com gemas siderais

    E trmulos orvalhos matinais,

    O fulvo resplendor

    Da minha santidade.

    Entre santos e santas venerveis,

    Nos paos inefveis

    Da bem-aventurana,

    Como um rio que transborda o leito,

    A nova correria, sem tardana,

    De haver um novo eleito;

    E a excelsa e moderada academia

    Entre si disputaria

    A rara regalia

    Da minha vizinhana.

    Teimoso e resistente como um cedro,

    Que fortes argumentos no teria

    O indomvel Pedro ?

    E Paulo, o das epstolas ardentes ?

    E a trigueira Maria de Magdala,

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  • 86

    De que os olhos, carves incandescentes,

    So, mais que a muda boca, eloquentes ?

    Mas um Santo que fora em vida grego,

    E, dizem, muito lido em histria antiga,

    Prudente, acalmaria os imprudentes,

    Lembrando que fora por intrigas,

    Por miserveis brigas,

    Que outrora tivera o seu ocaso

    A glria dos Deuses no Parnaso.

    .......................

    Paris,

    Burgo cinzento,

    Da cor do pensamento,

    Vestiria de luto

    Um hermtico cu de nuvens negras,

    Sombrio e triunfal,

    Por esse velho astuto,

    Malabarista arguto

    Das mil e uma regras

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  • 87

    Da lgica formal.

    E esse velho,

    Por quem chorava o meigo cu da Frana,

    De olhar agudo, como o dum judeu,

    Cortante, como o ferro duma lana,

    Esse velho, esse velho era eu.

    .......................

    Da Glia

    - A Doutora,

    A muito sabedora -

    Partiria, entretanto,

    Um certo santo

    Esfomeado de azul,

    De rumo para a Itlia.

    .......................

    Combatera uma bula,

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  • 88

    Fora reitor em Pdua,

    Prelado de Mogncia

    (E Papa no fora

    Por um triz...)

    E saa de Paris

    Em lazarenta mula,

    Vivo de ambies

    E noivo da renncia.

    .......................

    O cu dessa manh gloriosa

    Dir-se-ia, de ambarino e pouco azul,

    Cavado numa ptala de rosa...

    J ento o degelo abraava

    No seu harm de cristal

    O corpo nu das montanhas

    - Hirtas, distantes,

    Impossuveis e msticas amantes

    Raptadas a um convento das Espanhas.

    E ao longo das cogulas concubinas,

    Violadas, sem esperanas,

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  • 89

    A gua deslisava como um choro,

    Tombava, toda a desfazer-se em tranas...

    Pensativas,

    Em voos circulares de procisso

    Dum estranho ritual,

    As nuvens punham, nos cumes das cativas,

    Grinaldas de Irreal.

    .......................

    Ora o cu no um plio

    Para a passagem de quem

    Vai para o trono da morte

    Desde as entranhas da me,

    Nem o mundo coroao,

    Nem as vidas que pisamos

    Poeira erguida, ao de leve,

    Pelo manto que envergamos,

    Nem Deus o erro prudente,

    Degrau de altura do trono,

    Osso de esp'rana atirado

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  • 90

    boca dos ces sem dono.

    Ns somos mais, porque vamos

    Lutando contra o capricho

    Que fez de ns uma estrela

    Num firmamento de lixo.

    .......................

    Sobre um declive juncado

    De podres pssaros mortos,

    Deso os atalhos que, tortos,

    Sobem a Deus.

    E cego aos voos parados

    Que o mesmo frmito impele

    E um s cansao frustrou,

    Lcido e louco, prossigo

    P'ra exaltao e castigo

    De quem no sou.

    .......................

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  • 91

    E um terror satnico e antigo,

    O que nasceu comigo

    hora em que acordei

    Para a misria da minha condio,

    Ergue-se todo,

    Num garrote de lodo

    E solido...

    .......................

    No horto das conscincias desfolharam-se os deuses.

    Vastos devastadores

    - A Paixo e a Dvida -

    Disputaram s razes

    Os pednculos airosos,

    E um longo estio de indiferena

    Evaporou nas seivas

    As iluses piedosas.

    J a morte no abre

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  • 92

    Para encruzilhada

    Dos dois caminhos eternos.

    .......................

    Mais do que mitos infernais ou laos

    Dum sobre-humano engenho aterrador,

    Probem-me os umbrais, cujo transpor

    todo o fim dos meus perdidos passos.

    .......................

    Porqu ? Porque hei-de ver apenas isto ?

    Eu que sou autntico, que existo

    Sem smbolos, real, naturalmente ?

    .......................

    Deuses, inferno e cu, foi tudo em vo;

    Mito aps mito, ergueu-se o gneo horror

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  • 93

    Do Eterno sem Deus, e com ele o esplendor...

    Ao cabo, os homens so o que homens so.

    O Ponto

    Mnimo sou,

    Mas quando ao Nada empresto

    A minha elementar realidade,

    O Nada s o resto.

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  • 94

    Livro III - Poemas de Natal e da Paixo de Cristo

    Nota explicativa

    Entre os projectos literrios de Reinaldo Ferreira figurava, com certo relevo, a publicao de uma plaquette intitulada Poemas de Natal e da Paixo de Cristo. Esse conjunto de poemas estava definido por um ndice que nos foi dado pelo prprio autor. Sucede, porm, que no esplio do poeta apareceu um outro ndice com a indicao de alguns poemas diferentes. Dada a impossibilidade de se saber qual o ltimo ndice - que se tomaria, nesta emergncia, como o definitivo -, combinaram-se os dois, tanto mais que as diferenas entre um e outro eram pequenas. Obteve-se assim, para ordem e constituio dos Poemas de Natal e da Paixo de Cristo:

    1.Os Profetas;2.Visitao;3.Cano do pastor perdido;4.Natal;5.Segundo Canto para a renovao do Natal;6.Stabat Mater;7.Menino s;8.Ele sabia de cor o trilo de todos os pssaros;9.Conferncia Imprensa;10.Piet.

    Os poemas Os Profetas, Natal, Segundo Canto para a renovao do Natal e Piet chegaram a ser publicados em jornais, em vida do autor. Visitao apresentado com reservas, uma vez que no estava suficientemente identificado, e sabe-se que o poeta por vezes alterava ttulos, dando novos a alguns j antigos. Os poemas Menino s e Conferncia Imprensa, inacabados, so apresentados na nica verso conhecida, tal como chegou s nossas mos. No se conseguiu encontrar e presume-se mesmo que no tenha chegado a ser escrito o poema Ele sabia de cor o trilo de todos os pssaros.

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  • 95

    Os Profetas

    Assombra, esta verdade que trazemos.

    Aterra, a nitidez com que falamos.

    Mas ns, mais do que vs, nos aterramos

    Da certeza que temos.

    Porque h distncias que ningum transps

    E predizer ser no Tempo - Aqum.

    Correm palavras, como um rio, em ns:

    A Verdade Belm.

    Visitao

    Que do anjo das asas rutilantes

    Com que lutou Jacob, na madrugada?

    Que desse outro, de falas sussurrantes,

    Que surgiu a Maria, a fecundada,

    To casta e sem pecado como dantes?

    Que da estrela, pela mo de Deus lanada

    A guiar os incertos caminhantes

    Ao colmo da cabana consagrada?

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  • 96

    Onde esto os sinais que Deus envia?

    Onde esto, que os procuro noite e dia

    Sem nunca ver cumprido o meu desejo?

    No os vejo e no sei se eu, que os procuro,

    Os no encontro porque sou impuro,

    Ou sou impuro porque os no vejo.

    Cano do pastor perdido

    Ia eu p'ra Belm

    Com oferendas tambm

    Por Babel me passava;

    E, passando, hesitei,

    Hesitando, parei

    E parando, ficava.

    Mas nem lavas, nem lodos,

    Nem os rpteis todos

    Da Paixo e do Mal

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  • 97

    Tero fora que possa

    Afundar-me na fossa

    Do Juzo final.

    Natal

    Neste caminho cortado

    Entre pureza e pecado

    Que chamo vida,

    Nesta vertigem de altura

    Que me absorve e depura

    De tanta queda cada,

    que Tu nasces ainda

    Como nasceste

    Do ventre da Tua me.

    Bendita a Tua candura.

    Bendita a minha tambm.

    Mas se me perco e Te perco,

    Quando me afogo no esterco

    Do meu destino cumprido,

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  • 98

    hora em que Te rejeito

    E sangra e di no Teu peito

    A chaga de eu ter esquecido,

    que Tu jazes por mim

    Como jazeste

    No colo da Tua me.

    Bendita a Tua amargura

    Bendita a minha tambm.

    Segundo canto para a renovao do Natal

    A Nomia de Sousa

    Tudo foi emprestado e alheio

    Para que Deus nascesse conforme as Escrituras:

    A gruta, que os prespios embelezam,

    - Ou talvez um estbulo?

    - Ou talvez o ventre autntico da me?

    A burra e a vaca,

    Jos, que era o pai cmodo,

    E a me, que era o emprstimo supremo,

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  • 99

    O recurso, a verdade

    E a necessidade

    Para que Deus nascesse entre os homens,

    Mais do que Deus,

    Um Homem.

    Havia os magos com presentes deslocados,

    O astro dos sinais,

    A voz, o anjo, os pastores e a frase

    Que nos prespios fabricados

    Fala da paz, dos homens e da boa-vontade.

    Havia a noite e ns,

    Filhos de pai e me,

    Nascidos antes e depois espera de que Deus viesse,

    Fruto d'A que no teve marido neste mundo

    Para que o filho deslisasse sem pecado.

    E havia Herodes,

    Para que no fosse fcil

    O que era inevitvel.

    E houvesse drama.

    Ora bem.

    Entre a burra e a vaca,

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  • 100

    Dentro do hlito tpido das bestas,

    Sobre as palhas

    E ao nvel das tetas,

    O menino jazia

    Nascido,

    Que como quem diz cumprido

    Da promessa que havia.

    Jos,

    Os magos e os pastores

    Tinham a sua f;

    A estrela tinha o seu ofcio de ser estrela;

    A noite e as bestas tinham a sua inconscincia,

    Que tudo,

    Porque tudo e nada so a mesma coisa;

    O Menino tinha o mistrio de ser menino

    E j Deus;

    Ela, Ela tinha a misria de ser me

    E s me.

    Ela o Natal.

    Ora bem.

    No falemos de Herodes, nem dos magos, nem dos pastores,

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  • 101

    Nem sequer de Jos,

    Do amvel, do amoroso Jos

    Que nos enternece

    E discreto desaparece

    Pela esquerda baixa

    Do primeiro quadro da tragdia

    De que somos o coro

    - E tambm a tragdia.

    Mas falemos d'Ele,

    Que Ele Ele,

    Mesmo quando se faz pequenino

    Para ter o nosso tamanho.

    No falemos da noite,

    Que um pouco mais que tudo isso,

    - E menos do que a me,

    De quem falemos.

    Ora bem.

    Ela ali estava para ser pintada.

    Para ser pintada na vista do conjunto

    Que o Natal,

    Comparsa dos prespios que ho-de vir,

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  • 102

    Entre arraiais e foguetes

    E estrelas de papel.

    Ela ali estava para ser pintada

    Na fuga para o Egipto,

    Ao trote gracioso do burrito,

    Sem vaca, s com Jos e o deserto e as escrituras,

    Que mandam mais que Herodes

    E todos os seus bigodes.

    Ela ali estava para ser pintada.

    Para ser pintada - pouco e bem -

    Sem o burrito, s com Sant'Ana e S. Jos

    No breve engano de ser s me

    Dum filho que fosse s filho.

    Ela ali estava para ser pintada

    No alarme de Jesus entre os doutores.

    Ela ali estava p'ra no ser pintada

    Depois que Jesus fez trinta,

    Antes dos trinta e trs

    (Disseram trinta doutores:

    - Diga trinta e trs.

    Ele disse.

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  • 103

    Ele disse e morreu

    Sem sofrer dos pulmes).

    Ela ali estava para ser pintada

    E no znite de Jesus ser Jesus,

    Depois dos trinta,

    Quando Jesus

    Fez

    Trinta e trs,

    Ela ressuscitou pintura ao p da cruz.

    Ora bem.

    A cruz que Ele trazia,

    Mal lhe pesava.

    Ele esperava.

    Ele salvava.

    Ele descia

    E por isso subia.

    Ela era mulher, era me - e Sabia.

    A sua cruz

    Era Jesus.

    O seu inferno

    Era ser me do Eterno

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  • 104

    Que havia de sangrar

    E morrer

    Pelo caminho.

    Por isso que Ela mal se v no palheiro,

    Que como quem diz, no estbulo.

    No a estrela que A deslustra

    (O Universo e todos os seus astros

    No valem o que Ela );

    No so os magos que A repelem

    Para o canto, de no ser rainha,

    Porque Ela o dos reinos que eles buscavam;

    No Jos que A excede, porque Jos Jos,

    E isso lhe basta sem ser bastante;

    No o Filho que A tolda,

    Porque Ela a Me.

    Ora bem.

    ser a Me.

    ver que o Seu menino

    No apenas menino,

    Mas a dose anunciada

    De Homem e Deus;

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  • 105

    A ponte que tem de ser pisada

    Para que haja estrada

    Para os cus;

    o ser-lhe filho e ser-lhe pai,

    O filho que Ela estremece

    Vivo e j morto,

    Porque o Pai quer e Ela obedece.

    Irmos em Cristo!

    Irmos do mesmo pai,

    Quem quer que seja o Cristo

    Que buscais.

    Esta a Sua hora!

    A Sua - e a nossa.

    Ela o Natal.

    Ave-Maria.

    Ora bem.

    Stabat Mater

    Tu, me de Deus,

    Nesta hora e sempre

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  • 106

    Me d'Ele e nossa me,

    Pare-o com dor humana

    E renovada

    E consagrada,

    A Ele, que ns buscamos

    Com outros e afinal equivalentes credos,

    A quem chamamos nos desolados medos,

    Talvez com outro nome

    Porque diversa a lngua

    E no a fome

    Que lhe temos.

    Menino s

    Assim que o Anjo descer,

    Hei-de sentar-me na estrada

    Ao p da hora marcada

    Para o menino nascer.

    E quando venha - sem mais

    Porque o no quero tambm

    Maculado -

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  • 107

    Hei-de fit-Lo e sorrir

    Pensando no que podia

    Mas no lhe quero ensinar:

    Nem a ler,

    Nem a contar,

    Nem que requinte a mentir.

    Depois - mas depressa,

    No lhe desponte um vislumbre

    De lucidez na cabea -

    .......................

    Conferncia Imprensa

    O processo

    - O que importa vir-lo do avesso,

    Mudar as intenes,

    Interpretar,

    Sofismar -

    Deve ser rpido e sumrio.

    Termos, preceitos, norma,

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  • 108

    tudo forma,

    Matria de processo e conveno.

    Ao cabo, o Calvrio

    Que preciso atingir.

    Algum tem de subir.

    Eu no quis, sou juiz.

    Aos senhores,

    Mais propagadores

    De tudo o que acontece

    - De todo o que parece

    Que acontece

    E passa a acontecer -

    E disto e daquilo

    - E da Verdade, s vezes -

    .......................

    Piet

    J lvido repousa em seu regao.

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  • 109

    J no escuta, no v, no ri, no fala.

    Aquele que foi Seu filho, Ela o embala

    Morto, alheia a tempo e espao.

    O mistrio parou no limiar dos assombros.

    Dos irados profetas, das rgidas escrituras

    Sobra um Deus morto; e os nicos escombros

    So a atnita aflio das criaturas.

    Eles choram, vrios, como vrios so

    Sua revolta e sua dor. Absorto,

    O olhar da Me escorre, intil, no cho.

    Ela, o que chora? O Deus parado - ou o filho morto?

    Livro IV - Dispersos

    Nota explicativa

    Os poemas que neste livro se incluem merecem uma nota de esclarecimento. Trata-se, como evidente, de matria delicada, tanto mais quanto s neste livro se poderia falar da incluso ou excluso de quanto no coube nos restantes livros que eram projecto do Poeta.Quais os poemas que aqui couberam? Como acima se disse, simplesmente, quer fragmentos de poemas, quer poemas completos, j antigos, j mais recentes, que no faziam, de modo nenhum, parte de qualquer dos livros delineados por Reinaldo

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  • 110

    Ferreira. De alguns desses poemas nem sequer caber dizer que fossem verses definitivas. To pouco se lhes poder conferir uma cronologia fundamentada: faz-lo no passaria, nalguns casos, de aproximao, noutros, de pura fantasia.Convm desde j frisar tambm que no se incluem neste livro todos os poemas que chegaram mo dos organizadores, quando j o estudo do esplio estava em curso. Alguns, por aos organizadores parecerem francamente inferiores melhor medida que o Poeta de si viria a dar, foram simplesmente excludos, ficando no entanto guardados com o esplio do Poeta, que entidade competente deixar certamente disposio do estudioso interessado.Quanto arrumao das poesias no livro, fica bvio, de tudo quanto atrs se disse, que pouco se poderia fazer. Optou-se pela ordem que pareceu melhor, ficando-se no entanto a saber que essa ordem tem muito de discutvel e, qui, de inaceitvel. Aos organizadores afigurou-se no entanto que o importante seria manifestar os poemas e no montar o arranjo deles.

    Linhas cruzadas

    Ai de mim!

    Que no pedi p'ra nascer

    E sou forado a viver!

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  • 111

    A Natureza espreitava

    O desejo de meus pais.

    E foi pedir ao destino

    Que lhes cruzasse os caminhos

    Que eles haviam de seguir.

    Ah! Pobre me!

    Antes tivesses nascido

    Toda crivada de espinhos,

    Estril como cardo seco!

    Mas tinhas olhos de moira:

    Um lrio branco murchou

    E o teu ventre concebeu

    Este farrapo que eu sou.

    Duas rectas que se cruzam,

    Eis um ponto.

    Esse ponto, em movimento,

    H-de ser recta tambm.

    Essa recta e outra recta

    Ho-de formar outro ponto,

    Novo ponto, nova recta,

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  • 112

    E sempre, assim sem remdio.

    Eu sou um ponto nascido

    De duas vidas cruzadas:

    Trouxe comigo um impulso

    Que me deu a Natureza

    Para seguir um caminho

    E a trajectria marcada.

    O que me espera? No sei.

    Apenas sei que caminho,

    Para um caminho de fel,

    Para a certeza do Nada.

    Comecei, era menino,

    Sou cansado caminhante,

    Serei velho peregrino,

    E o Nada sempre distante.

    Ai de mim!

    Que no pedi p'ra nascer

    E sou forado a viver!

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  • 113

    Passemos, tu e eu, devagarinho

    Passemos, tu e eu, devagarinho,

    Sem rudo, sem quase movimento,

    To mansos que a poeira do caminho

    A pisemos sem dor e sem tormento.

    Que os nossos coraes, num torvelinho

    De folhas arrastadas pelo vento,

    Saibam beber o precioso vinho,

    A rara embriaguez deste momento.

    E se a tarde vier, deix-la vir

    E se a noite quiser, pode cobrir

    Triunfalmente o cu de nuvens calmas

    De costas para o Sol, ento veremos

    Fundir-se as duas sombras que tivemos

    Numa s sombra, como as nossas almas.

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  • 114

    Onde, aguardando, esperasse

    Onde, aguardando, esperasse,

    Onde, cantando, me ouvisse,

    Onde, podendo, bastasse,

    Onde, vivendo, existisse.

    Onde o intuito trouxesse

    O corpo de se cumprir

    E eu todo sempre me desse,

    A seria tambm

    De exlio a minha atitude.

    O que longe sempre o Bem,

    Por mais que a alma se mude.

    Da margem esquerda da vida

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  • 115

    Da margem esquerda da vida

    Parte uma ponte que vai

    S at meio, perdida

    Num halo vago, que atrai.

    pouco tudo o que eu vejo,

    Mas basta, por ser metade,

    P'ra que eu me afogue em desejo

    Aqum do mar da vontade.

    Da outra margem, direita,

    A ponte parte tambm.

    Quem sabe se algum ma espreita?

    No a atravessa ningum.

    Quem dorme noite comigo?

    Quem dorme noite comigo?

    meu segredo, meu segredo!

    Mas se insistirem, desdigo.

    O medo mora comigo,

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  • 116

    Mas s o medo, mas s o medo!

    E cedo, porque me embala

    Num vaivm de solido,